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CURRÍCULO: TEORIA E PRÁTICA

A NOÇÃO DE COMPETÊNCIAS E
HABILIDADES E A ORGANIZAÇÃO
CURRICULAR. O CURRÍCULO POR
COMPETÊNCIAS

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Olá!
Ao final desta aula, você será capaz de:

1. Conceituar “competência” e “habilidade” evidenciando as distinções e a complementaridade desses conceitos;

2. analisar como o conceito de competência tem influenciado as propostas curriculares brasileiras;

3. refletir sobre as diferentes concepções de currículo por competências e suas implicações para a prática

pedagógica;

4. evidenciar alguns aspectos que caracterizam o currículo por competências, tais como a transposição didática,

a globalização dos saberes e a aprendizagem para o cenário do trabalho, problematizando-os.

“A abordagem por competências é entendida de formas muito diversas e, às vezes, chega a ser mal-entendida.

Manuseiam-se expressões polissêmicas, conceitos pouco estabilizados e ataca-se um enorme problema: as

finalidades e os conteúdos do ensino. Não é nada anormal, pois, que se confronte uma imensa diversidade de

concepções da cultura e da escola, umas explícitas e construídas, outras intuitivas e esboçadas.” Philippe

Perrenoud

Você já deve ter ouvido falar, já viu ou utilizou documentos curriculares ou de avaliação, oficiais ou escolares,

onde estão expressos os objetivos como norteadores da prática escolar, não é mesmo?

Nestes documentos, os objetivos podem aparecer desvinculados das disciplinas ou não. É mais comum

observarmos duas categorias de objetivos:

1) os objetivos transversais, que perpassam todas as disciplinas;

2) objetivos de cada área/disciplina, organizados geralmente por ciclos ou séries/anos.

Neste encontram-se os objetivos gerais, que revelam o que se deseja desenvolver naquela disciplina ao longo

daquele segmento de ensino e os objetivos específicos, que expressam o que se espera que o aluno aprenda

naquela disciplina durante determinada série.

Também observamos, em alguns documentos curriculares, a subdivisão dos objetivos em conceituais,

procedimentais e atitudinais.

O que esta forma de organização curricular tem de peculiar?

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Um dos aspectos ressaltados por Macedo (2007) é que este modelo curricular que podemos

denominar de “currículo por competências”, embora possa ser utilizado como uma reedição do

modelo tecnicista de Tyler - voltado exclusivamente para os objetivos instrucionais - promova uma

desconexão entre conhecimentos, habilidades e valores...

...na medida em que as diferentes instâncias do saber, conceitos, procedimentos e atitudes - são

vistos separadamente, perdendo o seu caráter relacional, também pode ter “nos seus fundamentos a

desconstrução de alguns prejuízos epistemológicos e formativos” (p. 92).

Antes de analisarmos mais profundamente a gênese deste modelo curricular, sua influência no Brasil, limites e

possibilidades, é preciso distinguir os conceitos de “competência” e “habilidade”, contextualizando-os.

1 Competência e Habilidade – o que os distingue e os une?


“Pelo dicionário, para ser competente, devemos ser habilidosos, mas ser habilidoso nem sempre é suficiente para

ser competente. Em outras palavras, habilidade faz parte de competência, mas esta exige muitos outros aspectos

além daquela.”

Lino de Macedo

É muito comum as pessoas utilizarem as palavras “competência” e “habilidade” como sinônimas. Embora estes

conceitos estejam bastante relacionados, é preciso compreender em que se distinguem e em que se

complementam. Para isso, vamos analisá-los separadamente.

Segundo Macedo (2008), “habilidade significa fazer algo com qualidade, ter capacidade,

inteligência, destreza, astúcia, ter manha. Habilidade é saber ver, ouvir, comunicar.” Para

ele, a “habilidade é uma expressão de competência, mas esta não se reduz àquela. Ou seja,
Habilidade
para ser competente, temos de ter várias habilidades, mas nossa competência não se

resume a um somatório de habilidades [...]. Para ser competente devemos ser habilidosos,

mas isso não é suficiente para sermos competentes.”

Segundo Mello (2003), competência “é a capacidade de mobilizar conhecimentos, valores e


Competência
decisões para agir de modo pertinente numa determinada situação”.

Tomando estas conceituações como pontos de referência, seria inevitável nos perguntarmos:
• “Seria, então, a competência a latência da habilidade?”
• “Seria a habilidade a concretização da competência, a competência traduzida em ação?”

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Ropé e Tanguy (1997) assinalam que a noção de competência está permeada por dúvidas quanto ao seu real

significado e que na área educacional tende a ser concebida como “saberes e conhecimentos”.

