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DA LÓGICA ATUARIAL NA POLÍTICA CRIMINAL CONTEMPORÂNEA E A

CRIMINALIZAÇÃO DO MOVIMENTO HIP-HOP

Lucas Kaiser Costa1

RESUMO
Tem-se como proposta o exame da criação do inimigo, como herança de um direito penal
contemporâneo, mas marcadamente absolutista, e a análise da aplicação da dinâmica atuarial
na política criminal e seus influxos, sobretudo na criminalização do movimento hip-hop. Quer-
se discutir as condições sócio-políticas que marcaram a criação do inimigo, nos Estados
absolutistas, e seus reflexos nos dias atuais, analisando a transposição da lógica de eliminação
desses não-sujeitos, para as especificidades no diálogo (im)possível com o Estado de Direito,
pretensamente democrático, onde há a aplicação de critérios exportados da estatística para o
sistema de política criminal, objetificando elementos socioculturais subjetivos e os colocando
como fatores de risco estáticos, passíveis de punição pela sua periculosidade, criminalizando o
movimento social, tornando-

Palavras-chave: Direito Penal do Inimigo, Política criminal atuarial, Criminalização,


Movimento hip-hop.

ABSTRACT
It is proposed to examine the creation of the enemy, as inheritance of a contemporary but
distinctly absolutist criminal law, and the analysis of the application of actuarial dynamics in
criminal policy and its inflows, especially in the criminalization of the hip-hop movement. We
want to discuss the socio-political conditions that marked the creation of the enemy in absolutist
states and their present-day reflexes, analyzing the transposition of the logic of elimination of
these non-subjects in a (im) possible dialogue with the State of Law, allegedly democratic,
where there is the application of criteria exported from statistics to the criminal policy system,
objectifying subjective sociocultural elements and placing them as static risk factors,
punish
-

Keywords: Criminal Law of the Enemy, Actuarial criminal policy, Criminalization, Hip-hop
movement.

Acima, no alto, envergando sua toga negra, o


presidente do tribunal.
À direita, o advogado.
À esquerda, o promotor.
Degraus abaixo, o banco dos réus, ainda vazio.
Um novo julgamento vai começar.

1
Doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Mestre em
Direito pela mesma instituição. E-mail: lucas-kaiser@hotmail.com.
Dirigindo-se ao meirinho, o juiz Algonso
Hernández Pardo, ordena.
- Faça o condenado entrar.
(Eduardo Galeano)

INTRODUÇÃO

A presente investigação tem como proposta central o exame da ideia de criação de


um inimigo, como herança de um direito penal contemporâneo, mas marcadamente absolutista,
bem como a análise da aplicação da dinâmica atuarial na política criminal, e seus influxos
sociais, notadamente na criminalização de movimentos sociais tais como o hip-hop.
Neste sentido, num primeiro momento, pretende-se discutir as condições sócio-
políticas que marcaram a criação da figura do inimigo, nos Estados absolutistas, bem como os
reflexos desses influxos no decorrer dos séculos, e, sobretudo, na contemporaneidade.
Investigar-se-á, portanto, à transposição da lógica de eliminação desses não-sujeitos
e suas readaptações e amoldamentos históricos, chegando-se até os dias atuais, atentando para
seus contornos e especificidades no diálogo (im)possível com o Estado de Direito,
pretensamente democrático.
Na sequência, a pesquisa almeja se debruçar sobre a aplicação de critérios
exportados da estatística para dentro do sistema de política criminal, perquirindo-se suas
inevitáveis consequências, no que diz respeito à objetificação de elementos socioculturais
marcadamente subjetivos e sua colocação como fatores de risco estáticos e passíveis de punição
em razão de sua mera periculosidade.
Para, finalmente, cotejando os elementos pesquisados, identificar seus influxos
sobre o movimento hip-hop, notadamente sobre a invisibilização e a criminalização que

