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Em Busca Do Habitus de Transformação
Em Busca Do Habitus de Transformação
1. Introdução
deturpar o positivismo jurídico – como, ademais, fizeram outros teóricos – para justificar
os seus propósitos. Assim, criou-se um modelo que, aplicado ao ensino jurídico,
direcionou todas as preocupações do estudante de direito para o simples conhecimento
do jargão técnico, que não é padronizado, e de normas jurídicas, insertas em incontáveis
leis.
Ocorre que o positivismo jurídico não foi criado para servir como processo de
ensino-aprendizagem. Essa é tarefa da pedagogia, que, aplicando seu método próprio,
vai se ocupar da teoria e da prática da educação, e, assim, do processo de formação
discente e docente. Desta forma, o que se critica aqui não é o estudo puro do direito, e
sim o apego às leis, o apego exclusivo à normatividade que a pedagogia jurídica da
tradição do direito escrito de família romano-germânica tem. Mas também há que se
criticar o apego exclusivo à casuística adotado pela pedagogia jurídica da tradição do
direito consuetudinário de família anglo-saxã. Estes dois são os principais métodos da
pedagogia jurídica e, quando adotados em suas formas puras, tendem, respectivamente,
ao tecnicismo com o desconhecimento da realidade (ou da prática) e ao praxismo com o
desconhecimento da teoria.
A segunda parte traz uma fundamentação baseada nos três habitus identificados na
primeira parte relacionando-os com algumas práticas relatadas na literatura jurídica para
a elaboração de uma proposta de modelo. Para isso, faz-se uma análise crítica do
habitus de manutenção, que propõe a manutenção de algumas práticas necessárias ao
ensino jurídico básico. Em seguida, a partir de alguns relatos, demonstra-se, a partir do
habitus de transição, como nem tudo que é tratado como inovador é capaz de
transformar o paradigma adotado. E encerra-se tal tópico com uma referência às
práticas que podem ser vistas como transformadoras, aquilo a que se chama de habitus
de transformação, que é o modelo proposto neste estudo.
Utiliza-se, na proposição deste novo modelo, uma estratégia metodológica que se ocupa:
em primeiro lugar, com uma exposição teórica fundamentada na crítica de Bourdieu,
Passeron e Saviani à reprodução mecanicista de um arbitrário cultural; e, em segundo
lugar, com a análise de diretrizes legislativa e normativas, bem como de práticas já
verificadas na literatura disponível.
Esta primeira parte se ocupa da fundamentação teórica tanto para elaborar as críticas ao
modelo de ensino-aprendizagem jurídico usualmente empregado quanto para propor um
modelo alternativo. O primeiro tópico traz a crítica de Bourdieu e Passeron à reprodução
e à legitimação do habitus, delineando-se, quando possível, breve e superficialmente, a
crítica que será feita ao padrão pedagógico geralmente adotado no Brasil para o ensino
jurídico. Essa crítica será mais bem apresentada (e aprofundada) no segundo tópico, que
tratará sobre a tendência dogmática (largamente reproduzida no sistema de ensino
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Ensino jurídico: em busca do habitus de transformação
Como toda proposta que se baseia em uma crítica tem de possuir uma fundamentação,
aqui é apresentado o primeiro fundamento, que é baseado na crítica de Bourdieu e
Passeron à reprodução e à legitimação do habitus.
O habitus é uma noção filosófica que remonta à noção aristotélica de hexis e à noção
tomista de habitus, sendo retomada por Bourdieu para construir uma teoria da ação
baseada na capacidade inventiva dos agentes (Wacquant, 2007, p. 6; 2002, p. 98). Em
Bourdieu o habitus será assumido como “(…) o modo como a sociedade se torna
depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e
propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que então
as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e solicitações do seu meio
social existente” (WACQUANT, 2007, p. 8-9).
Em um discurso de maio de 1983, Bourdieu (1986, p. 40) explicou que o que o levou a
retomar a noção de habitus foi uma tentativa de reagir contra uma tendência de
descrever o mundo social a partir da linguagem normativa, destacando, pois, que as
regras jurídicas não são mais do que o registro de ocorrências sociais produzidas a partir
dos princípios do habitus, o qual é um sistema disposicional da prática, um fundamento
objetivo das condutas regulares, aquilo que faz as pessoas se comportarem de
determinada maneira em certas circunstâncias.
Ora, o problema não está no positivismo jurídico, não pelo menos naquele desenvolvido
por Kelsen. Não se pode confundir a pureza metodológica da teoria do jurista de Praga
com o dogmatismo pedagógico que nela busca fundamentação. Ou, em outras palavras,
a teoria pura não é a mesma coisa que o direito puro, já que só este é que propõe o
desligamento do direito da realidade (LOSANO, 2003, p. XVI). O que Bourdieu critica é
exatamente esse desligamento, a noção de que é o direito que explica a realidade, e não
o contrário – um modismo que acabou influindo, e que influi até hoje, no ensino jurídico.
Modismo esse cuja única razão de existir parece ser a sua repetição, ou o que o
sociólogo francês chamou de reprodução, já que “não existe na natureza, ou melhor, na
história das relações humanas, uma relação que seja por si mesma, isto é, ratione
materiae, jurídica”; ou seja, as relações humanas têm as mais diversas naturezas, mas
nenhuma delas é “naturaliter jurídica” (Bobbio, 2010, p. 34-35).
comunidade entre eles no decorrer da aula”, de maneira que a escola atua “na
preparação intelectual e moral dos alunos para assumir sua posição na sociedade”
(LUCKESI, 1994, p. 56-57).
Em um livro considerado dos mais polêmicos sobre o sistema escolar, coescrito com
Jean-Claude Passeron, Bourdieu tratou sobre a questão da mera reprodução de
conteúdos neste sistema (1996). Nele, os dois sociólogos franceses criticam o modelo de
reprodução que se utiliza de uma transmissão através de um poder de violência
simbólica.
No caso jurídico, essa crítica pode ser vista através do processo de codificação, que
consiste na tentativa de padronização das práticas sociais, no que se pode chamar de
um ordenamento simbólico, feito pelos burocratas do Estado, a fim de se homogeneizar
as condutas, formalizando-as, isto é, colocando-as nas formas preestabelecidas e
impostas, e tornando-as calculáveis e previsíveis ao preço de abstrações e simplificações
(Bourdieu, 1986, p. 41 e 43).
