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Organizadores:
Flávia Cristina Silveira Lemos Tecer o diferir no cuidado
Dolores Cristina Gomes Galindo
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho em saúde como agência
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde
como agência de conexões plurais
Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Revisão: Os Autores
Ed24
Bibliografia
ISBN Coleção 978-85-444-1750-8
ISBN Volume Digital 978-65-251-4015-5
ISBN Volume Físico 978-65-251-4019-3
DOI 10.24824/978652514019.3
2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei nº 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 – E-mail: sac@editoracrv.com.br
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Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar (UNESP)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Edna Lúcia Tinoco Ponciano (UERJ)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Edson Olivari de Castro (UNESP)
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Três de Febrero – Argentina) University, MMU, Grã-Bretanha)
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Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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“Línguas selvagens não podem ser domadas, elas só podem ser cortadas”
(Glória Anzaldúa).
“Uma mulher que escreve tem poder, e uma mulher com poder é temida”
(Glória Anzaldúa).
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 21
Introdução
É importante iniciar a escrita deste capítulo com um questionamento que per-
passou todo o processo de pesquisa a respeito dos direitos ao esporte, cultura e lazer:
como e por que analisar estes três juntos, como se fossem um só? Parece ser uma
simplificação da multiplicidade destes conceitos, entretanto este não foi o objetivo. A
opção por discuti-los juntos nessa dissertação baseia-se no próprio Estatuto da Criança
e do adolescente que os colocam juntos em seu capitulo IV – Título II, garantido o
direito à cultura, ao esporte e ao lazer, o qual delimita em seu art. 58 que “no pro-
cesso educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios
do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da
criação e o acesso às fontes de cultura” e em seu art. 59 que “os Municípios, com
apoio dos Estados e da União, estimularão e facilitarão a destinação de recursos e
espaços para programações culturais, esportivas e de lazer voltadas para a infância
e a juventude” (BRASIL, 2011). A partir de tal ressalva, fez-se necessário discutir
os conceitos de autores a respeito dos mesmos.
Integrar num mesmo espaço físico programas e ações culturais, práticas espor-
tivas e de lazer, formação e qualificação para o mercado de trabalho, serviços
sócio-assistenciais, políticas de prevenção violência e inclusão digital, de modo
a promover a cidadania em territórios de alta vulnerabilidade social das cidades
brasileiras (MINISTÉRIO DA CULTURA, s.d.).
Prevenção e utilitarismo
Apesar de serem diretos previstos em lei, esporte, cultura e lazer são tidos como
privilégios, pois as classes pobres, ao não terem garantido seus direitos e ao viver em
uma luta diária por melhores condições de vida, têm o lazer como uma possibilidade
distante e o esporte é considerado como útil na medida em que ou é uma forma de
ascensão social ou é um modo de prevenção contra os riscos das ruas, preenchendo
o tempo das crianças e dos adolescentes. O ter que trabalhar tão presente no dia a
dia das classes pobres e a possibilidade de ócio tão mais permitida nas classes mais
abastadas, segundo Zaluar (1994), baseia-se na forma grega de pensar logicamente
a oposição entre trabalho e lazer na era clássica, sendo esse último associado à
capacidade de criação. Nunes (2003) discute a construção de distintos mecanismos
de subjetivação, a partir de condições desiguais de acesso a direitos, baseados na
distribuição desigual de renda e alertando para o papel que o mercado assume em
uma lógica capitalista de produção e consumo.
A noção de sociedade de controle de Deleuze (1992) é interessante para pensar
a oferta de esporte, cultura e lazer como gerência da vida. Diferente da sociedade
disciplinar de Foucault, a sociedade de controle caracteriza-se por uma forma de con-
trole aberto e contínuo, ultrapassando a fronteira entre o público e o privado. A partir
disso, é importante pensar em que medida o esporte, a cultura e o lazer são tratados
enquanto um modo de controle em meio aberto que age, concomitante à disciplina
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Nesse processo, os jovens são apontados como o principal grupo que precisa ser
controlado, a criação da demanda da proteção materializa práticas não discursivas
de controle intervenção. Esse quadro legitima a necessidade de vigilância sobre
os corpos desses jovens. [...] Nesse ponto, a “falta de ocupação” do jovem é des-
tacada como uma das causas da violência, de sorte que se subtende que, quanto
menos tempo livre o jovem tiver, menores são as chances dele se envolver em
atividades criminosas (2012, p. 151).
Resistindo aos planejamentos urbanos que segregam cada vez mais para a peri-
feria grupos considerados indesejáveis, é possível ver no Brasil formas particulares
de espaços habitáveis. Entretanto, a circulação nos espaços ainda é uma questão
crescente, visto as múltiplas maneiras de restringir o acesso democrático de todos à
cidade. Essas questões atravessam direitos fundamentais como mobilidade, moradia,
1 Entende-se aqui, conforme nos fala Santos (2008), que o processo de urbanização brasileiro acontece
nos séculos anteriores ao XX, mas alcança uma dimensão macro em meados do referido século com o
crescimento demográfico e a industrialização.
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esporte, cultura e lazer. Perguntas ressoam em uma tentativa de resistir a essas subje-
tivações capitalistas e em uma luta pela garantia de tais direitos: os espaços da cidade
proporcionam a prática de esporte, cultura e lazer? Que mecanismos de segregação
são ativados diariamente impedindo/atrapalhando a livre circulação nos espaços? Há
acesso gratuito a atividades culturais, esportivas e de lazer? As políticas de habitação
são pensadas em áreas do centro ou afastadas? Todos acessam os mesmos espaços
democraticamente? Quais as possibilidades de resistência?
Essas perguntas, entre tantas outras, questionam as desigualdades sociais gri-
tantes do país e o lugar que as periferias ocupam na (não) garantia desses direitos,
visto que é notório no planejamento das cidades que há diferenças entre elas e os
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bairros centrais e ricos seja na ausência ou não manutenção de praças públicas, nas
dificuldades de transporte para acessar o centro e os espaços públicos, na capitalização
da cultura e do lazer que restringe o acesso a atividades a quem consome.
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REFERÊNCIAS
ALVIM, M. R. B.; VALLADARES, L. P. Infância e sociedade no Brasil: uma análise
da literatura. Boletim Informativo Bibliográfico – BIB, Rio de Janeiro, n. 26, 1988.
online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/viewFile/1668/2155.
PORTELLI, A. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo, v.
14, p. 25-39, fev. 1997.
REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Editora Claraluz, 2005.
RIZZINI, I. O século perdido: raízes históricas das políticas sociais para a infância
no Brasil. Rio de Janeiro: EDUSU/AMAIS Livraria e Editora, 1997.
ZALUAR, A. Cidadãos não vão ao paraíso: juventude e política social. São Paulo:
Editora Escuta; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994.
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A INFÂNCIA MAQUINAL E SUA
TERRITORIALIDADE EM QUESTÃO
Edna C. M. Moia Caldeira
A pequena Maribel1 estava sentada à minha frente no sofá de três lugares com
o pai à sua esquerda. Os adultos presentes, eu e o pai, lhe dirigiam o olhar com aten-
ção, sem mesmo a alcançarmos na horizontalidade em função de sua altura. Corpo
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franzino, bem coberto pelos muitos babados de um vestido florido. No pulso direito
uma pulseira colorida de miçanga. Os pés a balançar no ar não tocavam o chão. Era
miúda. Mas essa pequena dimensão física de minha interlocutora era incompatível
com a enormidade de um sorriso que escapava simpático pelo canto da boca falante
e responsiva, permitindo-se mostrar os dentinhos que portavam aparelho ortodôntico
com ligas coloridas, combinando com a pulseira. Me dizia o seguinte sobre suas
competências escolares auto-observadas: “Não sou boa em matemática. Um dia, ela2
fez um jogo: quando eu errava a continha eu levava duas chineladas na mão, assim.
(esticando a palma da mão). Mas eu ficava bem séria. Só sentia o olho ardido. [...]”.
Assim a minha paciente, recém apresentada, terminava sua breve narrativa com
olhar fugidio, ainda explorando o espaço desconhecido do consultório e, logo depois,
inclinou a cabeça levemente pra baixo e manteve-se friccionando suavemente as
mãos uma na outra. Então.... o silêncio: meu, da criança e do pai. Esse não se mos-
trava surpreso ao assentir sutilmente com a cabeça, confirmando o que fora narrado.
Interrompendo o tempo de um vazio preenchido de significado e, me dirigindo ao pai,
entrego as palavras que pareciam traduzir sua expressão: “Parece complicado, não?!”
Apenas passado longo tempo desta cena clínica, em momento exato que escrevo
este artigo, o termo complicado pareceu traduzir uma espécie de surpresa misturada
com leve mal-estar por sentir uma total incongruência entre a experiência de punição
física narrada e uma resiliência, beirando a indiferença, por parte daquela menina.
Chamo a atenção sobre o fato de que a ocasião referida se tratava de um primeiro
contato com a paciente, não tendo, assim, a garantia de uma memória fiel a um
acontecimento ou se havia elaborações fictícias, estando eu ciente, com os meus anos
de estudo e prática profissional, que a verdade da criança estaria presente de todo
modo, independente de passeios que suas imagens mentais fariam entre a realidade
e a fantasia. O complicado, sinônimo de complexo, se associava mais ao que parecia
estranho e esquisito. A supor pela expressão facial combinada com as sutilezas do
comportamento de Maribel, que não me diziam absolutamente nada sobre sua expec-
tativa a respeito de minha reação ou a do pai diante do que se contava, parecia-me
1 Trata-se de um nome fictício adotado para garantir a ética do sigilo sobre a identidade da paciente, em
conformidade com a autorização dos respectivos responsáveis.
2 Referindo-se à sua mãe, coprodutora da pulseira artesanal, o que parecia marcar a lembrança de um bom
encontro afetivo.
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um recorte de criança fora do esperado, ou ainda, que escapava do eixo a sua relação
com a dor, com o castigo ou consigo mesma.
Trago aqui este trecho de atendimento clínico inicial, por entender que nele
contém os elementos provocadores das reflexões que se seguem nesta escrita. Assim,
como análogo as palavras-chave que se destacam ao final de um resumo textual,
coloco em relevo algumas sentenças, eixos dos pensamentos que aqui se desen-
volverão: infância, territorialidade da infância, lugar da infância na lógica do
desempenho, infância maquinal.
O sentido adotado pelas ciências humanas sobre o conceito de territorialidade
apresenta inspirações na etologia, conforme muito bem abordado por Albagli (2004)
linguagem, a começar pelo corpo com suas posturas e movimentos até os objetos e
fazeres lúdicos. O corpo, o brinquedo e o brincar são, assim, componentes estrutu-
rais da infância que portam um sentido de liberdade vital para o processo criativo
e necessário ao desenvolvimento, ofertando um lugar específico para a infância no
mundo. Entendemos, assim, que a criança se apresenta a todos na conjunção de sua
ocupação espacial e objetos eleitos que alinham o cenário de suas brincadeiras, das
fantasias, dos movimentos, traquinagens e todas as invenções resultantes.
Ora, se a criança se constitui e se apresenta ao mundo eminentemente pelo
seu exercício lúdico, sustentado pela lógica do desejo criativo e do fazer de conta,
simulando a realidade numa riqueza teatral, corporal, sensorial e compartilhada,
6 Grifo nosso.
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sujeito em formação. Nos parece que tudo isso condiz com o termo bem apropriado
em uma das literaturas tomadas como apoio neste artigo: a Geografia da Infância. Não
haveria melhor maneira de nomear de fato aqui aquilo que é referido sobre a infância
como “o lugar concebido em todas as suas dimensões, com toda a rede simbólica que
o envolve” (LOPES; VASCONCELOS, 2006) e que, portanto, possível ser mapeado.
Os lugares mencionados e outros tornam-se terrenos da infância na medida em
que estão autorizados pela cultura e pela sociedade, ancoradouros que destinam aos
seus pequeninos os espaços possíveis, de acordo com o que se concebe subjetivamente
sobre a infância. Tunes (2018) nos indica a possibilidade de “[...] quem sabe, seja
possível afirmar que a ideia de infância diz respeito ao conjunto de todas as territo-
rialidades das crianças em todos os tempos e lugares.” Certamente a autora aqui se
aproxima do que havia constatado Ariés (2018) em décadas passadas sobre o surgi-
mento do sentimento de infância, em caráter universal, o qual só fora possível pelo
atravessamento ideológico regido pela economia e casado com os princípios morais
do tempo histórico, reservando o lugar da criança. Embora a literatura moderna já nos
venha complementar que há uma diversidade de culturas infantis, abrindo um leque
de dimensões da infância de acordo com as variabilidades de recintos produzidos
socialmente, há algo nela que é vigoroso e que parece justificar mais ainda a dinâmica
recíproca e dialética na constituição da criança e seu espaço. Queremos dizer que o
território, juntamente com as coisas compostas e suas regras, legitimam o lugar da
criança, mas por ela mesma podem ser contestados. Os pequenos sujeitos pervertem
o sentido de grande parte desses elementos que lhe são reservados. Afinal, como é
naturalmente previsto, é funcional ao desenvolvimento corromper as representações
das coisas dadas pois é resposta ao sentimento de ambivalência diante dos ditames
adultos versus seu próprio desejo e, por que não, sua força criadora, como somatório.
Neste sentido, desde o quarto que deixa de sê-lo para virar escola, supermercado,
casinha, fazenda, faroeste ou pista de corrida, entre tantos outros, até os ambientes
abertos também viram castelos, florestas mal assobradas e outros cenários de aventura.
de uma dinâmica econômica das pulsões onde o amor (eros8) tem papel fundamental
frente aos impulsos destrutivos do sujeito. Como se houvesse uma dança entre a pul-
são de vida e pulsão de morte, havendo passos assumidos por cada lado na medida
certa, dando harmonia a vida e permitindo que, assim, a sociedade evolua. Ainda
pequenos todos nós ingressamos neste baile e nosso primeiro palco é o brincar. Nele
trocamos, expurgamos mal-estares, inventamos sobre estes, criamos além. Atuamos
na fantasia e nela vivemos os prazeres de maneira mais ampla e irrestrita com a ajuda
de um corpo que atua junto, que se experimenta, sobe, desce, cai, machuca, ri, chora,
se enfeza, empurra, pula, segura, toca o outro para correr ou ficar, finge desaparecer
para aparecer de novo e causar espantos ou gargalhadas, alcançando o outro num
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8 Termo grego que significa “desejar com muito amor” e é utilizado na psicanálise para fazer referência ao
desejo sexual e a paixão.
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Esses extratos dessa belíssima obra de Valter Hugo Mãe (2020), que para mim
se destaca com seu grande talento e capacidade de traduzir a criança através da
sua internalizada, compõem o capítulo Curar a Infância. Isso nos diz que há muito
tempo os esforços voltados para moldar meninos e meninas os colocam na posição
de objetos descabidos que requeiram algum tipo de adequação. Aqui o escritor toma
de metáfora o discurso da saúde:
Pensei que se esforçavam para nos curarem da infância. Curar a infância. Pensava
assim. Estávamos como que enfermos daquela maleita e a precisar de regimes rigo-
rosos para que nos puséssemos ao caminho da lucidez que só acontecia aos adultos.
Com papeiras e sarampos, gripes e muitos estômagos revoltos, o pior da maleita
da infância vinha da ignorância e da imoralidade. Nascíamos burros e imorais.
Tínhamos de ser punidos para afinar as virtudes e não perecer na imundice e no
perigo. Depois de anos, desejava eu, curados da infância, estaríamos ensinados
para a normalidade e nunca mais nos haveriam de bater [...] (MÃE, 2020, p. 54).
Nossa protagonista do breve relato clínico que iniciou este artigo, apresenta uma
perspectiva a mais sobre esta infância que se “queria” curar. A infância de hoje ainda
carrega nos ombros o desejo externo em ser sarada de algo condizente a uma suposta
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afecção que lhe acompanha, no entanto, como parece dizer Maribel, está convencida
de seu lugar de peça a ser reparada, internalizando exclusiva responsabilidade sobre seu
“desajuste” e, por isso, culpa-se, cobra-se e adoece. O retrato que oferecemos na cena nar-
rada marca nossa preocupação atual com a criança que é inserida de tal maneira na lógica
de produtividade humana onde o pequeno sujeito, como ilustra minha paciente, parece
normalizar sua dor na compassividade diante de uma punição vivenciada como jogo.
Na criança que revelava ter levado chineladas a cada falha na continha, mantendo
seu rosto impassivo, mesmo dizendo dos olhos ardidos, os mesmo que claramente nem
se mostraram ansiosos por uma expressão reativa de sua ouvinte, até então desconhe-
cida, que era eu, encontrava-se naquela fração de tempo a representação de uma infância
a uma grande maioria populacional para que se garanta seu sustento, contas pagas
e até sobrevivência em tempos de degradação econômica, está em relevo o desejo
pelo sucesso de desempenho ocupando o mundo adulto em seus tantos turnos de
trabalho e ainda, para muitos, a vida acadêmica ou de aperfeiçoamento profissional
que lhe rendam o status almejado. Enquanto isso, na paisagem da família, está a
criança ocupada, se possível com multitarefas, mantida a ilusão de que estamos
fazendo o melhor pelas crianças e pelo futuro, o que na contramão a filosofia de Han,
interpretamos como um retrocesso da vida civilizatória, programando o tempo para
uma rotina preenchida de propósitos. O “fazer nada” da infância é condenada, como
há um tempo deprecia-se o ócio na contemporaneidade, assim como o espaço da
contemplação, elemento que Han nos alerta a resgatar na salvaguarda do ser humano.
A contemplação também efetua a comunicação necessária da criança com a
natureza e a todas as coisas, o que ela faz com maestria simplesmente por também ser
vital às suas elaborações simbólicas, elemento propulsor ao seu desenvolvimento. A
vida a ser contemplada tem seu espaço definido que também é o lugar que a infância
acontece. A criança do desempenho, ocupada em ambientes destinados a determi-
nadas produções a todo tempo, é também a criança conectada às telas quando há a
“sobra” do seu tempo.
Muito se tem discutido sobre o novo espaço do brincar no mundo virtual, con-
siderando a exposição excessiva às telas. O que tem suscitado questionamentos sobre
os efeitos que teremos ou temos da suspensão da experiencia corporal e a materiali-
dade simbólica das fantasias possíveis. De qualquer modo, pelo mundo paralelo da
realidade virtual, a despeito de perdas, para mim inquestionáveis no campo psíquico,
emocional e corporal para a criança, surge a suspeita de que esta entrega às imagens
do entretenimento virtual retrate um movimento do sujeito em tentar recuperar, sem
propósito consciente, algo perdido nos territórios infantis: o gozo da sensação de
liberdade dada pelo imaginário e pela fantasia, ainda que tenhamos certeza que os
sistemas e dispositivos tecnológicos entreguem ao sujeito ideias prontas empobre-
cendo o devir9. Mas não queremos nos adentrar aqui neste debate que, embora amplo
e necessário, apenas menciono no compromisso de ressaltar que a dinâmica lúdica
virtual acrescenta reconfiguração na territorialidade da criança havendo custos nisto.
9 Segundo dicionário online de português (Disponível em: https://www.dicio.com.br) termo originado do latim
devenire, significa passar a ser; fazer existir; tornar-se ou transformar-se.
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O tempo e o espaço da infância têm seus critérios para que se garanta sua própria
sustentação. Sustentar a infância é não precarizar seu lugar físico e subjetivo, sua
territorialidade como assim compreendemos.
Somos irresponsáveis ao incluir as crianças em uma lógica mecânica, fazendo
delas engrenagem a serviço de um aparato automático maior proposto na atualidade,
produzindo dessa forma uma infância maquinal. Esse é um termo que me visita o
pensamento desde o incômodo que me provoca a sobrecarga de muitas crianças, em
número crescente, com as atividades a cumprir em sua rotina, todas com propostas
técnicas, didáticas e, por vezes, apenas ideológicas apresentadas pelos cuidadores
que discursam a favor desta ocupação dirigida diariamente, na certeza de que este
científicos sobre o ser humano aplicando-se sobre as crianças, mas também, ao notar-se
a proporção tomada na vida de meninos e meninas em sua vida pelo que é esperado
para ela, nos diz de um modismo de técnicas prontas com esperada eficiência ime-
diata, o que arriscaríamos apelidar neste sentido de psicologismos e pedagogismos,
diferenciando-os, é claro, das atuações sérias evidentemente necessárias por parte das
múltiplas profissões que atuam no cuidado à saúde e desenvolvimento da criança e
conseguem cumprir com seu compromisso ético de não objetificar o ser humano. No
caso da infância, deixando espaço ao seu protagonismo em sua liberdade criativa, no
tempo do “não fazer nada”, de suas peraltices, vivencias de conflitos e alianças entre
pares, seus lampejos, inventos e imaginações, demarcando seu chão.
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Se hoje nos apresenta então uma nova territorialidade que nos parece artifi-
cializada ou pré-pronta para que ali aconteça uma infância que execute atividades
direcionadas com metas previstas, ou pior, se a parte disto entram em cena as novas
babás eletrônicas12 no tempo que resta livre, que infância teremos, ou melhor con-
ceberemos? Seriam essas transformações na territorialidade infantil possíveis sem
ônus? O que fazer dessa infância maquinal? Há razoabilidade nas perspectivas sobre
os fazeres da criança?
Por ora, diante destas questões que se mantém, fica nossa preocupação com o
risco a uma degradação de nossos pequenos sucessores com perdas temidas na for-
mação subjetiva das crianças, deixando vulnerável tanto o sujeito da infância quanto
o futuro da ordem civilizatória. A criança permanece, mas a infância pode mudar e
com isso nos arrastar a perdas importantes nos aspectos de nossa espécie.
É urgente olharmos para a recuperação dos lugares produzidos pela criança, longe
dos excessos de direcionamentos e metas nos fazeres infantis. Precisamos garantir
aos pequenos os ambientes em que suas apreciações e encantamentos aconteçam nas
suas experiências sensoriais e afetivas com os outros, com os bichos e com todo seu
amplo mundo imaginário. Tudo isso, as coisas de criança, é do humano. Quem sabe
assim possamos interromper um curso que se inicia nocivo à infância, devolvendo
as condições favoráveis para as suas criações, entregando-lhe de volta seus espaços
nos quais confluem suas produções internas e suas ações concretas, resultando em
inventos valiosos e singulares. Se isso torna-se garantia, podemos então apostar na
esperança de uma sociedade que não se esvazie, que não empobreça sua essência pelo
automatismo e que não estenda tal destino a quem precisa seguir compondo o futuro.
12 Esta referência tem sido amplamente utilizada, como as que se apresentam no livro Intoxicações eletrônicas:
o sujeito na era das relações virtuais, contendo vários artigos organizados por Julieta Jerusalinsky e Angela
Batista em 2017. Diz da metáfora aplicada ao uso das telas de computadores, celulares e tablets em momento
que o adulto expõe as crianças, mesmo bebês, a se entreterem com as imagens ou dispositivos que as
acompanham, a fim de garantir o controle sobre o comportamento.
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REFERÊNCIAS
ALBAGLI, S. Território e territorialidade. In: LAGES, V.; BRAGA, C.; MORELLI,
G. (org.). Territórios em movimento: cultura e identidade como estratégia de inserção
competitiva. Rio de Janeiro: RelumeDumará; Brasília, DF: SEBRAE, 2004.
Introdução
Para se falar em um projeto de crítica decolonial ao neoliberalismo, em nossa
leitura, é preciso retomar elementos fundamentais dos conceitos de Multidão e Impé-
rio dos filósofos Michael Hardt e Antonio Negri. Acreditamos que a partir desses
conceitos é possível minimamente compreender a capacidade colonizadora e de
expansão territorial do neoliberalismo.
Hardt e Negri (2003) sustentam que no Império todas as formas de governo
e dispositivos de governamentalidade coexistem em tempos e espaços geopolíticos
distintos ou até mesmo sobrepostos. É bem verdade, evidenciam os autores, que ainda
podemos falar de um núcleo central do capitalismo onde o trabalho imaterial tende
a concentrar-se, mas essa concentração, principalmente nos últimos anos, tem se
tornado cada vez mais dispersa, muito talvez pela lógica da economia compartilhada.
Apesar de podermos falar nessa dispersão, não podemos esquecer que os grandes
centros do capitalismo ainda mantêm minimamente uma cerebralidade em relação
às ações e decisões operacionais da racionalidade neoliberal. Isso não implica a
existência de um centro cognitivo, posto que é característica dessa racionalidade seu
poder mutagênico. Mas tomemos como exemplo Hollywood e a Indústria Cultural
do entretenimento cinematográfico hoje. Todas as produções milionárias e de arre-
cadação bilionária passam por Hollywood.
Em uma entrevista dada ao programa de comédia Choque de Cultura, o cineasta
brasileiro Kleber Mendonça Filho, um dos diretores do aclamado filme Bacurau,
relembrou a primeira vez que assistiu a um filme brasileiro e sua estranheza com
a familiaridade. O filme, fala o diretor, era ruim, mas era ruim porque era familiar.
Era falado em seu idioma. Toda a estranheza que o filme lhe trazia estava ligada à
familiaridade do cineasta com os eventos ali cinegrafados.
Essa anedota, e aqui é preciso colocar todas as aspas possíveis para evitar
generalizações contraproducentes, serve-nos de alegoria para compreender o poder
de produção de infamiliaridades do Império.
Aqui devemos retomar Freud (2019, p. 102) em o “Infamiliar” quando escreve que
“Em suma, familiar [HeimlichI] é uma palavra cujo significado se desenvolveu segundo
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uma ambivalência, até se fundir, enfim, com seu oposto, o infamiliar [unheinmlich].
Infamiliar é de certa forma, um tipo de familiar”. Para Freud (2019), o infamiliar é algo
de familiar sujeito ao recalcamento. Sua estranheza está fundida a sua familiaridade.
Devemos aqui também lembrar o marcante episódio relatado por Fanon (2020)
quando descreve que fora muitas vezes apontado como alvo do medo das crianças o
medo do negro, uma vez que este se depara com um esquema corporal predisposto
a uma forma de vida que, ao mesmo tempo que lhe é familiar, é estranha.
Um estranho de seu corpo. Um estranho de seu próprio idioma. Fanon (2020,
p. 126) escreve que “No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na
elaboração do seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é uma atividade
O Odradek é, em suma, este outro que parece habitar esse espaço de incertezas.
Em sua particular leitura do conto, Žižek (2010) aponta que o Odradek cumpre um
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Em seu livro Problemas no paraíso, Žižek (2015) nos alerta para os cuidados
que devemos ter com um antieurocentrismo acrítico. Na obra, o autor apresenta quase
que na íntegra um debate entre ele e Walter Mignolo sobre o que significa decolo-
nialidade. Žižek (2015) alerta para o perigo de negligenciar o pensamento europeu
em vez de desconstruí-lo. Para o autor, a posição radical de Mignolo (2013)1 afirma
que um intelectual decolonial tem coisas melhores a fazer do que se preocupar com
o pensamento europeu. Decerto existe uma série de interpretações equivocadas de
ambas as partes e não é de nosso interesse o debate sobre tais interpretações.
Vale, todavia, contextualizar que a afirmação de Mignolo (2013) é feita em um
texto, sem tradução para o português, Sim, nós podemos: pensadores e filósofos não
europeus. Nesse contexto, Mignolo (2013) está afirmando que, ao elencar a lista de
maiores filósofos e pensadores críticos da contemporaneidade, o filósofo italiano
Santiago Zabala não cita nenhum não europeu, negligenciando importantes nomes
como Henrique Dussel, Frantz Fanon, entre outros. Mas, como já afirmado, a polê-
mica em si pouco nos interessa, mas o que ela nos revela.
Žižek (2015) sustenta que, por mais que o capitalismo tenha se originado no
continente europeu, sua dimensão global é transcendente às fronteiras. Aqui o pen-
samento do autor é bastante análogo ao de Hardt e Negri (2003) sobre a noção de
Império. O capitalismo seria uma ordem global.
Voltemos um pouco e falemos do eurocentrismo no pensamento “ocidental”.
Em “Regras para o parque humano”, Sloterdijk (2018) nos lembra que o humanismo
do pós-guerra é uma cultura elitizada cercada por uma antropotécnica baseada no
potencial da comunicação. Assim, nós aprendemos a ser humanos com outros huma-
nos a partir de regras preestabelecidas para a convivência no “parque humano”.
