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I.

INTRODUÇÃO: esforços multissectorial, com destaque para os sectores da segurança


(polícia), migração, ação social, saúde e trabalho, assim como o
A violência contra a mulher e a criança é uma realidade de preocupação a envolvimento do sector privado e da sociedade civil no sentido da
nível mundial. Representa um problema de saúde pública e de violação prevenção de novas formas de violência e de resposta à vítima e às suas
de direitos humanos de crescente preocupação na África Sub-Sahariana e famílias1.
constitui um dos maiores problemas socioculturais e de saúde pública em
Moçambique. Em Moçambique milhares de crianças têm sido vítimas das O presente relatório é uma revisão documental existente no âmbito da
mais atrozes formas de violência física, sexual, económica e psicológica, violência (e abuso sexual) contra crianças em Moçambique. O Ministério
que põe em causa o desenvolvimento saudável destes, com graves da Saúde - Departamento de Saúde Mental (MISAU-DSM) em cooperação
consequências sociais, culturais e económicas. com o UNICEF realizou este relatório no intuito de obter informação que
lhe permita conhecer em detalhe a condição atual da criança vítima de
Em Moçambique, têm se registado com frequência fenómenos que abusos e violência em Moçambique, avaliar serviços existentes e criar
atentam fundamentalmente contra a segurança, integridade e o mecanismos multidisciplinares coordenados, integrados e uniformizados
desenvolvimento físico e psicológico saudável e harmonioso da criança. de resposta à vítima. O trabalho advém de uma cooperação árdua de
Entre os fenómenos de destaque são os vários tipos e formas de violência envolver os diferentes organismos governamentais (particularmente
praticada contra as crianças como sejam o abuso e exploração sexual, o MMAS, MINT, MISAU, Procuradoria, MIJUS, MINED) e as organizações da
trabalho infantil, o tráfico de crianças, a violência doméstica, a violência sociedade civil e internacional (ONG’s) na eliminação deste mal. Este
psicológica e a violência física que ocorre principalmente no seio familiar. relatório pressupõe que os mecanismos de proteção da criança vitima de
Estes são fenómenos que atentam contra os direitos humanos básicos e violência e o sistema de encaminhamento e acompanhamento de casos
contra os direitos à integridade e dignidade física e moral das crianças. (justiça, proteção e recuperação psicológica e social) do sistema nacional
de saúde de Moçambique é disperso e não uniforme comprometendo a
A respeito, o Estado Moçambicano tem vindo a assumir, gradualmente, eficácia da resposta. Exploram-se as implicações sociais e económicas
compromissos internacionais e nacionais no sentido da eliminação desta realidade, reconhecem-se fragilidades dos modelos de apoio às
progressiva de todas as formas de violência. O governo Moçambicano em vitimas e obstáculos socioculturais que favorecem o fenómeno, e
conjunto com outras organizações nacionais e internacionais para o utilizam-se os resultados dos estudos e a visível falta de coordenação e
desenvolvimento e proteção da mulher e da criança tem cooperado no uniformização das redes de suporte atuais para fortalecer os programas
desenvolvimento de diversos estudos para um melhor entendimento da existentes e a necessidade de desenvolver estratégias e mecanismos de
situação de forma a criar estratégias efetivas e planos de ação resposta de saúde mais efetivos e sustentáveis no combate a todas as
sustentáveis de prevenção e resposta à vítima de violência, abuso e formas de violência contra as crianças no país.
exploração sexual. O combate a todas as formas de violência contra a
criança é urgente, fundamental e uma prioridade para o país, no geral.
Consciente da complexidade do fenómeno da violência o governo de
Moçambique tem evidenciado a necessidade de uma uma conjugação de
1
MMAS (2006). O Plano Nacional de Ação Para a Criança (PNAC). República de Moçambique: Maputo, p.14.

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Complexo, o problema de violência contra crianças exige uma resposta fortalecimento dos serviços de resposta psicológica e psicossocial à
intersectorial e multidisciplinar que inclui componentes de promoção, crianças vítima de violência e abuso sexual em Moçambique, igualmente
prevenção, sensibilização e reabilitação. Em contexto de saúde pública e com destaque para o Ministério da Saúde.
considerando a falta de um mecanismo de suporte às vitimas coordenada
e uniformizada a nível nacional e regional ou a nível dos próprios sectores
este relatório dará enfâse à reabilitação emocional, psicológica e
psicossocial de mulheres e crianças vítimas de violência. Apesar de
centrado na proteção e resposta à criança, ao longo do relatório inclui-se
uma pesquisa no âmbito do apoio dado às vítimas de violência doméstica
em geral. Esta pesquisa é complementar e deve-se ao enorme número de
casos de violência doméstica contra mulheres e raparigas existentes no
país. Acresce-se a contestação de que o apoio à mulher vítima de
violência doméstica com filhos constitui um auxílio à própria criança
proporcionando que esta tenha o direito a serviços de reabilitação e que
lhe seja dada a possibilidade de viver num ambiente livre de violência.

Num primeiro momento este trabalho apresenta as definições dos tipos e


formas de violência extrema contra a criança mais comuns em
Moçambique. Numa segunda instância apresenta os resultados de
diversas investigações e dados estatísticos indicativos da situação atual e
magnitude de violência contra crianças no país (em particular violência
doméstica, abuso sexual, exploração sexual e tráfico de crianças), e
oferece ao leitor uma reflexão sobre os seus riscos e os factores
protetores destas práticas. Segue-se uma descrição de modelos e planos
de intervenção multissectoriais, limitações e obstáculos no combate às
diferentes formas de violência contra a criança no país. Finalmente
apresentam-se conclusões e recomendações. Num segundo momento
apresentam-se as leis nacionais e internacionais de proteção da criança e
combate à violência e um mapeamento dos serviços públicos de resposta
psicológica e psicossocial à criança vítima de violência e abuso sexual a
nível nacional e de apoio a vítimas de violência doméstica, com enfâse
nos serviços do Ministério da Saúde. Por último, fazem-se contestações e
recomendações finais para cada sector no sentido de promover o

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II. OBJECTIVOS DO ESTUDO crianças vítimas de violência e abuso sexual, e vítimas indiretas de
violência doméstica em Moçambique.
II.1 Objectivo Geral Fazer recomendações de como reforçar a colaboração entre os
O estudo teve como objectivo principal fazer uma pesquisa bibliográfica organismos governamentais e os serviços de apoio à criança e à mulher
sobre a violência e abuso sexual contra crianças em Moçambique. Este da sociedade civil no sentido de um atendimento integrado.
primeiro objectivo surgiu de base a um relatório complementar de
mapeamento dos programas públicos de resposta psicológica e III. METODOLOGIA
psicossocial às crianças (e adolescentes) vítimas de violência e abuso
sexual disponíveis no país com o intuito de identificar pontos fortes e O estudo baseou-se numa revisão bibliográfica de cerca de oitenta (80)
lacunas de forma a fortalecer os serviços e reforçar a cooperação e o publicações entre livros e artigos existente sobre a violência e abuso
atendimento integrado à vítima. sexual de crianças em Moçambique e cerca de dez (10) publicações e
relatórios acerca da violência doméstica em Moçambique. No âmbito
II.2 Objectivos Específicos deste estudo, investigou-se ainda quais os Planos Estratégicos e Planos de
Identificar os tipos de violência contra a criança mais comuns em Ação Governamentais e Sectoriais e os programas do Ministério da Saúde
Moçambique; (MISAU) de resposta e reabilitação psicossocial às crianças vítimas de
Identificar os potenciais riscos da violência e abuso sexual; violência e abuso sexual a nível nacional, provincial e distrital. Todas as
Analisar os factores socioculturais que favorecem e protegem a publicações são datadas entre 1990 e 2010.
ocorrência da violência e abuso sexual de crianças em Moçambique;
Identificar e Mapear as áreas (geográficas, contextos e sectores) de maior A revisão bibliográfica permitiu recolher informação e conclusões de
ocorrência da violência e abuso sexual de crianças em Moçambique; carácter qualitativo e quantitativo produzidas e disponíveis a nível local e
Identificar lacunas e áreas de pesquisa futura; internacionalmente sobre a violência e abuso sexual de crianças em
Fazer recomendações de como ultrapassar os obstáculos que protegem a Moçambique. Da análise da bibliografia em questão pretende-se clarificar
violência e o abuso sexual em Moçambique. sobre a ocorrência de casos de violência e abuso sexual no país,
Identificar e mapear os programas e serviços públicos (mapa) que dão identificar os principais contextos em que acontecem e compreender
apoio psicológico e psicossocial à vítima de violência e abuso sexual a melhor as particularidades nas formas de violência e abuso sexual mais
nível nacional, provincial e distrital em Moçambique; comuns nomeadamente os aspectos que influenciam a sua ocorrência e
Identificar e mapear os programas e serviços públicos (mapa) que dão dificultam a sua eliminação no contexto Moçambicano e as suas
apoio psicológico e psicossocial às vítima de violência doméstica que têm consequências no desenvolvimento saudável e prosperidade económica
filhos e a forma como integram estes filhos nesses programas a nível da sociedade. Atinge-se assim uma melhor compreensão da dimensão do
nacional, provincial e distrital em Moçambique; fenómeno e as suas implicações no país. Num último momento, valemo-
Identificar as lacunas existentes nos serviços disponíveis de apoio nos das recomendações dos autores dos estudos já realizados e incluídos
psicossocial à vítima de violência e abuso sexual; nesta revisão e das conclusões da análise dos programas de resposta
Fazer recomendações de como melhorar a identificação e reabilitação de psicológica e psicossocial às vítimas e dos planos estratégicos ministeriais

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existentes nesta área para apresentar as nossas recomendações finais.

Esta revisão permite dar a conhecer em que medida o fenómeno foi


explorado, identificar as principais fontes de informação, as lacunas e a
qualidade dos estudos e conhecer quais os planos e as estratégias de
ação e/ou programas de resposta existentes de forma a definir linhas
claras de orientação para o futuro.

A revisão partiu essencialmente da recolha de informação em fontes


primárias (livros, relatórios de estudo, revistas técnicas e de
especialização, recensões bibliográficas, inquéritos quantitativos e
legislação e estratégias e planos de ação ministeriais) particularmente
documentos disponíveis on-line, e publicações de entidades
governamentais e não governamentais que intervêm na área. A
informação documental foi posteriormente complementada com
informação sobre as estratégias e os planos de ação e os programas
governamentais na resposta e acompanhamento psicológico psicossocial
às vítimas de violência e abuso sexual em Moçambique.

Na análise dos textos bibliográficos tivemos em orientação alcançar


informação sobre os seguintes aspectos: tipos de violência física e sexual
mais comuns em Moçambique; principais causas e factores de proteção
da violência e abuso sexual de crianças no geral e raparigas, em
particular; natureza e dinâmica da resposta nacional ao fenómeno em
particular políticas, estratégias e ações específicas de prevenção e
resposta por parte dos ministérios mais envolvidos no combate ao
fenómeno (MINT, MINED, MISAU, MJ, MMAS); colaboração
multissectorial no atendimento integrado à criança vítima de violência e
abuso sexual; reforçar as áreas de intervenção e evidenciar
recomendações para componentes de resposta psicológica e psicossocial
à criança vítima de violência e abuso sexual em Moçambique.

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IV. VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA EM MOÇAMBIQUE violência psicológica (insultos, humilhação, etc.), discriminação,
negligência e maus-tratos.3
A violência e o abuso sexual de crianças são violações sérias dos Direitos
Humanos e dos Direitos das Crianças, compromete que esta se possa Há alguns grupos sociais que, pelas suas características de
desenvolver física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma desenvolvimento e/ou situacionais (expostas a dificuldades extremas), se
saudável e harmoniosa, coíbe a sua liberdade, dignidade e o seu direito encontram em maior risco à sujeição de violência e abuso sexual e
ao amor, proteção e segurança.2 A violência tornou-se, nos últimos anos, consequentemente apresentam maior risco de desenvolverem problemas
matéria de saúde pública pelas graves implicações que pode ter na saúde físicos, perturbações mentais e distúrbios de comportamento. As
física e mental das vítimas/sobreviventes e das suas famílias. mulheres e raparigas são particularmente vulnerável à violência e ao
Consequentemente a violência contra as crianças é um dos factores que abuso. Estas são frequentemente o alvo de diferentes formas de violência
mais priva o desenvolvimento e prosperarão socioeconómica dos países a e são sujeitas a sucessivas discriminações e tratamento desigual,
curto e longo prazo, acontece em todo o lado, em todos os países, em agravado quando vivem em condições de pobreza extrema. Em todas as
todas as sociedades e em todas os grupos sociais. Acontece em casa, nas sociedades as mulheres e raparigas são particularmente sujeitas ao abuso
escola, no trabalho, na rua, em todas as faixas etárias, em todas as classes físico, sexual e psicológico tanto na vida pública como na privada. São
económicas, nas zonas rurais e urbanas do país e apresenta-se em vítimas de violação, abuso sexual, assédio e intimidação no local de
diferentes formas como sejam a violência física, psicológica, económica, trabalho. Elas são particularmente vulneráveis à violência sistemática em
doméstica, abuso sexual, tráfico, exploração e negligência. situações de guerra. Exploração sexual para fins comerciais, gravidez
forçada, esterilização e aborto forçado são algumas das tantas formas de
A nível global e apesar das consequência poderem variar de acordo com a violência de que muitas mulheres e raparigas são vítimas em
natureza e gravidade da violência infligida de uma maneira geral as Moçambique. Todos estes atos violam o direito ao respeito e liberdade e
repercussões a curto e longo prazo são bastante graves e as sua comprometem o desenvolvimento saudável destas mulheres e crianças,
implicações na saúde física e psicológica são variadas. Quaisquer das suas famílias e da sociedade em geral4.
situações de violência extrema, ou mesmo pequenos atos de violência e
abuso diários podem ter efeitos muito prejudiciais e consequências Em Moçambique, embora os dados quantitativos sejam limitados, nos
desastrosas no desenvolvimento saudável destas crianças. últimos anos, foram realizados vários estudos que demonstram uma
Surpreendentemente a maior parte dos atos de violência contra crianças incidência significativa de várias formas de violência e abuso contra
é realizada por pessoas que eles conhecem e que eles deveriam ser crianças no país. A violência pode tomar formas como sejam violência
capazes de confiar como sejam os próprios pais, namorados(as), esposas física, violência sexual, violência psicológica e violência económica. São
e parceiros, colegas de escolar, professor e empregadores. A violência ainda comuns abuso sexual e exploração sexual, privação e negligência,
contra crianças apresenta várias formas como sejam violência física, particularmente quando as crianças são do sexo feminino (raparigas).

3
UN (2006). Secretary General Study on Violence Against Children at http://www.unviolencestudy.org/
2 4
Convenção dos Direitos da Criança (Resolução nº19/90) MISAU (2006). Estratégia e Plano de Ação de Saúde Mental. República de Moçambique: Maputo.

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Constata-se que também em Moçambique, ao contrário das famílias e e violência perpetrada ou condenada pelo Estado. Como salientado na
das instituições (orfanatos, escolas, instituições humanitárias) definição da Organização Mundial de Saúde a violência assume várias
potenciarem o amor, a proteção e segurança física e emocional como formas (Imagem 1). As formas mais frequente e extremas de violência
deviam nestes ambientes íntimos ocorrem as formas mais atrozes de interpessoal são a violência física, sexual e psicológica e privação e/ou
violência contra mulheres e crianças deixando-as mais vulneráveis a negligência são maioritariamente praticadas contra mulheres e a crianças
desenvolver perturbações de ordem física e emocional. Destacam-se atos e ocorrer em diferentes meios e ambientes familiares, e na comunidade:
por parte dos membros das famílias5 e dos membros das instituições a ambientes sociais e profissionais.
que as crianças pertencem6. Imagem 1- Violência Interpessoal (OMS, 2002)8
Em particular, a
A incidência da violência quer a nível doméstico quer a nível da violência contra
comunidade, é um fenómeno preocupante da sociedade moçambicana. mulheres é definida
Estima-se que a maioria das mulheres e raparigas em Moçambique tenha pela ONU como
sido vítima de violência e/ou abuso sexual em algum momento da sua “qualquer ato de
vida o que resulta em muitos casos de gravidez e casamento precoce, alta violência de género
incidência de abandono escolar e no atual aumento significativo do que resulta, ou é
número de casos de infeções sexualmente transmissíveis (ISTs), HIV/SIDA susceptível de causar
entre o sexo feminino, particularmente raparigas menores de 18 anos. danos físicos, sexuais
ou mentais ou
Definição de violência sofrimento para a mulher incluindo ameaças, coerção ou privação
arbitrária de liberdade, que acontece quer no âmbito público como no
Segundo a OMS a violência é: “o uso intencional da força física ou poder, privado”9. Com a própria definição sugere a violência contra as mulheres
ameaça ou real, contra si mesmo, outra pessoa, ou contra um grupo ou baseia-se sobretudo em atos de violência com base no género, não se
comunidade, que resulte em ou tenha alta probabilidade de resultar em pode dizer que sejam, portanto, exclusivos às pessoas do sexo feminino
lesão, morte, dano psicológico, mau desenvolvimento ou privação” 7 com mais de 18 anos mas a qualquer ser do sexo feminino, incluindo
Podem ser manifestações de violência de natureza física, sexual e meninas e raparigas.
psicológica que ocorrem na família e na comunidade em geral, incluindo a
agressão física, o abuso sexual de crianças, violação, mutilação genital e A violência contra crianças, particularmente raparigas é um outro aspecto
outras práticas tradicionais lesivas às mulheres, violência não conjugal e principal de preocupação ao nível internacional. Os números elevados são
violência relacionada com a exploração de mulheres, prostituição forçada assustadores e a maioria dos atos são igualmente cometidos por pessoas
próximas à vítima, em especial familiares. São ainda frequentes casos de
5
FDC (2008). Violência contra menores em Moçambique: Revisão de Literatura. Maputo.
6 8
ECPAT International (2007). Confronting the Commercial Sexual Exploitation of Children in Africa. Disponível WHO (2002). World report on violence and health (WRVH).
9
electronicamente: http://www.ecpat.net/EI/Publications/Journals/Confronting_CSEC_ENG.pdf WHO (2009). Violence against women. Fact sheet N°239 , November. Disponível eletronicamente:
7
WHO (2002). World report on violence and health (WRVH), p.5. http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs239/en/

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abuso nas escolas e ambientes educacionais, nas instituições de pode acontecer no seio da família, na escola e pode ser perpetrada por
acolhimento e de justiça, nos locais de trabalho e na comunidade10. De pessoas próximas e ou estranhos. No entanto, sabe-se que a maioria dos
entre as várias formas de violência destacam-se o abuso por figuras de casos de violência sexual ocorre contra adolescentes e crianças, em
autoridade (como professores, oficiais de policia, e patrões), tráfico para particular contra raparigas, e são cometidos por pessoas da própria
exploração laboral e sexual e práticas tradicionais como o casamento família.14
precoce forçado.
IV.1. TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA
A violência física como o próprio nome indica é qualquer ato ou omissão
que produza um dano à integridade corporal da criança. Os atos mais Em Moçambique, como em todos os países, a violência ocorre na família,
frequentes de violência física no país são: as ofensas corporais voluntárias na escola, no trabalho e na comunidade, e é particularmente comum no
(esbofetear, pontapear, morder ou esmurrar), outras ofensas qualificadas âmbito familiar e entre parceiros íntimos. No âmbito desta revisão
como sejam espancamentos e ameaças de integridade física11. privilegiam-se as formas mais comuns de violência física e psicológica
“A violência psicológica ou agressão emocional é caracterizada por extrema e violência sexual contra a criança em Moçambique a saber a
rejeição, depreciação, discriminação, humilhação, desrespeito e punições violência doméstica e/ou familiar, abuso sexual, casamento prematuro,
exageradas. Trata-se de uma agressão que não deixa marcas corporais exploração sexual para fins comerciais, tráfico (para diversos fins).
visíveis, mas emocionalmente causa cicatrizes para toda a vida e é às
vezes tão ou mais prejudicial que a agressão física.” 12 São outros Apesar de muitas vezes os critérios de diferenciação das formas de
exemplos de agressões emocionais e psicológicas: a ridicularização e violência contra crianças serem ténues e a manifestação das diferentes
critica constantes, ameaças de agressão física, controlo excessivo ou formas de violência muitas vezes coexistir, esta análise sugere a
isolamento. A violência psicológica é a maior forma de violência no país e separação dos tipos de violência contra a criança de forma a tornar a
coexistente e normalmente antecedente a outras formas de violência13. compreensão da dimensão de cada problema e das suas principais causas
mais fácil. Esta apresentação facilitará ainda, posteriormente, na análise
“A violência sexual, por sua vez consiste em obrigar alguém a manter dos programas nacionais de prevenção e resposta psicológica e
contactos sexuais não desejados, o que inclui relações sexuais, mediante o psicossocial a cada fenómeno considerando que as estratégias de ação, a
uso da força, intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipulação, forma de abordar os temas, e as necessidades legais, físicas, sociais e de
ameaça ou qualquer outro ato que anule ou limite a vontade pessoal.” Tal apoio às vítimas de cada forma de violência terem algumas características
como as outras formas de violência a violência sexual pode ocorrer em específicas que importa realçar.
ambientes distintos como no âmbito de uma relação conjugal ou íntima,
10
UN (2006). Secretary General Study on Violence Against Children. Available at: http://www.unviolencestudy.org/
11
MMAS (2008). Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher (2008-2012). República de
Moçambique: Maputo
12
MISAU/WLSA Moçambique (2010). Consequências Psicológicas da Violência Doméstica Contra as Mulheres:
Formação para Atendimento em Violência de Género. República de Moçambique, p. 4-7.
13 14
MMAS (2008). Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher (2008-2012). República de MISAU/WLSA Moçambique (2010). Consequências Psicológicas da Violência Doméstica Contra as Mulheres:
Moçambique. Formação para Atendimento em Violência de Género. República de Moçambique, p. 12-13.

