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Responsabilidade Civil Pública: Comentário ao Acórdão 024/16 do Tribunal de

Conflitos
Resumo: No presente comentário iniciar-se-á com uma breve introdução ao conceito da
Responsabilidade Civil Pública, que respeita á responsabilidade do Estado e demais entidades
públicas. É um dos alicerces dos Estados Democráticos, e está consagrada na nossa
Constituição, nomeadamente no regime dos Direitos fundamentais. Anteriormente á reforma do
Contencioso Administrativo, existia uma distinção entre atos de gestão pública e privada que
eram fundamentais na atribuição de qual tribunal seria competente nos litígios. Após a reforma,
esta distinção foi extinta, e os tribunais administrativos passaram a ser competentes em ambos
os casos. Contudo, esta mudança não foi bem aceite e compreendida dentro da jurisprudência,
existindo tribunais a declararem-se incompetentes em processos que seriam competentes para
conhecer e julgar o mérito das questões.

Sumário: 1. Responsabilidade Civil Pública: âmbito, conteúdo e problemáticas 2.


Problemática da competência dos tribunais – em especial análise do Acórdão
024/16 do STA. 3. Conclusões Finais.
Palavras-chave: Responsabilidade Civil Pública; Atos de gestão pública e privada;
Prerrogativas de Poder público; Entidades privadas regidas pelos Princípios Administrativos;
Competência dos Tribunais;

1. Responsabilidade Civil Pública: Âmbito, conteúdo e problemáticas


A Responsabilidade Civil Pública baseia-se na responsabilidade das ações do Estado e
instituições públicas. Este instituto atravessou diversos problemas, nomeadamente a
esquizofrenia divisória entre a gestão pública e privada. O Senhor professor Vasco Pereira da
Silva afasta a separação entre a Responsabilidade Civil Pública por atos de gestão pública e
Responsabilidade Civil Pública por atos de gestão privada, defendendo que em ambas existe o
mesmo “ambiente”. A verdade é que o legislador tentou assassinar esta esquizofrenia entre 2002
e 2004 com a reforma do Contencioso Administrativo, alargando o âmbito da jurisdição
administrativa e uniformizando o regime jurídico da Responsabilidade civil pública. Em 2007,
foi aprovada uma nova lei (Lei 67/2007) que, porém, não foi vista com bons olhos e
considerada infeliz por reerguer a distinção extinta pela reforma do Contencioso administrativo:
o legislador recorreu á expressão “ as ações e omissões adotadas no exercício de prerrogativas
de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo” que por
sua uma vez que concede aos Tribunais e inclusive doutrina, a faculdade de realizar a distinção
da gestão pública e privada através da ampla frase “atuação regulada por disposições ou
princípios de direito administrativo”.
É necessário, deste modo, proceder á interpretação correta do preceito da Lei 67/2007: o regime
da Responsabilidade Civil Administrativa é aplicável às atuações/omissões das autoridades e
demais entidades públicas por normas e princípios do Direito Administrativo, logo está
englobada para além da gestão pública, as atuações que outra hora denominadas como “gestão
privada”. O artigo 2º, nº3 do CPA concretiza a unificação da regulação das gestões, e por mais
privado que seja o instituto aplicável a uma atividade administrativa, este nunca poderá ser uma
porta de entrada á aplicação do direito privado.
Ocorreu a unificação do regime da Responsabilidade Civil no exercício de uma atividade
administrativa, que ser seja ela pública ou privada, libertando-se do critério da natureza da
atividade. Assim sendo, os Tribunais Administrativos tornam-se competentes sobres questões
de Responsabilidade Civil Pública por atos de gestão públicos e privados. Este tema também foi
alvo de discordância. Por um lado, a jurisprudência adotou um método de inversão lógica do
preceito legal: só se podia determinar exatamente a competência do tribunal depois de saber se
havia responsabilidade civil, ou seja, primeiro avaliava a existência de Responsabilidade civil
pública, e se houvesse dúvidas, o processo era remetido para os tribunais judiciais, e se estes
também não se considerassem competentes, o processo acabava nas mãos dos tribunais de
Conflitos.
É o artigo 4º, nº2 do ETAF que vem solucionar esta inversão lógica criada pela jurisprudência:
“Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas
entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em
conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade”

