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ARAÚJO, G GRASSANO, F. Design Do Livro Experimental Ensaios Provocativos
ARAÚJO, G GRASSANO, F. Design Do Livro Experimental Ensaios Provocativos
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p r o dução
na
CONTEÚDO
11 A PRODUÇÃO DE Apontamentos da
LIVROS IMPRESSOS NA história do livro, 11
59 DESFECHO
O livro de artista,
como referência, 19 63 ANEXO
Letícia Lampert.
Não sei dizer ao certo quando ouvi pela primeira vez o ter- Antunes, Tunga, Domingos Oliveira e tantos outros. Não ha-
mo “livro de artista”, nem quando, exatamente, comecei a me via, entretanto, qualquer temática ou estética que os unisse ou
aventurar por esse universo, mas certamente não foi no curso criasse uma relação entre eles, nem mesmo um projeto gráfico
de Design que frequentei. Olhando para trás, penso em dois que alinhavasse aquele todo desconexo. A independência entre
encontros que me marcaram. as partes era total. A colaboração se dava apenas entre cada du-
No primeiro, ainda estudante, em uma dessas incursões por li- pla, ao longo de um determinado número de páginas, de forma
vrarias que são um misto de pesquisa e deleite, tão comuns na tão livre e instigante que só aumentava minha curiosidade. Cada
vida de qualquer designer, lembro de encontrar ao acaso um parte era como uma obra, de fato, pensada para a página im-
livro que me deixou intrigada. Não entendia muito bem o que ti- pressa. Mas o que era exatamente aquilo? Não era uma revista,
nha em mãos: era uma coletânea, não havia dúvida, mas sobre o não era um catálogo de uma exposição ou projeto, não era um
quê? Organizada pela psicanalista Renata Salgado, “Imagem es- livro sobre um determinado assunto – pelo menos não de forma
crita” se dividia em 11 “livros”, no lugar de capítulos, sendo cada explícita. Qual seria seu propósito? Talvez tenha sido justamente
um uma colaboração entre dois artistas: um da palavra e outro esse estranhamento que me fez voltar a ele tantas vezes, des-
da imagem. Alguns nomes de peso estavam ali, como Arnaldo pertando muito mais perguntas do que respostas.
6 l PREFÁCIO
Além desse encontro, lembro também de ver um cartaz de divul- corriqueira de obra de arte. É também difícil resumir ou enquadrar
gação do livro “A página violada”, de Paulo Silveira, pelos corredores o livro de artista em características constantes e determinadas: ele Paulo Silveira é bacharel
da universidade onde estudava – nessa época, já no curso de Artes pode ter textos e pode não ter; pode ser único ou ter grande tiragem; em Artes Plásticas, mestre
Visuais. O título, por si só, parecia um convite para quem, como eu, pode ser produzido por gráfica ou feito à mão; pode ser lançado de e doutor em História,
Teoria e Crítica da Arte pela
vinha tentando abrir espaço no campo do Design Editorial, sem- forma independente ou via editora; pode ser um trabalho solitário
Universidade Federal do Rio
pre querendo pesquisar mais sobre métodos de criação de capas ou fruto de colaboração. Na verdade, o livro de artista pode ser tudo Grande do Sul. Integrante do
e projetos gráficos. Mas não. Ou, pelo menos, não de forma direta. o que quiser ser. A forma, o projeto gráfico, sua materialidade, tudo grupo de pesquisa Veículos
faz parte de sua existência como obra, tudo nele contribui para a da Arte (IA/UFRGS/CNPq),
O livro, fruto de uma minuciosa pesquisa de mestrado que hoje é é autor de vários textos
uma das grandes referências sobre o assunto no Brasil, era sobre criação do sentido que se pretende ter. E é aí que toda sua força que propõem o debate
um tipo muito específico de livro, um universo inteiro que eu então criativa se mostra de grande interesse para quem estuda e traba- acerca do livro de artista,
recém-começava a descobrir: os livros de artista. Mas o que é exa- lha com Design, já que nem sempre, ou melhor, muito raramente, sendo um deles “A página
violada: da ternura à injúria
tamente um livro de artista? é possível usufruir de tanta autonomia e liberdade no momento da
na construção do livro de
concepção e execução de um projeto de natureza editorial. artista” (2001).
Experimental por natureza, o livro de artista nada mais é do que o
trabalho de um artista pensado – e realizado – na forma de livro.
Um livro-obra, seja ele no formato que for, com a tiragem que for.
Um livro que não é suporte para uma obra de outra linguagem, mas
que é, ele mesmo e em sua totalidade, a materialização de uma
ideia. Ele é a obra e ponto final. Se um artista pode pintar quadros,
fazer desenhos, esculturas, performances, instalações e tantas coi-
sas quantas pudermos imaginar, por que não poderia fazer livros?
Embora já seja bastante difundido no campo das artes visuais, esse
tipo de obra ainda é um tanto desconhecido para a grande maioria
do público leigo. De fato, trata-se de um objeto que tende a cau- Letícia Lampert
sar certo estranhamento por ser de difícil definição, ultrapassando manuseando seu livro
“Conhecidos de vista /
tanto o que entendemos por um livro comum quanto a noção mais Known by sight”.
7 l PREFÁCIO
Ainda que para o artista esse seja um processo natural, eu, en-
quanto designer, sempre acreditei na potência de projetos pura-
mente experimentais. É preciso se entregar, pelo menos de vez
em quando, ao fazer pelo fazer, à experimentação pela experi-
mentação. É ela que tende a alavancar o campo como um todo,
testando ideias, descobrindo materiais e soluções, apontando
novos caminhos que poderão ser, inclusive, aplicados posterior-
mente em trabalhos mais objetivos e comerciais. E o fazer pelo
fazer é justamente o território da arte e dos livros de artista. Arte
e Design são campos que podem ser, ao mesmo tempo, muito
próximos e muito distantes, mas que só têm a ganhar com o en-
trecruzamento dos saberes que vêm de cada um.
Espero que, para o leitor, este livro possa ser como os encontros
fortuitos que narrei anteriormente: essa faísca que desperta o
interesse por um campo até então pouco conhecido e que acaba
por ampliar nosso horizonte. Seja para simples fruição ou para
quem de fato quiser se aventurar na criação de livros de artista,
o contato com este universo será, com toda certeza, uma lufada
de inspiração.
Imagem do site de
Letícia Lampert.
8 Germana G. de Araujo e Fabiana Grassano
Este livro compõe a série de obras digitais do curso de Design Agora, propomos um debate acerca do efeito das experimenta-
da Universidade Federal de Sergipe, elaboradas para a refle- ções gráficas inseridas nos processos criativos no Design Editorial,
xão sobre a produção do Design do Livro. Com esse foco, lan- visando tornar potente a interação leitor-leitura em livros impres-
çamos, no início de 2021, o livro digital “Design do Livro Infantil sos de pequenas tiragens ou de larga escala de produção.
Ilustrado: ensaios de representatividade", obra contemplada Dando início ao conteúdo explanatório, mas de ímpeto crítico,
pelo edital 01/2020 da Editora UFS, que recebeu a contribui- iniciaremos nosso debate com apontamentos sobre a história
ção necessária da professora e artista visual Yasmin Nogueira. do livro para compreender a produção do livro impresso na con-
Nela, analisamos cinco trabalhos de conclusão de curso da gra- temporaneidade. Corrobora-se aqui o pensamento de Roger
duação em Design da UFS que tiveram como ponto de parti- Chartier (2014), quando o autor afirma que não houve mudan-
da problemáticas sociais vivenciadas pelos alunos-autores e ças significativas na produção de um livro impresso a ponto de
que resultaram em livros infantis ilustrados. O foco era refle- afetar o processo convencional de leitura, exceto quando se
tir acerca das metodologias projetuais em Design, levando em trata de livros digitais. Diante disso, torna-se interessante a
consideração a personalidade profissional do pesquisador em reflexão acerca de novas possibilidades de leitura a partir da
consonância com as especificidades de cada projeto. materialidade do livro.
