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Análise das principais características do TEA no seriado Atypical

Introdução:

O presente trabalho analisa aspectos do Transtorno do Espectro Autista (TEA), a partir

da análise de um seriado de televisão que tem como personagem principal Sam Gardner, um

adolescente de 18 anos diagnosticado com o transtorno, elencando aspectos da história de vida

do personagem com elementos estudados sobre o TEA, como o diagnóstico e suas

principais características.

Atypical, seriado norte-americano produzido e distribuído pelo serviço de streaming

Netflix, foi lançado em 11 de agosto de 2017 e teve quatro temporadas, somando 38 episódios.

Segundo fonte da Wikipédia esta foi a décima série mais assistida pelos brasileiros em sessões

curtas. Neste trabalho damos ênfase a primeira temporada especialmente aos episódios de

números um e cinco.

Sobre o TEA

Conforme estudado nesta disciplina o TEA é um Transtorno do Neurodesenvolvimento,

ou seja, ocorre e tem seu possível diagnóstico no período que compreende desde a gestação aos

três anos mais ou menos, no qual as estruturas cerebrais estão em formação, e em que acontece o

desenvolvimento do sistema nervoso.

Neste período o cérebro passa por intensas transformações, os neurônios fazem ligações

entre si formando assim as redes neurais. Inclui-se o desenvolvimento das partes


motoras, sensorial, a comunicação, linguagem, comportamentos e emoções.

Ao longo do desenvolvimento infantil, que ocorre na primeira infância, não somente os

fatores biológicos e genéticos estão associados, mas também os fatores ambientais e

socioculturais. Déficits no desenvolvimento podem causar tamanho prejuízos ao ponto

de serem caracterizados como um transtorno do neurodesenvolvimento.

O TEA segundo o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, em

tradução livre) tem como critério diagnóstico déficits persistentes na comunicação e interação

social, tem seu início precoce e curso crônico. O diagnóstico é clínico e é relativamente estável a

partir dos 18 meses de vida, porém pode não ser claro antes dos 3 anos. É caracterizado por

padrões restritos e repetitivos do comportamento. São definidos três níveis de gravidade para o

transtorno, os três níveis levam em conta a comunicação social, o grau de apoio necessário e os

comportamentos restritivos e repetitivos.

Sobre o diagnóstico de Sam

Antes de começar esta análise sobre Atypical e seus personagens, cabe uma ressalva

elementar. Trata-se de uma narrativa ficcional, de modo que o comportamento dos personagens

pode não ser completamente fidedigno à realidade de pessoas do espectro autismo em

determinados momentos. Também pode haver uso de algumas licenças em nome da dramaturgia.

Isso dito, a série é bastante citada em artigos científicos sobre o autismo e elogiada pela sua

abordagem. O site brasileito Autismo e Realidade, por exemplo, criado em 2010 por uma

associação de pais e profissionais de saúde com o propósito de difundir conhecimento sobre

TEA, publicou uma resenha crítica sobre o seriado dizendo o seguinte:


“Quando se discute sobre o futuro de uma pessoa autista, sempre vem em mente a
possível independência que essa pessoa terá. Esse é um assunto que, infelizmente, ainda
hoje assusta algumas pessoas. Na série, passamos por várias etapas da vida do autista e
concluímos que é possível, sim, ter independência.” (BERTAGLIA, 2020)

Independência é uma questão importante nesse debate, pois é justamente o que define o

nível de gravidade do TEA conforme o DSM-5. Os três níveis são “Nível 1 - Exigindo apoio”,

“Nível 2 - Exigindo apoio substancial” e “Nível 3 - Exigindo apoio muito substancial”. O

protagonista Sam Gardner, conforme observamos ao longo do seriado, estuda e trabalha, embora

conte com o apoio dos familiares - pais e irmã um pouco mais nova - nessas e em outras tarefas.

Em relação à comunicação social, conforme descrito nas características do TEA de Nível 1 de

gravidade, Sam “consegue falar frases completas e envolver-se na comunicação, embora

apresente falhas na conversação com os outros e cujas tentativas de fazer amizades são estranhas

e comumente malsucedidas”.