Ainda assim, a questão não parece ter sido compreendida pelos tribunais administrativos. Em
2015, entrou em vigor um novo diploma (DL n° 214-G/2015) que, de forma parcial, ajudou a
aperfeiçoar a linguagem das expressões. Ainda assim, continuam a ser remetidos pedidos no
âmbito da Responsabilidade Civil do Estado e entidades pública para tribunais comuns, o que o
nosso Regente Sr. º Professor Vasco Pereira da Silva considera ser inconstitucional e um
disparate incompreensível.

2. Problemática da competência dos Tribunais Administrativos – em especial


a análise do Acórdão 024/16 do STA
No acórdão 024/16 está presente em litígio num acidente de um veículo ligeiro provocado pela
presença de um cão numa autoestrada construída por uma das rés (Sociedade Anónima).
Factos importantes e relevantes para o caso: As autoras são consideradas particulares. Uma das
empresas rés é concessionária da autoestrada, que por sua vez não cumpriu com os deveres de
precaução para impedir a entrada do cão na autoestrada e por consequência, o referido acidente.
A outra ré é a empresa seguradora da Empresa construtora. O caso é instaurado no Tribunal de
Cantanhede (tribunal comum). A ré celebrou com o estado um contrato de concessão regulado
pelo DL nº 294/97, de 24 de outubro, com as alterações introduzidas pelo DL n° 247-C/2008, de
30 de Dezembro.
Deste modo, o tribunal de Cantanhede concedeu “oportunidade às partes de se pronunciarem
relativamente à (in)competência do tribunal em razão da matéria.” As partes pronunciaram-se
defendendo que “à ré C………. não é aplicável o regime específico da responsabilidade do
estado e demais pessoas coletivas públicas, e que a mesma não é uma pessoa coletiva pública,
mas uma sociedade anónima de direito privado que não atua com as prerrogativas de direito
público.” E, portanto, o presente tribunal tinha competência para conhecer o mérito da causa.
No entanto, no despacho que se segue, o juiz declara o tribunal incompetente e absolve as
rés da instância. Os autores recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra, “que no
Acórdão proferido decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.” De
seguida recorreram também para o STJ, que “convolou o recurso de revista em recurso para o
Tribunal de Conflitos, determinando a remessa dos autos a este Tribunal.”
Deste modo, verificou-se o seguinte: o tribunal de 1ªinstância considerou-se incompetente, que
a competência pertencia aos tribunais administrativos, o Tribunal da Relação de Coimbra e o
STJ concordaram e confirmaram desta decisão e o caso foi remetido para o Tribunal de
Conflitos. Nota-se que o presente acórdão se passa a 5 de abril de 2017, contudo a ação a que se
refere foi proposta a 14 de outubro de 2015, desenrolando-se antes da entrada em vigor das
alterações de 2015. Ainda assim, é aplicável ao caso, o ETAF e já estamos depois da unificação
do regime da Responsabilidade Civil Pública consequência da reforma do Contencioso
Administrativo que “passou a incluir no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade
civil extracontratual de sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da
responsabilidade do Estado”. Deste modo, o tribunal aquo frisou inúmeras vezes que a Reforma
do contencioso administrativo uniformizou o âmbito da jurisdição no que se refere à
responsabilidade decorrente da atividade administrativa, passando a atribuir aos tribunais
administrativos as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito
público, sem atentar na clássica distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada.
Veja-se:
“Com a Reforma do Contencioso Administrativo (Operada pela Lei n.º 13/02, de 19/2,
alterada pelas Leis 4-A/2003, de 19/02 e 107-D/2003, de 31/12.) alterou-se, no âmbito da
responsabilidade extracontratual, o critério determinante da competência material entre
jurisdição comum e jurisdição administrativa,…passando a jurisdição administrativa a
abranger, todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de
direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um
regime de direito público ou por um regime de direito privado”
Resumindo, considerou-se (e bem) que o único fator que determinava a competência dos
tribunais administrativos no que toca á Responsabilidade aquiliana de uma pessoa coletiva do
direito privado é se esta está ou não sujeita ao regime civil do estado e demais entidades
publicas.
Para Carlos Alberto Fernandes Cadiiha, o artigo 1º, nº5 do ETAF é que concretiza na prática o
artigo 4º, nº1, i) do ETAF, ou seja, concretiza a ideia de que “as entidades privadas podem ficar
subordinadas a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, poderão ser
demandadas em ações de responsabilidade civil” nos tribunais administrativos e sob a alçada do
contencioso administrativo. O autor defende ainda que este fenómeno acontece quando
intervenham no exercício de tarefas que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito
administrativo.1
O tribunal aquo considerou que a Ré (empresa construtora) prestou uma atividade
administrativa: em primeiro lugar porque executou uma tarefa pública “material ou técnica,
destinada a assegurar a produção de bens e a prestação de serviços para satisfação das
necessidades coletivas”, e em segundo lugar, na execução desta tarefa a Ré foi sujeita a um
regime de direito administrativo, nomeadamente á “observância de deveres especiais ou a
sujeição a procedimentos pré-contratuais de direito público, por imposição de diretivas
comunitárias.”
Juntado as peças todas chega-se á seguinte conclusão: os autores propõem num tribunal
comum uma ação de responsabilidade civil extracontratual por falta da observância das
condições de segurança contra essencialmente uma entidade privada cujo objetivo é a obtenção
de uma indemnização por danos emergentes. Por sua vez, a entidade privada executou uma obra
pública, sendo parte de um contrato de concessão administrativo com o Estado. Não me parece
razoável que, embora a Ré seja uma pessoal coletiva privada, seja julgada nos tribunais comuns.
Primeiro porque está assente um contrato administrativo, sendo o Estado parte deste, o que
significa que a Ré está sujeita aos princípios de Direito Administrativo. Em segundo lugar,
porque a distinção entre atos de gestão pública e privada já não existe. Em terceiro lugar, o
critério para aferir a competência dos tribunais administrativos, presente no artigo 1º, nº5 do
ETAF concretiza-se no caso concreto. Assim considerou o tribunal “ A atuação da ré, C.. tem
por base um contrato administrativo de concessão de obras públicas, que nela delega as tarefas
de natureza pública de assegurar um regular, contínuo e eficiente funcionamento do serviço
1
Cadiha, Carlos in “Regime da Responsabilidade Civil do Estado e Demais Entidades Públicas”, Anotado, pág.48 a
49.
público em causa, envolvendo prerrogativas de direito público. Consequentemente, terá a ré que
ser demandada perante os tribunais administrativos, nos termos do art. 4°, n°1, al. i) do ETAF.”