9 l APRESENTAÇÃO
Curioso é que, com a inserção da televisão e, principalmente, Deve-se ter em vista que, diante de novos estímulos e tecnolo-
dos suportes digitais de leitura, as pessoas passaram a ler con- gias, tendemos a pensar que a configuração do livro impresso
teúdos de maneiras distintas da leitura de uma página conven- também deve assumir novas formas, libertando-se das antigas
cional de texto impresso. Entretanto, mesmo que já se tenha fórmulas. É nesse direcionamento que buscamos o conceito e
interagido com tipologias de páginas impressas que misturam a produção do livro de artista como inspiração para o Design
linguagens verbais e não verbais para compor uma narrativa Editorial. Aspectos como a materialidade que interage com a do
– tais como em jornais e revistas, ou até nos livros didáticos códice ou dela se diferencia, a imagem que recebe tratamento
–, tende-se a pensar no livro composto somente por páginas experimental de impressão ou a propositura de leituras não li-
de texto. Isso quer dizer que, apesar das suas múltiplas pos- neares são comuns na produção do livro de artista. Um dos de-
sibilidades de leitura, considerando que os estímulos de leitu- safios é compreender de que modo é possível tornar exequível,
ra existentes na atualidade são cada vez mais diversos, o livro do ponto de vista técnico e econômico, a experimentação artís-
impresso é, em sua maioria, produzido hoje com configuração tico-criativa na produção de livros de pequenas a altas tiragens.
tradicional, obedecendo às métricas de leiaute formuladas des- Outro desafio é acordar, com o jovem designer de livros, que um “Livro corpo aberto” (2020),
de antes do advento da imprensa, no século XV. Sobre essa per- bom desempenho de sua parte não significa necessariamente de Germana de Araujo.
manência da configuração de uma página puramente de texto – tornar a página invisível, como está posto na literatura clássica
algumas com margens estreitas e letras pequenas, por exemplo de Design do Livro, e que assumir como vantagens as técni-
–, Didier Dias de Moraes (2017, p. 27) afirma que, antes de ser cas artísticas de produção gráfica não o coloca em um lugar de
“uma questão de economia ou equívoco técnico”, essa forma de desagrado diante de seus pares. Para desmistificar a ideia que
propor a visualidade de uma página tem a ver com a legitima- distancia os modos de produção entre o designer e o artista,
ção de uma “marca de distinção cultural e social”, diferenciando resolvemos analisar algumas obras desenvolvidas por artis-
aqueles que não têm acesso aos livros, ou mesmo os que não tas visuais e designers brasileiros – Gustavo Piqueira, Letícia
têm o hábito de leitura de texto contínuo. Lampert, Luise Weiss, Odilon Moraes e Ricardo Rodrigues –
Distanciando-nos desse pensamento reacionário alertado por que propõem uma leitura incomum a partir de uma materiali-
Moraes, propomos uma reflexão acerca da relevância da cons- dade diferenciada do livro.
trução da significação de um tema em um livro que permita uma
leitura não convencional, mais lúdica e sem perder consistência.
10 l APRESENTAÇÃO
CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO
1
Fala de Gustavo Piqueira no vídeo “Repensando Design”, publicado no YouTube em http://dobrasdesi.com.br/
8 de julho de 2017. Disponível em: https://youtu.be/ZCctek90GkM. Acesso em: 10 impermanencias/Catalogo-
maio 2021. Exposicao-Dobras-de-Si-2020.pdf
11
A PRODUÇÃO
DE LIVROS
IMPRESSOS NA
CONTEMPORANEIDADE
Estudos para a produção de
um livro dobraduras.
Apontamentos da história do livro podemos dizer que a história do livro foi construída juntamente
com a história social do conhecimento (escrita e leitura), a histó-
A história do livro está ligada à história da escrita, a qual buscou ria do papel e a história da imprensa, assim como com a evolução
encontrar uma forma de registrar memórias e transpor o tempo da reprodutibilidade técnica.
por intermédio desse suporte. O livro é um objeto criado, não
Autores da história do livro consideram que o papiro – mate-
natural, mas artificial, material e simbólico:
rial desenvolvido pelos egípcios por volta de 3000-2500 a.C.
Como objeto artificial, é mercadoria, produto acabado de vários pro- – trouxe a possibilidade de ser usado em rolo, ampliando o es-
cessos intelectuais, técnicos e industriais; como objeto simbólico, é
paço de escrita. Os livros manuscritos no papiro ficaram conhe-
texto, que pressupõe uma autoria, que acabou como obra, e leitores
que nunca acabam (HANSEN, 2019, p. 7-8). cidos como volumen e propunham processos, principalmente
de registro e leitura, trabalhados sob a perspectiva do uso. No
O que vemos, no decorrer dessa história, é a busca por um supor-
rolo, a escrita acontecia em apenas uma das faces, e a leitura
te ideal até chegarmos ao livro de papel. É sabido que essa bus-
era feita com o auxílio das duas mãos: enquanto a mão direita
ca passou por diversos materiais e técnicas, como pedra, argila,
desenrolava, a mão esquerda enrolava. Encontrar um determi-
cascas de árvore, ossos, madeira, entre outros – a maioria de
nado trecho do conteúdo não era tarefa fácil, pois as tiras de
grande durabilidade, mas de pouca flexibilidade. Nesse sentido,
papiro eram bem compridas.
12 l A PRODUÇÃO DE LIVROS IMPRESSOS NA CONTEMPORANEIDADE
Se o livro era produzido como preciosidade na época das ilumi- Até o século XVIII, a impressão de ima-
nuras, e se aproximou cada vez mais de um objeto banal com a gens era feita por relevos talhados em
revolução dos meios de impressão e encadernação na indústria do madeira ou metal. Sabe-se que que o
século XIX, dentro da arte ele sofre os reflexos dessas mesmas aparecimento da estampa é anterior ao
transformações (FONSECA, 2011, p. 17). do livro impresso e que, como explicita o
pesquisador francês Lucien Febvre, “[...]
Devemos muito aos saberes desenvolvidos para a feitura de um durante séculos, até o aparecimento da
fotografia, o comércio da estampa conti-
livro na Idade Média e no século XVI, os quais nos habituamos a nuará florescente ao lado do comércio do
reproduzir, por acreditar ou por não refletir acerca de sua funcio- livro.” (FEBVRE; MARTIN, 2019, p. 102).
nalidade. Sabemos, por exemplo, que os marcadores de título cor-
rente e a numeração das páginas foram importantes para fazer a Figura 3 – Anatomia e fisiologia humana, flap book e xilogravuras de 1661.
união dos cadernos; sabemos também que hoje esses elemen- Editor: Gedruckt durch Johann Schultes Buchtrucker / In Verlegung Johann
tos têm outras funções, como, por exemplo, localizar conteúdo. Görlin Buchhandlers em Ulm.
Fonte: https://archive.org/details/ldpd_11497246_000/page/n111/
Configuramos páginas hoje com fortes referências ao que já era
mode/2up. Acesso em: 20 maio 2021.
feito nos períodos anteriores à imprensa, mesmo vivendo em uma
época em que os estímulos são diversos. Esse é o gancho que nos
leva a refletir acerca do Design do Livro na atualidade.
Observar os livros produzidos nos séculos XVII e XVIII é um materialidade do livro, que recebe tratamento diferenciado com
exercício de grande valor para a produção atual. Por exemplo, o intuito de propor ao leitor uma interação que lhe propicie a
nesse período, já se produziam os chamados flap book2 e informação da melhor maneira possível. Tanto o flap book como
pop-up book3 para estudos científicos (Figuras 3 e 4). Ter essa os livros pop-up4 são bastante utilizados hoje em dia, geralmente
produção como referência é importante para refletir acerca da em estruturas pensadas para os livros infanto-juvenis.