Por vezes, Sam parece se enquadrar no Nível 2 em relação aos comportamentos restritos

e repetitivos, que, conforme o DSM-5 na descrição deste nível de gravidade, “aparecem com

frequência suficiente para serem óbvios ao observador casual e interferem no funcionamento em

uma variedade de contextos” havendo “sofrimento e/ou dificuldade de mudar o foco ou as

ações”. Porém, esses comportamentos ocorrem em Sam na maior parte do tempo em momentos

de crise. O próprio personagem conta isso em sua primeira fala no seriado, quando se apresenta

para uma psicóloga com quem iniciará um tratamento:

“Eu sou um esquisitão. É isso que todo mundo diz. Às vezes, eu não sei o que as pessoas
querem dizer quando falam coisas, e isso pode me fazer sentir sozinho mesmo quando há
outras pessoas na sala. E tudo o que posso fazer é sentar e mexer os dedos, que é o que eu
chamo de meu comportamento auto estimulante, quando eu bato um lápis em uma
borrachinha a uma certa frequência e penso em todas as coisas que eu nunca poderia
fazer, como pesquisar pinguins na Antártica ou ter uma namorada.”

O quadro descrito por Sam se encaixa na descrição de Nível 1 de gravidade no âmbito da

comunicação social, quando há “dificuldade para iniciar interações sociais e exemplos claros de

respostas atípicas ou sem sucesso a aberturas sociais dos outros. Podendo poder apresentar

interesse reduzido por interações sociais”.

É curioso observar, todavia, que a jornada de Sam ao longo de Atypical vai apresentar ele

fazendo justamente o que diz logo em sua primeira fala que jamais poderia fazer: ter uma

namorada e viajar para a Antártida para pesquisar pinguins. Outros desafios das pessoas com

TEA, como ser bem-sucedido em um emprego, se locomover com independência e morar longe

da família também aparecem ao longo do seriado, mas sempre na perspectiva de que esse

desenvolvimento social tem suas particularidades da perspectiva de uma pessoa com TEA.

Questões relacionadas à independência da pessoa com a TEA e suas dificuldades na

comunicação social estão em foco no episódio 1, cuja trama gira em torno do desafio que é para

Sam ter um encontro amoroso e, consequentemente, uma namorada. Os personagens têm visões

opostas sobre o assunto. Enquanto a psicóloga e o pai incentivam Sam a correr riscos, a mãe

acredita que o filho não está pronto. Em uma conversa com a psicóloga, ela diz:

“Eu aprecio que você esteja tentando ajudar, mas todas as coisas que tornam a vida
cotidiana do meu filho difícil, como entender pistas sociais, bater papo - todas as coisas
que eu o ajudei a navegar durante toda a vida dele - são amplificadas quando se trata de
namoro. Namorar envolve quase que completamente a comunicação não verbal, e o Sam
é a pessoa mais literal que eu conheço. [...] O Sam está indo muito bem. Quero dizer, já
estamos 32 dias no último ano dele na escola, e ele ainda não teve uma crise, então não
quero pressioná-lo. Quero dizer, relacionamentos já são difíceis o suficiente para pessoas
neurotípicas. Não quero colocar esse tipo de pressão no meu filho.”
A mãe não está necessariamente errada em suas preocupações, mas a psicóloga rebate

com dados de que apenas 9% das pessoas com TEA se tornam adultos casados, e que isso é triste

considerando que eles se interessam por relacionamentos amorosos como qualquer pessoa, e a

melhor fase para desenvolver estratégias para namorar seria a adolescência. Ao longo do

episódio, Sam vai de fato passar por experiências ruins tentando sair com garotas, mas ao longo

da temporada desperta a atenção de Page, colega de escola que virá a ser sua namorada.

O índice de 9% corrobora com dados compilados pela organização Discovery ABA

Therapy, que desenvolve terapias sociais para crianças com autismo nos Estados Unidos.