O marco zero, o teorema inicial do livro transmite o tom em que se desenvolve a obra:
“Todo poder de violência simbólica, ou seja, todo poder que logra impor significações e
impô-las como legítimas dissimulando as relações de força em que se funda sua própria
força, acrescenta sua força própria, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de
força” (Bourdieu; Passeron, 1996, p. 44).
Por este axioma o que se tem é que todo ramo do conhecimento se impõe através de
uma ação simbólica, e que, não fosse assim, ele não existiria objetivamente (Bourdieu;
Passeron, 1996, p. 44). Essa imposição de sistemas simbólicos por ações simbólicas
ocorre através de um poder simbólico, “(…) um poder de construção da realidade que
tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em
particular, do mundo social) supõe aquilo que Durkheim chama de conformismo lógico,
quer dizer, ‘uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que
torna possível a concordância entre as inteligências’” (Bourdieu, 1977, p. 407).
Poder este que usa instrumentos simbólicos para impor ou para legitimar um
determinado sistema simbólico, impondo uma definição do mundo social que melhor
represente o interesse daqueles que detêm o poder simbólico, o monopólio da violência
simbólica. Monopólio este que se traduz no “poder de impor (e mesmo de inculcar)
instrumentos de conhecimento e de expressão (taxinomias) arbitrários (embora
ignorados como tais) da realidade social” (Bourdieu, 1977, p. 408-409).
O poder simbólico, utilizando-se de uma violência simbólica, exerce, portanto, uma ação
simbólica que permite inculcar na sociedade um habitus representativo da tendência em
voga, ou da ideologia dominante. Daí Bourdieu e Passeron (1996, p. 45) afirmarem que
“toda ação pedagógica (AP) é objetivamente uma violência simbólica enquanto
imposição, por um poder arbitrário, de uma arbitrariedade cultural”. Ou seja, as AP
permitem que aqueles que detêm um poder legítimo – ou ao menos legitimado –
imponham ou inculquem o habitus de sua ideologia, o que leva à sua reprodução pela
sociedade.
A reprodução é efetivada, portanto, por uma autoridade que ou não tem noção sobre as
relações de força por trás das ações pedagógicas por ela praticadas ou tem uma noção,
mas esta não é muito clara nem objetiva. Logo, a própria AuP reproduz o habitus que
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Ensino jurídico: em busca do habitus de transformação
lhe foi e que continua a lhe ser inculcado. E isso engloba todo o processo de
ensino-aprendizagem, vale dizer: a forma como o professor (AuP) trata o aluno,
afetivamente ou com distância, as repressões aplicadas para comportamentos indevidos
ou não tolerados em sala de aula, o conteúdo escolhido para ministrar, a maneira de
transmitir esse conteúdo e o modo de apurar a compreensão do conteúdo transmitido.
No caso jurídico isso é patente. Não só a maioria das escolas e faculdades de direito se
prendem ao dogmatismo, como também grande parte das (senão todas as) bancas de
concursos e de exames para o exercício da advocacia. Verifica-se, cada vez mais, o
apego ao conhecimento da literalidade da lei e até mesmo, embora ultimamente, ao
conhecimento dos julgados dos tribunais superiores – o que não seria propriamente um
apego ao dogmatismo, e sim ao casuísmo (embora a tradição no Brasil não seja
consuetudinária). Não é à toa que o grande filão do mercado editorial jurídico tem sido o
de manuais voltados para concursos e provas para o exercício da advocacia. Ademais,
deve-se observar como pulularam os cursos preparatórios.
A reprodução acaba sendo tão firme e duradoura que a pessoa se torna cultivada por
ela, de modo que toda deliberação sobre sua própria cultura, bem como todas as
perguntas sobre os princípios de sua educação, são fatores endógenos da educação que
ela própria recebeu (Bourdieu; Passeron, 1996, p. 78).
Bourdieu e Passeron permitem afirmar, nesta linha de raciocínio, que como o processo
de inculcação é reproduzido desde o início da vida do sujeito, quando ele atinge a idade
adulta já é uma pessoa cultivada, e que repete os valores e os princípios que lhe foram
impostos e inculcados. Assim, o trabalho pedagógico, desenvolvido com o passar dos
anos, não faz outra coisa que legitimar tanto a AuP quanto a AP, fazendo com que a
cultura imposta não pareça arbitrária e o processo de ruptura dessa lógica seja
extremamente difícil.
Constituição Federal (LGL\1988\3) estabelece em seu art. 208, I, que a educação básica
é obrigatória para os indivíduos que tenham entre 4 e 17 anos de idade, contribui para a
legitimação do arbitrário cultural. É esse singelo dispositivo que conjugado com o
conteúdo previamente estabelecido para ser ministrado aos educandos na referida faixa
etária que permite a reprodução de um habitus, que certamente terá um papel
preponderante nas escolhas práticas dos indivíduos.
Mas a realização de um trabalho pedagógico não ocorre tão somente através de uma
ação pedagógica específica e definida. Há ações pedagógicas – e elas são muitas – que
são anônimas e difusas (Bourdieu; Passeron, 1996, p. 89); como ocorre, por exemplo,
com comemorações festivas como o Natal, a Semana Santa, o Carnaval, dentre outras.
No caso do direito, como houve a inculcação em algum momento da História e que até a
atualidade é reproduzida, seja porque tem lá sua eficácia seja por qualquer outro
motivo, de que é preciso leis (em seu mais amplo e genérico significado), escritas ou
consuetudinárias, para regulamentarem as condutas humanas e tribunais para
estabelecerem o seu juízo como o único válido para aqueles que não o tem, o habitus
reproduzido é o de que se deve recorrer às leis, e quando estas não servirem, aos
tribunais.
