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Orhan Pamuk – O tempo – In: O museu da Inocência

A relação entre os objetos e a memória está no centro da evocação quase alegórica do tempo feita por
Orhan Pamuk em um momento crucial de O museu da inocência, romance em que os objetos
funcionam como verdadeiros avatares do passado, evocadores da memória e pacificadores de
experiências traumáticas do e no tempo.

Publicado originalmente em 2008 pelo escritor turco nascido em 1952 e ganhador do prêmio Nobel de
literatura em 2006, O museu da inocência foi pensado, desde suas primeiras concepções, ainda nos
anos 1990, como um projeto que contaria com uma exposição física permanente. Esse museu foi
aberto ao público na primavera de 2012, nas proximidades de bairros boêmios e de uma das principais
vias de comércio de Istambul. O museu e o romance foram pensados em paralelo, tendo Pamuk tanto
partido de objetos que comprou em antiquários de Istambul para construir determinadas passagens
da história, quanto buscado itens especificamente para ilustrar certos momentos da trama. A
inauguração do museu foi logo seguida pela publicação de um catálogo, que recebeu o título de “A
inocência dos objetos”. Redigido pelo próprio Pamuk, o catálogo se detém sobre temas de extremo
interesse para o historiador, como a psicologia do colecionador e o papel que devem desempenhar os
museus. O projeto também incluiu um documentário, “A inocência das memórias”, produzido em
colaboração entre Pamuk e o cineasta britânico Grant Gee e lançado no início de 2016.

Logo na entrada do museu, o visitante depara com um “manifesto modesto para os museus”
(disponível em: http://en.masumiyetmuzesi.org/page/a-modest-manifesto-for-museums), do qual
considero interessante recuperar alguns termos. Pamuk inicia o texto afirmando que eram raros os
museus na Istambul de sua infância e que, quando eles existiam, eram ou “monumentos históricos”,
ou “lugares com um ar de repartição governamental”. Ele afirma que, mais tarde, em partes mais
escondidas das grandes cidades europeias, aprendeu que os museus também poderiam falar sobre e
em nome dos indivíduos. Passa a propor, então, que o papel dos museus seja não representar o Estado,
mas sim “explorar e desvelar o universo e a humanidade do novo e moderno homem que vem
emergindo de nações não ocidentais cada vez mais ricas” – uma afirmação que deixa entrever certo
impacto da crítica pós-colonial, que estudaremos na última unidade do curso.

O escritor traça, então, uma proposta em 11 tópicos sobre qual deveria ser, em sua concepção, um
novo (e mais socialmente relevante) papel a ser desempenhado pelos museus. Dois dos tópicos me
parecem especialmente ilustrativos da perspectiva de Pamuk, e também dialogam com temas da
historiografia pelos quais temos transitado.

“3. Não precisamos de mais museus que tentem construir as narrativas históricas de uma sociedade,
uma comunidade, um time, uma nação, um estado, uma tribo, uma empresa, ou uma espécie. Todos
sabemos que as histórias comuns, cotidianas dos indivíduos são mais ricas, mais humanas e muito mais
alegres.

4. Demonstrar a riqueza da história e da cultura chinesas, indianas, mexicanas, iranianas ou turcas não
é problema – isso precisa ser feito, é claro, mas não é algo difícil. O verdadeiro desafio é usar os museus
para contar, com os mesmos brilhantismo, profundidade e poder, as histórias dos seres humanos
individuais vivendo nesses países”.

Tentando não entrar em detalhes excessivos e não estragar as inúmeras reviravoltas do livro – cuja
leitura, aliás, eu recomendo fortemente –, vejo-me, de toda maneira, na obrigação de situar um pouco
a trama. O museu da inocência tem como protagonista e narrador em primeira pessoa Kemal, herdeiro
promissor de uma família da alta burguesia turca que, na Istambul de meados dos anos 1970, tem sua
vida virada do avesso a partir de seu explosivo encontro amoroso com Füsun, uma parente distante
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de origens sociais modestas e mais de uma década mais jovem. O livro faz referências constantes à
conjuntura em que se passam os eventos, com menções ao clima tenso de atentados perpetrados
tanto por religiosos fundamentalistas quanto por grupos de extrema esquerda, e passagens cruciais
são narradas tendo como pano de fundo o golpe militar por que a Turquia passou em setembro de
1980. Também é marcado por uma reflexão sobre a sociedade turca, suas contradições e o ambíguo
lugar que ela ocupa, espremida entre o “ocidente” e o “oriente”, simultaneamente “europeia” e
“asiática”, “moderna” e “arcaica”. O lugar da mulher na Turquia é um foco especial de atenção, e
responsável por muitos dos conflitos vividos pelas personagens de ambos os sexos.

“O tempo”, situado mais ou menos na metade do livro, é um dos capítulos que compõem a espinha
dorsal da narrativa, e que lhe conferem um caráter reflexivo. Nele, Kemal busca sintetizar e traçar um
balanço dos “sete anos e dez meses” em que foi jantar regularmente na casa dos Keskin, a família de
Füsun. Esses encontros começaram a acontecer após um período de ruptura e hostilidade entre Kemal
e Füsun, ao longo do qual permaneceram sem contato e praticamente sem notícias um do outro. É ao
longo desses jantares que Kemal começa a subtrair objetos da residência dos Keskin, a levá-los para o
apartamento onde costumava se encontrar em segredo com Füsun e a fazer deles uma espécie de
“conforto” para seu sofrimento, a partir das memórias de sua amada que eles eram capazes de evocar
– num movimento que, naturalmente, logo se tornaria uma incontrolável obsessão. No museu em
Istambul, uma das peças mais impressionantes pode ser associada tanto ao capítulo “O tempo” quanto
à obsessão que toma conta de Kemal. Logo no início do percurso do visitante, muito próxima à
transcrição do “manifesto modesto para os museus”, está uma parede inteiramente tomada por
bitucas de cigarro, muitas com marcas de batom, todas meticulosamente datadas e com pequenas
descrições do momento em que foram capturadas e do que Füsun fazia enquanto fumava cada cigarro.

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