Segundo o site, além do dado sobre pessoas no espectro autista casadas, 50% das pessoas com

autismo nos Estados Unidos moram depois de adultas com algum familiar e 75% delas estão

desempregadas. Não temos detalhes sobre a amostragem desta pesquisa para atestamos sua

validade com rigor científico, mas nesta análise eles nos servem de pistas para demonstrar como

a questão da independência e dos relacionamentos em pessoas com TEA podem ser desafiadores.

Sobre o hiperfoco e a hiporreatividade

Uma questão que serve ora como fio condutor da narrativa, ora como alívio cômico em

Atypical é o interesse fora do comum de Sam pela Antártica - especialmente pinguins. O DSM-5

traz a questão do hiperfoco entre os critérios diagnósticos para o TEA. O comportamento é

descrito como: “interesses fixos e altamente restritos que são anormais em intensidade ou foco.

Por exemplo: forte apego a ou preocupação com objetos incomuns, interesses excessivamente

circunscritos ou perseverativos”.
O interesse por pinguins em parte se relaciona na narrativa com o interesse de Sam por

encontrar uma namorada, dado que os pinguins escolhem apenas uma parceira para a vida toda,

conforme o personagem. Mas o interesse de Sam também aparece em outros momentos, quando

ele se empolga, por exemplo, ao preencher um formulário em um site de namoro com a ajuda da

irmã. Como resposta à questão “Passo bastante tempo pensando em…” Sam responde:

“Fácil. Pinguins. E, especialmente, pinguins imperadores. Eles são minha ave favorita,
mas todos os quatro tipos de pinguins antárticos são bons. Você sabia que os primeiros
exploradores pensavam que eles eram peixes e os classificavam dessa maneira? Não
aves, peixes.”

Acostumada com a empolgação ilimitada do irmão no tema, a irmã preenche “esportes” e

desaconselha o irmão a conversar sobre pinguins no encontro. No episódio 5, Page, namorada de

Sam, desenvolve um método para lidar com a questão. Ela dá a Sam três cartões. Cada vez que

ele tocar no assunto Antártica com ela, ele deve entregar um dele, limitando as menções sobre

Antártica no namoro a três vezes ao dia.

Page é um personagem que vem a calhar em Atypical porque, além de gostar de Sam, é

apresentada como uma personagem estudiosa e esforçada em aprender as particularidades de

namorar uma pessoa com autismo, como o hiperfoco e as reações exageradas (hiporreatividade)

que às vezes podem se tornar até fisicamente agressivas, como um empurrão, encolher-se ou sair

correndo de uma situação desconfortável. Ela entende, por exemplo, quando Sam a tranca no

armário por 10 minutos por estar mexendo demais nas suas coisas ao conhecer seu quarto.

O DSM-5, em seus critérios diagnósticos, define a hiporreatividade como reação

exagerada a “estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente” e

traz como exemplo “reações contrárias a sons e texturas específicas”. Em Atypical, Sam evita
sentar com as costas encostadas no banco do ônibus e usa camisetas de um tipo específico de

algodão que não o incomoda. O personagem também circula pela escola e outros ambientes

barulhentos com um fone de ouvido com abafamento de ruídos. Em um dos episódios, Page faz

com que a escola organize uma festa com a música em fones de ouvido, para integrar o

namorado.

Conclusões:

Um artigo publicado pela revista científica eletrônica National Library of Medicine citou

uma pesquisa que testou entre pessoas com TEA e familiares deles (65 pessoas com TEA e 12

pais ou parceiros de pessoas com TEA) a percepção sobre o quão fidedigna é a representação do

transtorno em Atypical. O resumo diz o seguinte:

“A maioria dos participantes descreveu a representação do Sam como precisa, destacando


que era precisa como um exemplo do autismo. Os membros da família pareciam mais
propensos a perceber ‘Atypical’ como tendo benefício informativo e como algo que
poderia melhorar as atitudes em relação ao autismo do que as pessoas autistas. As
principais preocupações identificadas foram a representação estereotipada de uma
imagem popular da mídia sobre o autismo, a falta de diversidade e a representação do
autismo como um fardo ou desafio para o protagonista e sua família.”

