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Isabel Castro Henriques

O PASSARO0 DO MEL
ESTUDOS DE HISTÓRIA AFRICANA

Ediçöes Colibri
Biblioteca Nacional - Catalogação na Publicação

Henriques, Isabel Castro, 1946-

O pássaro do mel : estudos de história africana.


(Colibri história ; 35)
ISBN 972-772-421-3

CDU 946)"18/19"
94(673)"18/19"

Titulo: O Pássaro do Mel


Estudos de História Africana

Autor: Isabel Castro Henriques

Editor: Fernando Mao de Ferro


Capa Ricardo Moita

lustraão da capa João Pinto

Depósito legal n 200 920/03

Tiragem 1 000 exemplares

Lisboa, Novembro de 2003


III. SAL, COMÉRCIO
E PODER EM ANGOLA"

Cnicação apresentada no Colóquio Internacional Construção e Ensino da Hstoria


r i c a , realizado em Lisboa, em Junho de 1994. Publicada in Actas do Coloqul
actonal"Construção e Ensino da História de África", Lisboa, Ministerio da
Educação (GTMECDP), 1995, pp. 355-30/.
A historiografia consagrada às questões africanas, europeia sobre-
tudo, mas em muitíssimos casos também africana, não deixa de pôr em
evidência a importância do comércio na evolução das sociedades africa-
nas na segunda metade do século XIX. O facto de se acentuar este perío-
do comercial, denuncia um implícito grave: é como se até então não
tivesse existido comércio. Essa maneira deformada de ler a história
comercial é confirmada pelo anúncio do aparecimento de um comércio
legítimo", que estaria baseado em mercadorias africanas tais como os
óleos vegetais, a borracha, a cera, o marfim, o café, o tabaco, o algodão,
etc. Nesta visão, este comércio teria substituído progressivamente o
comércio de escravos que é geralmente considerado clandestino na
segunda metade do séc. XIX.
Em Angola, a evolução do comércio esclavagista depende sobretudo
dos muitos acordos concluídos com os ingleses, e que dizem respeito por
um lado a0 comércio com o Brasil, e se referem pelo outro -que é o que
mais nos interessa - às medidas que restringem gradualmente as possibi
lidades do tráfico negreiro no Atlântico Sul. Estas operações são larga-
Nente confirmadas pela mudança do aparelho político portugues, que
autoriza o ministro Sá da Bandeira a redigir o decreto de 10 de Dezembro
uC1836. A réplica colonial foi imediata: este tipo de comércio pros
g , mas desta vez de maneira clandestina, embora em nao pouco

OS coma dos funcionários da adnministragao


cumplicidade objectiva
portuguesa.
nultaneamente, uma corrente historiográfica menos dependente
eur de sublinhar a hegemonia europeia nas relações comerciais
euro-africanas e o papel dos europeus na construçac de um comércio
Isabel Castro Henriques O Pássaro do Mel 87
S6

em.África. põe
cada vez mais
ia a em evid se consideram os cuidados tomados na

actividades comerciais exclusivamente interafricanas sem no enta de


organizado
importncia se
node compreender
quando
african
das caravanas
como nos descreve com tanto por-
Ou seja, organizaç
Magyar127.
atribuir uma importancia rundamental. dos
mau
lhes grado o valor menor o
húngaro
Lazlo
complementaridade são lentamente
regista-se uma certa tibieza historiadorec as
formas de
modificação, perante a Ouer dizer que éé necessário que
da
necessidade de proceder à revisão dramática de certas "verdades" histó.
ectruturadas, adoptando
u m ritmo
de sedimentação, pois
no esquecendo de
as formas de produção,
assegurem primeiro
grupos tal manter-se bastante inde-
ricas. contudo que crescimento desta
se registe o
OS
comércio de
maneira que possa
Tal não impede ner.
organizar o
embora saibamos que esse desiderato é
nos
autoriza
a
reconsiderar a estrutura interm
nendente dos acidentes politicos, de
tiva inovadora. que nestes últimos anos.
do como se verifica na história político-económica
de respeitar
-

comércio em Africa, que permitiu connecer, exis dificil comércio não pode deixar de
a
comercio interafricano autónomol26 isso que pensamos que o
Kasanje!28. E por
tência denão se importante
comércio
um Este
limita aos mercados locais, e os historiadores põemhoje das formas de gestão política,
n a medida em que

interferir na organização uma certa estabilidade política.


