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A Linguística de Corpus no ensino de línguas

Tania Mikaela Garcia Roberto1

É no início da década de 90, segundo Leech (1992), que a Linguística de


Corpus (doravante LC) se consolida como um ramo da Linguística, embora o próprio
autor reconheça que ela não pode ser apenas considerada um ramo da Linguística, mas
uma metodologia de estudos linguísticos. Assumindo, assim, a LC como uma
metodologia de estudos linguísticos que se utiliza do computador como ferramenta,
propõe-se sua aplicação em propostas pedagógicas em que o aluno é ativo no processo
de construção do conhecimento por meio de pesquisa, interagindo com o meio e os
outros agentes, e tendo na figura do professor o mediador desse processo2.
Johns e King (1991) apresentam a descrição de quatro abordagens de ensino,
associadas, cada uma, a uma metáfora e uma tecnologia. A primeira, a aquisição
acumulativa de fatos através de memorização, comparada pelos autores a uma seringa;
a tecnologia, nessa metáfora, é o quadro (de giz ou branco). A segunda abordagem é
comparada a uma academia, em que o aprendizado se dá por meio de estímulos e
exercícios de repetição; a tecnologia utilizada é um livro didático “barato” e
desalinhado à realidade do aprendiz. A terceira metáfora é um banho. Nela, o
educando é “totalmente imerso” no objeto de estudo através de viagens, filmes,
músicas, etc., numa espécie de aprendizado por osmose. A última abordagem é a que o
educando é quem descobre padrões examinando evidências. A metáfora é a do tubo de
ensaio e a tecnologia é o computador, através da análise de corpora da língua em uso
efetivo.
Mohan (1992), por sua vez, pensando o ensino de língua estrangeira, defende
que o computador3 pode ser usado com fins didáticos segundo três modelos. No
primeiro modelo, o computador é usado como um professor de línguas, modelo que
requer atenção sobre dois aspectos: quando o ensino da linguagem formal é necessário
e como os recursos do computador são utilizados. No segundo modelo, o computador
é usado como um estímulo para a interação. No terceiro e último modelo, o autor vê o
computador como um contexto para o desenvolvimento da linguagem cognitiva, numa
relação entre ação, conhecimento e discurso.
Como bem aponta Kindermann (2008), em meio a inúmeras pressões pela
inserção tecnológica no processo de ensino e aprendizagem, a LC apresenta-se como
uma alternativa. Na LC, diferentemente do primeiro modelo de Mohan (1992), o
computador não é usado somente como uma mera (e cara) substituição do quadro ou
do livro de exercícios, tampouco como apenas mais uma fonte de pesquisa nas páginas
1
Doutora em Psicolinguística. Professora Associada de Língua Portuguesa na Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro. E-mail: mikaela@ufrrj.br
2
Assume-se a concepção sociointeracionista de Vygotsky (20--) como subsídio desse enfoque.
3
O que se pode expandir aqui a demais dispositivos mais atualizados, como celulares, tablets, e-book readers,
etc.
da web, limitando seu usuário a um uso restrito dos recursos computacionais. O aluno,
através dos chamados programas concordanceadores4, será capaz de manipular o
corpus, analisá-lo, observar informações contextuais, tirar conclusões e construir
padrões e conceitos a respeito do assunto estudado, e não somente navegar pela web,
digitar textos ou fazer exercícios. Desta forma, o computador tem seu uso como na
metáfora do tubo de ensaio, conforme o terceiro modelo de Mohan (1992).
"A Linguística de Corpus é uma abordagem que privilegia a observação de uma
grande quantidade de dados autênticos." (KINDERMANN, 2008). No mais, como
continua a autora, "a sociedade contemporânea aponta-nos para a urgência em adotar
novas tecnologias na sala de aula, a fim de aprimorar o 'capital humano' de nossos
alunos". O uso da LC, assim, convida a uma ruptura com o padrão habitual do
processo de ensino e aprendizagem, no qual o professor preparava antecipadamente o
conteúdo informacional a ser apresentado aos alunos. Nas palavras de Kindermann
(2008), o "centro de poder" passa para as mãos dos aprendizes, que atuarão na
observação de dados da língua. O professor assume, assim, efetivamente o papel de
mediador do processo, promovendo o desenvolvimento da autonomia dos aprendizes
no processo de ensino e aprendizagem.
Como bem pontua Hadley (1992), é idealista pensar que estudantes possam
repentinamente mudar suas concepções a respeito de como aprendem gramática e
análise linguística, “aceitando” facilmente a abordagem da LC. Mais idealista é crer
que professores o farão. Garcia (2002), Kindermann (2008) e Mareco e Maracci
(2010), contudo, apontam alguns caminhos que merecem reflexão, pela possibilidade
de viabilizar um estudo da língua em que é o aluno quem participa ativamente da
construção do conhecimento, interagindo com o outro (aluno-aluno), com o professor
(o mediador do processo de ensino/aprendizagem) e com a máquina (o meio).
Os referidos estudos evidenciam que o aluno, independentemente de seu nível
escolar, é capaz de construir conhecimento com o uso sistematizado do computador
como ferramenta de análise Linguística com base em corpus. E que é o professor
quem, por meio de um planejamento – não mais do dado pronto –, promoverá o
constante aprimoramento do construto apresentado por seus alunos ao longo de todo o
processo de ensino/aprendizagem. Essas iniciativas somam-se a outras inúmeras
possibilidades de uso do computador para ensino de línguas, como se dispõe a
evidenciar Oliveira (2020).
O desafio de se fazer valer de uma metodologia que não apresenta a análise
linguística a priori, mas sim, propõe sua construção ao longo do processo de
ensino/aprendizagem, aponta para um perfil de profissional da educação que já não
cabe mais nos estereótipos associados a abordagens ultrapassadas de ensino. Já não
basta ao professor deter o conhecimento específico da língua objeto de ensino e
4
Os programas concordanceadores funcionam a partir de uma lógica operacional semelhante à dos buscadores,
apresentando de forma funcional para fins de análise linguística os dados encontrados nos diferentes textos do
corpus, essencialmente composto por dados da língua em uso efetivo, em diferentes gêneros.
aprendizagem. É preciso que ele desmistifique a língua e oportunize a seu aluno o
contato com ela em suas múltiplas possibilidades de uso para que esse aluno construa
seu conhecimento a partir da pesquisa, observação, reflexão e análise dos dados a ele
apresentados.
Como relata uma aluna de Garcia (2002), após participar de uma experiência
com a LC nas aulas de Língua Portuguesa,