em alusão ao poema de Eduardo Galeano, utilizado ilustrativamente no


início do projeto.
Neste sentido, a partir dos elementos investigativos selecionados como motores da
pesquisa, tem-se como objetivo geral deste estudo e fio-condutor que se pretende em última
análise verificar, a seguinte indagação: De que modo a criação do inimigo, ranço de um direito
penal absolutista, e a aplicação da lógica atuarial, enquanto política criminal contemporânea,
atuam na invisibilização e na criminalização do movimento hip-hop?
Sendo assim, propõe-se o desenvolvimento do presente estudo através de uma
pesquisa teórica, vale dizer, partir-se-á do exame a partir de referenciais teóricos que abordem
os temas trabalhados, propondo-se um diálogo e uma contraposição de ideias, ampliando-se o
debate e os argumentos para o discurso, visando a construção dialética e provisória de um novo
saber ou uma nova concepção do tema proposto, sem a pretensão de esgotá-lo.

FAÇA O CONDENADO ENTRAR


DA LÓGICA ATUARIAL NA POLÍTICA CRIMINAL CONTEMPORÂNEA E A
CRIMINALIZAÇÃO DO MOVIMENTO HIP-HOP

1.1 A criação do inimigo e a manutenção contemporânea do penalismo absolutista


Um olhar retrospectivo e reconstrutivo acerca do estudo da criminologia aponta,
costumeiramente, que seu início se deu entre os séculos XVIII e XIX, com a chamada Escola
Liberal Clássica, tendo caminhado, posteriormente, no decorrer dos séculos XIX e XX, para o
que se convencionou chamar de criminologia positivista, para, finalmente,
contemporaneamente, chegar-se à criminologia crítica (BARATTA, 1999).
É possível, porém, lançando-se um olhar ainda mais retroativo, especificamente
sobre a questão criminal, enxergar desde o século XIII um campo fértil da análise
criminológica. E isso porque, foi por volta desse período que ganharam força os processos de
centralização do poder na figura do monarca, no período que se atribuiu o nome de absolutismo.
Marca importante deste momento histórico, do ponto de vista criminológico, se dá
na ocorrência do confisco do conflito por par parte do Estado absolutista, vale dizer, toda e
qualquer infração praticada materializava não apenas um dano à vítima diretamente ofendida,
senão uma lesão ao próprio rei absolutista. Todo crime, portanto, era um crime de lesa-
majestade e cada criminoso, um inimigo do rei.
Assim, a partir do momento em que o poder se viu fundamentalmente concentrado
nas mãos do monarca, e que lhe incumbia a direção soberana do seu reino, cada crime ocorrido
representava uma perturbação da ordem por ele imposta, de modo que cada infração, portanto,
consubstanciava um atentado contra sua própria soberania e majestade.
Desenvolveu-se, assim, uma teoria penal absolutista calcada na busca da punição
de um inimigo, criado a partir de sua própria lógica punitivista. Para esse inimigo, por sua vez,
houve a negação jurídica de sua condição de pessoa; quer dizer, tratar-se-ia, pois, do não-
humano, na medida em que representava um perigo para a manutenção do poder absolutista
(ZAFFARONI, 2011, p. 20).
E era exatamente a condição de inimigo que justificava a reação desproporcional ao
delito praticado (ZAFFARONI, 2011, p. 21). A negação jurídica de sua condição de pessoa
permitiu o estabelecimento de sua eliminação como política criminal, oficial ou não, mas
vigente e eficaz.
Ocorre, porém, que a despeito de sua emergência ter se configurado no seio dos
Estados absolutistas, houve a manutenção e propagação da ideia de inimigo no decorrer da
história, apenas readequando-se a sua figura a depender do contexto político, econômico e
social vivenciado.
Dito de outro modo, enquanto no absolutismo o inimigo se materializava a partir
da prática de uma infração que, por sua vez, atingia a majestade , os processos de
colonialismo, as revoluções mercantis, inquisitoriais, industriais, bem como os novos processos
do chamado neocolonialismo, escolherem/identificaram cada um seus próprios inimigos
(ZAFFARONI, 2011).
Verificou-se, assim, apenas a transposição da lógica absolutista, mantendo-se a sua
essência e suas consequências. Em comum entre cada um desses momentos o fato de que o
inimigo é sempre o outro, o estrangeiro, o hostil (ZAFFARONI, 2011, p. 23), ou, para usar as
palavras de Noam Chomsky (1999, p. 111), aquele que não reflete a minha autoimagem.
Tem-se, então, portanto, a nefasta permanência, atual e presente, da figura do
inimigo na lógica punitivista contemporânea, adaptada ao seu contexto histórico-cultural, tendo
ou seriam, pretensos criminosos(?) a partir da confluência de
elementos políticos, econômicos e sociais, conforme pauta neoliberal imposta pelo sistema-
mundo.
Observa-se, neste sentido, a demagoga proposta de construção de um Estado de
direito que teria na democracia o ápice de sua organização política , com a manutenção
histórica e secular do direito penal de um Estado absolutista, que reconhece e aceita a figura do
inimigo. Há, deste modo, segundo Zaffaroni (2011, p. 25) uma contradição, ante a
impossibilidade de conjugação de ambos.
E isso porque, se um lado o mote democrático estabelece a participação como
fundamento basilar, o direito penal absolutista-contemporâneo enxerga na eliminação e no
extermínio sua prática política, ainda que não declarada.
E essa não declaração vale dizer, o fato de se tratar de prática discursivamente
velada se justifica em razão da adoção do slogan
política vendável e rentável, o que se contraporia à realidade prática do sistema penal.
Assume-se, assim, um discursivo em prol dos direitos humanos, e se vela o fato de
que nem todos são considerados humanos; sendo não-humano, nada obsta a eliminação do
inimigo. Noutras palavras, uma vez que a adoção declarada de uma prática exterminadora soaria
atentatória à democracia-direito-humanística, ocultam-se novas formas, diretas ou indiretas,
oficiais ou extraoficiais, de neutralização do não-sujeito.