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IV.1.1. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E/OU FAMILIAR contra qualquer crianças que a testemunhe no seu seio familiar e cresça
num ambiente de hostilidade e violência entre os seus tutores.
Definições de Violência Doméstica e/ou Familiar
O uso do termo violência familiar, sendo mais abrangente a qualquer
Um dos tipos de violência contra a criança mais comuns, no geral e em forma de violência que ocorre no âmbito das relações familiares,
Moçambique em particular, são as formas de violência que ocorrem no pretende abranger qualquer forma de violência direta (Física e
seio da família e por parte de membros familiares (pais, parceiros e psicológica) ou indireta (testemunho de violência) exercida por parte de
familiares): violência doméstica e/ou familiar. um membro da família dirigida contra uma criança dessa mesma família.
Ambas são particularmente importantes no âmbito do estudo sobre
A violência doméstica é a forma mais comum de violência de género que violência contra crianças em Moçambique pela crescente constatação de
ocorre essencialmente contra as mulheres e raparigas, define-se por que “violência gera violência” e pelo seu carácter inter-geracional 18
“qualquer forma de violência que ocorre no âmbito das relações particularmente quando acontece no seio familiar.
domésticas, familiares exercida pelo conjugue, ex-conjugue, parceiro, ex-
parceiro, namorado, ex-namorado e familiares”15 e assenta sobretudo em Como referido anteriormente, o abuso e/ou violência psicológica é, às
crenças sociais e normas tradicionais que defendem a desigualdade entre vezes, tão ou mais prejudicial que o abuso físico. O facto de não deixar
géneros e factores socioeconómicos de dependência financeira e estigma marcas corporais e físicas torna-o mais difícil de perceber ou entender e
social16. Apesar de a rapariga não ser abrangida pelas mesmas leis de pode causar sofrimento ainda mais difícil de ultrapassar particularmente
proteção que a mulher, estas são igualmente vítimas das várias formas de pelo impacto que tem na autoestima das vítimas. Pode caracterizar-se
violência doméstica, quer de forma direta quer de forma indireta pelo por factores como a rejeição, depreciação, discriminação, humilhação,
facto de as crianças ao serem expostas à violência conjugal/doméstica desrespeito e punições pelo uso de expresses verbais ofensivas e
dos pais e familiares serem também elas vítimas de violência psicológica. depreciadoras. Pode causar danos emocionais para toda a vida como
Neste sentido, no âmbito deste estudo consideramos a violência sejam perturbações psicológicas, abuso de substâncias, comportamentos
doméstica como uma forma direta de violência contra as raparigas por de risco, entre outros.19
parte dos seus conjugue, ex-conjugue, parceiro, ex-parceiro, namorado,
ex-namorado dado que mais de 50% das raparigas em Moçambique está
casada antes dos 18 anos de idade (17% antes dos 15 anos de idade e
52% antes dos 18 anos de idade).17 Consideramo-la ainda porque, sendo
uma das formas mais comuns de violência contra mulheres é uma das
formas mais comuns de violência psicológica exercida de forma indireta

15
Lei nº 29/2009 sobre a Violência Doméstica Praticada Contra as Mulheres.
16 18
MMAS (2008). Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher (2008-2012). República de MMAS (2008). Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher (2008-2012). República de
Moçambique. Moçambique.
17 19
MICS (2008). Inquérito de Indicadores Múltiplos; UNICEF/Inquérito de Indicadores Múltiplos (2008). MMAS (2008). Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher (2008-2012). República de
Sumário. Moçambique.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 9


Magnitude do Problema
A violência doméstica é uma das violações dos direitos humanos mais
No Mundo comum e, juntamente com o abuso sexual, é considerada a maior causa
de morte e fonte de incapacidade entre mulheres e raparigas, conduzindo
A violência contra as crianças no seio da família é um dos maiores à perda de mais anos de vida saudável. Ultrapassa os números de vítimas
problemas da humanidade e com as maiores implicações no bem estar e de cancro, acidentes automobilísticos, vítimas de guerras e malária e está
no desenvolvimento prospero de qualquer sociedade. A violência familiar interligada com questões de saúde pública. Para além de lesões físicas a
é particularmente difícil de perceber e combater porque está escondida e violência causa um imenso sofrimento psicológico na vítima com grandes
mantida no silencio e devido ao medo de retaliação, discriminação e à implicações na qualidade da sua saúde, qualidade de vida e condições
vergonha. económicas 21 , influencia negativamente as crianças com graves
implicações no seu rendimento escolar e no seu desenvolvimento
Apesar do enorme potencial e da responsabilidade da família de global22.
proporcionar às suas crianças a proteção, o amor e a segurança
(emocional e física) de que estas necessitam para o seu pleno Os dados disponíveis mostram que, de uma maneira geral, no mundo,
desenvolvimento e de os direitos humanos proclamarem reconhecerem o cerca de 10-69% das mulheres são abusadas fisicamente por seus
direito de toda a criança a ter e crescer no seio de uma família e de um parceiros íntimos em algum momento de suas vidas.23 Num estudo da
espaço físico acolhedor vários estudos recentes têm indicado que a OMS (1995) foram inquiridas 24000 mulheres de 10 países
violência contra as crianças acontece maioritariamente no seio da família. representativos de diferentes contextos culturais, geográficos, urbanos
A criança é maioritariamente abusada e violentada por parte das pessoas ou rurais sobre a violência doméstica. O estudo concluiu uma prevalência
que lhe estão mais próximas e que seriam as pessoas com as quais ela entre 12,9% e 61% de violência física, 6,2% a 58,6% de violência sexual e
deveria contar para segurança e proteção como sejam os parentes e/ou 15,4% a 70,9% de violência física ou sexual ou ambas24.
outros familiares. A violência toma formas variadas como sejam a
violência física, sexual e psicológica e negligencia deliberada. São Em Moçambique
frequentemente vítimas de castigos cruéis e humilhantes (violência
física), alvo de Insultos, isolamento, rejeição, ameaças físicas e Apesar de não haver muitos dados estatísticos disponíveis no âmbito da
emocionais , indiferença, inferiorização (violência psicológica) com efeitos violência contra a mulher e/ou violência doméstica em Moçambique as
devastadores no bem estar da criança e na sua autoestima. As crianças que há indicam que a violência contra a mulher e rapariga é dos
são frequentemente sexualmente abusadas nas suas próprias casas e/ou
por membros da sua família ou pessoas que a conhecem (violência 21
UNIFEM, (2010). http://www.unifem.org/gender_issues/violence_against_women/
22
sexual). São ainda vítimas de diversas práticas tradicionais prejudiciais MMAS (2008). Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher (2008-2012) República de
Moçambique: Maputo.
que lhes são impostas pela família e comunidade desde muito novas.20 23
WHO (2005). World Health Organization violence prevention activities, 2000-2004. Prepared for UNESCO's mid-
term report on the International Decade for a Culture of Peace and Non-violence for the Children of the World
February 2005. Available at: http://www3.unesco.org/iycp/Report/WHO.pdf
24
WHO (2002). World report on violence and health (WRVH). Cited In Violence Prevention Alliance. Disponível
20
UN (2006). Secretary General Study on Violence Against Children at http://www.unviolencestudy.org/ electronicamente: http://www.who.int/violenceprevention/approach/definition/en/index.html

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 10


problemas mais graves do país. Afecta milhares de mulheres, tem particularmente maior entre mulheres e raparigas com mais de 15 anos
consequência bárbaras na qualidade de vida e bem estar das suas vítimas de idade e tem vindo a aumentar de ano para ano. Em 2010 viviam cerca
(diretas e indiretamente) inclusive está associada com a crescente de 631 mil homens (+ de 15 anos) a viver com HIV, cerca de 913 mil
infecção HIV/SIDA na população feminina ("feminização da Sida") 25 mulheres (+ de 15 anos). e 154 mil crianças (0-14 anos) a viver nas
atingido níveis particularmente elevados nos últimos anos.26 A principal mesmas condições. No total, em 2010 mais de 1,7 milhões de pessoas
vítima é abusada por parceiros íntimos (violência doméstica), de qualquer vivem com HIV em Moçambique. Por sua vez o número de mulheres
extracto socioeconómico e de qualquer idade. Os casos são raramente grávidas seropositivas no país é bastante elevado atingindo em 2010
reportados buscando principal apoio ao nível informal, na família e na cerca de 152 mil grávidas30. Como indicam os números, a pandemia do
comunidade ao invés de envolver os serviços formais como a policia. A HIV/Sida não poupa as crianças e como resultado, milhares se encontram
sua origem assenta sobretudo num sistema social, económico, político e infectadas pelo vírus ou já estão com o SIDA, como resultado da
religioso patriarcal baseado em valores, tradições e crenças normativas transmissão vertical ou de outras formas de transmissão, ao mesmo
hierárquicas e discriminatórias de poderes de homens sobre mulheres27. tempo que outros milhares se tornaram órfãos de pais vítimas do SIDA.
As suas consequências passam por, entre outras, estas crianças terem
Em Moçambique, uma das formas comuns de violência doméstica que assumir a responsabilidade dos agregados familiares e ter que cuidar
praticada contra as mulheres e raparigas é a violação por parte de um dos seus irmãos e familiares doentes, serem alvo de discriminação nas
parceiro (estupro, assédio sexual, sucessor do falecido).28 comunidades por serem órfãos de pais seropositivos e consequente
redução na oferta dos serviços básicos de educação e de saúde como
No que se refere à infecção de HIV/SIDA, de acordo com os resultados da resultado da redução do capital humano afectado pelo HIV/SIDA nas
Ronda Epidemiológica de 2004, em Moçambique, a mulher é a mais comunidades. No geral estas crianças vêm as suas vidas largamente
afectada pelo HIV/SIDA chegando a atingir uma taxa de prevalência de dificultadas apresentando carências emocionais e económicas
cerca de 57% o que está associado com atitudes e violência sexual de que desastrosas, vivendo em pobreza extrema e vulneráveis às mais diversas
têm sido vítimas e à posição social de desigualdade e desvantagem, em formas de abuso.31
relação ao homem 29 . Segundo o Impacto Demográfico Do HIV/SIDA
(2010) a taxa de prevalência do HIV em adultos (entre 15-49 anos de Em 2002 O Ministério da Saúde iniciou um projeto financiado pela
idade) tem sido 14% nos últimos 3 anos e 16% entre Mulheres grávidas FUNAP, envolvendo 899 mulheres que se apresentaram nos serviços de
dos 15-49 anos. O número de pessoas vivendo com o HIV é urgência de 4 hospitais e 3 Centros de Saúde da Cidade do Maputo para
estudar a violência tendo em conta o género. Os resultados mostraram
25
MMAS (2008). Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher (2008-2012) República de que 48% (n=429) tinham sofrido alguma forma de violência, infligida pelo
Moçambique: Maputo.
26
Osório, Conceição (2004); Silva & Andrade (2005); INE (2010). Impacto Demográfico Do HIV/Sida at marido em 46% dos casos, 43% por outro membro da mesma família e
http://www.ine.gov.mz/hiv/ipcthivmz
27
10% outros. Agressão física, insultos e ameaças constituíram 92% da
Loforte, A. M. (2009). Os movimentos sociais e a violência contra a mulher em Moçambique: marcos de um
percurso. “Outras Vozes” nº 27, Junho.
28
MMAS (2008). Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher (2008-2012). República de
Moçambique: Maputo.
29 30
MMAS (2008). Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher (2008-2012). República de INE (2010). Impacto Demográfico Do HIV/Sida at http://www.ine.gov.mz/hiv/ipcthivmz
31
Moçambique: Maputo. MMAS (2006). O Plano Nacional de Acção Para a Criança (PNAC). República de Moçambique: Maputo.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 11


forma de violência infligida ás vítimas e 8% das mulheres revelaram terem resultados do estudo as mulheres que viviam em áreas urbanas foram
sido vítimas de abuso sexual32. ligeiramente mais vitimizadas comparativamente com as das áreas rurais
(55,4% vs. 44,6%) particularmente violência física (57% vs. 43%) já que
Em 2004, O Ministério da Mulher e da Ação Social 33em colaboração com quanto à violência sexual as maiores vitimas vivem em áreas rurais (49% e
várias instituições realizou e publicou um Inquérito sobre Violência contra 51%). As províncias com maior incidência de violência contra mulheres
a Mulher. O inquérito incluiu 2.015 mulheres com idades compreendidas são Zambézia (23,1% qualquer violência, 24,8% violência física e 14,3%
entre os 18 e 69 anos (68% com idades compreendidas entre os 18 e os violência sexual) e Maputo (20,4% qualquer violência, 17,4% violência
45 anos) e mediu como indicadores de violência a violência física e a física e 33,7% violência sexual) seguidos de Sofala e Nampula com
violência sexual. Os resultados do inquérito indicam que mais de metade destaque para elevados números de violência sexual e violência física,
das inquiridas reportaram ter sofrido alguma forma de violência em respectivamente (27,6% e 22,3%). As cidades com menos prevalência de
algum momento da sua vida. De entre as mulheres inquiridas 54,2% violência são Manica (6,8% qualquer violência, 7,4% violência física e
responderam já terem sofrido violência por um homem em algum 7,1% violência sexual) e a cidade de Maputo (8,8% qualquer violência,
momento das suas vidas e 23% responderam já ter sido vitimas de 9,9% violência física e 4,1% violência sexual) e as cidades com maior
violência sexual por parte de um homem. Resultados do inquérito incidência são Zambézia, Nampula e Sofala. Os resultados do estudo
salientaram ainda que a maior parte dos casos de violência são salientam ainda a associação entre a prevalência de violência contra as
perpetrados por parte de parceiros ou ex-parceiros íntimos (namorado e mulheres e o nível de escolaridade e o estado civil sendo que a violência
marido) e que existe um índice de denúncias muito baixo. Menos de uma é mais comum entre mulheres sem educação escolar ou com escola
em cada dez vítimas (aproximadamente 10%) responde ter denunciado o primária (mais de 80%) e maioritariamente casadas, particularmente
facto de ter sido vitima de violência a uma entidade formal (polícia) e casadas em casamentos tradicionais e religiosos comparativamente às
quando o fazem é maioritariamente quando os atos de violência são não casadas (86,4% vs. 12,9%). Concluíram ainda que o consumo de
perpetuados por um ex-parceiro ou não parceiro e não membro da álcool não leva necessariamente ao aumento da violência contra
família. Sendo que a maioria dos participantes tinha entre 18 e 45 anos e mulheres.
37,3% indicarem ter sido vitima de violência nos últimos 5 anos (32,5%
violência física e 15,3% violência sexual) e 54,2% terem sido alvo de Apesar dos esforços para tornar as questões de violência doméstica um
violência em algum momento da sua vida (49,9% violência física e 22,8% problema criminal a maioria das participantes diz considerar que se trata
violência sexual) estes números podem ainda sugerir muitas formas de de uma questão privada/familiar que as inibe de denunciar os atos de
violência que possam ter ocorrido quando estas eram ainda crianças, e violência de que são vitimas à policia e ser frequente lidarem com os
dada as atitudes de aceitação social do fenómeno pressupõem que problemas a um nível familiar ou sofrerem sozinhas. De entre outras
muitas crianças tenham sido vitimas indiretas de estas formas de razões pelas quais não denunciam os casos são maioritariamente o facto
violência, presenciando disputas matrimoniais violentas. Segundo os de não considerarem a situação grave, o medo de represálias, e não
quererem que o ofensor seja preso.
32
Pilot project for addressing gender based violence in RH clinic, Evaluation report. UNFPA, AIDOS, AFDA, February
2004.
33
MMAS (2004). Inquérito sobre Violência contra a Mulher. República de Moçambique: Maputo.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 12


De acordo com os dados oficiais do Ministério do Interior (MINT - famílias onde violência e os castigos físicos faziam parte do seu
Gabinetes de Atendimento à Mulher e à Criança) foram denunciados à quotidiano enquanto estavam a crescer e é como se sentissem obrigadas
polícia, entre 2006 e 2010, mais de 82 mil casos de violência contra ou considerassem normal repetir esses padrões nas relações atuais e
mulheres e mais de 17 mil contra crianças. Estes resultados mostram que futuras. São tidos como fatores de risco individuais do perpetrador para o
há muitas mulheres e crianças sendo vítimas no país. É importante envolvimento em situações de violência doméstica o facto de este ter
ressaltar que apesar de haver um número cada vez maior de mulheres e presenciado e vivenciado violência conjugal quando criança e/ou ter
crianças que fazem denuncia à Polícia de situações de violência de que sofrido abuso e ser alvo de atos violentos quando criança. Entre os
são vítimas, os registos de casos apenas refletem o número de vítimas factores de risco de risco na sociedade estão papéis sociais rígidos para
que buscam ajuda da polícia, enquanto que a grande maioria ainda fica ambos os sexos (tarefas e expectativas sociais rígidas para ambos os
em silêncio.34 sexos), conceito de masculinidade ligado á dominação, honra, agressão,
força, que se manifesta em atitudes e comportamentos em que o homem
Violência Doméstica contra Mulheres como indicador de Violência manda e é autoritário, aceitação da violência como forma de resolução de
contra Crianças problemas/conflitos e normas socioculturais que concedem aos homens
o controlo sobre o comportamento da mulher, sobretudo no âmbito da
Sendo o papel da mulher fundamental na manutenção e família38.
desenvolvimento da família e da sociedade, a violência contra mulheres e
raparigas conduz a consequências a nível individual com danos A violência doméstica, mesmo quando indireta, ou seja pelo testemunho
psicológicos e físicos, e danifica a estrutura familiar, com implicações na de situações de violência em casa pode ter resultados bastante
estrutura social e política das nações35. Funciona como um obstáculo ao traumáticos para uma criança no seu desenvolvimento. No geral, tem
desenvolvimento saudável dos indivíduos, promove estigmatização, resultados muito negativos para a criança a nível escolar, causando
abuso de substâncias, problemas de saúde mental, e delinquência. Reduz dificuldades de aprendizagem e distúrbios emocionais e
a produtividade e consequentemente a capacidade económica dos comportamentais39.
indivíduos, famílias, comunidades e países36.
As autoras Maria José Arthur e margarida Mejia (2006)40 apresentaram
Uma das características de qualquer tipo e forma de violência é ser inter- uma análise dos dados casos que deram entrada nos Gabinetes de
geracional e a comum expressão “violência gera violência”37. A maioria Atendimento à Mulher e Criança de Maputo e nas províncias de Sofala e
das mulheres que sofrem de violência doméstica apresentam alguns Inhambane entre 2004-2005 e compararam os resultados com um estudo
aspectos psicológicos e histórias de vida comuns. Algumas vêm de
38
MISAU/WLSA Moçambique (2010). Consequências Psicológicas da Violência Doméstica Contra as Mulheres:
34
MMAS (2008). Plano Nacional de Acção para a Prevenção e Combate à Violência Contra a Mulher (2008-2012). Formação para Atendimento em Violência de Género. Maputo, p. 16-17.
39
República de Moçambique; WLSA Moçambique. Arthur, M.J. e Mejia M., Coragem e impunidade: Denúncia e MMAS (2008). Plano Nacional de Acção para a Prevenção e Combate à Violência Contra a Mulher (2008-2012).
tratamento da violência doméstica contra as mulheres em Moçambique (2006). República de Moçambique.
40
35
MMAS (2008). Plano Nacional de Acção para a Prevenção e Combate à Violência Contra a Mulher (2008-2012). Arthur, Maria José; Mejia, Margarita (2006). Coragem e impunidade. Denúncia e tratamento da violência
República de Moçambique. doméstica contra as mulheres em Moçambique. Women and Law in Southern Africa (WLSA) Moçambique, Cap. II, p.
36
Slegh, H. (2006). Impacto psicológico da violência contra as mulheres. “Outras Vozes”, nº 15, Maio. 63-92.
37
RECAC

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 13


anterior realizado entre 2000-2003. Concluíram que a grande maioria das
agressões que deram entrada nos Gabinetes foi uma denúncia contra um
agressor do sexo masculino cujo ato tinha sido dirigido a uma vítima do
sexo feminino (93%). No que se refere à relação de parentesco vítima
agressor quando a vitima é do sexo feminino verificou-se que as
principais vitimas são mulheres e o principal agressor dessas mulheres é o
parceiro atual ou o marido, isto é, o agressor e a vítima vivem juntos o
que reflete a questão de segurança das mulheres vítimas de violência.
Dos crimes reportados com maior destaque pela violência extrema que
representam são a ocorrência de homicídios (13 casos, 8%), e tentativa de
homicídio (13 casos, 8%). Na grande maioria as vítimas são do sexo
feminino (78% contra 21% do sexo masculino) e têm entre 17 e 25 anos
(31% comparativamente a terem entre 26 e 35 anos quando do sexo
masculino). No entanto cerca de 8% e 3% dos casos reportados foram
contra crianças do sexo feminino entre 0 e 16 anos de idade e sexo
masculino respectivamente. Estes números não representam a realidade
na medida em que encobrem particularmente os casos os em que o
adulto é o responsável pela criança, que tem sido indicado como a
maioria dos casos. A natureza de uma relação de violência e/ou abuso se
crianças pelo próprio responsável, familiar ou parente leva a que muitos
casos de violência contra crianças não seja denunciado à polícia e se
mantenham no silêncio.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 14


IV.1.2. ABUSO SEXUAL são acompanhadas pela repetição de padrões de violência e uma maior
vulnerabilidade à revitimização pelo facto de considerarem esses padrões
Definição de Abuso Sexual como normais.

A OMS caracteriza o abuso sexual de crianças como uma das formas Em Moçambique, no seguimento da crescente preocupação internacional
extremas de maus tratos infantis. Segundo a mesma o abuso sexual de pela proteção dos direitos das crianças como um problema de direitos
crianças tem vários níveis de gravidade dependendo do contacto físico e humanos e saúde pública, a proteção das crianças vítimas de abuso
proximidade da vítima ao abusador, da frequência dos atos e do apoio sexual tornou-se um aspecto importante da agenda governativa e um dos
familiar e social da vítima. Neste sentido, verifica-se que quanto maior o fenómenos de maior preocupação e reconhecimento político atual44.
contacto físico, a proximidade do abusador à vítima, e a frequência do
abuso maior o seu nível de gravidade e maior o impacto no bem estar e Apesar da constante e histórica dificuldade de obter dados estatísticos e
desenvolvimento saudável da criança. A gravidade do impacto do abuso estudos sobre a incidência de abuso sexual infantil que se pode explicar
está ainda relacionado com a existência ou não de apoio familiar e pelo seu carácter familiar, recentemente, em Moçambique, foram
comunitário à vítima41. desenvolvidos vários estudos na área, em particular na incidência,
atitudes e percepções face ao abuso sexual de crianças em diferentes
Em Moçambique, historicamente, o abuso sexual de crianças tem sido um zonas rurais e urbanas do país, com destaque para o abuso sexual nas
fenómeno “silencioso” e “taboo”, um dos mais difíceis de resolver e com escolas.
as maiores consequências para as suas vítimas42. Primeiro, a maioria dos
atos de abuso sexual de crianças acontecem, independentemente das Ainda com o objectivo de facilitar a compreensão, planificação e ação
sociedades e estratos sociais, no próprio meio familiar (incesto) e nacional na prevenção e resposta à violência contra crianças, neste caso
educacional das crianças. Ironicamente, os autores da maioria dos crimes no controle e tolerância zero a todas as formas de abuso sexual contra
sexuais no país são frequentemente os mesmos responsáveis por prestar crianças, nesta revisão seguimos a classificação dos dois tipos de abuso
à criança os seus direitos básicos de viver e desenvolver-se num ambiente sexual de acordo com a proximidade da vítima ao abusador: abuso sexual
livre de violência, de lhes proporcionar amor e carinho e protege-las do tipo intrafamiliar (por parte de um membro da família) e o abuso
económica e fisicamente43. Esta dura realidade leva a que muitas crianças sexual extrafamiliar (por parte de alguém externo à família). Ambas
estejam particularmente vulneráveis e condicionadas ao “silêncio” e a ser implicam uma dinâmica de proteção da criança inadequada e um crime.
vitima de danos físicos e emocionais irreversíveis. Em segundo lugar,
igualmente preocupante, é o facto de as crianças não terem consciência
e/ou capacidade de entender que estão a ser vítimas de abuso e no limite

41
OMS XXX
42
FDC (2008). Violência Contra Menores em Moçambique. Revisão de Literatura.
http://www.fdc.org.mz/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=100&Itemid=106&lang=en
43
Declaração dos Direitos da Criança; OMS ().Preventing child maltreatment: a guide to taking action and
44
generating evidence, Kula, (2008) ; MMAS (2005). Plano Nacional de Ação para a Criança - PNAC (2005-2010)

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 15


Magnitude do Problema sete porcento (7%) das raparigas moçambicanas das áreas urbanas foram
forçadas a ter relações sexuais e cerca de oito porcento (8%) foram
No Mundo forçadas a ter relações sexuais com coito47.

O abuso sexual de crianças é uma das maiores preocupações a nível Segundo a análise dos dados casos que deram entrada nos Gabinetes de
mundial. Segundo a Organização Mundial de Saúde os dados disponíveis Atendimento à Mulher e Criança de Maputo, Sofala e Inhambane entre
mostram que, de uma maneira geral, no mundo, 5-10% de meninos 2004-2005 no âmbito da violência sexual constatou-se que existiram 453
abuso e 20% das meninas são abusadas sexualmente.45 As crianças são casos de onde se destacam 125 casos de violação sexual de menores de
frequentemente abusadas por alguém que elas conhecem, e muitas vezes 12 anos, 211 casos de violação sexual e 91 casos de estupro. As autoras
um membro da própria família.46 salientaram ainda o facto de se verificar que este tipo de crimes é
resolvido no âmbito familiar mediante cobrança de multas, mesmo no
Em Moçambique caso de um crime público como uma violação de um menor de 12 anos. É
de acrescentar que estes números não refletem a incidência real já que só
Em Moçambique, são vários os dados estatísticos e os estudos que 6% foram reportados e que a grande maioria dos casos não foi reportado
salientam a magnitude da vulnerabilidade da criança a abusos sexuais de pelos pais ou responsáveis adultos da crianças abusadas sexualmente
vária ordem, e nos mais variados contextos. mas encaminhadas diretamente do hospital para a polícia o que reflete a
mentalidade de proteção destas formas de violência contra crianças.
No último ano, só no Hospital Central de Maputo o serviço de Medicina Concluindo a análise dos dados indica que o tipo de crime/caso mais
Legal recebeu mais de xxx casos de crimes sexuais contra crianças. frequente dirigido contra crianças foi a violação sexual no caso das
crianças serem do sexo feminino (mais de 200 casos) e OCVS para ambos
Os dados estatísticos do atendimento dos Centros de Reabilitação os sexos.48
Infanto-Juvenil (CERPIJ) do Hospital Central de Maputo, indica que cerca
149 meninas (112 e 37 em Maputo) e 22 meninos (20 e 2 em Maputo) Em 2005 a Save the Children da Noruega publicou o relatório dum estudo
atendidos entre 2009 e 2010 foram vitimas de violação sexual. O facto de realizado sobre o abuso sexual de raparigas nas escolas de Moçambique,
ser registarem menos casos de 2009 para 2010 é coincidente com nomeadamente formas de abuso, atitudes e percepções de raparigas
mudanças estruturais no Centro e serviços prestados. afectadas e não afectadas pelo tema e atores sociais que direta ou
indiretamente estavam relacionados com o processo. Das 950 raparigas
Os dados do Inquérito Nacional sobre Saúde Reprodutiva e estudantes que participaram no estudo oito a dezasseis porcento (8 a
Comportamento Sexual dos Jovens e Adolescentes de 2002 indicam que 16%) reportaram ter sofrido abuso sexual em algum momento das suas

47
Inquérito Nacional sobre Saúde Reprodutiva e Comportamento Sexual dos Jovens e Adolescentes - INJAD (2002).
48
45
WHO (2005). World Health Organization violence prevention activities, 2000-2004. Prepared for UNESCO's mid- Arthur, Maria José; Mejia, Margarita (2006). Coragem e impunidade. Denúncia e tratamento da violência
term report on the International Decade for a Culture of Peace and Non-violence for the Children of the World doméstica contra as mulheres em Moçambique. Women and Law in Southern Africa (WLSA) Moçambique, Cap. II, p.
February 2005. Available at: http://www3.unesco.org/iycp/Report/WHO.pdf 63-92.
46
UN (2006). Secretary General Study on Violence Against Children at http://www.unviolencestudy.org/