O fenômeno do humanismo hoje merece atenção antes de mais nada porque nos
recorda – embora de forma velada e tímida – que as pessoas na cultura elitizada
estão submetidas de forma constante e simultânea a dois poderes de formação
– vamos aqui denominá-los, para simplificar, influências inibidoras e desinibido-
ras. Faz parte do credo do humanismo a convicção de que os seres humanos são
‘animais influenciáveis’ e de que é, portanto, imperativo prover-lhes o tipo certo
de influência. A etiqueta do humanismo recorda de forma falsamente inofensiva
a contínua batalha pelo ser humano que se produz como disputa entre tendências
Não é de se estranhar, diante disso, uma certa dualidade posta entre uma filosofia
continental europeia e uma filosofia produzida pelas colônias2. Voltemos ao debate
entre Mignolo e Žižek. Em sua defesa de uma necessidade de um retorno ao pensa-
mento crítico moderno sobre o capitalismo, Žižek (2015) acaba por, propositalmente
ou não, defender, em certo sentido, o mesmo pensamento de Sloterdijk (2003). Cabe
à Europa resolver o problema que ela mesma criou.
Žižek (2015, p. 187) transcreve parte da resposta de Mignolo.
2 A escolha desse termo se deu pela indefinição dos termos que se referem à filosofia produzida pelas colônias.
Podemos falar em filosofia descolonial, decolonial, pós-colonial, contracolonial etc. Dada essa multiplicidade
de terminologias, mesmo entendendo que remete a pensamentos distintos, queremos, pelo menos nesse
ponto, apenas contrapor colonizador e colonizado.
3 O texto de Walter Mignolo (2013), “Yes, we can: Non-European thinkers and philosophers”, pode ser encontrado
na coluna de opinião do site do jornal Aljazeera pelo link: https://www.aljazeera.com/opinions/2013/2/19/
yes-we-can-non-european-thinkers-and-philosophers. Acesso em: 30 abr. 2021.
58
O Império é, para nós, uma solução temporária, pois teria ele a capacidade de
um conceito abrangente o suficiente para sempre refutar as críticas a ele apelando
para sua flexibilidade conceitual. Ao deliberadamente sustentar que no Império todas
as formas de governo coexistem, Hardt e Negri (2003) não estariam fazendo uso
desse recurso? Ou seja, é impossível encontrar um ponto em que sua afirmação seja
apórica, uma vez que ela tem a capacidade de se remodelar às críticas.
Não estamos com isso abandonando o conceito de Império, apenas apontando
uma limitação epistemológica dele. Como escreve Han (2018, p. 31), no texto
No enxame:
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do poder, a alegria pelo ser. Nenhum poder poderá controlar essa revolução – pois
biopoder e comunismo, cooperação e revolução permanecem unidos no amor,
na simplicidade e também na inocência. Aí se mostra a leveza que não pode ser
oprimida e a felicidade de ser comunista.
Sobre essas bases, por uma década (de 1975 a 1986, mas um mês depois do golpe
de Estado os discípulos chilenos de Friedman se agitavam empolgadíssimos),
os economistas neoliberais se beneficiaram das condições ‘ideais’ para testar
suas receitas, pois o esmagamento sangrento da ‘revolução’ impediu qualquer
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Talvez haja alguns excessos nas palavras de Maurizio Lazzarato, porém o alerta
de não generalizar o modelo ordoliberal ou mesmo a noção de Capital Humano é
extremamente necessário. Veronica Gago (2018) nos oferece algumas pistas com-
plementares para compreendermos a incisiva crítica à tradição analítica foucaultina
do neoliberalismo, pelo menos no que tange sua dimensão biopolítica.
Para a socióloga argentina, devemos compreender essa ubiquidade neoliberal do
ponto de vista de uma arquitetura. Desta feita, a autora fala em um neoliberalismo de
cima para baixo e um neoliberalismo de baixo para cima. Em outras palavras, deve-
mos pensar em um neoliberalismo que pode ser compreendido em sua verticalidade
e em sua horizontalidade. As duras palavras de Lazzarato (2019) referem-se a essa
leitura de uma apologia da liberdade incrustada em uma reconstrução da democracia
liberal na segunda metade do século XX.
O questionamento de Lazzarato (2019) é um questionamento geo-histórico:
Aconteceu da mesma maneira em todos os lugares do mundo? Gago (2018) demonstra
62
que a arquitetura neoliberal não é apenas uma razão econômica generalizada por
uma nova ordem global, mas, ao espalhar-se pelo Império, essa arquitetura altera sua
dimensão estilística em um jogo de afastamentos e aproximações éticas e estéticas
entre centro e periferia do Império.
Gago (2018) opta por uma dupla leitura que transversaliza a tradição foucaul-
tiana e a tradição marxista, mas vai além, colocando essas tradições sob o ponto de
vista de uma crítica da colonização contemporânea. Podemos falar, em certo sentido,
de uma arquitetura da razão do Império cuja homogeneidade de processos políticos
e econômicos reduzidos a um direito internacional não é mais que mera ideologia,
posto que a periferia não está sob as mesmas condições econômicas do centro.
Hayek: Bem eu diria que, como instituição de longo prazo, sou totalmente contra as
ditaduras. Mas uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um período de
transição. Às vezes é necessário para um país ter, durante certo tempo, uma forma
de poder ditatorial. Como a senhora deve compreender, é possível para um ditador
governar de maneira liberal. E é igualmente possível que uma democracia governe
com total falta de liberalismo. Pessoalmente prefiro um ditador liberal a um governo
democrático sem liberalismo. […]. Sallas: Isso signifca que durante os períodos de
transição o senhor proporia governos mais fortes e ditatoriais… Hayek: […] Em tais
circunstâncias, é praticamente inevitável que alguém tenha poderes quase absolutos.
o Capital nasce “escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”.
Todavia, a história do liberalismo é, antes de tudo, uma história da apologia à
liberdade. Em sua Contra-história do Liberalismo, Domenico Losurdo (2006) nos
mostra que a história do liberalismo europeu confunde-se com a construção de um
capitalismo liberal escravocrata. O paradoxo nessa correlação é, todavia, posto que
fora a própria escravocracia que oferecera as bases para a acumulação primitiva.
Como apresenta Losurdo (2006), as grandes revoluções liberais ergueram-se sobre
os alicerces da escravocracia.
A solução encontrada pelos liberais modernos parece nos servir de analogia
para a solução neoliberal ao desmonte da seguração trabalhista e a implantação de
uma espécie de ditadura da flexibilidade. Assim, Losurdo (2006, p. 59) escreve que:
sua periferia como se nessa passagem não houvesse qualquer alteração ou ajuste das
ideias econômicas às realidades localizadas.
Isso desemboca diretamente no segundo ponto da autora. De certa forma, des-
construir a ideia de que o neoliberalismo, enquanto forma de racionalidade, age
apenas mediado pelos grandes atores, mesmo que estes pertençam às cenas locais.
Nesse sentido, seria o equivalente a afirmar que essa racionalidade é, acima de tudo,
uma psicologia tanto das massas quanto dos indivíduos. Ela atua produzindo com-
portamentos visíveis (para usar uma terminologia comportamental). Trata-se de uma
operação psicológica ambígua, pois sustenta-se, em larga escala, em uma fantasia
ideológica no sentido žižekiano, ao mesmo tempo que opera um conjunto de estímulos
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Considerações finais
Por fim, é preciso ir além de uma espera por um Estado que atue em oposição.
A batalha pela vida no neoliberalismo é uma batalha pelas formas de vida que são
atravessadas por dimensões macro, meso e micropolíticas. Assim, não é somente
a partir de uma macropolítica econômica de oposição, mas de um ethos que não
necessariamente deva ser individual, mas que deve estar intimamente ligado aos
sujeitos em suas coletividades.
66
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
CRARY, J. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Editora, 2016.
DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoli-
beral. São Paulo: Boitempo, 2011.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka por uma literatura menor. Belo Horizonte:
Autêntica, 2014.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs vl. 1: capitalismo e esquizofrenia II. São
Paulo: Editora 34, 2011.
NEGRI, A.; HARDT, M. 5 lições sobre o Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
SLEE, T. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Elefante, 2017.
SOUZA, J. et al. A ralé brasileira: quem é e como vive. São Paulo: Contra-cor-
rente, 2018.
Introdução
Temos acompanhado no mundo contemporâneo uma proliferação de propostas de
práticas de meditação em diversos âmbitos, sobretudo no contexto escolar. Concomi-
tantemente, cresce o número de investigações sobre os efeitos dessas práticas no campo
educacional. Em geral, o termo meditação é utilizado referindo-se a uma larga extensão
de práticas, muitas vezes significativamente distintas: atenção focada na respiração,
visualização de uma deidade, recitação de um mantra, visualização de energia fluindo
pelo corpo, reflexão sobre argumentos narrativos ou sobre narrativas, além de diversas
formas de meditação sem objeto (LUTZ; DUNNE; DAVIDSON, 2007; CRUZ, 2020).
Além da identificação da meditação com as práticas mencionadas, a referida
palavra é ainda muito utilizada para se referir às situações em que nos pomos a pon-
derar e refletir sobre um assunto que necessita de avaliação delicada, tal como na
afirmativa corriqueira de que estamos meditando sobre uma decisão que precisamos
tomar. A expressão meditação é também recorrente no contexto de tradições religiosas
como na prática de reflexão sobre algum tema de escrituras sagradas. Antoine Lutz,
John Dunne e Richard Davidson (2007) descrevem essa complexidade e nuances em
torno do meditar e afirmam que a palavra “meditação” é uma categoria que com-
porta muitos matizes e que seu uso, nos dias de hoje, tem sido similar ao da palavra
“esporte” – “desconsiderando-se a ampla gama de diferenciações incluídas nesta
categoria e supondo-se, neste caso, que todos os esportes sejam o mesmo” (LUTZ;
DUNNE; DAVIDSON, 2007, p. 3). Diante desta variedade de tendências, buscaremos
situar e destrinchar ao longo deste artigo alguns dos sentidos envolvidos na prática
de meditação, a partir da análise de artigos e estudos sobre o tema.
Por meio de uma pesquisa com os termos buscadores “meditação” e “educação”
no Scielo e Google Acadêmico, encontramos artigos publicados entre os anos 2010 e
70
2020. Dentre estes, podemos mencionar artigos que fazem uma revisão de literatura
sobre a temática, que apresentam relatos de intervenções feitas na educação infantil
ou outras etapas de ensino, ou que fazem aproximações entre as práticas meditativas
e abordagens pedagógicas, por exemplo, um artigo que busca aproximar os efeitos
da meditação às proposições de Paulo Freire relativas ao cultivo de uma “curiosidade
crítica” e “abertura para a mudança”1.
Para quem trabalha no campo entre psicologia e educação, é cada vez mais
comum receber E-mails com divulgação de cursos e treinamentos, pós-graduações
ou workshops de estudo e práticas em torno do tema da meditação, ou o termo popu-
larizado Mindfulness (geralmente traduzido para o português como Atenção Plena).
1 Destacamos os seguintes trabalhos que estão referenciados na bibliografia deste artigo: “Educação,
Meditação e Autoconhecimento: sobre tecer como entretecemo-nos”, de Alessandra Marques, Sahmaroni
Olinda e Suelândia Olinda; “Contribuições da meditação em âmbito escolar”, de Tatiana Cossia e Maria
Andrade; e “Meditação na universidade: a motivação de alunos da UFRGS para aprender meditação”, de
Carolina Menezes, Bruna Florentin e Lisiane Bizarro.
2 Comercializado no Brasil sob os nomes Concerta® ou Ritalina®, o metilfenidato é um psicoestimulante que
se encontra disponível no mercado em apresentações de liberação imediata, cujo efeito é de curta duração,
ou de liberação prolongada, que se mantém durante mais tempo no organismo. O metilfenidato é o principal
medicamento prescrito para o tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH),
sendo indicado também para narcolepsia (CALIMAN, 2006; ORTEGA et al., 2010).
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 71
3 Por exemplo, a Revista Isto É, de fevereiro de 2016, tinha como matéria de capa “O poder da nova Meditação”.
Disponível em: https://istoe.com.br/edicao/887_O+PODER+DA+NOVA+MEDITACAO. Acesso em: 20 jun.
2021. Podemos mencionar também a Revista Super Interessante, de abril de 2017, com a capa “Mindfulness:
como domar a sua mente”. Disponível em: https://www.facebook.com/S-uperinteressante/photos/a.1015422
4636207580.1073741851.80591352579/10154846362737580/?type=3&theater. Acesso em: 20 jun. 2021.
4 O guia no final do artigo apresenta as seguintes direções de análise: 1) Em relação à expressão de gênero:
como o patriarcado se apropria das imagens dos corpos dessas pessoas que podem se identificar como
mulheres? Que gêneros e incorporações de gênero são sancionados no movimento da Atenção Plena? 2)
Classe socioeconômica: quem pode ter acesso à roupa, manicure, corte de cabelo e tempo que está sendo
exibido nessas imagens? Que mensagens sobre a classe socioeconômica são salientes no movimento da
Atenção Plena? 3) Orientação sexual: como essas imagens se comunicam com a heteronormatividade?
Quais mensagens sobre orientação sexual estão inseridas no movimento da Atenção Plena? 4) Corpo:
quais os pressupostos sobre a relação entre peso/formas do corpo e a Atenção Plena são expressados
nessas imagens? Quais formas do corpo são sancionadas no movimento da Atenção Plena? 5) Religião-
Espiritualidade: o que essas imagens podem comunicar sobre os contextos espiritual/religioso/secular
aludidos e/ou caricaturizados? 6) Potência: o que essas imagens podem comunicar sobre corpos e
habilidades? Quais corpos, intelectos e emoções são sancionados no movimento da Atenção Plena? 7)
Nacionalidade: o que essas imagens podem comunicar sobre as nacionalidades e/ou o status nacional
dessas pessoas? Que mensagens o movimento da Atenção Plena comunica quanto à imigração, status
74
de documentação e apropriação de cultura(s) dentro e entre as nações? 8) Idioma: o que essas imagens
podem estar comunicando em relação ao idioma da Atenção Plena? Quais línguas são sancionadas no
movimento da Atenção Plena? (SHERREL; SIMMER-BROWN, 2017).
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 75
inteligente (chih).
Em relação ao primeiro conceito (extensão), a ideia de Meng Tzu é de que as
pessoas põem em prática a virtude quando procuram estender o conhecimento e os
sentimentos de momentos em que uma ação é considerada correta para situações
análogas, quando a atitude correta não é tão evidente. Afirma que a ação subjacente a
tal processo é, por sua vez, a de prestar atenção (su). Varela (1992) aponta que Meng
Tzu faz a seguinte afirmação: “a atenção insuficiente é a base de indicações contrárias
à autocultivação: se está presente, entende-se, de outro modo não” (VARELA, 1992,
p. 36). Nesse ponto, notamos como na perspectiva de Meng Tzu o cultivo da atenção
é indispensável ao desenvolvimento ético.
Concebe-se, pois, o treinamento ético como um processo que depende do per-
cepcionar claramente e do identificar correspondências ou afinidades entre situações.
Meng Tzu opõe-se à ideia de que o raciocínio ético implica a aplicação de regras ou
de princípios. Afirma, diferentemente, que nos tornamos muito mais articulados se
tendemos a captar correspondências e afinidades (extensão) (VARELA, 1992, p. 36).
Em suma, para Meng Tzu, cultivar uma postura ética se vincula ao cultivo da
atenção e se associa a uma disponibilidade para lidar com os acontecimentos inanteci-
páveis do viver, no sentido de que a extensão adequada (o cultivo de uma disposição
ética) possa facilmente ser ativada. Varela (1992) menciona ainda uma distinção
importante abordada em seu texto quando contrapõe duas figuras que caminham em
sentidos opostos: por um lado, a figura do “homem ético”; por outro, a do “honesto
homem da aldeia”. Este último pode ser expresso nos termos que seguem:
Existindo no mundo, há que comportar-se de um modo que agrade ao mundo.
Fingindo ser boa pessoa, tudo está bem... Se se pretendesse criticar semelhante pessoa,
nada se encontraria a que se referir... Ela partilha com os outros as práticas quotidia-
nas e está em harmonia com a mesquinhez do mundo... Agrada à multidão e é reta
consigo própria. É impossível enveredar pelo caminho de Yao e Shun [dois famosos
sábios] como uma pessoa assim. Não me agrada o homem honesto da aldeia, poderia
confundir-se com o virtuoso (MENG TZU, apud VARELA, 1992, p. 37).
Poderíamos também questionar: em que medida, hoje, as práticas de meditação
têm sido apropriadas por um funcionamento ao modo “honesto homem da aldeia”,
aliançada à individualização, adaptação à realidade e à mesquinhez do lucro? Como
distinguir o trabalho de transformação experiencial, que as práticas de meditação são
chamadas a cultivar, de seu engodo e afinidade com o modo de subjetivação capitalista?
76
Dreyfus (2011) ressalta que essa visão da Atenção Plena como uma atenção
despreocupada e não interferente, fundada na ausência de julgamento, na não con-
ceitualidade e centrada no presente, já ganhou ampla aceitação no contemporâneo.
Porém, aponta que a noção de Mindfulness em textos clássicos apresenta outra cono-
tação que necessita ser levada em conta. Em especial, o autor mostra que nos textos
clássicos o sentido de lembrar e de ter um propósito em mente são características
fundamentais da prática de Atenção Plena, ainda que esses usos sejam menos corri-
queiros na literatura contemporânea.
Seu trabalho nos mostra que a palavra Mindfulness foi usada para traduzir
vários termos budistas, principalmente do sânscrito smrti (Pāli sati, tibetano dran
pa). Dreyfus (2011) percebe que a compreensão de Mindfulness/Sati como cons-
ciência atual centrada no presente é limitada, pois reflete apenas alguns dos aspectos
possíveis de compreensão de tal termo. Segundo o pesquisador, a palavra smrti (Pāli
sati) vem da raiz sânscrito smr, o que significa “lembrar” e “manter em mente”, con-
forme já mencionamos. O autor apresenta ainda outras conotações fornecidas para
esse termo, tais como “não vaguear”, além do já mencionado sentido de “lembrar”.
Assim, Dreyfus (2011) enfatiza que essa compreensão de Sati não se coaduna com a
compreensão de Atenção Plena veiculada atualmente, ou seja, não está plenamente de
acordo com a noção de “atenção ao momento presente”, uma vez que Sati inclui o ato
de lembrar e de ter um propósito, dispondo, portanto, de uma dimensão avaliadora.
Voltando-se para outros textos clássicos, Dreyfus (2011) sugere visões de Aten-
ção Plena que estão ainda mais longe do entendimento contemporâneo. Por exemplo,
afirma que, no texto The questions of King Milinda, o monge Nagasena responde às
questões do rei grego Milinda e enfatiza as dimensões éticas da prática de Atenção
Plena, ressaltando que sua função não é apenas manter contato com o que está acon-
tecendo no momento presente, mas inclui “o propósito de não se afastar dos estados
mentais saudáveis e evitar estados mentais insalubres” (DREYFUS, 2011, p. 45).
O autor ressalta que essa compreensão de Atenção Plena está, portanto, muito
longe da ideia comumente aceita nos dias de hoje, afinal, se a prática é caracterizada
pela distinção entre estados mentais benéficos e insalubres, deve ser explicitamente
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 79
conotações muito diferentes, tais como não vaguear, lembrar, estar cara a cara com o
objeto, assumir e examinar etc. Desse modo, para Dreyfus (2011) a prática de Atenção
Plena diz respeito mais à capacidade de manter um objeto na atenção sem perdê-lo
do que à aceitação daquilo que simplesmente surge no fluxo mental de consciência.
Vale ressaltar que as tradições budistas indicam frequentemente que o surgi-
mento de estados mentais e afetivos, de discursividades, ideias e emoções durante
a meditação ou em meio aos diversos afazeres da vida cotidiana se apresenta como
impulsos automáticos governados por responsividades inadvertidas. Desse modo, a
ideia de simplesmente seguir tais impulsos e acolhê-los não se coaduna totalmente
com o exercício de liberdade que a prática de meditação é chamada a cultivar no
contexto dessas tradições.
Varela, Thompson e Rosch (2003), no livro A Mente Incorporada, também
reposicionam o sentido de liberdade, questionando a ideia comumente aceita que
apresenta a noção de liberdade como livre-arbítrio ou ainda como a capacidade de se
fazer o que quer, quando se quer, seguindo impulsos que nos acometem. Os autores
consideram que “esta é a atitude menos livre – pois está acorrentada ao passado por
ciclos de condicionamento, e resulta em posterior escravização a padrões habituais
no futuro” (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 133). E prosseguem:
Ser progressivamente mais livre é ser sensível às condições e possibilidades
genuínas de alguma situação presente, e ser capaz de agir de maneira aberta, não
condicionada pelo apego e volições egoístas. Essa abertura e essa sensibilidade
incluem não apenas a esfera imediata das percepções da própria pessoa; possibili-
tam-na também a estimar os outros e a desenvolver uma percepção compassiva das
aflições alheias. Os repetidos vislumbres, relatados pelos praticantes, dessa abertura e
genuinidade da vida humana explicam a vitalidade da tradição da atenção/consciência.
Ilustram também como uma rica tradição teórica pode ser naturalmente entrelaçada
com preocupações humanas (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 133).
Podemos então dizer que, na prática de Atenção Plena, aquele que se exercita
se propõe a cultivar as próprias atitudes e será orientado a realizar um exercício ini-
cial de sustentação da atenção, a fim de não ser levado pelo fluxo de pensamentos e
afetos fugazes e por impulsos automáticos que o atravessam. Assim, os ensinamentos
clássicos irão enfatizar a capacidade de retenção da atenção como uma habilidade
natural existente em cada pessoa, que poderá ser fortalecida pela prática da meditação.
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5 Dreyfus (2011) adverte que o objetivo da prática de Atenção Plena não é alcançar estados superiores de
consciência por meio da concentração, mas efetivamente desenvolver uma compreensão distinta dos estados
corporais e mentais como impermanentes, de modo a desfazer nossos hábitos indutores de sofrimento
produzidos pelo apego à estabilidade e à experiência de um suposto eu imutável.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 81
de monitorar os estados mentais e afetivos. Ele afirma que essa é uma dimensão
essencial da prática de desenvolver a Atenção Plena, a qual, portanto, não é apenas
baseada na capacidade de se concentrar/focar em um objeto unifocado e sustentar a
atenção de maneira retentiva. O autor diz que jogadores de videogames são peritos
nesse campo (produzir atenção unifocada), mas enfatiza o exercício mais fino que a
meditação envolve, pois tal atividade pressupõe a capacidade de modular a atenção
e reconduzi-la quando esta vagueia, trazendo-a de volta ao objeto escolhido como
amparo para o exercício e, além disso, pressupõe o cultivo de uma atenção contínua
à impermanência e à dimensão coemergente da realidade.
O autor ainda nos mostra que a tradição tibetana capta e nomeia uma qualidade
de atenção sábia com o termo dran shes, que seria a combinação da capacidade de
retenção da Atenção Plena com a capacidade de usar uma compreensão distinta.
Segundo Dreyfus (2011), é este tipo de atenção mais ampla que eventualmente pode
levar o praticante de meditação a uma visão mais profunda da impermanência e
coemergência de todos os fenômenos.
Considerações finais
Por meio de uma análise dos sentidos que ancoram distintas formas de com-
preensão da noção de Atenção Plena, pudemos dimensionar sua amplitude, distan-
ciando-nos do sentido mais limitado com vistas ao sucesso individual e à melhora
de um desempenho escolar e acadêmico, ou como atividade com fim em si mesma
desvinculada de uma prática ética.
Ressaltamos que, ao apresentar as distinções entre duas diferentes dimensões
de Atenção Plena (Mindfulness Proper x Wise Mindfulness), não pretendemos afir-
mar sua dissociabilidade. De outro modo, afirmamos a interdependência entre tais
concepções e até mesmo sua alimentação recíproca. O cuidado que devemos ter é
o de não permanecermos fixados a seu sentido mais restrito, e sim ampliá-lo e dis-
criminá-lo em tempos de confusão quanto às terminologias vinculadas à prática da
meditação/Atenção Plena.
Também vimos a partir de Dreyfus (2011), em consonância com Varela (1992)
e Varela, Thompson e Rosch (2003), que o objetivo da meditação não é obter um
estado calmo e focado, por mais útil que seja esse estado, mas é usá-lo para alcançar
82
REFERÊNCIAS
BISHOP, R. et al. Mindfulness: a proposed definition. Clinical Psychology: Science
and Practice, 11, p. 230-241, 2004.
CRUZ, C. Sustentar uma postura escutadeira: uma pesquisa entre cultivo do silêncio
e partilha da palavra no campo da educação. 2020. Tese (Doutorado em Educação)
– Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2020.
LUTZ, A.; DUNNE, J.; DAVIDSON, R. Meditation and the neuroscience of con-
sciousness. In: ZELAZO, P. D.; MOSCOVITCH, M.; THOMPSON, E. (ed.). Cam-
bridge Handbook of Consciousness. New York: Cambridge University Press, 2007.
p. 497-549.
Introdução
Esse artigo consiste no recorte de uma tese de doutorado que consiste no resul-
tado de um trabalho de quase dez anos atuando na área da Saúde (COSTA; AMARAL;
COSTA-ROSA, 2016; COSTA, 2016; COSTA, 2021), representando um tempo amplo
de formação na práxis. Em especial, neste excerto, partilhamos as conceituações a
respeito dos tempos um e dois do DI: (1) a práxis propriamente dita do trabalhador-
-intercessor; (2) a produção de conhecimento do intercessor-pesquisador.
Buscamos com este trabalho apresentar a pertinência de um modo particular
de conceber a pesquisa em ciências humanas na universidade: o Dispositivo Inter-
cessor (DI). Não se trata apenas de um novo tipo de reflexão, mas da proposição
de uma práxis na qual se promove uma torção na relação clássica “sujeito-objeto”,
pela qual o sujeito costuma ser tomado como um objeto e como “dado” de pesquisa,
na perspectiva científica objetificadora mais comum. Mostra-se também como uma
oportunidade para que os integrantes da classe trabalhadora, inseridos em estabe-
lecimentos localizados no âmbito das políticas sociais e públicas, historicamente
destituídos das possibilidades de pensarem a respeito de seus fazeres, possam refle-
tir-teorizar-analisar a sua própria experiência de trabalho, tomando-a como práxis
e não como uma ação tarefeira e pragmática. A instrumentalização desta maneira
de operar na práxis por meio do DI tem como base uma perspectiva materialista e
revolucionária, tendo como princípio assumir um posicionamento decidido na luta
de classes frente à exploração da força de trabalho. Consequentemente, a partir deste
pressuposto, o horizonte fundante não visa menos do que interceder na divisão fun-
damental do trabalho e nos processos de saúde-adoecimento-Atenção, procurando
subvertê-los a favor das pessoas que mais sofrem os efeitos destrutivos do capital: a
classe trabalhadora enquanto polo social subordinado.
Portanto, o objeto deste artigo é descrever para o leitor interessado o DI, forma
de [intercessão-]pesquisa possível na Universidade, em seus dois momentos. Por
intermédio da experiência de um psicólogo, trabalhador-intercessor, discorreremos
1 Artigo produzido a partir da tese de doutorado defendida por Costa (2021), financiada pela FAPESP (Processo
2017/06805-1). Esta versão para publicação contou com a colaboração do Prof. Dr. Silvio José Benelli.
86
A intercessão-pesquisa e o intercessor-pesquisador
A pesquisa-intercessão regida pelos princípios do DI é tributária do método de
atendimento clínico em psicanálise, que, para Lacan (2003), dá-se na inter-relação
dialética entre “psicanálise em intensão” e “psicanálise em extensão”. Neste caso, a
intercessão, a escuta dos sujeitos (psicanálise em intensão), distingue-se da pesquisa,
construção teórica acerca dos atendimentos (psicanálise em extensão). Para tanto,
utilizamos a categoria conceitual “Intercessão-Pesquisa” com o intuito de afirmar
que o lugar ocupado pelo trabalhador-intercessor foge das convenções perpetuadas
pelos métodos científicos positivistas, funcionalistas e sistêmicos. Na intercessão, o
trabalhador-intercessor não está fazendo pesquisa, ou levantando dados quando está
escutando (em atendimento clínico) os sujeitos do sofrimento ou os demais trabalha-
dores. Nestes termos, a forma do DI de conceber a pesquisa é similar à da psicanálise.