1.2 A aplicação da lógica atuarial na política criminal hodierna


Contemporaneamente, uma das sobreditas formas de neutralização do inimigo,
ocorre através de um sofisticado modo de controle social, vale dizer, através da gestão,
evidentemente externa, velada, pretensamente eficiente e opressora, da criminalidade. Trata-se,

enquanto forma de reprimir, prevenir e tratar as consequências da criminalidade a partir da


aplicação da estatística como critério de justiça.
Vale dizer, há uma transposição da ideia utilizada, por exemplo, pelas companhias
de seguro acerca do cálculo de risco para a prática de determinadas ações por determinados
sujeitos para dentro do sistema de justiça criminal, analisando-se quase que a partir do
resgate do direito penal do autor o perfil de risco dos sujeitos, punindo-se não seus atos, mas
sua periculosidade (DIETER, 2013).
Une-se, assim, a figura absolutista de inimigo que, na impossibilidade fática de
sua eliminação direta enquanto política penal, em razão do falacioso discurso dos direitos
humanos à lógica contemporânea de controle social, como forma de gestão desse
(não)indivíduo, para que seu extermínio seja velado ou, ao menos, justificado pelo perigo que
representa.
Neste sentido, conforme a inteligibilidade da proposta da política criminal atuarial,
ignoram-se quaisquer aspectos normativos, eis que representariam óbices operacionais à
racionalização do sistema de justiça criminal, adotando-se apenas a periculosidade como forma
de justificação de sua lógica, incorporando-se elementos escusos tais como racismo, sexismo
e classismo como meros fatores de risco, com foco na eficiência dessa gestão (DIETER,
2013).
(não)indivíduo, enquanto mero objeto dessa política penal, não
depende, portanto, do que ele efetivamente fez ou deixou de fazer, mas sim do grau de
periculosidade social que ele representa, segundo suas próprias características pessoais,
culturais, sociais e históricas.
Evidencia-se, assim, notadamente a partir da recepção dessa lógica no Brasil, a
perversa seletividade dessa política, na medida em que impõe como fatores de risco logo,
potencialmente puníveis , elementos objetivos frutos de escolhas sociologicamente
comprometidas com a construção sociocultural racista, sexista, androcêntrica, homofóbica e
classista que funda o país. Denota-se, então, de toda a sorte, para além de outras
criminalizações, uma verdadeira criminalização da pobreza.
Noutras palavras, o local de nascimento e residência, a posição social que se ocupa,
o emprego que se exerce, a aparência que se tem, os gostos que se manifestam, entre outros,
passam a ser fatores de risco que, após objetificados, justificam a neutralização de quem os
exprime.
É o que se verifica, por exemplo, com os movimentos sociais notadamente os
advindos da periferia , na medida em que representam alto fator de risco conforme a lógica
criminal atuarial, sobretudo em razão de buscarem romper com a lógica sistêmica e hegemônica
que lhes é imposta.
Cria-se, assim, para além de diversos outros inimigos, a figura do inimigo urbano,
em que um dos seus principais atores ou seria autores(?), na melhor acepção da autoria
criminosa , cujos papéis são impostos pelos tecnocratas atuariais, são, justamente, os
movimentos sociais, tais como o movimento hip-hop.