2
Flap book é uma peça de papel fixada a uma página como uma aba que se abre;
envolve vinco, dobra e cola.
3
Livros pop-up são peças tridimensionais de papel que saltam da página com o mo-
vimento de abertura do livro; também envolvem vinco, dobra e cola. A construção
desses objetos exige um bom planejamento e conhecimento da estrutura e do fun-
cionamento dos objetos tridimensionais, sendo executada pelo profissional conheci- 4
Ambas as técnicas são aplicadas depois do livro impresso; é um trabalho manual
do como engenheiro do papel (HASLAM, 2007, p. 200). executado na fase de acabamento.
15 l A PRODUÇÃO DE LIVROS IMPRESSOS NA CONTEMPORANEIDADE
A produção em Design Contemporâneo Em sua tese de doutorado publicada em livro, Bomeny (2012)
desenvolve a hipótese de que, a partir do século XX, na era ca-
racterizada pela “democratização da informação” e marcada
pela evolução do uso de computadores, iniciou-se uma nova
Pensar na produção em Design na contemporaneidade pode
fase de produção para o campo do Design. Tanto na Arte quan-
não ter relação com o que se pensa sobre o objeto fruto do
to no Design, o contemporâneo pode ser compreendido como
Design Contemporâneo. O primeiro coloca em relação o tempo
um valor que concentra e relaciona tecnologias com aspectos
em que se vive e a produção, que, por isso, certamente é muni-
humanos (políticos e socioculturais) de um determinado tem-
da de características culturais e tecnológicas desse período. O
po e lugar. Compreende-se, então, que ocorreram mudanças
outro, o Design Contemporâneo, é caracterizado para além dos
significativas nas ferramentas de produção do designer atual,
aspectos relacionados ao tempo e diz respeito ao estilo que
subverte o modo tradicional de se pensar e fazer Design. mas que estas não se resumem aos softwares gráficos, pois o
valor humano atrelado ao contemporâneo significa, inclusive, a
Torna-se fundamental compreender o Design Contemporâneo a transcendência do uso da informática e a busca por novas poé-
partir das características do objeto, que anunciam uma ruptura ticas e experimentações artísticas.
na tradição de trabalhar a forma, por intermédio de ferramentas
e materiais autênticos, além das práticas mantidas de geração Nessa perspectiva, compreende-se o Design Contemporâneo
em geração. Segundo a pesquisadora Maria Helena Bomeny: como uma linguagem do Design que compõe o objeto a partir da
ruptura com o estilo internacional convencionalizado, validando,
[...] o que chamamos de Design Gráfico Contemporâneo é um com-
plexo entrelaçamento de várias influências no decorrer dos tem- por exemplo, o princípio da hibridez cultural e o da responsabi-
pos, as quais viriam alterar profundamente o curso da arte comer- lidade social, e considerando os novos modos de percepção vi-
cial, transformando-a em uma atividade profissional (BOMENY, sual nas composições gráficas. Releva-se que os designers, es-
2012, p. 19). palhados pelo mundo, que tinham consciência social, econômica
Em consonância com a autora, pensa-se que a linguagem do Design e ambiental, ainda nos anos 1970, passaram a acreditar que a
Contemporâneo resulta de um engendramento constante da vida aparência moderna do objeto não era mais relevante na com-
social com as possibilidades artísticas, e o profissional que opta por plexa sociedade pós-industrial. Trata-se do surgimento de um
atuar com essa linguagem deve aprender a lidar com um universo campo de saberes que é produzido a partir de métodos orgâni-
complexo, com múltiplos caminhos para se chegar a um lugar, sem cos de criação, naturalizando a mistura de várias técnicas de pro-
receio de dinamizar suas práticas metodológicas e criativas. dução intelectual e gráfica, inserção de materiais e tecnologias
17 l A PRODUÇÃO DE LIVROS IMPRESSOS NA CONTEMPORANEIDADE
buscam garantir velocidade e instantaneidade. A supressão do es- A “Coleção de Livro de Artista”, um projeto
gestado pelo pesquisador Amir Brito Cadôr,
paço e do tempo afirma-se como constitutiva das redes, sua novi- é, na atualidade, o maior acervo público de
dade essencial (RUBIM, 2000, p. 28). livros de artista da América Latina . Trata-se
de uma rica referência que, por categoria de
Deve-se ter em vista que, em vez de tornar a atividade projetual temas e tipologias, possibilita acessar mais
facilitada, o período da “Idade Mídia” disponibiliza um grande vo- de 1500 obras catalogadas.
lume de informação desenraizada que potencializa o desafio do (colecaolivrodeartista.wordpress.com)
designer em sua ação criativa, exigindo maior vocabulário de refe-
rências e maior poder de desenvolver uma interrelação multidis-
ciplinar. Nesse contexto de fronteiras borradas, faz cada vez mais
Imagem do blog “Coleção
sentido para um designer, de modo geral, criar modos de aproxi- Livro de Artista”.
mação com seu entorno por intermédio das artes – uma realidade
projetual já conquistada no âmbito do Design Contemporâneo. O livro de artista como referência
Brasil, ultrapassando territórios como nunca se tinha visto an- No diagrama da Figura 7, é perceptível que existem três grupos,
tes. Nesse cenário frutífero, é importante compreender primei- representados por figuras geométricas planas: o grupo dos livros
ramente o que é o objeto nomeado como livro de artista, assim é representado pelo círculo à esquerda, o da arte pelo círculo à di-
como refletir sobre o lugar do designer que faz livro com arte. reita e, por fim, os livros de artista por um hexágono situado ao
Deve-se identificar, nessa tipologia, aspectos da materialidade centro. Esses grupos se interceptam, tornando visível o que com-
do livro que possam inspirar os processos criativos de designers. põe o campo do livro de artista – incluindo os livros literários e os
livros-objetos. Segundo Clive Phillpot, há uma divisão horizontal
Atualmente, muito se discute sobre o que é ou não um livro de
para diferenciar a produção de exemplares únicos e múltiplos, se
artista. Pesquisadores e autores que participam desse debate
referindo a livros de apenas um exemplar e livros de tiragem7.
utilizam o diagrama de Clive Phillpot para tentar ilustrar a rela-
ção do livro de artista com a Arte e com o objeto livro. Com base No Brasil, temos os pesquisadores Paulo Silveira, da Universidade
na construção desse autor, e com intuito de exemplificar como o Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Amir Brito Cadôr, da
debate proposto por ele relaciona o livro de artista com o campo Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com duas publi-
da Arte e com a produção de livro, foi elaborado o esquema grá- cações importantes sobre o assunto. Na obra intitulada “A pá-
fico a seguir. gina violada: da ternura à injúria na construção do livro de ar-
tista” (SILVEIRA, 2001), o autor desenvolve um capítulo inteiro
apresentando a visão de vários teóricos acerca das “Definições e
indefinições do livro de artista”. Já na obra “O livro de artista e a
enciclopédia visual” (CADÔR, 2016), são apresentados verbetes
sobre o vasto universo dos livros de artista; a maioria faz parte
do acervo da Coleção Livro de Artista da UFMG.
7
“Para o português, dizemos que os livros de artista, no sentido lato, como um cam-
po das artes visuais, podem ser: livros literários, quando não têm evidentes valores
plásticos; livros de artistas propriamente ditos, no sentido estrito, chamados, às vezes,
em certos casos, de livros-obras, como tradução literal de bookworks; e livros-objetos,
obras escultóricas e matérias desprovidas de elementos bibliográficos. Deve-se ter
em mente que a tradução de bookwork é problemática, uma vez que o inglês permite
justaposição e aglutinação com mais liberdade e prontidão. A palavra bookwork é fre-
Figura 7 – Esquema gráfico do livro de artista. quentemente traduzida, na nossa fala coloquial, simplesmente como ‘livro’. Mas não
Fonte: Esquema gráfico produzido pelas autoras com base no diagrama de Clive pelo seu aspecto literário ou textual, ou verbo-visual, e sim por sua existência física,
Phillpot, para conferência reproduzida no Art Libraries Journal, v. 18, n. 1, 1993. plasticamente programada e materialmente fundada.” (SILVEIRA, 2001, p. 51-52).