2 A intercessão-pesquisa foi desenvolvida por Maico Fernando Costa numa Santa Casa de Misericórdia e
os textos que compõem sua tese de doutorado consistem nas suas elaborações sobre sua própria práxis
operacionalizada nesse estabelecimento de Saúde.
3 O Dispositivo Intercessor (DI) consiste numa formulação original do Prof. Dr. Abílio da Costa-Rosa, docente
do Departamento de Psicologia Clínica e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Sociedade da
Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, São Paulo, falecido em
2018. A “Carta de fundação do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de
Subjetivação e “Subjetividades saúde” (LATIPPSS)” escrita pelo Prof. Abílio, bem como trabalhos inéditos
sobre o tema foram publicados num número especial da Revista de Psicologia da UNESP organizado pelo
coletivo do Laboratório. Cf. em: http://seer.assis.unesp.br/index.php/psicologia/issue/view/88.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 87
O DI pode ser dividido em dois momentos, o que não quer dizer que essas fases
também não possam ocorrer simultaneamente (por isso falamos em anterioridade
lógica, e não cronológica, da prática em relação à pesquisa). São dois tempos lógicos,
mais do que meramente cronológicos. A práxis propriamente dita se instala no primeiro
momento e o trabalhador-intercessor, nessa etapa, consiste numa posição expressa
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vezes, inclusive com veneno, e não consegui. É muito difícil”. Pontuamos: “É difícil,
você fala de uma perda”. Replicou: “E não é só uma perda, foram várias”. Conti-
nuou Cláudia:
Depois, em seguida, minha mãe morreu e logo meu pai também morreu. Eu tive
outros três filhos, mas não esqueço essas mortes. E foram mortes num momento
em que meu casamento estava todo destruído. Hoje não, estamos há quarenta anos
juntos e meu marido me trata como se eu fosse um bebê.
Sublinhamos: “bebê?”. Assentiu com a cabeça e contou que era ele quem cui-
dava dela. Emendou e disse que sofria também pelos outros, entre choros, admitiu
o psicólogo da Unidade Básica de Saúde (UBS) do seu bairro, respondeu que não
conseguiria ir sozinha. Enfatizamos que não queríamos mais do que desejar que ela
pudesse desejar se analisar e sugerimos que solicitasse a algum familiar uma ajuda
para se locomover até a UBS. Disse-nos que queria sim e iria pensar nisso. Ela nos
agradeceu depois que lhe passamos o contato de um psicólogo que atendia em uma
UBS, com o qual já tínhamos conversado a seu respeito.
Depois do atendimento, retornamos para a sala do setor administrativo e ligamos
para a enfermeira responsável pela Estratégia Saúde da Família (ESF) do território
de Cláudia. A enfermeira nos contou que desde que conhecia Cláudia nunca a viu
sair da cama. Dialogamos sobre o caso, discutimos sobre as possíveis ações que
poderiam ser incluídas num projeto de atendimento. Chegamos à conclusão de que
seria válido solicitar uma visita da equipe do Núcleo de Apoio à Saúde da Família
(NASF), um atendimento que teria um caráter compartilhado, para construir um tipo
de oferta que se harmonizasse à singularidade e à demanda de Cláudia. Ao telefone,
a enfermeira nos disse que iria entrar em contato com o NASF e depois nos ligaria
para avisar quando a visita à Cláudia acontecesse.
No dia seguinte, recebemos mais uma ligação da enfermeira da UBS, dizen-
do-nos que Cláudia recusara o atendimento, não queria receber visitas da equipe e
nem trocar os curativos de seus ferimentos. Decidimos que ligaríamos para ela e,
apostando na transferência estabelecida, perguntaríamos se poderia nos receber em
sua casa. Com a sua concordância, fomos visitá-la, já que não conseguia se locomover
da cama, para escutá-la e, depois em equipe, poderíamos pensar melhor sobre uma
direção de tratamento. Segundo a enfermeira, o seu marido havia dito que ela não
queria visitas. Ligamos e de pronto Cláudia concordou em nos receber. Neste ínterim,
o assistente social da Santa Casa ligou para o Centro de Referência de Assistência
Social (CRAS) do território onde Cláudia vivia. A psicóloga do Estabelecimento
(CRAS) se prontificou a ir à sua residência. A partir dessa visita, junto a Assistência
Social e à ESF do seu território, trabalharíamos em rede para atender Cláudia. A
única renda de Cláudia era um salário mínimo, sendo que o seu marido havia sido
demitido por se ausentar do trabalho para cuidar da esposa.
Este foi um caso bastante complexo. Considerando que o nosso contrato de
inserção institucional para o desenvolvimento da intercessão-pesquisa com a Santa
Casa – que funcionava como hospital geral de referência em uma região de 13 municí-
pios –, estava por se encerrar, a intenção era escutar Cláudia e quem sabe encaminhar
92
a continuação do trabalho para outro psicólogo que estaria situado a respeito do seu
caso. Na reunião de equipe, discutindo sobre a alta hospitalar de Cláudia, na qual
estavam presentes trabalhadores representantes de todos os Equipamentos de Saúde
da Atenção Básica, pretendíamos construir uma discussão que pudesse abordar as
possibilidades de escuta que alcançassem o desejo de Cláudia.
Na visita que fizemos à Cláudia em sua casa, percebemos que ela estava sentada
do lado de fora de sua casa, aguardando a nossa chegada com uma cadeira à sua frente.
Era uma casa bastante humilde, típica das pessoas pertencentes à classe trabalhadora
empobrecida e superexplorada. Falamos sobre as suas condições materiais, os recursos
financeiros que ela possuía para adquirir os aproximadamente vinte e oito tipos de
4 Sobre a teoria dos discursos do Mestre (DM), da Histeria (DH), da Universidade (DU), do Analista (DA) e do
Capitalista (DC), ver: Costa-Rosa (2013a), Lacan (1992), Magno (2007), Souza (2008) e Vegh (2001). De
acordo com Lacan (1992), toda forma de enlace social é realizada por meio dessas diversas modalidades
discursivas. Cada uma se apresenta como um algoritmo de quatro lugares: o agente, o outro, a produção
e a verdade. Estes, por sua vez, serão ocupados por quatro elementos da álgebra lacaniana, a saber, $
barrado, a, S1, S2; e, dependendo de qual lugar cada elemento ocupar na estrutura discursiva, o elemento
possuirá uma conotação específica.
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Após assumir que tentou se matar algumas vezes, na continuidade das ações
discursivas, Cláudia se deparou com o que teria sido a sua solução de compromisso,
a produção de sintoma, para não entrar em contato com o conteúdo traumático evo-
cado pela morte do filho: perguntou-se sobre a possibilidade de ter se despertado
pelo ímpeto de se identificar com a dor dos outros justamente depois da morte do
filho, quando iniciou o uso abusivo de fármacos.
Denotamos que essas passagens discursivas foram produzidas pelos giros dos
discursos operados pela escuta do trabalhador-intercessor. Em um dos momentos
provocamos uma ação para que a fala fosse instaurada, por isso, do lugar de mestria
(S1) a solicitação era para Cláudia colocar o seu saber (S2) para trabalhar, convocan-
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do-a a falar de onde tinha parado, a dizer sobre as feridas que lhe faziam sofrer, as
suas mortes e as faltas sentidas (a). Este ato foi paralelo à outra necessária posição a
ser ocupada junto a Cláudia no DU, operando com o saber (S2) no lugar de agente,
sublinhávamos para ela que as feridas (a), que ela expunha, narravam a presença de
dores psíquicas que também a marcavam como sujeito ($).
É indubitável, de acordo com nosso ponto de vista, que as transições de dis-
curso viabilizaram que Cláudia ($), a partir do DH, pudesse passar a questionar a
sua “angústia e sufoco” (S1) a ponto de associá-las com a morte do filho (S2), con-
seguindo a partir disso, perceber que a preocupação excessiva com os outros não
lhe permitia olhar para as suas próprias questões, o que representava uma manobra
de defesa do sofrimento. Tal percurso acenou para impasses a serem tratados numa
análise, indicados pelas fagulhas do que teriam sido pequenas passagens de Cláudia
pelo DA, denotadas por meio de um posicionamento no qual ela ocupava o lugar de
protagonista em seus processos de produzir a própria história e rever seus conflitos.
Movida pela questão (a) que emergia ao abordar sua angústia, era possível
notar a existência de pensamentos que a acompanhavam; Cláudia se pôs a perguntar
como um sujeito dividido ($) sobre a relação entre a identificação que fazia sobre o
sofrimento dos outros com os quais se ocupava e com sua própria angústia (S1) que
evitava e reprimia. E noutro encontro, aproximou-se de algo que num processo de
análise tem o seu estatuto de brecha aberta para uma mudança em um posicionamento
frente ao saber [inconsciente] (S2): como poderia Cláudia ter trabalhado a vida toda
na roça, tinha ajudado os outros, tinha pagado os seus impostos e, naquele instante
em que se encontrava debilitada fisicamente, recusava os atendimentos da UBS do
território e não se inquietava com seus próprios problemas de saúde física e subjetiva?
Cláudia concentrava tanta atenção nos conflitos alheios que se esquecia do que
realmente precisava. A escuta lhe permitiu entrever um pouco do que foi o laço com
a sua mãe (de quem cuidou até o seu falecimento) e questionar o que era a “coisa
de mãe” para ela. É certo que ela poderia continuar a avançar muito e com proveito
com o seu engajamento em um tratamento pela palavra, evidentemente, caso tivesse
condições propícias para que conseguisse chegar a UBS.
Por outro lado, talvez os acontecimentos não teriam sido tais como foram, se não
tivéssemos intensificado os contatos com outros agentes de Saúde para a construção
do caso de forma intrainstitucional, nas figuras do assistente social e da coordenação
de enfermagem. O diálogo com o CRAS e a ESF, no domínio interinstitucional,
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enquanto referências territoriais para Cláudia, foi crucial, engendrou inclusive o desejo
dos Estabelecimentos em discutir nas pautas das reuniões, a dinâmica de Rede5 e os
processos de Alta Hospitalar, considerando a estreita ligação entre as problemáticas
sociais, afetivas, físicas entrelaçadas com as demandas subjetivas dos sujeitos.
A partir dessa experiência com Cláudia, as equipes de trabalhadores da Saúde
passaram a pensar sobre os mal-entendidos com as pessoas acolhidas nos diversos
dispositivos institucionais de Saúde, situações embaraçosas que, muitas vezes, eram
provocadas pela enorme carga de trabalho. Mais do que espaços protocolares, de
auditoria de condutas eficazes, tivemos reuniões nas quais pudemos interrogar os
procedimentos e as rotinas enrijecidas, discutindo sobre formas de organização do
5 Sobre a complexidade e os impasses da estratégia de trabalho social em rede que não deve ser amador,
caseiro nem improvisado, ver as problematizações de Benelli (2016a, 2016b); Benelli e Costa-Rosa (2010);
Benelli; Ferri e Ferreira Jr. (2015).
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O diário de campo pode ser uma referência entre outras – que podem incluir
também documentos oficiais, livros de atas de reuniões, circulares internos, jornal
institucional, material institucional de formação, cartilhas etc. – que será utilizado
quando e no caso de se pretender fazer uma reflexão sistemática, crítica e analítica,
apresentando formal e teoricamente a intercessão realizada no campo da práxis
institucional (BENELLI, 2019, p. 106-107).
Considerações finais
Buscamos no decorrer do artigo tecer algumas considerações, contribuir com
a sedimentação das bases de formalização e estruturação do DI em seus momentos
de operar na práxis. Costa-Rosa (2019b) sugere, com o DI, a movimentação de uma
forma concreta de uma transformação/subversão de condições que antes eram propí-
cias para o assujeitamento de corpos e da subjetividade. As suas teorizações, dirigidas
ao campo da Saúde Mental Coletiva e das políticas públicas em geral, partem de uma
técnica e de uma ética que visam interceder num plano da realidade que, ao mesmo
tempo, é psíquica e social.
Assim sendo, Costa-Rosa (2013a, 2019a, 2019b), insiste em um tipo de dispo-
sitivo que pretende superar a lógica de registros de uma verdade absoluta, centrada
no imaginário, que permite acreditar que determinados desejos e estilos de gozo são
melhores do que os outros pela posição social que ocupam, ou pelos privilégios que são
“sagrados” à sua classe social. A aposta é no desejo e na vida enquanto arte e superação
dos modelos hegemônicos de concepção de sujeito-objeto. A possibilidade múltipla de
criar sentidos, e dar respostas simbólicas aos acontecimentos que se apresentam, está na
proposta de um dispositivo que seja contra-hegemônico e que, portanto, seja intercessor.
Em outros termos, operar com o DI é ter como mote de ação-reflexão o horizonte
que interessa às classes e sujeitos subordinados ao absolutismo do mestre moderno:
o mercado capitalista. De acordo com a lógica de raciocínio que apresentamos,
destacamos a luta de classes e os efeitos do Modo Capitalista de Produção na vida
material, social e psíquica, como as centralidades que compõem a técnica, a teoria
e a ética do DI. Essa especificidade teórica é o que mostra uma vinculação íntima
com as referências imprescindíveis de Marx.
As outras referências do DI não estão incluídas em seu arcabouço ao acaso,
no que diz respeito à Análise Institucional (Lourau e Lapassade), a Filosofia da
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6 “A hipótese do inconsciente, Freud o sublinha, não se sustenta sem o Nome-do-pai, por certo, é Deus. É
nisto aí que a psicanálise por triunfar, prova que do Nome-do-pai podemos também prescindir. Podemos
prescindir, à condição de nos servirmos dele” (LACAN, 2007, p. 132).
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REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? In: AGAMBEN, G. O que é o contempo-
râneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. p. 25-54.
BRANDÃO, C. R. O que é método Paulo Freire. 15. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.
ELIA, L. Psicanálise: clínica e pesquisa. In: ALBERTI, S.; ELIA, L. (org.). Clínica
e Pesquisa em Psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. p. 19-35.
LACAN, J. O Seminário livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
Introdução
Historicamente a Psicologia se constituiu como um saber que demorou a
sair do consultório e se encontrar com as demandas decorrentes de marcadores de
classe, raça e gênero, sendo relativamente recentes as discussões sobre a produção
de conhecimento/práticas que sejam constituídas a partir do referente desses mar-
cadores na escuta.
Autores da Psicologia Social e da Psicologia Comunitária como Silvia Lane e
Martin-Baró trouxeram importantes contribuições para a aproximação com demandas
decorrentes de marcadores sociais, ressignificando um fazer a partir do tensionamento
de diretrizes clínicas e da concepção de uma atuação ético-politicamente implicada
com a afirmação de cidadania e a transformação social, bem como com a constru-
ção de um fazer psicológico voltado à inclusão de pessoas que até então não eram
concebidas como público dos serviços de atenção psicológica.
O encontro da Psicologia com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS)
se dá a partir de um compromisso ético-político comum com a promoção da vida e
afirmação de direitos, já desbravados pela Psicologia Social latino-americana e que
se faz especialmente relevante em momentos de desresponsabilização do Estado para
com o bem-estar social e a superação das desigualdades e das injustiças sociais, bem
como de ameaça à democracia.
A Psicologia, como saber constituinte da atenção psicossocial, se pauta em
perspectiva crítica, politizante e politizada das questões sociais e, como argumenta
Benelli (2016, p. 43), “seu equacionamento passa necessariamente pela construção
de uma cidadania radicalmente democrática e popular”.
A inserção de psicólogos nos dispositivos da assistência social tem sido discu-
tido pelo Conselho Federal de Psicologia através do Centro de Referência Técnica
em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) que, em construção dialógica com a
categoria, discute diretrizes e desafios à prática profissional voltada a um público atra-
vessado pela violação de direitos e vulnerabilidades múltiplas, de modo a promover
formas de atuação pautadas em “contribuições no sentido de considerar e atuar sobre
a dimensão subjetiva dos indivíduos, favorecendo o desenvolvimento da autonomia
e cidadania” (CREPOP, 2007, p. 22).
104
até os dezoito anos, as pessoas são consideradas adolescentes e depois dos dezoito,
são consideradas adultas.
Assim, o tratamento jurídico despendido a crianças e adolescentes se ampara
nas disposições do ECA, atuando no sentido da proteção social e garantia de direi-
tos e não da punição e segregação social. Por sua vez, as medidas socioeducativas
previstas pelo ECA “têm caráter sancionatório, ou seja, não existe impunidade para
o adolescente a quem se atribua autoria de Ato Infracional” (SNAS, 2016).
Os adolescentes em conflito com a lei, assim se caracterizam a partir do momento
em que são tomados pelo sistema de justiça devido a qualquer ação por eles realizada
que infringe o Código Penal. Eles passam, então, de adolescentes que, na maioria
das vezes, não tiveram “acesso a bens e serviços sociais” (SCISLESKI et al., 2015,
p. 506) – que seriam a eles garantidos por lei, a adolescentes em conflito com a lei,
com a qual eles não puderam contar anteriormente enquanto sujeitos de direito.
A Política de Atendimento Socioeducativa é um conjunto de ações realizadas pelo
poder público e destinadas a adolescentes que cometeram ato delituoso. Essa política
é regulamentada pelo ECA, pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE – Lei nº 12.594/2012), pela Assistência Social e pelas leis municipais.
Segundo o ECA, o intuito dessa política é responsabilizar o adolescente pelo ato come-
tido e, ao mesmo tempo, reduzir a vulnerabilidade social pela oferta de políticas que
proporcionem alternativas de reinserção social a esses adolescentes (GOMES, 2015).
Os atos infracionais são julgados pela Justiça Especial para Crianças e Ado-
lescentes, que decide através de determinação judicial qual tipo de medida deverá
ser aplicada, levando em consideração variados aspectos como: idade, reincidência,
gravidade do ato infracional etc. Dentre as medidas socioeducativas, temos as que são
aplicadas em meio fechado (medida de internação) e as cumpridas em meio aberto,
que podem ser Medida Socioeducativa de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC)
ou de Liberdade Assistida (LA), além de advertência, de obrigação de reparo de dano
e de inserção no regime de semiliberdade (OLIVEIRA et al., 2014). Alguns jovens
cumprem os dois tipos de medidas, ingressando, em alguns casos, na medida de inter-
nação e, a depender de seu comportamento, sua medida progride para PSC ou LA.
Nossa discussão, no entanto, se pauta no acompanhamento dos adolescentes
em cumprimento do Medida Socioeducativa em Meio Aberto de PSC e LA, acom-
panhados pela equipe técnica do CREAS de um município do litoral piauiense de
106
Nacional, que registra que 64% das mais de 726 mil pessoas encarceradas no Brasil
eram negros, pobres e com baixa escolaridade.
O funcionamento necropolítico que criminaliza a pobreza e a pretitude escancara
que a lógica da exclusão como mecanismo de proteção da sociedade ainda é o que dire-
ciona, no sistema capitalista, o controle penal através do sistema prisional, que atua sob
a perspectiva de “culpabilização individualizada”, onde o sujeito é o único responsável
pelo crime, desconsiderando-se o contexto social e seus atravessamentos. Dessa forma,
a pessoa pobre, por exemplo, é responsabilizada pelo seu estado de pobreza, o que con-
verge em direção à criminalização dos pobres a partir da concepção (errônea) de que
pobreza e criminalidade são sinônimos (OLIVEIRA; FÉLIX-SILVA; NASCIMENTO,
2014). A partir de uma releitura do que Altieres (2019) propõe como reflexão, a questão
que se impõe nesta discussão é muito mais sobre a cor da pele e a classe social, sobre
uma lógica de exclusão social, do que sobre reinserção e inclusão das pessoas que vivem
em contexto de violação de direitos, vulnerabilidades e criminalização.
A esse respeito, é importante considerar o fato de que as primeiras experiências
de conflito com a lei se iniciam ainda na infância ou na adolescência, em um contexto
social onde a maioria dos adolescentes que comete algum tipo de ato infracional é
marcada pela privação de acesso a direitos básicos e, consequentemente, de acesso
a sistemas de regulação social próprios da comunidade, que podem estar envolvidos
com a criminalidade (SCISLESKI et al., 2015).
Os dados anteriores também apontam que outra questão que culmina majorita-
riamente em cumprimento de medida socioeducativa é o envolvimento com drogas,
que é sempre visto como tráfico, já que, ainda como argumenta Altieres (2019),
quem é preto e pobre não pode ser só usuário (que não é criminalizado), é traficante.
Nesse cenário, temos que o sistema de justiça promove muito mais a responsa-
bilização dos adolescentes pelas infrações cometidas do que se preocupa em garantir
os direitos daqueles que deveriam ser prioridades do Estado, segundo o ECA, e que,
em virtude de suas condições sociais, têm menos acesso a tantos recursos que preci-
sariam estar disponíveis para a manutenção mínima da vida em sociedade.
A fragilidade da rede socioassistencial, por inúmeros motivos que passam pela
carência de pessoal até a falta de material e/ou espaço físico, também não consegue
dar conta das demandas de garantia de direitos, seja na prevenção ou na pósvenção,
refletindo outro ponto importante a ser considerado nos processos de produção de
subjetividade estudados aqui (ALTIERES, 2019).
108
Esse fato retrata o olhar estigmatizado lançado sobre a questão das drogas e da
criminalidade, que desfigura os atravessamentos sociais, deslocando a dimensão da
saúde e da garantia de direitos para uma perspectiva jurídico-policial e punitiva que
concebe os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa como deficiente
moral e único responsável pela prática de ato infracional. Com isso, há um apagamento
do viés político-social das infrações cometidas por adolescentes que bem contribui
para uma desresponsabilização do Estado e individualização/privatização da questão.
O estereótipo do “adolescente marginal” homogeneiza os múltiplos vetores de
subjetivação, relegando à invisibilidade as desigualdades sociais, os preconceitos
de raça, gênero, classe e credo e todas as oportunidades cessadas a partir desses
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Recortes e aberturas
Escutar o silenciamento daqueles que, por direito, deveriam ocupar o seu lugar
de fala, e para além disso, refletir sobre o que produz e como esse silenciamento se
manifesta também se torna um desafio cotidiano. Como professoras ou profissionais
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REFERÊNCIAS
ALTIERES, E. F. Reinserções, inserções e deserções: cartografia do dispositivo
“reinserção social” para adolescentes com histórico de uso abusivo de álcool e outras
drogas. 2019. Tese (Doutorado) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2019.
MACRAE, E.; TAVARES, L. A.; RÊGO, M. Entrevista realizada com o Prof. Antônio
Nery Filho. In: NERY FILHO, A. et al. (org.). Toxicomanias: incidências clínicas
e socioantropológicas. Salvador: EDUFBA; CETAD, 2009. p. 283-305. (Drogas:
clínica e cultura). ISBN 978-85- 232-0882-0.
Introdução
Existe uma conjuntura histórica, política, étnico-racial, social e cultural nas
relações de gênero (portanto sexual, também) no que se refere à formação e atua-
ção profissional nos setores educação e saúde. Neste contexto, pretende-se discutir
acerca de dois expoentes predominantemente permeados pela prevalência feminina:
Magistério e Enfermagem.
A problemática a ser apresentada parte da busca da identificação das possíveis
operações biopolíticas que configuram tais nichos de trabalho essencialmente ocu-
pados por mulheres e, extrapolando os mesmos, entender as modulações de seus
processos laborais e ocupacionais a partir da concepção da interseccionalidade. Por
operações biopolíticas nos referimos, essencialmente, à acoplagem do poder discipli-
nar com bio, o poder da vida. Relacionando o corpo ao conceito de população através
do dispositivo da sexualidade, a biopolítica procura delinear como o poder se desen-
volve e passa a conduzir a vida, transpondo a sociedade da soberania sobre os terri-
tórios para a configuração social de regulação das populações (FOUCAULT, 2000).
Entendemos que o estudo do significado quantitativo do aumento da participação
do sexo feminino na composição de uma profissão ou ocupação é denominado de
feminilização, sendo chamada de feminização a mensuração e análise desta presença
(YANNOULAS, 2011). O processo de feminização remete, portanto, ao significado
qualitativo deste acesso massivo de mulheres a uma profissão ou ocupação, relacio-
nado às transformações de significação e valoração social deste exercício, derivadas
das variáveis de conjuntura sociopolítica e concepções de gênero predominantes
em um período (YANNOULAS, 2011). Procuramos delinear os jogos de força que
configuram este processo de feminização das duas profissões, tentando identificar
estratégias de governamento biopolítico desses corpos femininos.
No Brasil, os percursos da educação perpassam pela contribuição da mulher à
ampliação do magistério. Ainda que, inicialmente, os cursos de formação nesta área
fossem destinados aos homens, gradativamente foram surgindo as escolas para for-
mação de normalistas mulheres, sendo entendidas politicamente como uma profissão
estendida às atribuições de mãe, subsidiando tanto a cristalização histórica das funções
116
de formação de nível médio, em geral, atendem a população que não tem acesso à
formação de nível superior e busca a inserção profissional de duração mais curta e
a perspectiva de mobilidade social representada pelo curso técnico (SILVA, 2005;
BRAZOROTTO, 2020; BRAZOROTTO; VENCO, 2021).
Na sobreposição dos marcadores de gênero, raça e classe, é o corpo da mulher
– e, principalmente, da mulher preta e pobre – quem assume, majoritariamente, a
centralidade desse debate. Para muito além de conceituações teóricas, cotidiana-
mente o corpo da mulher atravessa – e é atravessado – pelo poder e pela política,
em operações de controle social (BRUM, 2019). Qualquer tentativa de se entender
nossa sociedade, ainda tão patriarcal, machista, misógina, elitista e colonial, requer
a centralidade desse corpo na análise. Afinal, “é sempre do corpo que se trata – do
corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de
sua submissão” (FOUCAULT, 2012, p. 28). É do corpo, portanto, que tratamos na
análise das possíveis operações biopolíticas que operam a feminização da atuação
profissional nas áreas da educação e saúde.
Para além de sua instituição legal, a profissão foi estabelecida e regulada também
simbolicamente. Considerada fundadora da enfermagem moderna, na transição do
século XIX para o século XX, a inglesa Florence Nightingale atuou na organização do
trabalho de voluntárias no cuidado a soldados feridos. Pela repercussão de suas ações,
que a elevaram à condição de expoente da cultura vitoriana, é atribuída a ela a profissio-
nalização das funções de enfermagem para mulheres, assim como a reputação favorável
do ofício, ampliando as formas socialmente aceitáveis de inserção feminina – ou, pelo
menos, de mulheres da classe aristocrática, como ela própria – na força de trabalho.
Ainda no século XVI, a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia se instalou no
Brasil como a primeira instituição hospitalar da então colônia, derivada da instituição
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que não possam ser guardados em uma caixa de ferramentas para reutilização posterior.
E, dessas explosões, não saímos ilesos. Afinal, “de que valeria a obstinação do saber se
ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto
quanto possível, o descaminho daquele que conhece?” (FOUCAULT, 2020, p. 13).
Os conceitos de biopolítica e biopoder são articulados por Michel Foucault
no contexto da década de 1970, consolidando os estudos sobre a genealogia dos
micropoderes disciplinares, a partir de Nietzsche. Equacionando o poder disciplinar
na ordenação dos corpos, Foucault conceitua como biopoder o conjunto de meca-
nismos de controle social que determinam a vida dos indivíduos. Biopolítica seria
a articulação entre a política e a vida biológica, em uma multiplicidade de técnicas
É um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito
pelo menos necessariamente numerável. É a noção de “população”. A biopolítica
lida com a população, e a população como problema político, como problema a
um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de
poder (FOUCAULT, 2000, p. 292-293).
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sociedade que se lida nessa nova tecnologia de poder” (FOUCAULT, 2000, p. 292).