dado
do comércio a longa distância, que é no um a longa
dist ncia exige
o comércio vezes mais.
evidencia a importância menos um ano, e às
em
aoS parceiros africanos, mas que em que algumas
viagens duram pelo
limitado atros necessária, que esta cor-
lado estritamente ou com o Sem esquecer,
contudo, como contrapartida
relaciona com o comercio afro-europeu, comércio suscitar querelas, na medida
pontos se
comercial dinâmica n o pode deixar de
Naturalmente, as condições políticas e eco- rente
afro-árabe ou afro-asiático. estabilização deste
comércio exige modificações permanentes.
do século XX impuseram a elaboração de em que a
nómicas da segunda metade alguns grupos procuram apropriar-se dos lugares
comerciais, caracterizadas pela fus o afro-europeia. É claro, também, quealimentos, caça, em sal, em "pedras verdes"129-
novas práticas em em
mais rendíveis
-

não poucos
o controlo das populações. Podemos pensar que
ou assegurar
oral, säo a consequência destes
conflitos de que nos dá conta a tradição
1. A noção de complementaridade aos quais se acrescentam aqueles injectados
interesses contraditórios,
mercadorias.
territórios e seja directamente, seja por intermédio das
africanos, que mobilizaram os pelos europeus,
Estes fluxos comerciais mais procurados, não podem deixar de ser os mais importan-
caracterizaram-se por uma anmpla circu- Os lugares
populações da Africa central, uma reorganizaço da geografia
tes nesta lógica comercial, o que implica
as
africanas, que não repelem locais
-

lação de comerciantes e de mercadorias homens e das mercadorias e dos


nem as asiáticas ou
da produção, da circulação dos
muito pelo contrário nem as mercadorias europeias,
-

onde se efectuam as trocas.


árabes. Estas actividades comerciais dependem, no plano estritamente
africano, de uma política de complementaridades regionais,
o que impl-
tal como Jahen 1849 bis 1857, 1 ed. 1859,
ca um grande conhecimento das características geoculturais, 12 MAGYAR, Lazlo, Reisen in Sud-Afrika den de
Tradução portuguesa em via publicação, em
EXge o estabelecimento de redes comerciais bastante permanentes. o qu Nendeln, Kraus Reprint, 1973.
Luanda.
guer também dizer que as estruturas políticas são organizadas tendo V e r HENRIQUES, Isabel Castro, o.c.. Ver também BIRMINGHAM, David, Trade
vista a realização destas actividades comerciais, que exigem naluan under the influence of the
conflict in Angola, the Mbundu and their neighbours
mente and MILLER, Joseph. "The
confrontation
organização das formas de produção.
a
Portuguese (1483-1790), Londres, OUP, 1966;
1836-1858" in Actas da
Reuni o Inter-
Nao podemos deixar de salientar um facto que, sendo simples, o On
the Kwango: Kasanje and the Portuguese
VANSINA, Jan, "Long distance
1ICT, 1989;
fe
Ser menos
considerado: a organização desta rede come nacional de História de África, Lisboa,
History, Londres,
vol. 3, n.° 3,
TeZ-se pouco a pouco, aos tenteios, de neira a
das me
impor a lógica rações rade routes in Central Africa'", Journal of African
cadorias, dos preços e dos 1962, pp. 375-390. de
se trata de ope
é o caso
regiões ricas em cobre
como
percursos.
Ocasionais e aventurescas, mas :seja, não
Ou
de movimentos calculados, como o resto
rata-se das malaquites provenientes das
às suas "qualidades
dtanga e que eram muito procuradas pelos africanos devido haver
sobre as feiras que devem
Crapeuticas". Ver COUTINHO, F.I. Sousa, "Bando Luanda, vol. 1,
Arquivos de Angola,
14
Ver, certoens de Benguela e Caconda (1768-69)", os Rios de
em particular, 'ement en Angola Ver também BAPTISTA, Pedro João, "Viagem de Angola para
HENRIQUES,
UES, Isabel Castro, Comm 1933.
au XIX Siecle. Imbangala L'Harma
mattan,
Senna", Anais Marítimos e Coloniais, Lisboa, 1843, IIL, p.
190.
1995, volumes I. et Tschokwe
1schokwe face
face à la Modernité,
Mouc Paris.
Isabel Castro Henriques 89
O Pássaro do Mel

utilizamos
a David Livingstone
A Angola que
parte. fronteiras
ultrapassa largamente
em as

espaço e o tempo Mag comunicação é


um espaço que centramo-nos
2.0 sal: o
leste, pois
nos comportamentos
a
a c t u a i s , a n o r d e s t e

formado pelos lunda e pelos


produções atricanas mais procuradas conta-se o sal do imenso grupo
Entre as o l í t i c o s e e c o n ó m i c o s

duas formas: Sal mineral ou sal gema, e sal


tudo nas suas obtido espaço temporal o século XIX? A
vegetação africana. Apa como
J u n d a i z a d o s .