1.3 A invisibilização e a criminalização do movimento hip-hop


Essa estigmatização, tomando o movimento hip-hop como exemplo privilegiado, é
ainda mais flagrante por se tratar de movimento social e cultural ligado à cultura negra e da
periferia, associando-se, assim, toda sua produção à violência ou a temas não relevantes para
as demais camadas sociais, que não se encontram imersas naquela realidade. Produz-se, assim,
verdadeiramente, processos de exclusão, meticulosamente geridos conforme a lógica atuarial.
Denota-se, portanto, que essa exclusão social e essa invisibilização são
intencionalmente produzidas e geridas, na medida em que se identifica o movimento não
enquanto formado por sujeitos sociais, mas como verdadeiro inimigo, o que justificaria o
tratamento que lhe é conferido, ou seja, apenado por pregar a valorização do ser negro,
elemento esse que, para além de historicamente vilipendiado, estigmatizado e subalternizado,
consubstancia fator de risco merecedor de controle social.
Até mesmo porque, retomando as raízes históricas do movimento, tem-se que o que
possibilitou a gestação do hip-hop enquanto arte foi verdadeiramente uma tentativa de resgate
da história e cultura negra africana e seu contexto biográfico sempre adverso, ligado a
escravidão, ao povo considerado não-humano , a partir da sua própria musicalidade.
Deste modo, essa cultura emergiu como possibilidade de rompimento das barreiras
da estigmatização. Todavia e tal observação denota-se no mínimo inquietante , a dificuldade
reside no fato de que a manutenção de um direito penal absolutista e a adoção de um modelo
de gestão baseado na lógica de assunção do risco, impede qualquer emancipação desse
movimento, na medida em que se amolda perfeitamente na condição de inimigo.
O seu próprio embrião, enquanto movimento, já esgarça a sua problemática
colocação social, uma vez que se deu a partir do envio dos negros africanos para o continente
americano como mão de obra escrava, o que se por um lado explica a forte miscigenação
presente, por exemplo, na sociedade brasileira, por outro já denota a forma de construção dessas
mesmas sociedades, marcadamente racistas e excludentes, vez que coisificou o ser humano,
tratando-o como não-humano.
Os próprios processos de favelização e de criação dessas comunidades que Jesse
, que se intensificaram com a abolição da
escravatura, reforçam essa exclusão, tendo em vista que a liberdade concedida foi meramente
formal, vale dizer, não houve qualquer tipo de acolhimento ou inclusão decorrente da alforria,
que, ao contrário, contribuiu para a intensificação do estigma, uma vez que os negros agora
livres os, formando-
se assim os guetos, as periferias e as favelas.
A possibilidade desse deslocamento, aliás, perfez-se meramente na própria gestão
de sua exclusão, na medida em que reafirma-se a impossibilidade de seu extermínio direto,
como política discursivamente declarada, fez como que se adotassem medidas de controle
desses (não)indivíduos.
Complementam-se, assim, as perspectivas de Dieter (2013) e Santos (2010), no
tocante à gestão dessa exclusão. E isso porque, para Santos (2010), notadamente no que atine a

justificativas falaciosamente criadas e declaradas que escondem reais interesses velados e


não-declarados , se forjam mecanismos de desigualdade e de exclusão na contemporaneidade,
como exceções retoricamente produzidas como possíveis aos princípios emancipatórios da vida
humana.
Desse modo, constrói seu raciocínio no sentido de que a desigualdade e a exclusão
seriam sistemas de pertença, vale dizer, no primeiro caso o pertencimento se daria em razão de

(SANTOS, 2010, p. 280).