21 l A PRODUÇÃO DE LIVROS IMPRESSOS NA CONTEMPORANEIDADE
O movimento dos livros de artista surge para tirar a arte de den- à diversidade de suas formas e materiais. Podem, porém, ser vi-
tro da galeria e trazê-la para outros espaços. A literatura traz sitadas por qualquer pessoa interessada no assunto, seja com
como pioneiro o “Twentysix Gasoline Stations”, de Ed Ruscha, im- interesse de pesquisa ou por curiosidade mesmo.
presso em 1963, em offset, com tiragem de 3000 exemplares. As coleções de livros de artista são importantes para tornar aces-
Porém, com o passar dos anos, surgiram livros também para os sível essa produção; entretanto, ainda se trata de um objeto de
espaços da galeria, tidos como preciosos, limitados e colecioná- acesso restrito e procurado por um público específico. Deve-se ter
veis. Já na última década, temos um movimento que retoma o em vista que o livro de artista não tem, em sua maioria, um com-
livro de artista como algo concebido para circular por todos os promisso mercadológico e, apesar de ser também produzido por
espaços e ser acessível a uma maior quantidade de pessoas – demanda, o livro é criado dentro das concepções das Artes Visuais,
uma proposta bastante coerente quando pensamos que tanto a tendo, portanto, liberdade para ser como o artista o desejar.
arte como o livro são experiências necessárias para a formação
Como qualquer obra de arte ou livro, esse objeto precisa ter
do indivíduo reflexivo, consciente e sensível.
um planejamento cuidadoso para se chegar a uma edição, seja
Esses livros podem estar em museus ou pertencer a coleções ele único ou múltiplo. Para isso, é necessário o conhecimento
públicas ou privadas. Podem ser encontrados em feiras de publi- das etapas de produção. Silveira nos faz refletir sobre como a
cações independentes, onde as pessoas podem ouvir do próprio busca pelo exemplar perfeito pode nos trazer a experiência de
artista como foi concebida a obra. Também podem estar expos- uma edição:
tos em ateliês, ser de livre trânsito, estar em nossas estantes e Será preciso fazer entender que livros únicos podem ser extrava-
até serem confundidos com livros comuns, pois assim alguns ar- gantes e isso não significa que um primeiro resultado tenha o valor
tistas os conceberam: sem zelo pela preciosidade, mas sim pela imaginado. Será preciso fazer um segundo trabalho, um terceiro,
poética, pela arte, pela expressividade e pela criatividade. Todos e assim por diante. Será preciso refletir sobre o que já foi feito e
ensaiar o que será realizado. E compreender que assim como fa-
esses livros podem estar também em uma biblioteca pública,
zemos muitos desenhos ou muitas pinturas, precisaremos fazer
como é o caso da Coleção Livro de Artista da UFMG e da Coleção muitos livros únicos, até alcançarmos a qualidade inflexível da
de Livros de Artista do IA-BORA, da Unicamp/SP. Ambas as co- obra. Talvez a partir desse ponto, salvo se frequentou aulas es-
leções se encontram na Divisão de Coleções Especiais e Obras pecíficas, o artista poderá desfrutar melhor a energia pujante da
Raras e têm acesso restrito, por precisarem, muitas vezes, de in- edição (SILVEIRA, 2012, p. 75).
A questão da reprodutibilidade do livro de artista está ligada à Diferentemente de como acontece na produção do livro de artis-
concepção da obra; o artista pode escolher entre etapas arte- ta, esse esquema de Haslam coloca o profissional projetista – o
sanais de produção, que resultem em um único exemplar ou em designer – como uma figura que aparece no meio do processo de
uma baixa tiragem, ou pode optar por produções de impressão produção e atua somente depois que o autor, juntamente com
híbrida que resultem em uma tiragem maior. Certamente, dife- o editor, já tomou algumas decisões e entrega ao designer uma
rente do que algumas pessoas pensam, o que define um livro de espécie de briefing – um documento que reúne as informações
artista não é a tiragem, e sim sua concepção pelo artista. que serão utilizadas para caracterizar graficamente o livro a ser
Carrión (2011), em sua obra “A nova arte de fazer livros”, coloca desenvolvido. O designer pode ser aquele que apenas idealiza a
o autor como o responsável por todas as etapas do fazer de um página, sem necessariamente diagramar o que foi concebido. É
livro; ele não precisa ser o executor de todas as etapas que vão perceptível que existe, na realidade, uma concepção elitista do
do conteúdo ao leitor, mas estará presente em cada uma delas. profissional em design que o distancia das tarefas que exigem
O autor-artista, ao participar de todas as etapas de produção do “pôr a mão na massa”, como o seu afastamento das atividades
livro, quebra essa distância criada pelo mercado editorial con- do fazer manual: a modelagem física e encadeamento das es-
vencional. Releva-se que, tradicionalmente, na produção de um truturas do livro. Na era da informática, essa questão é agrava-
livro, o designer é apenas parte desse processo que existe entre da, e apenas uma parcela mínima dos designers se aventura a
o autor e o leitor. No livro de Haslam (2007, p. 22), encontramos escapulir do modo linear de produção, aproximando-se do fazer
alguns modelos convencionais de produção linear de um livro. fisicamente experimental.
Apresentamos um deles na Figura 8.
Briefing/diretrizes Projeto/configurações
escolher técnicas prediletas, mas sobretudo em optar por ex- Ainda sobre a discussão do que é arte e se o designer é um ar-
planar determinados temas por meio de elementos estéticos tista, trazemos à luz a fala do filósofo Luigi Pareyson, que, para
ditos puros8. explanar a definição de arte, desenvolve o conceito de arte como
Possivelmente para não entrar nesse embate acerca do designer “formatividade”: “pode-se dizer que a atividade artística consis-
produzir ou não arte, Zugliani e Moura (2019, p. 138) propõem te propriamente no ‘formar’, isto é, exatamente num executar,
o termo “Objeto Editorial Contemporâneo” no lugar de “li- produzir e realizar, que é, ao mesmo tempo, inventar, figurar,
vro de artista”. Esses autores acreditam que dessa maneira o descobrir” (PAREYSON, 1997, p. 26). Esse conceito parece ser
conceito é ampliado “sem desviar do objetivo” – ou seja, para mais generoso com as outras atividades criativas, pois exclui a
eles, diferentemente da concepção elaborada por Clive Phillpot ideia de que determinados fazeres pertencem exclusivamente à
(Figura 7), o livro de artista está dentro do espectro do “Objeto arte pura. Nesse sentido, pode-se dizer que o designer executa
Editorial Contemporâneo”. Na visão dos autores, essa concep- atividades formativas, portanto, produz arte.