se e n c o n t r a m na escolhemos
ervas salgadas que razão julgamos nós, exce-
muitas
aos espaços "angolanos Por que constitui a primeira e,
temente. as populações africanas
ligadas halicão do tráfico negreiro
aos africanos pelas potências colo
sal marinho, embora nao tenhamos encontrad Esta situação, imposta obriga as
procuram muito expli
o
nte razão. os d o i s grupos e, por ricochete,
esta quase rejeição. modif+ca as
relaçoes entre de produção. O
cação suficiente para niais, modificar as suas actividades
produções para o comi.
de africanas a
Osal é não só o agente impulsionador das relações inter-afric
atoridades mantem-se no interior do território, mas reduz-se.
o agente dinamizador que ainda
mas é ele próprio
escravos
nas. comércio de
"mercadoria".
cio. dos preços dessa
disseminadas vasto território que aoui uma queda
Se bem que haja ervas salgadas no tal como se regista
analisada.
consideramos. a verdade é registar-se uma evidente especialização rei não foi
completamente
å r a b e s e os asiáticos da costa oriental,
c e r t a m e n t e os
a organizaçao de circuitos comerciais. O sal Os europeus,
e
produtores e os chefes
nal. que por sua vez exige evidente para obrigar
os

desta maneira a estruturação de produções regionais altamente exercem


uma pressão
produtos Estes, por sua vez.
impõe a encontrar novoS
de mercadorias preferenciais africanos à organização do
especializadas, tal como implica produção
a
políticos no que diz respeito
de troca, ou simplesmente de comprae venda. modificações importantes fulmi-
destinadas às operações implicam uma multiplicação quase
exigem que
definir duas questões prévias: ao m e s m o tempo mercado-
A análise deste problema obriga a trabalho, ao vaivém das
carregadores indispensáveis
nante do número de auto-transportava e permitia
1-o espaço fisico escolhido e centrado em Angola; era
se
uma
mercadoria que
rias. O e s c r a v o de carregadores33
2-o período temporal. quer dizer, o séc. XIX. por isso
uma
economia muito significativa
introduzidas na organização comercia
sua vez, as
modif+cações
Por europeus, o que
se tra-
Comecemos por uma mais esquecida: no séc.
evidência cada vez africana suscitam
interesses ou apetites
e política destinadas a aumen-

XX, e pelo menos até à fixação das fronteiras resultantes,


mesmo se comerciais o u diplomáticas que,
duz em expedições intrinca-
é sobretudo uma enor a multiplicar as relações,
quase sempre
indirectamente, da Conferência de Berlim, Angola tar os
c o n h e c i m e n t o s ou
de documentos
u m a produção de
me imprecisão geográfica. Neste século, o futuro país angolano apenas das, com os africanos, est o na origem
ainda da No entanto, estes textos portu-
fronteira, o Atlântico, e mesmo essa não dispõe da História.
conhece uma
indispensável à elaboração sobretudo descri-
Luanda. do século XIX, são
homogeneidade, sobretudo nas regiões entre a foz do Zaire
e
ao último quartel
Sua gueses anteriores interesses comerciais europeus
Os portugueses ocupam então vários pontos de litoral, decididos contud e dos
a nstalar-Se nos portos mais con vidativos, ou nas zonas onde abunda 0
çoes das práticas, das mercadorias,
LIVINGSTONE,
MAGYAR, Lalo, 1859,
o.c.:

