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Orientação para a Elaboração da Redação

Nome do autor: Paulo Roberto Serraglio Neto Série em 2023: ( )3ª; (X)2ª ou anterior
Título da redação: “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”
A sociedade contemporânea é bombardeada por informações através das redes sociais. Entretanto,
muitas dessas informações podem ser enganosas e/ou conter erros grotescos – as chamadas fake news,
altamente perigosas em contextos como o abordado aqui.
Nessa conjuntura de rápida disseminação das fake news, no dia 23 de abril de 2020, no início da
pandemia do coronavírus (Sars-Cov-2), o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em um
discurso na Casa Branca, afirmou que ingerir desinfetante, como água sanitária, eliminaria o vírus da Covid-
19 do corpo humano “em um minuto". A esse discurso, seguiram-se diversos alertas de entidades ligadas
ao ramo farmacêutico e industrial repudiando o uso desses produtos, o que não impediu que centenas de
pessoas fossem internadas por intoxicação nos dias posteriores [1].
Tudo isso não foi por acaso. A água sanitária, ou alvejante, é um produto de limpeza cuja composição
química é direcionada à desinfecção de superfícies. Utiliza-se a água sanitária, por exemplo, na esterilização
de objetos, limpeza de piscinas, remoção de sujeiras e outras aplicações [2].
Por ser uma mistura química, ela é formada por diversas substâncias. Dentre os compostos
encontrados no rótulo desse produto, está o hipoclorito de sódio (NaClO). Alicerce de toda a composição
desse desinfetante e princípio ativo do produto, o hipoclorito de sódio é um sal solúvel em água, pois é
resultado da combinação do cátion sódio (Na+) com o ânion clorito (ClO-). Além disso, é um sal de caráter
básico, pois seu pH encontra-se entre 11 e 13 na escala de pH [Avazin]. O teor de cloro ativo na composição
da água sanitária pode atingir de 2% a 2,5%. Ela também é um forte agente oxidante [3].
Com o objetivo de combater a mentira disseminada por Trump durante a pandemia, é importante
entender a utilização histórica do gás cloro, a partir do qual é produzido o desinfetante.
De acordo com o professor de química do Colégio Unificado, Daniel Ledra, em entrevista ao site do
G1 em 2022, o gás cloro, a partir do qual é produzido o agente ativo da água sanitária (hipoclorito de
sódio), “é muito tóxico e prejudicial e foi muito utilizado como arma química na 1ª Guerra Mundial” [G1].
No que concerne a esse evento, segundo o jornal The Guardian, tropas alemãs utilizaram o gás cloro contra
tropas francesas no dia 22 de abril de 1915, causando mais de 100 mortes do lado da Tríplice Entente [TG].
Além disso, de acordo com o site BBC, o uso do gás cloro como arma química foi repetido na Guerra da Síria,
em 2018, sendo responsável por diversas vítimas e mortes civis [BBC].
Mas, afinal, por que o cloro é tão perigoso para a saúde? E como ele
se relaciona com as perigos água sanitária, ignorados pelo ex-presidente dos
Estados Unidos, Donald Trump?
Conforme explica trabalho feito pelo Departamento de Física e
Química da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e publicado na
revista científica Química Nova, o cloro é um gás “diatômico, altamente
tóxico e oxidante” [QN]. Isso significa que o Cl2, formado por apenas 2 Figura x: Cloro gasoso, um
gás diatômico formado por
átomos de cloro unidos por ligação covalente simples (o cloro é um
uma ligação covalente.
halogênio), tem alto teor de toxicidade para o organismo, podendo causar
diversos e intensos efeitos nocivos.
Com base nisso, é iminente a percepção de que a água
sanitária é um grande perigo ao corpo humano. Isso porque,
normalmente, obtém-se NaClO a partir da reação de 1 mol de cloro
gasoso (muito tóxico) com 2 mols de hidróxido de sódio,
produzindo 1 mol de cloreto de sódio, 1 mol de hipoclorito de sódio
(justamente o que era desejado) e 1 mol de água (Figura 1) [4].
Experimentalmente, observa-se que o cloro gasoso é absorvido
pela solução aquosa de NaOH, base solúvel em água, a qual
Figura 1: Experimento que mostra a reação da figura
1. Disponível em https://youtu.be/ [video0]
permanece resfriada a temperaturas abaixo de 40 °C) durante o processo [5]. Percebe-se que essa é uma
reação de auto-oxirredução, pois há variação apenas do Nox do cloro; em outras palavras, o cloro é tanto
um redutor que se oxida, quanto um oxidante que se reduz. Afinal, fica claro que em Cl2 (g), uma substância
simples, o Nox é 0. Já em NaCl (aq), o Nox do cloro é 1- (redução). Finalmente, em NaClO (aq), o Nox do
cloro é +1 (oxidação).