ção inclui, sem conflito, a possibilidade de o designer produzir Mas é fundamental também a exigência da extensão da arte a todos
um livro com experimentação gráfica e inventividade – com arte. os campos da atividade humana, como atesta toda a história do ho-
Entretanto, considerando que é o resultado da confluência entre mem, especialmente nas civilizações de alto sentido artístico, como
a grega e a humanística, onde em cada atividade se persegue, junta-
o fazer artístico e o fazer um livro que gera o objeto, compreen-
mente com o valor específico daquela atividade determinada, tam-
demos que o uso do termo proposto pelos autores pode fazer
bém o valor artístico, e não se consegue conceber nenhuma atividade
sentido para as publicações que são configuradas fora da forma que não tenha um êxito artístico, e como se vê particularmente numa
convencional, mas não necessariamente engloba ou enquadra o idade como a nossa, em que a renovação do gosto ocorre não apenas
livro de artista, que já é livre por natureza. na arte propriamente dita, mas, sobretudo, nos mais diversos âm-
bitos da vida, de decoração à arte gráfica e do desenho industrial às
Certamente, para o designer que faz livros, aventurar-se na expe-
artes de massa. Assim, com as etiquetas, a vida social enobreceu-se
rimentação artística e romper com os modos convencionais de es-
e refinou-se sob a evidente influência de um ideal estético, as várias
truturar as páginas e outras materialidades de um livro é situar-se cerimônias da vida política ou religiosa colorem-se de arte, num nexo
no Design Contemporâneo. Entretanto, subordinar o livro de artista concreto em que a beleza não é separável do rito, do culto, da con-
ao escopo do “Objeto Editorial Contemporâneo” exige reflexão. venção, do costume e do símbolo (PAREYSON, 1997, p. 30).
8
É difícil compreender que um elemento que foi escolhido para causar um efeito seja
puro, inocente e livre de amarras de sentido.
25 l A PRODUÇÃO DE LIVROS IMPRESSOS NA CONTEMPORANEIDADE
Para Pareyson (1997, p. 62), “colocada sob o signo da arte, a Exemplos de designers que se envolveram com a produção ex-
personalidade do artista torna-se ela própria energia formante, perimental de livros circulam desde os anos 1950. Os livros para
vontade e iniciativa da arte, ou melhor, modo de formar, isto é, “crianças de pouca idade” ou “pré-livros” (1980), e os “livros ile-
estilo”. Ou seja, o modo de fazer arte é inseparável da persona- gíveis” (1957), de autoria do italiano Bruno Munari9, são referên-
lidade do artista e, sendo assim, é o “gesto” do fazer, é o estilo. cias de como um designer pode produzir livros com artisticidade.
Por isso, pensa-se que desabilitar do designer sua capacidade Munari, em sua obra “Artista e designer” (2015), diferentemente
de expressar-se com estilo não parece justo, uma vez que as es- do que afirma Pareyson (1997), desenvolve a separação entre a
colhas feitas por ele se enroscam com suas subjetividades. denominada “arte pura” e outras produções artísticas destinadas
Deve-se ter em vista que o envolvimento do designer que faz às exigências do mercado de consumo. Em controvérsia, o autor
livros com práticas artísticas e experimentais torna-se cada vez apresenta possibilidades gráficas e estrutura de livro com uma
mais importante quando o mundo passa a consumir conteúdos inventividade que transcende a forma convencional do chamado
também por meio digital. Releva-se que a estrutura da materia- “livro de edição”10. Para o autor, os materiais, formas, formatos e
lidade e os constructos gráficos são intertextos de um livro, e o processos, que são os elementos que compõem a arte do livro, já
livro físico se torna, aos poucos, um objeto que não se encerra carregam em si o mesmo teor comunicativo da obra. Nesse senti-
em um bom texto. Por isso, acreditamos que o fazer um livro de do, declina-se da noção de que a função primordial de um livro é a
artista pode ser um dos gestos do designer. informação objetiva, funcional.
9
“Bruno Munari (1907-1998) foi uma das figuras multifacetadas da arte e do design
“Além de criar livros para crian- do século XX que, durante sua carreira, construiu uma verdadeira ideia de realidade
ças de poucos anos de idade, alternativa. Foi designer gráfico, artista e pedagogo, e durante seu percurso profis-
Munari também projeta produ- sional esteve em constante diálogo com diferentes formas e correntes artísticas.
tos industriais e cria cenários Seus projetos foram reconhecidos com quatro prêmios Compasso d’Oro, a mais an-
tiga e prestigiada premiação de desenho industrial italiana, em 1954, 1955, 1979 e,
de mostras, desperta e dorme
em 1995, pelo conjunto da obra. Foi também agraciado por prêmios internacionais,
como qualquer homem, mas, como o Japan Design Foundation em 1985. Munari colaborou intensamente com a
como bem sabido, não é típico produção gráfica e editorial, tendo publicado diversos livros voltados para o público
pintor de cavaletes das antigas, infantil. O método Munari, desenvolvido por ele e voltado à educação para a arte,
mas sim um artista moderno, ainda é aplicado hoje no mundo todo.” (MCB, 2019).
ou, como se diz, um designer.” 10
O livro de edição é assim chamado por envolver uma reprodutibilidade, um pen-
Texto escrito por Bruno Munari samento projetual para que esse livro tenha uma tiragem, podendo ser baixa ou
alta tiragem.
em 1956.
Em “Das coisas nascem coisas” (1998), Munari apresenta o “livro assume que os elementos escolhidos para compor a materiali-
ilegível” (Figura 10) – projetos de livros que utilizam apenas a dade de um livro são comunicantes e, por isso, precisam ser ex-
visualidade da linguagem não verbal – e expõe sua preocupação perimentados, considerando que o designer queira tornar mais
acerca da pouca atenção que um designer tem com a materiali- potente o efeito do objeto no processo de recepção.
dade de um livro: “O problema, portanto, é: o livro como objeto, Destacamos que a criatividade é uma prática importante para o
independentemente das palavras impressas, pode comunicar al- designer, mas a imaginação é igualmente necessária. Ser com-
guma coisa, em termos visuais e táteis? O quê?” (MUNARI, 1998, preendido imediatamente pelo seu público, “sem que haja espa-
p. 211); o autor ainda sugere que, para “pôr à prova as possibi- ço para falsas interpretações” (MUNARI, 2015, p. 106), não deve
lidades de comunicação visual dos materiais de que é feito um ser uma preocupação do designer que experimenta a inventivi-
livro”, é preciso testar tipos de papéis, formatos e acabamentos. dade na produção de livros – até porque não acreditamos em
falsas, mas, simplesmente, interpretações, numa semântica que
Esse parece ser um pensamento fundamental na literatura de
se desdobra em múltiplos sentidos.
Design: a solução aceita deve ser a mais adequada. A questão
está na noção de adequação como preceito obrigatório numa Uma das produções editoriais mais instigantes de Munari é a
propositura do designer, e que, a priori, está relacionada às ditas coleção infantil intitulada “Pré-livros” (Figura 11), apresentada
funções do objeto diante das exigências de mercado, consideran- a seguir pelo pesquisador de livros de artista Amir Brito Cadôr:
do que o usuário desse objeto é um ator imerso nessa mecânica Os Pré-Livros de Munari, feitos para crianças que ainda não foram
de troca de consumo. Esse modo de pensar e fazer Design pre- alfabetizadas, estimulam os sentidos, convidam ao toque de sua su-
cisa ser repensado quando tratamos, por exemplo, da produção perfície lisa ou áspera, macia ou dura. A capa e a contracapa são idên-
de livros que subvertem a lógica da comunicação funcional de ticas, uma aparece invertida em relação a outra, de modo que a criança
uma página. Deve-se ter em vista que a intenção do designer ou não fique constrangida de pegar o livro de maneira errada, podendo
iniciar a leitura por qualquer lado. Ele usa tipos de encadernação va-
artista é reelaborada no processo de recepção do leitor-obser-
riados: cordas, barbantes, argolas. Comercializados em uma caixa-
vador e, por isso, a adequação não é exatamente um fator que -livro contendo 12 exemplares pequenos, cada um dos Pré-Livros é
se controla de maneira objetiva – ou que não se controla pelo feito com um material diferente. Um desses livros, feito de pano, tem
projetista. É exatamente na falta de controle que mora a graça: em algumas páginas um pequeno corte, e um botão branco na página
o objeto livro passa a ser lido de diferentes maneiras e, com lu- central pode abotoar uma ou mais páginas. Munari antecipa boa parte
dicidade, o leitor obtém as informações a partir do momento em do que viria a ser adotado em livro infantil nos últimos 50 anos: cortes
que interage com a materialidade desse livro. O próprio Munari e dobras, livros de pano, de plástico, de madeira (CADÔR, 2012, p. 60).