Nos limites deste estudo, interessa sobremaneira o conceito de pertencimento pela
exclusão, na medida em que, neste caso a exemplo do que acontece com o movimento hip-
hop -
A exclusão se pauta no princípio da segregação, ou seja, cria-se a ideia de um
interdito, a partir de dispositivos sociais normalizantes
, os quais quem se insere nestes moldes é simplesmente
tratado como inferior, de modo a consolidar a necessidade de sua imediata exclusão, que, por
sua vez, é justificada pelo sua própria inferioridade.
Esse imperativo excludente, ainda, é incutido nos indivíduos, através de violentos
processos de coerção e, sobretudo, de assimilação, de forma que os próprios excluídos se
resignam diante de sua própria condição, de modo que passam a enxergar o seu pertencimento
ao mundo justamente a partir de um não-pertencimento à sociedade. Ou seja, pertencem
exatamente por não-pertencerem.
E é precisamente neste sentido que se inserem os jovens, em sua maioria pardos e
negros, dos guetos e das periferias, eis que, partilhando de uma história vilipendiada, são
submetidos, diariamente, a processos de exclusão, de modo que, comparados a delinquentes e
criminosos, bem como submetidos a diversas formas de racismo ou de afirmação da sua não-
existência ou não-relevância, acabam por assimilar a própria exclusão.
Assim, enfraquece-se sobremaneira o próprio potencial da cultura e o movimento
hip-hop, no sentido de possibilitar ao jovem negro da periferia a utilização contra-hegemônica
do seu próprio processo de exclusão, na medida em que se propagam subjetividades sociais
hegemônicas que trabalham no sentido de invisibilização e criminalização da cultura.
Problema ainda mais acentuado verifica-se quando essa mesma cultura hegemônica
e sua forma de saber excludente propõe, voluntariamente, dar visibilidade àquele a quem ela
própria sempre subalternizou, uma vez que nesses casos sua apresentação tende a ser omissa e
tendenciosa, de modo a reproduzir e justificar, perante a sociedade, a necessidade de seu
controle social, de maneira eficiente e opressora.
No caso específico do hip-hop, a sua visibilização, não raras vezes, vem associada
à criminalização do movimento, sob o argumento de que o mesmo incita a violência, faz
apologia ao consumo de drogas, coisifica a mulher, entre outros.
Primeiramente, porém, para se compreender a criminalização do movimento hip-
hop, bom que fiquem claras algumas premissas que auxiliam no correto entendimento do tema.

que se cria uma norma para definir que algo é certo ou bom, define-se, por tabela, que algo não
é certo ou não é bom (o que não se enquadra na primeira categoria); noutras palavras, produz-
se uma norma a concepção de normal o anormal.
Desse modo, qualquer cultura que aborde temáticas tidas como desviantes, como o
hip-hop eis que está imerso numa realidade produzida como desviante , são consideradas
anormais e, portanto, invisibilizadas.

par os demais excluídos e uma -


pertença pela não-pertença

(LINCK, 2011, p. 06) de visibilização.