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 16


vidas, e cerca de trinta e cinco porcento (35%) foram sujeitas a assédio sexuais com um adulto em troca de algum bem (dinheiro, prendas,
sexual envolvendo persuasão verbal. Resultados do estudo salientaram tratamento preferencial e/ou melhores notas) a não ser que o adulto
ainda uma dicotomia zonas rurais/urbanas sendo que as zonas rurais falhe e desrespeite a transação acordada entre as partes. Deste modo, as
apresentaram maior número de casos comparativamente às zonas comunidades não tomam em consideração que as crianças não são
urbanas do país. 65% foram obrigadas a manter relações sexuais e os capazes de tomar responsabilidades e entender as implicações dessas
maiores responsáveis por estes crimes são professores e colegas de atividades sexuais como a possibilidade de engravidar, ou a infecção
escola i . De entre as formas de abuso mais comuns por parte dos HIV/AIDS. Salientam a falta de credibilidade da polícia relativamente à sua
abusadores para atingir os seus objectivos encontraram o uso da força, o capacidade de resolver casos e punição legal dos autores dos crimes, o
uso do status social, e persuasão verbal (muitas vezes tido como medo de represálias por parte do abusador e a destruição da reputação
“consentimento” por parte das vitimas). Resultados indicam ainda que as das vítimas e das famílias na comunidade como factores de desconfiança
crianças vítimas de abuso sexual quando partilham o que aconteceu, a recorrer aos serviços de proteção formais (polícia). Apesar da existência
fazem-no entre colegas e amigas mais do que com a profissionais na de estruturas tradicionais e comunitárias estabelecidas pela polícia local
escola ou familiares. O mesmo estudo chama a atenção para o facto das muitos casos continuam por ser denunciados. Os motivos apresentados
escolas em Moçambique estarem longe de ser um ambiente seguro para são essencialmente o medo de represálias, o estigma social e a rejeição
as crianças que as frequentam. Muitas vezes, entre os abusadores social particularmente por membros masculinos da comunidade. Por
constam professor e estudantes. exemplo: quando as vítimas ficam grávidas dos abusadores nas
comunidades espera-se que estes casem com as raparigas e tomem
Na mesma linha, em 2007 a Save the Children49 desenvolveu um estudo responsabilidades pelo bebé e pela nova família. Ignoram-se as
exploratório sobre a percepção da comunidade (adultos e crianças) dos consequências físicas, emocionais e psicológicas do abuso50 em contraste
Distritos de Mopeia e Morrumbala na Província da Zambézia com a preocupação social e estigma dentro da comunidade,
(Moçambique) no que diz respeito ao abuso sexual e à exploração de particularmente entre a comunidade masculina.
crianças em casa e na família (incesto, casamento prematuro), na
comunidade (violência sexual, violação e exploração sexual para fins Novamente, o inquérito realizado pelo Ministério da Mulher e da Ação
comerciais) e nas escolas (por colegas e educadores). Os resultados deste Social sobre a violência contra mulheres em Moçambique51 que avaliava
estudo sugerem que as comunidades tendem a caracterizar “abuso” pelo duas formas de violência: física e sexual concluiu que vinte e três
uso da força, ou seja, em situações em que a criança participa porcento (23%) das duas mil e quinze (2.015) mulheres entrevistadas
“voluntariamente” numa atividade sexual a comunidade não aprova admitiram ter sido vítimas de alguma forma de violência sexual por parte
necessariamente o comportamento (aliás pode mesmo ser considerado de um homem em algum momento das suas vidas, (inclusive na infância).
“desapropriado” e/ou “imoral”) mas não é classificado por eles como De entre os factores que limitam a proteção e mudanças na vida destas
abuso sexual. Culturalmente os membros da comunidade aceitam e não mulheres para fora de situações de violência foi apontado o baixo nível
consideram caso para denúncia que as crianças participem em atividades
50
Save the Children (2005). Study Reporto n Se xual Abuse of Girls in Mozambican Schools, Maputo.
49 51
Save the Children (2007). Proteger as Crianças: atitudes comunitárias em relação ao abuso sexual de crianças nas Ministério da Mulher e da Ação Social – MMAS (2004). Inquérito específico sobre a violência contra mulheres em
zonas rurais de Moçambique. Reino Unido. Moçambique. Maputo.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 17


de escolarização, dependência económica e preconceitos socioculturais o perpetrador faz parte da família ou da comunidade (escolar, etc.).
de relações de poder baseados em desigualdades de género. Segundo os Concluiu-se ainda uma desigualdade entre zonas rurais e zonas urbanas já
dados adquiridos no inquérito, em Moçambique prevalece a aceitação da que estes casos ocorrem com maior frequência nas zonas rurais. Entraves
violência no meio familiar e como forma de punição. Consequentemente passam pela dificuldade de acesso pela falta de informação e a
as vítimas sentem-se incapazes de lutar pelos seus direitos e ao invés de dificuldade em comunicar com profissionais na área que possam ajudar
denunciarem os casos à policia tendem a buscar apoio nos mecanismos pelas diferenças linguísticas.
informais e tradicionais de aconselhamento cuja resolução de conflitos
está fora da instituição oficial e legal (policia e tribunais). O estudo É de acrescentar que são várias as provas de que o abuso sexual tem sido
indicou ainda que as mulheres que referiam ter sido vitimas de violência uma realidade no âmbito dos projetos humanitários pelos que deveriam
sexual tinham maioritariamente entre 18 e 25 anos. estar a proteger os direitos e dar assistência direta a populações
desfavorecidas ou a atravessar situações de conflito e vulnerabilidade. Em
Em 2009 foi realizado um relatório sobre crenças e atitudes em relação à 2002 a UNHCR e a Save the Children desenvolveu um relatório Sexual
violência sexual contra a mulher e a rapariga na Província de Tete52. No Violence & Exploitation: The experience of Refugee Children in Guinea,
âmbito deste pesquisa concluiu-se que existe uma ausência de análises e Liberia and Sierra Leone53 que concluiu que existem muitos casos de
indicadores de violência e abuso sexual. Neste sentido, a pesquisa tomou abuso e exploração sexual por parte de trabalhadores humanitários
uma dimensão de mapeamento inicial acerca da percepção local sobre a desde trabalhadores das Nações Unidas, ONG’s nacionais e internacionais
violência sexual. Apesar das limitações da metodologia e falta de estudos e trabalhadores governamentais. Neste caso profissionais que estão em
suficientes neste âmbito os resultados apontam para várias questões de posições de aceder às populações locais, particular crianças e mulheres,
fundo relativamente às questões de violência e abuso sexual. De entre os no contexto do seu trabalho e quando estes estão sob o seu cuidado
principais resultados salienta-se que a concepção de “violência sexual” aproveitam-se e abusam deles sexualmente (“perpetradores
não encontra o devido significado no contexto do estudo quer pela profissionais”) 54 . São comuns os abusos em que os trabalhadores
inexistência do termo nas línguas locais (Província de Tete) e falta de humanitários utilizavam a sua posição privilegiada para trocar bens
clareza sobre o seu significado por parte da população local. No entanto, básicos de sobrevivência e ou dinheiro por sexo. Em 2005 a Save the
os casos de abuso sexual como classificação que conhecemos ocorrem Children desenvolveu um outro projeto de investigação no âmbito da
com frequência na Província. A autora salienta o exemplo de casos de exploração de crianças: From Camp to Community: Liberia Study on
contração de HIV/SIDA pelo ato sexual não consentido ou encobrimento Exploitation of Children55 que igualmente concluiu a existência de vários
de status serológico e participação em atos sexuais sem preservativo. casos de abuso e exploração de crianças por trabalhadores humanitários.
Quando à existência de abuso sexual identificou-se o entrave ao combate
ao abuso sexual pela ausência de mecanismos eficazes de denúncia que
ofereça à vítimas, o apoio, a segurança, e o sigilo necessárias, para
protegê-las principalmente de atos de retaliação, particularmente quando 53
UNHCR, Save the Children UK. Sexual Violence & Exploitation: The experience of Refugee Children in Guinea,
Liberia and Sierra Leone, 2002.
54
ECPAT International (2007). Confronting the Commercial Sexual Exploitation of Children in Africa, p. 35.
52
Collet, Angela (s.d.). Pesquisa de Crenças e Atitudes em Relação à Violência Sexual Contra a Mulher e a Rapariga http://www.ecpat.net/EI/Publications/Journals/Confronting_CSEC_ENG.pdf
55
na Província de Tete. Relatório Final. Save the Children UK.Camp to Community: Liberia Study on Exploitation of Children, Moronvia, 2006.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 18


Em 2010 Carol Bower e Cheikh Ibrahima Niang (East, Central and
Southern Health Community (ECSA-HC) 56 realizaram uma revisão de Sabe-se que a grande maioria dos casos fica por reportar, particularmente
literatura sobre abuso sexual na África Sub-Sahariana. De acordo com os às autoridades formais (ex: polícia) e que os casos de violação e assédio
resultados dos estudos que revisaram concluíram que os dados existentes sexual são os mais fáceis de identificar e reconhecer o que nem por isso
sobre a prevalência de abuso sexual são insuficientes e pouco exaustivos, significa uma definição clara do problema e a existência de programas de
a recolha de dados é fraca e muitas vezes inexistente o que leva a que resposta a estas vítimas.
muitos casos não sejam reportados. Os dados que incluem informação de
Moçambique, em particular, são bastante escassos o que sugere a falta
de informação detalhada e estudos compreensivos sobre o tema. No
entanto, as estatísticas disponíveis no âmbito do abuso sexual no qual
estão incluídas as situações de violações, incesto, assédio sexual,
exploração sexual de crianças para fins comerciais (“prostituição”
infantil), casamento prematuro e exploração sexual, apesar de poucas e
subestimadas, indicam que o problema é bastante significativo com
consequências sérias na saúde pública, desenvolvimento e direitos
humanos para as crianças vítimas de abuso sexual, bem como um série de
sequelas físicas e psicológicas nos indivíduos e nas suas famílias. Na
região Sub-Sahariana muitas crianças continuam em risco de serem
abusadas e violentadas sexualmente quer nas suas casas, pela família, na
escola, no trabalho, e nas ruas, Moçambique não é uma exceção57.

Em geral, resultados concluem que em Moçambique as raparigas


continuam a ser as principais vítimas de abuso sexual. O abuso sexual
está relacionado com o modelo social de desigualdade entre géneros, é
consentido e abafado culturalmente, e está ainda relacionado com a
crescente infecção HIV/AIDS entre as raparigas com menos de 18 anos58.
Existe ainda um visível falta de investigações suficientes que permitam
uma compreensão clara da dimensão do problema e das melhores formas
de atuar na sua eliminação.

56
Bower, Carol; Niang, Cheikh Ibrahima. Child Sexual Abuse in Sub-Saharan Africa – A Review of the Literature. East,
Central and Southern Health Community (ECSA-HC), 2010.
57
Bower, Carol; Niang, Cheikh Ibrahima. Child Sexual Abuse in Sub-Saharan Africa – A Review of the Literature. East,
Central and Southern Health Community (ECSA-HC), 2010.
58
Save the Children (2005). Study Reporto n Se xual Abuse of Girls in Mozambican Schools, Maputo.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 19


IV.1.3. EXPLORAÇÃO SEXUAL PARA FINS COMERCIAIS saudável62. Daí que no âmbito deste estudo se use o termo exploração
sexual de crianças para fins comerciais. Pressupõe que a criança não
Definição de Exploração Sexual de Crianças consente os atos independentemente da forma que o abusador usa para
(com ou sem violência) para controlar ou manipular a exploração dessa
Ao longo dos tempos têm aparecido vários estudos no âmbito da criança. Entre as formas mais comuns de exploração sexual de crianças
exploração sexual/”prostituição” Infantil. É uma outra forma de abuso estão o uso de crianças em turismo sexual e tráfico de crianças.63
sexual e implica a exploração sexual para fins comerciais de crianças.
Define-se geralmente como “uma atividade onde atos sexuais com Magnitude do Problema
menores de 18 anos são realizados em troca de pagamentos” podendo
incluir incentivos ou coação, exploração da criança na prostituição ou No Mundo
inclui-las em matérias pornográficas59 e constitui uma forma de violência
contra crianças e uma prática criminal que viola os direitos da criança. Em todo o mundo, a exploração sexual de crianças (e adolescentes) tem
sido uma realidade, com destaque para as áreas turísticas de países com
Segundo a Convenção dos Direitos da Criança a exploração sexual de condição de pobreza extrema. Conflitos políticos, pobreza, e HIV/AIDS são
crianças para fins comerciais é definida pelo “abuso sexual de uma alguns dos aspectos que levam à elevada prevalência de turismo sexual
criança por um adulto com remuneração em dinheiro ou qualquer outra de crianças e tráfico de crianças para fins sexuais (exploração sexual para
forma a uma criança ou a uma Terceira pessoa ou pessoas.”60 fins comerciais que inclui tráfico) em África. 64 Estes factores ao
contribuírem para que muitos países africanos se tornem frágeis e
Considerando que uma criança não tem capacidade de juízo ou de vulneráveis política, económica e socialmente levam a que muitas
decisão própria, e deve estar sobre a proteção de um tutor qualquer famílias lutem pela sobrevivência e as crianças se tornem particularmente
forma de incentivo ou coação dum adulto para que uma criança participe vulneráveis à exploração sexual como meio de subsistência e
em atividades sexuais em troca de bens ou dinheiro é considerada uma sobrevivência, delas próprias e muitas vezes de toda a sua família.
violação dos direitos da criança e uma forma de exploração sexual não Particularmente em países em condições de pobreza extrema e com
consentida da criança e um crime. O “consentimento” da criança em elevada incidência de HIV/SIDA as crianças têm que frequentemente
participar nas práticas sexuais é sempre inválido61, e visto como uma contribuir para os ganhos da família bem como assumir desde cedo
forma de violência e um impedimento ao seu desenvolvimento grandes responsabilidades como sejam cuidar dos irmãos/ãs e de outros
membros da família (parentes com HIV/SIDA). Um estudo recente da
ECPAT sugeriu que crianças órfãs devido ao HIV/AIDS são prováveis de
59
FDC (2008). Violência Contra Menores em Moçambique. Revisão de Literatura.
62
http://www.fdc.org.mz/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=100&Itemid=106&lang=en FDC, 2008. Violência Contra Menores em Moçambique. Revisão de Literatura.
60
United Nations Convention of Childrens Rights (1989). In ECPAT International (2007). Confronting the Commercial http://www.fdc.org.mz/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=100&Itemid=106&lang=en
63
Sexual Exploitation of Children in Africa. http://www.ecpat.net/EI/Publications/Journals/Confronting_CSEC_ENG.pdf ECPAT International (2007). Confronting the Commercial Sexual Exploitation of Children in Africa.
61
ECPAT International (2007). Confronting the Commercial Sexual Exploitation of Children in Africa. http://www.ecpat.net/EI/Publications/Journals/Confronting_CSEC_ENG.pdf
64
http://www.ecpat.net/EI/Publications/Journals/Confronting_CSEC_ENG.pdf ECPAT International (2007). Confronting the Commercial Sexual Exploitation of Children in Africa. Disponível
electronicamente: http://www.ecpat.net/EI/Publications/Journals/Confronting_CSEC_ENG.pdf

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 20


entrar em atos sexuais para fins comerciais entre 2 a 3 anos depois da Em 2001, ECPAT International67 desenvolveu um estudo sobre a situação
morte dos seus pais ou responsáveis. É de acrescentar que estas crianças da exploração sexual de crianças para fins comerciais em vários países da
estão ainda vulneráveis a ser vitimas de turismo sexual e tráfico para fins África do Sul, entre os quais Moçambique. Um consultor visitou cada país
de comercialização sexual bem como outras formas de abuso e e realizou entrevistas semiabertas com organizações que trabalham na
violência65. proteção das crianças e adquiriu toda a informação possível que existisse
sobre o tema e os programas e atividades existentes na prevenção e
Em Moçambique resposta ao fenómeno. De acordo com os resultados deste estudo
realizado concluiu-se que o problema da exploração sexual de crianças
O contexto de carência económica, pobreza extrema, de falta de para fins comerciais continua sob-reportado e é ainda largamente
condições básicas e de famílias afectadas pelo HIV/SIDA (crianças órfãs de silencioso e escondido. Apenas alguns casos que vão aparecendo nos
de pais pelo HIV/SIDA, crianças cuidam de pais doentes com HIV/SIDA) de media e da consciencialização de alguns indivíduos da comunidade para a
Moçambique é particularmente propício à exploração sexual de crianças. sua existência. Apesar de haver poucos dados estatísticos e concretos
As condições miseráveis em que muitas crianças e famílias vivem leva que sobre o fenómeno da exploração sexual de crianças para fins comerciais
muitas vezes raparigas cederem à (apesar de a literatura referir “optarem vários relatórios existentes na área sugerem a prevalência deste mal no
pela prostituição”) como meio de sobrevivência, e como ajuda económica país. A maioria das Organizações Não Governamentais e departamentos
para compra de bens e muitas vezes para elas próprias saírem de do Governo envolvidos na área admitem a existência de vários
ambientes violentos e aspiração à “distinção no grupo”. Particularmente indicadores de que este fenómeno é prevalente em todas a Províncias de
frequente é em Moçambique é o crescente sexo geracional onde homens Moçambique, com destaque para as zonas urbanas do país, com
e adultos têm relações sexuais com raparigas e adolescentes, termo destaque para Maputo, Beira e Ressano Garcia. No entanto, estes
frequentemente designado de “titios e catorzinhas”. Em 2003 C. Bagnol e resultados podem estar enviesados já que muito pouco se sabe sobre
C. Ernesto realizaram um estudo na província da Zambézia sobre o tema este fenómeno nas zonas rurais. Apesar dos resultados indicarem que o
cujos resultados sugerem que cerca de dois porcento (2%) das raparigas turismo ser ainda muito precoce em Moçambique o estudo identificou
adolescentes trocam favores sexuais por benefícios económicos e posição algumas ondas que associam o desenvolvimento do turismo com o
social. Este fenómeno é particularmente preocupante a nível social. aparecimento de novas formas de exploração sexual de crianças em
Acrescentando, é preocupante pela crescente vulnerabilidade destas à várias zonas turísticas do país68.
infecção HIV/SIDA66.
Em 1999 a Terre des Hommes69 desenvolveu uma investigação na cidade
e na Província de Maputo liderada por especialistas governamentais e
não governamentais que trabalham com crianças de rua. De acordo com

65 ECPAT International (2007). Confronting the Commercial Sexual Exploitation of Children in Africa.
67
Disponível electronicamente: ECPAT International (2001). The Commercial Sexual Exploitation of Children in Southern Africa.
68
http://www.ecpat.net/EI/Publications/Journals/Confronting_CSEC_ENG.pdf ECPAT International (2001). The Commercial Sexual Exploitation of Children in Southern Africa.
66 69
BAGNOL, Brigitte e Ernesto Chamo (2003).‘Titios e Catorzinhas: Pesquisa exploratória sobre ‘sugar daddies’ na Terre des Hommes (1999). Prostitution, Sexual Abuse and child Labour in Mozambique. Mozambique in ECPAT
Zambézia (Quelimane e Pebane)’. DFID/PMG Mozambique.. International (2001). The Commercial Sexual Exploitation of Children in Southern Africa.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 21


os resultados deste estudo concluíram que a grande maioria das crianças
expostas à exploração sexual são do sexo feminino (98%), 26% tinham
entre 10 e 14 anos de idade, cerca de 22% já havia sido abusada
sexualmente por alguém da sua família. Estes números têm ainda um
impacto grande, na escolaridade destas crianças já que apenas 14,1% vão
à escola e na saúde das mesmas, 48% já tinham alguma forma de STD.
Ainda de acordo com os resultados deste estudo, as raparigas nas ruas de
Maputo, na altura ganhavam entre um e quatro dólares ($1-$4). Os
preços variavam de cliente para cliente e pela negociação, que nem
sempre era possível, do uso ou não uso do preservativo, sendo que o não
uso do preservativo podia ser negociado por um pouco mais de dinheiro.
As razões apontadas pelas crianças para entrarem em atividades sexuais
de fins comerciais são a pobreza e a necessidade de sobrevivência, sua e
das suas famílias. A exploração sexual comercial surge como uma
ferramenta de sobrevivência, em troca por bens básicos como comida,
roupa, alojamento e as vezes mesmo para conseguirem ir à escola.

Um outro estudo desenvolvido pela Terre des Hommes70 salientou o


envolvimento de restaurantes e discotecas na exploração das crianças
(meninas e meninos) pelas várias cidades de Moçambique. Zonas como a
Beira e a fronteira de Ressano Garcia, ou outras zonas turísticas ou que
servem de local de passagem para muitos trabalhadores rurais que são
zonas de grande atração para a exploração sexual de crianças. Por
exemplo o Distrito de Ressano Garcia é característico por ter casas de
prostituição, normalmente associadas a um bar ou restaurante. Os
clientes são deste migrantes trabalhadores, as turistas nacionais e
internacionais. Chega a haver casos em que a exploração sexual de
crianças em determinadas zonas funciona como atração para o
desenvolvimento económico das zonas rurais, muitas vezes negociável.

70
In ECPAT International (2001). The Commercial Sexual Exploitation of Children in Southern Africa.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 22


IV.1.4. CASAMENTO DE CRIANÇAS promovidas por adultos não têm enquadramento no ordenamento
jurídico moçambicano (Ex: Código Civil, Lei da Família)73. O casamento e
Definição de Casamento de Crianças gravidez de uma criança é por si sempre prematuro/precoce e portanto
um outro indicador de Abuso Sexual. O casamento de crianças é um
Segundo a definição da Convenção Internacional dos Direitos da Criança indicador de uma das formas de violência comuns e exercido
uma criança é qualquer pessoa que tenha menos de dezoito (18) anos de particularmente sobre as raparigas.74
idade. Esta definição sugere que uma casamento com qualquer pessoa
com menos de dezoito anos pode ser classificado como “casamento com Magnitude do Problema
uma criança” (ECPAT Internacional) e/ou “casamento precoce”. No
mesmo sentido, qualquer criança grávida e/ou com filhos antes dos No Mundo
dezoito anos é uma “gravidez precoce/prematura”.
Apesar das medidas legislativas de proteção da crianças a nível mundial
Esta prática é condenada pela Carta Africana sobre os direitos e Bem- os mais diversos estudos e relatórios estatísticos a nível internacional e
Estar da Criança71 e no âmbito da proteção dos direitos humanos. O nacional indicam que o casamento de crianças é uma prática comum e
casamento de crianças é considerado um atentado ao desenvolvimento característica de muitas culturas e sociedades no mundial,
físico e saudável de qualquer criança e adolescente e uma restrição á particularmente na África Sub-Sahariana, Ásia e Médio Oriente. Embora
liberdade individual e ao direito à livre expressão, viola os seus direitos à existam leis que determinam a idade de casamento entre 18 e 21 anos,
educação e é um obstáculo ao desenvolvimento pleno das capacidades nos países de África Austral uma grande percentagem de meninas
físicas e intelectuais das suas vítimas. continua a casar com idades bastante inferiores ao que a lei estipula75.