28 l A PRODUÇÃO DE LIVROS IMPRESSOS NA CONTEMPORANEIDADE
O livro de Aloísio (Figura 12) mostra diferentes profundidades A produção independente de livros é um caminho atualmente
de campo da imagem da pintura “Still life with flowers and shells”, buscado por muitos artistas-editores e, certamente, é a direção
de Balthasar van der Ast11 (1593/4-1657). Como explana Cadôr que supera o hábito capitalista de universalização sobre as coi-
(2016), o processo de ampliação do fragmento de 1,5 x 1,5 cm da sas; é manter-se firma na luta contra uma produção de livros que
pintura por gigantografia torna a imagem uma abstração, enfati- simplesmente se enquadrem nos requisitos estipulados pelo
zando a sobreposição das quatro camadas (retículas) de impres- mercado editorial de massa. Esse caminho da publicação feita
são offset: “a figura torna-se um padrão de pontos e manchas com autonomia acaba com a necessidade de contar com a aceita-
que não representam nada além de si mesmos” (CADÔR, 2016, ção de uma proposta de livro por grandes editoras. Para o artista
p. 541-542). Ricardo Rodrigues:
O Gráfico Amador é considerado por Gisela Creni (2013) uma edi- Um editor independente concebe sua política editorial com total li-
berdade, de forma autônoma e soberana; não é órgão de expressão
tora artesanal de livros. Como explicita a pesquisadora Sandra
de um partido político, de uma instituição, de um grupo de comuni-
Romão, no prefácio da obra de Creni: cação ou de uma empresa (RODRIGUES, 2019, p. 21).
Partindo de motivações variadas, os artistas gráficos aqui apresen-
Esse caminho traz a possibilidade de produzir livros com maior
tados buscam o processo da produção artesanal individualizada,
com a forte presença, inclusive manual, do editor em cada etapa da diversidade para além do conteúdo, permitindo que se experi-
produção de um livro e assim intentam, de certa forma, retornar aos mentem formas híbridas de impressão, meios artesanais de aca-
primórdios da produção gráfica (CRENI, 2013, p. 13). bamento, diversidade de papéis e uso de outros materiais que
agregam narrativa ao objeto. A aproximação do autor com a rea-
A compreensão acerca dessa produção de livros artesanais é um
lização do objeto leva-o a explorar de maneira mais profunda seu
bom gancho para tratarmos do crescimento da produção inde-
conteúdo. Como explicita Rodrigues (2019, p. 21): “Atuar de forma
pendente nos últimos anos (entre 2016 e 2021). Nessas publi-
independente garante, então, a pluralidade e difusão de ideias. É
cações por artistas e editoras que independem dos grandes sis- a oportunidade de testar o que não tem vitrine garantida”.
temas de venda de livros instalados no mercado de consumo,
A circulação e comercialização da produção independente teve
as características dos livros (conteúdo e visualidade) são de livre
um aumento expressivo nos anos de 2017 e 2018 (Figura 13),
escolha de quem está à frente da produção (autor-editor).
com a realização de feiras que abrigam tanto as publicações
A pintura de Balthasar van der Ast, do período holandês, é um retrato de natureza-
11
quanto as artes gráficas, incentivando assim a autopublicação
-morta que contém flores, frutas, cestos e conchas. Essa pintura faz parte da coleção
do Musée de la Chartreuse, Douai, França. e o surgimento de pequenas editoras independentes. A criação
31 l A PRODUÇÃO DE LIVROS IMPRESSOS NA CONTEMPORANEIDADE
30 S
28 S
20 22
10 CO S CO CO
NE N NE NE 4
5 3 8 1 7 8 2
00
2017 2018 2019
ANO
Informações obtidas no “Calendário de
12
Post de 3 de janeiro de 2020 de Ana Francotti. Disponível em https://www.facebook.
Feiras de Publicações Independentes e
com/groups/1787158308213140. Acesso em: 28 jun. 2021. Arte Impressas”, em junho de 2021.
32 l A PRODUÇÃO DE LIVROS IMPRESSOS NA CONTEMPORANEIDADE
sobrepostos e dispostos na página de modo racional e também “De novo” (2018), Gustavo Piqueira
de forma orgânica. Interessante é que as imagens geradas pelos
clichês digitais parecem ter sido geradas por carimbos analógi- Atualmente, acreditando nessa possível vitalidade como forma de
cos, pois sua aparência transmite a ideia de que o resultado é propor algo sem previsibilidade para o leitor, trazemos a obra “De
fruto do gesto humano – seja pela imagem gerada pelo clichê, novo” (2018), de Gustavo Piqueira, como referência de uma mate-
seja pelo modo de sua disposição na página. rialidade incomum de página, de como é possível mudar o hábito
da leitura em um livro. Essa obra trabalha a ideia do “de novo” por-
Sobre essa aparência apartada da funcionalidade modernista,
podemos acessar a fala de Robert Venturi, um designer consi- que a informação nova vem junto com conteúdo já tocado, ou seja,
derado pós-modernista que, em 1966, em seu livro intitulado parte do que está sendo lido ressurge, mesmo ao passar a página.
“Complexity and Contradiction in Architecture”, explicita ser “a fa- A obra é composta por 6 livros impressos, cada um com sua
vor da vitalidade caótica em detrimento da unidade óbvia” (apud narrativa, mas todos com a mesma estrutura material. Cada li-
POYNOR, 2010, p. 26). Essa fala foi providencial, à época, para vro é formado por 4 folhas do mesmo tamanho (31 x 22,5 cm),
caracterizar a produção de designers que se recusavam a atu- cada folha com uma dobra gerada por um vinco vertical em
ar em conformidade com os modelos vigentes. Os profissionais um lugar diferente, transformando as dimensões do livro na
mais conservadores alertavam para uma possível erupção da intercalação das folhas; assim, seu tamanho, quando fecha-
subjetividade e ruptura das ideias pós-modernistas; resistiam, do, é 22,5 x 22,5 cm. Com isso, o virar das páginas faz com
inclusive, à ideia de que o design pudesse ser uma forma de arte. que narrativas se sobreponham, fazendo aparecer ou es-
conder conteúdo, criando novas sequências e consequen-
tes leituras, ora textuais, ora imagéticas (Figuras 15 e 16).
“Clichês brasileiros” O virar da página instiga o leitor e o surpreende a cada instan-
tem a primeira capa
te. Piqueira tem uma mente mirabolante, profícua e criativa, O livro ”De novo” em
flexível e dorso com
costura aparente. que nos agracia com seu humor impresso a partir de colagens, envelope produzido
ilustrações, fotos, fotomontagens e textos, criando narrativas em plástico bolha
transparente.
que só acontecem na materialidade desse livro.
37 l ANÁLISE GRÁFICA DE OBRAS NÃO CONVENCIONAIS
FOLHA 1 FOLHA 4
FOLHA 2 FOLHA 3
“Conhecidos de vista / Known by sight” (2018), Vejo hoje, com certo espanto, uma significativa parcela de artistas
e curadores entenderem, ou mesmo defenderem, que para um livro
Letícia Lampert
ser “de artista” ele deve ter tiragens limitadas, assinadas, acaba-
mentos especiais, estas coisas que o diferenciariam de um objeto
Outro exemplo escolhido foi um fotolivro de Letícia Lampert, uma industrializado, como se assim fosse perder a tal aura da obra úni-
designer que faz livro de artista. Lampert escreveu em um artigo ca e feita à mão, colocada já em xeque no início do século passado
que, mesmo se passando quase 50 anos e observando que o livro por figuras como Duchamp, na prática, e Walter Benjamin, na teoria
de artista tem mobilizado “um circuito de entusiastas e suscitan- (LAMPERT, 2020, p. 76).
do curiosidade e estranhamento na grande maioria do público lei-
go”, assim como é crescente todo um cenário que o circunda, como
a geração de redes de artistas, editoras independentes e feiras, as
“contradições que permeiam este universo parecem ter mudado
muito pouco de lá pra cá” (LAMPERT, 2020, p. 76).
