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Doenças

Doenças em soja: entendendo as diferenças


entre biotróficos e necrotróficos
Carlos Alberto Forcelini
Engenheiro Agrônomo, Ph.D. Universidade de Passo Fundo - forcelini@upf.br

A
cultura da soja é uma das nossas bem mais suscetível a doenças. Fica cla-
maiores riquezas, e o sustentáculo ro, portanto, que a sustentabilidade da
da economia e da vida de muitas cultura dependerá, ainda mais fortemen-
pessoas em nosso país. Contudo, a cultu- te, do manejo a ser utilizado. Para isso, é
ra é ameaçada por vários desafios, entre fundamental conhecer as características
os quais se destacam as doenças, cujos e o funcionamento das principais doen-
danos se traduzem em perdas econô- ças que ocorrem em soja. Há grandes di-
micas significativas. Mesmo quando em ferenças, por exemplo, nas estratégias de
baixa intensidade, ou até de forma as- controle e nos seus resultados, quando
sintomática, as doenças afetam o rendi- aplicadas sobre biotróficos ou necrotró-
mento da cultura, causando a chamada ficos.
“fome oculta”.
São muitas as doenças que afetam Biotróficos
a soja no Brasil, entre elas a ferrugem
asiática, o mofo-branco, a antracnose, a Os diversos patógenos que cau-
mancha-alvo, o oídio e o complexo de sam doenças em plantas, especialmente
doenças de final de ciclo. Apesar de todos os fungos, podem ser classificados em
os esforços com relação ao seu manejo, dois grupos: biotróficos e necrotróficos.
seguramente, nenhuma delas diminuiu Os biotróficos são essencialmente pa-
de importância na última década. Ao rasitas obrigatórios e seu ciclo de vida
contrário, suas epidemias são freqüentes ocorre sobre a planta viva. Em soja, este
todas as vezes que a combinação de am- grupo inclui, principalmente, os fungos
biente e manejo lhes é favorável. Phakopsora pachyrhizi e Microsphaera
O melhoramento genético da soja diffusa, causadores da ferrugem asiática
tem nos proporcionado cultivares cada e do oídio, respectivamente (Figura 1).
vez mais produtivos. O desafio de co- Sua sobrevivência na entre-safra ocorre
lhermos 100 sacos/ha está próximo de em plantas de soja cultivadas (por isso o
ser alcançado, porém com um indivíduo vazio sanitário como estratégia de con-

Figura 1. Ferrugem asiática e oídio, exemplos de doenças causadas por fungos biotróficos. Fotos: Dirceu Neri Gassen e Carlos Alberto Forcelini

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poros) e termina como removido (lesão
que não produz mais esporos, então não
contribui mais para o aumento da epi-
demia). Os esporos produzidos durante
o período infeccioso vão originar novas
lesões no tecido sadio. Esse processo foi
denominado “via horária de infecção” e
obedece a uma taxa de infecção (R), re-
presentada pela equação R = N x e, onde
N é o número de esporos disponíveis e
a sua eficiência de infecção. Resumindo,
a epidemia aumenta pela formação de
novas lesões, que depende dos esporos
que são produzidos. Os componentes
ou agentes da epidemia são o inóculo
inicial, o período latente, o período in-
feccioso, o número de esporos e a sua
eficiência. Quanto maior o inóculo ini-
cial, mais curto o período latente, mais
longo o infeccioso e mais numerosos e
eficientes os esporos produzidos, maior
Figura 2. Representação do funcionamento do ciclo de doença baseado na formação de no- é a epidemia.
vas lesões, definido como via horária de infecção. Modificado de Bergamin Filho & As ferrugens, em soja, trigo e ou-
Amorim, 1996. tras culturas, levam esse processo ao
“pé da letra”. Vejamos. Sob temperatu-
ra entre 22 e 24 oC e presença de mo-
Tabela 1. Estimativa do número de esporos de Phakopsora pachyrhizi produzidos em um hectare
lhamento foliar, os esporos germinam e
de soja.
infectam os sítios sadios em menos de 8
horas. O período latente leva de 7 a 9
dias. A produção de esporos durante o
período infeccioso pode se estender por
até 15 dias. O número de esporos produ-
zidos (Tabela 1) pode ser superior a 200
trilhões por hectare. E a viabilidade dos
esporos recém liberados das urédias é su-
perior a 90%.
Percebe-se, claramente, que a fer-
trole da ferrugem), em soja guacha ou rugem é uma verdadeira máquina de
tigüera e outros hospedeiros, a partir dos produzir esporos. Esse é o seu ponto for-
quais produzem grande quantidade de te, é o que a faz tão explosiva. Por este
esporos pequenos e leves, que são dis- motivo, as estratégias de controle para a
seminados pelo vento para estabelecer ferrugem devem ter como objetivo re-
novas infecções na lavoura. Estes fungos duzir a produção e/ou a viabilidade dos
são considerados parasitas evoluídos, esporos. Os poucos cultivares de soja
uma vez que se alimentam e se repro- resistentes (ou parcialmente resistentes)
duzem diretamente nos tecidos vivos do disponíveis comercialmente tem essa ca-
hospedeiro. racterística, formam menos lesões, me-
Os professores Armando Bergamin nos urédias e menos esporos. Quanto
Filho e Lilian Amorim, da ESALQ/USP, em aos fungicidas, é imprescindível que estes
seu livro Doenças de Plantas Tropicais, tenham ação anti-esporulante, como é o
publicado em 1996, representam dida- caso das misturas de triazóis + estrobilu-
ticamente os componentes da epidemia rinas (Tabela 2), especialmente em apli-
por diversos tipos de patógenos. O fluxo- cações preventivas, como demonstrado
grama da Figura 2 pode ser usado para por Virgínia Viero em sua dissertação de
explicar o funcionamento da ferrugem, mestrado na UPF. Também é importan-
por exemplo. te que os mesmos ajam na germinação
Inicialmente, o tecido sadio é infec- do esporo, ou na penetração do fungo
tado pelo inóculo inicial (y0) composto na planta, como também é o caso das
por esporos, passa por um período la- estrobilurinas (triazóis só agem 18 a 24
tente (p) (tempo entre a entrada do pa- horas após iniciada a germinação do es-
tógeno e a produção de novos esporos), poro). Por este motivo, as estrobilurinas
segue por um período infeccioso (i) são a base para o manejo da ferrugem
(tempo em que a lesão produz novos es- atualmente. E futuros fungicidas, para