PeiNO que se interior, podemos aceitar uma penetraça0 mu


refere ao
BAPTISTA, Pedro João, 1843, o.c.;
Australe et voyages
à travers le
to
irTegular que se fixa entre 200e 300 km do litoral Explorations dans l'intérieur
de l'Afrique
David, Hachette, 1859
Por sua Continent (.. ) de 1840 à 1856, Paris,
vez, os povos dessa Angola ainda inexistente do estão con que se desloca ao impe-
Joaquim Rodrigues Graça abandonar o traico de
brasileiro
rados em unidades políticas que não respeitam as actuais IrOn Ccaso do
EO comerciante
o Mwatyanvwa,
a

a orte, a leste e a sul. De resto, as populações instaladas no n unda a fim de c o n v e n c e r o imperador, do comereio legl-
a incentivar a produção
das mercadorias preterenciais
vOse de Loanda com destino as
l
penetram profundamente na África central, estando a da viagem feita
pOr lazer a história o curopeu. GRAÇA, J.R. "Descrição 1843", Anndes do Coiselno
emos
24 de Abr1l de
sistemática destas relações, das quais CO CeiraS do Rio Sena... principiadas em
séne (1854-1858), Fev. 185S, Pp. 10l-
apenas una parte, Lisboa, 1
sobretudo graças a Pedro João Baptistd, a -
ramarino (parte não oficial),
-104, 117-129 e 133- 146. et agents
de
torme de domination
Alfredo, "Les Porteurs, d'Outremer, Pans,
Ver e r MARGARIDO, (XVII-XIX)", Revue Française
d'Histoire
PELISSIER, René,
-1941), Orgeval, 1977, Les guerres grises. Résistances 1865 T Cnt en Angola
Mapas V, X, XI, XIlle XIV.
et
revOiE T. 65, n° 3, 1978, pp. 377-400.
Isabel Castro Henriques

dos africanos, raramente


preterencial scita
O sal. mercadoria a

dade e a palavra
dos viajantes
se dao conta da
éculo, oscuriosi
europeus. Só no final do sécul
import ncia múltipla do
explo-
radores científicos
e um
mulato, Pedr sal35
João Baptista, aue
No plano angolano. que elabora,
r volta
de 1810, o documento
mais

comércio do sal um elemento


precoce e mais:
central na
singular,
oroa que faz da E
Kazembe. De resto, nização dos
produção e do
se situam entre Kasanje e
espaços que
mento reforça
a sua singularndade por
ter sido produzido nor
um
docu-
como a maioria dos
lano que. não conhecendo a
Europa. nao age euro
peus que projectam sobre a realidade atricana os seus fantasmas
e
preconceitos.
Pedro João Baptista conta a visão estritamente africana, embora
mulato. escravo de um portugues, Honorato José da Costa136 l este
enha
aprendido a ler e a escrever. Teria ele aprendido em Kasanje ou tratar-se
á de um homem cuja origem ambaquista Ihe permitiu ter acesso a esta
técnica civilizacional? Na situaç o actual dos conhecimentos, não se
pode acrescentar grande coisa, e a biografia deste angolano continua a
ser praticamente desconhecida.
Otexto de Baptista foi publicado ainda no século XIX, mau grado
uma escrita que muitas vezes intringe as regras minimas da sintaxe, o que
torma dificil a leitura e a interpretação. Todavia, esta situação não nos
impede de medirmos a racionalidade da organização comercial africana
de verificarmos que o sal ocupa um lugar primordial nas relações inter
-africanas. E a primeira vez que esta mercadoria adquire um papel tão
significativo, e podemos atribuir essa circunstância ao facto de Pedro
João se manter fiel à óptica e aos interesses mais
Baptista
mente afnicanos.
particular

rala-t de expioradores militares cuja missão é o conhecimento das regies do i


Cano. Eo caso de Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens,
ELarvalho, cujas viagens decorrem grosso modo entre 1875Serpa Pinto e Henn
e o finai do
s
EoCaso de CAPELLOe IVENS. De Lisboa
imprens& Nacional, 1881 (ver, Benguela às Terras de lacca, o
por exemplo, vol. 1,p. 25/).
danie
dante do
do seeuEuEs.
secor proprietárioecomerciante de escravos. Era tambem o ma
131 Nom portugu de Feira de
Kasanje, nos princípios do séculoXIX
século XVII, as habitantes de Ambaca ou
M'Baka, muitos dos quais aderem, desde
0

TEugosasa práticas europeias, em virtude do seu


europeias
ler e instaladas. longo contacto con
Uma das principais características destes ambaquistas sahe
escrever,
Lornando-se assim caracteristicas
colaborado indispensáveis dos portugueses
92
Isabel Castro Henriques O Pássaro do Mel 93

