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A F1 e a antiga xenofobia anglo-saxã

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Dias após o GP Itália de 2023, numa entrevista para o canal Servus TV, Helmut
Marko, conselheiro esportivo da Red Bull, afirmou que o piloto mexicano da equipe de
energéticos, Sérgio Perez é “sul-americano e não consegue se concentrar tanto quanto
Max (Verstappen) e Sebastian (Vettel)”. Marko fez essa desastrosa comparação entre
Perez e dois pilotos que ganharam títulos pela Red Bull, afirmando que sua concentração
oriunda de serem de países centrais, respectivamente, Holanda e Alemanha; enquanto o
México não fica nem na América do Sul, como Marko disse, mas na América do Norte e faz
parte da América Latina. Não são apenas pilotos latinos que sofrem com preconceito, mas
pilotos asiáticos, como os vários japoneses que passaram pela categoria e Zhou, primeiro
piloto chinês a passar pela F1. A xenofobia no automobilismo, que dá centralidade aos
países europeus e anglófonos desenvolvidos, de modo geral, prejudica a descoberta de
novos talentos em todas as nações, enfraquece o legado de grandes pilotos originados de
países subdesenvolvidos e torna ainda mais difícil a vida dos atletas de esporte a motor
oriundos de fora do eixo central. Certamente, é necessário uma F1 mais plural, em que
pilotos de todas as regiões do mundo possam ter acesso à categoria e à competição em
condições de igualdade, para que este seja realmente um esporte mundial e com os
grandes talentos da atualidade.
Outro exemplo bem conhecido de fala xenofóbica foi a fala de Ron Dennis, em 2005,
na época, diretor da equipe inglesa Mclaren, contra Fernando Alonso, ganhador do título do
Mundial de Pilotos daquele ano. Ron Dennis não encarou bem a conquista do então novo
talento espanhol, que quebrou a sequência de cinco títulos consecutivos do heptacampeão
Michael Schumacher e disparou: “Acredito que há uma categoria de pilotos que vivem na
América do Sul, Espanha e Itália que não tem a disciplina necessária para ser campeão do
mundo1.” A fala do chefe da equipe inglesa é totalmente vazia, pois ele próprio foi chefe do
brasileiro Ayrton Senna na Mclaren, onde ele conquistou seus três títulos. Países europeus
desenvolvidos anglo-saxões querem ter a hegemonia no esporte, mas se esquecem de
grandes nomes, como o próprio Senna, que conviveu com Dennis, pilotos brasileiros como
o bicampeão Fittipaldi e o tricampeão Piquet, o pentacampeão argentino Juan Manuel
Fangio; os italianos Alberto Ascari, bicampeão e Nino Farina, campeão, entre outros
grandes pilotos latinos e de outras partes do mundo.
Essa visão de mundo xenofóbica e que não deixa de ser, implicitamente, racista, já
está mais do que ultrapassada por todas as teorias relevantes das ciências naturais e
humanas. No final do século XIX, surgiram teorias antropológicas e biológicas de que os
habitantes do continente americano e africano seriam inferiores e involuídos, mas, hoje, é
consenso entre os acadêmicos sérios de que não existem raças na humanidade.
Dispõem-se aí, que não existem também, povos e nações inferiores, e, em qualquer
nação do mundo, não há nada que impeça que nasça alguém com talento incomum para o
automobilismo, pronto para ser lapidado para ser um grande campeão de F1. O que existe
são as barreiras sociais, econômicas, raciais, de gênero, e no caso aí, de xenofobia que
podem impedir alguém de chegar na maior categoria de automobilismo em condições de
disputar um título mundial. Cabe lembrar que Marko também é responsável pelas categorias
de base da Red Bull Racing; Não que ele não vá levar em consideração talento, dinheiro 2
que o piloto traz para a equipe e tantas outras variantes na hora de promover alguém, mas