Considerações finais
Analisando construções histórico-sociais e a organização social do trabalho nas
áreas da educação e da saúde, podemos delinear operações que equacionam o poder
disciplinar na ordenação dos corpos docilizados das professoras e enfermeiras. Na
sujeição das mulheres para o trabalho do cuidado, como prolongamento do trabalho
doméstico e de reprodução, nos dois campos de atuação, se opera um ordenamento
social que reitera as desigualdades enquanto opera mecanismos de controle sobre
aqueles corpos femininos. Essa biopolítica da feminização das duas profissões embute
as dinâmicas próprias do capitalismo, que desvaloriza e desqualifica o trabalho do
cuidado ao mesmo tempo em que sedimenta nele o trabalho valorizado e qualificado,
a ser realizado majoritariamente pela população que corresponde a outros recortes
de gênero, raça e classe social.
Tal processo utiliza a normatização para operar seus mecanismos. Através dos
dispositivos disciplinares que agem na anátomo-política do corpo e mecanismos
regulamentadores que atuam na população, a norma se acopla ao dispositivo da
sexualidade, operando a biopolítica dos corpos. As normas perpassam tanto a regu-
lamentação legal das duas profissões e do acesso a elas quanto a regulamentação
simbólica do perfil e das estereotipias do corpo feminino docilizado sujeitado ao papel
social da professora e da enfermeira. O controle pode ser identificado nos mecanismos
de organização social do trabalho, que configuram a operação de feminização dos
campos profissionais do magistério e da enfermagem, bem como do ideário social
construído acerca deles.
124
REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
Elefante, 2017.
FEDERICI, S. Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais. São Paulo:
Boitempo, 2019b.
FREIRE, P.; FAUNDEZ, A. Por uma pedagogia da pergunta. 5. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2002.
Gente que se mobiliza povo que ainda acredita jovens que têm a esperança de
ver a mudança no mundo ocorrer.
Tá faltando consciência vamos fazer diferença tudo pode estar perdido, mas
jovens unidos podem reverter…
essa situação! (Angélica de Souza Lima)
Introdução
Refletir sobre os enlaces entre psicologia e ruralidades é sem dúvida pensar
rumos diferentes de um campo de saber enrijecido no capitalismo. Ao contar sobre
as lutas históricas de povos que resistem a um sistema social excludente e violento,
posicionamos a psicologia dentro dessa luta visando ouvir um coletivo que no decorrer
da história foi silenciado.
Consiste em produzir saberes e efeitos que contemplem a diversidade do campo,
contando sobre as histórias de vida, da relação com a terra e dos vínculos em comu-
nidade, reconhecendo-os como identitário. Com isso, a partir desse diálogo queremos
propor o encontro da psicologia com a luta dos povos do campo caminhando no
sentido da decolonialidade.
Como dito por Paulo Freire (1980), a educação é potencial de transformação
da sociedade, e é nesse sentido que pensar uma educação do campo vai além da
efetivação das políticas de ensino básico e superior, buscando também situar e evi-
denciar as lutas dos povos do campo. Nessa perspectiva, uma psicologia decolonial
pretende uma revisão crítica em relação à sociedade e a sua estrutura hegemônica.
Opera a partir da compreensão de processos de sociedades tradicionais, dos seus
fenômenos, relações e resistência política em vista da dominação cultural e do poder
econômico (GONÇALVES, 2019). Adota uma lógica de desconstrução da matriz colo-
nial, valorizando todas as culturas, raça/etnia, modos de saber e produção, trazendo
uma dimensão político social cuja proposta está no combate a visão eurocêntrica
que desconsidera processos de subjetivação de determinados povos e classes. Tra-
ta-se também de situar a psicologia como um campo crítico em oposição a sistemas
hegemônicos e que as perspectivas sejam para falar a partir do lugar do outro, cuja
alteridade esteja definida politicamente considerando e respeitando as diferenças
(ALVES, DELMONDEZ, 2015).
130
A partir disso, esse capítulo é produzido sob a reflexão teórica de duas pesquisas
do mestrado acadêmico em psicologia da Universidade Federal de Rondônia, que
buscaram compreender os sentidos da educação do campo no âmbito da educação
básica e do ensino superior, tendo aqui o recorte para a importância da educação do
campo em uma perspectiva descolonizadora. Fazendo uso da perspectiva do cons-
trucionismo social, os sentidos são construções sociais produzidas cotidianamente,
pela qual as práticas discursivas, implicam-se a partir das ações, seleções, escolhas,
linguagens, contextos, e tudo que fizer parte das produções sociais (SPINK, 2010).
Além disso, entende-se que os processos se constituem de forma histórica e cul-
tural, se estabelecendo por meio das temporalidades, entendidas como tempo longo,
Caldart (2004) relata que a Educação do campo é específica para os povos que
vivem e trabalham no campo, abrangendo os aspectos da diversidade do cotidiano
e territorial, caracterizando-se como uma educação para os povos assentados de
Reforma Agrária, remanescentes de quilombos, ribeirinhos, povos da floresta, entre
outros. A proposta de uma educação específica respeitando a diversidade do cotidiano
dos povos e os diferentes territórios vai além de escolas instaladas no campo, mas
que as propostas de emendas curriculares de ensino estejam de acordo com a reali-
dade dos sujeitos demandados. Ou seja, a Educação do Campo enquanto proposta
epistemológica de ensino para os povos tradicionais tem a finalidade de potencializar
as escolas do campo, a formação de professores que possivelmente trabalharão com
que os sujeitos coletivos possam, a partir do acesso à terra e aos recursos naturais,
ter estabelecido novos patamares para criação de condições que lhes garantam, a si
e a sua família, novas condições de vida com dignidade (MOLINA, 2015, p. 189).
Algumas considerações
A partir das reflexões apresentadas ao longo desse texto, levantamos sobre o posi-
cionamento da psicologia na discussão dos contextos rurais, principalmente no âmbito
da educação do campo. Pensando em uma lógica de pesquisa e da práxis profissional
direcionada para o processo de descolonização, entende-se que a psicologia não deve se
traduzir há uma concepção que pensa o indivíduo descolado da sociedade, mas deve ter
o olhar atento e valorativo para os diferentes povos e os seus modos de vida e produção.
Pensando na luta histórica dos povos do campo e dos diversos fatores existentes
nos contextos rurais, inclusive com marcas sociais de violências, preconceitos e falta
de acessos políticos, a psicologia voltada para esse público precisa ter dimensão dos
sentidos da vida no campo. É necessário, portanto, considerar os aspectos da rela-
ção com a terra e com a natureza, das dimensões de trabalho, estudo, a vivência de
comunidade, dos saberes, estilo de vida e cultura que difere totalmente do urbano.
De tal modo, pensar a psicologia nessa discussão é sem dúvida adentrar em
um espaço sociopolítico contraditório ao conhecimento valorizado que é o padrão
e urbano-centrado. Sendo assim, este capítulo buscou tecer reflexões sobre a psi-
cologia descolonizadora no âmbito da educação do campo. Destaca-se que não se
trata de colocar uma separação entre campo e cidade como se estes povos não se
conectassem, mas de considerar que existem fenômenos, sociais, políticos, eco-
nômicos, históricos que mudam as formas de ser e estar no mundo, inclusive nos
aspectos subjetivos. Trata-se também de reconhecer o lugar de privilégio social
da psicologia nos processos de dominação social e excludente e que ao longo do
percurso histórico pouco estudou e produziu sobre os povos do campo, marcando
um posicionamento conivente como a história de exclusão, violências e barbáries
presentes na sociedade.
Com isso, ampliar a psicologia para os contextos rurais é ousar uma psicologia
que busca se descolonizar rompendo com os próprios paradigmas constituídos na base
colonial a emergir do lugar de saber e privilégio que é a psicologia, na esperança de
pensá-la chegando a todos os povos. Portanto, a continuidade de estudos, produções
e análises sobre a inserção da psicologia nos contextos rurais faz-se necessária,
principalmente mediante ao cenário político que induz a retrocessos de políticas
conquistadas através das lutas dos movimentos sociais do campo.
140
REFERÊNCIAS
ALVES, C. B.; DELMONDEZ, P. Contribuições do pensamento decolonial à psico-
logia política. Revista Psicologia Política, v. 15, n. 34, p. 647-661, 2015.
Introdução
Até o momento, privilegiamos uma narrativa sobre os efeitos biopolíticos e
disciplinadores de certas práticas associadas aos direitos humanos. Discorremos como
em nome dos direitos têm-se gerido a vida da população, por meios de processos de
judicialização e medicalização, que promovem assujeitamentos diversos. Agora, inte-
ressa-nos interrogar sobre a possibilidade da produção de direitos em outras paragens,
nas brechas dos processos de normalização da vida, como práticas de resistência.
Para Giacóia Júnior (2008), Foucault e Agamben construíram uma crítica radi-
cal aos direitos humanos, ao darem visibilidade a outras funções políticas que estes
cumprem para além da proteção legal dos indivíduos. Evidenciaram a lógica do
biopoder que reveste os direitos modernos. Sendo assim, coube a pergunta: seria
possível um direito que seja antidisciplinar e não-previdenciário? Giacóia Júnior
(2008) segue cético sobre a questão, considerando que é muito difícil, em tempos
neoliberais, algo não ser abocanhado pelo mercado e reinvestido, portanto, de uma
racionalidade normalizadora. Aqui, nesta tese, consideramos possível a produção de
direitos nos interstícios das linhas de fugas1, junto às lutas por singularização, como
direitos marginais e efeito de práticas de resistência.
Nesta mesma perspectiva, Coimbra, Lobo e Nascimento (2009) problematizam que,
nas sociedades modernas ocidentais, os direitos estão historicamente atrelados à concepção
de uma ordem imposta que asseguraria a paz e a ordem, bem como, a concepção abstrata
de humano, que esvaziam os processos inventivos dos modos de existência, e para escapar
desde modelo de direito, exige-se uma estratégia de transvaloração dos direitos, que afirme
1 As linhas de fuga são aquelas que escapam das tentativas de totalização. Conferir: DELEUZE, G.; GUATTARI,
G. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. v. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
146
as forças ativas das lutas agônicas. Assim, torna-se possível a afirmação de “direitos não
mais universais, absolutos, contínuos e em permanente estado de aperfeiçoamento, mas
locais descontínuos, fragmentários, processuais, em constante movimento e devir, como
a força que nos atravessam e nos constituem” (COIMBRA, 2011, p. 93).
Sustentar os direitos não-universais como emergentes das práticas de resistência
nos impele a problematizar este conceito a partir do arcabouço teórico-analítico em
que nos apoiamos. Foucault (2009d) ao descrever as proposições para uma analítica do
poder, assegura: “que lá onde há poder há resistência” (p. 105). Com isto quer afirmar,
que o poder não é absoluto, no sentido em que nada lhe escaparia. Pelo contrário,
para uma relação de poder se constituir, entende que é imprescindível que “o outro
Transpor as linhas de força, ultrapassar o poder, isto seria como que curvar a
força, fazer com que ela mesma se afete, uma vez de afetar outras forças: uma
“dobra”, segundo Foucault, uma relação de força consigo. Trata-se de “duplicar”
a relação de forças, de uma relação consigo que nos permita resistir, furtar-nos,
fazer a vida ou a morte voltarem-se contra o poder.
2 A Hermenêutica do Sujeito é a publicação que reuniu as aulas ministradas por Foucault no Collège de
France no ano 1982, no qual o autor apresenta a noção de “cuidado de si”, a partir do estudo histórico das
técnicas e procedimentos de constituição do sujeito ético.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 149
Não se pode governar os outros, não se pode bem governar os outros, não se pode
transformar os próprios privilégios em ação política, em ação racional, se não está
ocupado consigo mesmo. Entre privilégio e ação política, este é, portanto, o ponto
de emergência da noção de cuidado de si.
os quais desenvolveram uma série de práticas de si, que iam das práticas de ascese
aos regimes de saúde; práticas de cuidado com o corpo às meditações e leituras.
Esta relação estabelecida consigo mesmo se dá no campo da experiência de si como
sujeito moral, onde o próprio sujeito é objeto de sua prática moral.
Com os gregos, Foucault adentrou a temática da produção da subjetividade,
afirmando-a como um processo histórico. Fez aparecer a possibilidade de se constituir
modos de existência, seguindo regras estéticas, éticas e políticas. Deu visibilidade à
produção da vida como uma obra de arte (DELEUZE, 2010). O retorno aos gregos
permitiu uma problematização do presente, o questionamento sobre o que fazemos
de nós mesmos, como temos nos constituído como sujeitos.
A partir da modernidade, outras formas de se constituir como sujeito foram
fabricadas. O cuidado de si perdeu espaço para o conhecimento de si. No proce-
dimento cartesiano de conhecer a si mesmo, o acesso à verdade se dá por meio de
condições formais e objetivas, em que o sujeito não se modifica. O sujeito volta-se
à sua própria consciência, em decorrência da valorização do cogito como forma
deste acesso à verdade, que já se encontra dada. Há aqui, portanto, outra forma de
relação entre sujeito e verdade, muito distinta da cultivada pela cultura helenística,
em que se valorizam as formas espirituais e tinha a verdade como um processo em
constante produção.
Conforme Freitas (2010), as problematizações do cuidado de si dos estudos
foucaultianos, ajudam a interrogar a formação do humano a partir das técnicas de si,
bem como, auxiliam a provocar o deslocamento, no campo da educação, “das práticas
de governo dos vivos para o governo ético de si mesmo, indagando a potencialidade
do cuidado de si na concretização de novas formas de vida para além da genealogia da
sujeição, descrito pelo próprio Michel Foucault” (p. 169). Aventa-se, desta maneira,
a educação como uma experiência refletida do exercício de liberdade.
Ainda para este autor, a formação, sob o princípio do cuidado de si, abriria ao
sujeito a possibilidade de romper com os modelos cognitivos, emocionais e sociocul-
turais dados, ao propiciar ao mesmo, exercícios de governo de si que põe em evidência
a capacidade de resistir. Deve, portanto, promover a liberdade de se produzir e se
modificar como sujeito, de maneira independente das paixões internas ou a coerções
externas. A educação passa a ser entendida não pelo acúmulo de conhecimento ou de
coisas aprendidas, mas pelo que “produzindo formas de experiência de si, conduz o
150
aptidão entre os alunos. Esta gestão da multiplicidade fabrica a divisão binária entre
o normal e o anormal, por isso, afirma que o que está em jogo são processos de nor-
malização da sociedade (FOUCAULT, 2007).
A vigilância hierárquica é produzida na escola pelo corpo técnico, por meio de
técnicas de observação e registro dos desvios praticados pelos alunos, tendo como
padrão de referência o modelo do aluno ideal. Testes, provas e avaliações de desem-
penho são utilizados como forma de acompanhamento da vida dos alunos ao longo
de sua passagem na escola. O exame é um instrumento fundamental para mensura-
ção dos desvios, portanto, dos níveis de anormalidade do alunado. Trata-se de um
dispositivo que extrai verdades sobre os indivíduos, classifica-os e hierarquiza-os.
Funciona também como uma sanção normalizadora, na medida em que estabelece
“micropenalidades” (FOUCAULT, 2007).
Nas Universidades, os processos de disciplinamento ocorrem em duas direções,
além daquele promovido sobre o corpo de alunos e corpo técnico, este espaço produz
o disciplinamento dos saberes técnicos, os quais, desde o século XVIII, passaram
a rivalizar-se com base na noção de ciência. Assim, os saberes foram selecionados,
normalizados, hierarquizados e centralizados, pautados na definição de um conhe-
cimento verdadeiro.
Desde este período, um processo intenso de controle de saberes os organizou
em disciplinas. Estas, por sua vez, distinguem o “saber” do “falso saber”, a partir dos
princípios instituídos de veridicidade no interior das mesmas. As diversas disciplinas
constituem um campo maior de saber, que desde o século XVII, tem se construído
como ciência. Na hierarquização dos saberes, a ciência tem sido legitimada como
produtora de conhecimento verdadeiro e isto tem efeitos de poder, já que esta racio-
nalidade autoriza a prática pela ciência do policiamento dos outros saberes (FOU-
CAULT, 2005). As universidades se tornaram espaços privilegiados de produção
e de circulação deste saber científico. Gallo (2006, p. 557) destaca algumas das
consequências deste processo disciplinador:
Considerações finais
Os discursos sobre os direitos se estabelecem em uma trama de lutas, uma
vez que os direitos humanos foram objetivados a partir de distintas e divergentes
racionalidades políticas. Tais racionalidades e objetos não estão colocados, contudo,
a uma suposta identidade destes sujeitos docentes, como numa relação de restrição
discursiva, apontada por Foucault (2004) ao tratar da relação do autor e sua obra. É
intrigante notar como num mesmo enunciado sobre os direitos, distintas racionali-
dades são colocadas em circulação. Em um mesmo enunciado acerca dos direitos
humanos, foram disparados efeitos de poder-saber-subjetivação diversos. Assim,
em um único discurso, viu-se a afirmação ética de um direito que se constitui como
prática de resistência, ao passo que se viu a enunciação de um discurso que coloca
os direitos em uma lógica judicializante e medicalizante, que submete a vida ao jogo
das práticas disciplinares e regulatórias.
Tal análise nos remete à própria lógica agonística das relações de poder, anun-
ciada por Foucault (1995), posto que apontam para relações de poder-saber que não
são estatísticas, já que se movem a todo momento em um jogo de incitação contínua.
Nem o poder se encontra fixado em um indivíduo ou em uma instituição, nem os
processos de resistência se colam às formas cristalizadas.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 153
blematização do presente.
154
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
COIMBRA, C. Ética, Direitos humanos e biopoder. Verve, São Paulo, n. 20, p. 85-100,
2011. Disponível em:
CRUZ, F.; SILVA, D.; RODRIGUES, R.; LEMOS, F.; PRADO FILHO, K. Estética
da existência e resistência na Universidade: algumas inquietações. In: LEMOS, F;
GALINDO, D.; BRÍCIO, V.; CRUZ, F.; GOMES, G.; REIS JÚNIOR, L. (org.). Estu-
dos com Michel Foucault: Transversalizando em Psicologia, História e Educação.
Curitiba, PR: CRV, 2015.
DALLARI, D. O Brasil rumo à sociedade justa. In: SILVEIRA, R. M. G. et. al. (org.).
Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa:
Editora Universitária, 2007
FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. 11. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009b.
PRADO FILHO, K.; LEMOS, F. Foucault hoje: algumas linhas a respeito. Polis e
Psique, v. 2, n. 1, 2012.
Notas introdutórias
Este manuscrito é resultado de uma experiência de estágio obrigatório e super-
visionado de Psicologia e Educação na Universidade Metodista de Piracicaba (UNI-
MEP) que foi realizado em uma escola pública da rede estadual do estado de São
Paulo. Ao longo do estágio, participamos das reuniões de ATPC com o objetivo de
intervir para colaborar na construção do ATPC num espaço político e coletivo e
contribuir com o processo de formação da consciência das funções do ATPC.
Os dados colhidos durante as reuniões de ATPC fizeram-nos notar o quanto a
política neoliberal é um entrave nas relações interpessoais e nos processos escolares.
Há uma forte hierarquização e autoritarismo, além da falta de recursos financeiros
e materiais, que acabam inviabilizando o trabalho dos professores. Isto reflete, por
sua vez, na reprodução do discurso neoliberal no interior da escola culpabilizando
os alunos pelos seus insucessos escolares, além da ausência de consciência de per-
tencimento de uma mesma classe de trabalhadores, resultando no individualismo
(princípio neoliberal) dos professores.
Ademais observamos efeitos da política neoliberal na gestão da escola. A
diretora sofre certa coerção (ou pressão) de pessoas da diretoria de ensino e acabava
reproduzindo esse autoritarismo com os professores, o que torna a gestão demo-
crática impossível. Ou seja, as relações de poder do sistema capitalista estão sendo
reproduzidas no cotidiano da escola impedindo a efetividade da gestão democrá-
tica, princípio assegurado pela Constituição de 1988 e pela Lei nº 9394/96 – Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Assim, diante das observações, a relação
entre gestão democrática e política neoliberal de educação delineou-se como objeto
de nossa intervenção e crítica, as quais apresentamos neste manuscrito. O objetivo
deste estudo, portanto, foi o de analisar a efetividade da gestão democrática em uma
escola do estado de São Paulo considerando a sua relação com a política neoliberal
do Governo do Estado de São Paulo, bem como de trazer a crítica social como
analítica que comporta significante para a formação crítica e política de estudantes
de Psicologia.
162
[...] a educação não deveria ter como princípio básico o treinamento das crianças
e sim o objetivo de ensiná-las a pensar. Na visão do autor, o aluno deveria ser
Iop (2009) aponta que para Kant o conceito de “estado de menoridade” estaria
presente em todas as sociedades humanas. O indivíduo no estado de menoridade, é
regido pelos afetos e não pela razão, analisa a realidade de acordo com seus afetos e
suas crenças. Somente através da educação seria possível a superação desse estado
de menoridade, que podemos denominar de alienação da consciência. O indivíduo
alienado, não é consciente de seus direitos e deveres enquanto cidadão, não é cons-
ciente do papel do Estado em relação à garantia desses direitos.
Cidadania, por sua vez, significa respeitar o interesse de todos, isto é, cidadania
pressupõe coletividade; é se reconhecer enquanto um indivíduo de direitos e deveres
resguardados pelo Estado e ter como limite de conduta os direitos humanos. A relação
entre educação e cidadania sofre transformações em função de novas configurações
políticas, sociais, econômicas e culturais. Com a ascensão do neoliberalismo e seus
princípios de liberdade e individualismo, o conceito de cidadania vem sofrendo
modificações, principalmente sua relação com a educação (NETO; CAMPOS, 2017).
O neoliberalismo não é apenas um sistema econômico, mas normativo, um sis-
tema de valores. Segundo seus valores de individualidade e liberdade, o indivíduo é
responsável por si mesmo, o Estado é destituído da sua função de proteger os direitos
dos cidadãos. Cidadania no neoliberalismo relaciona-se ao ter, é considerado cida-
dão aquele que tem um conjunto de habilidades ou capital e seja capaz de promover
seu desenvolvimento e progresso (NETO; CAMPOS, 2017); a mudança na vida do
indivíduo e seus direitos são de responsabilidade do próprio e não do Estado. Não só
a cidadania é de responsabilidade do sujeito, como a apropriação dos bens culturais
também; o neoliberalismo transfere a escola os princípios da meritocracia, do esforço
individual e da competitividade (NETO; CAMPOS, 2017). A função da escola é
ensinar o aluno a aprender a aprender, assim, caso não atinja o “sucesso escolar”,
o único responsável (ou culpado) é o próprio aluno e não a lógica excludente (que
inclui para excluir) que permeia todos os processos escolares.
O processo de hegemonia do neoliberalismo teve início na década de 90 após o
Consenso de Washington, que reuniu representantes de países capitalistas desenvol-
vidos, órgãos multilaterais como o Banco Mundial, FMI e representantes da América
Latina. O objetivo era acabar com a concorrência internacional e tornar a América
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 163
Latina um terreno para expansão dos negócios dos EUA, inclusive sua influência na
educação (NETO; CAMPOS, 2017). No Brasil, segundo Gadelha (2017), a crise na
educação teve início em 1965 com a ascensão do governo militar, período em que a
educação perdeu sua função de transformação social e passou a ser dominada pelo
pragmatismo e pela lógica liberal, além do desmonte cultural e identitário sofrido
pelo Brasil devido à forte influência dos EUA nas políticas do país. Foi na década
de 90 também, com os governos de Collor Mello e Fernando Henrique Cardoso, que
órgãos internacionais como o Banco Mundial, OCDE e FMI começaram a exercer
influência nas políticas educacionais. Dentre esses órgãos, o Banco Mundial é o mais
influente em propostas para políticas educacionais em países emergentes; isso faz
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[...] o homem neste projeto é reconhecido como objeto e não sujeito desse pro-
cesso, já que a centralidade fica na técnica e no capital; a sociedade é identificada
como espaço recriador da exclusão; os processos sociais são construídos por
interesse da “minoria” (NETO; CAMPOS, 2017, p. 3).
atualmente são mais sutis, porém muito mais opressoras, absolutas e alienantes. O
neoliberalismo transformou todos os direitos fundamentais de qualquer ser humano
em mercadorias; como já apresentado acima, o neoliberalismo, além de ser um modo
de operar na realidade, é também um modo de vida.
Com a regulamentação do princípio de gestão democrática como obrigatoriedade
nas escolas públicas, acreditava-se que não haveria mais obstáculos que impedissem
a participação da sociedade nas decisões educacionais (MASSON; VAN ACKER,
2018). Porém, não é impondo um modelo de gestão que mudaremos a escola, pois
é necessário que ocorra uma mudança da cultura escolar. Para que seja possível a
gestão democrática, é necessário um reconhecimento das pessoas que integram o
cotidiano escolar, da responsabilidade, dos benefícios e possibilidades (CAETANO,
2009). Entretanto, para que as pessoas de uma sociedade sejam conscientes de seus
direitos, que compreendam o conceito de democracia, é preciso que haja uma educa-
ção voltada para a emancipação das consciências e desenvolvimento do pensamento
crítico-reflexivo. Mas não é isso que vemos no cotidiano escolar.
A educação no neoliberalismo está voltada para a adaptação dos indivíduos a
nova ordem mundial, para que sejam mão de obra adequada aos novos modos de
produção e organização. O objetivo de sistema neoliberal é iludir a sociedade com a
promessa de igualdade de oportunidades, para ocultar as contradições e a divisão de
classes. Diante disso, apesar de existir uma lei que regulamenta o princípio da gestão
democrática nas instituições públicas de ensino, o que se vê é a lógica empresarial
dominando o território escolar; a(o) diretor(a) torna-se o gestor(a), que deve contro-
lar seus funcionários (no caso os professores) para unir esforços com o objetivo de
atingir metas de desempenho estabelecidas de fora do cotidiano escolar, pois tanto
os conteúdos como a própria escola devem estar voltados para o mercado e não para
a construção de uma sociedade democrática com cidadãos conscientes. O professor
é apenas um mediador do processo de aprender a aprender do aluno que aplica suas
técnicas em função das decisões tomadas pelo gestor escolar.
Não cabe o conceito de gestão democrática dentro do sistema neoliberal. Podem
existir fragmentos de emancipação, tentativas de democratização do ensino, porém
estas não são plenamente realizadas. Tudo é cooptado pelo capital. É a “semiformação
socializada na onipresença do espírito alienado”, como Adorno (1996, p. 388) denun-
ciou. Penna e Bello (2015) realizaram uma investigação de relatórios de estagiários
da área de Gestão escolar do curso de Pedagogia de uma Universidade da Grande São
166
Método
O método utilizado foi o qualitativo, uma vez que se tratou de observar e intervir
nas relações interpessoais e institucionais entre docentes, equipe gestora da escola e
política institucional. Foi utilizada como metodologia a observação participante que,
segundo Haguette (1999a), é uma técnica de coleta de dados na qual o observador faz
parte e intervém no contexto e sua presença deve ser constante. O observador, nesta
metodologia, possui papel ativo e interfere sobre contexto, ou seja, produz mudanças
sociais e é modificado pelo mesmo. O observador mantém interações face a face com
os observados. Para Haguette (1999b), a observação participante não é apenas uma
técnica de coleta de dados, mas uma metodologia de investigação e intervenção em
que a teoria orienta a prática.
Segundo a autora (1999b), a observação participante é um processo de compar-
tilhamento consciente e sistemático entre o observador e os observados nas atividades
da vida, de interesses e sentimentos, no sentido de se colocar no lugar do outro para
compreender sua realidade social.
Local
de evitar fugas de alunos. A escola recebia cerca de 1600 alunos contando com o
ensino médio e o ensino integral que ocorre no período da manhã. Em relação ao
número de funcionários, não foi fornecida a informação.
Participantes
Instrumentos
Procedimento
Resultados e discussões
O estágio teve início numa escola estadual de São Paulo no primeiro ano da
administração de João Dória, e pudemos perceber que este já havia realizado muitas
mudanças no campo da educação estadual.
Uma das mudanças mais visíveis foi a estratégia de ensino, que oficialmente
é denominada de Método de Melhoria e Resultado. Trata-se de uma estratégia de
resolução de problemas muito utilizado em empresas e funciona da seguinte forma:
identificação de problemas ou dificuldades da escola, levantamento de possíveis
soluções e estabelecimento de metas; esse processo é feito em conjunto todo final de
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 169
ano com professores, alunos e pais de alunos. Os participantes são escolhidos pela
diretora e o critério de escolha das disciplinas que serão trabalhadas é feito deve ter
por base as dificuldades dos alunos; os alunos escolhidos para realizar são os que
possuem maior rendimento escolar.