Segundo a legislação de Moçambique o artigo 30 da Lei da Família72 (Lei Em Moçambique


n.o 10/2004 de 25 de Agosto) diz igualmente que são “impedimentos
dirimentes absolutos” ao casamento a idade inferior a dezoito anos; ou a Tal como é tradicional na totalidade dos países da região de África Austral
mulher ou homem com mais de dezasseis anos, a título excepcional, e em Moçambique, e apesar de a idade legal para casamento no país ser de
“quando ocorram circunstâncias de reconhecido interesse público e dezoito anos é um dos países com maiores índices de casamento de
familiar e houver consentimento dos pais ou dos legais representantes”. A crianças (estatística nacional). Os dados estatísticos dos últimos anos no
legislação pressupõe portanto que qualquer casamento em que a criança país indicam que a gravidez precoce e o número de crianças que já têm
tenha entre os 16 e 18 anos de idade foi “consentido” pela família ou os um filho com menos de 18 anos é assustador e preocupante. Estamos
seus legais representantes e qualquer casamento de menores de 16 anos perante uma realidade de proteção cultural e comunitária do fenómeno.
de idade é nulo aos olhos da lei moçambicana. Considera-se assim, que as 73
Sónia Nhantumbo-Divage; José Divage & Miguel Marrengula. Casamentos prematuros em Moçambique:
uniões de carácter matrimonial envolvendo menores de idade, sendo Contextos, tendências e realidades, Maio, 2010.
74
FDC (2008). Violência Contra Menores em Moçambique. Revisão de Literatura.
http://www.fdc.org.mz/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=100&Itemid=106&lang=en
71 75
Carta Africana sobre os direitos e Bem-Estar da Criança FDC (2008). Violência Contra Menores em Moçambique. Revisão de Literatura.
72
Lei da Família (Lei n.o 10/2004 de 25 de Agosto) http://www.fdc.org.mz/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=100&Itemid=106&lang=en

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 23


O casamento de crianças é consequentemente abuso e exploração sexual De acordo com os dados estatísticos do INE Moçambique de 200379 e do
de crianças é muitas vezes encoberto e indiretamente “socialmente MICS de 200880 com o apoio da UNICEF, das mulheres entre os 20 e 24
legitimado”. Está maioritariamente relacionado com o nível de pobreza anos de idade, dezoito porcento (18%) casaram antes de ter 15 anos e
destas crianças e as suas famílias e com desigualdades de género cinquenta e seis porcento (56%) casaram antes de concluírem os 18 anos
implícitas duma sociedade assente em normas sociais e práticas de idade. Segundo mesma fonte a percentagem de jovens moçambicanas
patriarcais76. dos 15-19 que são mães ou estão grávidas é de trinta e quarto porcento
(34%, 20,2% dos quais são mães entre os 15 e os 16 anos de idade). Em
As grandes limitações no acesso à informação compreensiva e incidência números absolutos mais de 700,000 meninas entre os 12 e 14 anos estão
do abuso e exploração sexual de crianças (particularmente incesto e casadas ou vivem em união estável (11%81), muito antes de completarem
abuso sexual em escolas e em locais de trabalho domestico) podem a maioridade.
portanto, de algum modo, ser colmatadas pelos dados estatísticos de
casamento e gravidez prematura. São igualmente bons indicadores de De acordo com DHS/IDS quarenta e um porcento (41%) dos adolescentes
que o abuso sexual é uma realidade culturalmente protegida e que toma entre os 15-19 anos são mães ou estão grávidas do primeiro filho e 17%
lugar no seio de práticas e normas patriarcais da sociedade moçambicana estão casadas antes dos 15 anos de idade. E a maioria dos adolescentes
comuns e importantes como é o casamento. (52%) está casada antes dos 18 anos de idade vendo comprometida a sua
disponibilidade à educação e saúde. Mesmo comparativamente a outros
O casamento de crianças (prematuro/precoce) é uma prática que está em países da África Austral, Moçambique apresenta uma alta percentagem
parte relacionada com uma hierarquia tradicional patriarcal que de meninas expostas ao casamento. Em 2003, quase quarenta porcento
reconhece comportamentos e regras de conduta definidas para cada (38,3%) das meninas moçambicanas de idade 15 a 19 anos eram casadas
membro da família e na sociedade e que depende do seu sexo e idade. ou a viver com o parceiro. 82
Esta hierarquia reconhece à rapariga (criança e mulher) menos valor na
estrutura intra e extra- familiar o que atenta contra os direitos humanos Recentemente, um estudo sobre os casamentos prematuros (CP) em
convencionados pelas normas jurídicas instituídas pela ONU e pelo Estado Moçambique concluiu que os CP refletem a estrutura social e familiar da
moçambicano.77 Um outro critério que tem vindo a ser utilizado para sociedade moçambicana. Os autores salientam que “os factores que
identificar casos de abuso sexual, mesmo que não reportados, é a “idade motivam a ocorrência do CP, estão relacionados com o facto de nas
da criança e a diferença entre a idade da criança e do seu parceiro instâncias sociais, principalmente na família e comunidade, ocorrer um
sexual”78. processo dinâmico e contínuo de atribuição de papéis e modelos de
feminilidade e masculinidade que produzem e reproduzem as relações
assimétricas de poder entre adultos e crianças e entre homens e
76
ECPAT International, (2007). Confronting the Commercial Sexual Exploitation of Children in Africa (disponível
79
electronicamente). http://www.ecpat.net/EI/Publications/Journals/Confronting_CSEC_ENG.pdf Instituto Nacional de Estatítica de Moçambique (INE), 2003.
77 80
Sónia Nhantumbo-Divage; José Divage & Miguel Marrengula. Casamentos prematuros em Moçambique: MICS, 2008
81
Contextos, tendências e realidades, Maio, 2010. Censo, 2007.
78 82
Sónia Nhantumbo-Divage; José Divage & Miguel Marrengula. Casamentos prematuros em Moçambique: FDC (2008). Violência Contra Menores em Moçambique. Revisão de Literatura. Disponível electronicamente:
Contextos, tendências e realidades, Maio, 2010, p.21. http://www.fdc.org.mz/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=100&Itemid=106&lang=en

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 24


mulheres”. Os próprios factores que estão associados à CP como altos tenha acesso à educação.
índices de pobreza entre a população rural, e o fraco acesso aos serviços
sociais básicos, como a saúde, educação, água potável estão relacionados A dimensão da incidência e consequências do CP não é conhecida no país,
com esta estrutura desigual já que a forma como estes são distribuídos porém, reconhece-se que funciona como factor de risco social e tem
depende igualmente do sexo da criança. Neste processo os autores impacto negativo na saúde e na qualidade de vida e desenvolvimento
chamam à atenção o papel desenvolvido pelos líderes comunitários e saudável de muitas meninas e raparigas moçambicanas. Favorece o
autoridades locais que promovem estas práticas como forma de abandono escolar entre as raparigas e consequentemente tem impacto
“rendimento alternativo” e as consequências que este tipo de práticas nos índices de pobreza entre a população feminina, e tem um impacto
pode trazer às suas vítimas. As consequências económicas destas práticas direto na sua saúde porque promove a incidência da gravidez precoce e é
são bastante maiores pelo nível de degradação particularmente na saúde causa de muitas complicações de saúde para as suas vítimas como sejam
das vítimas. Destacam-se inúmeras consequências na qualidade de vida e a mortalidade materna (antes, durante ou nos 42 dias subsequentes ao
na saúde física e mental destas crianças cujas implicações se devem parto) e contaminação pelo HIV83.
particularmente à iniciação sexual em idade precoce que tem está por sua
vez relacionada com a mortalidade materna causada pela gravidez Relacionado com o abuso sexual é importante considerar o impacto que
precoce e no aumento dos índices de prevalência do HIV e SIDA entre a estas práticas têm na participação de raparigas na escolas. O casamento
população feminina na faixa etária entre os 15 e os 29 anos de idade. A precoce está associado a factores de risco social já que ajudam a explicar
magnitude dos efeitos psicológicos do CP para a rapariga está a incidência de abandono escolar precoce e a falta de instrução e
insuficientemente estudada e compreendida dada a impossibilidade de educação entre a população feminina moçambicana com consequências
explorar o interior de uma estrutura familiar e social fechada. No entanto, sociais e económicas graves para as famílias, comunidades e para o
sabe-se que o CP é ainda um motivador para a violência doméstica. Neste desenvolvimento do país em geral. Adolescentes do sexo feminino com
sentido “qualquer ação que seja tomada visando o seu controlo e/ou idades entre os quinze e os dezanove anos (15-19), apresentam uma taxa
inibição devem ser desenvolvidas usando modelos participativos que de abandono escolar acima dos quarenta (40%) e as taxas mais baixas de
integrem referências desenvolvidas no interior das estruturas familiares conclusão em todos os níveis de escolarização comparativamente ao sexo
de modo a alongar o processo de emancipação para a vida adulta que no masculino 84 . Ao privar estas crianças dos seus direitos à educação
caso das raparigas é representado pelo casamento”1. Existe uma compromete-se a sua liberdade de desenvolver-se física e
necessidade de colaboração com as famílias mais vulneráveis (mais intelectualmente, priva-se igualmente o progresso socioeconómico do
pobres, isoladas, baixo índice de escolaridade) na criação de estratégias país85
que permitam outros rendimentos económicos e status social para as
famílias como forma de controlar o CP. Deste modo, um dos aspectos
fundamentais a ter em consideração para estes autores está na
responsabilidade dada às famílias e às comunidades na capacidade da
83
rapariga ver os seus direitos elementares respeitados e do seu interesse xxxx
84
Instituto Nacional de Estatísticas de Moçambique (INS), 2003.
em melhorar a sua qualidade de vida principalmente permitindo que esta 85
ECPAT International. Confronting the Commercial Sexual Exploitation of Children in Africa, 2007 at
http://www.ecpat.net/EI/Publications/Journals/Confronting_CSEC_ENG.pdf

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 25


Um estudo realizado em 2005 sobre os obstáculos à educação das superior entre as mulheres do que entre os homens, e tem vindo a
menina e raparigas na provincial da Zambézia concluiu que apesar dos crescer particularmente entre crianças e adolescentes. A diferença na
esforços no sentido de melhorar o acesso ao ensino de raparigas os prevalência entre homens e mulheres está associada a diversos factores a
progressos estão particularmente lentos comparando com os objectivos salientar factores biológicos, e socioculturais, que colocam a mulher em
nacionais e internacionais e as causas são muito complexas. Os aspectos situação de maior vulnerabilidade à infecção que o homem.
mais importantes apontados no estudo para as raparigas desistirem da
escola primária em três distritos da Zambézia são entre os aspectos Pode dizer-se que o VIH/SIDA para além de ser um resultado do
relacionados com a oferta dos serviços: as dificuldades de acesso às casamento prematuro de crianças é um resultado de casamento de
escolas, baixa qualidade de educação, e a violência e abuso nas escolas. crianças. Muitas crianças e raparigas casam precocemente porque ficam
No sentido de obstáculos à procura dos serviços foram salientados a órfãs pelo HIV/SIDA e os seus responsáveis não conseguem suportá-las e
pobreza, padrões e percepções culturais sobre escolarização; vontade de oferecerem-nas para casar. Também são frequentes os casos em que as
“curtir” e aspirar a um estilo moderno de vida; HIV/AIDS; e casamento e crenças de que homens com VIH/SIDA ao terem relações com virgens
gravidez prematuros. Em zonas rurais e semirrurais salientam um conflito podem ficar curados levam a que estes procurem crianças para casar 88.
entre as percepções de “escola” e de escolarização de raparigas em
confronto com as expectativas sociais e culturais de género que atribuem Os dados mostram ainda que na sociedade moçambicana as mulheres
à mulher um papel de mãe. Por sua vez, nas zonas urbanas concluem uma que iniciam a vida sexual e reprodutiva relativamente cedo (caso de
influência da sociedade moderna que motiva as crianças a buscar crianças que casam cedo) são normalmente vítimas de outras
interesses alternativos à escolar em particular consequências físicas como um elevado número de abortos e infecção
Estilos de vida que confrontem e se oponham as normas sociais e HIV/AIDS e muitas vezes consequências económicas pelo grande número
culturais de género que promove o sexo geracional e HIV/SIDA86. de mães solteiras e sem apoio económico do pai.

Igualmente preocupante são as implicações desta realidade para saúde A estruturas sociais e familiares em Moçambique pressupõem que o
destas crianças e jovens e para a saúde dos seus filhos. Por exemplo, adulto tem o domínio sobre a criança e que o homem é superior à
segundo os resultados do INS de 200387, os níveis de escolarização da mulheres e tem deste modo domínio sobre ela89. Estas crenças e atitudes
mãe estão correlacionados negativamente com o estado de desnutrição culturais afectam as relações conjugais e familiares decorrentes do CP. O
(crónica, aguda e insuficiência do peso) das crianças com menos de cinco lugar particular de inferioridade e submissão que a rapariga casada
anos (exemplo: a subnutrição crónica decresce com o aumento de nível prematuramente ocupa na relação conjugal e na família impede-a de
de escolaridade da mãe). negociar relações sexuais seguras, a fazer opções acerca das suas
necessidades de saúde reprodutiva e muitas vezes fica limitada á decisão
A acrescentar, a prevalência do HIV e SIDA em Moçambique é elevada e

86 88
Support to Education Sector Strategic Plan (2005). Multifaceted Challeneges: A Study on the Barriers to Girls’ ECPAT International. Confronting the Commercial Sexual Exploitation of Children in Africa, 2007 at
Education. Mozambique. http://www.ecpat.net/EI/Publications/Journals/Confronting_CSEC_ENG.pdf
87 89
Instituto Nacional de Estatísticas de Moçambique (INS), 2003. MMAS (2008). Plano nacional de Acção para aPrevenção e Combate à Violência Contra a Mulher (2008-2012).

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 26


do marido de recorrer aos serviços de saúde90 e ainda, de optar pelo não
pelo abandono da escola (SARDC, ISRI, INE&PNUD 2006, p.52). Assim, em
Moçambique, o CP constitui prática comum legitimada por factores
culturais, sociais, económicos, religiosos, psicológicos e morais que violam
os direitos da criança consagrados na Convenção Internacional dos
Direitos da Criança.

De facto, as normas culturais e tradicionais Moçambicanas,


particularmente nas zonas rurais do país, permitem e defendem este tipo
de práticas de casamento de crianças e adolescentes apesar da sua
inconsistência com as legislação do país. Ao aceitar essas práticas está a
compactuar com situações de violação dos direitos básicos das crianças.

90
Loforte, A. (2008, Fevereiro). Dinâmicas familiares e percepções de pobreza e género em Moçambique. “Outras
Vozes” nº 22 .

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 27


IV.1.5. TRÁFICO DE CRIANÇAS Em Moçambique o tráfico de crianças para exploração com fins
comerciais, como trabalhadores de sexo e trabalhadores domésticos,
Definição de Tráfico de Crianças constitui uma preocupação crescente.

Apesar da escassa literatura ao longo dos anos, os resultados têm sido Em 2005, o Centro de Estudos Africanos, da Universidade Eduardo
persistentes no que concerne à existência de várias formas de tráfico Mondlane, foi solicitado pelas diversas organizações da sociedade civil
humano há mais de um século, particularmente entre a Europa e África e para investigar os contornos e consequências do tráfico de pessoas em
entre os países do Sul de África91. Moçambique, em particular, tráfico de crianças e mulheres. Neste
contexto Carlos Serra publicou os resultados deste estudo sobre tráfico
Magnitude do Problema de crianças (Tatá-Mamã Tatá-Papá) e salientou que na generalidade,
existem três tipos de tráfico de pessoas: 1) prostituição para exploração
No Mundo sexual em África do Sul; 2) trabalho forçado (eventualmente disfarçado
por relações de parentesco); 3) extração de órgãos para fins mágicos ou
Em Moçambique cirúrgicos94 e que este fenómeno é agravado pela precariedade social e a
vulnerabilidade das fronteiras em Moçambique 95 . Entre as diversas
Em Moçambique, são vários os estudos desenvolvidos que confirmam a conclusões dos estudos realizados neste âmbito salienta-se o facto de
inclusão de crianças em formas de tráfico nacional e internacional. Um haver um quadro legal que, hoje prevê expressamente o crime de tráfico
estudo em 1990 pela Anti-Slavery International (ASI) confirmou que de pessoas, e pode ser efetivamente aplicado ao conjunto de práticas
crianças de Moçambique foram traficadas para a África do Sul onde eram criminosas perpetradas pelas redes de tráfico. No entanto, a realidade,
vendidas para atividades sexuais. Em 1991, a mesma organização relatou com ou sem leis, é outra e “vigora um espécie de lei do silêncio”, “a
que pelo menos quinze casos de jovens e crianças que foram traficadas passividade tem sido a característica principal em relação aos casos de
de Moçambique para a África do Sul para serem concubinas92. crimes praticados relacionados com o tráfico de pessoas96.” O principal
problema é, mais do que a legislação, a implementação dessas leis na
Em 2000, a ONG Molo Songololo desenvolveu um estudo sobre o comunidade e na sociedade. Serra (2007) salienta que existe um desafio
fenómeno de tráfico humano na África do Sul e constatou que as maior do que a legislação, o desafio de “passar das palavras à
principais vítimas traficadas eram mulheres e crianças oriundas de vários ação”(p.24), isto é, garantir a efetiva implementação dos instrumentos
países em África, inclusive de e para Moçambique93. legais. Existem atualmente leis suficientes e “bonitas” no entanto a

91
International Organization for Migration (2003). Seduction, Sale and Slavery: Trafficking in Women and Children
94
for Sexual Exploitation in Southern Africa. Serra, Carlos (2006). Tatá papá, tatá mamã: tráfico de menores em Moçambique. Imprensa Universitária.
92 95
Anti-Slavery International (1990) in International Organization for Migration (2003). Seduction, Sale and Slavery: Serra, Carlos e FDC (s.d.) Tráfico de Pessoas em Moçambique. Da retórica das palavras à dinâmica da acção.
Trafficking in Women and Children for Sexual Exploitation in Southern Africa. Disponível electronicamente:
93
Molo Songololo, (2000) in International Organization for Migration (2003). Seduction, Sale and Slavery: Trafficking http://www.fdc.org.mz/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=100&Itemid=106&lang=en
96
in Women and Children for Sexual Exploitation in Southern Africa. Idem, p. 5.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 28


efetivação e implementação das mesmas está longe de fazer parte da e/ou prostituição. Um dos percursos mais comuns do tráfico em
realidade diária do país97. Moçambique ao nível internacional tem como destino a África do Sul.
Duma maneira geral é frequente que o tráfico involuntário de raparigas
É de acrescentar que um dos aspectos principais realçados é que existe para a África do Sul seja para “servidão doméstica e prostituição forçada”
no país uma forma de tráfico interno que tem sido particularmente pouco e o tráfico de rapazes seja para “trabalhos em quintas e em minas”103.
atendida, e que pode ser mais perigosa e devastadora socialmente. Para além de explorados economicamente na maioria dos casos são
Práticas como o trabalho infantil de crianças tão pequenas como 7 anos abusados sexualmente e são forçados a viver em condições miseráveis e
de idade (35,6% das crianças no ativo têm entre 7 e 9 anos de idade98) sem as mínimas condições básicas. O relatório classifica a situação de
está protegida por práticas aceites culturalmente, como sejam ajudar a tráfico de pessoas em Moçambique como um país de grande
família. Ignoram-se os danos profundos e traumáticos que estas práticas preocupação, colocado no Tier Watch List correspondente à constatação
podem ter no desenvolvimento física e psicológica da criança99 como no de que apesar de se notarem esforços por parte do o governo de
seu acesso ao ensino (32,7% não estudam) e ferimentos e Moçambique em estar de acordo com os standards de combate a todas
desenvolvimento de doenças futuras100. as formas de tráfico de pessoas. Acrescenta-se que o número de vítimas
de formas de tráfico severo é bastante significativo e/ou está a aumentar
Tráfico para exploração sexual em África do Sul e trabalho forçado e não tem havido uma preocupação maior de combate ao problema
comparativamente aos resultados do ano anterior.
O tráfico de crianças para exploração sexual em África do Sul tem sido
objecto de grandes preocupações a nível nacional. Segundo a OIM101 Extração de órgãos para fins mágicos ou cirúrgicos
aproximadamente 1.000 mulheres e crianças são anualmente traficadas
de Moçambique para a África do Sul para o intuito de serem exploradas Uma outra forma de tráfico comum em Moçambique o tráfico nacional e
sexualmente na prostituição e/ou trabalho forçado. internacional de pessoas para remoção forçada de órgãos para fins
“mágicos”, mais concretamente para o seu uso em rituais (por exemplo
O US State Department of Trafficking in Persons Report102 diz igualmente para curar doenças, magoar inimigos, ambicionar ascensão económica,
que Moçambique está entre os países de e para onde o tráfico de pessoas entre outros)104. Segundo os resultados de vários estudos compilados por
(homens, mulheres e crianças) acontece na grande maioria dos casos de Serra (2006) a extração de órgãos para fins mágicos ou cirúrgicos é uma
Moçambique e África do Sul e é maioritariamente para trabalho forçado outra forma de tráfico comum em Moçambique105.

97
98
Idem, p.24 Neste contexto de inquietação sobre o tráfico e as suas consequências
Instituto Nacional de Estatísticas (2010). Inquérito Integrado à Força de Trabalho: Relatório sobre o Trabalho
Infantil em Moçambique. devastas para as suas vítimas, em 2008, a Liga Moçambicana dos Direitos
99
Serra, Carlos e FDC (s.d.) Tráfico de Pessoas em Moçambique. Da retórica das palavras à dinâmica da acção. Humanos realizou uma Revisão de Literatura sobre tráfico de partes de
(disponível electronicamente:
http://www.fdc.org.mz/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=100&Itemid=106&lang=en;
100
Instituto Nacional de Estatísticas (2010). Inquérito Integrado à Força de Trabalho: Relatório sobre o Trabalho
103
Infantil em Moçambique. U.S. State Department (2010). Trafficking in Persons Report 2010, p.243.
101 104
Organização Internacional para a Migração (OIM), 2002/2003. U.S. State Department (2010). Trafficking in Persons Report 2010.
102 105
U.S. State Department (2010). Trafficking in Persons Report 2010. Serra, Carlos (2006). Tatá papá, tatá mamã: tráfico de menores em Moçambique. Imprensa Universitária.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 29


corpo106. Conclusões deste estudo apontam para a falta de literatura ocorrência e não é adequada na persecução dos autores destes
sobre o tema quer em Moçambique e em África do Sul. Face aos horrendos crimes.
obstáculos encontrados resolveram desenvolver um estudo de campo
onde realizaram 22 workshops e oito sessões de grupo. No estudo A Liga Moçambicana dos Direitos Humanos em 2006 lança o Relatório
participaram 413 indivíduos e conseguiram entrevistar 139 participantes Anual Sobre Direitos Humanos de 2004. Nesse relatório faz referência a
e referidos por participantes dos workshops e sessões de grupo. Dos alguns casos de tráfico humanos e tráfico de partes de pessoas. Por
participantes 31 reportaram ter tido contacto ou conhecimento direto exemplo a 12 de Outubro de 2002 em Nampula “uma criança de 12 anos
com incidentes de tráfico de pessoas para extração de partes do corpo de idade e uma amiga estavam a vender bananas no Centro da cidade.
e/ou de partes do corpo isolados da vítima (44 no total visto que alguns Dois senhores apareceram e disseram que queriam comprar as bananas
reportaram mais do que um incidente). Cerca de 22% viram eles próprios todas. A amiga foi para casa e a menina foi com os senhores buscar o
um corpo mutilado sem algumas partes ou uma parte do corpo separada pagamento e nunca regressou. No mesmo dia os residentes do bairro
da vítima. O mesmo estudo salientou que no ato das entrevistas foi comunicaram a família o aparecimento do corpo da criança morto e sem
confirmado por vários que matar como forma de ritual acontece alguns órgãos (sem rins, coração, pulmões, etc.) e sem olhos. A policia deu
frequentemente em Mueda (Moçambique) e reportam um aumento do o seu corpo à família e não mostrou qualquer interesse pelo caso e o
número de casos com o passar dos anos. Entre as formas mais comuns corpo da criança foi enterrado”107.
estão os genitais masculinos e partes do corpo ligadas com sexualidade
como peitos das mulheres, e o coração. Das várias regiões visitadas em No mesmo sentido da Promoção e Proteção dos Direitos da Criança em
Sofala, Manica, Cabo Delgado, Maputo Província, Nampula, Niassa, e Moçambique, a Fundação Para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC)
Tete, todas reportaram incidentes de relacionados com tráfico de partes produziu dois vídeos-documentários, nomeadamente “Sob a Poeira da
de corpo. Estrada” e "Mwana - Um Olhar" que vêm retratar do forma objectiva a
questão do tráfico de pessoas que acontece dentro e a partir do território
Apesar da falta de investigação suficiente e clara sobre o tráfico de órgãos moçambicano. Neste documentário destacam-se conceitos, rotas e redes
e partes de corpo não permitir ter uma compreensão clara sobre o de tráfico, discutem-se fragilidades sociais e legais, e salientam-se as
fenómeno e ter informação concreta sobre a dimensão do problema os causas e consequências do tráfico de pessoas. Diversos especialistas são
diferentes estudos apontam para a existência de uma percepção de convidados a falar abertamente sobre o assunto e imagens inéditas
“naturalidade” face ao assunto. Os estudos realizados na área salientam situações de tráfico são apresentadas ao espectador que retratam cenas
que particularmente em zonas urbanas é uma prática “comum” cultural chocantes e preocupantes do esquema de travessia ilegal numa das
principalmente parte integrante de rituais de bruxarias e/ou cultos. fronteiras moçambicanas108.
Os vários estudos neste âmbito salientam ainda a falta de legislação e a
falta de programas que se dediquem à compreensão e eliminação deste Expresso pelo números de artigos e documentos sobre o tema nos
fenómeno em Moçambique. A legislação do país não prevê a sua últimos anos são vários os esforços conjuntos nacionais e internacionais

106 107
Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (2008). Tráfico de Partes de Corpo em Moçambique e na África do Sul. Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (2006). Relatório Anual Sobre Direitos Humanos de 2004.
108
Disponível electronicamente. English and Portuguese. Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (2011). Sob a Poeira da Estrada” e "Mwana - Um Olhar.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 30


no combate ao tráfico humano, particularmente pela criação de medidas severo é bastante significativo e/ou está a aumentar e não tem havido
legislativas, e crescente consciencialização do problema. uma preocupação maior de combate ao problema comparativamente aos
resultados do ano anterior.
Seguindo a linha de preocupação nacional e internacional de combate à
violência contra a criança é publicado anualmente o US State Department O relatório sugere ainda que as crianças vítimas de trabalho forçado são
of Trafficking in Persons Report109. O relatório do ano de 2010 diz que, grandemente mais sujeitas a outros tipos de abuso. Particularmente
apesar dos esforços nacionais, Moçambique está entre os países de e grave é o número de casos de crianças que são sujeitas a abuso e
para onde o tráfico de pessoas (homens, mulheres e crianças) acontece exploração por membros da sua própria família. O tráfico de crianças é
na grande maioria dos casos de Moçambique e África do Sul e é particularmente perigoso e traumatizante pelo facto de não só as crianças
maioritariamente para trabalho forçado e/ou prostituição. Uma das estarem longe do seu ambiente familiar como estarem mais
situações mais frequentes é mulheres e crianças de áreas rurais serem desprotegidas e vulneráveis a outras formas de abuso como violência,
aliciadas a ir viver para a cidade através de promessas de uma vida exploração sexual, e trabalho infantil.
melhor, particularmente uma melhor condição económica,
oportunidades de emprego e a possibilidade de continuar os estudos. Crianças “on the move”/Migração de Crianças
Posto isto, os percursos mais comuns do tráfico em Moçambique são a
nível internacional a África do Sul e ao nível interno das áreas rurais para Apesar de distinto do designação de tráfico de crianças, no últimos anos
as áreas urbanas. Para além de explorados economicamente na maioria tem-se assistido a um crescente interesse e consciencialização para as
dos casos as vítimas de tráfico são também abusados sexualmente e são questões de migração de crianças desacompanhadas, ou seja, crianças
forçados a viver em condições miseráveis e sem as mínimas condições que deixam as suas comunidades com destino a outros países e
básicas. O facto de serem maioritariamente ilegais faz com que fiquem realidades sem a proteção e suporte de um familiar ou responsável.
ainda mais vulneráveis a várias formas de abuso e de violência, que inclui
o abuso sexual e físico, e serem vítimas de roubos. É de acrescentar que o Em 2007 a Save the Children111 desenvolveu um estudo sobre crianças
facto de serem indocumentados faz com que não denunciem estes particularmente sobre o tema da migração de crianças desacompanhadas
abusos ou procurem ajuda110. O relatório classifica a situação de tráfico para a África do Sul. O estudo concluiu que muitas destas crianças que
de pessoas em Moçambique como um país de grande preocupação, migram de Moçambique para África do Sul vão desacompanhadas dos
colocado no Tier Watch List correspondente à constatação de que apesar seus responsáveis e deslocam-se maioritariamente à procura de
de se notarem esforços por parte do o governo de Moçambique em estar condições económicas melhores, como estratégia de “fuga” a situações
de acordo com os standards de combate a todas as formas de tráfico de de pobreza extrema e à infecção HIV/AIDS no país. No entanto, estas
pessoas. Acrescenta-se que o número de vítimas de formas de tráfico crianças ficam claramente mais vulneráveis nestas situações. Não só
porque estão desprotegidas emocionalmente pela falta de afecto e
109
U.S. State Department (2010). Trafficking in Persons Report 2010.
110
Save the Children (2007). Children crossing borders. Report on unaccompanied minors who have travelled to
111
South Africa. http://www.migration.org.za/sites/default/files/reports/2009/children-crossing-borders.pdf; Save the Save the Children (2007). Children on the Move. Protecting Unaccompanied Migrant Children in South Africa and
Children (2007). Children on the Move. Protecting unaccompanied migrant children in South Africa and the region. the Region. http://www.savethechildren.org.uk/en/docs/children-on-the-move.pdf
Dísponível em: http://www.savethechildren.org.uk/en/docs/children-on-the-move.pdf

