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CONCEITO DE TIRANIA NA GRÉCIA ANTIGA

A época arcaica é o tempo das grandes migrações e da colonização. Esta, segundo


Tucídides(1.12. 4), principiou logo que houve estabilidade nas cidades. Assim, entre os finais
do séc.VIII e VI a. C., assistimos a deslocações dos Gregos em várias direcções e o
Mediterrâneo enche-se de colónias helénicas. É, pois, no decurso da época arcaica que o
fenómeno migratório se generaliza. A causa principal deste movimento estaria, segundo
Helena R. Pereira, em Estudos De História Da Cultura Clássica, na superpopulação de um
território cujo solo era extremamente pobre, e onde se verificava uma grande desigualdade
social exemplificada no caso típico de Hesíodo, o irmão diligente, e Perses, o irmão
preguiçoso[1]. A mesma autora explicita que as mais antigas migrações teriam sido as dos
Eólios e logo as dos Iónios, fugidos do continente no fim do segundo milénio antes de Cristo,
devido á chamada invasão dória estabelecendo-se nas ilhas do Mar Egeu e no litoral da Ásia
Menor, onde já no século IX a. C. constituíam uma anfictionia de doze cidades. Nesse
momento as póleis constituíam estados que se podem definir como aristocráticos, na medida
em que neles o poder político era monopólio de uma série limitada de famílias, que se
destacavam pela pretendida excelência da sua linhagem, combinada, à partida, com um
grande poder económico e social sobre uma grande parte da produção da terra e com amplas
atribuições no plano religioso e jurídico. Aqueles que se encontravam à cabeça das pequenas
pirâmides sociais de implantação rural rivalizam para conseguir um poder maior nessa super-
estrutura que é a pólis, pois agora existe a possibilidade de liderar todo um estado e conseguir
a supremacia sobre os grupos sociais que o integram. Assim, no seio da aristocracia começa a
questionar-se a ancestral estrutura piramidal. A pólis constituirá, pois, o espaço idóneo para a
activação das dissensões dentro da aristocracia. A criação de colónias, por sua vez, contribuía
para o desenvolver o comércio marítimo e a indústria. Por outro lado, o agricultor, reduzido à
miséria, restava-lhe como solução, entregar-se como escravo para saldar as suas dívidas.
Aumentando a escravatura, os homens livres já tinham menos quem os assalariasse. A
crescente expansão da economia monetária com a importação da moeda frente à economia
natural operou uma revolução na riqueza. Como refere Jaeger “agarrados às antigas formas de
economia, os nobres estavam num plano de inferioridade em face dos possuidores das novas
fortunas adquiridas no comércio e na indústria. O estado aristocrático era, assim, uma forma
política instável”[2]. São estes alguns motivos que conduzirão a um estado de insegurança
social na pólis e que irão abrir caminho à tirania grega, fenómeno histórico extensamente
difundido no mundo grego, predominantemente na época arcaica. Aliás, a surpreendente
unanimidade com que este fenómeno se produziu a partir do século VII, em quase todas as
cidades gregas, mostra que as causas do seu aparecimento eram, sensivelmente, as mesmas
em toda a parte. A partir de 650 a.C. e ao longo de cem anos ou mais, a tirania foi a forma de
governo mais usada nas cidades gregas. José Ribeiro Ferreira, na sua obra A Grécia Antiga,
explica como quase todas as cidades gregas acabaram por cair sob o domínio dos tiranos,
embora estes apareçam em primeiro nas cidades marítimas e comerciais que atingiram mais
cedo a evolução, referindo-se também ao seu carácter anti-aristocrático e à protecção que
prestaram às classes inferiores em que se apoiavam, contribuindo para a queda dos privilégios
da aristocracia e para um maior nivelamento social (pp. 72-125). Assim, encontramos tiranos
em Argos, em Epidauro, em Mégara, em Calcis, durante o século VI a. C. E Sícion também o
teve pelo espaço de cento e trinta anos sem interrupção, conforme referem Heródoto (I, 20) e
Aristóteles (Política, III, 8, 3). Também Tucídides no breve resumo da história do mundo grego
que coloca no início do seu relato sobre a guerra do Peloponeso, o historiador apresenta a
tirania como um momento histórico ao dizer: “Quando a Hélade se tornava mais poderosa e
tratava de adquirir mais do que nunca a riqueza, vimos geralmente , estabelecerem-se tiranias
nas cidades com o aumento dos rendimentos. (antes havia basileiai hereditárias com
privilégios económicos fixos). E a Hélade ia organizando a sua frota, fixando-se mais no mar”
(Tucídides, I. 13,1). Tucídides relaciona, deste modo, o aparecimento das tiranias no mundo
grego com o crescimento económico, a circulação da riqueza e o desenvolvimento do poderio
marítimo, concretamente com a invenção do trirreme. Assim, no século VII e começos do VI,
na maioria dos estados do Peloponeso surge a figura do tirano, sobre cuja novidade não cabe
dúvidas, pois trata-se de um nome novo, túραννos, não usado até então na língua grega, e
muito possivelmente de procedência oriental. O sofista Hípias de Élide, que escreveu pelo ano
400 a. C., afirma que a palavra túραννos se começou a utilizar em grego na época do poeta