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Tabela 2. Número de lesões, urédias, esporos produzidos e germinados/cm² de área foliar, sob
aplicação preventiva ou curativa de uma mistura de triazol + estrobilurina, visando ao
controle da ferrugem asiática em soja. UPF, Passo Fundo, 2008.

serem efetivos em relação a esta doença, fungos sobrevivem em sementes e restos demia por fungo biotrófico, os necrotró-
deverão contemplar estas características. culturais, portanto, sua fonte de inóculo ficos têm um adicional, a expansão da
A grande maioria dos fungicidas está na própria lavoura a ser cultivada. Se- lesão, representado pela letra K. O pro-
somente é ativa em tecido vivo, ain- gundo trabalhos realizados na UPF, pelo cesso de expansão de lesão compensa a
da funcional. Como Phakopsora é um professor Erlei Melo Reis e colaborado- menor capacidade de produção e disse-
fungo biotrófico, que se alimenta e res, a palha da soja demora até 27 meses minação de esporos destes fungos. Além
esporula em tecido vivo, fungicida e para decompor totalmente. Enquanto há disso, a expansão é menos dependente
patógeno se encontram no tempo e resto cultural presente, há alimento e es- dos fatores ambientais, especialmente a
no espaço, o que facilita o controle da tes fungos ali permanecem. Estes fungos umidade relativa e o molhamento foliar,
doença, especialmente se o produto produzem menos esporos que os biotró- que são requeridos para a esporulação e
apresentar boa movimentação sistêmi- ficos mencionados acima, alguns desses infecção, respectivamente.
ca. O mesmo já não acontece com os esporos são maiores e pesados, são mais A menor dependência do esporo
necrotróficos, como veremos a seguir. dependentes de água para sua liberação, também significa um escape à ação dos
o que limita sua disseminação pelo vento fungicidas que agem sobre a sua forma-
Necrotróficos a curtas distâncias. Uma vez presentes na ção ou germinação. Essa é uma das ra-
planta hospedeira, esses fungos liberam zões para a menor eficácia dos fungicidas
Os necrotróficos apresentam uma toxinas que matam os tecidos adjacentes no controle das doenças de final de ciclo,
fase parasitária sobre a planta hospedei- ao local de infecção, onde, então, eles se antracnose e mancha-alvo, quando com-
ra e outra saprofítica sobre seus restos alimentam e se reproduzem formando parados à ferrugem. Há pouca ou nenhu-
culturais, sendo chamados de parasitas novos esporos. ma ação dos fungicidas sobre a expansão
facultativos. Vários fungos em soja têm Os necrotróficos fazem uso da via da lesão.
esta característica (Figura 3): Cercospora horária de infecção e também da anti- Outro fato que compromete a
sojina (mancha olho-de-rã), Cercospora horária (Figura 4), caracterizada pela ação dos fungicidas sobre os fungos
kikuchii (cercosporiose), Septoria glycines expansão das lesões existentes, através necrotróficos é que a produção de es-
(mancha-parda), Colletotrichum trunca- da produção de toxinas e subseqüen- poros por estes se dá nos tecidos mor-
tum (antracnose), Corynespora cassiicola te colonização das áreas mortas (Figura tos pelas toxinas, portanto não fun-
(mancha-alvo), Sclerotinia sclerotiorum 5), como mencionado acima. Além dos cionais, onde não há movimentação e
(mofo-branco), Phomopsis sojae (quei- componentes tradicionais de uma epi- ação pelos fungicidas.
ma da haste e da vagem) e outros. Estes