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 31


proteção de adultos e da comunidade como estão mais sujeitas a ser
exploradas e abusadas no novo país. Os resultados de estudos que os
relatórios oficiais de imigração em Moçambique revelam salientam a
existência de problemas graves de documentação e implementação de
regras e leis de imigração/migração. A migração nacional e internacional
é muitas vezes ilegal. Com ela advém muitas outras consequências
emocionais e físicas em que crianças e mulheres estão particularmente
vulneráveis pela falta de assistência e suporte. De acordo com as
sugestões no relatório sobre migração de crianças desacompanhadas
entre Moçambique África do Sul o problema do tráfico e migração de
crianças, particularmente dado ao grande numero de casos anualmente,
não deveria ser tratado isoladamente mas deveria estar incluído num
sistema de serviços nacional para controlo de casos de tráfico e como um
factor protetor dos migrantes funcionado como um processo de
integração social.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 32


V. FACTORES CONTEXTUAIS PROTECTORES Segundo os resultados do Growing Up Global () países como
Moçambique, a pobreza, expressa pela falta de recursos básicos
Ao longo dos vários estudos no âmbito do abuso sexual e da violência necessários particularmente em casa e no ambiente em que as crianças e
contra mulheres e crianças em Moçambique têm sido apontados vários as suas famílias vivem e o nível de educação destas afecta a percentagem
factores socioculturais de risco e factores protetores da violência de crianças (rapazes e raparigas) vítimas de casamento precoce. Este
interpessoal, violência familiar, do abuso sexual e do tráfico de pessoas fenómeno pode ser explicado pelo facto de os países com as maiores
no país. De entre os aspectos principais estão a pobreza, crenças culturais taxas de casamento de crianças são também os países com maiores
e práticas comunitárias (informais) inconsistentes com as legislações índices de pobreza e baixos níveis de desenvolvimento geral, incluindo
oficiais, relações de poder e desigualdade de géneros, e antecedentes de taxas baixas de escolarização, de oportunidades de emprego e saúde
violência na família; aceitação de punição e castigo físico; acesso ao (ECPAT, X). Em muitas circunstâncias casamento infantil é uma estratégia
ensino e informação; papel da imprensa. de fuga de situações de abuso e sobrevivência económica por parte das
famílias ou das próprias crianças. O casamento de arranjo pode ainda
Como salientado pela OMS (2002) 112 a variação entre os níveis de estar relacionado com o pagamento de dividas que os pais das noivas
violência nas diferentes nações, incluindo Moçambique, sugere que a têm, disputas de terras ou chefias, ou disputas. Em todas estes casos os
violência é um produto de factores complexo mas modificável é possível direitos das crianças como indivíduos são muitas vezes ignorados ou
de prevenir, não sendo uma parte inevitável da condição humana. A minimizados.
violência resulta de um conjunto e da interligação de factores individuais,
relacionais, comunitários, e da sociedade. Entre alguns dos factores A pobreza e as dificuldades económicas extremas têm sido apontadas
associados com a violência e mencionados no relatório estão terem sido como uma causa e uma consequência da violência interpessoal: “Parece
vitimas de agressão e/ou abuso, ou a de uma disciplina muito rígida e ser um factor agravante em todas as formas de violência” em particular a
punitiva em crianças, negligência em crianças, terem sido testemunhas de violência doméstica (Gonzales de Olarte & Llosa, 1999).
violência, tráfico de pessoas, acesso a armas de fogo, relações de poder e
desigualdades de género e desigualdades económicas (pobreza). Um dos aspectos a ter em consideração e que acontece frequentemente
é as próprias famílias, essencialmente por terem falta de condições
V.1. Pobreza económicas acordarem um pagamento e/ou troca de uma filha (criança)
ou membro do sexo feminino (“noiva”) por bens (cabras, vacas, entre
Entre os vários factores sociais e comunitários de risco apontados nos outros) e/ou dinheiro. Desde modo, por detrás de uma prática comum e
vários estudos como propícios a um ambiente de violência interpessoal cultural está a ser aceite a negociação indireta do abuso sexual destas
estão a “desigualdade económica, pobreza, falta de redes de apoio crianças sobre o pretexto de um casamento.
económico, e o desemprego” (WHO, 2004, p.34).”
V.2. Crenças Culturais e Práticas Comunitárias

112
Organização Mundial de Saúde (2002). Relatório Mundial sobre a Violência e Saúde. Disponível:
http://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/world_report/outline/en/index.html

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 33


Quando falamos em violência, abuso sexual e tráfico em Moçambique social. No entanto, a comunidade não tem ação face a estas
não podemos esquecer o contexto social, económico e político onde circunstâncias e este tipo de casos é raramente reportado à polícia114.
estas temáticas estão inseridas. Em Moçambique, existem crenças
culturais e práticas comunitárias (informais) inconsistentes com as V.3. Relações de Poder e Desigualdades de Género
legislações oficiais que comprometem os direitos humanos em geral e os
direitos das mulheres e crianças em particular. Um aspecto importante quando falamos de factores protetores de
violência e crenças culturais é o facto de a violência ser muitas vezes
Entre as crenças culturais estão a discriminação e o estigma social face às condicionada por aspectos socioculturais (hábitos, crenças) intimamente
vítimas de violência e abuso sexual; papéis sociais rígidos desiguais entre ligados à desigualdade sexual e de relações de poder baseados no género,
homens sobre mulheres, e entre adultos sobre crianças; em particular crenças culturais de que o homem é superior à mulher e
responsabilização da criança em prol do adulto; diferentes concepções do portanto contentor de mais direitos sociais e familiares que a mulher,
que é “consentimento” e o que é abuso e violência. obscurantismo, e maneiras de vestir “indecentes”115.

Quanto às práticas comuns mais violentas e que comprometem o No inquérito específico sobre a violência contra mulheres em
cumprimento da legislação legal estão o casamento prematuro/precoce; Moçambique desenvolvido pelo Ministério da Mulher e da Ação Social em
favores sexuais em troca de bens; resolução de conflitos de forma 2004, foram apontados como factores de proteção ao ciclo de violência
informal e apaziguadora sem punição para os perpetradores; e ritos de geracional e obstáculos a mudanças para fora de situações de violência “o
iniciação e cujos factores socioculturais, na sociedade moçambicana, baixo nível de escolarização”, a “dependência económica” e os
promovem o casamento das raparigas logo após a primeira menstruação “preconceitos socioculturais de relações de poder baseados em
e antes da primeira relação sexual113. desigualdades de género”.

No que se refere às atitudes comunitárias face a criança destacam-se as Em Moçambique prevalece a mentalidade de aceitação da violência no
atitudes de aceitação do trabalho infantil para apoio económico da meio familiar e contra a mulher o que faz com que esta seja bastante
família, no entanto ao contrário o envolvimento de crianças em comum (MMAS, 2004, p.38). Consequentemente, as vitimas sentem-se
atividades sexuais para fins comerciais em Moçambique, com exceção de incapazes de lutar pelos seus direitos e ao invés de denunciarem os casos
algumas zonas como Ressano Garcia em que parece haver maior à policia tendem a buscar apoio no seio da familia e nos mecanismos
aceitação para a situação, é visto com algo vergonhoso e é entendido que informais e tradicionais de aconselhamento cuja resolução de conflitos
a criança é a responsável por ter escolhido essa via para ganhar dinheiro, está fora da instituição oficial e legal (policia e tribunais). Constata-se que
independente das suas circunstâncias. Estas crianças, e as suas famílias, “As mulheres preferem procurar apoio de um familiar chegado ao invés
passam a ser vistas com repulsa e são imediatamente rejeitadas e da polícia, o que quer dizer que os mecanismos tradicionais e informais
desrespeitadas pela comunidade, levando á estigmatização e isolamento
114
ECPAT International (2001). The Commercial Sexual Exploitation of Children in Southern Africa.
113 115
Sónia Nhantumbo-Divage; José Divage & Miguel Marrengula (2010). Casamentos prematuros em Moçambique: MMAS (2008). Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher (2008-2012). República de
Contextos, tendências e realidades, Moçambique: Maputo.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 34


de aconselhamento, apoio e resolução de conflitos têm preponderância
sobre os oficiais e legais” (MMAS, 2004, p.38)116. Consequentemente V.4. Aceitação da Punição e Castigo Físico
continua a ser limitado o conhecimento publico e ter números claros que
permitam perceber melhor a dimensão do problema e o número de Em Moçambique, da mesma maneira que se aceita culturalmente o
pessoas afectadas pela situação. Dificulta ainda a possibilidade de punir autoritarismo familiar e desigualdades de género, continua a existir uma
legalmente os autores dos crimes e impossibilita a mudança de grande tolerância social e cultural face ao castigo físico que pode por sua
mentalidades de base de aceitação da violência contra mulheres assente vez explicar os números elevados de maus tratos infantis (Mariana, ).
em padrões normativos sociais de desigualdades de género. Torna-se
visível que o número de denúncias por parte das vitimas às autoridades No geral, estudos indicam que a eliminação de todas as formas de
formais como a policia são muito aquém dos números reais de casos de violência exige uma restruturação profunda da mentalidade
violência cujos casos ficam abafados entre o círculo familiar e moçambicana já que existem formas de abuso contra crianças que
comunitário. É visível a necessidade de promover a denúncia entre as continua “socialmente legitimado” (Kula, 2008) e em muitos casos
autoridades formais. reportar os casos à policia e falar sobre o tema continua um “tabu social“
(WHO, 2004, p. 28). “Os esforços continuam a ser incipientes sobretudo
Relativamente à ocorrência de casamentos prematuros ou gravidezes para limitar os constrangimentos socioculturais que favorecem o
indesejadas entre crianças/adolescentes e as implicações no acesso e fenómeno” (KULA, 2008, p.13)
conclusão de educação formal entre rapazes e raparigas, os factores
socioculturais mais salientados são a pouca importância tradicional de V.5. Acesso ao Ensino/Falta de Informação
educação formal das raparigas e normas sociais tradicionais do papel da
mulher como esposa e mãe. Deste modo, o problema de abuso sexual e violência contra crianças está
muitas vezes associado à educação e falta de informação da criança e das
Como referido anteriormente o facto de as próprias famílias acordarem comunidades sobre os direitos da criança, particularmente direitos das
um pagamento e/ou troca de uma filha ou membro da família do sexo mulheres.
feminino por bens e/ou dinheiro. Está pressuposto um desequilíbrio de
direitos entre géneros. Esta negociações acontece particularmente de No relatório da ONG Save the Children (2005) sobre o abuso sexual de
acordo com práticas e costumes tradicionais e fora do alcance da lei, raparigas nas escolas de Moçambique, nomeadamente formas de abuso,
normalmente entre crianças/raparigas e homens muito mais velhos. É atitudes e percepções. Os resultados do estudo salientaram uma
também ela uma aceitação do abuso sexual destas crianças sobre o dicotomia zonas rurais/urbanas que pode ser explicada pelo facto de as
pretexto de um casamento. É de acrescentar que estes casamentos pessoas nas zonas rurais terem normalmente niveis de educação mais
arranjados estão normalmente associados com violência domestica baixos, estarem mais isoladas que leva a falta de informação e pobreza.
(ECPAT, ). Acrescentando estão os costumes tradicionais locais. Salientaram como
factores que levam a um ambiente abusivo as normas sociais e costumes
116
tradicionais que se sobrepõem-se ao sistemas judicial e legal existente no
MMAS (2004). Inquérito sobre Violência contra Mulheres. República de Moçambique, p.38.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 35


país. Estes valores assentam sobretudo em normas sociais desiguais entre falta de informação por parte dos membros da comunidade para as
homens e mulheres, e resolução de conflitos pela negociação entre as implicações “incalculáveis” da violência na saúde mental e física das
famílias envolvidas. crianças e no seu crescimento saudável e seguro (filme).

Resultados indicam ainda que as escolas em Moçambique estão longe de Como consequência muitos casos continuam por ser denunciados. Por
ser um ambiente seguro para as crianças que as frequentam, exemplo: quando as vitimas ficam grávidas dos abusadores espera-se que
particularmente porque entre os abusadores constam professores e estes casem com as raparigas e tomem responsabilidades pelo bebé e
estudantes. pela família. É comum que as próprias famílias e comunidades não
atendam aos efeitos emocionais do abuso sexual no desenvolvimento
O estudo desenvolvido em 2007 pela Save the Children no âmbito das saudável das crianças.117
percepções da comunidade (adultos e crianças) na Província da Zambézia
de Moçambique no que diz respeito ao abuso sexual e á exploração de Relativamente à ocorrência de casamentos prematuros ou gravidezes
crianças em casa e pela família, na comunidade e nas escolas conclui que indesejadas entre crianças/adolescentes têm ainda várias implicações na
as comunidades tendem a caracterizar “abuso” pelo uso da força. Neste desigualdade de acesso à educação formal e conclusão nos vários níveis
sentido, quando uma criança participa “voluntariamente” numa atividade de ensino escolar entre rapazes e raparigas.
sexual a comunidade não aprova necessariamente o ato mas também não
o considera abuso sexual. Por exemplo: é culturalmente aceite e Relativamente ao tráfico de pessoas e crianças: Entre as razões apontadas
desculpabilizava pelos membros da comunidade que as crianças para o facto de haver tantos casos de tráfico de pessoas e crianças estão:
participem em atividades sexuais com um adulto em troca de algum bem a pobreza e vulnerabilidade das fronteiras. Acrescentam que é
económico ou status social a não ser que o adulto falhe e desrespeite a importante não esquecer o tráfico interno particularmente considerando
transação acordada entre as partes. De certo não tomam em que este não é menos grave e atinge ainda mais famílias e é
consideração a incapacidade de uma criança tomar a responsabilidade e perigosamente muitas vezes encoberto por práticas culturalmente ditas
entender as implicações dessas atividades sexuais como a possibilidade como legítimas.
de engravidar, ou infecção HIV/AIDS. De entre os obstáculos salientados
pelos membros da comunidade para não denunciarem os casos de abuso Os casos de violência e abuso sexual são raramente reportados buscando
estão essencialmente a credibilidade da policia relativamente à sua apoio a nível familiar e comunitário. A sua origem assenta sobretudo num
capacidade de resolver casos e punição legal dos autores dos crimes, o sistema social, económico, político e religioso patriarcal baseado em
medo da vitima de represálias por parte do abusador e a destruição da valores, tradições e crenças normativas hierárquicas e discriminatórias de
sua reputação (individual e da família) ao nível da comunidade. O estigma poderes de homens sobre mulheres. 118
social e a rejeição social particularmente por membros masculinos da
comunidade é um elemento de grande pressão social que promove o 117
Save the Children (2007). Proteger as Crianças: atitudes comunitárias em relação ao abuso sexual de crianças nas
“silêncio”. O entendimento das consequências emocionais e psicológicas zonas rurais de Moçambique.

nas crianças é ignorado o que pode ser explicado em grande parte pela 118
Loforte, A. M. (2009). Os movimentos sociais e a violência contra a mulher em Moçambique: marcos de um
percurso. “Outras Vozes” nº 27, Junho.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 36


vitimizadas sexualmente no contexto de práticas culturais com
Apesar dos avanços no combate às desigualdades de género e violência implicações na sua identidade sexual. Entre outros factores apontados
contra mulheres e raparigas a nível internacional e local (UNDP, 2009; estão a epidemia pelo HIV/SIDA que levam muitas crianças e jovens a
UNIFEM, 2010), evidencia-se a necessidade de desenvolver projetos na ficar órfãs e mulheres ficarem viúvas e mais desprotegidas. Do mesmo
expansão e melhoria de serviços prestados. Entre os grandes desafios modo que para muitos estas condições motivam a migração que muitos
estão a necessidade de unir esforços na modificação de valores culturais traficantes usam como captação de vítimas na criação de expectativas
patriarcais desiguais entre géneros e colocar o homem na liderança irreais e ideais de uma vida melhor, com mais condições e oportunidades
destes serviços no intuito de modificar mentalidades de estrutura (RM, criando-se espaço para atividades de crime organizado com base nestas
2008). vulnerabilidades119.

Prevê-se que as mudanças nas práticas culturais e tradicionais Um outro aspecto a salientar é a lucro das redes de tráfico organizado e
comunitárias seja possível quando motivada por beneficiários do sistema as penalidades para este tipo de crimes. Estima-se que o crime
patriarcal (agentes de mudança) que dispõem de maior poder e impacto organizado de tráfico humano é um dos crimes com maior lucro a nível
sobre a decisão de alteração dos valores culturais (homens sobre mundial, somente ultrapassado pelo tráfico de drogas e tráfico de armas,
mulheres, velhos sobre jovens, líderes). Os interesses económicos, e que ao contrário de ser severamente punido como no caso dos crimes
políticos, de saúde e sexuais destes condicionam as iniciativas de organizados de tráfico de drogas ou armas.
mudança ou não das práticas. O sucesso é maior quando os atores da
mudança são sensibilizá-los na superação de estereótipos de género e V.6. Antecedentes de Violência na Família
consideram a mudança necessária e pertinente. Promove-se a sua
participação como promotores e ativistas da mudança difundindo a No âmbito da compreensão da violência familiar vários estudos tem vindo
mensagem entre os jovens, eles próprios importantes estando mais a salientar as consequências graves da violência familiar quer ao nível do
despegados da cultura e determinando, no presente e futuro, a indivíduo quer no seu desenvolvimento futuro saudável. Uma das
reprodução ou eliminação das mesmas (Blanco & Domingos, 2008). consequências graves que tem sido enumerada é o facto da violência
familiar/doméstica ter impacto na vivência interpessoal das suas vítimas,
Também no que concerne ao tráfico humano é consensual que entre os com destaque para o carácter geracional da violência. Conclui-se que
principais factores protetores apontados para a existência e frequência muitos perpetradores foram outrora vitimas de violência familiar e a
do tráfico em África estão as vulnerabilidades criadas pela Guerra, violência familiar/doméstica é na maioria das vezes uma manifestação ou
pobreza, falta de recursos económicos (fome), nível de escolarização consequência da exposição direta ou indireta (testemunhar violência
baixa, desemprego, e falta de oportunidades para a maioria das
populações. Em particular, as mulheres estão particularmente
vulneráveis, que se deve ao facto de muitas terem sido anteriormente

119
International Organization for Migration (2003). Seduction, Sale and Slavery: Trafficking in Women and Children
for Sexual Exploitation in Southern Africa’. Disponível electronicamente:

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 37


entre os pais e familiares) à violência no processo de crescimento e
desenvolvimento dos perpetradores120.

Um outro aspecto que tem sido salientado ao longo dos estudos é a


associação entre um ambiente familiar instável (ou seja, em que a vítima
tenha sofrido ou testemunhado alguma forma de abuso no início da vida)
e a violência sexual na infância, particularmente raparigas antes dos 13
anos de idade.121 Um ambiente familiar caótico coloca as crianças sob
maior risco de abuso sexual dentro e fora da família.122

V.7. A Imprensa e a Violência

Segundo o relatório realizado no âmbito da criança na imprensa

A Rede de Comunicadores e Amigos da Criança (RECAC)

Neste âmbito a UNICEF lançou em 2007 um Guia Prático para Jornalistas.


Cobertura jornalística sobre a violência, abuso sexual e exploração da
criança.123

120
MMAS (2008). Plano Nacional de Acção para a Prevenção e Combate à Violência Contra a Mulher (2008-2012).
República de Moçambique.
121
Matthew J Breiding a, Avid Reza b, Jama Gulaid c, Curtis Blanton b, James A Mercy a, Linda L Dahlberg a,
Nonhlanhla Dlamini d & Sapna Bamrah (2011). Risk factors associated with sexual violence towards girls in
Swaziland. Dísponível eletronicamente: http://www.who.int/bulletin/volumes/89/3/10-079608/en/
122
Craig M. Allen, Chung M. Lee (1993). Family of Origin Structure and Intra/Extrafamilial Childhood Sexual
Victimization of Male and Female Offenders. Journal of Child Sexual Abuse, Volume 1, Issue 3, 1993, Pages 31 – 46.
123
UNICEF (2007). Guia Prático para Jornalistas. Cobertura jornalística sobre a violência, abuso sexual e exploração
da criança. Disponível electronicamente:
http://www.unicef.org/mozambique/Guia_para_jornalistas_violencia_contra_criancas_190607.pdf

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 38


VI. IMPLICAÇÕES DA VIOLÊNCIA parte de pais e/ou tutores das crianças, violência por parte de parceiros
íntimos, violência sexual, entre outros), a violência é o maior problema de
A violência constitui um dos fenómenos mais devastadores a nível social, saúde pública no mundo. Todos os anos, milhões de pessoas morrem
económico e ao nível da saúde pública. Tem um impacto negativo como resultado de violência. Muitas mais sobrevivem, mas ficam
profundo nas vítimas, particularmente na sua saúde física e mental e na debilitadas e afectadas para sempre. A violência está entre as maiores
adaptação social. causas de morte entre pessoas de 15-44 anos de idade no mundo e
contribui para uma variedade de outras consequências na saúde dos seus
O carácter geracional da violência interpessoal 124 é um problema sobreviventes. As vítimas muitas vezes sofrem grandes consequências
complexo e tem implicações graves não só para o desenvolvimento social, para a saúde física e psicológica como depressão, transtornos de
emocional, e cognitivo das crianças e adolescentes, mas ansiedade e transtorno de stress pós-traumático (PTSD). A violência
consequentemente para as suas famílias, comunidades e também pode resultar em comportamentos com risco acrescido para a
desenvolvimento económico dos países125. sua saúde incluindo o uso de drogas, sexo desprotegido, abuso de álcool,
tabagismo e distúrbios alimentares. Todos estes aspectos são conhecidos
De um modo geral, as vítimas/sobreviventes de violência e abuso sexual fatores de risco para algumas das outras causas de morte, doença e
apresentam manifestações de sintomas médicas/orgânicas que variam de invalidez como sejam doenças cardíacas, câncer, suicídio e HIV/AIDS126.
paciente para paciente e que podem ou não ser traumáticas.
As principais reações psicológicas e físicas entre as vítimas de violência e
No entanto, existe um conjunto de patologias comuns à maioria dos abuso sexual estão os sintomas depressivos, ansiedade, medo,
sobreviventes de violência e/ou abuso sexual a citar as doenças do foro pensamentos suicidas (sintomas emocionais) perturbações alimentares e
ginecológico (por exemplo, uma maior propensão a DTS´s) e psicológico. do sono, dores de cabeça, dores de estômago, cansaço, distúrbios
Estas patologias podem durar dias, semanas, meses ou manifestar-se gastrointestinais, e sensações de mau estar geral (sintomas físicos)
para o resto das suas vidas dependendo do nível de gravidade do abuso, dificuldades de concentração e memória, híper-vigilância, pesadelos,
proximidade ao perpetrador, número de ocorrências, idade da vítima e flashback (sintomas cognitivos) dissociação, falta de confiança nos outros
patologias do foro psicológico anterior ao abuso, entre outros. (sintomas comportamentais/sociais).