Pesquisando em busca de críticas ao seriado, encontramos também um artigo da revista

Time de Sarah Kurchak, escritora com TEA e autora da série documental Amor no Espectro,

também na Netflix, que aborda relacionamentos amorosos de pessoas com o transtorno. Kurchak

classifica a série como “rasa como representação do autismo e como entretenimento” e diz que a

série acabou eclipsada por representações mais fidedignas da doença que vieram em sequência,
como o seriado de comédia australiano Everything's Gonna Be Okay (Tudo vai ficar bem, em

tradução livre), escrito e estrelado por uma pessoa com TEA, Josh Thomas.

Embora a escritora aponte como o principal problema de Atypical a questão da

representatividade - o ator que vive Sam, Keir Gilchrist, não tem TEA, mesmo ela vê alguns

méritos na série, especialmente o de tratar Sam como uma pessoa.

“Sam não foi tratado muito diferente dos outros personagens. Normalmente, personagens
autistas são os únicos que são tratados de perspectivas externas e distantes e acabam não
parecendo totalmente humanos.” (KURCHAK, 2022)

Kurchak também saúda a equipe do seriado por ter ampliado o time de consultores sobre

TEA para a segunda temporada, ter trazido animadores com TEA para os elementos visuais da

série e trazido pessoas com TEA para participações especiais. Elas aparecem como colegas de

Sam em um grupo de pessoas neuroatípicas de sua escola.

Uma das críticas dela conversa com este trabalho. Kurchak diz que, em alguns

momentos, Atypical parece mais percorrer uma lista do que é preciso ter em um personagem

com TEA do que efetivamente trazer um personagem complexo além do seu transtorno para uma

narrativa ficcional. De fato, o que estamos fazendo aqui, é um pouco observar os itens dessa

suposta lista no personagem de Sam Gardner. Porém, como estudantes de psicologia, trata-se de

um exercício interessante. Já para a cultura pop, Atypical pode servir ao menos para dar

visibilidade ao TEA, demonstrar exemplos de conflitos e de resoluções que visem a aceitação e

necessidade de integração social de pessoas com esse e outros transtornos do

neurodesenvolvimento.
Referências bibliográficas:

American Psychiatric Association. Manual diagnostico e estatistico de transtornos mentais:


DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014.

Bertaglia, B. (2022, 22 de abril). Atypical e a independência do autista. Autismo e Realidade.


https://autismoerealidade.org.br/2022/04/22/atypical-e-a-independencia-do-autista/

Elias, M. (2023, 4 de setembro). 51 Autism Statistics: How Many People Have Autism?
Discovery ABA.
https://www.discoveryaba.com/statistics/how-many-people-have-autism#:~:text=Around%2050
%25%20of%20all%20adults,32%25%20have%20a%20romantic%20partner.

Jones SC, Trott E, Gordon C, Milne L. Perception of the Portrayal of Autism in Netflix's
Atypical Within the Autism Community. Autism Adulthood. 2023 Mar 1;5(1):76-85. doi:
10.1089/aut.2022.0013.

Kurchak, S. (2021, 16 de julho). Atypical Fell Short as Both Autistic Representation and
Entertainment. Time. https://time.com/6080754/atypical-autism-representation/

Rashid, R. (2017, 11 de agosto). Atypical | Dialogue Transcript | S1:E1 - Antarctica. Netflix.


https://8flix.com/assets/transcripts/a/tt6315640/Atypical-episode-script-transcript-season-1-01-A
ntarctica.pdf

Rashid, R. (2017, 11 de agosto). Atypical | Dialogue Transcript | S1:E5 - That’s My Sweatshirt.


Netflix.
https://8flix.com/assets/transcripts/a/tt6315640/Atypical-episode-script-transcript-season-1-05-T
hats-My-Sweatshirt.pdf

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