Dessa forma, de fato, a transgressão mostra-se como um recurso ou modo de

construção do

O que se quer deixar claro, portanto, é que a dita transgressão supostamente


praticada por esses grupos oprimidos, como no caso o hip-hop, é, muitas vezes, uma construção
no sentido de que desde a criação da norma o modus
anormal, errado, de modo que o simples exercício do seu eu já se denota como transgressor.
Em outras palavras, a transgressão necessária não é, por exemplo, a violência física,
mas a negação da norma que atribui o caráter violento e transgressor ao simples ato de viver do
oprimido. Desta feita, inconcebível a vinculação da violência (transgressão necessária) à
criminalização do movimento.
Essa concepção criminalizante, aliás, bom que se diga, é excelente como
mecanismo de controle, tendo em vista que nulifica o sujeito, e por isso é tão utilizada.
Vislumbra-se, por exemplo, a implementação desses mecanismos quando se proíbe ou
criminaliza a comercialização dos materiais utilizados pelo movimento na representação de sua
arte, como os sprays, por parte dos grafiteiros , dificultando
o próprio reconhecimento do grafite como arte.
É desse modo que a transgressão de que se valem os hiphoppers é melhor que a
norma que estabelece o ato como transgressor, uma vez que a partir do momento em que, para
o transgressor, torna-se impossível se enquadrar na conduta normalizante, a própria conduta
torna-se, ao mesmo tempo, criminalizante, de modo que o discurso que normaliza legitima a
violência contra o oprimido, ao invés de identificá-lo como vítima.
Daí a necessidade de um exercício reflexivo da própria norma, bem como da prática
da alteridade mento hip-hop do
reconhecimento do seu par -se de pré-
concepções, eis que invariavelmente carregadas de pré-conceitos.
E isso porque, até mesmo quando o acadêmico teoriza sobre, por exemplo, o
movimento hip-hop, como no caso do presente estudo, substituindo a voz do próprio
movimento, já há um exercício de inferiorização e controle mesmo que informal , uma vez
que aparenta sempre a necessidade de que alguém fale por eles, como se eles não soubessem
falar.
Desse modo, a autoafirmação desse sujeito depende de inúmeras rupturas, pois o
ponto de partida credível sempre se dá através de um viés notoriamente racista, de que o
12).
Não caberia, mais, portanto, etiquetar a identidade de um movimento a partir de um
olhar racista, que considera que o sujeito da periferia é perigoso pelo simples fato de lá residir,
2
, ou a partir do

pelos próprios integrantes da cultura hip-hop


3
.
E isso porque, a verdadeira violência não é a praticada pelo movimento hip-hop, ou
por qualquer outro movimento oprimido e invisibilizado que, como foi visto, foi caracterizada
como uma transgressão necessária , ou pelo menos, não exclusivamente por ele; mas, do
contrário, essa violência é alimentada

do jovem pobre e geralmente negro; esse jovem, que irá agir reativamente
potencializando os estigmas que inicialmente sofria; o sistema penal que apenas
reforça e ajuda a produzir esses estereótipos, geralmente os piorando em escala
gigantesca (especialmente a partir do sistema carcerário); a mídia, reproduzindo uma
cultura do espetáculo em que a alteridade é consumida na representação a partir do
fortalecimento do medo coletivo e assim por diante (PINTO NETO, 2011).

Impõe-se, assim, transpor essa visão marcadamente deletéria, e expor a


perversidade dos mecanismos de criação e gestão do inimigo, de modo a empregar um olhar
mais apurado sobre a realidade, para que se observe que a concepção do que é "normal" é apenas
uma das perspectivas possíveis, que, por sua vez, nega a alteridade e, por consequência,
invisibiliza outras experiências.
Ignorar que o próprio contexto vivenciado pelos integrantes do movimento hip-hop
é ativamente produzido como desviante por parte de uma política influenciada por um direito

2
Em referência à música do grupo O Rappa.
3
Em referência à música Vida Loka parte I, dos rappers
penal marcadamente absolutista é, de fato, olhar parcialmente para o problema, o que
impossibilita que se perceba a transgressão enquanto negação da norma como tentativa de
visibilização, e, sobretudo, que se enxerguem possíveis papeis potencialmente emancipatórios
dessa cultura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo foi iniciado, com a proposta de se investigar de que modo a


criação do inimigo, ranço de um direito penal absolutista, e a aplicação da lógica atuarial,
enquanto política criminal contemporânea, atuam na invisibilização e na criminalização do
movimento hip-hop.
Neste sentido, a partir do século XIII, se observou o confisco do conflito por par
parte do Estado absolutista, de modo que toda e qualquer infração praticada materializava não
apenas um dano à vítima diretamente ofendida, senão uma lesão ao próprio rei absolutista. Todo
crime, portanto, era um crime de lesa-majestade e cada criminoso, um inimigo do rei.
Desenvolveu-se, assim, uma teoria penal absolutista calcada na busca da punição
de um inimigo, criado a partir de sua própria lógica punitivista. Para esse inimigo, por sua vez,
houve a negação jurídica de sua condição de pessoa.
Ademais, não obstante seu florescimento no contexto dos Estados absolutistas,
verificou-se a manutenção e propagação da ideia de inimigo no decorrer da história, apenas
readequando-se a sua figura a depender do contexto político, econômico e social vivenciado;
quer dizer, houve apenas a transposição da lógica absolutista, mantendo-se a sua essência e suas
consequências.
A nefasta permanência, atual e presente, da figura do inimigo na lógica punitivista
contemporânea, adaptada ao seu contexto histórico-cultural, somou-se à forma contemporânea
de neutralização do inimigo, qual seja, um sofisticado modo de controle social, através da
gestão, evidentemente externa, velada, pretensamente eficiente e opressora, da criminalidade,