Leia-se: dogmático, e não positivista. Não se pode concordar com argumentos que
atribuam ao positivismo formulado por Kelsen o seu estabelecimento como modelo
predominante ou mesmo único do ensino jurídico, gravitando todo o conhecimento
jurídico em torno do direito positivo. A crítica é equivocada porque o modelo kelseniano
se refere a uma teoria pura – melhor seria dizer particular – do direito, e não ao direito
puro. A defesa de Kelsen sobre uma cientificidade do direito a partir de um corte
metodológico introduzido para separar o que era do que não era jurídico nunca foi uma
defesa de que o profissional do direito não devesse ter preocupações sobre os outros
campos do saber que são influenciados ou influenciam o direito, nem teve por escopo
reduzir a formação do estudante de direito ao mero conhecimento do sistema normativo.
Um argumento favorável ao jurista de Praga está no fato de que ao idealizar uma teoria
pura do direito ele pretendeu tão só conferir ao direito, enquanto objeto de um
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Ensino jurídico: em busca do habitus de transformação
Outra razão que destaca o equívoco é o reconhecimento por Kelsen de que a eficácia do
ordenamento jurídico válido depende da vontade humana, um campo de estudo situado
além dos limites da construção jurídica (Kelsen, 1969, p. 591). Ora, numa ciência do
direito, na forma proposta por Kelsen, não se indagaria sobre os motivos de determinado
comportamento humano, ou ainda, porque o indivíduo agiu contra uma norma jurídica, e
sim se ele violou um preceito normativo, independente de suas motivações. Esse tipo de
pesquisa quanto às razões de um comportamento humano são estudados por outra
ciência que não o direito. Isso, aliás, ajuda a explicar a criação da norma hipotética
fundamental, separando aquilo que é jurídico daquilo que receberia uma influência de
fatores extrajurídicos.
normas jurídicas, bastaria que, tendo ocorrido um fato já juridicizado em uma norma
jurídica, esta incidisse, gerando uma consequência jurídica. Disso se teria que apenas a
legislação criaria o direito e que a atividade jurisdicional seria meramente reprodutora.
Se esse fosse o raciocínio de Kelsen, aí sim dogmatismo e positivismo poderiam ser
utilizados como sinonímias. Porém, o próprio Kelsen defendia que não apenas a
atividade legisladora como a atividade jurisdicional criam o direito (2007, p. 251). Isso
explica porque não se pode forçar a extração de uma linha pedagógica de sua obra.
Pode-se, então, afirmar, agora com mais segurança, que o que se critica é o apego às
leis, o apego exclusivo à normatividade adotado pela pedagogia jurídica da tradição do
direito escrito. Mas também há que se criticar o seu oposto, o apego exclusivo à
casuística adotado pela pedagogia jurídica da tradição do direito consuetudinário. De um
e de outro lado, isto é, nos dois métodos principais da pedagogia jurídica, o dogmático e
o casuístico, quando puros ou mesmo preponderantes, tendem, respectivamente, ao
tecnicismo com o desconhecimento da realidade e à praticidade com o desconhecimento
da teoria.
Passeron, uma crítica pela crítica, sem o oferecimento de nenhuma alternativa. E isso
não decorre de interpretação equivocada da obra de Saviani, mas de uma incongruência
nela mesma presente.
Primeiro ele critica a concepção crítico-reprodutivista como uma concepção que, além de
combater qualquer proposta pedagógica que se apresente, não apresenta a sua própria
(Saviani, 2003, p. 91). Depois ele próprio destaca que o conceito de habitus seria
equivalente ao conceito de “segunda natureza” que ele utiliza para explicar a sua própria
concepção de educação (Saviani, 2003, p. 137): “(…) a compreensão da natureza da
educação enquanto um trabalho não material, cujo produto não se separa do ato de
produção, permite-nos situar a especificidade de educação como referida aos
conhecimentos, ideias, conceitos, valores, atitudes, hábitos, símbolos sob o aspecto de
elementos necessários à formação da humanidade em cada indivíduo singular, na forma
de uma segunda natureza, que se produz, deliberada e intencionalmente, através de
relações pedagógicas historicamente determinadas que se travam entre os homens”
(Saviani, 2003, p. 22).
Vê-se, então, que a partir daí Saviani criticaria o crítico-reprodutivismo como uma
concepção que combateria qualquer concepção pedagógica porque todas elas
inculcariam um arbitrário cultural e que por isso mesmo não apresentaria uma
alternativa. E, no entanto, apesar de criticar, Saviani se utilizaria do principal aspecto da
concepção crítico-reprodutivista – o habitus – para formular as bases de sua teoria.
Seria um contra-senso, se Saviani realmente defendesse isso.
Fazer esse tipo de leitura da obra savianiana revelaria falta de atenção à crítica por ele
feita. E isso por conta de pelo menos dois motivos. Um é o reconhecimento pelo autor de
que o tradicional não se confunde com o clássico – enquanto aquele deve ser superado
porque ultrapassado, este deve ser mantido porque proveitoso; assim, avalia Saviani, há
certas características e funções escolares que não podem ser afastadas senão haveria
uma inversão no sentido e no papel desempenhado pela escola (Saviani, 2003, p.
101-102). Outro motivo é que Saviani emprega o habitus com dois sentidos distintos.
Um primeiro sentido de habitus é aquele que engloba os conteúdos essenciais, nucleares
ou principais da escola. Este habitus aproveita o que é clássico na escola, ou seja, o que
é pressuposto para um desenvolvimento histórico-crítico. Dito de outra maneira é
preciso conhecer bem o objeto criticado para que se possa criticá-lo. Eis o primeiro
sentido de habitus na pedagogia de Saviani e que, aliás, é muito próximo ao habitus
descrito por Bourdieu.
livre por ter adquirido uma habilidade (Saviani, 2003, p. 18-20). Duas habilidades
adquiridas por este habitus inculcado são esclarecedoras: saber ler e saber escrever. Um
sujeito só aprende a ler ou a escrever depois que automatiza determinados atos, isto é,
depois que repete inúmeras e constantes vezes os atos necessários à interiorização das
habilidades que permitem a leitura e a escrita: “o trabalho educativo tem que se
desenvolver num tempo suficiente para que as habilidades, os conceitos que se pretende
sejam assimilados pelos alunos, de fato, convertam-se numa espécie de segunda
natureza” (Saviani, 2003, p. 126-127).