O cloro (g), por sua vez, o qual é utilizado na equação do


hipoclorito de sódio, deve ser obtido experimentalmente. Uma das
opções é a reação de 1 mol de dióxido de manganês com 4 mols de
ácido clorídrico, que produz 1 mol de cloreto de manganês, 1 mol de
cloro gasoso (justamente o que era desejado) e 2 mols de água
(Figura 2). Mais uma vez, nos deparamos com uma reação de
oxirredução, pois há variação do Nox do manganês (Mn) e do cloro
(Cl). Afinal, enquanto em MnO2 (s) o Nox do manganês é 4+, em MnCl2 Figura 3: Experimento que mostra a reação
(aq) o Nox do manganês é 2+ (redução). Por outro lado, enquanto em da figura x. Disponível em https://youtu.be/
4HCl (aq) o Nox do cloro é 1-, em Cl2 (g), uma substância simples, o [video1]
Nox do cloro é 0 (oxidação).
Figura 2: Primeira reação
para obtenção de gás cloro,
necessário para a obtenção
de hipoclorito de sódio [6]

A outra opção de obtenção do cloro (g) é a eletrólise


da Salmoura, um processo cloro-álcali. Primeiramente,
adiciona-se 100 mL de água em um béquer de 250 mL, e 3
colheres de sal de cozinha (NaCl). Depois, agita-se o sal até a
sua dissolução total, e então a solução deve ser distribuída
entre 2 béqueres menores, cada um com 30 mL de salmoura.
Esses 2 béqueres devem ser interligados por uma ponte
salina, a fim de fechar o circuito elétrico. Mergulham-se,
então, um anodo e um catodo nos 2 béqueres, um em cada.
Percebe-se, após algum tempo, que no béquer com o anodo Figura 4: Experimento que mostra a eletrólise da
(polo negativo) há a formação de íons hidroxila (OH-) e gás Salmoura. Disponível em https://eaulas.usp.br/ [video2].
hidrogênio (H2) – a formação de bolhas é evidência disso –, a
partir da redução da água (afinal, ocorre a transferência de
elétrons do ânodo para as moléculas de água da solução), com a consequente alcalinização do meio devido
ao aumento do pOH e diminuição do pH (Figura a). Já no béquer com o catodo (polo positivo), os íons
cloreto (Cl-) sofrem oxidação – transferem elétrons para o eletrodo –, produzindo cloro aquoso (Cl2) –
afinal, gás cloro é altamente solúvel em água em temperatura ambiente (Figura b). Esse cloro também
reage com água, formando ácido hipocloroso (HClO) e acido clorídrico (HCl), configurando equilíbrio
químico (Figura c). Na equação global da eletrólise de Salmoura, os íons de sódio (Na+) interagem com os
íons hidroxila (Figura d). [SALMOURA].