Arquíloco, isto é, por volta do século VII a. C., sendo o sentido da palavra o mesmo que se
encontra no fragmento 22 DIEHL de Arquíloco, limitando-se este autor a qualificá-la de
“poderosa” , conforme tradução da Dra Helena da Rocha Pereira na Hélade: Não me importa o
ouro de Giges/ nem me domina a ambição, nem invejo/ as acções dos deuses. Não desejo a
tirania poderosa. / Longe dos meus olhos está tudo isso (frg. 22 Diehl). Assim, ao princípio, o
termo parece ser desprovido de qualquer associação odiosa que posteriormente veio a
adquirir, sobretudo quando, após a Guerra do Peloponeso, os Trinta Tiranos governaram
Atenas. De modo algum foi, pois, o regime negativo de que a literatura do século V e IV depois
se fará eco. Embora as reformas levadas a cabo pelos legisladores em muitas cidades
representem um grande avanço na evolução da vida na pólis, e em muitos casos tenha evitado
o derramamento de sangue, todavia não chegou a solucionar os problemas e
descontentamento entre uns e outros. Tal situação produziu em muitas cidades a tomada do
poder por um indivíduo, o tirano, ajudado por um exército seu e apoiado com frequência pelo
démos. Qualquer que tenha sido o sentido original do termo, o certo é não ter sido importado
da linguagem religiosa. Não se tratava de uma autoridade derivada do culto, de um poder
estabelecido pela religião, mas, como diz Helena da Rocha Pereira, de “um homem que sobe
ao poder pela força com o apoio da classe comerciante”(p134). Esta palavra designou, com
efeito, algo de muito inovador entre os homens. A obediência a certo homem, à autoridade
dada a este homem por outros homens. Poder de origem e natureza inteiramente humanos.
Este princípio fora desconhecido para os velhos eupátridas e só o supuseram possível quando
as classes inferiores, rejeitando o grupo da aristocracia, procuraram novo governo. Vejamos
alguns exemplos: Segundo Heródoto, em Corinto , o povo suportava a custo o poder absoluto
dos Baquíadas; Cípselo, testemunha do ódio que se lhes guardava, e vendo o povo à busca de
chefe, ofereceu-se para ser esse chefe, e o povo, aceitando-o, fê-lo tirano, expulsou os
Baquíadas e obedeceu a Cípselo (Heródoto, V, 92). Em Siracusa, no ano de 485, segundo o
mesmo autor, a classe inferior assenhoreando-se da polis, expulsou a classe aristocrática, mas
não pôde aguentar-se, nem governar e ao cabo de um ano teve de nomear um tirano
(Heródoto, VII, 155; Aristóteles, 2,6). Nomeavam um tirano pela necessidade da luta, em
seguida abandonavam-lhe o poder por gratidão. Só o aceitaram como recurso momentâneo e
enquanto o partido popular buscava o melhor regime. Assim, Aristóteles diz que “o tirano não
tem por missão mais do que proteger o povo contra os ricos. (...) O meio de chegar à tirania,
diz ainda o filósofo, está em ganhar-se a multidão, e ganha-se essa confiança declarando-se
inimigo dos ricos. Assim o fizeram Pisístrato em Atenas, Teágenes em Mégara, e Dionísio em
Siracusa” (Política, V, 8, 2,3; V, 4,5). O tirano fez sempre guerra aos ricos. Assim, conta
Aristóteles que, em Mégara, Teágenes “havia degolado os rebanhos dos ricos enquanto
pastavam junto ao rio” (Política 1305 a,), pondo, deste modo em evidência o emprego aberto
da violência num manifesto afã em empobrecer a aristocracia; também em Cumes Aristolemo
tirou as terras aos ricos para depois entregar aos pobres. Alguns, como Pisístrato, O mais
notável tirano em Atenas (560 – 529 a. C.), reinaram com benevolência e saber, ajudando a
resolver os problemas económicos e fazendo que as cidades progredissem em muitos
aspectos, dando à cidade uma época de paz, prosperidade e estabilidade. Deste modo, Rocha
Pereira, referindo-se à acção dos Pisístratos, diz que eles “fazem grandes obras, como a
construção do templo de Atena... e a do templo de Zeus Olímpico, abastecem de água a
cidade; tomam medidas económicas importantes, como os empréstimos aos lavradores em
dificuldades; efectuam reformas no culto... como a reorganização das Panateneias, com a
recitação ds Poemas Homéricos, e a instituição das Grandes Dionísias, junto das quais nascerá
o teatro”[3]. Segundo Finley, “a tirania surge então como solução possível para pôr fim ao
desiquilíbrio social nas cidades do mundo grego”[4]. Assim, o tirano grego é um mónarchos,
isto é, uma figura política que assume por princípio a totalidade dos poderes e as funções do
governo na polis sem outra legitimidade para lá da que o mesmo se outorga e sem um termo
estabelecido para o seu mandato. Pode ser um bom governante e ter inclusivamente a seu
favor potencialmente a maior parte da comunidade; ou pode exercer um poder despótico e
conservá-lo com o único apoio de uma tropa bem armada; pode decidir por si mesmo todos os
assuntos ou pode reunir a assembleia e manter as magistraturas, influenciando indirectamente
sobre as decisões a tomar. O tirano procurava interferir na organização social e política da
cidade-estado, e em mais de uma circunstância, tomou decisões que se aproximavam de uma
política de justiça social, procurando beneficiar os sectores sociais que não tinham privilégios.