3. Produção e circulação do Sal - 0 Sal Marinho

Na vasta região que pretendemos considerar, e que ultrapassa a zona de produção,


de circulação e de consumo do
ar- Como dissemos,
fronteiras de Angola actual, para integrar vastas regidee a costa, e está concentrada, nos documen-
samente as
marinho está muito ligada
sal no Cacuaco e Benguela. Não
orientais da República Democratica do Congo, saliente-se, em primeirmo de que dispomos,
a norte de Luanda -
-

facto de os se servirem do substantivo tos


bastantes para definir a zona de expans o deste
lugar. o
africanos salinas para dispomos de informações
infiltrar-se nas
designar todos os locais onde se possa encontrar ou produzir sal. embora se possa pensar que ele consegue
sal no interior, sal vegetal.
existe o sal gema ou o
regiões onde a sua História de
Corrêa, o historiador brasileiro que redigiu
Elias
0 Sal Vegetal refere-se ao sal do norte de Luanda Cacuaco - -

Angola em 1792140,
-

Cacuaco tudo leva a pensar ser ele


Este assim como ao de Benguela. No
primeiro tipo de sal tem uma origem vegetal, podendo ser pre- à
extraído pelos pende, se dernmos crédito tradição
oral dos pende, reco-
parado partir de ervas salgadas. Estas ervas são cortadas e queimadas,
a
Haveaux nos anos de 195014.
sendo depois as cinzas cozidas em Ihida por
pequenas panelas de barro, deixando Todavia, as técnicas utilizadas não parecem muito
sofisticadas: a
no fundo um
depósito, que um sal cinzento e de aspecto sujo, como zona costeira era invadida pela água salgada, que
era retida pelos africa-
declaram Capello e Ivens, por volta dos anos de 1880138,
nos, que esperavam a evaporação.
Esta informação sublinha a
importância destas zonas de produção, Perante o abandono dos pende, ou de outros grupos africanos, os
que permitem dispensar a
costa.
importação de sal marinho que, provindo da portugueses ocuparam salinas, o que permitiu que o governo de
estas
exigiria centenas de carregadores,
para percorrer os milhares de Luanda assegurasse o controlo da produção, injectando-a nos circuitos
quilómetros entre as duas
regiões. Todavia, podemos verificar que as
intormações que dispomos não são suficientes: estas ervas são
de comerciais e vendendo-a às populações fixadas junto da costa e em volta
aneas, ou trata-se de esp0n da cidade de Luanda. Uma fracção foi introduzida pelos em comerciantes
nao se
plantas cultivadas? E, no caso de no haver cuitura, regiões mais interiores, mas nunca conseguiu substituir o sal do interior,
regista a menor intervenção do homem,
que se limita a utilzal a Sempre preferido pela população.
vegetação espontânea?
Este sal vegetal também pode O mesmo se verificou no caso do sal de Benguela, mantido na situa-
fu-
sao eita
com as produzido
cinzas das plantas. deixando-a
ser recorrendo a Unta
ção de monopólio da Coroa portuguesa, sendo as salinas administradas
Tegiste à depois assentar, pard pela Junta da Cidade de Luandal42. A distância a que as ditas salinas se
técnicas de evaporaço
da água. O
que nos permite afirmar que na irias
preparação deste sal vegetal. va encontravam de Luanda e de Benguela obrigava a uma vigilância perma-
al
Circulava então numa ente, verificando-se um número importante de extracções clandestinas.
tado vastíssima zona do interior, transp Se este sal marinho era destinado ao comércio com a região, desti
por nomens que mantinham um ritmo muito
o
orientais. Dpusta na
região de Kazembe,
intenso,dos
Co lunda m uava-se também a ser vendido à população de Luanda assim
como ao>
Regista-se existência
a quer dizer, " OS gue aí faziam escala. Esta situação define assaz bem o círculo dos
presumir de uma tabela
ela de preços que se poue
a0s
amplamente conhecida: mucha, isto é, a panela de sal Dermite radores do sal marinho, que não consegue impor-se no interior,
ad vendedores aos compradores
e
e
o
a

eidade de medi- alricanos preferem um sal que, na opinião corrente dos europeus,
de preços, que uma grande era de mau
que
adquiriam certamente homogenciu gosto e de fraca
qualidade.
espaço 9 sal nas salinas. repercutia na actividadc
o se as caravanas
imenso las,
para e um
depois o
transportar atraves