A escolha dos participantes e das disciplinas não é feita de maneira democrá-
tica; esta função cabe apenas à diretora, os professores não são consultados e nor-
malmente as disciplinas trabalhadas são português e matemática que são conteúdos
de provas como SAEB, Prova Brasil etc., com o objetivo dos alunos terem um bom
desempenho nessas avaliações com o intuito de promover a escola enquanto uma
instituição de qualidade (status) e de obter como retorno uma quantidade maior de
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estava atrasado e, caso não viesse, usariam o que arrecadaram no bingo. Um dos prin-
cípios que o neoliberalismo promove é a descentralização e autonomia administrativa
e financeira, ou seja, incentiva as escolas na captação de investimentos, parcerias
público-privadas, e, nesse caso, a participação da comunidade local e de pais é vista
com bons olhos, pois estes acabam fazendo a função que deveria ser do Estado; bem
como torna a escola a única responsável pela aprendizagem de seus alunos. O segundo
ponto trata-se da desresponsabilização do Estado e da escola em relação à função de
promover educação de qualidade voltada para cidadania; se o aluno não vai bem, é
culpa dele mesmo afinal, no neoliberalismo, o indivíduo é empresário de si mesmo,
e, por ser empresário de si mesmo, é o único responsável por seu desenvolvimento.
Considerações finais
A educação é o processo de formação cultural do humano e mantém relação
intrínseca com a cidadania. Cidadania é voltada para o bem comum, ou seja, os
interesses de toda a sociedade e não apenas de alguns; é produto de uma gestão
democrática onde as decisões são tomadas pelo coletivo e há participação efetiva da
comunidade escolar. Porém, como tornar efetiva a gestão democrática num contexto
em que a educação é vendida como mercadoria, onde as relações são verticais e
divididas em trabalho intelectual e trabalho manual? Onde a escola funciona como
uma empresa capitalista?
As políticas educacionais afirmam que a gestão democrática é um princípio a ser
seguido na educação pública, porém, os conceitos de descentralização, autonomia e
participação social são usados pelo neoliberalismo para justificar o esvaziamento da
172
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. Teoria da Semicultura. Revista Educação e Sociedade, v. 56, p. 388-
411, 1996. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/adorno/ano/mes/
teoria.htm.
Introdução
Neste capítulo, pretendemos seguir a análise da produção do jornal como
documento na relação com a necropolítica e a produção de jovens pobres e negros
como matáveis, levantando questões acerca das novas formas de controle produzidas
pelo capitalismo contemporâneo e suas implicações sobre a regulação da juventude.
Esta escrita histórica, genealógicas e cartográfica das forças políticas e econômicas
contemporâneas que regulamentam as parcelas juvenis e outros segmentos popula-
cionais é necessária, pois são estas forças que fundamentam as racionalidades do
Diário do Pará na produção de notícias sobre o homicídio juvenil. Os jornais, em
especial, o Caderno Policial com as fotos que são veiculadas constrói regimes de
verdade e modos de regular as existências com vieses seletivos racistas, classistas,
de preconceito de gênero e etaristas. Resistir a estas racionalidades é lutar contra os
intoleráveis do nosso tempo.
nas e não apenas história política. Em terceiro lugar, visando completar os dois
primeiros objetivos, a colaboração com outras disciplinas, tais como a geografia,
a sociologia, a psicologia, a economia, a lingüística, e tantas outras.
A escola dos Annales, como ficou conhecida, pode ser dividida em três fases: A
primeira (1920-1945), em que se destacam a produção teórica de Lucien Febvre e Marc
Bloch, foi marcada pela contraposição de seus membros à história tradicional, dirigida
a uma história política e de eventos (BURKE, 1991). A história factual positivista
dispunha-se a narrar apenas os grandes eventos políticos e a produção biográfica das
grandes personagens, fazia-se a história dos reis e dos marechais. A nova historiografia
francesa propunha-se a lançar a análise do não factual, isto é, investigar os eventos
ainda não reconhecidos como legítimos objetos de estudo (VEYNE, 2008).
No combate a posição positivista, Febvre e Bloch defendiam uma “história
total”, que apreendessem a história não dos fatos políticos, mas das sociedades huma-
nas. Sob a égide do termo “social”, estes historiadores “[...] procuraram demonstrar
que o epíteto ‘social’ significa a apreensão da história do homem na sua totalidade,
ou seja, o homem entendido no seio dos grupos de que faz parte” (SOUZA JÚNIOR,
1988, p. 73). Na segunda fase do movimento, são empregados novos conceitos, como
os de estrutura e conjuntura, assim como novos métodos, como o criado por Fernand
Braudel da história serial das mudanças de longa duração. A visibilidade as longas
durações era mais uma ferramenta de contraposição a esta história episódica, que se
materializava como crônica política dos acontecimentos oficiais (BURKE, 1991).
Após 1968, dá-se início a terceira fase do movimento, caracterizado pela plura-
lidade de abordagens. Enquanto alguns pesquisadores avançaram em direção a uma
história das mentalidades, uns apostavam em uma história quantitativa e outros ainda
se contrapunham a mesma. Destaca-se também uma “viragem antropológica”, isto
é, a aproximação do trabalho historiográfico à antropologia cultural, resultando na
produção de uma história cultural da sociedade. Outra característica desta fase é o
retorno à temática da política (já que nas outras fases do movimento, enfatizavam-se
os aspectos econômicos e sociais na narrativa historiográfica) e o renascimento do
interesse pela narrativa de eventos (BURKE, 1991).
A terceira geração dos Annales, também chamada de História Nova, de acordo
com Araújo e Fernandes (2006, p. 15), lançou “novas perspectivas e conceitos, deli-
mitados, principalmente, pelo esgotamento das concepções traçadas pela Escola
178
dos Annales e pelas mudanças políticas e sociais que marcaram as décadas de 1960
e 1970”. O lançamento das três publicações de Jacques Le Goff e Pierre Nora foi
fundamental para divulgação de novos métodos, novas abordagens e novos objetos
históricos. As novas movimentações e organizações políticas articuladas na emergên-
cia de novos atores sociais (mulheres, negros, trabalhadores migrantes, indígenas e
homossexuais), a partir da década de 60, teciam críticas à história oficial, que excluía
ou minorizava a atuação política destes grupos sociais. Na Inglaterra, neste período,
os historiadores marxistas são os primeiros a escrever uma “história vista de baixo”1
(ARAÚJO; FERNANDES, 2006). Segundo Veyne (2008, p. 27), passou-se a entender
que “os povos ditos sem história” eram, na realidade, “povos cuja história se ignora”.
1 De acordo com Araújo e Fernandes (2006, p. 17): “a expressão ‘history from below’ (‘história vista de baixo’)
foi criada por Edward P. Thompson num artigo publicado em 1996 no suplemento literário do The Times.
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tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 179
direção da crítica a esta soberania do sujeito, objetivo que é mantido, como veremos
posteriormente, com o desenvolvimento da genealogia. Quis, assim, desvencilhar-se
destas práticas históricas: que se valiam da noção de um sujeito constituinte, e cujo
domínio de estudo era explicado a partir de um imperativo econômico, evidenciando
a relação entre uma superestrutura e uma infraestrutura. Não lhe interessava nem a
semiótica, com o uso das análises dos campos simbólicos e das estruturas significantes;
nem a dialética, que com sua lógica de contradição tentava evitar a “realidade aleatória
e aberta” dos acontecimentos históricos (FOUCAULT, 2009a, p. 5). Foucault reconhece
outra mudança na escrita da história e que incide sobre o documento: “a crítica ao
documento”, isto é, a crítica à noção de que no documento está a verdade dos fatos, e
que a partir deles o passado seria encontrado. Neste novo posicionamento da história:
[...] ela considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se
diz a verdade nem qual é o seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e
elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece
séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unida-
des, descreve relações. O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria
inerte através da qual ela tenta reconstruir o que os homens fizeram ou disseram,
o que é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido
documental, unidades, conjuntos, séries, relações (FOUCAULT, 2005a, p. 7).
É apenas com a efetiva expansão das fontes documentais e dos objetos de pes-
quisa, empreendidas pela terceira geração dos Annales, que o jornal ganhou um novo
estatuto nas produções históricas. Se para a tradição histórica prescrevia-se como
Os historiadores narram tramas, que são tantas quanto forem os itinerários traçados
livremente por eles, através do campo factual bem objetivo (o qual é divisível até
o infinito e não é composto de partículas factuais); nenhum historiador descreve
a totalidade desse campo, pois um caminho deve ser escolhido e não pode passar
toda a parte; nenhum desses caminhos é o verdadeiro ou é a História. Enfim o
campo factual não compreenderia lugares que se iria visitar e que chamariam de
acontecimentos: um fato não é um ser, mas um cruzamento de itinerários possíveis
(VEYNE, 2008, p. 45).
e moradores das periferias das grandes cidades menos nos espaços destinados ao
esporte, ao lazer e à cultura, do que nos noticiários policiais. Encontra-se aí rastros
de uma opção que deve ser tensionada. Os questionamentos do historiador frente a
suas fontes documentais lançaram-nos pistas para indagar nosso objeto de pesquisa,
o Diário do Pará: são perguntas referentes tanto ao contexto de produção deste docu-
mento, quanto ao contexto de recepção: a que posição institucional ocupa o produtor
deste documento? A partir de que argumentos sustenta seu discurso? Sobre qual tema
trata e qual não menciona? A que público se destina?
Os documentos em análise, no geral, são compostos por textos verbais e por foto-
grafias. Por ocuparem grande parte das matérias, consideramos importante fazer algu-
De acordo com Zanchetta Jr. (2004), o uso da fotografia na imprensa pode cum-
prir com funções diversas: de entretenimento, quando seu uso faz um recorte pontual
do que se quer noticiar, evidenciando um sentido lúdico da imagem; de descrição,
quando a fotografia ajuda a compor o contexto da notícia, tendendo assim, a retratar
o lugar, os participantes, o modo ou momento em que tal evento aconteceu; o de
narração, quando a fotografia proporciona a identificação do encadeamento e das
consequências do evento noticiado; e de expressividade, quando a imagem por si só
tem a capacidade de sensibilizar o leitor, no geral, as fotos sobre os dramas humanos
(choro, dor e sangue) têm esta função. Em geral, o jornalista fotográfico registra
diversas imagens sobre um único evento, e a escolha da fotografia a ser publicada
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no jornal não está sujeita unicamente à qualidade da imagem, mas à função que se
pretende ressaltar. Ademais:
[...] um mesmo recorte temporal para os saberes ocidentais do século XVI até
o século XIX – Renascimento, época clássica e modernidade -, procura destruir
o mito da existência de um saber sobre o homem em outras épocas que não a
moderna, e demonstra o papel privilegiado que ocupa o homem nos saberes da
modernidade, através do estudo dos nascimentos do humanismo terapêutico psi-
quiátrico, da clínica como conhecimento do corpo doente individual, das ciências
empíricas e da filosofia que instituem o homem como ser empírico transcendental
e, finalmente, das ciências humanas que o representam como interioridade psico-
lógica ou exterioridade social (MACHADO, 1988, p. 176).
2 Esta crise foi gerada por diversos fatores, entre estes a crise no sistema produtivo desencadeada pela
“mudança no paradigma tecnológico”, que foi chamada de “Terceira Revolução Industrial” e a redução da
autonomia dos Estados Nacionais, vinculada ao “intenso processo de internacionalização dos mercados,
dos sistemas produtivos e da tendência à unificação monetária e financeira” (SOARES, 2009, p. 12).
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Mesmo nos países centrais ou periféricos, a adoção de medidas neoliberais tem carac-
terísticas comuns, se no campo econômico este modelo implicou no aprofundamento
da internacionalização da economia e da liberalização do mercado, no campo das
políticas sociais os impactos não foram menores, Soares (2009, p.13) sintetiza estes:
Este novo modelo de gestão das políticas sociais baseia-se numa nova forma
de conceituar a “pobreza”, que, nitidamente, individualiza suas causas, à medida que
esta é associada à falta de competências dos indivíduos em acessar as “oportunida-
des” supostamente oferecidas a todos pelo sistema político e econômico. Ugá (2004)
analisa de maneira detalhada a teoria social de pobreza que fundamenta as ações do
Banco Mundial. A autora afirma que este organismo tem preconizado, por meio de
seus relatórios, uma ordem social em que os Estados tenham uma atuação secundária
no desenvolvimento econômico, configurando-se apenas como um facilitador dos
mercados. Contudo, o BM recomenda também que os Estados atuem nos mercados
de serviço, em que o setor privado não tem interesse em participar, ou seja, “[...] em
prestação de serviços sociais aqueles que não podem pagar por eles (p. 58)”.
Desde 1990, o BM tem incentivado ações de “combate à pobreza”, entendendo
a mesma como “incapacidade de atingir um padrão de vida mínimo” (BANCO MUN-
DIAL, 1990 apud UGÁ, 2004, p. 58). O padrão de vida mínima referido pelo banco
deve ser definido a partir de um cálculo de renda, diferenciada para cada país (logo,
o padrão de vida mínimo de um país europeu é diferente de um país africano). E o
indivíduo incapaz é aquele que, simplesmente, não se mostra competitivo no mercado
econômico ou que não é capaz de prover sua própria renda.
Investir em “capital humano” é a chave para redução da pobreza, na ótica do
Banco Mundial, este defende que o investimento em educação pode resultar em
indivíduos mais competitivos, logo, com mais chances de empregabilidade. Aos
sujeitos que não detém este tipo de capital, recomenda-se aos “países em desen-
volvimento” que executam programas compensatórios e com o foco no aumento de
“capital humano” 3. Desta forma, fortalece o compromisso do Estado, apenas, com
os mais pobres e de maneira pontual (UGÁ, 1990). Os programas de transferência
de renda, carro-chefe das políticas sociais nas últimas gestões presidenciais, é um
exemplo de política compensatória, realizada com o objetivo de retirar parcela da
população da condição de pobreza absoluta para uma condição de pobreza relativa.
3 A teoria do Capital Humano constitui-se no elo entre educação e desenvolvimento econômico. Sob o prisma
do Capital Humano, a educação “se define como a atividade de transmissão do estoque de conhecimento e
saberes que qualificam para a ação individual competitiva na esfera econômica, basicamente, no mercado
de trabalho” (GENTILI, 1998).
190
interessante notarmos a tônica econômica dada pelas Nações Unidas para as ações
voltadas à juventude. Por meio do Programa das Nações Unidas para a Juventude, a
ONU tem conclamado os países em desenvolvimento, onde vivem 87% dos jovens
no mundo, a investir em programas e políticas para este público, afirmando serem
estas medidas essenciais ao desenvolvimento econômico destes países:
Não investir nas crianças e nos jovens provoca custos econômicos, sociais
e políticos substanciais decorrentes dos resultados negativos, como abandono
escolar, entrada no mercado de trabalho precário, comportamentos sexuais de
risco, abuso de drogas, crime e violência. Em muitos países, o prejuízo geral
para a sociedade totaliza uma alta porcentagem do produto interno bruto por ano.
Algumas estimativas mostram que comportamentos de risco evitáveis provocam
prejuízos para a sociedade que chegam a bilhões de dólares. Por exemplo, na Amé-
rica Latina e no Caribe, uma série de comportamentos negativos dos jovens reduz
o crescimento econômico em até 2% anualmente. Estes números não refletem os
custos não mensuráveis, tais como a aflição psicológica, saúde precária, menos
participação cívica ou os efeitos inter-geracionais (ONU, 2010, n.p.).
Grande parte das ações das agências ligadas a ONU conta com o incentivo de
organismos financeiros como o Banco Mundial, que como já frisamos é um órgão que
tem ajudado a capilarizar a racionalidade neoliberal no mundo. A corresponsabilidade
da sociedade na gerência e execução das políticas sociais é também incentivada pelas
Nações Unidas, sob a produção do que se tem chamado de “responsabilidade social”
(LEMOS, 2010). Desta forma, a redução da participação do Estado na condução das
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políticas sociais tem transferido cada vez mais a responsabilidade para organizações
privadas e do terceiro setor. De acordo Abramo (1997), anterior ao próprio enfoque
governamental sobre os jovens, encontram-se inúmeros projetos executados por
organizações sociais que têm este segmento como público prioritário. Projetos, cuja
tônica é a proteção dos adolescentes em situação de “desvantagem social”, oriundos
das “comunidades pobres”, e que desenvolvem ações, ao menos, em duas direções:
ações de promoção da integração social (com o desenvolvimento de projetos como
os de educação não-formal e de profissionalização), que trazem em seu escopo a ideia
de “[...] contenção do risco real ou potencial desses garotos, pelo seu ‘afastamento
das ruas’ ou pela ocupação de ‘suas mãos ociosas’” (ABRAMO, 1997, p. 26).
Considerações finais
Nas páginas policiais do Diário do Pará, a morte aparece como acontecimento,
ao mesmo tempo, impactante, em virtude dos recursos sensacionalistas utilizados
na construção da notícia, e previsível por ser resultado de uma trajetória juvenil que
insistiu em desviar do modelo do bom cidadão (dócil e produtivo), ao enveredar
pelos caminhos da criminalidade e dos vícios. Não à toa, a categoria trabalho é um
demarcador destacado pelo jornal, que opera práticas divisoras. Ao mencionar a
etiqueta-trabalho para identificar os participantes da trama da notícia, o Diário do
Pará classifica e hierarquiza os jovens a partir do modelo normalizado do “cidadão
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Em nosso país, desde o início do século XX, diferentes dispositivos sociais vêm
produzindo subjetividades onde o “emprego fixo” e uma “família organizada”
tornam-se padrões de reconhecimento, aceitação, legitimação social e direito
à vida. Ao fugir a esses territórios modelares entra-se para a enorme legião dos
“perigosos”, daqueles que são olhados com desconfiança e, no mínimo, evitados,
afastados, enclausurados e mesmo exterminados.
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Introdução
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Uma das mudanças mais emblemáticas na cena do parto, provocadas pelo modelo
tecnocrático, diz respeito à posição da mulher no trabalho de parto e no parto:
a medicalização do parto obrigou a mulher a se imobilizar e a se deitar. Com a
mulher deitada na cama, de pernas para cima e abertas, fica claro que o sujeito
no sistema público de saúde passou de 15% em 1970 para 31% em 1980” (PERPÉ-
TUO; BESSA; FONSECA, 1998 apud MAIA, 2010, p. 37), e não parou mais de
crescer. O Brasil apresenta dificuldade de implementar as políticas de humanização
do parto, por múltiplos fatores. Segundo Maia (2010) muitas foram as causas para
que a cesariana fosse sendo incorporada como melhor modelo de parto, entre elas
está o fato de o INPS da época pagar um valor maior para a cesárea; medo por parte
das mulheres sobre a dor do parto; crença que o parto vaginal afrouxa os músculos
da vagina e causa interferência na satisfação sexual; a conveniência da hora marcada;
possibilidade do médico em conciliar sua agenda entre dias de consultório e dias de
cirurgias eletivas. Além disso, há ainda um pré-natal incapaz de preparar a mulher
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para o parto; o não pagamento de analgesia caso seja necessário; uso da cesárea para
efetuar laqueadura tubária e a associação entre parto vaginal e imprevisibilidade, esta
vista como algo negativo, e entre parto cesáreo e segurança.
Em artigo de 2006 citado por Maia (2010), Villar e colaboradores construí-
ram uma amostra estratificada em múltiplos estágios para vinte e quatro regiões
geográficas de oito países de América Latina: Argentina, Brasil, Cuba, Equador,
México, Nicarágua, Paraguai e Peru. Foram utilizados os dados de 97.095 (noventa
e sete mil e noventa e cinco) nascimentos de 120 (cento e vinte) instituições de
saúde selecionadas aleatoriamente de um universo de 410 (quatrocentas e dez)
organizações. A taxa média de cesariana do estudo foi de 33% (trinta e três por
cento), contra um índice maior em hospitais privados: 51% (cinquenta e um por
cento). E os resultados mostraram que há um aumento linear do uso de antibióticos
pós-parto e de morbidade materna severa com o aumento das taxas de cesariana,
bem como aumento do risco de morte fetal e do número de crianças que requereram
internação na UTI por sete dias ou mais.
A OMS recomenda que as taxas de cesariana não ultrapassem 15% do total de
partos. Porém, as taxas globais de cesariana estão muito além, no Brasil, estão em
torno de 40% de todos os partos, e são extremamente desiguais quando se considera
o status socioeconômico das mulheres.
Em um estudo de 2007, financiado pela ANS (Agência Nacional de Saúde), Leal
e colaboradores (apud MAIA, 2010) procuraram identificar os fatores relacionados
à escolha da via de parto pela mulher, nos serviços privados de saúde, considerando
três momentos diferentes da gestação: início da gravidez, fim da gravidez e hora do
parto. No início da gravidez, apenas 30% das mulheres afirmaram preferir uma cesá-
rea, já no fim da gravidez, a proporção se inverteu e 70% das mulheres já referiam
ter decidido pela cesárea. Na hora do parto, 88% das mulheres foram submetidas a
uma cesariana, sendo que 92% delas foram realizadas antes de a mulher entrar em
trabalho de parto. Dessa forma, é notório que existe algo no pré-natal que faz com
que as mulheres mudem de opinião para decidir sobre qual a melhor via de parto, e
a grande maioria acaba optando pela cesariana eletiva.
Mesmo com a orientação da OMS, o Brasil continua realizando as cesáreas
eletivas e isso se atribui, preponderantemente, à natureza do parto humanizado não
ser conciliável com as rotinas extenuantes de trabalho dos médicos, muitas vezes com
partos normais que se demoram por um grande período do dia, não possibilitando a
206
realização de consultas em outro período do dia, visto que um parto normal demanda
mais tempo e atenção da equipe médica.
Estudos sugerem que quando a mulher solicita uma cesárea, tal fato está intima-
mente relacionado com o modelo da assistência prestada: a demanda pela cesárea,
no Brasil, seria uma demanda por dignidade, já que o modelo de parto “normal”
praticado no país é profundamente medicalizado, intervencionista e traumático
(BARBOSA et al., 2003 apud MAIA, 2010, p. 40).
Assim, a mulher opta pela cesárea por achar que é um processo menos doloroso
e solitário, que irá sofrer menos violências obstétricas e que terá um suporte melhor
A partir dos meados da década passada, começou a se distribuir pelo Brasil um modelo
de assistência obstétrica recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que
modifica o olhar do profissional de saúde sobre a parturiente e sua família, trata-se dos
Centros de Parto Normal (MACHADO; PRACA, 2006 apud MAIA, 2010, p. 275).
No Pará, estado de origem da autora, temos apenas uma Casa de parto que fica
na cidade de Castanhal distante a oitenta e um quilômetros da capital Belém. O CPN
(Centro de Parto Normal “Haydee Pereira de Sena”), vinculado à Secretaria Municipal
de Saúde de Castanhal, foi inaugurado em 7 de janeiro de 2015 pela Portaria nº 11/
GM/MS, que estabelece diretrizes para implantação e habilitação de Centro de Parto
Normal no âmbito do SUS.
Ficando habilitado através do programa da Rede Cegonha1, instituído em 2011
pela presidenta Dilma Rousseff. O centro possui funcionamento vinte e quatro horas,
assistência humanizada à gestante e ao recém-nascido durante o pré-parto, parto e
pós-parto. São cinco quartos/leitos, todos com suíte preparados para partos normais,
1 Consiste numa rede de cuidados que visa assegurar à mulher o direito ao planejamento reprodutivo e à
atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério, bem como à criança o direito ao nascimento
seguro e ao crescimento e ao desenvolvimento saudáveis. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/
saudelegis/sas/2017/prt0922_29_05_2017.html.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 209
É preciso dizer que existe uma dicotomia com relação à assistência hospi-
talar ao parto no Brasil: enquanto as gestantes de baixo risco são submetidas a
intervenções desnecessárias, as de alto risco não recebem o cuidado adequado
(OLIVEIRA, 2008, p. 895).
Considerações finais
Para Vendruscolo (2015), o parto e a assistência ao parto passaram da residência
ao hospital, de um evento que envolvia parteiras a um evento médico. Da não medica-
lização à medicalização, do natural a um evento regrado. Com tantas transformações
desenvolvidas para melhor atender a equipe de saúde e a gestante, a parturiente passou
de sujeito a objeto, ou seja, uma pessoa que pouco ou nada decide a respeito de como
o parto será conduzido. Os procedimentos são decididos pelo médico(a), por isso,
há uma mobilização no que tange o processo de humanização do parto, preconizado
pelo Ministério da Saúde, solicitando assistência integral e humanizada à mulher,
como uma tentativa de empoderamento dela, neste momento.
Maia (2010) relata que, no fim do século XIX, os obstetras passaram a empreen-
der campanhas para transformar o parto em um evento controlado por eles e circuns-
crito às maternidades, o que se efetivou na metade do século XX. Observa-se que
antes do advento da obstetrícia foi possível manter uma divisão do trabalho entre
médicos e parteiras, na qual partos “naturais” eram objeto da atenção da parteira
enquanto o médico era chamado a agir somente em casos de complicações.
Além disso, de acordo com Maia (2010), os primeiros partos hospitalares eram
realizados nas enfermarias de mulheres dos hospitais gerais. A criação de hospitais
específicos para a realização dos partos – as maternidades – foi um evento do fim
do século XIX. O que acarretou altas taxas de mortalidade materna relacionadas a
partos hospitalares, na década de 1870, em função da infecção puerperal. Por isso,
as primeiras mulheres a recorrerem às maternidades eram pobres e/ou solteiras, que
o faziam como último recurso.
2 A ocitocina sintética foi desenvolvida nos Estados Unidos, na década de 1950, e é usada até hoje para induzir
partos. Ela é aplicada na veia, com soro, para estimular as contrações uterinas, em casos específicos. A
principal diferença entre a natural e a sintética é que a última não atua no cérebro da mulher.
3 Episiotomia é uma incisão efetuada na região do períneo (área muscular entre a vagina e o ânus) para
ampliar o canal de parto.
4 Acesso em: https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/entrevista/o-nome-e-violencia-obstetrica.
5 Acesso em: https://portal.fiocruz.br/noticia/nascer-no-brasil-pesquisa-revela-numero-excessivo-de-cesarianas.
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violencia de 23 de abril de 2007. Caracas, 2007. Disponível em: https://www.acnur.
org/fileadmin/Documentos/BDL/2008/6604.pdf. Acesso em: 12 set. 2021.
Introdução
O artigo aborda aspectos histórico-antropológicos e educacionais relativos à
memória biocultural e pedagogia griô em contextos amazônicos ao relacionar as prá-
ticas ancestrais, saberes, técnicas e cosmologias amazônicas em territórios físicos e
simbólicos, urbanos e rurais configurados como espaço afro-diaspóricos amazônico.
Estas diversidades, bens culturais materiais e imateriais são compreendidos aqui como
resultados de memórias bioculturais e sabedoriais griôs inerentes às práticas sociais
de reproduções de saberes e conhecimentos reproduzidos historicamente em situações
sociais específicas através da oralidade e memória. Entende-se aqui que este conjunto
de manifestações culturais constituem ferramentas pedagógicas que precisam ser apro-
priadas ao ambiente educativo em espaços escolares e não escolares, instaurados a partir
de saberes das linguagens artísticas, corporidades e simbologias intrínsecas aos modos
de ser, viver, criar, reproduzir e representar das culturas amazônicas.
O artigo está organizado em duas seções: A primeira expõe análises conceituais
com preponderância às reflexões sobre memória biocultural, pedagogia griô e seus
desdobramentos teórico-metodológicos para inflexões epistemológicas alternati-
vas aos processos educacionais em contexto amazônicos. A segunda seção destaca
experiências práticas de reproduções de saberes em espaços afro-diaspóricos como
potencialidades didático-pedagógicas ao processo educacional voltado a pedagogia
diferenciada sensível ao saber local.
1 Historiador. Doutor em Ciências Socioambientais pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade
Federal do Pará (NAEA/UFPA). Professor permanente do Programa de Mestrado Profissional do Ensino de
História da Universidade Federal do Amapá (PROFHISTÓRIA/UNIFAP).
2 Doutor em História pelo programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Pará (UFPA/PPHIST).
Professor da Secretaria de Educação do Pará (SEDUC-PA).