Segundo o autor citado, a palavra não continha um juízo de valor sobre as suas qualidades
pessoais ou de governante. Com efeito os tiranos variam muito. Tirano era, assim, uma
palavra, originariamente neutra, significando o facto de um homem se apoderar do poder sem
ter autoridade constitucional legítima. De qualquer dos modos, segundo Raquel Lopéz Melero
e outros, a utilização do vocábulo túραννos na época arcaica é bastante complexa. Por vezes
parece funcionar com o sentido de “monarca” ou “rei”, desprovido de todo o juízo de valor,
isto é como sinónimo de basiléus : ou é sinónimo de basiléus ou se emprega para designar
aquele que alcança o poder e o exerce em oposição à aristocracia, o que poderá justificar a
introdução do novo vocábulo e o emprego preferencial frente a basiléus. Assim, a tirania na
Grécia antiga – especialmente em Atenas – constituiu-se numa forma de exercício de governo
na qual o titular - o tirano – assumia plenos poderes. De maneira geral, correspondeu a um
período de transição entre o governo da aristocracia e a democracia, representando,
indiscutivelmente, uma influência muito salutar no desenvolvimento económico e intelectual
da Grécia, pelo que ao termo “tirano” não era forçoso atribuir-lhe um sentido pejorativo,
podendo o tirano ser um excelente chefe. No que respeita à consideração da tirania como algo
oposto á democracia, que, como vimos, não é certamente característica da época arcaica,
temos um documento de finais do século VI. Trata-se de uma canção de bebedores que
celebra a Harmódio e Aristogíton, assassinos do tirano Hiparco, filho de Pisístrato: “Sempre a
sua fama permanecerá sobre a terra/ os queridos Harmódio e Aristogiton/ por terem dado ao
tirano a morte/ e tornado isónoma Atenas (frg. 896 Page). O autor diz que ao matar o tirano,
tornaram Atenas isónoma, sendo que a isonomia comporta o sentido de leis iguais para todos,
prefigurando, assim, o conceito de democracia. Se é certo que o termo não continha um juízo
de valor sobre as suas qualidades pessoais ou de governante, pois os tiranos considerados
individualmente variam muito, no entanto a tradição fala de tiranos que fizeram jus ao nome,
segundo a acepção do termo. Como diz Finley, “o poder militar sem controlo era um mal
inerente. Se não na primeira geração, então na segunda ou na terceira, os tiranos tornavam-se
habitualmente naquilo que a palavra hoje exprime”[5]. Assim, segundo Carl Grimberg, em
meados do século VI, Fálaris, que para manter a sua autoridade só conhecia a violência, “tinha
por costume queimar vivos todos os seus adversários no interior de uma estátua de bronze”.