VI.1. Consequências na Saúde Física e Psicológica De um modo geral, “o tipo de reação dos pacientes é determinado pela
sua estrutura psicológica. A sua personalidade, destacando-se a
Segundo o relatório Mundial sobre a Violência e Saúde (2002) personalidade pré-mórbida ou a existência de perturbação psicológica
desenvolvido e publicado pela Organização Mundial de Saúde e de entre anterior” (RECAC, 2010).
as várias formas de violência examinadas (abuso sexual e negligência por

124 126
WHO (2002). World report on violence and health (WRVH). Disponível eletronicamente: WHO (2005). World Health Organization violence prevention activities, 2000-2004. Prepared for UNESCO's mid-
http://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/world_report/chapters/en/index.html term report on the International Decade for a Culture of Peace and Non-violence for the Children of the World
125
WHO (2004). February 2005. Available at: http://www3.unesco.org/iycp/Report/WHO.pdf

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 39


A confusão de ideias (desespero, raiva, irritabilidade, medo da dor e da parte dos países os serviços disponíveis não atendem as necessidades dos
morte), choro fácil, distanciamento afectivo, são outros sinais ou sobreviventes. Para além de muitas vezes esses serviços não existirem, a
sintomas psicológicos que ocorrem com frequência. natureza da violência sexual e da reabilitação dos seus sobreviventes,
particularmente crianças e adolescentes, requer uma atenção especial e
Dos atos de violência podem ainda surgir direta ou indiretamente uma formação especializada. No entanto, muitos dos profissionais de
consequências ao nível do estado da saúde física das saúde que prestam essa assistência muitas vezes carecem de formação
vítimas/sobreviventes. A violência, essencialmente quando por parte de em violência sexual e da coleta de evidências forenses necessária e
um parceiro íntimo é das maiores causas de sequelas na saúde das fundamental num processo de investigação clinica bem como
mulheres e no Mundo (OMS, 2011). necessidade da fazer um exame médico imediato com características
próprias que incluam profilaxia HIV e outras IST, contraceptivos de
Ao nível das implicações da violência contra mulheres e raparigas na emergência, entre outras e avaliação psicológica da vítima.128
saúde esta está associadas com o aumento de infecções sexualmente
transmissíveis (IST’s) e VIH/SIDA127 e maior incidência de gravidez precoce VI.1.1. Violência e Infecção HIV/Sida
que por sua vez se repercute em maior incidência de complicações
ginecológicas, abortos, morte fetal, e estados de desnutrição de recém
Em Moçambique, a violência contra a mulher e a crescente infecção
nascidos até aos 5 anos de idade.
HIV/SIDA entre a população feminina ("feminização da Sida") são dois dos
problemas mais graves do país, estão relacionados entre si, atingido
Vítimas de violência apresentam ainda tendencialmente comportamentos
níveis particularmente elevados nos últimos anos.129 A principal vítima é a
de risco que por sua vez as colocam em situações de maior
mulher ou rapariga, abusada por parceiros, de qualquer extracto
vulnerabilidade. Por exemplo o abuso sexual em criança está associado a
socioeconómico e idade. Os casos são raramente reportados buscando
maiores níveis de comportamentos de risco sexual como sejam a
apoio a nível familiar e comunitário (RM, 2008).
iniciação sexual precoce, múltiplos parceiros, e sexo desprotegido. É
ainda frequente o recurso ao abuso de substâncias e vulnerabilidade a
Resultados de vários estudos apontam para uma associação entre a
novas situações de vitimização. Cada um destes comportamentos está
violência e uma maior vulnerabilidade à infecção por HIV\SIDA 130 .
associado portanto a outros riscos para a saúde.

128
WHO (2005). World Health Organization violence prevention activities, 2000-2004. Prepared for UNESCO's mid-
É de acrescentar que apesar de se reconhecer que a violência sexual é um term report on the International Decade for a Culture of Peace and Non-violence for the Children of the World
problema de saúde pública grave que ocorre em todo o mundo, com um February 2005. Available at: http://www3.unesco.org/iycp/Report/WHO.pdf
129
Osório, C. (2004). Algumas reflexões sobre a abordagem de género nas políticas públicas sobre o HIV/SIDA.
impacto profundo saúde na física, mental e bem-estar social das vítimas a “Outras Vozes”, nº 6, Fevereiro; Silva, T. C., & Andrade, X. (2005, Fevereiro). Feminização do Sida em Moçambique:
A cidade de Maputo, Quelimane e distrito de Inhassunge na província da Zambézia como estudos de caso. “Outras
curto e a longo prazo estes são muitas vezes subestimados e na maior Vozes”, nº 10, Fevereiro.
130
WHO (2005). World Health Organization violence prevention activities, 2000-2004. Prepared for UNESCO's mid-
term report on the International Decade for a Culture of Peace and Non-violence for the Children of the World
127
OMS (2002). Relatório Mundial sobre a Violência e Saúde February 2005. Available at: http://www3.unesco.org/iycp/Report/WHO.pdf
http://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/world_report/outline/en/index.html

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 40


Verifica-se uma tendência de maior incidência de casos de infecção entre Os estudos apresentados pela OMS (2004) no âmbito das implicações
vítimas de violência doméstica comparativamente com as que não sofrem económicas da violência interpessoal indicam que são várias as
de violência. 131 consequências económicas da violência interpessoal nas vítimas em
particular e na sociedade em geral. Apesar de ser difícil estimar os custos
V.2. Custos Económicos e Sociais da Violência e Abuso Sexual e implicações da violência e abuso sexual os vários estudos realizados
sugerem que são inúmeros os custos diretos (despesas de saúde e legais,
As consequências sociais e económicas do abuso sexual e da violência
danos físicos e sofrimento psicológico, entre outros) e indiretos
contra as mulheres e crianças são enormes e os seus efeitos
(qualidade de vida, produtividade, etc.) do abuso sexual a nível
devastadores.
internacional e nacional. “As evidencias mostram que o sector publico, e
consequentemente a sociedade no geral, são os mais afectados pelas
Ao nível social, sabe-se que os suportes sociais por si só representam uma
consequências económicas da violência interpessoal132” como cuidados
componente importante no bem estar geral de qualquer indivíduo.
médicos e despesas legais que são maioritariamente pagas por fundos
Também na recuperação de vítimas/sobreviventes de uma situação
públicos. Todos os estudos existentes indicam que as intervenções de
traumática o suporte social da família, amigos e comunidade é
apoio e reabilitação de vitimas de violência custam mais economicamente
fundamental e funciona como uma componente principal dos
do que as intervenções de regulação social e legais.
mecanismos de readaptação.
São comuns entre as vítimas características como falta de assiduidade,
Os sintomas psicossociais mais comuns entre as vítimas/sobreviventes
dificuldade em manter ou encontrar um emprego, conflitos interpessoais,
são o isolamento social, relacionamentos disfuncionais, dificuldades de
perda de interesse pelas atividades regulares, e a capacidade de cuidar-se
confiar nos outros, irritabilidade, hipersensibilidade, tendência a repetir
a si próprias às suas famílias e crianças. Estes são ainda frequentemente
padrões de violência como perpetrador ou vitimização, síndrome de
menos remunerados.
stress pós-traumático, distúrbios alimentares, e stress emocional.
As implicações da violência interpessoal ao nível da sociedade estão
Ao nível das consequências económicas da violência a OMS (2004)
particularmente relacionadas com as consequências serem
desenvolveu uma revisão de literatura sobre os estudos científicos no
“extremamente dispendiosas” para o Estado (custos médicos, custos
âmbito das implicações económicas diretas e indiretas da violência
legais, entre outros).
interpessoal e concluiu, essencialmente, que “os custos económicos e as
consequências da violência interpessoal são enormes” (OMS, 2004). Essa
Os resultados da OMS no âmbito da violência contra crianças
mesma revisão salientou que os estudos neste âmbito demonstram que é
demonstram que há uma necessidade clara para o desenvolvimento de
que os programas de prevenção são “cost-effective”.
mais estudos no intuito de perceber o impacto económico e custos
diretos da violência “interpessoal” particularmente estudos em países em
131
Silva, T. C., & Andrade, X. (2005, Fevereiro). Feminização do Sida em Moçambique: A cidade de Maputo,
Quelimane e distrito de Inhassunge na província da Zambézia como estudos de caso. “Outras Vozes”, nº 10,
132
Fevereiro. WHO (2004) p.26

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 41


desenvolvimento. Consideram e recomendam compreender a correlação
entre a condição económica e a violência. 133

A OMS salienta a evidência da eficácia dos programas de prevenção


(qualidade-preço) e salienta a importância de desenvolver programas
para a redução dos números de abuso sexual. Os resultados de vários
estudos desenvolvido nos EUA na área, compilados pela OMS indicam
que os custos da prevenção de violência são o correspondente a cerca de
um nono dos custos do abuso sexual de crianças, assumindo que a
prevenção conseguiria eliminar o abuso sexual de crianças. Algumas das
despesas enumeradas que conseguiriam evitar são: no sector público,
maioritariamente, menos serviços sociais e de saúde, menos custos com
os processo criminais, entre outros.134

O impacto socioeconómico e para a saúde do trauma e violência são mais


significativo nos países pobres e em populações desfavorecidas. O trauma
leva à pobreza e a pobreza é um factor de risco para o trauma e
violênciaii.. Estima-se que por ano, nos países em desenvolvimento, o
custo do trauma varie entre 1% e 3% do produto interno bruto, cerca de
25 biliões de dólares americanos.135

Recomenda-se que se de façam estudos semelhantes com metodologias


rigorosas com categorias específicas de custos diretos e indiretos para
que se façam depois comparações entre países.

133
WHO (2004). Costs for Interperssonal Violence.
134
WHO (2004). Costs for Interperssonal Violence.
135
Peter Barss et al. Injury Prevention: An International Perspective – Epidemiology, Surveillance and Policy, Oxford
University Press. 1988.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 42


VII. CONCLUSÕES denúncia pública de todas as manifestações de violência em casa, no seio
da família, na escolar, no trabalho e na comunidade.
Com base na revisão de literatura sobre a violência contra mulheres e
crianças em Moçambique (em particular abuso sexual, violência A revisão salienta os contextos socioeconómicos e políticos em que a
doméstica e tráfico humano), na informação sobre os serviços de apoio violência e o abuso acontecem e os factores socioculturais que mais os
disponíveis a nível público neste âmbito e nas Estratégias e Plano de Ação protegem e eles próprios os maiores obstáculos à eliminação de todas as
apresentadas pelo Departamento de Saúde Mental do MISAU para formas de violência, nomeadamente a pobreza, relações de poder e
fortalecer e expandir esses serviços a nível Nacional conclui-se que em desigualdades de género, acesso ao ensino e informação, aceitação
geral: muitas mulheres e crianças são vítimas de diversas formas de sociocultural do castigo físico, e percepções culturais e tradicionais mitos
violência, abuso sexual e tráfico no país e há uma necessidade urgente de e crenças negativas cujos conteúdos não têm base científica e perpetuam
criar mecanismos de proteção e apoio a essas vítimas. Apesar dos comportamentos contrários aos direitos humanos e direitos das crianças
esforços de combate a esta realidade social e de saúde pública os em particular.
recursos continuam bastante escassos, os que existem estão centrados
nas zonas urbanas e nomeadamente em Maputo, são debilitados quanto Dada a incidência de violência, abuso e exploração de mulheres e crianças
às suas infraestruturas e demostram falta de coordenação multidisciplinar e a complexidade do problema em Moçambique ambiciona-se uma
e multissectorial que compromete a eficácia dos mesmos. Em geral existe abordagem global das questões, uma resposta intersectorial e
uma escassez de técnicos de saúde mental particularmente psicólogos multidisciplinar de cooperação entre os vários organismos públicos e da
clínicos e terapeutas familiares a nível nacional, provincial, distrital e sociedade civil e apoiantes que inclua componentes de promoção,
regional. A insuficiente sensibilização e formação de técnicos e prevenção, atenção, reabilitação e apoio às vítimas/sobreviventes. Os
profissionais de quadros básicos e médios de saúde e de outros critérios de diferenciação das várias formas de violência são ténues e
profissionais que lidam diretamente com esta temática (líderes muitas vezes estão interrelacionadas.
comunitários, polícias, professores, entre outros) tem sido muito precária
e aleatória particularmente por falta de contemplação e atenção Acrescente-se que os números existentes são bastante inferiores à
suficiente às implicações desta realidade no desenvolvimento saudável realidade já que a maioria dos incidentes de violência familiar e abuso
dos indivíduos e famílias em particular e das comunidades e do país em sexual são sistematicamente difíceis de reportar e não são reportados,
geral. A informação quantitativa é escassa, às vezes é pouco fiável, bem como todas os cálculos das suas implicações económicas são
(particularmente a informação publicada pelos media) e insuficiente e os subestimadas.
serviços de apoio à vítima e aos grupos vulneráveis é inexistente em
muitas províncias do país. Em conclusão esta revisão de literatura demonstra a necessidade de mais
estudos e investigações no que diz respeito à incidência das diferentes
Em particular, é urgente uma atitude de “tolerância zero” à violência e formas de violência, abuso e tráfico de pessoas e às implicações sociais e
abuso sexual da criança e da mulher e de sensibilização e promoção da económicas destas; sensibilização das comunidades sobre o tema; e
particularmente o fortalecimento de serviços multidisciplinares de

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 43


resposta e apoio psicossocial a mulheres e crianças vítimas de todas as
formas de violência, em particular violência doméstica e/ou familiar,
abuso sexual e tráfico. Este fortalecimento passa essencialmente pela
formação e recrutamento de novos técnicos especializados em saúde
mental (inclusão de módulos sobre violência e atendimento à vítima no
curriculum dos cursos); sensibilização e formação de outros técnicos de
saúde para a temática (formação continua, folhetos IEC, Revista Psique);
reabilitação de novos espaços físicos para esse atendimento (mobiliário,
equipamento técnico, material de escritório, material lúdico, livros entre
outros); descentralização e fortalecimento dos serviços existentes
CERPIJ e SAAJ pela expansão dos mesmos para outras zonas do país;
sensibilização da população para as temáticas (distribuição de panfletos
e colocação de pósteres IEC nos vários serviços de saúde a nível nacional);
e o envolvimento comunitário (sensibilização das comunidades locais,
suporte social, ativistas da comunidade, grupos de autoajuda, capacitar
praticantes de medicina tradicional, coordenação do trabalho dos
técnicos de saúde mental).

Os serviços devem ter em consideração os aspectos contextuais e as


necessidades específicas de programas de resposta às vítimas e incluir o
trabalho direto com líderes tradicionais e comunitários, pelo
fortalecimento dos serviços de apoio às vítimas de violência,
fortalecimento das organizações e instituições locais públicas que
trabalham na área e melhorar os serviços de encaminhamento através de
um atendimento unificado, coordenado, multidisciplinar e multissectorial
(MINT, MISAU, MINED, MMAS, MJ).

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 44


VIII. RECOMENDAÇÕES colaboração e capacitação de membros líderes comunitários como
ativistas no combate a todas a formas de violência a nível local.
Ao longo dos vários textos, documentos e Planos Estratégicos que fizeram
parte desta revisão bibliográfica, foram apresentadas várias A maioria dos estudos, senão todos, salientaram a necessidade de se
recomendações no que concerne à necessidade de resposta à violência desenvolverem mais estudos e investigações quantitativas e qualitativas
contra mulheres e crianças, em geral e das diferentes formas de violência no âmbito da violência contra mulheres e crianças, particularmente
salientadas, em particular: violência doméstica e/ou familiar, abuso mapeamento e incidência das várias formas de violência e abuso,
sexual, exploração sexual de crianças para fins comerciais, casamento e compreender as implicações físicas, psicológicas e emocionais para as
gravidez precoce e tráfico de crianças. vítimas e as suas famílias a curto e longo prazo, e os custos económicos
que estas acarretam quer ao nível individual quer ao nível público e
Acabar com todas as formas de Violência governamental.

Dos aspectos mais recomendados e salientados ao longo da literatura Ao longo dos estudos salientou-se ainda a necessidade de se criarem
destacam-se os seguintes: treino de capacitação para oficiais legais e para protocolos que definem com claridade os mecanismos de resposta às
profissionais que trabalhem na área; punição dos perpetradores; questões sociais de violência, abuso e exploração sexual de mulheres e
educação do público em geral sobre os seus direitos e responsabilidades crianças, em particular aquelas que são encobertas por atitudes, crenças
e sobre as consequências da violência e do abuso sexual no e valores aceites pela sociedade moçambicana e que se reflete em
desenvolvimento saudável dos indivíduos e entraves ao progresso práticas culturais comuns desiguais entre géneros, e que comprometem o
económico do país; desenvolver programas que alcancem em particular desenvolvimento saudável das crianças (ex: tráfico interno de crianças
as famílias mais desfavorecidas e com baixo níveis de escolaridade; para trabalho infantil136), e a responsabilização dos sectores e atores
estratégias de comunicação apropriadas para as comunidades pela envolvidos no processo, pela necessidade de desresponsabilização das
utilização de técnicas comunitárias de destaque (ex: ativismo, teatro); crianças de atividades pelas quais têm sido responsáveis e acusadas de
questionamento de mitos e práticas culturais e tradicionais violentas; a estarem envolvidas como envolvimento de crianças em atividade sexuais
necessidade de mais estudos e investigações quantitativas e qualitativas para fins comerciais137 ou para atingir determinados fins, etc.
sistematizadas na área para melhor compreensão da dimensão do
problema; maior participação dos media na divulgação, informação e Os media desempenham um papel fundamental na prevenção e
promoção da proteção da mulher e da criança; desenvolver programas educação informação de qualidade (fiáveis) dos indivíduos. Esta
que asseguram a continuidade escolar, principalmente da raparigas; informação deve incluir e uma contextualização e divulgação das Leis de
promover a igualdade de géneros; a necessidade de programas de apoio proteção e informar sobre os Direitos das Mulheres e particularmente das
e reabilitação a vítimas de violência e abuso pela criação de instalações
apropriadas para receber e atender estes casos; cooperação e
136
comunicação efetiva entre iniciativas governamentais e não Serra, Carlos & FDC (s.d.) Tráfico de Pessoas em Moçambique. Da retórica das palavras à dinâmica da acção..
Disponível electronicamente:
governamentais locais e internacionais que trabalhem com o tema; http://www.fdc.org.mz/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=100&Itemid=106&lang=en
137
ECPAT International (2001). The Commercial Sexual Exploitation of Children in Southern Africa.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 45


Crianças que tem sido uma realidade tão esquecida. Esta informação vai Salienta-se “tolerância zero ao abuso sexual da criança” (filme).
permitir educar e esclarecer acerca dos direitos, deveres e Denunciar as autoridades todas as manifestações de violência na casa,
responsabilidades de cada segmento da sociedade particularmente pela escolar e comunidade (filme).
chamada de atenção para a exigência do cumprimento dessas leis e a
responsabilização na implementação política das mesmas. Não obstante e Apesar dos diferentes instrumentos de legislação para a proteção das
fundamental é o respeito pelo direito das vítimas à dignidade e mulheres e crianças estes não são suficientes se não houver uma
privacidade e assegurar que o potencial impacto destes é minimizado compreensão das responsabilidades e deveres dos vários intervenientes
pelos sistemas de apoio. sociais e organismos de proteção incluindo a comunidade, famílias e
instituições de apoio na eliminação do abuso sexual, trafico e violência; o
Como recomendações dos autores do Inquérito sobre Violência contra respeito pela integridade física e psicológica. É necessário que a família
Mulheres em Moçambique (2004) para combater a violência apontam a compreenda e assuma que tem o dever e obrigação de proteger a
importância de encorajar as vítimas a recorrer às instituições formais, criança, educá-la com amor, carinho e respeito (RECAC, 2010; Filme). As
particularmente denunciar casos de violência de que sejam testemunhas comunidades devem oferecer e promover novas alternativas de educação
ou vítimas à linha telefónica de denúncias e à polícia. Salientam ainda a que não incluam a punição física e psicológica, e informar sobre as
importância da educação e da propagação do conhecimento das leis de consequências desta para o desenvolvimento saudável e harmonioso da
proteção e das instituições de apoio a vítima para que estas saibam onde sua personalidade. Os comportamentos violentos e agressivos promovem
pedir ajuda. Esta medida pressupõe ainda a existência duma rede de o medo e a insegurança que por sua vez gera mais violência (ciclo de
apoio que encoraja a mulher a sair de situações de violência e a violência), progressivamente pior (escala da violência) e por gerações
expansão dos “Gabinetes de Atendimento” para os distritos. Ao nível do futuras (geracional).
sistema judicial encorajam uma resposta efetiva às vítimas quer pela 1)Desajuste entre abuso sexual da maneira como é definida pela
condenação dos autores de crimes como na proteção destas. Rede de Convenção dos Direitos das Crianças e outros standards internacionais e a
encaminhamento de casos de vítima de violência para serviços sociais de forma como é percebido pelas comunidades em Moçambique.
aconselhamento (KULAYA, MULEIDE, AMMCJ). Disseminação nas
comunidades de todo o país de informação sobre a existência dos 2) necessidade de colaboração entre as diferentes entidades com
Gabinetes de Atendimento e Centros de Aconselhamento às vítimas de É necessário o reconhecimento por parte do governo de que casamento
violência. De entre os aspectos recomendados ao nível da resposta à precoce é uma forma de exploração sexual e adoptar políticas nacionais
vítima salientam a necessidade de fortalecer os serviços existentes para para a sua eliminação; desenvolver programas que alcancem as famílias
as vítimas de violência psicológica, física e sexual. mais desfavorecidas e com baixo níveis de escolaridade que são as mais
propícias a oferecer as suas filhas ao casamento precoce.
Acabar com a Violência Doméstica
De entre outros aspectos particulares a considerar no combate à violência
Acabar com o Abuso e Exploração Sexual de Crianças e abuso sexual estão a necessidade de conciliação entre legislação oficiais
e os mecanismos de resolução de conflitos por mecanismos

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 46


“comunitários” (tribunal comunitário) e a necessidade de criar responsáveis e encarregados de educação, madrinhas (ritos de iniciação)
mecanismos de controle de violação dos direitos das crianças quando e representantes da medicina tradicionais, eles próprios líderes em ações
este se passa ao nível privado, e por parte de quem as deve proteger. Um de promoção dos direitos da rapariga que deve visar o adiamento da
mecanismo fundamental é a luta contra a pobreza absoluta e promoção primeira relação sexual e assegurar a sua permanência na escolar. Os
de mecanismo de ajuda económica aos mais necessitados e autores sugerem efetuar-se um estudo sobre incidência, áreas de
encorajamento à instrução escolar como mecanismo de socialização, ocorrência e perfil das comunidades e famílias que praticam o Casamento
capacitação e confiança. prematuro, de modo a identificar estratégia para a sua inclusão na Lei
sobre violência doméstica e desse modo punível por lei; salientam ainda a
Collet (2009) salientou a importância de incluir nos debates e importância de conhecer os factores motivadores desta prática e de
mecanismos de informação a clarificação aspectos como “violência outras práticas tradicionais que estão relacionadas com valores e regras
sexual”, “abuso sexual”, “assédio sexual”, “violência baseada em género.” de conduta desiguais entre os indivíduos. É importante a aprovação de
Outros aspectos salientados por outros autores são a definição de instrumentos jurídicos que desencorajam o CP e que se desenvolvam
“criança”.138 programas que atribuam incentivos económicos e sociais às famílias
como forma de assegurar a permanência da rapariga na escolar. Por
De entre os aspectos salientados pela mesma autora no âmbito da exemplo através da alocação de recursos com impacto direto no
necessidade de desenvolver materiais de análise como pesquisas, rendimento familiar, como a promoção da frequência escolar com o
manuais etc. quer a provincial de Tete quer ao nível nacionalista status social e a consciencialização da educação ao acesso a fontes
recomenda um investimento na produção de material de análise dos alternativas de rendimento superior a médio-longo prazo. Sugere-se
casos e incidências das várias formas de violência, abuso e exploração no ainda o alargar dos serviços de assistência aos adolescentes e jovens para
país; expansão de casos num sentido aprofundado que permitam uma a assegurar que a rapariga tenha acesso a informação sobre saúde sexual
compreensão da complexidade das questões e comparação entre casos; e reprodutiva140.
ir para além de pesquisas com foco nas mulheres e crianças bem como a
avaliação de formas de violência e abuso de rapazes e homens e de Quanto às estratégias de eliminação da exploração sexual de crianças
grupos como homossexuais, transsexuais etc. para fins comerciais a ECPAT International (2001) 141 salientou vários
avanços governamentais e ofereceu recomendações estratégicas na sua
No âmbito do casamento prematuro Nhantumbo-Divage, Divage & eliminação como: o desenvolvimento de uma estratégica especifica na
Marrengula (2010)139 apresentam várias recomendações que salientam o eliminação da exploração sexual de crianças para fins comerciais; estudos
colaboração e envolvimento dos conselhos comunitários e das famílias na no âmbito das crenças, e práticas culturais prejudiciais; a necessidade de
promoção e proteção dos direitos das crianças, particularmente criar um protocolo de identificação e acompanhamento de crianças em
situações de abuso sexual no geral, e exploração sexual para fins
138
COLLET, Angela (s.d.). Pesquisa de Crenças e Atitudes em Relação à Violência Sexual Contra a Mulher e a Rapariga
140
na Província de Tete. Relatório Final. Sónia Nhantumbo-Divage; José Divage & Miguel Marrengula (2010). Casamentos prematuros em Moçambique:
139
Sónia Nhantumbo-Divage; José Divage & Miguel Marrengula (2010). Casamentos prematuros em Moçambique: Contextos, tendências e realidades.
141
Contextos, tendências e realidades. ECPAT International (2001). The Commercial Sexual Exploitation of Children in Southern Africa.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 47


comerciais em particular; incentivar as comunidades a reportarem e criação de estratégias de desenvolvimento no direito das crianças e
denunciarem os casos ás entidades formais e trabalhar no sentido de direitos humanos (igualdade de géneros, entre outros).142
controlar e eliminar o conflito entre leis comunitárias e leis formais;
proporcionar maior acesso as meninas à educação. Recentemente, a UNICEF e a MISA desenvolveram uma brochura que
salienta a importância da Análise da Cobertura Jornalística e
Acabar com o Casamento de Crianças Recomendações para os Media na abordagem de temas como violência,
exploração e abuso sexual de crianças.143

Acabar com o Tráfico de Crianças

Nos diferentes estudos realizados no combate ao tráfico de crianças


surgiram várias recomendações de intervenção. Entre as várias
recomendações salientadas pelos diferentes autores e instituições que
trabalham nos direitos humanos, em geral e direitos das crianças, em
particular estão aspectos a ter em consideração e consequentes
necessidades de intervenção no contexto.