Perrenoud nos instiga a refletir um pouco mais sobre a relação entre estes dois conceitos. Para ele, existe a

tentação de reservar a noção de competência para as ações que exigem um funcionamento reflexivo mínimo, que

são ativadas somente quando o ator pergunta a si mesmo:


• O que está ocorrendo?
• Por que estou em situação de fracasso?
• O que fazer?
A partir do momento em que ele fizer “o que deve ser feito” sem sequer pensar por que já o fez, não se fala mais

em competências, mas sim em habilidades ou hábitos.

No meu entender, estes últimos fazem parte da competência... Seria paradoxal que a competência aparentasse

desaparecer no momento exato em que alcança sua máxima eficácia. (PERRENOUD, 1999, p. 26)

Portanto, fazendo uma tentativa de síntese conceitual, vamos considerar, a princípio, estes conceitos como faces

de uma mesma moeda: o saber, o saber-fazer, como um processo híbrido e indissociável.

Contudo, dependendo do contexto sócio-histórico ou da área de conhecimento no qual se situe, o conceito de

competência pode assumir significações bastante distintas.

O que mais nos interessa, nesta aula, é entender como o conceito de competência foi se constituindo no campo

educacional, quais suas bases teóricas e epistemológicas.

2 Propostas curriculares no Brasil: a recontextualização do


conceito de “competência”
Segundo Dias (2002), na proposta curricular brasileira há um processo de recontextualização do conceito de

competência, no qual coexistem tradições teóricas a princípio consideradas contraditórias, como a psicologia

cognitiva e comportamental e novas conceituações. Para a autora, “ao mesmo tempo que conserva tradições

curriculares do passado, cria novos sentidos para o uso do conceito no currículo ajustado ao contexto atual”

(ibid.:4).

Para Dias, as análises orientadas pelo princípio de recontextualização (BERNSTEIN, 1998) evidenciam a

compreensão dos sentidos que se configuram nos discursos sociais e acadêmicos. Esta abordagem do tema

possibilita compreender como, quando e onde foram sendo produzidos os diferentes significados de

competência, sendo um caminho para o entendimento mais profundo e reflexivo desta polissemia.

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Ao analisar o ressurgimento do conceito de competência na pedagogia e nas propostas curriculares brasileiras,

com base na formulação de alguns autores que estudaram esta temática, a autora ressalta alguns aspectos que

configuram o caráter polissêmico e inconclusivo do conceito de competência, dos quais destacamos os seguintes:

"A noção de competência voltou a se fazer presente no mercado das ideias pedagógicas" (THERRIEN

e LOIOLA. 2001, p.153)

As ideias de Philippe Perrenoud e Cesar Coll foram divulgadas amplamente no Brasil através da publicação de

seus livros, pela editora Artmed e da sua participação em eventos no país, e tiveram grande influência no campo

da educação, sendo identificados pelos professores como referências neste tema; não há um novo paradigma,

mas novos sentidos para um conceito já existente, hibridizados com significações atribuídas em tempos

passados, isto é, uma recontextualização; o caráter de conhecimento prático, sendo "a competência inseparável

da ação, [...] um atributo que só se pode ser apreciado e avaliado em uma situação dada" (ROPÉ e TANGUY, 1997,

p.16).

Dias (2002) destaca que, tanto no campo da educação como no campo do trabalho, a difusão do conceito de

competência torna-se mais significativa a partir da década de 80. Segundo ela, há pontos convergentes no uso do

conceito nos dois campos, dos quais destaca três:


• a) O enfoque no indivíduo e na sua educação como processo de formação permanente;
• b) o processo pedagógico com centralidade nos saberes práticos, da experiência, relacionados ao
trabalho e, por último;
• c) grande ênfase no processo de avaliação das competências obtidas pelo aprendiz. Sendo que as duas
últimas características apresentam-se de forma associada. (ibid, p.48)
Para Bernstein (1998), o conceito de “competência” utilizado atualmente na educação é o resultado de sua

recontextualização, abarcando e reelaborando os múltiplos sentidos a ele atribuídos, em diversos tempos e

campos científicos.

Segundo ele, esta recontextualização só foi possível devido a uma convergência nos campos sociopsicológico e

linguístico, dos quais destaca os seguintes conceitos:

Competência linguística (Chomsky)


Linguística;
Competência comunicativa (Dell Hymes)
Sociolinguística;
Competência cognitiva (Piaget)
Psicologia;
Competência social (Lévi-Strauss)
Antropologia.

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Neste processo de recontextualização há a criação de novos sentidos, porém mantém alguns sentidos do

contexto original, modifica e mantém.

Mas o que mais instigava Bernstein, e que é fundamental nos perguntarmos, é como o discurso pedagógico

passou a incorporar o conceito de “competência” e quais as consequências desta incorporação, desta

recontextualização para a prática educativa.

Segundo Dias (2002), nas análises das atuais reformas curriculares, diversos autores vêm apontando

aproximações entre o atual modelo de competências com os modelos curriculares dos teóricos da eficiência

social, destacando que estas influências se iniciam nas décadas 1920, com a incorporação dos princípios da

Administração Científica e do trabalho industrial para o campo curricular, sendo revitalizadas por Bobbit e Tyler,

que, como vimos anteriormente, foram os precursores de um modelo curricular tecnicista, organizado por

objetivos, através do qual pretendia-se preparar os estudantes para a vida adulta e para o trabalho.