[6] O próprio Sólon quando recorda nos seus poemas a reivindicação por certas pessoas de
uma partilha igualitária do território cívico, justifica, com as seguintes palavras, a sua recusa
com o desejo de não se entregar uma violência tirânica: “Se eu poupei a terra pátria, e não
lancei mão da tirania ou da amarga violência, poluindo ou desonrando a minha fama, não me
envergonho porque ceio que assim vencerei ainda mais todos os homens ( Sólon, Fr. 23 Diehl,
vv.8-12). Também em Teógonis encontramos algumas referências que são conotadoras da
gestação da tirania. Assim, dirigindo-se ao amigo Cirno, diz-lhe: “Não ajudes a crescer um
tirano, pelo que esperes dele, levado pelo desejo de ganâncias” (v. 323). Em Sófocles, o
despotismo arbitrário é também criticado nas palavras de Hémon dirigidas contra seu pai:
“Nenhuma pólis é pertença de um só homem”(Antígona, v. 737). Entretanto, a conotação
pejorativa do termo impõe-se definitivamente a partir do governo dos Trinta Tiranos, em 404
a.C. e da sua actuação brutal e sangrenta. A este propósito Heródoto, referindo-se a Periandro,
filho e herdeiro de Cípselo em Corinto, diz que no início foi mais brando que seu pai, embora
se tornasse mais cruel quando, tendo perguntado ao tirano Trasibulo de Mileto, como poderia
conservar o poder, conduziu este o enviado a um campo de trigo e começou a cortar diante
dos seus olhos as espigas que sobressaíam do conjunto da ceara. Periandro, a partir daqui,
compreendeu a mensagem e deu a morte ou desterrou os cidadãos mais importantes de
Corinto (Heródoto, 5,92). Depois da morte de Periandro a tirania extinguiu-se dando lugar a
uma oligarquia ampla que vinculava o poder político à capacidade económica. Não há que
pensar numa revitalização do velho clã postergado, mas, antes pelo contrário, que a tirania
havia esgotado a sua missão histórica e que os grupos sociais pressionavam sobre o regime
para constituir uma oligarquia mais ou menos orientada para a democracia. A tirania surge,
assim, como solução possível para pôr fim á desigualdade social nas cidades do mundo grego.
Ao originar um maior nivelamento social e ao contribuir para o desenvolvimento da
consciência política do dêmos poderá dizer-se que, de certo modo, a tirania preparou o
advento da democracia. Foi essa consciência que, após a queda da tirania em 510 a.C.,
permitiu evitar a reacção aristocrata ainda tentada por Iságoras com o apoio espartano. A
tentativa falhou porque o dêmos se impôs e elegeu Clístenes. Pode deste modo afirmar-se
que, neste sentido, muitas medidas tomadas pelos tiranos foram posteriormente incorporadas
nas instituições democráticas em Atenas. As tiranias vão conseguir manter-se durante duas ou
três gerações, tendo quase todas desaparecido antes de 500 a. C. O derrocamento do tirano
realizou-se geralmente sem necessidade do recurso à violência. O tirano quase sempre se
retirou do poder pressionado por alguma insurreição que o obrigava, inclusive, a exilar-se da
cidade. Os descendentes dos instauradores do regime tirânico, de modo geral, não
mantiveram as políticas de apoio às classes mais inferiores. Ao tornarem-se cada vez mais
violentos e cruéis deixaram de merecer as simpatias que tinham estado na base do seu acesso
ao poder. Como observa Políbio na sua teoria das crises e transformações dos regimes
políticos, a causa principal da queda dos tiranos é, em geral, a incapacidade dos filhos e netos,
que só herdam do pai a força e não o vigor espiritual assim como a má utilização do poder
recebido do povo num despotismo arbitrário. A tirania havia esgotado a sua missão histórica.
Entretanto, como diz José Ribeiro Ferreira “com o seu desaparecimento, instauram-se ora
oligarquias – tenham elas por base o nascimento, a riqueza ou nos dois – ora democracias,
mais ou menos evoluídas. Mas ao desaparecerem as tiranias, qualquer que seja o regime
instaurado, as póleis que elas deixam já não são as mesmas. Os poderes não estavam nas mãos
dos aristocratas mas centralizados nas diversas instituições que passam, daí em diante, quer se
trate de uma oligarquia, quer de uma democracia, a dirigir a pólis”[7]. Assim se cumpria a
evolução normal da cidade, segundo o sistema de Aristóteles: passagem da monarquia à
aristocracia; a esta sucedia a tirania e, por fim, a democracia (Aristóteles, Política, VII, I). [1]
Estudos de História da Cultura Clássica (1970), 3ªed. P. 131. [2] JAEGER, Werner (1979).
Paideia: A Formação do Homem Grego. Lisboa. Editorial Aster, p.252. [3] ROCHA PEREIRA,
Maria, Estudos de História da Cultura Clássica, 3º Ed., 1970, p.135. [4] FINLEY, M. I., Os Gregos
Antigos, Revista por José Ribeiro Ferreira, Ed. 70, P.36. [5] FINLEY, (1984), Os Gregos Antigos,
Ed. 70. P.36 [6] GRIMBERG, Carl, História Universal, Publicações Europa-América, p. 149. [7] A
Grécia Antiga, ed. 70, 1992, p.125.

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