A preocupação com a questão do método é bem clara na pedagogia savianiana. Mas não
do método em si – ou seja, do método pelo método –, e sim do método em sua relação
com o conteúdo, isto é, como transmitir o conteúdo de uma maneira que não seja
mecanicista? Na verdade, a pergunta exata seria como transmitir o conteúdo de uma
maneira que não seja completamente mecanicista?
humano”, vale dizer, é introduzido na cultura que o rodeia (Saviani, 2003, p. 75), então
há uma fase do ensino-aprendizagem que é necessariamente mecanicista. Aprender a
ler, a escrever é, em si, uma atividade mecanicista. Mas, e depois? E depois que essas
habilidades são adquiridas? Será que é preciso perpetuar um habitus que se baseia na
repetição para a interiorização?
“É nesse contexto que emerge a pedagogia histórico-crítica como uma teoria que
procura compreender os limites da educação vigente e, ao mesmo tempo, superá-los por
meio da formulação dos princípios, métodos e procedimentos práticos ligados tanto à
organização do sistema de ensino quanto ao desenvolvimento dos processos
pedagógicos que põem em movimento a relação professor-alunos no interior das
escolas” (Saviani, 2003, p. 119).
Isso tudo deixa muito claro o novo sentido que Saviani dá ao habitus: não mais um
saber acabado, mas um saber em processo, em constante construção, em evolução
histórica, um processo de ensino-aprendizagem em constante mutação para atender à
sociedade e também para mudá-la (Saviani, 2003, p. 78 e 94). E isso pode ser bem
demonstrado na relação-distinção estabelecida por Dermeval Saviani entre o aluno
concreto e o aluno empírico: “Mostro o aluno concreto e apresento o concreto como a
síntese de múltiplas determinações definidas enquanto relações sociais. Portanto, o que
é do interesse deste aluno concreto diz respeito às condições em que se encontra e que
ele não escolheu. (…) Então, os educandos, enquanto concretos, também sintetizam
relações sociais que eles não escolheram. Isto anula a ideia de que o aluno pode fazer
tudo pela sua própria escolha. Essa ideia não corresponde à realidade humana. Daí a
grande importância de distinguir, na compreensão dos interesses dos alunos, entre o
aluno empírico e o aluno concreto, firmando-se o princípio de que o atendimento aos
interesses dos alunos deve corresponder sempre aos interesses do aluno concreto. O
aluno empírico pode querer determinadas coisas, pode ter interesses que não
necessariamente correspondem aos seus interesses, enquanto aluno concreto. É neste
âmbito que se situa o problema do conhecimento sistematizado, que é produzido
historicamente e, de certa forma, integra o conjunto dos meios de produção. Esse
conhecimento sistematizado pode não ser do interesse do aluno empírico, ou seja, o
aluno, em termos imediatos, pode não ter interesse no domínio desse conhecimento,
mas, a meu ver, ele corresponde diretamente aos interesses do aluno concreto, pois,
enquanto síntese das relações sociais, ele está situado numa sociedade que põe a
exigência do domínio deste tipo de conhecimento. E é, sem dúvida, tarefa precípua da
educação viabilizar o acesso a este tipo de saber” (Saviani, 2003, p. 143-144).
De tudo o que nesta primeira parte se chamou de embasamento teórico pode-se extrair
que a crítica ao habitus do ensino jurídico na atualidade parte não da substituição de
habitus, mas da complementaridade entre o habitus da manutenção – que no direito é
representado pelo aprender a pensar juridicamente, pelo domínio dos institutos e pelo
domínio dos conceitos jurídicos – e o habitus da transformação – representado pelas
atividades enriquecedoras e agregadoras que permitem ao estudante de direito uma
visão para além da cultura estritamente jurídica. Uma visão mais ampla e mais aberta,
simultaneamente técnica e prática.
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Ensino jurídico: em busca do habitus de transformação
Por isso a crítica se dirige não apenas à dogmática como também à casuística, pois se
uma restringe o conhecimento prático, a outra limita o conhecimento teórico. Mas não se
pode também pretender elaborar um método misto em que simplesmente se alia a
teoria à prática, sem que os sujeitos do processo entendam muito bem para quê serve
essa relação. Tal hipótese configuraria, ainda assim, um habitus de manutenção, em que
se repetiria mecanicamente um determinado método de ensino-aprendizagem. E isso, na
prática, é mais comum do que se imagina, já que os sujeitos creem que estão praticando
um habitus de transformação – isto é: há um habitus de transformação putativo.
As divagações teóricas produzidas nesta primeira parte do estudo permitem que sejam
analisados muito mais criticamente os métodos usados nos processos de
ensino-aprendizagem jurídico, com o intuito de desmascarar práticas mecanicistas
fantasiadas de críticas. Sempre tendo em mente, no entanto, que no direito, assim como
em outras áreas do conhecimento, há certos atos que precisam ser interiorizados a partir
de um processo automatização, bem assim institutos e conceitos que por serem básicos
devem ser interiorizados. O que não se pode admitir é que o ensino jurídico se limite a
isso.
Pois bem. Em 1955, na aula inaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito, San
Tiago Dantas pronunciou-se sobre a crise brasileira da educação jurídica. A certa altura
de sua intervenção o jurista afirma que a crise se deve, em grande parte, “ao
alheamento e à burocratização estéril das nossas escolas, que passaram a ser meros
centros de transmissão de conhecimentos tradicionais” (2009, p. 14). A crítica de San
Tiago Dantas, já contundente àquela época continua válida na atualidade e muito mais
séria, haja vista que passado mais de meio século, o ensino jurídico ainda continua em
crise: “O ponto de onde, a meu ver, devemos partir, nesse exame do ensino que hoje
praticamos, é a definição do próprio objetivo da educação jurídica. Quem percorre os
programas de ensino das nossas escolas, e sobretudo quem ouve as aulas que nelas se
proferem, sob a forma elegante e indiferente da aula-douta coimbrã, vê que o objetivo
atual do ensino jurídico é proporcionar aos estudantes o conhecimento descritivo e
sistemático de instituições e normas jurídicas. Poderíamos dizer que o curso jurídico é,
sem exagero, um curso de institutos jurídicos, apresentados sob a forma expositiva de
tratado teórico-prático” (San Tiago Dantas, 2009, p. 16).