Figura 6: Produção de íons hidroxila e gás hidrogênio no


béquer com o anodo [6] Figura 5: Produção de cloro no béquer com o catodo [6]

Figura 8: Equilíbrio químico estabelecido no béquer Figura 7: Equação global da eletrólise de Salmoura [6]
com o cátodo [6]
A água sanitária, ao ser ingerida pela boca, percorre o organismo pelos órgãos do sistema digestório.
Chegando ao estômago, o alvejante reage com o ácido estomacal, formado majoritariamente por ácido
clorídrico, ou ácido muriático, (HCl). Em mais uma reação de oxirredução, 1 mol de hipoclorito de sódio do
alvejante (agente oxidante) e 2 mols de ácido clorídrico em solução aquosa (agente redutor) produzem 1 mol
de água, 1 mol de cloreto de sódio e 1 mol de cloro gasoso. Este último produto – Cl2 (g) – é o responsável por
grandes problemas causados pela ingestão da água sanitária.

Figura 3: Reação que ocorre quando água sanitária chega ao estômago e entra em contato com o suco estomacal [6]

De acordo com o Centro Nacional para Informação de Biotecnologia (NCBI), pertencente à


Biblioteca de Medicina Nacional dos Estados Unidos (NLM), o gás cloro reage com a água dos tecidos do
corpo humano, promovendo a oxidação de grupos funcionais em componentes celulares e,
consequentemente, causando lesões celulares graves [NLM]. Esse fato pode ser concluído ao analisar a
reação (de oxirredução por dismutação) em questão: 1 mol de gás cloro (tanto agente redutor, quanto
agente oxidante) reage com 1 mol de água e produz 1 mol de ácido clorídrico e 1 mol de ácido hipocloroso,
ambos solúveis, além de radicais livres de oxigênio (Figura 4).

O ácido clorídrico (HCl) é um ácido/eletrólito forte, ou seja, se ioniza/dissocia completamente. De


fato, sua constante de ionização vale, aproximadamente, x ver). Consequentemente, o meio no qual o
ácido clorídrico se dissolve é extremamente ácido [USP)]

Já o ácido hipocloroso (HClO) é um ácido ou eletrólito fraco, ou seja, não se ioniza/dissocia


completamente. De fato, sua constante de ionização vale, aproximadamente, y (ver). Consequentemente, o
meio no qual o ácido hipocloroso se dissolve é menos ácido do que o do HCl [USP].

Os radicais livres de oxigênio produzidos por essa reação química, por sua vez, também trazem
diversos problemas à saúde humana. Radicais livres são moléculas extremamente instáveis, e por isso
buscam doar ou roubar elétrons de outras moléculas ou compostos. No caso detalhado acima (decorrido
da ingestão de água sanitária), ocorre um desequilíbrio anormal entre a quantidade de radicais livres e de
antioxidantes, desencadeando o processo de estresse oxidativo. Segundo estudo dirigido pela Universidade
Federal de Viçosa (UFV) e publicado na SciELO, “O estresse oxidativo decorre de um desequilíbrio entre a
geração de compostos oxidantes e a atuação dos sistemas de defesa antioxidante. [...]. O sistema de defesa
antioxidante tem a função de inibir e/ou reduzir os danos causados pela ação deletéria dos radicais livres
e/ou espécies reativas não radicais” [SCIELO]. SINTOMAS

Figura 4: Reação entre gás cloro e a água dos tecidos do corpo humano [6]

Esses ácidos – HCl e HClO – são responsáveis pela maioria dos problemas de saúde após a ingestão
de água sanitária: queimaduras, lesões corrosivas, degeneração e danos aos tecidos, náuseas, vômitos e
dor abdominal, danos permanentes ao sistema gastrointestinal, perfurações gastroesofágicas, morte
celular por desnaturação de proteínas, lesões cutâneas, alterações neurológicas e morte [].

Com base no que foi exposto até aqui, fica claro que ingerir ou injetar desinfetantes no corpo
humano é uma atitude passiva de diversos problemas, inclusive a morte. Mas, será que não é possível
realmente matar o vírus da Covid-19? Será que Trump estava certo?