Relatório sugere a necessidade de esforços governamentais na


implementação de regulamentos com base na lei anti-tráfico de 2008.
E aumentar as punições e implementação das leis, punir os responsáveis
pelo tráfico; e criar meios de informação, sensibilização e
consciencialização para o problema entre os membros do governo e a
comunidade governamental oficias e os sociedade civil e privada sobre o
tópico, treino para profissionais, e criar uma unidade de proteção e de
assistência às vítimas de tráfico.

Os Media e a Violência

Um outro aspeto salientado ao longo dos textos é a necessidade da


promoção da participação da criança e adolescentes como essencial na 142
ECPAT International (2001). The Commercial Sexual Exploitation of Children in Southern Africa. Disponível
electronicamente:
143
UNICEF / MISA (2008) Violência, Exploração e Abuso Sexual de Crianças. Análise da Cobertura Jornalística e
Recomendações para os Media. Dísponivel electronicamente:
http://www.unicef.org/mozambique/resources_4784.html

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 48


IX. DINÂMICA DA RESPOSTA À VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE programas e serviços do Ministério da Saúde (MISAU), e entre o
CRIANÇAS (E ADOLESCENTES) MISAU e os vários sectores governamentais e os serviços da
sociedade civil nacional e internacional.
Este capítulo apresenta um levantamento das Leis e Medidas de proteção
da criança e de combate à violência e um mapeamento detalhado dos IX.1. Leis e Medidas de Proteção da Criança e Combate à Violência
serviços e programas governamentais que oferecem apoio e
acompanhamento psicológico e psicossocial às vítimas/sobreviventes de Face ao número elevado de mulheres e crianças vítimas de violência, e à
violência e abuso sexual (criança, adolescentes e jovens) e às suas famílias crescente consciencialização e compreensão das várias complicações e
em Moçambique. Este mapeamento tem em vista identificar pontos consequências da violência na vida e desenvolvimento das crianças e na
fortes e lacunas nos serviços disponíveis no sentido de melhorar e dinâmica das famílias a curto e a longo prazo, o Governo e o Estado de
fortalecer o funcionamento do atendimento à vítima e incentivar a Moçambique, está comprometido no fortalecimento e coordenação de
cooperação multissectorial (Atendimento Integrado) com o objectivo programas multidisciplinar e multissectoriais de proteção, resposta e
último de melhor responder às necessidades das crianças vítimas de prestação de serviços a vítimas.
violência e abuso sexual.
Ciente de que a violência é inter-geracional e de que a sua prática sobre
Neste sentido, foram definidos como objectivos específicos: as crianças tem implicações graves no futuro da nação, o Governo de
Moçambique tem dado passos importantes na promoção dos Direitos da
1. Fazer um levantamento das Leis e medidas de proteção da Criança. Estes progressos manifestam-se pela colaboração do Ministério
criança e combate à violência; da Justiça (MIJUS) nesta luta pela ratificação de vários instrumentos de
2. Fazer um levantamento das Políticas e Estratégias do Governo; proteção à criança. Neste ponto pretendemos apresentar o levantamento
3. Fazer um levantamento da operacionalização das Políticas e desse quadro Legal de Proteção da Criança e Combate à Violência.
Estratégias do Governo;
4. Fazer um mapeamento do percurso da criança vítima de violência Entre os instrumentos de proteção à criança ratificados nos últimos anos
e abuso sexual (atendimento integrado); estão a Convenção sobre os Direitos da Criança e o seu Protocolo
5. Relatar os mecanismos de colecta de dados desses serviços; Opcional sobre a Venda de Crianças, Prostituição e Pornografia Infantil; a
6. Fazer um levantamento dos serviços de apoio psicológico e Carta Africana sobre os Direitos e o Bem-Estar da Criança144; a Lei
psicossocial às crianças (e adolescentes) vítimas de violência e nº23/2007 artigo 26º, que aprova a Lei do Trabalho; o Despacho nº
abuso sexual existentes em Moçambique; 39/2003 do Ministério da Educação (MEDU) que regula a suspensão de
7. Relatar o funcionamento e características dos programas docentes e outros trabalhadores do sector Educação que assediem alunas
existentes (população alvo, distribuição geográfica, atendimento sexualmente e o Código de Conduta dos Professores pela Organização
(pessoal e serviços) e limitações);
8. Recomendações no sentido de melhoria de serviços e cooperação
multissectorial para um atendimento integrado entre os 144
Carta Africana sobre os Direitos e o Bem-Estar da Criança

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 49


Nacional de Professores145; a Convenção da OIT sobre as Piores Formas A par das medidas legislativas de proteção e combate à violência e abuso
do Trabalho Infantil146. sexual de crianças e violência com base na desigualdade de género
A consciencialização sobre a gravidade do fenómeno da violência contra (contra as mulheres e raparigas) surgiram políticas e estratégias com
as crianças em Moçambique incluindo a atenção à violência doméstica planos de ação concretos de cada sector envolvido e planos
contra as mulheres e a que acontece no seio da família que se reconhecer multissectoriais de operacionalização destas estratégias, ou seja, planos e
ter consequências negativas profundas nas crianças que a testemunham tentativas de mecanismos de atendimento integrado entre os sectores
ao longo do seu desenvolvimento. No mesmo sentido, o Governo de envolvidos (MINT, MISAU, MINED, MJ, MMAS).
Moçambique tem vindo a ratificar e aprovar instrumentos de proteção
dos direitos das mulheres e da família com implicação direta e/ou indireta No sentido de responder à elevada incidência da violência e abuso sexual
na proteção das crianças, a citar: Aprovação da Lei nº 29/2009, sobre a contra a mulher e criança no país, em 2000, o Ministério do Interior
Violência Doméstica praticada contra a Mulher147; Lei nº 6/2008, de (MINT) desenvolveu um programa apoiado pela UNICEF, com vista a
prevenção e combate ao tráfico de pessoas; e a Lei da Família148. A Lei da criação de centros de polícia que são especializados na assistência às
Família vem proteger em particular as raparigas na medida em que vem mulheres e vítimas de violência, o “Gabinete de Atendimento para a
criminalizar as práticas culturais comuns de incentivar o casamento de Mulher e a Criança.” Os “Gabinetes de Atendimento” são unidades
raparigas antes de estas atingirem a maioridade, ou seja, antes de especializadas localizadas nas esquadras da Polícia que se destacam por
atingirem os 18 anos de idade. terem um espaço próprio e privado acolhedor onde particularmente
mulheres e crianças vítimas de violência, abuso e exploração podem
No geral, estas leis são fundamentais na proteção da criança obter assistência necessária e denunciar casos de violência às
moçambicana na medida em que definem o seu estatuto como toda a autoridades. Para além de oferecer às populações a oportunidade de
pessoa menor de 18 anos de idade com direito ao amor e proteção, denunciar casos de forma protegida estes centros têm a particularidade
promovem a igualdade de géneros e condenam qualquer forma de de encaminhar as vítimas a serviços especializados de acordo com as suas
violação da sua integridade física e psicológica como um atentado aos necessidades. Estão previstas ainda atividades de sensibilização
direitos humanos que inclui qualquer forma de violência (abuso físico, comunitária e profissional (operadores de justiça e polícias) para as
abuso sexual, abuso psicológico) negligência, discriminação e/ou temáticas no sentido da prevenção e eliminação de todas as formas de
exploração (RECAC, 2010). violência. Neste sentido, desde o Plano Estratégico da Polícia 2003-2012
desenvolvido em 2002 com o apoio da UNICEF e UNDP que o MINT incluí
IX.2. Políticas e Estratégias do Governo a componente de proteção contra a violência, abuso e exploração da
mulher e da criança. No seguimento e operacionalização do plano, a
UNICEF tem apoiado no estabelecimento de planos provinciais
descentralizados para a criação de gabinetes de atendimento adicionais
em todas as províncias. Estes planos incluem ainda a capacitação do
145
Código de Conducta dos Professores pela Organização Nacional de Professores pessoal policial dos Gabinetes de Atendimento no atendimento especifico
146
OIT sobre as Piores Formas de Trabalho
147
148
Lei nº 29/2009, sobre a Violência Doméstica praticada contra a Mulher de mulheres e crianças, encaminhamento dos casos e na colaboração,
Lei da Família (Lei nº 10/2004)

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 50


sempre que necessário, com os sectores de Saúde, Educação e Ação sexo feminino (raparigas), em particular. No PNAC são salientados dois
Social. O objectivo principal é assegurar um atendimento de qualidade e objectivos específicos de proteção e reabilitação de crianças à vítimas de
personalizado às vítimas de violência, abuso e exploração de acordo com várias formas de violência: Objectivo Específico: 1.6. Proteger as crianças
a sua idade e o tipo de crime, onde o mecanismo de denúncia fosse contra a violência, negligência e exploração sexual e Objectivo Específico:
empático e acolhedor, e de forma a que ambas pudessem ter acesso (e 1.9. Montar um sistema de atendimento às vítimas da violência. O
serem encaminhadas) a serviços de referência adequados às suas segundo plano de Ação liderado pelo MMAS, desta vez com o objectivo
necessidades. Atualmente está estabelecido um serviço especializado da especifico de controlar e eliminar todas as formas de violência de género
Polícia para o atendimento a mulheres e crianças vítimas de violência contra a mulher no país, vem definir um conjunto de ações e medidas
prestado por mais de 400 agentes policiais nos 19 Gabinetes de estratégicas que devem ser levadas a cabo por cada sector e atores
Atendimento à Mulher e Criança que fazem parte de um total de 231 revelantes no processo com vista a um trabalho integrado entre sectores
secções de atendimento, cada um com espaço próprio. existem mais de que consiga alcançar a prevenção e eliminação de um dos maiores males
200 centros espalhados nas 11 províncias de Moçambique e 18 modelos da humanidade, as formas de violência contra as mulheres e raparigas
“Gabinete de Atendimentos” reabilitados em Moçambique que têm um (crianças do sexo feminino).
papel preponderante na denúncia de casos de violência contra crianças e
na sensibilização e mobilização comunitária na prevenção de violência. Neste mesmo sentido, mais recentemente, o Governo e o Estado
No plano de Ação dos Gabinetes está a criação de programas extensivos Moçambicano colocam o controlo e eliminação da violência, com
de sensibilização e mobilização comunitária em matérias de prevenção e destaque para a violência baseada no género contra as mulheres, a
ativismo no combate à violência, abuso e exploração149. violência doméstica (quer pelo seu impacto no desenvolvimento e bem
estar das mulheres como pelas consequência que estas formas de
Neste contexto de avanço e iniciativa na prevenção e combate ao mal violência têm no desenvolvimento saudável das crianças e nas gerações
social que é a violência e o abuso sexual de crianças o Ministério da futuras) e a violência contra as crianças como prioridades no seu Plano
Mulher e da Ação Social (MMAS) tem tido um papel de destaque na Quinquenal (2010-2014).152
medida em que coordena o Plano Nacional de Ação para a Criança (PNAC
2005-2010) 150 e o Plano Nacional de Ação para a Prevenção e Combate à Apesar de no âmbito deste estudo não se prestar especial destaque às
Violência contra a Mulher (2008-2012). 151 Ambos os Planos vêm iniciativas governamentais na prevenção da violência e abuso sexual de
responder às necessidades de atender a dois aspectos críticos na crianças é importante identificar algumas medidas de prevenção que têm
proteção e direitos das crianças que sejam a eliminação de todas as sido tomadas por parte do governo neste sentido e que complementam
formas de violência e abuso sexual de crianças, no geral e eliminação de as medidas de atendimento às vítimas como sejam: mobilização das
todas as formas de violência e abuso sexual de género contra crianças do crianças e das suas comunidades na busca de soluções para a violência
que estão a sofrer, através da sua participação em Clubes de Escola e em
149
UNICEF / Ernst & Young (2010). Avaliação dos Gabinetes Modelo de Atendimento Mulher e Criança. Disponível programas de rádio; a liderança do Ministério da Educação (MINED) e em
eletronicamente: http://www.unicef.org/mozambique/Gabinetes_de_Atendimento_-_Avaliacao_2010.pdf
150
MMAS (2005). Plano Nacional de Ação para a Criança (PNAC) – 2005-2010. República de Moçambique.
151
MMAS (2008). Plano Nacional de Ação para a Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher (2008-2012).
152
República de Moçambique. República de Moçambique (2010). Plano Quinquenal do Governo de Moçambique (2011-2016).

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 51


parceria com as organizações da sociedade civil, de prevenir o abuso criança que está a consolidar os esforços da sociedade civil. Estas medidas
sexual através da campanha de comunicação “NÃO DÁ PARA ACEITAR: são importantes de referir por se focarem na disseminação da
Tolerância Zero ao abuso sexual contra crianças em Moçambique”; o informação, na divulgação e no incentivo à promoção de debates sobre
acordo entre o Ministério do Interior (MINT), da Educação (MINED), da casos de violação dos direitos das crianças nos diversos contextos que
Mulher e de Ação Social (MMAS), o Fórum Nacional das Rádios vêm, pouco a pouco, quebrando o silêncio e rompendo as atitudes que
Comunitárias (FORCOM) e a Rádio Moçambique (RM) na prevenção da remetem a uma aceitação da violência contra a criança, trazendo ao de
violência contra crianças através de programas e debates radiofónicos; cima a gravidade do problema e aumentando o número de novas
MINED em prevenir, combater, denunciar e encaminhar casos de abuso denúncias. Pelo uso de canais de comunicação procura-se quebrar a
sexual nas escolas pela emissão em Julho de 2009 da ‘Declaração de cultura do silêncio e promover uma cultura de tolerância zero à violência
Tolerância Zero ao Abuso Sexual de Crianças’ e aprovação de dois e abuso sexual e aumentar o número de denúncias. Este aumento nas
despachos sobre a prevenção e denúncia da violência e abuso sexual nas denúncias tem impacto nas estratégias e na necessidade de preparar
escolas, um dos quais - Despacho No. 39/GM/2003. Este despacho prevê mecanismos integrados e de resposta às vítimas.
a suspensão de qualquer docente ou trabalhador da Educação ligado à
escola que assediar sexualmente ou engravidar alunas; adesão dos Reconhecendo que a resposta à violência contra a criança requer uma
professores ao Código de Conduta da Organização Nacional dos abordagem ampla, multissectorial, multidisciplinar, diferenciada e
Professores de absterem-se de: manipularem notas com o objectivo de coordenada com linhas de ação claras e efetivas, o Ministério da Saúde
tirar vantagens ilegais, assediar sexualmente as alunas, e cobrar aos tem dado passos importantes e apresenta os seguintes avanços na área
alunos, pais e encarregados de educação, valores em dinheiro ou em de resposta/atendimento às crianças vítimas de violência: a participação
espécie e favores sexuais, em troca de passagens de classe ou de ingresso no ‘Protocolo de Atendimento Integrado’ para mulheres e crianças vítimas
no sistema de ensino; promoção de debates comunitários para prevenção de violência com uma abordagem multissectorial, que está em processo
do abuso sexual através de unidades móveis e projeção de filmes de consultas para sua aprovação (liderado pelo MMAS). Um esforço
seguidos de debates em língua local (Instituto de Comunicação Social) e multissectorial juntamente com o Ministério da Mulher e Ação Social
do compromisso de grupos de teatro que estão a promover o diálogo (MMAS), Ministério do Interior (MINT), Ministério da Saúde (MISAU), o
comunitário sobre a questão da violência; Dos Comités Comunitários de Ministério de Educação (MINED) e o Instituto de Patrocínio e Assistência
Proteção da Criança de realizar atividades de prevenção da violência; e Jurídica – IPAJ Ministério da Justiça (MJ) para estabelecer procedimentos-
das organizações da sociedade civil de realizar atividades de prevenção padrão para o ‘Atendimento Integrado’ em cada passo do processo;
do abuso sexual e violência contra crianças, como a ‘Campanha Contra o aprovação do protocolo médico de assistência às vítimas de violência
Abuso Sexual da Rapariga na Educação’ liderada pela Action Aid entre sexual de forma a que este atendimento seja imediato (menos de 72h) no
2007-2009153, e o compromisso do fórum da sociedade civil de direitos da sentido de considerar os aspectos médicos, jurídicos e psicológicos que a
condição envolve com destaque para exame físico, testagens de IST,
153
Actionaid (2008). Não ao Abuso Sexual contra a Rapariga na Educação. Manual da Campanha. As organizações
que conformaram entre 2007-2009 o Grupo Técnico Nacional da ‘Campanha Contra o Abuso Sexual da Rapariga na
Educação’ coordenada pela ActionAid (Organização Nacional dos Professores (ONP), Save the Children, Oxfam, Outras organizações também foram considerados devido ao seu trabalho na área da prevenção da violência, entre
Movimento de Educação para Todos, Centro, Fundação Apoio Amigo (FAA), Levanta-te Mulher e Siga o seu Caminho os quais: UEM (Faculdade de Educação), FDC, Rede Criança, WLSA, AMTSALA e MISA.
(Lemusica) e Organismo para direitos e democracia (ADEC), MULEIDE, AMORA, Solidariedade e Fórum Mulher.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 52


avaliação medico-legal, profilaxia para prevenção da infeção ISTs e HIV e atendimento e seguimento psicológico e psicossocial às vítimas de
contracepção de emergência. No âmbito das estratégias governamentais violência e (percurso da vítima) e a sua participação em planos e medidas
de resposta às vítimas de violência o MISAU tem um papel estratégicas multissectoriais de resposta à vítima de violência.
preponderante na medida em que os seu vários Departamentos e
serviços têm sido unânimes em considerar como importantes focos de Atualmente, os não existem serviços exclusivos ao apoio psicológico e
atenção e de ação as questões de violência de género e violência contra psicossocial de crianças vítimas de violência e abuso sexual nem serviços
crianças particularmente na reabilitação das vítimas (resposta). Como destinados às questões da violência doméstica e de proteção das
exemplo disso O departamento na Estratégia e Plano de Ação para a mulheres e as suas crianças. Os serviços do MISAU capazes de dar
Saúde Mental do Departamento de Saúde Mental que prevê como resposta à vítima de violência e abuso sexual são os Centros de
Objectivo Específico: Garantir a inclusão da componente de saúde mental Reabilitação Psicológica Infantil e Juvenil (CERPIJ), os Serviços Amigos do
nas diferentes estratégias intersectoriais de apoio à vítima de violência e Adolescente e do Jovem (SAAJ), e o Departamento de Consultas Externas
como Objectivos operacionais: 1) Implementar programas de prevenção (para atendimento psicológico de adultos, que não será descrito no
da violência dirigidos à comunidade em geral e 2) Implementar âmbito deste estudo) dependendo da idade e das necessidades da
programas de apoio e reabilitação psicossocial para vítimas de violência e criança e/ou vítima.
o Plano Estratégico para Prevenção e Controlo do Trauma e Violência
2011-2015, no que se refere a crianças e que está em processo de O MISAU faz parte das estratégias de atendimento integrado à vítima de
aprovação. violência doméstica em colaboração com o MMAS, MINT, MJ, MINED.

Os esforços têm indicado um aumento significativo no número de Para ajudar a assegurar que mulheres e crianças que foram abusadas
mulheres e crianças que denunciam à Polícia a violência que estão a sexualmente têm acesso a cuidados adequados, a OMS começou uma
sofrer. Entre 2006 e 2010 foram mais de 82 mil casos de violência iniciativa em 2001 para fortalecer a resposta do sector saúde à violência
denunciados à polícia, dos quais mais de 17 mil eram contra crianças. É sexual. Esta iniciativa inclui a elaboração de diretrizes para a prestação de
importante ressaltar que os registos de casos de violência apenas assistência aos sobreviventes de violência sexual e das orientações para o
refletem o número de vítimas que buscam ajuda da polícia, enquanto que cuidado médico-legal às vítimas de violência sexual foram lançados em
a grande maioria ainda fica em silêncio.154 2004. 155 Neste sentido, em Moçambique foi aprovado do protocolo
médico de assistência às vítimas de violência sexual de forma a que este
IX.3. Operacionalização das Políticas e Estratégias do Ministério da atendimento seja imediato (menos de 72h) no sentido de considerar os
Saúde (MISAU) aspectos médicos, jurídicos e psicológicos que a situação requer.

No âmbito deste estudo apresentamos em detalhes a implementação das


politicas e estratégias do MISAU no que diz respeito à identificação, 155
WHO (2005). World Health Organization violence prevention activities, 2000-2004. Prepared for UNESCO's mid-
term report on the International Decade for a Culture of Peace and Non-violence for the Children of the World
154
Arthur, M.J. e Mejia M. (2006). Coragem e impunidade: Denúnica e tratamento da violência doméstica contra as February 2005. Available at: http://www3.unesco.org/iycp/Report/WHO.pdf
mulheres em Moçambique. WLSA Moçambique.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 53


IX.6. Serviços de Apoio Psicológico e Psicossocial às Vítimas de Violência
Está atualmente a decorrer uma Formação com a duração de três peritos e Abuso Sexual
ocasionais em medicina legal credenciados pelo MINJUS onde estão
CRIANÇA
inseridos módulos sobre técnicas de entrevista para crianças vítimas de
violência e abuso sexual. IX.6.1. O Centro de Reabilitação Psicológica Infantil e Juvenil (CERPIJ)

Apesar dos esforços e iniciativas no sentido de operacionalização das O Centro de Reabilitação Psicológica Infantil e Juvenil (CERPIJ), tal
estratégias e planos de ação do Ministério da Saúde a falta de recursos como refere o próprio nome, está vocacionado para o
económicos como técnicos de saúde especializados, com destaque para atendimento de crianças e jovens/adolescentes (2-18 anos de idade)
psiquiatras e psicólogos clínicos leva a que muitas das iniciativas e com problemas do foro psicológico (cognitivos, sociais e de
estratégias não tenham a oportunidade de ser implementadas. Destaca- comportamento) e outros que afectam o seu desenvolvimento físico
e mental saudável e na sua plenitude.
se a falta de recursos e técnicos para o Fortalecimento do serviço 'CERPIJ
- Centro de Reabilitação Psicológica Infanto-Juvenil' e do SAAJ, Atualmente existem três Centros de Reabilitação Psicológica Infantil e
implementação do “Plano Estratégico para Prevenção e Controlo do Juvenil (CERPIJ) a nível nacional e provincial: Maputo, Beira e Nampula.
Trauma e Violência 2011-2015” no que se refere a crianças, em particular
a criação de um sistema de base de dados. Acrescenta-se a necessidade Nestes Centros, os pacientes podem contar com o apoio de uma equipe
de monitorar estas iniciativas particularmente na maneira em que estão multidisciplinar constituída por psicólogos, psiquiatras e neurologista. A
intervenção possível com os pacientes/crianças vai desde o
de facto articuladas com os outros sectores, como se tem visto como
aconselhamento, psicoterapias ocupacionais, cognitivo-comportamentais
necessário.
e outras até a intervenção com psicofármacos. Como exemplo e que
usaremos como modelo o CERPIJ de Maputo em termos de serviços
IX.4. Percurso da Vítima de Violência e o Atendimento Integrado clínicos conta com uma equipa multidisciplinar e com o trabalho dos
seguintes profissionais de saúde: Psicólogos especializados em:
Neste âmbito, o Ministério do Interior criou em 2000 os “Gabinetes de psicopedagogia, educação especial e reabilitação, psicologia infantil,
Atendimento”. Unidades especializadas da policia de assistência a vítimas psicologia juvenil e do adolescente, educação sexual e reprodutiva e
de violência e abuso sexual. psicologia clínica; Psiquiatras; Pediatras; Terapeutas da fala; Logopedas
(ergoterapeuta); Enfermeiros. O atendimento de pacientes neste serviço
apesar de não ser exclusivo e especializado para o atendimento de
IX.5. Mecanismos de Colecta de Dados vítimas de violência tem o objectivo de atender todas as situações que
comprometam o desenvolvimento saudável e harmonioso de cada
criança. Apoia essencialmente pacientes com sinais evidentes de

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 54


sintomas psicológicos graves que necessitam de um acompanhamento como alguns casos de atrasos no desenvolvimento passam
frequente e continuado com psicoterapias.156 obrigatoriamente por estas consultas.
Aqui são realizadas entrevistas iniciais (com a criança e seus pais/tutores
Pessoal e serviços ou com o adolescente) das quais resulta a orientação a dar em cada caso.
Habitualmente, dependendo do caso, recorre-se de seguida à avaliação
Enfermagem: O serviço desempenhado pela enfermeira tem como por meio de testes psicológicos como o Raven, Bender, testes de
principal objectivo o registo e a triagem dos pacientes bem como o seu maturidade escolar, atenção, memória, desenho (casa, árvore e pessoa)
posterior encaminhamento ao especialista indicado para o tipo de ou outros como as escalas de Zung, o COM-73, etc. quando se trata de
problemática apresentada (motivo da consulta). Seu principal adolescentes, resultando daqui a decisão para a psicoterapia a seguir. São
instrumento para o desempenho desta tarefa é a anamnese que é atendidas com frequência crianças e adolescentes vítimas de violência e/
realizada com todos os pacientes, a qual considera aspectos importantes ou abuso sexual que muitas vezes apresentam dificuldades de
como a história pré-natal, relacionamentos, antecedentes pessoais e aprendizagem, comportamentos agressivos, dificuldades de socialização,
familiares, proveniência clínica, etc. Também faz parte das tarefas desta e atrasos no desenvolvimento em geral. São comuns os casos de atrasos
profissional o auxílio do serviço de pediatria. no desenvolvimento psicomotor, atrasos da linguagem e problemas de
relacionamento.
Pediatria: O serviço de pediatria aí prestado é especializado em
neurologia do desenvolvimento. Logopedia: Em relação a logopedia (ergoterapia), além das indicações
feitas pelos especialistas no sentido da avaliação do comportamento
Psiquiatria: O serviço de psiquiatria atende tanto crianças como jovens adaptativo, desenvolvimento social e mental, etc., este é também
em casos que necessitam de intervenção psicofarmacológica e trabalham realizado com as crianças enquanto aguardam pelo seu atendimento.
em colaboração com o psicólogo.
Os profissionais do CERPIJ estão preparados para dar resposta a vários
Terapia da fala: As terapias da fala, imprescindíveis em muitos dos casos tipos de problemas que afectam a criança e adolescente a nível
que passam tanto pelos psicólogos e psiquiatra como pela educação psicológico, sensorial (desenvolvimento psicomotor), afectivo, pessoal e
especial, têm aqui um papel determinante. social. No entanto, não existe nenhuma formação especifica que os tenha
preparado no atendimento às situações de violência e abuso sexual.
Psicologia: Nos serviços de psicologia, realizam-se avaliações psicológicas
e psicopedagógicas bem como psicodiagnósticos aconselhamento e
orientação. Casos como os de dificuldades de aprendizagem, conflitos Conclusões e Recomendações (CERPIJ)
familiares (envolvendo crianças e adolescentes), abusos sexuais bem