Figura 3. Doenças de final de ciclo, mancha-alvo, antracnose e mofo-branco, exemplos de moléstias causadas por fungos necrotróficos. Fotos:
Dirceu Gassen.

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mento da infecção através de aplicações
preventivas, para que houvesse ação so-
bre o esporo em germinação. Considere-
se, entretanto, que doenças por fungos
necrotróficos se originam a partir de
sementes e restos culturais infectados,
e que infectam a planta de baixo para
cima, onde o microclima é mais úmido e
favorável. Paralelamente, a produção de
esporos em restos culturais é contínua e
intensa, resultando em uma inoculação
constante da planta. Portanto, seriam
necessárias várias aplicações seqüenciais,
sob curtos intervalos, o que é inviável. As
melhores formas de reduzir esta inocu-
lação contínua é através da rotação de
culturas e da adubação verde para acele-
rar a decomposição de restos culturais da
cultura principal.
Os cenários presente e futuro pre-
ocupam quanto às doenças de final de
ciclo, antracnose, mancha-alvo e mofo-
Figura 4. Representação do funcionamento do ciclo de doença baseado na formação de novas branco. Manejar estas doenças é bem
lesões (via horária de infecção) e na expansão de lesão (via anti-horária). Modificado mais complicado que controlar a ferru-
de Bergamin Filho & Amorim, 1996. gem asiática. A continuidade da mono-
cultura de soja tornará esse desafio ain-
O uso de outros fungicidas (ben- freqüência, podendo, inclusive, resultar da maior. O desenvolvimento de novos
zimidazóis) tem sido recomendado para em perda de sensibilidade (resistência) fungicidas ou misturas não é a saída para
controlar doenças por fungos necrotrófi- por parte do fungo. o problema. A sustentabilidade da cul-
cos na fase vegetativa da cultura da soja. Toda a generalização é perigosa, tura dependerá, fundamentalmente, da
Este mesmo autor já fez recomendação mas deve-se admitir que o controle de rotação de culturas, especialmente nas
semelhante em relação à antracnose e doenças causadas por fungos necrotró- regiões mais quentes e úmidas, onde a
ao mofo-branco. Quanto à mancha-alvo, ficos via, somente fungicida, será algo ocorrência de tais doenças é maior.
doença que teve sua ocorrência aumen- muito precário. Este só trará alguma con-
tada significativamente em alguns culti- tribuição se usado em complementação Referências
vares mais suscetíveis, resultados recen- a outras medidas preventivas (Figura 6),
tes de pesquisa têm mostrado pouco ou como adubação equilibrada, arranjo po- BERGAMIN FILHO, A. & AMORIM, L. Doen-
nenhum efeito desta prática. Aplicações pulacional adequado, uso de sementes ças de plantas tropicais: epidemiologia e
isoladas ou seqüenciais de benzimida- tratadas e, principalmente, a ROTAÇÃO controle econômico. São Paulo: Ceres, 1996.
289 p.
zóis, mesmo em doses maiores, não DE CULTURAS, que é pouco praticada.
resultaram em controle significativo da Como os fungicidas agem pouco VIERO, V. C. Epidemiologia comparativa en-
tre a ferrugem asiática da soja e a ferrugem
doença. Devido ao seu baixo custo, estes sobre a expansão das lesões já estabeleci-
da folha do trigo. Dissertação de Mestrado
produtos têm sido usados com grande das, a alternativa seria evitar o estabeleci- UPF,

Figura 5. Sintomas da mancha-alvo em folío-


los de soja, mostrando o processo
de expansão de lesão. Foto: Antô-
nio Sérgio Ferreira Filho Figura 6. Esquema de manejo integrado de doenças por fungos necrotróficos em soja.

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