A crítica revela que o modelo tradicional de ensino jurídico adota uma postura bancária,
em que o professor, meditando em voz alta, determina aquilo que ele julga que o aluno
deva aprender, doando parte de seu conhecimento, que deverá ser absorvido e repetido
pelo discente (Freier, 1987, p. 58). Trata--se do mais perfeito meio de inculcar um
habitus de manutenção cultural preestabelecido. O aluno não aprende a pensar, nem a
raciocinar juridicamente, e sim recebe um conhecimento já elaborado: “a didática
tradicional parte do pressuposto que, se o estudante conhece as normas e instituições,
conseguirá, com seus próprios meios, com a lógica natural do seu espírito, racionar em
face de controvérsias que lhe sejam amanhã submetidas” (San Tiago Dantas, 2009, p.
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Ensino jurídico: em busca do habitus de transformação
17). O resultado disso é que a maioria dos estudantes de e formados em direito fica à
deriva, esperando que lhe seja entregue um conhecimento pronto, uma resposta
definitiva.
Criticar o habitus de manutenção não é tarefa fácil. Até porque, como o próprio nome
leva a crer, a manutenção é necessária para que as bases do conhecimento jurídico
sejam fundadas. O que se critica no modelo tradicional do ensino jurídico é o excessivo
apego à exposição de conteúdos que devem ser reproduzidos pelo estudante. Critica-se
um ciclo vicioso que indica “(…) o caminho enviesado a seguir: uma postura dogmática
dos professores e uma postura alienada dos alunos, em favor de um contexto dominador
excludente e díspar da realidade social. Então, ‘em face um ensino jurídico que não
constroi novos saberes, mas apenas reproduz um Direito que a muito nos foi ‘dado’,
tem-se, por um lado, ‘um Direito distante da realidade, que não participa da vida, e, de
outro, uma sociedade que passa por uma evolução paradigmática de valores’” (Martínez,
2000, p. 178).
O ensino necessário dos conceitos e dos institutos básicos é ainda hoje quase que
totalmente expositivo e sistemático, sem que se ofereça ao estudante a possibilidade de
aprender a pensar e a raciocinar juridicamente, e a treinar esse raciocínio e
desenvolvê-lo, a fim de que possa surpreender em qualquer situação que lhe seja
apresentada, e não que seja surpreendido por aquelas que lhe forem ofertadas. Nos idos
de 1955, San Tiago Dantas havia notado exatamente esse problema: “O ensino é hoje
quase cem por cento sistemático e expositivo, sob a forma que os ingleses denominam
text system. Os casos são ilustrações esporádicas, apresentações sintéticas de decisões,
cuja gestação lógica no espírito do juiz, o mestre mal tem oportunidade de analisar”. “A
nova didática, pelo contrário, inverteria as proporções. O estudo assumiria a forma
predominante do case system, que não é como muitos pensam, estritamente
dependente da práxis anglo-americana dos precedentes judiciais. O objetivo primordial
do professor, a que ele passa a dedicar o melhor do seu esforço, não é a conferência
elegante de cinquenta minutos sobre um tópico do programa, mas a análise de uma
controvérsia selecionada, para evidenciação das questões nela contidas e sua boa
ordenação para o encontro de uma solução satisfatória; o estudo do raciocínio em cada
uma e suas peripécias; o preparo da solução, com a consulta não só das fontes
positivas, como das fontes literárias e repertórios de julgados; e, afinal, a crítica da
solução dada, com o cotejo das alternativas”. “O estudo das normas e instituições viria
em segundo plano, reclamado pela elaboração dos casos, e suprido em grande parte
pela leitura de livros, que dispensam a concorrência das preleções do professor” (2009,
p. 18).
tradicional.
Portanto, são duas as fases para que se possa sair do habitus de manutenção e atingir o
habitus de transformação. A primeira fase pertence àquilo a que se pode chamar de
habitus de transição e consiste exatamente em promover um equilíbrio entre os métodos
tradicionais (dogmático e casuístico) de ensino--aprendizagem. A segunda fase se insere
no habitus de transformação, não só atualizando o ensino jurídico, como também
permitindo a formação de um profissional mais completo e ao mesmo tempo
especializado.
Assim, no caminho de um novo modelo de ensino jurídico, outra coisa não pode ser feita
senão a análise de experiências pedagógicas na prática do ensino-aprendizagem jurídico.
Há que se demonstrar, então, através da análise crítica de algumas práticas, primeiro o
habitus de transição e, depois, o habitus de transformação.
É preciso, no entanto, tomar cuidado para que a pesquisa não seja uma mera
reprodução. Há, por exemplo, uma forte tendência dos pesquisadores – melhor seria
dizer compiladores ou citadores – em repetir argumentos de autoridade, sem apresentar
sequer seu posicionamento crítico quanto a eles, que dirá um posicionamento próprio. A
atividade compiladora ocorre, em geral, por uma exiguidade de tempo, já que se requer
cada vez mais uma maior produção em menor tempo, e por uma falta de
amadurecimento de ideias. É a cultura da quantidade, fomentada pelos próprios órgãos
de educação e cultura, em detrimento da qualidade.
Não se sabe bem o porquê, mas há uma crença generalizada de que o estudante de
direito só precisa, ou precisa com mais urgência, desenvolver habilidades e atitudes
relacionadas à redação de peças jurídicas, argumentando-se que a resolução de
problemas através de oficinas jurídicas deve ocorrer durante todo o curso de direito, e
que “o momento mais significativo para elaborar um documento jurídico típico do
operador do Direito será quando este conteúdo teórico estiver sendo apresentado aos
alunos” (PEDRA; DIOGO, 2010, p. 39). O fato é: a oficina jurídica é um instrumento de
repetição que visa desenvolver e aperfeiçoar o raciocínio rápido e lógico do estudante de
direito (ZENKNER, 2010, p. 94). Sim, com repetição e treinamento a tendência é que o
raciocínio se torne mais rápido, até porque resolver 300 problemas que envolvam
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Ensino jurídico: em busca do habitus de transformação
Verifica-se, portanto, que a oficina jurídica não transforma o ensino jurídico, sendo,
muito mais uma maneira de promover uma transição entre o habitus de manutenção e o
habitus de transformação.