Uniram-se, assim, a figura absolutista de inimigo que, na impossibilidade fática


de sua eliminação direta enquanto política penal, em razão do falacioso discurso dos direitos
humanos e a lógica contemporânea de controle social, como forma de gestão desse
(não)indivíduo, para que seu extermínio fosse velado ou, ao menos, justificado pelo perigo que
representa.
Ocorre, todavia, que a recepção dessa lógica, sobretudo no Brasil, materializou uma
perversa seletividade na escolha de seus alvos, na medida em que impôs como fatores de risco,
elementos objetivos frutos de escolhas sociologicamente comprometidas com a construção
sociocultural racista, sexista, androcêntrica, homofóbica e classista que funda o país.
Isso culminou com a seleção dos movimentos sociais, notadamente os de periferia
como inimigos privilegiados, eis que se enquadram fundamentalmente nos fatores de risco
utilizados como critérios dessa justiça transviada. É o que se verifica, por exemplo, com o
movimento hip-hop, sobretudo em razão de buscar romper com a lógica sistêmica e hegemônica
que lhe é imposta.
Denota-se, contudo, que essa exclusão social, essa invisibilização e, sobretudo, essa
criminalização, são intencionalmente produzidas e geridas, na medida em que se identifica o
movimento não enquanto formado por sujeitos sociais, mas como verdadeiro inimigo.
Nesta perspectiva, como proposta de uma resposta evidentemente provisória e
resultado apenas desta investigação ao problema anteriormente apresentado, considera-se que
a exclusão do movimento hip-hop se pauta no princípio da segregação, ou seja, cria-se a ideia
de um interdito, a partir de dispositivos sociais normalizantes no quais sabidamente não se
enquadram os integrantes do movimento social.
Assim, enfraquece-se o próprio potencial da cultura e o movimento hip-hop, no
sentido de possibilitar ao jovem negro da periferia a utilização contra-hegemônica do seu
próprio processo de exclusão, na medida em que se propagam subjetividades sociais
hegemônicas que trabalham no sentido de invisibilização e criminalização da cultura.
Criminalização essa fomentada por esse mecanismo de gestão, que, calcado na ideia
de perseguição de um inimigo, cria uma norma para definir que algo é certo ou bom, define-se,
por tabela, que algo não é certo ou não é bom (o que não se enquadra na primeira categoria);
noutras palavras, produz-se uma norma a concepção de normal e ao mesmo tempo um
o anormal.
Ignorar esse contexto político-criminal em que se vive e que é vivenciado pelos
integrantes do movimento hip-hop é reproduzir ativamente a produção de sua existência
desviante e transgressora, o que, embora coadune com o direito penal marcadamente absolutista
hodierno, não deveria emergir num Estado de direito democrático que se pretende construir.

REFERÊNCIAS
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro:
ICC, 1999.
CHOMSKY, Noam. A minoria próspera e a multidão inquieta. 2. ed. Brasília: Unb, 1999.

DIETER, Maurício Stegemann. Política criminal atuarial: a criminologia do fim da história.


Rio de Janeiro: Revan, 2013.

LINCK, José Antônio Gerzson [et al.] (organizadores). Criminologia cultural e rock. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011.

PINTO NETO, Moysés da F. Violência e Maldição: um ensaio sobre ressentimento, justiça e


vingança no contexto brasileiro. Disponível em:
<http://moysespintoneto.files.wordpress.com/2011/01/violencia-e-maldicao.pdf>. Acesso em:
11 jul. 2013.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3.
ed. São Paulo: Cortez, 2010.

SOUZA, Jesse. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da


modernidade periférica. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2012.

ZAFFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan,
2011.

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