224
3 Boaventura (2009) salienta que a colonialidade produziu divisões cartográficas, cognitivas, políticas e econômicas
caracterizadas por linhas de pensamentos abissais nas quais o norte, ocidental/civilizado/capitalista, controla
recursos simbólicos e materiais sustentados por discursos científicos dominantes, violências e apropriações
sobre o outro lado da linha abissal, o sul, primitivo/marginal/incivilizado caracterizado por territórios e sujeitos
entendidos como despossuídos de ciência e racionalidade. Portanto, ocupam um não lugar na história.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 225
Trata-se, a rigor, da história absoluta. Essa história – que apresenta sem datas e
de modo global, estágios de evolução, é simplesmente a história estrutural. Os
afloramentos e as emergências temporais denominadas em outros lugares “ciclo”
(ideia de círculo), “período” (ideia de espaço de tempo), “época” (ideia de parada
ou de momento marcado por algum acontecimento importante), “idade” (ideia
de duração, de passagem do tempo), “série” (ideia de sequência, de sucessão),
“momento” (ideia de instante, de circunstância, de tempo presente), etc., são
praticamente deixadas de lado pelo griot africano, enquanto expressões possíveis
de seu discurso. É claro que ele não ignora nem o tempo cósmico (estações, anos
etc.) nem o passado humano, já que o que ele relata é, de fato, passado. Mas lhe
é bastante difícil esboçar um modelo do tempo. Ele oferece de uma só vez toda
a plenitude de um tempo (OBENGA, 2010, p. 128).
4 A palavra francesa griot e usada aqui para referir as autoridades populares que reproduzem as tradições
culturais africanas. Na língua africana Bambara são chamados “Dieli”. O nome Dieli em bambara significa
sangue. De fato, tal como o sangue, eles circulam pelo corpo da sociedade, que podem curar ou deixar doente,
conforme atenuem ou avivem os conflitos através das palavras e das canções (KI –ZERBO, 2010, p. 249).
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 227
Por mais útil que seja, o que é escrito se congela e se desseca. A escrita decanta,
disseca, esquematiza e petrifica: a letra mata (grifo nosso). A tradição reveste
de carne e de cores, irriga de sangue o esqueleto do passado. Apresenta sob as
três dimensões aquilo que muito frequentemente é esmagado sobre a superfície
bidimensional de uma folha de papel (KI –ZERBO, 2010 , p. 39).
Com efeito, incorporam -se ao artista, e seu lugar é tão importante na mensagem
que, graças às línguas tonais, a música torna -se diretamente inteligível, trans-
formando -se o instrumento na voz do artista sem que este tenha necessidade de
articular uma só palavra. O tríplice ritmo tonal, de intensidade e de duração, faz-se
então música significante, nessa espécie de “semântico-melodismo” de que falava
Marcel Jousse. Na verdade, a música encontra -se de tal modo integrada à tradição
que algumas narrativas somente podem ser transmitidas sob a forma cantada. A
própria canção popular, que exprime a “vontade geral” de forma satírica e que
permaneceu vigorosa mesmo com as lutas eleitorais do século XX, é um gênero
precioso, que contrabalança e completa as afirmações dos “documentos” oficiais.
O que se diz aqui sobre a música vale também para outras formas de expressão,
como as artes plásticas, cujas produções são, por vezes, a expressão direta de per-
sonagens, de acontecimentos ou de culturas históricas (KI-ZERBO, 2010, p. 42).
5 Para Toledo e Barrera-Bassols (2009), existe uma distribuição de saberes entre os agentes que compõe o
grupo saberes coletivos e saberes individuais de acordo com a posição que ocupam no grupo, gênero e idade
que interferem na experiência histórica acumulada, as experiências e interações entre os membros de uma
mesma geração e gerações anteriores ou posteriores e a experiência particular de cada membro do grupo.
228
6 O projeto de Extensão coordenado pelo Prof. Dr. Raimundo Diniz e organizado com as colaborações de
discentes e docentes do curso Pedagogia/Campus Santana da Universidade Federal do Amapá – UNIFAP,
enseja mapear histórias, memórias e saberes relativos à história local/regional e suas interfaces com o
processo educacional, ensino de História e as dinâmicas sócio culturais Amazônicas. Intenta revelar os
atravessamentos da história e cultura africana, afro-brasileira e afro-indígena, consoantes as Leis nº 10.639/03
e 11.645/08. Neste contexto de pandemia do covid-19 tem concentrado atividades remotas de entrevistas
e organização de eventos acadêmicos com representantes de comunidades locais, identidades coletivas,
pesquisadores, docentes e discentes de cursos de graduação e pós-graduação.
7 Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996 que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 229
Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Ou seja, não é uma lei separada, confere a própria LBD, lei federal.
Torna obrigatório que nos conteúdos escolares de todo o currículo formal devem problematizar a História
e Cultura Afro-Brasileira. Por fim, o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional
da Consciência Negra’. A Lei nº 11.645/08 atualiza e completa a Lei nº 10.639/03 ao tornar obrigatório a
inserção da questão indígena no processo formativo escolar.
8 Para Klaus Eder (2003), o Estado Nacional é um mecanismo de domesticação dos sentimentos coletivos,
que atua unindo o povo em uma nação. As identidades coletivas relativizam esta unidade/nação e primam
pela autodefinição, pelas situações sociais específicas e territorialidades que conformaram sujeitos,
identidades e territórios. Portanto, contrariam as padronizações, homogeneizações, discursos e sentimentos
universalizantes.
230
terras indígenas ocupam 8,37%; glebas do estado 12%; glebas transferidas ao estado
10,05%; as áreas tituladas 11% e os assentamentos (federais, estaduais ou munici-
pais) que detêm 14,88% das terras do estado, o que corresponde a 2.125.326 hectares
(SILVA; FILOCREÃO; LOMBA, 2012).
Nesse sentido, convém refletir: quem define as configurações administrativas
do espaço geográfico? Os sujeitos e suas dinâmicas socioculturais locais ganham
centralidades nestes desenhos geográficos? Quais as funções de sensos, mapas e
museus? A história, memória e saberes são elementos definidores do delineamento
geográfico do processo de ocupação territorial?
Nestas terras tradicionalmente ocupadas, cultivam-se saberes e memórias ances-
9 Estas informações foram coletadas durante a “Caminhada das Bandeiras” ao conduzir uma atividade de
campo com a turma do curso de Pedagogia/UNIFAP no contexto da disciplina Educação para as Relações
Étnico-Raciais em 2016.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 233
11 As narrativas locais informam que o primeiro governador do Território do Amapá, capitão Janary Nunes,
projetou a urbanização da cidade de Macapá redefinindo espaços de ocupações, deslocando famílias para
áreas periféricas da cidade ao construir edificações públicas e residências para o funcionalismo e residência
governamental. As famílias que antes ocupavam o local hoje conhecido como praça Barão do Rio Branco,
foram desalojadas para o lugar hoje conhecido como bairro do laguinho.
12 O Marabaixo é uma dança ritmada por tambores e cantorias que recuperam experiências de parte da
história e cultura negra do Amapá, são memórias ancestrais que registram tradições populares negras
que gradualmente passaram a ocupar a região hoje conhecida como Mazagão Velho demandada dos
idos de 1771.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 235
Considerações finais
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REFERÊNCIAS
AMAPÁ. Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas do Estado do Amapá.
2015. Disponível em: http://www.sepi.ap.gov.br/interno.php?dm=961. Acesso em:
21 jun. 2021.
Introdução
Neste texto, temos o intuito de nos havermos com algumas inquietações que se
iniciaram a partir de um desejo anterior às próprias pesquisas de mestrado e douto-
rado, de trabalhar com o diálogo entre psicanálise, cultura e política. Mantidas estas
inquietações em estado de latência, as pesquisas acadêmicas que se seguiram nos
deram base epistemológica da prática clínica para alçar agora este voo. Entendemos
que a articulação entre os campos psicanalíticos, cultural e político se faz ainda mais
pertinente no atual momento que vivemos, tanto a nível global, mas especialmente,
com infeliz destaque, a nível nacional, do que pretendemos nomear como política
negacionista. Para tanto, nossos exames vão na direção de recorrer à psicanálise
como uma possível chave de leitura a contribuir com questões políticas urgentes
e seus efeitos subjetivos relacionados a outras épocas históricas, mas que têm se
intensificado no momento que vivemos, de obscurantismo e negacionismo evidentes.
Assim sendo, visamos neste trabalho construir algumas investigações iniciais
em torno da noção de negacionismo, indagando-nos: pode a denegação freudiana
contribuir com a discussão relacionada aos ditos e práticas negacionistas?
Por conseguinte, o método utilizado para a escrita deste capítulo foi uma revisão
de literatura e especialmente aquele próprio da psicanálise, nas palavras de Freud
1 Este capítulo consiste em uma das versões de nosso projeto de Pós-Doutorado intitulado “Algumas leituras
psicanalíticas sobre a noção de negacionismo: a contribuição do conceito de denegação freudiana”, que
está sendo desenvolvido sob a supervisão do Prof. Dr. Paulo Endo, no Instituto de Psicologia da USP, SP.
2 Psicóloga, psicanalista, professora colaboradora do Departamento de Psicologia e Psicanálise da
Universidade Estadual de Londrina (UEL) e professora da Universidade Nove de Julho; doutora em psicanálise
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com cotutela pela Université Côte d’azur (França).
Membra do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise Seção Rio de Janeiro. Desenvolve pesquisas nos campos
da Psicanálise, cujos principais eixos temáticos são: psicopatologia psicanalítica, metapsicologia, direitos
humanos, deslocamento forçado e questões migratórias.
240
(1996, p. 152): “a psicanálise faz em seu favor a reivindicação de que, em sua exe-
cução, tratamento e investigação coincidem”. Neste sentido, consideramos o imbri-
camento entre o social e o singular enunciado por Freud em alguns de seus textos,
especialmente na sua análise dos grupos (FREUD, 2019c), e relido por Lacan (1998c).
Tomamos a clínica enquanto acesso ao sujeito do inconsciente, isto é, a prática
de investigação psicanalítica decorrendo da clínica, o que não implica necessariamente
seu contexto de pesquisa, mas que ela exige do pesquisador-analista a execução de
sua pesquisa através da função definida pela clínica enquanto dispositivo (ELIA,
1999). É neste lócus de escuta que é possível que advenha o sujeito do inconsciente,
presumindo o desejo do analista-pesquisador e o ato analítico.
[...] pensar o que a clínica psicanalítica permite para além dela mesma não pode
e não deve ser um demérito, mas sim a evidência da vitalidade da psicanálise em
revelar-se continuamente apta a revisar-se e a seus fundamentos, revelando-se,
desse modo, avessa ao seu próprio acabamento, ainda que atraída por sua inte-
gridade (ENDO, 2008).
pela antropóloga Adriana Dias, que vem observando há algumas décadas os chamados
discursos de ódio como centro da vida social.
Tomamos estes dois fatos como exemplos de fenômenos contemporâneos que
abarcam a temática negacionista em suas dimensões política e social, apostando
que a psicanálise, nosso principal instrumento de trabalho pode contribuir com as
inquietações que possuem como núcleo temático a possível colaboração freudiana do
termo denegação com a elucidação do fenômeno do negacionismo, tal como outras
indagações relativas a esta que se materializarão ao longo deste projeto.
Durante o percurso da especialização, do mestrado e do doutorado, as questões
de pesquisa visaram investigar a temática do diagnóstico diferencial em psicanálise,
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5 Trabalho de pesquisa que será publicado em formato de livro ainda neste ano pela editora Contracapa com
o título “Todo mundo é louco, ou seja, delirante: novas hipóteses e uma concepção desde Freud”.
6 Pesquisa parcialmente financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), no ano de 2017, na modalidade de bolsa sanduíche.
7 DIE Verneinung (la dénégation). Tradução e comentários: Pierre Thèves e Bernard This. Paris: Le Coq-
Héron, 1982.
242
frente àquilo que é da ordem do traumático e o que Lacan articula enquanto prática
segregativa ao advento do discurso da ciência moderna. Estes dois pontos nos possi-
bilitam tirar consequências teóricas até o momento, tornando-se até mesmo báscula
para seguirmos em outros horizontes de pesquisa. A loucura aparecia no ambulatório
e na enfermaria daquele Hospital com todos os seus, muitas vezes, barulhentos efeitos
psíquicos; bem como ruídos de ordem social por meio de segregação.
Lembramos aqui de uma paciente, naquela época, internada já havia algumas
décadas, que parecia conjugar ambos os efeitos, representando um caso paradigmático
do hospital. Era conhecida por todos que lá trabalhavam, apenas por seu histórico
de agressões físicas, como a interna mais hostil do Instituto. Algumas de suas res-
Com relação ao segundo ponto, situemos esta possível relação entre a noção de
segregação e o movimento negacionista. Juntamente com a pandemia de covid-19
(Coronavirus Disease [Doença do Coronavírus]-19), antes e depois da produção e
disponibilização das imunizações, fenômenos nomeados pela grande mídia e também
pela comunidade científica de “negacionismo” emergiram a nível mundial. O Brasil
entrou neste movimento com funesto destaque dentre os países que possuíam líde-
res negacionistas, juntamente com a Bielorrússia, Nicarágua e Turcomenistão, que
foram reconhecidos como Estados negacionistas no que dizia respeito à pandemia
de covid-19 (KLAJNMAN, 2021).
Ainda nesta aposta de articular a segregação com o negacionismo, podemos
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O negacionismo
Takimoto (2021), em seu livro “Como dialogar com um negacionista”, traz um
ponto de vista interessante ao realizar um experimento informal: a partir de sua preocu-
pação com o meio ambiente envia aos seus amigos “carnívoros”, considerados progres-
sistas e não negacionistas, pesquisas sobre a temática ambiental dando destaque a duas
vertentes das mesmas, uma em que relaciona diretamente o aquecimento global com
o consumo de carne (Revista Nature, assinado por 23 cientistas e ONU)10, e outra que
sinaliza que a indústria pecuária não possui conexão direta com o aquecimento global,
cuja fonte foi retirada do Portal do Agronegócio11. Advertida da pequena amostra da sua
pesquisa, bem como da necessidade de ampliá-la, Takimoto traz uma conclusão hipotética
sobre a universalidade do negacionismo. A autora afirma: “todos somos negacionistas
quando o assunto nos interessa, ou melhor, nos desinteressa” (2021, p. 28), visto que,
ao mexer com algo venerável para si, as pessoas consideraram apenas as pesquisas que
não lhe retirariam de seu lugar de conforto. Neste caso, as que endossavam que elas
poderiam continuar comendo carne, uma vez que, de acordo com aquele argumento, tal
consumo não era o principal fator que contribuía com o aquecimento global.
Para ir mais a fundo na questão, Takimoto (2021) recorre a explicações
cognitivistas de cunho psicológico, que elucidam as contradições e incoerências
avestruz contra as origens da doença” (FREUD, 2018b, p. 157). Neste mesmo escrito
a impossibilidade de escutar o seu próprio enunciado fica evidente na explicação
freudiana, que acaba por se desviar ainda mais daquilo que ele denomina de “fazer
as pazes com o recalcado” (FREUD, 2018b, p. 157), ou seja, com o que é da ordem
do insuportável, e por este motivo, é preciso que se mantenha recalcado, negado.
Resgatando a comparação freudiana entre o arqueólogo e o analista (FREUD,
2018b), baseado na noção de construção e reconstrução de certas instâncias arrui-
nadas, uma questão que se coloca, visando a nossa temática principal, é se podemos
estabelecer uma relação entre estes discursos e práticas sociais negacionistas e o que
poderíamos denominar de recalcado social. Em outras palavras, se o que, a partir
de uma política de avestruz, insiste na produção de sintomas, também nos oferece
respostas no que diz respeito à dimensão social e política do sofrimento. Uma pista
para possíveis respostas a esta questão está na distinção que Freud realiza entre as
duas profissões, considerando que o fim para o arqueólogo consiste na reconstrução,
enquanto para o psicanalista construir é um trabalho liminar, porquanto sua função
está na possibilidade de conferir lugar ao que, de certa forma, já está presente, mesmo
que sem ter sido notado (KLAJNMAN, 2021).
Nesta mesma direção, destacamos também, a relevância histórica da segunda
Guerra Mundial, e mais precisamente, de um tempo posterior a ela; sendo, portanto,
no mínimo curioso que o início do movimento negacionista coincida com uma das
consequências; talvez a mais disseminada – com 193 signatários e traduzida em mais
de 500 idiomas –; que visava impedir a repetição das práticas atrozes daquela Guerra, a
saber: a constituição da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. A partir
desta aproximação, indagamos: haveria alguma articulação possível entre o movimento
negacionista, tão presente atualmente, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos?
Pretendemos, ainda, como fechamento deste tópico apresentar uma consideração
enquanto uma primeira análise hipotética para essa pergunta, a título de confirmação,
mas que certamente exigiria uma futura investigação mais profunda. A saber, tal como
a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o negacionismo pode ser pen-
sado como uma expressão de uma sociedade que deseja tamponar as suas fraturas,
inequidades e, talvez não por coincidência, esse evento tenha se situado historicamente
com a constituição do Estado de Bem-estar Social, negando as crises do capital?
como hostil. Após esse rearranjo, é restabelecida a coincidência entre essas duas
polaridades: Sujeito – eu – com o prazer. Mundo exterior – com o desprazer
(anteriormente com a indiferença) (FREUD, 2017, p. 55, grifo nosso).
24 “O Eu-prazer (Lust-Ich) originário quer, como desenvolvi em outro lugar, introjetar-se tudo o que é bom e
jogar fora (Werfen) tudo o que é mau” (FREUD, 2018c, p. 316).
250
25 Lacan (1969-70/1972) teorizou sobre ao menos 4 discursos, além do Discurso Capitalista, a partir do que
Freud apresenta sobre as três operações impossíveis: governar, educar e analisar. Lacan desenvolveu
respectivamente o Discurso do Mestre, do Universitário e do Analista, acrescentando outra operação
impossível: a de se fazer desejar, a que ele constituiu como Discurso da Histérica.
252
REFERÊNCIAS
ARBEX, D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
ENDO, P. C. A memória como campo de lutas e os direitos humanos como seu hori-
zonte tardio e imediato. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, n. 8, p. 58-78,
2019b. Disponível em: https://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/revista/
Revista_CPFn08.pdf. Acesso em: 3 jan. 2022.
FREUD, S. Carta 139 [69] [1897]. In: FREUD, S. Neurose, psicose, perversão. São
FREUD, S. Estudo sobre a histeria: Josef Breuer e Sigmund Freud Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud, v. 2).
LACAN, J. ...ou pior [1971-1972]. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro:
Zahar, 2003. p. 544-549.
THÈVES, P.; THIS, B. Die Verneinung (la dénégation). Paris: Le Coq-Héron, 1982.
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo problematizar as relações entre ciúme e
feminicídio a partir da investigação da peça Otelo, o Mouro de Veneza, de William
Shakespeare, sendo nossa leitura inspirada nas reflexões feministas.
O teatrólogo foi batizado em 26 de abril de 1564 e faleceu no dia 23 de abril
de 1616 aos 52 anos. Foi um dramaturgo, poeta e autor respeitado em sua época e
permanece aclamado até os dias atuais, atravessando principalmente os campos das
comédias e das tragédias. Sua obra Otelo foi escrita e apresentada pela primeira vez
entre 1603 e 1604, se enquadrando como uma tragédia (BLOOM, 2001). Embora
adiante apresentemos a peça, propriamente, é importante entender, para quem a
desconhece, que sua narrativa gira em torno de quatro personagens:
Otelo, um general mouro que serve ao reino de Veneza, Desdêmona, sua esposa,
Cássio e Iago, seu tenente e seu suboficial, respectivamente. Em linhas gerais, Otelo
promove Cássio de soldado à tenente. Isso desperta a inveja em Iago, pois ele almeja
o posto. Ressentido, arquiteta um plano de aproximar-se do general. Depois que eles
se tornam amigos, pouco a pouco, Iago passa a instigar em Otelo a suspeita quanto
a fidelidade matrimonial de Desdêmona, como se ela estivesse traindo Otelo com
Cássio. O plano do suboficial atinge seu ápice quando enciumado, Otelo procura sua
esposa para exigir retratação, todavia, acaba a matando em seu próprio quarto, asfi-
xiada. No final, o plano de Iago é descoberto. Otelo, quando percebe que a suspeita de
infidelidade por parte de Desdêmona não era verdadeira e que ele havia assassinado
ela de maneira “injusta”, comete suicídio sob o corpo da esposa. Iago termina preso.
Dito isso, acreditamos que este clássico da literatura inglesa possibilita reflexões
importantes à nossa atualidade sobre a violência contra as mulheres e o controle sobre
o corpo feminino e como isso aparece como expressão da relação afetivo-sexual entre
homens e mulheres, ou, ainda, como faceta do amor romântico.
A peça é considera um marco na cultura inglesa, tendo sido assim reconhecida à
época da sua estreia. Para Enéias Farias Tavares (2007), a tragédia se diferencia entre as
258
demais obras shakespearianas, já que se configurou como uma “obra adequada a todos
os níveis intelectuais e sociais, daqueles que pagavam entre um a cinco xelins para
assistir ao espetáculo desejando talvez um bom divertimento até os de gosto artístico
mais requintado” (TAVARES, 2007, p. 30). O professor doutor argumenta que em
Otelo estão presentes elementos como lutas, intrigas, discursos, guerras, romances e
violências, enfim, elementos que fizeram da peça quando estreou um sucesso “extre-
mamente popular e riquíssima do ponto de vista crítico” (TAVARES, 2007, p. 30).
Quando se trata da referida obra, precisamos reconhecer que estamos diante
de um texto que encontra repercussão e vivacidade mesmo após quatro séculos. Em
1922 foi feita a primeira versão cinematográfica da peça e, desde então, foram feitas
1 Disponível em https://jornal.usp.br/cultura/professor-mostra-as-varias-versoes-de-otelo-de-shakespeare/.
Acesso em: 19 nov. 2019.
2 Disponível em: https://blog.estantevirtual.com.br/2016/11/03/pesquisa-revela-que-shakespeare-e-mais-
popular-no-brasil-que-no-reino-unido/. Acesso em: 19 nov. 2019.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 259
persegue e mata esposa a tiros e se mata em seguida; homem mata esposa e filha e
comete suicídio em Chapecó; homem mata esposa e comete suicídio em São Gon-
çalo (RJ); homem mata a ex-mulher e se suicida na Grande SP3. Repetimos, todas
as notícias são variações sobre o que Otelo ilustra e encarna.
Por isso, decidimos pela referida peça de Shakespeare quando pensamos nas
relações entre ciúme e feminicídio a fim de problematizar a violência contra as
mulheres, as desigualdades de gênero e como isso se desdobra na compreensão do
amor romântico. Tais questões representam uma problemática bastante expressiva,
engendrada em um imaginário social e cultural de opressões que envolvem homens e
mulheres, embora em escalas distintas, que se estabeleceu há tempos e ainda persiste.
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O feminicídio no Brasil
O termo feminicídio tornou-se presente no cotidiano, conforme os debates
sobre as relações de gênero, as violências contra as mulheres e suas vicissitudes se
aprofundam na sociedade. Torna-se importante, para estudo e discussão sobre o tema,
uma limitação do conceito segundo rigor acadêmico:
O conceito de femicídio foi utilizado pela primeira vez por Diana Russel em 1976,
perante o Tribunal Internacional Sobre Crimes Contra as Mulheres, realizado
em Bruxelas, para caracterizar o assassinato de mulheres pelo fato de serem
mulheres, definindo-o como uma forma de terrorismo sexual ou genocídio de
considerar o ciúme como uma de tais ferramentas de controle presente nesses dados.
Isso então revela o quanto tal desigualdade de gênero nas relações afetivo-sexuais
está para além das questões socioeconômicas, pois se pode observar que, mesmo em
países desenvolvidos, onde tais índices são mais elevados, os números de violências
contra as mulheres e de feminicídio persistem (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2019).
sujeito e o atrela fortemente ao seu objeto de desejo, ligada a uma necessidade imediata
de se estar com a pessoa amada, de maneira visceral, conflitando com as obrigações
do cotidiano. Logo, sob a perspectiva da ordenação e dos deveres sociais, tender à
desobediência provocada por esse sentimento é visto como algo “perigoso” e, portanto,
não reconhecido como alicerce fundamental para o casamento (GIDDENS, 1993).
O amor romântico, por outro lado, antes do final do século XVIII, resgata uma
noção de afeto entre companheiros vinculado à responsabilidade de ambos zelarem
pela família e/ou propriedade – porém, considerando a divisão dos papéis de gênero
que restringiam as mulheres aos cuidados da família e do lar, o dever de fomentar
o amor era atribuído majoritariamente a elas. Nesse tipo de amor, predomina-se
uma concepção divina que, apesar de incorporar elementos do amor apaixonado,
alinha-se com os valores cristãos da época, situando-se entre a liberdade e autos-
satisfação (GIDDENS, 1993).
Dessa forma, no século XVII da Europa pré-moderna, essa ideia de amor român-
tico alinhava-se também com a base sobre as quais os casamentos se sustentavam:
a da situação econômica. As classes mais pobres utilizavam o casamento como um
método de organizar o trabalho agrário, enquanto classes elitistas dispunham de maior
liberdade sexual – que representava uma expressão de poder – e, de certa forma,
transgrediam tais normas com maior facilidade (GIDDENS, 1993).
Diante disso, é possível visualizar que o relacionamento afetivo-sexual de Des-
dêmona e Otelo rompe com certas normativas da época, mas ao mesmo tempo atrela-
-se ao amor romântico no sentido da subordinação da mulher e da crença na virtude
do outro enquanto uma pessoa “especial”, apoiando-se neste outro e projetando nele
suas idealizações (GIDDENS, 1993). O ciúme romântico insere-se nesse contexto
enquanto uma pluralidade de entendimentos, de manifestações e de intensidades. Tal
sentimento desenvolve-se, muitas vezes, quando há a percepção de que o parceiro
não está tão estreitamente conectado com o próprio indivíduo da maneira que este
gostaria (CANEZIN; ALMEIDA, 2015).
Apesar da aparente característica atemporal do ciúme, há diversas nuances na
forma em que se relatam os padrões sociais que são impostos a homens e mulheres
e a consequente noção de infidelidade e desigualdade entre os gêneros demonstram
características peculiares e próprias de seu contexto. Como nota Baroncelli (2011)
sobre tais diferenças já descritas por diversos autores, é esperado perdão ou tolerância
262
por traições masculinas, enquanto a traição feminina pode levar a graves consequên-
cias, como abandono e morte.
Segundo Hirigoyen (2006), o comportamento ciumento evidencia uma neces-
sidade de se ter controle sobre outra pessoa, negando-a sua alteridade. Para a autora,
o ciúme excessivo demonstra um desejo de possuir o outro totalmente, de forma a
ter sua atenção e presença exclusivas. Diante da impossibilidade de tal simbiose, a
frustração interna é apaziguada ao acusar a pessoa de infidelidade, mesmo que não
tenha nenhum fundamento na realidade.
Procedimentos metodológicos
O presente artigo trata de uma pesquisa bibliográfica qualitativa de caráter
exploratório, que objetiva aproximar-se do problema com o intuito de investigá-lo,
compreendê-lo e levantar hipóteses, ampliando as ideias sobre a temática (GIL,
2008). A partir disso, foi realizada uma análise literária da obra Otelo, o Mouro de
Veneza, utilizando trechos das falas da personagem Otelo, agrupados em núcleos de
significação do discurso, que nos permitam interpretar, a partir dos referenciais teó-
ricos utilizados no trabalho, mecanismos de ciúme e violência psicológica cometidos
envolvendo o casal principal – característico de relacionamentos abusivos.
Desse modo, foi utilizada a obra de Shakespeare traduzida por Marilise Rezende
Bertin e John Milton (2008). Também foi realizado um levantamento bibliográ-
fico buscando materiais que contivessem informações sobre os diversos contextos
de violências em relacionamentos afetivos-sexuais entre homens e mulheres e sua
relação com o ciúme, de forma que houvesse possibilidade de correlação com as
personagens da obra Shakespeariana com o intuito de realizar uma análise qualitativa
sobre a peça para verificar qual sua relevância para a compreensão das violências
de gênero na atualidade.