A resposta é não.
De acordo com artigo publicado na Healthline, “Não há evidências de que engolir água sanitária
ajude a combater a COVID-19” [healthline].

Além disso, conforme exposto em artigo da Forbes, o Departamento de Saúde Pública da Geórgia,
estado norte-americano, emitiu um aviso dizendo que “Os produtos (a base de cloro) não demonstraram
ser seguros e eficazes para qualquer uso, incluindo o tratamento da COVID-19” *forbes+.

Ademais, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) publicou um documento no qual diz que
“Não há evidências de sua eficácia e a ingestão ou inalação de tais produtos pode causar graves efeitos
adversos” [OPAS].

Finalmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que “Beber metanol, etanol ou água
sanitária NÃO previne ou cura a COVID-19 e pode ser extremamente perigoso”, pois eles “não matarão o
vírus em seu corpo e prejudicarão seus órgãos internos” *OMS+.

Portanto, com base nos dados e inferências aqui expostos, percebe-se que a ingestão e a injeção de
água sanitária ou alvejantes não têm eficácia comprovada no combate ao vírus da COVID-19.
Conseguintemente, conclui-se que as falas do ex-presidente do Estados Unidos, Donald Trump, as quais
eram a favor do uso desses produtos no contexto de pandemia do Sars-Cov-19, configuram uma tremenda
mentira – em termos mais atuais, fake news.

É essencial, dessa maneira, que haja um estímulo por parte de toda a coletividade ao
desenvolvimento da ciência, em especial da química, e da educação científica. Só assim será possível
ultrapassar a ignorância e garantir um futuro adequado às novas gerações. É a partir da ciência que as fake
news são desmentificadas. É a partir da química que percebe-se o mundo tal como ele é, sem nenhuma
lente impregnada de mentiras. Afinal, em um mundo de fake news, Trump e as demais autoridades têm de
perceber que “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”.
Referências Bibliográficas:
[1] Site: <https://exame.com/> acessado em 11/02/2024
[2] Site: <https://www.ype.ind.br/> acessado em 11/02/2024
[3] Site: <https://www.cleanipedia.com/br/> acessado em 11/02/2024
[4] Fernando B. Mainier, Luciane P. C. Monteiro, Renata Jogaib Mainier. Bleach (sodium hypochlorite): a
laboratory experiment relating to the daily teaching of chemistry. Site: <https://quimicanova.sbq.org.br/>
acessado em 11/02/2024
[5] Site: <https://pt.wikipedia.org/> acessado em 11/02/2024
[6] Site: <https://chemequations.com/> acessado em 11/02/2024
[G1] Site: <https://g1.globo.com/> acessado em 11/02/2024
[TG] Site: <https://www.theguardian.com/> acessado em 11/02/2024
[BBC] Site: <https://www.bbc.com/news/> acessado em 11/02/2024
[QN] Francisco G. Emmerich, Alfredo G. Cunha e Milton K. Morigaki. PRODUÇÃO ELETROQUÍMICA DE GÁS
CLORO EM ESCALA DE LABORATÓRIO PARA O TRATAMENTO DE AMOSTRAS. Site:
<https://quimicanova.sbq.org.br/> acessado em 11/02/2024
[NLM] Site: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/> acessado em 11/02/2024
[BBC] Site: <https://www.bbc.com/news/> acessado em 11/02/2024
[USP] Site: <https://edisciplinas.usp.br/> acessado em 11/02/2024
[RAD] Site: <https://blog.extratosdaterra.com.br/> acessado em 11/02/2024
[SCIELO] Estresse oxidativo: conceito, implicações e fatores modulatórios. Site: <https://www.scielo.br/>
acessado em 11/02/2024
[SALMOURA] Site: < https://eaulas.usp.br/> acessado em 11/02/2024

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