134
CORRÊA, Elias A. da Silva, História de Angola (1792), 2 vols., Lisboa. Ed. Atnca.
139 CAPELIOe
141
IVENS. o.c., vol. I. p. 257
BAPTISTA. 0.c.. oAX, G.L., La Tradition historiaue des Bapende Orientaux; Bruxelas, Institut
p. 177 oyal Colonial Belge, T. XXXVII, fasc. I. 1954. P.
Informação dada por CORREA, Elias, o.., vol. I. p. 128.
Isabel Castro Henriques O Pássaro do Mel 95

A extracção do sal nestas


salinas marítimas era um trabalho da circulaçãoe do consumo do sal gema,.
plano da produção,
No
lino. sendo os atnicanos contratados pelas autoridades portugue nascu. acrescentar que as informaçÕes
de Elias Corrêa foram ampla-
podemos
importante sublinhar que nas salinas de natureza diferente, ntroladas confirmadas por Magyar e por Livingstone, nos a n o s 1840
mente
pelos africanos, a
extracção e a preparação do sal
estavam tam do sal da Kisama alcançara o planalto do Bié, onde
masculino, 1850145. A reputação
associados ao com0 acontece em todos os trabalhos encontrou o húngaro Magyar.
ligados ao poder e ao prestígio dos homens africanos.
que estän o

Lagos das Lamas


-
O Sal dos ou
-

O Sal Gema
Podemos ainda referir a existência de um quarto e último tipo de sal:
Entre as regiðes onde existiam reservas de sal ou das lamas. Regista-se o seu aparecimento nas regiões
conta-se a Kisama. o sal do lago
entalada entre Luanda e
séculos um papel
Kasanje, cuja produção desempenhou durante onde existem lagos, parecendo que as populações dispõem em toda a
importantíssimo
não só em terras
angolanas, mas em toda a Africa centrall43. Mais ainda: especificamente parte de técnicas que Ihes permitem
extrair este sal. Encontra-se essa

sal da Kisama a
reputaço do produção no vasto espaço que vai de Kazembe ao Bié, pois que os
atingiu o Congo, tendo sido também consumido no Brasil pequenos lagos, quando se registam eveporações importantes,
deixam à
Tratava-se de um "sal moreno" como superficie uma espécie de lamas que os africanos recolhem e às quais
informa Elias Corrêa,
dade do rei da Kisama.
Extraído em grandes torrões, era proprie acrescentam água. Recorrendo a grandes cestos forrados com grandes
em formas
diversas, e utilizado depois "talhado"
como moeda folhas, filtram estas lamas dissolvidas na água. O líquido assim obtido éé
angolano. Uma parte parece ter sido operações comerciais do
inierior nas
sujeito à acção do fogo, e a sua evaporação deixa um resíduo escuro e
mas outra
foi destinada a consagrada à alimentaçao,
tratamento vários, pois era "repugnante"l46: o sal é então consumido ou lançado nos circuitos comer-
Virtudes medicinais, sendo por isso muito reputado poSSur ciais africanos.
CoTea diz que esse
sal era procurado e apreciado. Eil
Laao
peloS escravos atéexportado para o Brasil, certamente soc
Esta produção de sal, que nos aparece bastante volumosa, suscita
samos excluir a pertencentes esta regiãol44. Se bem
a por sua vez a produção de um grande conjunto de produtos, alimentares
possibilidade de este consumo que na0 po
gueses e
brasileiros, brancos e mulatos. se ter ou artesanais, que também são propostos através das redes comerciais.
alargado a
Pa
maneira
Este sal
pode ser
controlado pelas autoridades da Servem eles para reforçar o sistema de trocas7. Pode, com eles. obter-se
como esta
organização Kisama vido à Carne tresca e salgada, peixe fresco e salgado, cereais, assim
bebidas fabricadas com cereais e mel fermentados. Uma partedestas
como as
LOas as
tentati vas política se mostrou capaz de resisti
Eler a portuguesas para derrubar os chefes d s e constituída pelo hidromel, que goza de uma grande reputação
ale ao população. De resto, a
sub
século XX poluco
resistência da nesta região e
nestes cireuitos!48.
um
lugar pouco
e
ainda nos anos
1950,
população da laama durou refere
hospitaleiro para os colonos considerava a Albase como
NO que se aos produtos artesanais, regista-se a produção de
portugueses dotos de ferro de cobre, utilizados
e na agricultura, nas actividades