A análise literária pode ser considerada como um processo de desmonte de
um texto literário, com o intuito de conhecer os componentes de sua estrutura. Por
ser uma peça de teatro, o texto é estruturado em cenas em que os diálogos entre as
personagens ocorrem, logo, o desmonte da obra foi organizado a partir da transcrição
das cenas segundo tais diálogos que serão agrupadas em núcleos de significação do
discurso – ou núcleos temáticos –, os quais serão analisados (AGUIAR, 2007).
Dessa forma, considerando os termos “análise” e “literária”, evidencia-se uma
tentativa de aproximação do conhecimento de um determinado objeto de estudo –
nesse caso, a obra de Shakespeare, enquadrada na categoria de texto literário, como
um escrito de ficção (MOISÉS, 2007). Em conjunto com a análise da obra, foi impor-
tante, para dar continuidade ao estudo, relacionar com os livros e artigos científicos
selecionados, pois a partir dessa metodologia de análise, foi possível destrinchar
os pontos da obra relevantes para o trabalho e explorá-los com base nos materiais
utilizados e, assim, propor reflexões sobre o problema de pesquisa.
264
rando a traição como real e suas reações tornam-se cada vez mais violentas, imersas
em um sentimento de intensa agressividade. Isto aponta para o fato de que, a nível
cognitivo, o personagem se esforça para demonstrar-se inatingível e virtuoso, mas
seus sentimentos não estão de acordo com tal postura. Logo, Otelo mostra como
verdadeiramente a suposta infidelidade da esposa o afeta, quando conversa com Iago:
“Vá embora! Você me torturou com aqueles pensamentos [...]. Não tinha ideia que
ela me traia. Nunca vi ou suspeitei, então não me feria [...]. Ah, para sempre, adeus
à paz de espírito! Adeus à alegria!” (SHAKESPEARE, 2008, p. 122).
Precisamente nesse ponto da trama, Otelo passa a verbalizar ameaças violentas
em direção a Iago, muito relacionadas ao papel de investigador que o mesmo assumiu:
“Vilão, é bom provar que minha esposa é uma puta! Certifique-se disso. Dê-me prova
que posso ver. Caso contrário, prepare-se para sentir minha fúria!” (SHAKESPEARE,
2008, p. 122). Desde já, Otelo nos fornece indícios de comportamentos violentos
que, embora direcionados a Iago nesse momento, apontam para a possibilidade de
um desfecho trágico para seu casamento.
Iago continua a apresentar supostas provas da traição de Desdêmona e Otelo
aceita sua sugestão de asfixiar a esposa, após ter sido dominado pelo ciúme. Ao ser
apresentado à prova de Iago sobre a suposta traição de Desdêmona, Otelo demonstra
sentir-se, naquele momento, enfurecido: “Meus pensamentos de vingança fluem como
um rio violento e nunca mais voltarão ao amor. Eles fluem para a grande vingança até
devorar tudo” (SHAKESPEARE, 2008, p. 128). Agora direcionando suas ameaças à
Desdêmona – e também a Cássio, ao pedir que Iago se encarregue de tirar sua vida
–, aparenta estar certo de que se utilizará da violência para resolver esse conflito:
“Maldita seja, puta lasciva! Ah, maldita seja ela. Venha comigo. Vou pensar num jeito
de matar o belo demônio” (SHAKESPEARE, 2008, p. 128) Esse sentimento se inten-
sifica quando Ludovico, parente de Desdêmona, chega à ilha em posse de uma carta
do Duque de Veneza solicitando a Otelo que volte à pátria e deixe Cássio assumir o
comando em seu lugar. O general agride a esposa após um comentário despretensioso
e mesmo sob o testemunho de Emília alegando a inocência de Desdêmona.
Nesse momento, Iago jurara lealdade a Otelo e o vingaria assassinando Cássio. Em
segredo, almejara tirar a vida de Rodrigo também, por acreditar que ambos poderiam
arruinar seus planos. Isto, no entanto, não deu muito certo, Rodrigo morreu, porém Cás-
sio permaneceu vivo, apesar de ferido. Posteriormente, Otelo, em busca de sua esposa,
encontra-a em seu quarto e, após acusá-la de traição, a asfixia (SHAKESPEARE, 2008).
266
Resultados e discussão
Segundo Moreira, Boris e Venâncio (2011), a violência é um fenômeno resul-
ela secará; deixe-me cheirá-la enquanto ainda está no galho. (Ele a beija) Ah, res-
piração deliciosa, que quase me convence deixar de ser justo e não matá-la. Mais
um beijo. Se você continuar tão maravilhosa quanto agora quando estiver morta,
irei matá-la e beijá-la depois. Mais uma vez, e este é o último beijo. Tão doce e tão
fatal. Devo chorar, mas preciso ser cruel também. Essa justiça divina é dolorosa
quando realmente se ama – ela está acordando (SHAKESPEARE, 2008, p. 192).
Considerações finais
O feminicídio, atualmente, permanece como uma das principais causas de mor-
talidade feminina. É possível observar que, ao longo dos séculos – em especial, a
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 271
partir do século XVII, dado o período em que a obra foi escrita –, o fenômeno das
violências contra mulheres permanece sendo perpetuado, apesar das mudanças sociais,
econômicas, culturais e políticas. Embora a peça de Shakespeare retrate um contexto
de outra época em um outro país, ainda são nítidas as aproximações que podem ser
feitas com a realidade brasileira contemporânea do século XXI. Isso, sem dúvidas,
nos reafirma a importância do tema, levando em consideração as assimetrias nas
relações de gênero em nossa sociedade.
Neste contexto, o ciúme é inserido enquanto um elemento em que muitas vezes,
dentro da relação, é utilizado como motivo e justificativa para controlar, ameaçar,
humilhar, aviltar e até mesmo agredir física e psicologicamente a sua(seu) parceira(o)
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REFERÊNCIAS
AGUIAR, W. M. J. A pesquisa em Psicologia Sócio-histórica: contribuições para o
debate metodológico. In: BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G. M.; FURTADO,
O. (org.). Psicologia Sócio-histórica: uma perspectiva crítica em Psicologia. 3. ed.
São Paulo: Cortez, 2007.
COSTA, N.; GOMES, H.; ALMEIDA, T.; PINHEIRO, R. S.; ALMEIDA, C.; GON-
DIM, L.; SILVA, M.; CAMPOS, R. S.; SILVA, S. M.; LIMA, V. Violence Against
Women: Can “Jealousy” mitigate the significance of violence? Estud. psicol., Cam-
pinas, v. 33, n. 3, p. 525-533, set. 2016.
GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
tal a partir de dois pontos de partida: o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Movimento
da Luta Antimanicomial (MLA). Para tanto, construiu-se um percurso que atravessa
questões históricas, uma vez que menciona as mudanças decorrentes da construção
de tal campo: 1. teóricas ao pontuar as características do que sustenta a atuação em
Saúde Coletiva e, sobretudo, em Saúde Mental; 2, por fim, alguns desafios para a
sua maior consolidação na contemporaneidade.
Se propor a delimitar os principais aspectos que compõem o campo de investi-
gação e assistência da Saúde Mental é, em primeiro momento, congregar no mesmo
discurso, componentes do fenômeno humano em suas dimensões sociais, culturais e
entre outras. Não à toa, as problematizações em Saúde Mental ultrapassam os espaços
de discussões psiquiátricas, psicológicas e psicanalíticas e fazem laço com outros
discursos do campo da Antropologia, da Comunicação e da Política, por exemplo.
Torre e Amarante (2001) afirmam que a maneira pela qual uma sociedade
lida com a loucura está diretamente ligada à visão de sujeito que está em voga no
momento. Os autores, como exemplo, citam que entre os séculos XVIII e XIX, quando
a razão e a produtividade eram as lógicas imperavam entre as relações sociais, a
dita “loucura” era, então, tomada como o contraponto da moral vigente: a desrazão
e a improdutividade. Dessa forma, a estratégia de enfrentamento que embasou suas
“práticas terapêuticas” caminhou rumo à segregação dos sujeitos ditos “loucos”.
Outro ponto que pode ser elucidado sobre evolução histórica do que se apreende
enquanto formas de encarar a loucura encontra-se em Foucault (2017) quando este
demonstra que a institucionalização da loucura não parte de um movimento à assis-
tência desses sujeitos, mas provém da intenção de segregá-los socialmente, esta
subsidiada pela ideia de que esses sujeitos seriam perigosos e violentos.
Em contribuição, uma afirmação de Torre e Amarante (2001, p. 2) pode ser
usada como exemplo. Os autores afirmam que:
1 Mestrando em Psicologia pela UFPA. Graduado em Psicologia pela Universidade da Amazônia (UNAMA);
Pesquisador do Grupo de Pesquisa Capital Social e Cultural (UNAMA/CNPq).
276
Tal formulação abre o diálogo com outros campos, disciplinas e condições mate-
riais e forças espirituais da nossa sociedade que se manifestam na desigualdade
social, nos mecanismos de opressão, nos modos de vida e seus efeitos nos proces-
sos de subjetivação. Estes são aspectos a serem considerados diante dos problemas
que nos assolam e que necessitam ser enfrentados no campo social; expressam-se,
também, por sofrimentos de várias ordens, frequentemente, adjetivados como
“doenças” de vários tipos (do corpo, da mente, da sociedade etc.) que precisam
ser superados e/ou evitados como modo de nos aproximarmos de bem-estares ou
daquilo que se denomina “saúde para todos‟.
sofrimento mental. Ou seja, é uma organização coletiva que trabalha em prol de uma rup-
tura com concepções de violência, seja essa física ou simbólica para com estes sujeitos.
O que se pode compreender mediante as contribuições dos autores citados acima
remete ao segundo ponto proposto a ser discutido aqui: os desafios da atuação em
Saúde Mental, aspectos que precisam ser melhor amarrados na produção teórica e
no campo prático, visto que ambos não se dissociam. Entretanto, em paralelo, ocor-
reram movimentos de patologização da Saúde Mental, como se as configurações do
adoecimento mental estivessem totalmente dissociadas dos determinantes sociais
que atravessam esse processo (REY, 2011).
Eis que surge um primeiro desafio: o de circunscrever o que seria, de fato, essa
REFERÊNCIAS
BARBOSA, G. C. G.; SILVEIRA, J. P.; LEBREGO, A. M. Saúde Mental no Brasil:
da lógica manicomial à reforma psiquiátrica. In: DAL MOLIN, R. S. Saúde em foco:
temas contemporâneos. São Paulo: Editora Científica Digital, 2020. v. 2. Disponível
em: https://www.editoracientifica.org/books/isbn/978-65-87196-23-7. Acesso em:
10 out. 2020.
longe de intervir por métodos que visassem o tratamento da loucura, além da exclu-
são social, este hospício atuava enquanto depósito desumanizado de sujeitos inde-
sejados (MOREIRA, 1905 apud ODA; DALGALARRONDO, 2005). Em Belém,
foi inaugurado o Hospício para Alienados Juliano Moreira em 1892, nos limites da
cidade (NASCIMENTO, 2014), com interesses baseados na eugenia (MONTEIRO,
2011). Desse modo, o que fosse considerado “feio” deveria ser afastado do olhar. Aos
loucos, o limite da cidade. No que se refere às práticas institucionais de tratamento
psiquiátrico no estado do Pará, em consonância com as discussões da área ocorridas
na Europa, entendia-se a loucura como perigosa à sociedade. Assim, intervenções
pautadas em violações de direitos humanos eram legitimadas, uma vez que “loucos”
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Podemos citar ao menos três grandes hospitais em que houve denúncias gra-
víssimas de violação de direitos humanos: Hospital Vera Cruz (Sorocaba-SP),
Hospital do Juquery (Franco da Rocha-SP) e Hospital Colônia de Barbacena
(Barbacena-MG). Foram identificadas mortes causadas por maus tratos, fome,
frio, violência e doenças, bem como superlotação, ausência de documentos e
prontuários desatualizados ou perdidos.
crise da DINSAM que se seguiram outros episódios que vieram dar visibilidade e
mobilizar cada vez mais setores de trabalhadores da saúde mental, estudiosos, usuá-
rios dos serviços, seus familiares, incluindo o debate na imprensa. Destaca-se neste
cenário a atuação de Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que:
É impossível falar sobre a história única sem falar do poder. Há uma palavra,
uma palavra malvada, em que penso, sempre que penso na estrutura do poder no
mundo. É “nkali”. É um substantivo que se pode traduzir por “ser maior do que
outro”. Tal como os nossos mundos econômico e político, as histórias também se
definem pelo princípio do “nkali”. Como são contadas, quem as conta, quando são
contadas, quantas histórias são contadas, estão realmente dependentes do poder
(ADICHIE apud GONÇALVES, 2019, p. 47).
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, S. Roda Viva: Silvio Almeida. [Entrevista concedida a] Programa Roda
Viva. 22 jun. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=L15AkiN-
m0Iw. Acesso em: 10 nov. 2020.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 56. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
Introdução
A violência sexual é um problema que aflige a sociedade e a cultura brasilei-
ras, além de inúmeras outras agressões propagadas relacionadas a ela, tais como de
gênero, classe, raça e contra a população LGBTQIA+. Nesse contexto, é necessário
averiguar o desamparo de dois grandes grupos que permaneceram sem direitos até
1988, o que intensificou seu estado de vulnerabilidade social: crianças e adolescentes.
De acordo com o Boletim Epidemiológico (2018), entre 2011 e 2017, foram
notificados no Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) 184.524
casos de violência sexual no Brasil: 58.037 (31,5%) contra crianças e 83.068 (45,0%)
contra adolescentes. No caso de crianças, 74,2% das vítimas eram do sexo feminino e
45,5% eram negras (de 86% como total, pois em 14% este dado foi ignorado); 69,2%
das violências ocorreram na residência; em 81,6% o agressor era do sexo masculino
e em apenas 6,5% era desconhecido (destaca-se que em 37% era familiar). Já no caso
de adolescentes, 92,4% das vítimas eram do sexo feminino e 55,5% eram negras (de
89,9% como total, pois em 10,1% este dado foi ignorado); 58,2% das violências ocor-
reram na residência; em 92,4% o agressor era do sexo masculino e em apenas 21,8%
era desconhecido (destaca-se que em 38,4% havia vínculo intrafamiliar – familiares
e parceiros íntimos). É importante ressaltar outro trecho deste documento: “apesar
do elevado número de casos de violência sexual registrados no Sinan, estima-se que
haja subnotificação”. Em resumo, há uma concentração de 76,5% dos casos notifica-
dos nesses dois cursos de vida, com maior incidência na região Sudeste, e em maior
frequência ocorridos na residência da vítima e cometidos por agressores conhecidos.
humano e para a apropriação teórica, por meio de uma ação partilhada que estabelece
as relações entre sujeito e conhecimento. Além disso, o indivíduo não só internaliza
as formas culturais, como também as transforma; logo ele não é um mero produto do
contexto social, mas sim um sujeito ativo que pode intervir na criação do meio em
que vive (REGO, 1998). Nessa interação, a educação pode atuar como um caminho
de reflexão e reconstrução de normas socioculturais que causam dor e sofrimento
para grupos socialmente vulneráveis.
Este estudo visa, portanto, a identificar e a analisar leis e documentos que se
referem à cidadania e à sexualidade, a partir de 1988, nos quais as políticas públicas
para crianças e adolescentes se alicerçam, com foco na prevenção à violência sexual
e nos grupos socialmente mais afetados, com uma análise de gênero, de classe, de
raça e da população LGBTQIA+. Apresenta como objetivos específicos: a) identificar
e analisar documentos federais que apresentam diretrizes e orientações relativas à
cidadania e à educação sexual; b) identificar e analisar documentos municipais da
Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME SP) que se referem a essa
temática; c) produzir banco de dados. Busca-se, pois, conhecer o lugar social e ins-
titucional em que se situa a educação sexual, e apontar lacunas e necessidades que
a trajetória dessa temática na cultura brasileira e paulistana revela, com a produção
de contribuições para as futuras gestões políticas brasileiras, com base na análise
das anteriores, a fim de combater a violência sexual e as demais associadas a ela.
Método de pesquisa
Trata-se de pesquisa documental por meio de revisão bibliográfica (BOGDAN;
BIKLEN, 1994) dos documentos nos quais se alicerçam as políticas públicas do
país e do município de São Paulo voltadas para o tema da educação sexual. Por ser
um problema estrutural, tem-se como hipótese que o discurso utilizado nessa for-
mação (ou ausência dela) é uma forma de controle e de manutenção da opressão de
determinados grupos, porque fundamenta a construção psíquica de crenças e valores
sobre sexualidade.
No âmbito da esfera nacional, este trabalho objetiva identificar e analisar como
a educação sexual aparece nas leis e nos marcos legais, representados pela Constitui-
ção Federal de 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (1996),
294
identificar o tema principal dos documentos focais, foi feita uma leitura dinâmica nas
partes em que apareciam as palavras-chave. Para identificar o tipo de documento, ou
foi analisado o título, ou a estrutura e a finalidade do arquivo.
Ao longo do processo, foi construído um Banco de Dados com essa documen-
tação sobre o tema no âmbito das políticas públicas, que contribuirá com o Portal
de Orientação à Queixa Escolar do Instituto de Psicologia da USP para acesso e
pesquisas futuras. Os documentos do acervo do Arquivo Digital estão organizados
em: palavra-chave, título, código, ano, sinopse, observação e prefeito do período; os
do CEDOC e do Acervo Digital em: palavra-chave, título, tema ou citação, subpasta,
ano e gestão municipal.
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Resultados
Documentos nacionais
Há extensa base legal nacional para subsidiar políticas públicas sobre o tema, e a
primeira década dos anos 2000 foi a de maior efervescência nessa produção, principal-
mente com a criação do “Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Contra
Crianças e Adolescentes” (PNEVSCA). Este documento foi usado como base nesta
análise, já que, além de ser o documento nacional mais direcionado a essa temática,
contém um histórico do tema e seus marcos normativos, nacionais e internacionais.
Com isso, foi possível investigar de forma mais diretiva diretrizes e orientações relativas
à cidadania e à educação sexual nos documentos nacionais. Neste Plano, a violência
sexual (abuso e exploração) é expressa como “todo ato, de qualquer natureza, atentatório
ao direito humano e ao desenvolvimento sexual da criança e do adolescente, praticado
por agente em situação de poder e de desenvolvimento sexual desigual em relação a
criança e adolescente vítimas”.
Em um contexto internacional, é relevante apontar dois documentos: Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos (1948) e Declaração Universal dos Direitos da
Criança (1959). Com a primeira, houve uma universalização de direitos a todos os
seres humanos; com a segunda, houve uma enfatização desses direitos às crianças.
A partir da Constituição Federal de 1988 (CF/88), foram estabelecidos “princí-
pios da proteção integral dos direitos da criança e do adolescente”, com destaque ao
enfrentamento da violência sexual no art. 227: “A lei punirá severamente o abuso,
a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”. Segundo o Plano,
antes disso, a violência sexual contra crianças e adolescentes “se configurava como
uma violência velada, pouco discutida e pouco assumida pelas políticas públicas”.
Documentos municipais
Análise Quantitativa
Quantidade de documentos (269) por gestão: Erundina (9); Maluf (16); Pitta
(7); Marta (65); Serra (10); Kassab (66); Haddad (64); Dória (3); Covas (0); Ricardo
Nunes (16); Anterior à 1988 (13). De acordo com esses dados, é possível perceber
maior concentração de documentos nas gestões de Kassab, Marta e Haddad.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 299
Quantidade de documentos focais (62) por gestão: Erundina (3), Maluf (14),
Pitta (1), Marta (18), Kassab (5), Haddad (2), Nunes (11) e anterior à 1988 (8).
Conforme a figura abaixo, é possível perceber alguns contrastes: a gestão do Maluf
aparece com uma visão mais biológica da temática; a da Marta aponta uma discussão
mais ampla do assunto; a do Kassab é a única com documentos específicos sobre
violência sexual; e a do Nunes aponta grande quantidade de documentos de formação
em comparação com as demais, com diversidade de temas e maior ênfase em gênero,
diversidade e discriminação.
g) Cadernos (22) e livros (10): Marta (6), José Serra (2), Kassab (3), Haddad
(20), anterior a 1988 (1);
h) Propostas de formação (5): Ricardo Nunes (5);
i) Conferências, congressos, encontros, mostras, seminários e fóruns (10):
Erundina (1), Maluf (1), Pitta (1), Marta (3), José Serra (1), Kassab (3);
j) Documentos informativos e reflexivos (29) e subsídios (7): Erundina
(3), Maluf (1), Pitta (2), Marta (16), Kassab (3), Haddad (9), anterior
a 1988 (2).
Considerações finais
Nacionalmente, há ampla base legal para subsidiar políticas públicas para o
enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Foi possível perce-
ber grande efervescência do tema na primeira década dos anos 2000, com a efetivação
de inúmeros mecanismos de proteção à criança e ao adolescente com direcionamento
para prevenção dessa violência, por exemplo: o Plano Nacional de Enfrentamento da
Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, o Comitê Nacional de Enfrenta-
mento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e a Comissão Intersetorial
de Enfrentamento da Violência sexual contra Crianças e Adolescentes.
No âmbito municipal, também há muitos documentos sobre a temática ampla,
no entanto apenas dois sobre violência sexual como uma questão trabalhada de forma
focal, o que pode contribuir para sua invisibilidade, com o não falado atuando na
naturalização do problema, no controle social e na manutenção de preconceitos,
desigualdades e violências. De toda forma, uma das grandes virtudes desta pesquisa
302
De acordo com Furlanetto et al. (2018), embora haja base legal, em seu estudo
“nenhum trabalho encontrado apresentou ações de educação sexual que se aproxi-
massem do preconizado, principalmente no que diz respeito à transversalização nos
diversos níveis de ensino”. É apontado, ainda, que “a maioria das ações foram classi-
ficadas como projetos pontuais que não fazem parte de uma prática escolar contínua”,
seja pela falta de acesso aos documentos oficiais, seja pela falta de capacitação. É
concluído que há medo de uma “antecipação dos comportamentos sexuais, além de
“receio de provocar conflitos com as famílias”, “crenças sexistas e religiosas de pais
e professores”, “receio de represália da comunidade escolar” e “desconforto para lidar
com a temática”.
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Para Campos e Urnau (2021), não é possível “esperar que as instituições esco-
lares sejam espaços de proteção e de enfrentamento da ESCA [Exploração Sexual de
Crianças e Adolescentes] se os profissionais que nela atuam não têm conhecimento
aprofundado sobre a temática e nem sequer sabem reconhecer suas causas e con-
sequências, muito menos que se trata de uma grave violação de direitos humanos”.
É demonstrado que “os direitos sexuais não são compreendidos na perspectiva dos
direitos humanos na escola”, e que a instituição não compreende “seu papel no
enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes”. Isso é agravado
com tentativas constantes de segmentos políticos e religiosos que convocam altera-
ções legais para impedir o diálogo sobre gênero e sexualidade no ambiente escolar, o
que reforça uma “visão conservadora machista, adultocêntrica e heteronormativa da
sexualidade, contribuindo para a violação de direitos do público infantil e juvenil”.
Portanto, Furlanetto et al. (2018) consideram essencial a “capacitação, tanto de
professores, quanto de profissionais da área da saúde” como uma estratégia para a
“transformação de padrões sexuais discriminatórios” e para “o cultivo de uma cultura
de prevenção em saúde no ambiente escolar”, o que convoca a Psicologia Escolar
para atuação, já que possui profissionais qualificados para atuar com estudantes,
pais e responsáveis. Além disso, pode proporcionar uma mobilização no cotidiano
escolar, com uma formação continuada com a instituição e com a equipe pedagó-
gica – “agentes de normalização dos comportamentos de ordem sexual, mesmo que
a educação formal em sexualidade não ocorra”. A educação sexual precisa, pois, ser
incluída como “prática regular e sistematizada”. Campos e Urnau (2021) apontam
a necessidade de transformar o ambiente escolar “em um espaço de pensamento
crítico”, que construa e promova uma “cultura de prevenção à violência sexual e de
afirmação dos direitos sexuais infantojuvenis”.
Para concluir, conforme o PNEVSCA (2013), é necessária uma “inserção das
escolas em ações de prevenção”, além de uma intervenção em rede, com articulação
de ações, instituições e políticas públicas intersetoriais para combater o contexto mul-
tidimensional da violência sexual. Para isso, é essencial a mobilização de “todos os
segmentos da sociedade na formulação, execução e avaliação de um plano municipal
de ação para o enfrentamento”, bem como de ações fruto de uma política nacional,
que possibilitem uma apropriação da sexualidade enquanto dimensão do desenvol-
vimento humano que precisa ser valorizada no trabalho educativo, a fim de superar
barreiras e informações baseadas em estereótipos e preconceitos.
304
REFERÊNCIAS
BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação. Porto:
Porto Editora, 1994.
Introdução
A educação consiste em um cenário onde movimentos sucessivos acontecem em
termos de encontros e desencontros no tocante ao ensinar e aprender. Neste cenário,
indagações emergem, validando, excluindo ou subvertendo a ordem do que se ensina
e do que se aprende, dando a esta condição – a de se questionar acerca de encontros
e desencontros – uma base reflexiva que nem sempre vinga em termos qualitativos.
A constituição da capacidade da reflexão atrelada à possibilidade de se pensar
criticamente é um processo do qual se deve cuidar e manter em vigência através do
estabelecimento de relações que busquem a real compreensão do conteúdo trabalhado,
desvelados os véus da ambiguidade e da ambivalência inerentes às relações humanas,
mesmo a relação ensino-aprendizagem. De acordo com Bauman (1999), a ambiguidade
tem atravessado as relações, dotando de inconsistência a transmissão do que se desejar
comunicar, sustentando o abismo já tão presente entre o fato e a narrativa do fato.
Esse abismo é amplificado pela vigência de ideologias as quais, a seu turno, dão voz
a discursos fascistas, que são postos em curso por ideias pré-conceituais, sendo a edu-
cação não compromissada com a qualidade um terreno fértil para essa disseminação.
Inerente à educação enquanto processo, há aqui situações/condições educacio-
nais que burlam os elementos propiciadores do encontrar-se com a autenticidade, ou
da busca pela verdade através do pensamento teórico. O excesso de desvelo quanto
ao exercício de um pragmatismo mais e mais acentuado limita a capacidade reflexiva,
porque aborta a possibilidade de zelar pelo isolamento de fatores, levando as massas
pragmáticas a estabelecerem, cada vez mais, comparações ineficientes e superficiais
no tocante aos assuntos que estaria em pauta para a reflexão, sustentando relações
ideológicas. Sem o isolamento de fatores, há um comprometimento definitivo na
construção da capacidade de pensar-se criticamente. Segundo Adorno:
O “frágil capital cultural” perdura em meio às ideias mal organizadas que trans-
formam, por sua vez, ilusões em verdades e que reinscrevem uma educação de apa-
rências, resultando em uma formação isenta de qualidade, constando de profissionais
nem sempre hábeis no lidar com aquele que é nosso bem mais precioso: o material
humano. Educar é também rever permanentemente o próprio capital cultural, e tirar
este exame das relações especulares, onde buscaríamos, enquanto reflexo de nossas
reflexões, nossas elaborações e apropriações.
Ora, se existe essa necessidade, se de fato predomina esse consumismo espe-
cular caracterizado junto à educação, logicamente seu reflexo no social é notório. A
vanguarda hoje é ser diferente; mas ser diferente é ser igual, para poder pertencer,
para poder se identificar. Conforme Augé:
Se o conceito de anormal trata daquele que se desvia de normas e estas são cons-
tantemente variáveis, trata igualmente daquele ou daquela que gera surpresa ou
inquietação. Seria o que se comporta diferente, o que mora de maneira diferente,
o que come de maneira diferente, o que vive de maneira diferente, o que possui
hábitos e costumes diferentes (VEIGA-NETO, 2001, p. 111).