O currículo por objetivo, segundo Dias (ibid), teve seu auge nas décadas de 60 e 70, sendo este modelo curricular

influenciado, também, pelos trabalhos de Benjamim Bloon, Robert Marger e James Popham, que tinham como

foco a avaliação, entendida como medição da eficiência do processo educacional.

3 Taxonomia de Bloom
A Taxonomia de Bloom (1973) foi, durante um bom tempo, o “manual” de inúmeros professores desta época, no

qual as ideias de desempenho, condições e critérios eram os eixos centrais do currículo e da formulação dos

objetivos de aprendizagem.

A estreita relação entre a adoção das competências como princípio organizador do currículo e as novas formas

de organização do saber e do trabalho na sociedade contemporânea é também evidenciada na análise que a

autora faz da importância que o conceito assume nos documentos internacionais de orientação para as reformas

curriculares, especialmente no Relatório Jacques Delors (2001), e como eles se constituem como forte eixo nas

propostas curriculares brasileiras para a educação básica e formação profissional (DIAS, 2002, p.79), tendo este

documento como referência.

Segundo Lopes e Macedo (2012), nosso currículo importou, durante muitos anos, os modelos curriculares

americanos.

Segundo as autoras, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, representa a primeira tentativa de

definir diretrizes curriculares no Brasil, sendo utilizada como referencial em muitos estados e municípios.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), de 1997, bem mais detalhados e compilados por áreas de

conhecimento, embora não reconhecidos oficialmente pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) como

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currículo nacional, tornaram-se também documentos de referência no Brasil, assumindo, segundo as autoras, o

papel de “orientadores curriculares”.

Elas lembram que, até o final de 2012, o Ministério da Educação (MEC) deve complementar as diretrizes

curriculares aprovadas entre 2009 e 2011, definindo as expectativas de aprendizagem que nortearão a educação

brasileira.

4 Currículo por competências: limites e possibilidades


Convivem, atualmente, no espaço escolar, práticas centradas nos conteúdos, nas matérias, enfatizando o que

deve ser ensinado, e documentos como os PCNs e Projetos Políticos Pedagógicos, que traduzem as intenções

curriculares através de objetivos.

Estas diferentes formas de organizar o currículo representam, também, modos distintos de conceber os

aprendizes, os conhecimentos, a sociedade e a cultura, como vimos nas aulas passadas.

Ao analisar como a noção de competência se expressa nos currículos, Macedo (2007) ressalta que algumas

“atitudes didático-pedagógicas podem ser apontadas como pertinentes ao trabalho formativo via um currículo

por competências”, dentre as quais destacamos:


• Valorização da transposição didática;
• globalização dos saberes;
• tradução dos conteúdos em objetivos flexíveis;
• aprendizagem para e pelas situações e cenários de trabalho;
• avaliação pautada em indicadores flexíveis e em instrumentos avaliativos de registro.
• A ênfase que Macedo (ibid) atribui à transposição didática nesta forma de organização curricular pode
ser problematizada.
Novas questões se colocam, a partir das reflexões feitas durante nossa aula:
• O currículo por competências poderia acarretar uma desvalorização dos conteúdos nos processos de
ensino ou representam uma nova forma de abordar os conhecimentos?
• Que tensões existem entre o currículo por competência e as diversidades, numa perspectiva
intercultural? Pode-se considerar a diversidade e, ao mesmo tempo, projetar competências iguais para
todos os alunos?
• Como garantir aos alunos o acesso aos saberes produzidos socialmente e, ao mesmo tempo, valorizar
suas representações e construções sociais, suas identidades? Como enfrentar o desafio que se coloca no
embate entre universalismo e relativismo?
• Há sentidos ainda possíveis de serem construídos para que o currículo por competência incorpore uma
perspectiva crítica e pós-crítica de currículo ou esta interseção é um espaço de incompletude?
Estes questionamentos podem ser objeto de reflexões e de busca de possíveis respostas, mesmo que provisórias,

até novas recontextualizações.

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O que vem na próxima aula
Na próxima aula, você vai estudar:
• Novas formas de organização curricular na contemporaneidade, seus limites e contribuições;
• currículo por projetos;
• currículo por problemas;
• currículo por temas geradores;
• currículo por módulos de aprendizagem;
• currículo por ciclos de formação.

CONCLUSÃO
Nesta aula, você:
• Compreendeu a distinção e complementaridade dos conceitos de “competência” e “habilidade”;
• analisou como o conceito de competência tem influenciado as propostas curriculares brasileiras;
• refletiu sobre as diferentes concepções de currículo por competências e suas implicações para a prática
pedagógica.

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