AImporlancia fiiCas e
na ornamentação, assim como de tecidos fabricados com as

durante do sal da as vegetais -

incluindo palmeira e o algodão - que servem pura


séculos JáKisama
a
varnos levou os a r O Vestuário ou para decorar as casas, e ainda o martum, as pedras
Iniormaçóes precisas nos
sobre
portugueses
finais
do século
ulo
a Lenlaremo controlo das mina
tentarcu verdes,
Angola
Pp
n
BRASIO, minas de sal XVI o Padre Pero Rodrig
as s fornece o tabaco e outros.
550-551. E no Monumenta Missionaria Kisama
século XVI o
de ória inédita de
Souza 1954 vol I
O Coutinho,
Control desse salfaz selerência as governador Africana,
de
cana, Lisboa, AGU,
Angola,Lisb04,
D.
n cisco Inocènci de
vas
nia vas,
Ja que os passasse das mãos vantagens que advinain T MAGYAR, o.c.; LIVINGSTONE, o.c.
militar, afrncanos dos
afncanos para Pa
14
polítuca e comercial
CORREA, Elias, o.c., vol. estavam
firmemente as dos
decididos conse
a
P
ugueses. Tentati
CAPELLO eIVENS, 0.C., vol I. p. 25/
I, p. 129 iax
ATISTA, Pedro João, o.c.,. pp. 187-190, 280-28 , 295-290
APELLOeIVENS, Oc, pp. 169, 187-188, 334
97
Isabel Castro Henriques O Pássaro do Mel
96

aplicações indispensá-
c o m tantas
Podemos ainda verificar que o sal, produto altamente estin normal que u m produto
É por isso da riquezal49. Capello e
dinamizar a produçao de bens destinados ao co mado, também um agente
especifico do poder e
mais sabi
serve para tal veis seja este aspecto: "artigo da
manter em funcionamento as redes comerciais. er sublinham muito
expressamente
ansiedade, é pago
como permite criando Ivens com extrema
procurado
relacões inter-regionais que, de outra maneira, seriam menos correntes e no interior de Africa, distâncias enor
da valia altos depo1s de este percorrer
mais dificeis. A produçãoea comercialização do sal, a sua tripla funcãa por preços redu-
pelo indígena Quando o sal não chega
a o s mais r e m o t o s
alimentar, monetária e medicinal, servem de suporte à organização de
mes para o adquirir"i0. não hesitam e m delegar alguém para
actividades de produção, de comercialização e de contacto entre as popu habitacionais, as populações
tos
for a distância a percorrer.
proceder à compra, seja qual de
lações. era de resto tão importante que certas populações
Esta procura instalavam nas s u a s
c o m o acontece
os
com pende,
regiões sem sal, e x c l u s i v a m e n t e destinados à importação do salls1. Estas
aldeias mercados
nordeste angolano que se prolon-
instaladas n u m a região do
populações, terceiro filho
Democrática do Congo, consagravamo
ga para a República isso o nome de "filho do sal";
e
Sal marítimo à compra do sal. Este filho recebia por
-Sal-gema seu destino. Mas, por
outro lado, o sal podia
E-Sal dos Lagos sabia precocemente qual o
Sal vegetal u m homem podia assim
valer entre 22 a 24
ser trocado por adultos:
muxas de sall52. Se esta comercialização das pessoás crianças ou adul-
-

Lago
ela evidência o carácter singular
Tanganyka tos pode chocar, a verdade pôr é e m

desta mercadoria e deste consumo.


RKas Possuir sal permitia circular por toda a parte, tal como permitia

comprar com facilidade. Compreende-se por isso que possuir


uma ou
Ambri|
no
Myaumb mais salinas fosse a grande ambição dos chefes, pois essa ambição,
99veig de se concretizar, permitia controlar o mecanismo da produção e da
caso
ISAMA Kaianin Ichibondl KAZEMBE Circulaçao dos bens e das pessoas. A salina era, sobretudo, nestas
cond-

Quiglla
Kiburi KATANGA çoes, uma estrutura que permitia reforçar o poder do chefe, ao mesmo
BIHE que contribuía para aumentar o prestígio e a influência do grupo.
tempoDizem, de resto, Capello e Ivens: "o soba que tem esta fortuna goza

MAPA V
de incontestável influência comercial e política, govermando todos em
tormasS
tipos Locais de dor sem contestação"153, Estas relações de poder, que criavam
Africa o produção/
de sal mercialização de diferentes
P.219
na
extracção/comeI. Castro,
IENRIQUES, o.c., 1995, vol.
I, C aependência, eram consagradas por meio de pagamento de tributos em
ras gema como se verificava no caso de Kazembe (salina de
de sal
Quigila)i54
4.0 sal:
riqueza, poder e
orgar
zanização dos espaço 4
Como não MAGYAR, 0.c.,
alimentaço. E podia deixar
um aeIxar de ser, todos
paraa
CAPELLO
cap. X.
e IVENS, o.c., vol. I, p. 256.
aspec condimento ndispensável,
estes tipos de
saa ar-nos