Entende-se aqui que um habitus de transformação seria aquele em que o que o modelo
dogmático e o modelo casuístico têm de útil fosse extraído e contemplado por uma
ampliação de foco no ensino jurídico. Ou seja, algo além da mera importação daquilo
que tem obtido sucesso em outras tradições, um ensino jurídico com mais criatividade,
com o uso de ferramentas tecnológicas, com o desenvolvimento de habilidades e
atitudes não apenas técnicas, mas também pautadas numa formação humanística e
axiológica, com a formação de um profissional completo e ao mesmo tempo
especializado, dentre outras possibilidades.
A área do ensino jurídico possui alguns documentos normativos e legais que devem ser
observados. Um deles é a Resolução conjunta do Conselho Nacional de Educação (CNE)
e da Câmara de Educação Superior (CES) n. 9, de 29.09.2004. Tal resolução, que
revogou a Portaria Interministerial 1.886/1994, institui as diretrizes curriculares
nacionais do curso de graduação em direito e possui alguns aspectos interessantes para
o desenvolvimento de um novo modelo de ensino jurídico.
Para isso, deverá ser adotada uma organização curricular adequada. O PPP deverá,
então, estabelecer expressamente as condições para a conclusão e para a integralização
do currículo do curso de direito conforme o regime acadêmico de oferta da instituição de
educação superior (IES). A Resolução exemplifica alguns dos possíveis tipos de regime
acadêmico de oferta: regime seriado anual, regime seriado semestral, sistema de
créditos com matrícula por disciplina ou por módulos acadêmicos, com a adoção de
pré-requisitos (art. 6.º da Res. CNE/CES 9/2004).
Esses três tipos de atividades são descritas pela Res. CNE/CES 9/2004. O estágio
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Ensino jurídico: em busca do habitus de transformação
supervisionado é obrigatório e é descrito pelo art. 7.º, caput, da Res. CNE/CES 9/2004
como indispensável para o processo de consolidação do profissional, de acordo com o
perfil do formando e com as escolhas do aluno (§ 2.º). Tal estágio deverá ser realizado
na própria instituição, no NPJ, que poderá contemplar convênios com outras entidades,
instituições e escritórios, prestando serviços de assistência judiciária (§ 1.º). As
atividades complementares são extracurriculares e tem o objetivo de enriquecer o perfil
do formando, permitindo o desenvolvimento de competências e de habilidades que não
sejam estreitamente técnicas, de modo a permitir a interdisciplinaridade, um
relacionamento mais amplo com o mercado de trabalho e ações junto à comunidade
(art. 8.º, caput, da Res. CNE/CES 9/2004). Por fim, o TCC, é curricular e obrigatório, e
deve ser desenvolvido na forma monográfica (individualmente), de acordo com o
conteúdo fixado pelas IES em função de seus PPP (art. 10, caput, da Res. CNE/CES
9/2004).
Por fim, a Res. CNE/CES 09/2004 estabelece que as IES devam adotar formas
específicas e alternativas de avaliação, interna e externa, sistemáticas, de acordo com os
aspectos que sejam fundamentais para a identificação do perfil do formando (art. 9.º,
caput, da Res. CNE/CES 9/2004). Tais avaliações devem estar previstas nos planos de
ensino, fornecidos aos alunos antes do início de cada período letivo; planos estes que
também conterão os conteúdos, as atividades, a metodologia do processo de
ensino-aprendizagem e a bibliografia básica (art. 9.º, parágrafo único, da Res. CNE/CES
9/2004).
Verifica-se pela sistematização feita logo acima que a própria Res. CNE/CES 9/2004
permite a captura de elementos com potencial transformador do atual habitus do ensino
jurídico. Elementos estes que, aliados a outros não contemplados pela Resolução, mas
que já se encontram sendo explorados como recursos, métodos e técnicas
didático-pedagógicos, permitem que se pense em um novo modelo de ensino jurídico.
Um habitus diferente dos modelos tradicionais, dogmático ou casuístico, também distinto
da simples conjunção desses dois modelos. Um habitus crítico, dialético, em constante
mutação, correndo paralelamente com o desenvolvimento tecnológico e com
mecanismos de interação social e de disseminação do conhecimento, abanando a poeira
acumulada “de séculos passados que ainda jaz sobre a maioria dos métodos pedagógicos
contemporâneos” (Teixeira, 2008, p. 260).
A FGV Direito Rio vem desde 2002 adotando posturas inovadoras condizentes com as
suas próprias pesquisas mercadológicas com vistas à criação de diferenciais, a fim de
que os seus discentes e egressos, possam se posicionar melhor no mercado jurídico, de
forma a atender as demandas deste mercado. Assim, a escola de direito da FGV no Rio
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Ensino jurídico: em busca do habitus de transformação
Do que se verifica na descrição do projeto de ensino jurídico adotado pela FGV, pode-se
resumir nas seguintes práticas: (a) a preferência pela recontextualização em vez do
repasse de entendimentos já estabelecidos, rompendo-se inclusive com a prática
enciclopédica de transmissão do conhecimento jurídico; (b) o desenvolvimento de
capacidades e de habilidades analíticas e práticas, com o fornecimento de instrumentos
conceituais e outros recursos para a solução de problemas; e (c) o estímulo ao
engajamento do aluno. Práticas estas implantadas através de uma infraestrutura
adequada, com o uso de tecnologias, de uma pluralidade de técnicas e com aulas
expositivas não apenas informativas (Rodriguez; Falcão, 2005, p. 11-12; Sundfeld et al,
2007, p. 14). Enfim, estabelece-se um ambiente cooperativo-participativo entre alunos,
professores e instituição, adotando-se a lógica de que o aluno é que deve escolher o seu
perfil profissional, não a instituição.