3. Conclusões Finais
Em suma, o tema da Responsabilidade Civil Pública tem vindo a sofrer alterações profundas
ao longo da última década e principalmente após a Reforma do Contencioso Administrativo.
Alterações um pouco infelizes e que deram oportunidade á jurisprudência de inverter a
lógica processual com interpretações um pouco questionáveis, o que não sucede no acórdão
em análise. Ainda assim o legislador tentou erradicar estas interpretações com o
aperfeiçoamento da letra da lei em 2015. Considero que é clara a ideia que, nos dias de hoje,
os tribunais competentes a julgar litígios cujo objeto seja a Responsabilidade civil pública
são os Tribunais Administrativos, o que é demonstrado no acórdão em análise, visto que
mesmo uma empresa privada pode reger-se por princípios do Direito Administrativo. O
Tribunal em questão pronuncia-se de forma correta ao atribuir essa competência aos
tribunais administrativos, e demonstra uma evolução dentro da jurisprudência em relação á
responsabilidade Civil Pública, de quem a deve julgar quando posta em causa (no seio do
contencioso administrativo). 2

Carla Alexandra Vieira Sousa, nº 64643, sub-turma 11.

2
http://www.gde.mj.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/
c487965f12336647802581070033dc0c?OpenDocument (acórdão consultado)

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