CARVALHO, Henrique, o.c., vol. IV, p. 740.


culinário,
para tratar
ralar af as
mas tam
as tamh indispensavel
plinar. Os
mas já pudemos ó0
viajantes referem n
152 1d., ibid.

afeccões que em função medicinal,


a
CAPELLO IVENS, 0.c.. vol. I, p. 25/
e

atingem estômago o aparelho


o servnestivo.
dige BAPTISTA, Pedro João, o.c.. p. 190.
O Pássaro do Mel
99
Isabel Castro Henriques

carácter do solo sofre o choque dos diferentes sais, sejam


A importância do sal, associado ao poder, aparece claramente O próprio mobilizando os homens, permitindo a
ou gemas,
bolizado num bastão de produçao lunda-tshokwe, que Marie-Lonic eles
marítimos, vegetais
das
mercadorias, das ideias e dos homens. E neste sen-

tin identificou na região dos tshokwe e que reproduz na obra que consa- ampla circulação nem sempre tem
merecido a

grou à arte deste grupo na parte superior o bastão mostra um relevo


um lugar singular, que
o sal ocupa atenção do angolano
tido que
historiadores.
Todavia, neste caso, a

abstracto, que é interpretado como a representação de uma salina. O facto atenção dos forneceu o primeiro grande
bloco informativo, que
de esta salina estar representada no bastão, que torna visível a autoridade Pedro João Baptista devem alargare completar, pois
não se poderá

evidência a relação existente entre a salina ea historiadores de hoje comércio interno a longa
distância
eo poder do chefe, põe em os
do próprio
sua produção. e a autonomia do chefado e do chefe compreender a evolução produção e pela comer-

problemas suscitados pela


De resto, a tradição oral que ainda hoje se pode identificar entre os sem analisar os muitos
cialização do sal.
imbangala sublinha que a criaço do reino estaria associada à localização
e ao controlo das minas de sal por Kinguri, o herói fundador, e o seu
versões míticas da origem dos
grupo familiar. De acordo com uma das
imbangala. Kinguri teria abandonado o território originário dos lunda,
e das minas de
para se dirigir para oeste, em busca da região do Kwanza
sal. cuja existência fora anunciada a lestel56.
Tratava-se aparentemente de informações respeitantes ao sal gema
da Kisama, que Kinguri não conseguiu conquistar, tendo contudo esta-
Delecido laços sólidos de parentesco como sugere Elias Corrêa nos
anos tinais do século XVIII -

permitiram controlar no a totalS


que lhe
dde da produção do sal, mas a fracção, extremamente importante que
dirige para leste, e deve por isso atravessar o rio Kwango, controladop
ane Se é certo que o poder de Kasanje provém da instalaçao estrd
Ed ue inE permite dominar as margens do Kwango, podemos certanc
crescentar que o controlo do sal constitui um elemento significativoie
csiralegia. Os laços de parentesco permitem à corte de Kasanje or
gular nas relações com o poder da Kisama, e retforçar po
Esta via a sua
autoridade, tal como aumenta certamenteo seu patrimonio.
e
Concluindo, podemos constante
afirmar que o sal é uma presença
indispensável, pois a s s e g u r a r o controlo

dos homens, e criar, permite organizar os espaços, regionals


Trata- do organizare Er
gerir as compler complementaridades
dos
agente mais dinamizador, ando a reorganizaçao
espaços políticos, tal como

contribui para a
e
permitindo criação
a cria de novas autorridades não
só a
curta, mas criação e a estrutura de novas
ovas relações omerciais,

sobretudo a longa relag


9 BASTIN,
distância.
ver vol. Marie-Louise,
Il, p. 301, Art
décoratif Tshokwe, Lisbo4, Diamang, 1961, 2 volumes

Sobre questão dagravura n" 77, Ib.


a
Je
Etnografiae ongem mítica dos rique

1890, NEVES,História imbangala


Tradicional dos Povos ver Naci
Imprensa Silviana,António
1854 Rodrigues, Memória de Luunda, Lisbo Imprensa , Lisboa

de a Cassauge
Expeu

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