É certo afirmar que o método tradicional de ensino da Língua Portuguesa já


não supre as necessidades de aprendizagem dos alunos, sendo preciso
repensar e reformular os métodos de aprendizagem propostos por escolas de
todo país, facilitando e proporcionando um maior interesse dos alunos.
Torna-se indispensável a reciclagem da educação para que esta se atualize,
sanando os interesses dos alunos do século XXI. (MOSER, 2001)5.

Vinte e dois anos se passaram desde que a aluna, do 9º ano do Ensino


Fundamental, deu esse depoimento, que ainda se mostra atual e pertinente. Como bem
pontuam Sales e Boscarioli (2020), não basta apenas inserir as novas tecnologias no
processo de ensino e aprendizagem. Faz-se necessário assumir que a relação com o
saber mudou a partir do uso das novas tecnologias, da internet e das novas concepções
de interação social. A figura detentora do conhecimento precisa ceder espaço ao
mediador dessas relações para um desenvolvimento linguístico e cognitivo que atenda
às novas demandas desse sujeito aprendiz, a fim de que, "uma concepção pedagógica
que privilegie autonomia, colaboração, interação e o desenvolvimento metacognitivo"
seja possível. (ROBERTO, 2021, p. 39).

Referências
GARCIA, Tania Mikaela. Linguística de Corpus: uma proposta de estudo do uso dos pronomes Te/Lhe com
alunos de 8ª série do Ensino Fundamental. Dissertação (Mestrado) Curso de Pós-Graduação em Linguística.
Universidade Federal de Santa Catarina, 2002.

HADLEY, G. Sensing the winds of change: An introduction to Data-Driven Learning. Computers in Applied
Linguistics, 1992.

HERNANDEZ, F. A partir dos projetos de trabalho. Pátio, v. 2, n. 6, ago/out. 1998.

JOHNS, T. F.; KING, P. Classroom concordancing. Birmingham, England: Centre for English Language
Studies, University of Birmingham, 1991.

KINDERMANN, Cristina Arcuri Eluf. Linguística de Corpus e as Novas Tecnologias de Informação e


Comunicação (ICTs): uma interface necessária na formação do professor de Língua Inglesa sob uma perspectiva
crítica, social e educacional. Domínios de Linguagem, v. 2, n. 2, p. 1-15, 2008.

LEECH, G. Corpora and theories of linguistic performance. Directions in Corpus Linguistics proceedings of
Nobel Symposium. v. 82, p. 4-8, 1992.

5
Este relato é parte de um trabalho bimestral da aluna G. Moser, apresentado como avaliação parcial da
disciplina de Língua Portuguesa do 9º ano do Ensino Fundamental, ministrada pela autora durante a aplicação da
pesquisa que resultou em sua dissertação de Mestrado (GARCIA [ROBERTO], 2002).
MOHAN, B. Models of the role of the computer in second language development, Computers in Applied
Linguistics, 1992.

MOSER, G. Te ou Lhe? Uma experiência com base em corpus. Pesquisa realizada na disciplina de Língua
Portuguesa de 8ª série do Ensino Fundamental como avaliação parcial do 4º bimestre letivo, 2001.

OLIVEIRA, Wanessa Rodovalho Melo. Recursos tecnológicos de apoio às aulas de língua portuguesa. EaD &
Tecnologias Digitais na Educação, v. 8, n. 10, p. 93-105, dez. 2020.

ROBERTO, Tania Mikaela Garcia. A formação do hiperleitor. In: HACKENHAAR, Andréa de Souza;
MAYER, Leandro; GASPAR, Lucas Eduardo (org.). Educação em questão: pesquisas, reflexões e práticas
pedagógicas. Itapiranga: Editora Schreiben, 2021, p. 24-41.

SALES, A. B. de; BOSCARIOLI, C. Uso de Tecnologias Digitais Sociais no Processo Colaborativo de Ensino e
Aprendizagem. Risti, v. 37, n. 6, p. 82-99, 2020.

VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. [S.l.]: Ridendo Castigat Mores, [20--]. Disponível em:
http://www2.uefs.br/filosofia-bv/pdfs/vygotsky_01.pdf Acesso em 5 maio 2021.

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