“Qual deve ser o método predominante no ensino deste currículo? Nem a exposição
doutrinária – instrumento preferido no escolasticismo predominante [dogmático] – nem
o estudo de casos – antiga predileção das escolas de direito nos Estados Unidos –
representam a melhor solução. O método tem de guardar relação estreita com a visão
que anima o projeto pedagógico. Por isso mesmo, nunca pode ser mais do que uma
proposta dirigida ao corpo de professores, que o adotará ou o alterará de acordo com as
ideias de cada um.” “O método predominante que proponho é a combinação de
introduções ou mapeamentos informativos e abrangentes, pelo método convencional de
exposições, seguidas por discussões, com o método intensivo, de aprofundamento
seletivo e analítico de temas exemplares dentro de cada matéria. (…).” “Trata--se de
adaptar ao ensino do direito as práticas características do ensino mais avançado das
ciências. Abandonar-se-ia o enfoque enciclopédico para ter a experiência de domínio
sobre um conjunto de problemas e soluções. (…).” “Com este sistema de
aprofundamento seletivo em alguns temas exemplares dentro de cada disciplina, o aluno
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Ensino jurídico: em busca do habitus de transformação
O terceiro currículo – e aqui se faz uma inversão, pois Unger o chama de quarto – é o da
globalização, introduzindo “o estudante ao direito emergente da economia globalizada”,
o que envolveria não apenas o direito internacional, tanto o público quanto o privado,
como também o direito do Mercosul, da UE, o direito dos organismos internacionais, o
direito marítimo etc., devendo ser “ensinado da mesma maneira que o currículo de
direito brasileiro, por uma combinação de abordagem extensiva e aprofundamento
seletivo” (UNGER, 2005, p. 33).
Por fim, o quinto currículo, voltado para as alternativas institucionais. Unger entende
esse currículo como voltado para a vida pública ou nos negócios internacionais (Unger,
2005, p. 34). No entanto, aqui se faz uma extensão de seu objeto, com a intenção de
inseri-lo no quarto currículo acima descrito. Entende-se que tais alternativas seriam de
dois tipos: ou seguiriam o currículo das práticas de direito ou seguiriam o currículo das
práticas docentes e de pesquisa. A depender da escolha prévia feita pelo aluno, haveria
o direcionamento pela faculdade para o objetivo do discente.
Assim, havendo a opção pelo currículo das práticas de direito, o estudante faria, neste
momento, outra opção, dentre as três seguintes: (a) direcionar o seu foco para a
atuação nos negócios internacionais, havendo, aí, um aprofundamento na especialidade
escolhida pelo estudante. Nesta opção, o curso se estenderia como uma especialização
obtida, de preferência em escolas especializadas em outros países e com estágios in
company ou em escritórios com tal perfil; (b) direcionar o seu foco para a atuação no
mercado advocatício brasileiro, com a escolha de uma especialidade e preparação para o
Exame da Ordem. Neste caso, o estudante realizaria estágio complementar em
escritórios voltados para a especialidade por ele escolhida. Para tanto, seria necessário
que o Exame da OAB funcionasse como um filtro de especialidades, em que o estudante
que optasse pela especialidade direito do trabalho, ao ser aprovado no Exame da Ordem
recebesse uma carteira profissional que o permitisse apenas atuar em referida
especialidade, sendo-lhe vedado atuar em outras especialidades para as quais ele não
tenha obtido habilitação, mesmo que ele possua uma formação geral de elevado nível; e
(c) direcionar o seu foco para concursos públicos, com a escolha do cargo almejado.
Nesta hipótese, a faculdade manteria convênios com cursinhos preparatórios, a fim de
direcionar a formação de seus alunos. Aqui, enfrenta-se o problema do triênio de
atividade jurídica, que poderia tranquilamente ser contemplado com estágios dos
estudantes nos órgãos para os quais pretendem prestar o concurso. Por outra, havendo
a opção pelo currículo das práticas docentes e de pesquisa, o discente sairia da
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Ensino jurídico: em busca do habitus de transformação
“De fato, o currículo fundado apenas no princípio da formação geral, que hoje vigora
entre nós, e executado pelo método de preleções e estudo expositivo, não pode deixar
de produzir, mesmo em relação aos melhores alunos, uma preparação extremamente
superficial. Se queremos dar ao curso, não um caráter de informação, mas de
aprendizagem, se queremos substituir o método de preleções expositivas pelo casuístico,
temos de adotar um currículo que permita intensificar e aprofundar uma parte pelo
menos do curso, – aquela em que o aluno baseará sua atividade profissional futura”
(SAN TIAGO DANTAS, 2009, p. 22).
“O regime integral obrigatório nos três primeiros anos é um grande diferencial que
potencializa o rendimento do aluno em seu processo de formação. Ciente desta
peculiaridade do curso desde o seu ingresso, ele não sofre pressões, nem de si mesmo
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Ensino jurídico: em busca do habitus de transformação
nem de outras pessoas, para definir prematuramente seu destino profissional. O aluno
não padecerá dos danosos efeitos dispersivos que o tempo ocioso lhe produz no início de
uma graduação. Poderá experimentar, com toda intensidade, a riqueza do ambiente
universitário e das atividades permanentes que o curso de preocupa em lhe oferecer
para ocupar todo o seu tempo disponível” (Sundfeld et al, 2007, p. 14).
Os três primeiros ciclos seriam assim divididos. O primeiro ciclo seria composto por
disciplinas propedêuticas, que permitiriam apresentar o aluno aos conceitos e às
terminologias jurídicas. Neste ciclo o aluno entraria em contato, portanto, com
disciplinas que envolvem o conhecimento e o manejo do texto constitucional e da lei de
introdução ao código civil, com a introdução à hermenêutica, à argumentação e à lógica
jurídicas, o conhecimento da história e cultura jurídicas, a familiarização com
metodologias da pesquisa e do estudo, e também com o repertório dos conceitos e das
terminologias jurídicas, além da capacitação do aluno para que possa transitar nos
terrenos do direito (teórico) e da prática jurídica. Este primeiro ciclo seria desenvolvido
no primeiro semestre do curso em tempo integral.
A inovação trazida por estes dois primeiros ciclos é clara: as disciplinas são recriadas e
redistribuídas, como explana Carlos Ari Sundfeld e outros (2007, p. 17): “Muitos dos
cursos dogmáticos tradicionais tiveram sua carga redistribuída em novas disciplinas. Isso
fez com que estas disciplinas ou deixassem de existir nominalmente (…), ou
concentrassem consigo apenas o núcleo fundamental que se julgou adequado transmitir
de maneira uniforme e orgânica (…). A organização dos conteúdos é feita por cortes
propositalmente diversos dos adotados no currículo tradicional, o que gera, dentre
outros, o saudável efeito da necessidade de uma bibliografia variada e a produção (…)
de um material didático atualizado para dar conta do curso. (…)”.