Para a designer, é espantoso que ainda hoje existam aqueles que
tentam limitar o conceito do livro “de artista”, desconsiderando
obras que não apresentem características específicas e deter-
minadas. Corroborando com seu pensamento de que não deve-
mos nos prender a regras gerais aplicáveis a todo tipo de projeto,
acredita-se que a definição de livro de artista poderia ser mais
generosa e menos taxativa. Lampert também compreende que
os materiais gráficos e os processos contribuem para dar sentido
Figura 17 – Páginas da obra “Conhecidos de vista / Known by sight”.
ao livro; assim como dizia Munari: são elementos comunicáveis. Autora: Letícia Lampert
Editora Incompleta, 2018
Formato: 152 p.,18 x 23,5 cm, extensão da concertina = 27,36 m
Edição bilíngue português/inglês
Projeto financiado pela Fumproarte – Porto Alegre
Impresso em papel Alta Alvura, 1000 exemplares
Fonte: https://www.leticialampert.com.br/home-2/art/conhecidos-de-vista-livro/
Fotos e desenho do esquema gráfico das autoras.
40 l ANÁLISE GRÁFICA DE OBRAS NÃO CONVENCIONAIS
Ela também questiona essa distorção da intenção dos primeiros No caso do “Conhecidos de Vista”, [...] para me ajudar a nortear as
decisões que precisava tomar no projeto gráfico, fui estabelecen-
artistas que escolheram o livro como suporte da sua arte, traba-
do uma série de conceitos e regras. Foram muitos bonecos de livro
lhando com meios de produção industrial, com tiragens significa- até chegar no resultado final. Primeiro, eu queria que o livro tivesse
tivas, tornando a circulação de livros de artista mais democrática. dois lados, que o papel fizesse as vezes de parede, que tivesse um
dentro e um fora. Queria que o lado de dentro estivesse fechado de
Com um modo de pensar o livro de artista mais flexível – “Furar
alguma forma, que ele não fosse visível num primeiro folhear, que
a bolha da arte elitista, conquistar novos públicos” (LAMPERT, ele precisasse ser descoberto. [...] Também se criou uma espécie de
2020, p. 77) –, Letícia Lampert se aventura na produção de al- leitura circular, pois é preciso passar pelo livro várias vezes para ir
gumas obras dotadas de aspectos estruturais que mexem com a criando associações entre as pessoas que aparecem do lado de fora
zona de conforto do leitor e de outras que se mantêm no que já e os depoimentos e decorações que aparecem do lado de dentro
(LAMPERT, 2020, p. 85-86).
foi convencionalizado no âmbito do Design Editorial.
Nessa perspectiva, sua obra intitulada “Conhecidos de vista” é um
fotolivro com materialidade híbrida: à primeira vista, parece um li-
vro comum de capa dura; ao abri-lo, porém, o leitor se depara com
páginas sanfonadas, em concertina, montadas a partir de uma
tira de papel de 27,36 metros (Figuras 17 e 18). Ela explana que
o projeto foi desenvolvido a partir da visita a mais de 50 aparta- Figura 18 – Estrutura de
mentos localizados nos bairros centrais de Porto Alegre, onde as concertina (sanfona) da obra
“Conhecidos de vista / Known
ruas, com prédios em ambos os lados, configuravam esta situação by sight”. Foto e desenhos
de “confronto” entre janelas (LAMPERT, 2020, p. 84). A ideia de das autoras.
janelas frente a frente, gerando um certo confinamento no qual,
sem escolhas, a visualidade da vida do outro passa a fazer parte
da [nossa] realidade cotidiana, está contida e contada no modo
como as fotografias estão concatenadas na estrutura sanfonada
(Figura 19). É interessante o processo de interação proposto, ca-
paz de causar constrangimento ao leitor que está diante da ima-
gem [fotografia], ao atentar para os detalhes da vida de pessoas
que não conhece pessoalmente – assim como o observador que
está de frente para aquela janela. Lampert descreve seu processo:
41 l ANÁLISE GRÁFICA DE OBRAS NÃO CONVENCIONAIS
Na página de créditos encontramos um autorretrato da artista A obra escolhida para representar o trabalho de Odilon como um
e um texto onde ela se apresenta e conta como se inspirou em artista-autor foi o livro “Rosa’’, que “é constituído por três ca-
uma antiga fotografia de família (Figura 23): madas: uma biográfica, uma literária, outra formal” (MORAES,
Dentro do espelho surgiu do contato com a fotografia de família aci- 2019, p. 179). A biográfica é o que ele carrega da experiência
ma, tirada nos anos 30. O desenho no quadro-negro despertou mi- vivida durante a gestação de seu filho, que ele nomeia de “es-
nha atenção – chamei-o de “Rei da noite”, e assim comecei esse tado de gravidez masculina”; a literária é a referência ao conto
projeto que agora você tem em suas mãos transformado em livro “A terceira margem do Rio”, de Guimarães Rosa, que ambienta
(WEISS, 2002, Página de créditos).
o universo do livro; e a terceira, a formal, é a elaboração da es-
Luise Weiss usou seu repertório como artista e pesquisadora crita, que em seu gênero é híbrida e inclui o texto, a imagem e
ao unir vários universos nesse objeto lúdico e mágico que nos também o objeto.
transporta através do espelho: sua experiência pessoal com a
fotografia de família, seu conhecimento como gravadora, como
Figura 24 – Detalhe da fita adesiva utilizada no
investigadora do livro e do livro de artista, como ilustradora, boneco do livro “Rosa” (Figura 25), que acabou
como produtora e como autora. Ela cria um potente diálogo en- incorporada na versão publicada do livro por
tre diversas linguagens. decisão do editor.
45 l ANÁLISE GRÁFICA DE OBRAS NÃO CONVENCIONAIS
A concertina16, tal qual produzimos atualmente, vem de uma agressões sofridas por um menino que não tem boca – uma
técnica muito antiga de estrutura sanfonada que foi populariza- alusão àqueles que, por sofrerem algum tipo de opressão, não
da pelos japoneses no século XII (ARAÚJO, 2019, p. 45). Quando conseguem exercer seu poder de fala. Para o autor, a interação
os espanhóis invadiram a Mesoamérica, no século XVI, encon- precisava ser intensa e, por isso, a concertina [sanfona] era a
traram uma valiosa produção de livros sanfonados com ilustra- estrutura ideal para transmitir o conteúdo em carrossel.
ções riquíssimas que narravam sobre as “culturas do México e
da América Central antes e imediatamente após a chegada dos
espanhóis” (LYONS, 2011, p. 86).
A sensação de interagir com um livro em estrutura de concertina
é como se estivéssemos em um carrossel: uma página concate-
nada na outra, uma imagem que não se desprende da anterior
nem da posterior.
Outro exemplo de uso da concertina na produção física de
um livro é “O primeiro beijo do menino sem boca” (2021), de
Aluizio Guimarães, uma história infantil que foi configurada em
duas concertinas de tamanhos diferentes que se intercalam e
compõem uma amarração entre as páginas, excluindo a ne-
cessidade de costura ou cola para uni-las (Figura 32). A ideia
foi transmitir a sensação de um concatenamento fluido entre Figura 32 – Vista superior
as páginas; quase sem fôlego, o leitor é envolvido em uma in- do livro “O primeiro beijo do
teração de leitura sem pausa. As páginas apresentam peque- menino sem boca” (2021).
nas falas de um narrador que conta sobre a vida solitária e as Fonte: Desenho e foto das
autoras.