1 https://as.com/motor/2005/09/28/mas_motor/1127922623_850215.html
2 A Fórmula 1, infelizmente, ainda funciona assim, ainda mais em tempos de crise, o próprio Ayrton
Senna levava patrocínio para as equipes.
na hora de fazer escolhas difíceis entre atletas bem pareados e na hora do convívio do dia a
dia, frases como essa aparecem, porque o preconceito está bem guardado.
Assim como o racismo, o machismo, o capacitismo 3, a xenofobia gera uma série de
barreiras invisíveis - e outras mais visíveis - que são bem prejudiciais às carreiras dos
atletas do esporte à motor. Ser dispensado de uma seleção, simplesmente, por ser de uma
determinada nacionalidade; ouvir piadas frequentes sobre sua cultura - parece “pouco”,
afinal, piloto tem que ser “forte” e “está lá para correr”, dizem determinadas pessoas, mas
imagine ter sua cultura estigmatizada o tempo todo, como muitas vezes são as culturas
orientais, e ter até seu sotaque ridicularizado por narradores de F1, como acontece com o
chinês Zhou4; seus erros serem atribuídos a sua nacionalidade - para outro exemplo além
do Marko contra o Perez, lembre-se de Verstappen criticando Massa após uma fechada,
“Ele é brasileiro, não há o que dizer” 5, apesar de ter, depois, pedido desculpas aos
brasileiros mais tarde por esta declaração6; e tantos outros entreveros por conta da
xenofobia.
De um lado, é de se surpreender que, imediatamente após as declarações de
Helmut Marko, não se ouça fortes vozes da FIA, de diversos pilotos e de outros nomes
importantes da categoria em favor de Checo 7 Perez, já que se está em uma era em que
tanto se fala de direitos humanos. Por outro lado, é importante lembrar que Perez é o único
latino-americano da F1; as outras minorias parecem estar dispersas e/ou com medo de
serem também atacadas, caso se manifestem; os integrantes de grupos hegemônicos
aparentam estar indiferentes ou também mais interessados em não serem desprestigiados,
preocupados com o que seus fãs de países hegemônicos vão pensar caso digam algo
sobre o assunto. O resultado disso tudo é inércia ou quando muito, programas de ação
com muito marketing, mas sem resultados práticos, como foi o We Race as One (Nós
Corremos com Um, em uma tradução livre).
O que se deve fazer são políticas práticas e o mais rápido possível para que a
Fórmula 1 tenha mais equidade de países e nações e acabe com a xenofobia. Nesta
questão específica, a Federação Internacional de Automobilismo tem uma função muito
importante, porque ela controla as categorias de base e distribui punições em diversas
competições. É óbvio que as equipes de F1 têm uma função deveras relevante, mas elas,
na maior parte das vezes, dão a desculpa da meritocracia, que suas escolhas são baseadas
apenas em termos de talento e, em tempos de crise, um pouco mais para o dinheiro. Por
isso, via de regra, precisam receber estímulos das outras partes para agir. Contudo, a FIA
tem o poder de incentivar a formação de corridas na África, o que é um encorajamento a
criação de categorias de base por lá; pode punir membros do paddock que falam frases
como essa, da mesma forma que puniria racismo, por exemplo; e pode fazer programas
efetivos para que pilotos de países periféricos tenham mais acesso à Fórmula 1; entre
outras medidas. Cabe também ao público e à imprensa e patrocinadores se indignarem com
frases e ações xenófobas e se manifestarem criticamente contra elas.

3 Preconceito contra deficientes


4 primeiro chinês a disputar a Fórmula 1, iniciando na temporada de 2022 até o atual momento.
5 https://www.f1mania.net/f1/verstappen-critica-massa-por-fechada-e-brasileiro-nao-ha-o-que-dizer/
6 https://ge.globo.com/motor/formula-1/noticia/verstappen-faz-post-se-desculpando-por-declaracoes-
no-bahrein.ghtml
7 Para quem não acompanha a categoria com frequência, este é o apelido de Sérgio Perez.

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