O quarto ciclo, que iria do sétimo ao décimo período, seria composto por disciplinas de
especialização, de acordo com a escolha feita pelo aluno, conforme sua opção
profissional (Sundfeld et al, 2007, p. 17). Neste ciclo, o discente poderia optar entre
quatro tipos de currículos: (1) o das práticas de direito com foco em negócios; (2) o das
práticas de direito com foco na advocacia; (3) o das práticas de direito com foco em
concursos públicos; (4) o das práticas docente e de pesquisa em direito. E, além dessas
opções, poderia escolher se cursaria o ciclo com dedicação parcial ou integral,
consistindo a diferença entre uma forma e outra na existência (caso integral) ou não
(caso parcial) de cursos de extensão universitária em disciplinas de outras áreas do
conhecimento humano relacionadas com o direito (estatística, contabilidade, economia,
medicina etc.).
A opção pelo currículo das práticas de direito com foco em negócios permitiria que o
aluno se especializasse na gestão de negócios jurídicos, na gestão de escritórios de
advocacia, no marketing jurídico, na arbitragem internacional, no comércio internacional,
em negociações contratuais, na tributação internacional, no direito internacional público
e privado, no direito comunitário e do Mercosul, no mercado internacional de capitais, no
direito marítimo, além de língua estrangeira, dentre outras matérias relacionadas. Aqui,
além de o estudante se formar bacharel em direito, por ter cumprido nos três primeiros
ciclos a carga horária e as matérias requeridas pelo MEC, ele também obteria um MBA. A
proposta é de que a faculdade mantenha convênios com instituições estrangeiras,
internacionais ou transnacionais que permitam que o aluno se especialize a partir da
vivência prática.
A opção pelo currículo das práticas de direito com foco na advocacia permitiria que o
aluno se especializasse em pelo menos um ramo do direito. Assim, o discente se
aprofundaria, por exemplo, em direito penal, estudando não apenas a fundo as cadeiras
de processo penal e de direito penal, como também um rol de disciplinas de apoio e de
aprofundamento como as de antropologia, sociologia, criminologia, oratória, redação
jurídica, consultoria, práticas judiciárias, dentre outras. Neste caso, o aluno não só
aprofundaria os conhecimentos teóricos como também atuaria na prática, seja em
escritórios de advocacia, seja em um núcleo de prática jurídica instalado na faculdade,
ou mesmo em ambos. Nesta modalidade, o aluno sairia da faculdade como bacharel em
direito e especialista em direito criminal.
A opção pelo currículo das práticas de direito com foco nos concursos públicos traria para
o discente a possibilidade de se preparar para um concurso público determinado ou para
um grupo deles. As faculdades fariam convênios com cursinhos preparatórios e com
órgãos públicos, a fim de que tanto a metodologia própria de estudo fosse aplicada
quanto fossem cumpridos, pelo menos parcialmente, os requisitos, por exemplo, de
prática jurídica, de preferência no órgão em que o aluno almeja exercer sua profissão.
Por fim, a opção pelo currículo da prática docente e de pesquisa encaminharia o discente
para a vida acadêmica, fazendo com que ele tenha contato com disciplinas como
metodologia do ensino superior, pedagogia, didática, metodologia da pesquisa, além do
aprofundamento da especialidade jurídica escolhida. Ao final, o discente se tornaria tanto
bacharel em direito como especialista em uma determinada área do direito.
De maneira geral, o curso de direito poderia ser dividido em dois ciclos, um básico e um
de especializações – aquele abrangendo os três primeiros anos, e sendo
necessariamente integral, e o outro abrangendo os dois anos finais, podendo ser integral
ou parcial. Mesclar-se-ia, pois, um currículo rígido com um currículo flexível: o primeiro
determinado pela instituição em conjunto com os professores; o segundo proposto pela
instituição em conjunto com professores e a partir de convênios, permitindo-se que o
aluno escolha que caminho seguir em sua vida profissional.
Certamente o desenvolvimento desses dois grandes ciclos deve contar com atividades
didáticas variadas, que incluam aulas teóricas a partir da adoção dos debates entre os
sujeitos do ensino e da aprendizagem como metodologia, e também o esforço
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Ensino jurídico: em busca do habitus de transformação
4. Considerações finais
Se o quadro continuar do jeito que está, não se vislumbra para o ensino jurídico um
futuro promissor. A crise se perpetuará se o seu principal problema não for enfrentado:
se o tradicionalismo, escolástico e por vezes estanque, não for enfrentado, isto é, se os
órgãos governamentais continuarem a perpetrar um modelo rígido de ensino jurídico
(HOMEM DE SIQUEIRA; FABRIZ, 2011).
A escolha cabe, portanto, não só às instituições de ensino, mas também aos órgãos e
poderes públicos ocupados da fiscalização do ensino. E esta escolha indicará se haverá
apenas a reprodução de métodos, técnicas e recursos que se demonstraram
tradicionalmente bem-sucedidos ( habitus de manutenção), se haverá uma tentativa de
romper com o tradicionalismo e com a lógica reprodutivista ( habitus de transição), ou
se haverá uma constante busca por reinventar os métodos, as técnicas e os recursos de
ensino-aprendizagem que, apesar de bem-sucedidos, podem sofrer mutações dignas de
transformá-los em mecanismos ainda mais eficientes e eficazes ( habitus de
transformação). Se a instituição de ensino superior e os respectivos órgãos e poderes
públicos adotarão algum desses três caminhos, trata-se de uma escolha que certamente
dependerá não só de seu projeto político-pedagógico, mas, principalmente, de sua
aplicação prática.
Com o ensino jurídico tem ocorrido o mesmo. Muito mais que só a técnica ou que só a
práxis, é preciso ter os dois. Mas não basta ter um e simular o outro, é necessário que
haja os dois e que haja uma contínua invenção e reinvenção de práticas, técnicas e
métodos, e que se utilizem recursos que permitam uma revolução no habitus do ensino
jurídico. É preciso que o ensino jurídico seja colaborativo, cooperativo, participativo, que
tanto os alunos, quanto os professores e a instituição atuem em conjunto e se
conscientizem de que são agentes de um mesmo processo de ensino-aprendizagem.
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