156
MISAU (2004). Relatório de Recolha e Análise de Dados: Casos Clínicos de 2004 - Motivos das Consultas e
Diagnóstico Centros de Reabilitação Psicológica Infantil e Juvenil (CERPIJ) do Hospital Central de Maputo. Maputo.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 55


De acordo com uma consultoria feita aos serviços em 2004 o CERPIJ do
Hospital Central de Maputo 157tem grande organização em termos de Na mesma consultoria foi recomendado um estudo sobre os casos
arquivo de dados dos processos clínicos. Verificou-se bom estado de atendidos diariamente no Centro para melhor controlo dos casos
conservação dos mesmos que se pode considerar óptimo, estão também atendidos uma vez que informações nesse sentido poderiam apurar a
anexados a cada processo todos os testes psicológicos realizados com as fluência de pacientes em tratamento bem como aqueles que forem
crianças e jovens desde os desenhos até a grelhas mais complexas como recebendo alta ou transferência para outra instituição social ou de saúde.
os testes de personalidade. Todas as recomendações, transferências para
outros serviços e cartas às escolas são também elementos que se podem JOVENS E ADOLESCENTES
encontrar anexados a estes processos para informações futuras.
IX.6.2. Serviço Amigos do Adolescente e do Jovem (SAAJ – HCM)
Além de poder ser considerado um grande arquivo para pesquisa
académica, permite que os pacientes possam ser acompanhados Como parte dos serviços de Ginecologia e Obstetrícia, a consulta dos
facilmente por vários especialistas em simultâneo tornando assim viável o adolescentes inclui em grande parte da sua vertente clínica o
trabalho de equipe tão necessário para o tipo de problemas que acompanhamento dos pacientes em termos de sexualidade, género, e
apresentam os pacientes atendidos no Centro. Todavia, considera-se saúde reprodutiva. Os Serviços Amigos do Adolescente e do Jovem (SAAJ)
pertinente salientar a necessidade de constar em todos os processos está ainda responsável pela testagem de HIV, incluindo pré e pós teste, e
clínicos a ficha de anamnese devidamente preenchida uma vez que esta é por dar seguimento externo e domiciliário aos jovens e adolescentes que
um instrumento determinante para o seguimento dos casos. testam HIV positivo. Para tal, conta com os serviços de enfermeiras
Considerando o número de pessoal clínico efetivo na altura, os 307 novos formadas em saúde reprodutiva, médicos ginecologistas, urologistas, de
casos representaram uma média de 30 pacientes novos para cada clínica geral e psicólogos.
especialistas anualmente o que por um lado era satisfatório por ainda
haver capacidade humana para tal, mas que pode significar também um Nesta consulta podem ser atendidos pacientes dos 10 aos 24 anos, com
problema se não existirem outras instituições que possam dar problemas de vária ordem, desde os clínicos aos sociais e de
continuidade do tratamento iniciado no centro em termos de inserção relacionamento. São responsáveis por ajudar a melhorar o nível de
social (por exemplo escolas especiais capacitadas, centros de informação e conhecimento dos adolescentes na prevenção dos
desintoxicação adequados para o atendimento de jovens), apoio judicial principais problemas de saúde. Oferecem serviços informação,
(para os casos de violência doméstica e abusos sexuais por exemplo) e aconselhamento e clínicos para Adolescentes e Jovens na esfera de saúde
centros de fisioterapia/ginástica para crianças com atraso no sexual e reprodutiva. Se necessário oferecem serviços de referencia para
desenvolvimento psicomotor. outros SAAJs mais especializados para os Gabinetes de Testagem e
Voluntários (GATVs) quando os serviços de Aconselhamento e Testagem
157
Voluntária não existam no SAAJ e para serviços de ligação com rede de
Ministério da Saúde (2004). Relatório de Recolha e Análise de Dados: Casos Clínicos de 2004 - Motivos das
Consultas e Diagnóstico Centros de Reabilitação Psicológica Infantil e Juvenil (CERPIJ) do Hospital Central de Maputo,
Cantos de Jovens nas escolas e nas comunidades dentro dos programas
Maputo.

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 56


de base escolar e de base comunitária e também para outras redes de comportamento, os psicólogos da consulta dos adolescentes também
serviços de saúde ou sociais. fazem o aconselhamento e todo o acompanhamento dos pacientes
depois dos resultados positivos dos testes de HIV. Para estes casos,
Os serviços estão também organizados de modo a facilitar o atendimento considera-se importante verificar e acompanhar a evolução do estado
médico a estes pacientes. Os SAAJ possuem ainda espaço físico só para o psicológico dos pacientes com rigor, dado o elevado risco de tentativas de
atendimento de jovens e adolescentes e infraestrutura física de modo a suicídio e comportamentos autodestrutivos após o conhecimento do
garantir o conforto e a privacidade. As consultas são gratuitas e a partir resultado do teste. Orientar os jovens no sentido de viverem
daqui os jovens podem receber transferências para outros serviços de positivamente com o HIV é uma das metas da intervenção psicológicas
saúde do Hospital se tal for necessário, sem quaisquer custos monetários. com estes pacientes.

Em matéria de saúde reprodutiva, todos os pacientes que passam pela Adicionalmente, existe também um grupo de apoio a pacientes
consulta recebem uma sessão de aconselhamento inicial com as seropositivos que promove a troca de experiências e suporte psicossocial
enfermeiras, que farão os devidos encaminhamentos para os médicos entre os próprios jovens. Este grupo é coordenado pelos psicólogos mas
e/ou psicólogos conforme o caso. São também as enfermeiras que são os jovens que propõem os temas a serem discutidos uma vez que se
acompanham todos os casos de planeamento familiar e fornecem trata também de um espaço para esclarecimento de dúvidas. Este grupo
gratuitamente contraceptivos para os pacientes. Os jovens e adolescentes realiza ainda acompanhamento domiciliário dos jovens e adolescentes
podem ainda tirar partido do material educativo que cada SAAJ possui na HIV positivos.
sala de espera, que pode incluir vídeos.
Atualmente existem vários SAAJs espalhados por todo o país e em todas
Em termos de ginecologia e obstetrícia, as jovens têm acompanhamento as províncias. Por sua, vez, cada província possui ainda vários SAAJs
durante todo o período pré-natal com direito a todos os exames espalhados pelos Distritos com maior população. No total estão
complementares disponíveis. Para além dos casos de gravidez, todas as disponíveis aos adolescentes e jovens moçambicanos mais de 65 SAAJs no
patologias neste âmbito podem ser acompanhadas pelos médicos de país. No entanto, tal como em outras áreas da saúde existe uma grande
serviço. falta de profissionais especializados e recursos económicos suficientes
para realizar muitas das atividades que se prestam realizar à partida.
Também são efectuados aconselhamento pré e pós-teste HIV. No
aconselhamento pré-teste, são as enfermeiras que recebem os pacientes.
Para os casos em que o teste HIV é positivo, os pacientes são transferidos
para as consultas de psicologia para fazerem o aconselhamento pós teste
e acompanhamento dos casos graves.

Assim, além de terem um papel importante na orientação dos


adolescentes e jovens com problemas psicológicos de carácter social e de

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 57


X. CONSTATAÇÕES E RECOMENDAÇÕES FINAIS consciencialização de que estes Centros estão destinados a atender a
estas vítimas e estão envolvidos nesta luta quer pela publicação de
X.1. CONSTATAÇÕES GERAIS material Informação Educação e Comunicação do MISAU (IEC) ao público
em geral e aos outros profissionais dos outros sectores envolvidos como
Existem atualmente programas com grande potencial no atendimento às esquadras de polícia, hospitais, centros de Saúde, etc.
crianças vítimas de violência e abuso sexual a citar: CERPIJ e SAAJs.
Apesar dos números drásticos e dos planos de ação no combate à Atualmente existem vários SAAJs espalhados por todo o país e em todas
violência e abuso sexual de mulheres e crianças, particularmente as províncias. Por sua, vez, cada província possui ainda vários SAAJs
violência doméstica e abuso sexual não existe atualmente nenhum espalhados pelos Distritos com maior população. No total estão
programa que seja especializado no atendimento às vítimas de violência disponíveis aos adolescentes e jovens moçambicanos mais de 65 SAAJs no
doméstica e /ou abuso sexual. O facto de não existir nenhum programa país. No entanto, tal como em outras áreas da saúde existe uma grande
especifico não seria um problema se existissem programas falta de profissionais especializados e recursos económicos suficientes
multidisciplinares que conseguissem atender ás situações e ás para realizar muitas das atividades que se prestam realizar à partida.
necessidades características desses fenómeno como sejam abrigo,
proteção, acompanhamento em crise e a longo prazo para vítimas de X.2. RECOMENDAÇÕES FINAIS
violência doméstica. No caso das vitimas de violência e/ou abuso sexual
existe um protocolo médico de assistência às vítimas de violência sexual Tendo em conta as recomendações que foram surgindo ao longo da
mas não há indicadores nem monitorias que avaliem como é que estes revisão bibliográfica dos diversos estudos, livros e relatórios no sentido
pacientes estão a ser atendidos, ou seja, se este protocolo está a guiar na de eliminação de todas as formas de violência e as constatações sobre a
prática o procedimento médico, judicial e psicológico ou não. dimensão do problema no país, a escassez, fragilidade e falta de
coordenação dos serviços disponíveis de apoio psicológico e psicossocial à
No entanto, estes programas pela falta de coordenação entre sectores e vítima recomenda-se o seguinte:
fragilidade na uniformização do atendimento não suficientes para
garantir a não revitimização da criança. RESPOSTA

Os CERPIJ são Centros que apesar de não serem especializados e Tal como previsto no âmbito deste estudo focamos as recomendações
unicamente direcionados ao atendimento à criança vítima de violência e finais no sentido de atingir os objectivos específicos: 1) como melhorar a
abuso sexual podem, pela natureza do serviço que oferecem, conseguir identificação e reabilitação de crianças vítimas de violência e abuso
prestar o apoio multidisciplinar médico, psicológico e psicossocial que sexual, e vítimas indiretas de violência doméstica em Moçambique; 2)
estas necessitam. No entanto, a capacitação destes profissionais e um como reforçar a colaboração entre os organismos governamentais e os
foco nesses programas de apoio à vítima de violência e abuso sexual, serviços de apoio à criança e à mulher da sociedade civil no sentido de
incluindo encaminhamento de casos em que são vítimas de violência um atendimento integrado. Todas as atividades propostas têm o
doméstica pode melhorar a eficácia do seu serviço e proporcionar a objectivo de reabilitar as vítimas de violência e abuso sexual e as suas

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 58


famílias, ou seja, prende-se essencialmente com os programas e ações de denúncia de crimes de ordem familiar e sexual e pela capacitação
resposta. No entanto, não consideramos ser viável uma separação de profissionais em contacto coma s vítimas na sensibilização
dicotómica entre prevenção e resposta sendo que os serviços de para as questões;
prevenção e resposta muitas vez coexistem e que qualquer atividade de  Parceria existente entre o Governo (MINT, MINED, e MMAS) e a
resposta deve ter como objectivo último a prevenção da ocorrência de rádio fortalecida e maior participação de representantes de
novas situações de violência quer ao nível individual, quer ao nível Governo em programas radiais e programas de sensibilização
familiar e na comunidade. Neste sentido, o objectivo proposto de comunitária do ICS a nível Distrital e Provincial.
fortalecer a resposta à vítima só será alcançado na medida em que  Continuar com os esforços com vista à angariação de recursos
integrar aspectos preventivos, quer por intervir diretamente na educação financeiros adicionais junto de doadores, para expansão e
e empoderamento das crianças e adolescentes, quer por uma fortalecimento dos serviços de resposta à vítima de violência e
consequente implicação nas relações interpessoais que estas abuso sexual e para atingir os objetivos propostos pelo sector;
estabelecem socialmente com os seus pares e com as suas famílias. Estas
mudanças vão naturalmente contribuir na promoção de um ativismo MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MINED)
social no sentido de reflexão e desafio a crenças e práticas sociais  Continuar os esforços de prevenção e identificação de situações
negativas com impacto consequente na dinâmica das comunidades e da de violência e abuso sexual de crianças que incluem spots
sociedade moçambicana em geral. publicitários de TV e spots para rádios comunitários;
 Continuar a apostar na capacitação de alunos, professores e
MINISTÉRIO DO INTERIOR (MINT) / Comando Geral da PRM e Gabinetes profissionais de educação sobre as leis e direitos da mulher e da
de Atendimento criança, e sobre as questões de violência, abuso e exploração
 Continuar com os esforços com vista à expansão dos Gabinetes sexual de crianças para que estes sejam sensíveis à identificação
de Atendimento, como pontos focais fundamentais na de casos e saibam como proceder em tal situação;
identificação e apoio à Vítima, até à criação de um Gabinete por  Reunir esforços para reduzir o número de meninas que se casam
distrito; ainda crianças e ou estão grávidas ainda crianças e para o
 Continuar com os esforços com vista à institucionalização do impacto de estas situações na participação destas crianças na
Departamento de Atendimento à Mulher e Criança, cujo projeto escola, criando alternativas para a reintegração das mesmas na
se encontra na Assembleia da República; escola;
 Capacitação dos profissionais de diferentes níveis de escolaridade  Continuar os esforços que visam que todas as crianças nas Escolas
(polícias, etc.) para temas como: Direitos e Leis de Proteção da do País sabem como prevenir o abuso sexual, todos os
Mulher e da Criança, Direitos Humanos, Abuso Sexual e Violência professores de Moçambique conhecem o Código de Conduta e
Doméstica; sabem identificar e encaminhar casos de violência;
 Continuar os esforços na garantia de um serviço à mulher e  Monitorar as situações de violência e abuso sexual de crianças na
criança vítima de violência e abuso que seja humanizado e escola e garantir a suspensão de qualquer docente ou
confidencial que passa pela criação de um espaço privado para a trabalhador da Educação ligado à escola que se saiba ter

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 59


assediado sexualmente ou se tenha envolvido em alguma de violência e abuso sexual de crianças e na implementação dos
atividade sexual com uma aluna; objectivos previstos pelo sector; acima descritos.
 Formação de um Clube Escolar por Escola capacitado para discutir
estas questões de violência e abuso sexual de crianças e que MINISTÉRIO DA MULHER E AÇÃO SOCIAL (MMAS)
promova o ativismo das crianças na sua eliminação;  Parceria existente entre o Governo (MINT, MINED, e MMAS) e a
 O MINED tem a capacidade fortalecida para liderar esforços rádio fortalecida e maior participação de representantes de
multissectoriais de prevenção da violência e abuso contra Governo em programas radiais e programas de sensibilização
crianças através da implementação da Estratégia de Gênero do comunitária do ICS a nível Distrital e Provincial.
MINED e fortalecimento do sistema de pontos focais de gênero  Continuar com os esforços com vista à angariação de fundos
ao nível central, provincial e distrital, conselhos de escola e clubes adicionais junto de doadores, para expansão e fortalecimento dos
escolares: serviços de resposta à vítima de violência e abuso sexual;
 Formação de Pontos Focais de Gênero no nível central,
provincial e distrital, incluindo Formação de Formadores na MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (MIJUS)
temática de prevenção da violência contra a rapariga;  Continuar os esforços na criação de procedimentos de justiça que
 Formação de Pontos Focais de Gênero distritais para fazer não revitimizam as vitimas de violência e abuso sexual. Uma
acompanhamento das atividades de prevenção nas escolas; alternativa seria a criação da Câmara de Gessell para evitar a
 Produção e Disseminação de material de formação e revitimização das vítimas.
sensibilização para Professores (Pontos Focais de Gênero nas  Continuar os esforços no sentido de responsabilizar e prender
Escolas), alunos (Clube das Escolas), e comunidade (Conselho todos os perpetradores e Abusadores de mulheres e crianças
de Escola).  Proporcionar a existência de um Técnico do Instituto de
 Parceria existente entre o Governo (MINT, MINED, e MMAS) e a Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ) por Gabinete de
rádio fortalecida e maior participação de representantes de Atendimento à Vítima
Governo em programas radiais e programas de sensibilização  Aumento do número de casos de violência contra as crianças
comunitária do ICS a nível Distrital e Provincial. denunciados à polícia
 Monitoria da participação de Professores em programas de rádio  Continuar com os esforços com vista à angariação de fundos
(Rádio Moçambique e Rádio Comunitária) e nos programas de adicionais junto de doadores, para a expansão e fortalecimento
sensibilização na comunidade para as questões de violência e dos serviços legais disponíveis às mulheres e crianças vítima de
abuso sexual de crianças liderados pelo Instituto de Comunicação violência e abuso sexual;
Social.  Criar um sistema e serviço especializado de proteção e
 Continuar a envidar esforços com vista à angariação de fundos aconselhamento legal para casos de violências, abuso sexual de
adicionais junto de doadores, que proporcionem que se crianças e violência doméstica como sejam uma linha verde pelos
continuem os esforços de prevenção e identificação de situações quais as crianças e o público em geral possa ligar para

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 60


aconselhamento legal e jurídico ou criar dias específicos de  Apoiar no desenvolvimento de estudos quantitativos e
atendimento e aconselhamento legal; qualitativos no âmbito da violência, abuso sexual e exploração de
 O sistema tem medidas legislativas e executivas para acabar com crianças;
a impunidade dos agressores e abusadores em caso de violência,  Capacitações de todos os técnicos de saúde na questões de
abuso sexual e exploração sexual e tráfico de crianças que não violência e abuso sexual de crianças;
são prejudiciais para a dignidade e evitam a vitimização  Capacitação de todos técnicos de saúde na questões de violência
secundária das crianças e adolescentes durante a intervenção doméstica;
investigação criminal;  Capacitação dos técnicos de saúde mental, particularmente os do
 Procedimentos da justiça incluem uma avaliação psicológica e das CERPIJ, SAAJ e Consulta Externa, no acompanhamento às vítimas
necessidades das vítimas de violência, abuso e exploração sexual; de violência e abuso sexual;
 Implementação do “Plano Estratégico para Prevenção e Controlo
MINISTÉRIO DA SAÚDE (MISAU) do Trauma e Violência 2011-2015” no que se refere a crianças;
 Serviços públicos para a recuperação e reinserção das crianças  Formação de peritos ocasionais em medicina legal credenciados
vitimas de violência, abuso exploração sexual disponíveis e pelo MINJUS;
fortalecidos e descentralizados;  Apoio ao rastreio do perfil genético (DNA) dos agressores sexuais
 Apoio psicológico e psicossocial especializado a todas as crianças e exames de paternidade para acusação dos autores dos crimes e
vítimas de violência, abuso e exploração sexual pelo responsabilização do poder paternal (ligado à Patologia);
fortalecimento e expansão do serviço 'CERPIJ - Centro de  Fichas padronizadas de informação e acompanhamento no
Reabilitação Psicológica Infanto-Juvenil' atendimentos hospitalar;
 Apoio psicológico e psicossocial especializado a todas as crianças  Implementar um modelo compreensivo multidisciplinar de
vítimas de violência, abuso e exploração sexual pelo atendimento e reabilitação à criança e adolescente vitimas de
fortalecimento dos Serviços Amigos do Adolescente e do Jovem violência, abuso e exploração sexual que evite a re-vitimização da
(SAAJs) existentes: recrutamento e capacitação de técnicos, criança vítima de violência e abuso sexual – que inclui apoio para
material didático e consumíveis médicos; a família da vítima (Ex. construção de Câmaras de Gessell);
 Apoio psicológico e psicossocial especializado a todas as mulheres  Continuar com os esforços com vista à angariação de fundos
vítimas de violência doméstica e ou/familiar; adicionais junto de doadores, para a criação, expansão e
 Melhorar o sistema de recolha e tratamento de dados estatísticos fortalecimento dos serviços de apoio e acompanhamento
e de investigação sobre trauma, violência e abuso sexual158; psicológico a curto e longo prazo disponíveis às mulheres e
 Responsabilização na denúncia de casos identificados de crianças vítima de violência e abuso sexual no país;
violência, abuso sexual e exploração de crianças à polícia;  Monitoria das diretrizes da OMS para a prestação de assistência
aos sobreviventes de violência sexual e das orientações para o
158
cuidado médico-legal às vítimas de violência sexual foram
MISAU (2011). Plano Estratégico Para Prevenção e Controlo do Trauma e Violência do Ministério Da Saúde (2011-
2014).

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 61


lançados em 2004159.  Apoiar o governo de Moçambique e outros parceiros no aumento
da capacidade de atender e reabilitar crianças e famílias de
ARTICULAÇÃO ENTRE SECTORES E SOCIEDADE CIVIL crianças vítimas de violência e abuso sexual;
 Aprovação de um protocolo de Atendimento Integrado à criança
vítima de violência; Doadores
 Aprovação de um protocolo de Atendimento Integrado à criança  Continuar a apoiar o Governo e o Estado de Moçambique nos
vítima de abuso sexual; seus esforços de prevenção e resposta à violência contra
 Construção de salas de entrevista única para evitar a mulheres e crianças em Moçambique, visto que atualmente, dada
revitimização das crianças vítimas de violência e abuso sexual – a dimensão e gravidade do problema, o governo não dispõe de
Câmara Gessell recursos financeiros para tal;
 Monitoria do Atendimento Integrado à criança e adolescente  Definir em coordenação com os diferentes sectores e Ministérios
vítima de violência e abuso sexual; as áreas de intervenção de acordo com a Estratégia e Plano de
 Criar um sistema e serviço especializado de denúncias de casos de Ação previsto para cada sector (por exemplo: MISAU ) a serem
violências contra crianças e abuso sexual como sejam uma linha financiadas e que melhor assegurem a complementaridade dos
verde 24h pelos quais as crianças e o público em geral possa esforços de expansão e funcionamento dos serviços de resposta à
denunciar situações de abuso e violência contra crianças e mulher e criança vítima de violência, abuso e exploração sexual.
violência doméstica no geral.  Apoiar a expansão das instituições que prestam assistência
 Cross-sectorial, service intervention networks (health services, jurídica e acompanhamento às vítimas para os distritos onde
schools, Community Committees and law enforcement officials - ainda não se fazem representar.
police, public prosecutors and judicial system - have been
adjusted and strengthened in early detection, timely intervention Passos Seguintes:
and denouncement of cases violence, child sex abuse and Uma vez tomada a decisão o governo poderá obedecer às seguintes
exploitation. etapas para a expansão e fortalecimento dos serviços de resposta à
vitima existentes:
UNICEF  Identificar/orçamentar em detalhe as necessidades em termos
 Apoiar governo de Moçambique e outros parceiros no aumento de investimento e funcionamento necessários para as várias
da capacidade de sensibilização das comunidades com vista a áreas que necessitam ser fortalecidas em cada sector envolvido
reduzir o número de casos de violência doméstica e aumentar o na prevenção e atendimento integrado à vítima (MINT, MINED,
número de denúncias dos casos ocorridos; MISAU, MMAS, MJ, Procuradoria);
 Assegurar o buy-in das necessidades de expansão e
159
WHO (2005). World Health Organization violence prevention activities, 2000-2004. Prepared for UNESCO's mid-
fortalecimento previamente identificadas pelos decisores de
term report on the International Decade for a Culture of Peace and Non-violence for the Children of the World cada sector/Ministério;
February 2005. Available at: http://www3.unesco.org/iycp/Report/WHO.pdf

VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS EM MOÇAMBIQUE 62


 Definir um plano de implementação que deverá ter em conta a
frequência dos casos de violência, abuso e exploração sexual,
não apensas os registados mas também os não reportados;
 Harmonizar a implementação da expansão dos serviços à luz do
seu Plano Estratégico Operacional e em coordenação com a
implementação dos Planos Estratégicos operacionais dos outros
sectores, num trabalho multissectorial.

Por último é importante relembrar que a violência interpessoal não é


uma parte inevitável da condição humana160. De facto a violência é
produto de factores complexos mas acredita-se que uma melhor
compreensão destes factores e um trabalho de controle e eliminação dos
seus factores protetores proporcionará que esta seja possível de prevenir
e evitável.
i
Save the Children (2005). Study Report on Sexual Violence of Girls in Mozambican Schools, Norway.
ii
Preventing Chronic Diseases. A Vital Investigation. WHO Global Report 2005, Geneva, World Health Organization.

160
OMS (2002). Relatório Mundial sobre a Violência e Saúde.
http://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/world_report/outline/en/index.html

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