16
Segundo consta no “Graphos: glossário de termos técnicos em comunicação grá-
fica”, dobra-sanfona (accordion fold) é um tipo de dobra ou método de dobragem que
consiste em executar diversas dobras paralelas de modo que as dobras adjacentes
tenham direções alternadamente opostas, a fim de produzir um produto acabado
que lembra o fole de um acordeom. Termos alternativos: concertina fold; dobra em
leque; fanfold; fan fold; over-and-back fold (ROSSI FILHO, 2001, p. 199).
52 l PROCESSOS ARTÍSTICO-CRIATIVOS PARA A PRODUÇÃO
DO LIVRO EXPERIMENTAL EM ESCALA
Concertina
maior
Concertina menor
Figura 34 – Ferramentas utilizados na produção do “Catálogo Figura 35 – “Catálogo da Coleção de Livros de Artista IA-Bora/Unicamp” (2018).
da Coleção de Livros de Artista IA-Bora/Unicamp” (2018). Tiragem: 6 exemplares numerados e assinados
Fonte: Fabiana Grassano. Formato fechado: 7,5 x 10 cm
Miolo: vergê diamante 180 g/m2
Capa: cartão texturizado
Acabamento: capa em dobra origami com cinta, impressão em carimbo com tinta
branca
Designer (projeto gráfico e produção): Fabiana Grassano
Fonte: Fabiana Grassano.
54 l PROCESSOS ARTÍSTICO-CRIATIVOS PARA A PRODUÇÃO
DO LIVRO EXPERIMENTAL EM ESCALA
Atualmente já existe uma quantidade significativa de livros – a Numa perspectiva inventiva, a experimentação híbrida rompe
maioria de produção estrangeira17 – que trazem a proposta de en- com o fetiche tecnológico que mantém o designer refém dos
sinar estruturas de livros por intermédio de dobraduras de papel softwares gráficos. Nesse sentido, é de suma importância dar
e costuras manuais. Uma obra traduzida e publicada no Brasil que espaço a uma prática que estimule a criatividade ao exercitar a
reúne vários artistas do livro, incluindo a artista brasileira Gabriela capacidade sensorial do designer: o cheiro da tinta, o tato sobre
Irigoyen, é “Como fazer seus próprios livros: novas ideias e técni- texturas do papel, a visualidade que não é precisamente con-
cas tradicionais para a criação artesanal de livros” (RIVERS, 2016). trolada de uma gravura. Tudo isso sem esquecer que um livro
Trata-se de uma forte inspiração para se pensar novas possibili- impresso em gráfica industrial pode ser montado e costurado
dades, mesmo que seja preciso adaptá-las aos processos de uma artesanalmente, ou seja, o caráter híbrido tem a ver com a jun-
gráfica. Envolver-se com a produção manual de um livro é quase ção de processos de naturezas diferentes.
um processo de investigação de como a forma e o conceito podem Uma reflexão importante para o campo de Design de Livro, tam-
estar numa estrutura; quando dá certo, é pura magia. bém podendo considerar o Design Editorial, que é mais amplo,
Uma questão bem importante é que, quando se planeja a produ- é em qual momento do projeto a experimentação é cabível.
ção de livros de edição, o caráter híbrido, que mescla processos Primeiramente, deve-se ter em vista que, de maneira geral, as
de impressão, pode acontecer. Existem algumas possibilidades de metodologias em Design são triádicas, e as etapas de compre-
produzir matrizes de impressão, e a gravura resultante pode ser, ensão [analítica ou problematização], proposição [criativa] e fi-
mas não necessariamente, digitalizada, para cambiar do universo nalização [acabamento] são definidas com uma série de ações
analógico para o digital. Observando a produção dos livros apre- ou subetapas. Ou seja, esse modelo de desenvolvimento de um
sentados, é possível se deparar com a mistura de processos gráfi- projeto parte do princípio de que a fase criativa só deve aconte-
cos analógicos e digitais. Ainda é possível mesclar a fotografia e a cer depois que os dados são obtidos por pesquisa. Entretanto,
gravura para, dentro de um amplo universo de possibilidades, po- considera-se que um designer é um profissional que investe na
tencializar o diálogo autor-livro e, consequentemente, livro-leitor. alimentação do seu repertório para conseguir proposituras e,
por isso, deve acostumar-se com atitudes criativas em qualquer
17
Uma referência é a obra das artistas Hedi Kyle e Ulla Warchol intitulada “The Art of
the Fold: how to make innovative books and paper structures” (2019), na qual as autoras momento do projeto. Sendo assim, aceitar que a imaginação
ensinam a fazer 36 estruturas diferentes com papel. Essa obra dispõe de alterna- [experimentada] exerça força enquanto ainda se está adquirin-
tivas de livros que mesclam práticas tradicionais de encadernação com estruturas
inovadoras. do conteúdo para a interpretação dos conceitos é extremamente
58 l PROCESSOS ARTÍSTICO-CRIATIVOS PARA A PRODUÇÃO
DO LIVRO EXPERIMENTAL EM ESCALA
livros e outros impressos – fora que as possibilidades de públi- em determinados universos simbólicos, sendo providencial para
co interessado nesse tipo de objeto são mais fartas e diversas. a cultura.
Entretanto, devido à sua importância artística e cultural, é sabido Por isso, tentamos aqui lançar algumas provocações necessá-
que a produção de livros experimentais ganhou força e propor- rias para que o estudante ou profissional de Design possa, antes
ções que transcendem os grupos e artistas dos grandes centros, de qualquer coisa, refletir sobre suas escolhas projetuais quando
e seria possível fazer uma longa lista de boas referências além for se envolver com a produção de livros. Pensamos que é im-
das que foram aqui apresentadas. portante buscar práticas que possam torná-lo desinibido para
Uma questão relevante e que pode ser utilizada como argumento ensaiar, sentir, tentar e experimentar, como outras ações que
para a produção deste conteúdo tem a ver com o fato de o objeto propiciem a formação de repertório projetual, assim como a in-
livro ser marcado por uma história repleta de concessão de uso, ventividade da materialidade de um livro. Avante!
privilégio de determinadas camadas sociais, distinção e poder.
Deve-se ter em vista que, mesmo depois de se tornar uma mer-
cadoria18, mais um produto de consumo de massa impulsionado
pela indústria cultural, o livro não se torna um objeto consumível
de maneira ampla, principalmente em países que apresentam
problemas na alfabetização de sua população. Nesse sentido,
parece justo que um livro que carrega em si uma materialida-
de inusitada, que tanto provoca experimentação estética quanto
reflexão acerca de alguma questão sociocultural de valor para a
formação de indivíduos, possa circular em todas as camadas da
sociedade. O livro experimental de edição – que tem uma escala
de produção – é, sem dúvida, uma alternativa para inserir o leitor
18
Segundo consta na obra de Paiva (2010, p. 39), “é a partir do século III que os livros
passam a ter valor comercial. São vendidos. O primeiro regulamento de que se tem
notícia é da Universidade de Paris e diz respeito tanto ao comércio de livros praticado
na cidade quanto à venda e empréstimo de manuscritos de segunda mão pelos es-
tudantes.”
61 CADÔR, Amir Brito. O livro de artista e a enciclopédia visual. Belo Horizonte:
CARRIÓN, Ulises. A nova arte de fazer livros. Tradução de Amir Brito Cadôr.
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64 l ANEXO
letter
fabianagrassano@gmail.com
germana@academico.ufs.br
lattes.cnpq.br/2019702139404460
lattes.cnpq.br/5486386468044529
66 l nome do capítulo
P D F in terativo,
m
e li v ro d igital é u t ip ográfica
Ess m íl ia
p o s t o c om a fa o 9 6 0 x 600 px,
com at
u m W e b , no form e iro de 202
2.
Titilli ,e m ja n
a r a a E d itora UFS
p