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 311
Podemos chegar à rápida conclusão de que quase tudo que não está inserido no
padrão cultural de normal para aquela pessoa será tachado como anormal, tudo que
é anormal, quase sempre não é bem-vindo. O incômodo emerge do fato de que esse
conceito, de tão amplo, abarca uma imensa massa humana dos sem-emprego, dos
sem-teto, dos sem-terra, dos sem-cidadania, dos sem-educação, dos sem-saúde, dos
sem-perspectivas. Acrescentemos a esses grupos aqueles que não estão enquadrados
em nenhum dos grupos definidos a priori como anormais, mas vivem em uma con-
dição que os coloca em sintonia com eles, deparando-se com as mesmas mazelas e
carecendo dos mesmos direitos. A privação não só econômica, mas principalmente da
atenção, da civilidade, do respeito, do exercício espontâneo e autônomo da dignidade
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humana parece ser uma marca constitutiva desses sujeitos (VEIGA-NETO, 2001).
Os primórdios de relações fascistas podem ser observados nesse contexto.
Goffman (1959), ao tratar do estigma como uma forma de discriminação, utili-
za-se de duas categorias: a) a condição de desacreditado; e b) a condição de desacre-
ditável. A condição de desacreditável sugerida por Goffman (1959) diria respeito ao
indivíduo o qual não demonstra uma “qualidade diferencial manifesta e que não mereça
importância especial” (GOFFMAN, 1959, p. 220). “Quando um indivíduo se apresenta
dos outros, consciente ou inconscientemente projeta uma definição da situação, da
qual uma parta importante é o conceito de si mesmo” (GOFFMAN, 1959, p. 221).
Goffman (1959) também afirma que a organização da sociedade se dá através da
valorização de um indivíduo que possua certas características sociais, sendo assim suas
“marcas” dentro do contexto social deve ser moralmente aceito, da mesma forma o indiví-
duo que possua ou mesmo aparente ter tais característica aja como tal. Então a sociedade
tem como obrigação moral valorizar e tratar o indivíduo que exerce tais características.
Este autor ainda esclarece que o indivíduo não precisa ser o que ele não aparenta ser, se
ele não parece ser o que não é não tem a necessidade de fingir ser o que não é assim não
terá o tratamento dado a quem ele na realidade não é (GOFFMAN, 1959).
Os estereótipos poderiam sofrer rupturas, porém, tais rupturas não poderiam ser
julgadas pela sua frequência. Existem formas para que essas rupturas sejam prevenidas,
e existem também formas de se diminuir os efeitos das contradições que não se pode
evitar. A diplomacia se dá na tentativa do indivíduo de conservar a situação projetada
no outro, e quando as práticas defensivas se somam com a diplomacia, é organizada e
atuada uma forma de se manter a impressão de que o indivíduo passa perante os outros.
Dentro do grupo, os membros esperam que o indivíduo ignore os seus sentimen-
tos, fazendo com que o mesmo haja da forma aceita pelo grupo; na realidade isso ocorre
de forma simples, porque todos do grupo também ignoram os seus próprios sentimen-
tos para vivenciar o desejo aceito e criado pelo próprio grupo (GOFFMAN, 1959).
Erving Goffman (1959) afirma igualmente que as pessoas são categorizadas
pelas outras; essa categorização já tem início no primeiro contato entre a nova
pessoa e o grupo, e as mesmas são formuladas de acordo com o grupo social que o
novo membro está conhecendo. O autor citado exemplifica que quando uma pessoa
nos é apresentada nós observamos segundo categorias e atributos a partir dos quais
criamos uma identidade social para essa pessoa, de maneira exigente e, muitas
vezes, sem percebermos.
312
essa seria a tradição do que é certo, ou do que poderia ser chamado de moral, seria
um auto egoísmo obediente, não poder ser como a tradição pede, mas tem que se
obrigar a ser, caso não seja seria imoral ou talvez conseguisse algo a mais, criaria
uma nova moral a ser seguida, mas isso era difícil e perigoso.
expressa ódio e raiva sem explicações e conceitos cabíveis de análises. Faz se neces-
sário entender que o mesmo vem de uma construção cultural e social, sustentada por
ideologias. Conforme Fernandes e Costa (2009):
O outro passa a ser um intruso que precisa ser combatido, ele é diferente do
eu social, diferente do que o social prega de como aceitável, assim a sociedade do
eu o exclui para se proteger, resistindo a qualquer mudança e temendo o novo. “É
importante, antes de prosseguir, verificar que a criação de uma sociedade ética, livre
de preconceitos, somente será possível, a partir do momento em que se reconhecer
o Outro como Nós.” (FERNANDES; COSTA, 2009, p. 22).
O sociólogo Octavio Ianni, em seu livro “Raças e classes sociais no Brasil”,
explica que o preconceito racial é composto de ideologias que distinguem os grupos
segundo as raças, em uma competição de privilégios sociais, reforçando assim os
atos preconceituosos. Quando pensamos nisso, observamos uma classe favorecida
por privilégios, e outra não, já que estamos em uma sociedade onde a ideologia do
branco é aceita, traduzindo assim como estagnação ou medíocre o crescimento das
ideologias da raça negra. Em síntese, a discriminação, as barreiras, os estereótipos
organizados em ideologias raciais operam como componentes ativos recorrentes num
sistema societário que, em conformidade com a estrutura de dominação vigente, deve
ser preservado, ainda que a custo da saúde das relações sociais justificadas por questões
políticas e econômicas cuja leitura feita pelo social é ideológica (IANNI, 1966, p. 64).
Ianni (1966) ainda relata:
bem dividida, pois cada qual julga estar tão bem-dotado dele, que mesmo os mais
difíceis de se contentar em outras coisas, não costumam desejar tê-lo mais do que já
têm” (DESCARTES, 2007, p. 21).
Para Crochik (1997), o preconceito é apontado como desvio da razão (tam-
bém chamado de “má consciência” ou “irracionalidade”). Nesse caso, o preconceito
também aparece como produto da irracionalidade da sociedade atual, visto que esta
produz indivíduos dissociados de si mesmos e que não se identificam com diferentes
seres humanos. Se não há identificação do sujeito com os demais seres humanos, esses
se tornam alvos fáceis do preconceito pela projeção de fatores negativos sobre eles.
De acordo com Crochik (1997), “À medida que a contradição entre socie-
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autoritárias de uns frente a outros. Um exemplo disso são os ditados e piadas populares
sobre diversas minorias, que colocam o “outro” como objeto de preconceito quando
relatam que “preto correndo é ladrão, e parado é vagabundo”.
Logo, a discussão do preconceito, segundo moldes da patologia e do distúrbio
emocional, postula o preconceito como forma hegemônica de adaptação à sociedade.
Preconceito é ação imediata, sem reflexão, que expressa a fragilidade do indivíduo
frente às suas próprias experiências, demarca defesas e paralisias na relação com o
outro e reproduz adaptações frente ao preconceito dominante na sociedade. Nessa
sociedade, é frequente a incorporação do homem como objeto de suas relações sociais
e não como sujeito das mesmas, o que facilita ainda mais a disseminação, adaptação
diz: raciocinais tanto quanto quiserdes e sobre o que quiserdes, mas obedecei!)”. Há,
por toda parte, restrição da liberdade de ação e de reflexão.
No entanto, apesar de o preconceito não ser algo exclusivo ou recente na socie-
dade atual, tem apresentado dimensões e características amplamente assustadoras
nesse século. Para Hobsbawn (1995, p. 122), “o fim do século XIX introduziu a
xenofobia de massa, da qual o racismo – a proteção da cepa local pura contra a con-
taminação, e até mesmo a submersão, pelas hordas invasoras subumanas – tornou-se
expressão comum”.
Adorno e Horkheimer (1985) ainda descrevem a frieza e a indiferença com
que os homens vivem suas relações na atualidade. É comum indivíduos encon-
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Considerações finais
O preconceito é a valoração negativa que se atribui as características da alte-
ridade. Implica a negação do outro diferente e, no mesmo movimento, a afirmação
da própria identidade como superior/dominante. Mas isso indica que o preconceito
é possível onde existe uma relação social hierárquica, onde existem comando e
subordinação e racionalização do outro. Quem manda atribui valores à sociedade,
define o que é bom e o que é ruim. Aqueles que obedecem são alvo de atribuições
identitárias que os desvalorizam, especialmente, a seus próprios olhos. Para os que
obedecem trata-se de lutar contra uma autoidentificação negativa, mudando os valores,
transmudando as características ditas vergonhosas em características que orgulham.
Isso aparentemente permite quebrar a dialética do amo e do escravo, ao transformar
o escravo em senhor, isto é, em alguém que define valores na sociedade.
Mas na verdade institui uma nova dinâmica de sujeição e comando. Novos
valores instituídos como normas e novas figuras jurídicas que permitem mencionar
318
e punir o preconceito abre o caminho para a expansão de novos valores sociais. Mas
vale lembrar que a punição ao ladrão não evita que os roubos aconteçam, tanto quanto
a punição ao assassino não impede que se decrete morte aos outros. Porém, o apoio
jurídico pode estar disponível para quem o solicitar.
A modernidade implicou a pretensão de racionalização da sociedade. Isto é,
a aplicação de regras gerais e universais para a compreensão de fatos particulares
e dos indivíduos. O sistema jurídico, como normas genéricas passíveis de serem
aplicadas em casos particulares para enquadramento legal, traduz esse processo de
racionalização. Mas essa gaiola de ferro burocrática levou tanto ao desencantamento
do mundo quanto a sua desumanização. Esta última é representada nas interdições
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
IANNI, O. Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
MARTINS, C. B. Ensino pago: um retrato sem retoques. São Paulo: Global, 1981.
Introdução
Ó homens superiores, o pior que há em vós é: não aprendestes a dançar como se
deves dançar – indo além de vós mesmos! Que importa se malograstes? Quanta coisa
é ainda possível! Então aprendei a rir indo além de vós mesmos! Erguei vossos cora-
ções, ó bons dançarinos! Mais alto! E não esqueçais o riso tampouco! [...] Apenas
na dança sei falar o símile das coisas mais altas (NIETZSCHE, 2011, p. 141-281).
1 Valéry (2011b) postula que, quando o corpo está em movimento ou em ação, ele instala um modo de “ser
no mundo”. A partir daí ele desenvolve a teoria dos quatro corpos: o corpo biológico, o que os outros veem,
o corpo racional e o quarto deles a corporeidade.
322
necessidade humana de resistir na vida (DELEUZE, 1999), sendo esse a sazão por
onde o artista cria. A dança é uma necessidade no corpo do bailarino, e como arte, tem
a potência de criar no corpo a função de “liberar a vida lá onde ela está aprisionada”
(DELEUZE, 2002, p. 37). Garaudy (1980) considera a dança como:
A tarefa do cartógrafo é dar língua aos afetos que pedem passagem, dele se espera
basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às
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tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 323
linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possíveis para
a composição das cartografias que se fazem necessárias. O cartógrafo é antes de
tudo um antropófago (2006, p. 23).
O olhar que meu olho mira e que me olha e que me despedaça para se juntar
em mim, são os olhares dos espelhos quebrados e seus milhares de reflexos que
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Para chegar próximo à saúde de si, entramos em contato com as linhas traçadas
nos corpos-dançantes das bailarinas do Btca, uma rede complexa de sentidos, a partir de
324
Digamos que a disciplina é o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo
é com o mínimo de ônus reduzida como força “política”, e maximalizada como
força útil. O crescimento de uma economia capitalista fez apelo à modalidade
específica do poder disciplinar, cujas fórmulas gerais, cujos processos de submis-
são das forças e dos corpos, cuja “anatomia política”, em uma palavra, podem
ser postos em funcionamento através de regimes políticos, de aparelhos ou de
instituições muito diversas (FOUCAULT, 2000, p. 182)
É neste contexto que este trabalho traça pistas sobre o que pode um corpo-dan-
çante (SPINOZA, 2009), descrevendo os efeitos da dança na produção de saúde
mental, a partir da vivência com 5 (cinco) bailarinas que fazem parte do BTCA.
Convidamos assim, o leitor e a leitora, a pensar este corpo que dança em suas múl-
tiplas formas, idades, raças, flexibilidade; pensar as formas de resistência destes
corpos-dançantes; identificar as construções que vivificam e as que paralisam os
processos de construção e constituição dessas mulheres/bailarinas como sujeitas de
sua singularidade. Aqui, entraremos em fluxos diversos, onde suas potências de agir
são diminuídas e aumentadas todo tempo (SPINOZA, 2009). Entrechocaremos com
essa atitude humana de afetar e sermos afetados pelos encontros (CHAUÍ, 2011), de
experimentar um dançar de sensações com o BTCA.
Metodologia
Desenho de estudo: Este trabalho foi desenvolvido a partir do método qualita-
tivo, onde o pesquisador-observador utilizou como ferramenta a corpografia, ou seja,
um modo de trafegar pela subjetividade de um corpo em experiência com os afetos,
espaço e tempo e com tudo o que faz parte do seu ambiente de existência, determi-
nâncias físicas e simbólicas (FERREIRA, 2011). Um palco-território-corporeidades.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 325
O território institucional desse estudo foi o Balé do Teatro Castro Alves (BTCA).
No primeiro instante foi necessário entrar em contato com o Teatro. A partir das
mediações para efetuar a pesquisa, foi iniciado um vínculo entre pesquisador e diretor
de arte do BTCA, aproximação que tornou possível pensar como seria a chegada do
pesquisador no território. Essa corpografia foi dividida em duas etapas, que durou
entre o mês de agosto e setembro de 2018, contabilizando o total de 5 encontros. A
pesquisa foi aprovada pelo Conselho de Ética em Pesquisa CEP2 em 10/07/2018.
A Primeira etapa aconteceu durante quatro encontros, momento em que foram
feitas observações de como funcionavam os ensaios das bailarinas, onde emergiam
pistas do que acontecia durante as tardes na sala de ensaio do Teatro com o Balé.
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2 CAAE 87792518.5.0000.5544
3 Filósofo moçambicano, que, entre seus livros publicados, destacamos “Movimento total: o Corpo e a dança”
e “Metamorfose do Corpo”.
326
que pudessem trabalhar nas discussões. Os conceitos que utilizamos como guias
analíticos do território foram os seguintes: Saúde de si, de Parpinelli e Fabiano
(2006); Acontecimento/entrechoque, de Deleuze (1998); e Arte, de Deleuze e
Guattari (1997). Foram também utilizados os conceitos de Corporeidade, de Valéry
(1980), e Dança, de Garaudy (1980). Além da leitura de artigos identificados na base
de dados da SciELO e PePSIC acerca da temática: cartografia social, corpografia,
saúde mental. Algumas pistas foram seguidas nesse território corpográfico explorado.
Pista serendipidades
afetadas com e pelo dançar. Como esse velho no novo e novo no velho me afeta, como
meu corpo se posiciona, se desloca, descola ou gruda com essa cena:
Parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar
mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar,
328
Pista coalescência
Para criar uma dança, ou para sair do lugar sensório-motor, a bailarina faz
junções de cada etapa que passou com seus corpos, para que possa produzir um
acontecimento no presente. Coalescência equivale segundo dicionário Michaelis
(2019) é “aderência ou junção de partes ou tecidos que se encontravam separados”.
Passa por trajetos cheio de saberes, onde os limites e os excessos habitam, passa
por velocidades e lentidões, garantindo ao corpo o tempo do dançar. É justamente
esse tempo que transita pela dimensão da música, via que incute no corpo a tensão,
o não saber, o novo, que em alguma medida junta e se separa ao se afetar com as
notas, os sons, os ritmos.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 329
Há algo nessa aderência que provoca no corpo uma elaboração, ou seja, que pro-
duz um saber: a música adere ao corpo, e o corpo dança para dar lugar à música, esse é
o efeito de um corpo coalescente no processo que subjetiva a música em movimento.
Porém, haja vista que o corpo coalesce para expandir, a música também coa-
lesce para poder habitar o corpo, como o movimento de crescimento de uma gota
d’água quando incorporada com outra. Esse movimento descrito parece de alguma
ordem despretensioso, mas vale experimentar colocar um músico e um bailarino ao
encontro, e logo algo de um faz desejo de caber no outro.
A música anima o corpo que se põe ao dançar, ela faz o movimento sair para
outros sentidos, faz com que o dançar da bailarina produza coalescência com ins-
trumentos musicais, músicos, histórias. Assim se localiza os efeitos de uma corpo-
reidade manifesta, quando a bailarina que dança em diversas direções perde-se e
encontra-se nos lugares de partida e chegada por onde a música se faz existir:
O pilates terminava ao som dos “Novos Baianos”, com suas melodias e arranjos
poéticos: “Brasil, esquentai vossos pandeiros e iluminai os terreiros que os bra-
sileiros querem sambar”. Junto a esse convite, os corpos gingavam para fora do
tatame que posicionaram seus corpos durante a aula; levantando lentamente era
pedido que “subisse-subisse-subisse, e relaxasse, assim foi feito. Do alto com o
corpo, esticando toda coluna, todos os músculos. Um som de ar saindo dos corpos
tomavam meus ouvidos, meu corpo junto movia-se, relaxei, me juntei (DIÁRIO
DE CAMPO, 19.09).
no um-a-um que a dança faz dançar no corpo das bailarinas uma singularidade capaz
de transformar o jeito de estar no mundo.
Morena já havia sinalizado [...] era necessário que cada corpo encontrasse seu
caminho com o ritmo, o tempo, era necessário entrar pelos poros da derme,
era necessário alcançar o tato, estava ali a grande questão do momento. Os
bailarinos que já acostumados com outra contagem de tempo, com outra forma
de ver a música, que, por conseguinte já havia criado memorias no corpo sobre
esses aprendizados, nesse momento foram convocados a estar em travessia com
o que eram em direção ao que viriam-a-ser com aquela forma nova de dançar
(DIÁRIO DE CAMPO, 3.10).
O corpo acontece sem pausar, o corpo está disponível aos encontros, porém
o corpo também se coloca apto aos desencontros que ele mesmo provoca ou que
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tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 331
[...] Foi perceptivo como uma irritação ocorria entre os pensamentos e os movi-
mentos, um bailarino olhava para o braço direito, franzia o rosto, como quem
expressa uma insatisfação, outro sorria quando a perna alcançava o que poderia ser
o “ideal”, mas em seguida olhava para o ombro que não se mexia como esperado.
VOLTA. Repete, volta, repete. Uma cobrança entre o que a coreografa fazia e o
que os bailarinos desejavam alcançar (DIÁRIO DE CAMPO, 3.10).
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As bailarinas [...] não mais seriam as tripulantes das naus, seriam o mar que reco-
lhiam os corpos, o mar que levaria os mortos e vivos, o mar que agitava ao som
de tambores e gritos, era uma espécie de movimento condutor de uma história, em
diferentes facetas: atearam uma garrafa com uma carta dentro, era um pedido de
socorro, esta seria a metáfora para aqueles bailarinos se movimentarem em coales-
cência: levar a carta-socorro há um lugar “sólido” (DIÁRIO DE CAMPO, 3.10).
Linhas antropofágicas
A corporeidade é o singular do corpo que dança e “cada execução da obra é
uma aproximação semelhante à sua primeira execução. De uma cultura para outra,
a corporeidade carrega consigo diferentes impressões que enformam os movimentos,
dando-lhes especificidades, ainda que sutis” (SOARES, 2013). Não obstante, os cor-
pos dançantes “escorregam” entre os territórios que transitaram, que transitam com
a dança, produzindo e sendo produzidos por corpos que devoram as linhas das ima-
ginações, assimilando um pensamento vivo, pulsante e prático. Mesmo sabendo que
“o corpo trai sempre. Por ele, o mundo muda na competência de guardar, de marcar
e sentir, espécie de bagagem polimórfica, amoral, imoral. Mesmo quando submetido,
deixa escapar, pelas frinchas performáticas, seus desejos” (FARIA, 2009, p. 111).
Como uma jiboia faminta quando encontra o boi, a bailarina devora e é devo-
rada pelos lugares por onde viajou, abraçando e sendo abraçada por vivências que
teve das geografias que habitou, ao encontrar um outro habitus, uma outra cultura,
uma outra política, uma outra economia, abraça o desconhecido, aperta-o, devora-o
e disso um outro corpo que dança se apresenta, como a jiboia quando constringe o
boi e devora-o, produzindo o tempo da digestão. Esse tempo compõe a corporeidade
332
As mudanças corporais não podem ser tomadas apenas como signos das mudanças
de identidade social, mas como seus correlatos necessários, e mesmo mais: elas são
ao mesmo tempo a causa e o instrumento de transformação das relações sociais.
Isso significa que não é possível fazer uma distinção entre processos fisiológicos
e processos sociológicos; transformações do corpo, das relações sociais e dos
estatutos que as condensam são uma coisa só. Assim, a natureza humana é literal-
mente fabricada ou configurada pela cultura. O corpo é imaginado, em todos os
sentidos possíveis da palavra, pela sociedade. [...] O social não se deposita sobre
o corpo como sobre um suporte inerte, mas o constitui (2017, p. 72).
espetáculo usa como base a história de Oxumarê4, orixá que representa a dualidade,
a diferença. Diferença. Os modos de corpos se moviam inicialmente dos seus
espaços íntimos aos coletivos. Toques, olhares, cheiros e sorrisos abraçavam a
movimentação. Para o alto, no colo. Em cima e embaixo. Silêncio. “Dan” apontava
para um desmonte de ideias hegemônicas. Era uma sintonia entre os bailarinos
onde já ganhava destaque a multiplicidade. A ideia foi fazer acontecer às diversi-
dades, isso estava posto, corpos magros, gordos, jovens e envelhecidos, homem
e mulher, raça e sexualidades, uma mistura que dizia de uma unidade política
resistente às itinerantes forças opressoras, mas que decidiram acampar no que
poderíamos chamar de mudanças. Nada depois daquilo permanecia o mesmo,
algo mudou (DIÁRIO DE CAMPO, 22.08).
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minha mudança para a Suíça, muitos novos estímulos corporais provocados por
aulas diferentes e abordagens diferentes dos movimentos me fizeram experimen-
tar uma revisão mais complexa e mais completa com o meu corpo (LINHA DE
VIDA, 1978).
4 “Oxumaré simboliza também a força vital, do movimento, de tudo o que é alongado. É ao mesmo tempo
macho e fêmea. Ele sustenta a terra e a impede de desintegrar-se. É a riqueza e a fartura. Algumas contas
azuis ditas Nana ou pedras de Aigry, denominavam-se Dan Mi (excremento de Dan) e são deixadas por ele
no chão à sua passagem; dizem que elas valem o seu peso de ouro” (VERGER, 1991, p. 231).
5 Ohad Naharin, diretor artístico da Batsheva Dance Company, é considerado um dos coreógrafos mais
importantes do mundo.
334
acontecimentos com o corpo compõem o ponto idôneo para uma noção de saúde de
si. Kafka, sobre esses acontecimentos, nos indica que “a partir de certo ponto não
há mais retorno. É este o ponto que tem de ser alcançado” (KAFKA, 2011, p. 185).
Seria como um ritual, como alguém que mergulha nas aventuras de um corpo
que dança, de um dançar que vivifica a existência, e percebe “como a bailarina
passa de uma motricidade pessoal a um elemento supra-pessoal, a um movimento de
mundo que a dança vai traçar” (MOEHLECKE; FONSECA, 2005). Essa bailarina
que devorou a Suíça em 1990 e São Paulo em 2003, só em Salvador em 2017 pôde
sentir os efeitos de um corpo forte e livre: “novo retorno, e dessa vez meu corpo volta
muito mais potente. Volto a treinar antes do trabalho com dança e reconheço um
Um choque de realidade, pois era uma Escola de Balé Clássico e pelo olhar de
todos eu poderia vir a ser uma bailarina clássica, porém, neste ano completaria 14
anos e para o pensamento da escola eu já estava “velha” para começar no ballet
clássico e então comecei no Jazz (Fui surpreendida por ser elogiada pela facilidade
do meu corpo e meu desenvolvimento naquele ano) (LINHA DE VIDA, 1974).
Depois do contato em São Paulo com tantos artistas diferentes, meu corpo enten-
deu suas limitações e passou a tirar proveito do que o tempo se encarregou de
armazenar nele. De fato, uma escuta maior, e o entendimento de não reproduzir
o do outro e encontrar meu próprio caminho (LINHA DE VIDA, 1993).
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
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O que vivifica é essa compreensão de um corpo que se atualiza pela via das
velocidades e lentidões da corporeidade, que estão na fronteira entre o corpo e a
dança, ao se afetar e ser afetada por outros corpos, vivenciando o que está disponí-
vel aos sentidos. Experimenta e tenta fazer um modo próprio de crescer com força
ou leveza, na medida em que o corpo vive com os acontecimentos. Essa noção do
corpo dançante, vibrando entre outros corpos, provoca uma saúde de si que não
dimensiona relações binárias entre a saúde do corpo e da mente, mas encontra no
devir-cobra uma forma potente e crítica, para enfrentar os diferentes vetores de
controle sociais e culturais de um corpo dançante, devorando e constringindo os
afetos no próprio percurso com o dançar.
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Considerações finais
Não saber o que pode um corpo faz do território da dança um quilombo de muitos
acontecimentos. Estes que chamamos de acontecimentos se constituem nesse espaço
serendipe, onde as coisas no/do mundo atravessam o corpo dançante, atualizado no
inesperado, mas que se coloca preparado para isso que é novo. Essa corpografia percebe
um corpo frágil e finito, que resiste à vida trafegando pelos modos de coalescência do
corpo com a sua própria história, com as experiências, com as múltiplas performances,
com os outros e com as geografias que trafegou, compondo danças com o tempo, com
os espaços, com a subjetivação, com outras formas de desejar. Marcamos aqui essas
outras formas de desejar, como uma forma atrevida da bailarina produzir resistência
no mundo, canibalizando os encontros e produzindo espaços singulares para experi-
mentar suas criações. A subjetivação do corpo dançante é o que movimenta a criação
de si, ou seja, marca a liberdade para existir de forma mais singular em um corpo que
se reinventa constantemente. Essa subjetivação descrita ao longo desta corpografia é
também o meio pelo qual o corpo experimenta uma experiência consigo, no modo de
fazer seu dançar com a vida. A subjetivação na saúde mental de uma bailarina produz o
dispositivo que aqui chamamos de saúde de si, evidenciando uma compositora/sujeita
de sua experiência com o dançar, movimentando o corpo por um modo de atualização
e vivência singular no curso da vida. Devorando e sendo devorada pelas performances,
espaços e histórias, a bailarina é a canibal que digere e é digerida pelos acontecimentos
à sua volta, compondo espaços de encontros para produzir uma saúde de si. Foram
identificadas como principais limitações da pesquisa a dificuldade de dados disponíveis
na literatura para compor essa corpografia, além de identificar que o tempo de coleta de
dados restrito de cinco encontros para composição do diário de campo impossibilitou
a coleta de mais informações. Pelas bases de dados que tivemos acesso, essa pesquisa
marca o início de um olhar interdito aos corpos em composição de suas subjetivações
da saúde mental dessas bailarinas do BTCA. Diante dos afetos que me atravessaram e
compuseram essa corpografia, proponho a criação de atividades com a psicologia dentro
do BTCA, desejando um cuidado mais próximos destes corpos dançantes.
336
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. O aberto: o homem e o animal. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 2017.
CHAUÍ, M. Afastar a tristeza: corpo e mente. In: CHAUÍ, M. Desejo, paixão e ação
na ética de Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. cap. 2, p. 67-96.
DELEUZE, G. Francis Bacon: lógica da sensação. Tradução: José Miranda Justo. Lis-
boa: Orfeu Negro, 2002.
KAFKA, F. Essencial Franz Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SPINOZA, B. Ética: terceira parte: a origem e a natureza dos afetos. Tradução: Tomaz
Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
338
VERGER, P. Notas sobre o culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos,
no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: Edusp, 1999.
Introdução
Este texto pretende abordar os impactos cognitivos apresentados por pacientes
com Alzheimer a partir da correlação entre cenas do filme “Para Sempre Alice”, e os
aspectos teóricos e conceituais dessa que é uma doença neurodegenerativa que afeta
a memória. O longa metragem “Para Sempre Alice” é dirigido por Richard Glatzer
distribuído pela Sony Pictures Classics no ano de 2014 e tem a duração de 101 min.
A utilização do longa metragem retrata a história de Alice Howland (Julianne Moore)
50 anos, casada, mãe de três filhos. No filme, a personagem é referência em linguística
e professora em uma universidade renomada.
A princípio, a personagem não identifica os sintomas de Alzheimer, entretanto
a partir do momento que os sintomas compareceram durante seu exercício laboral, a
protagonista buscou auxílio médico. Recorreu a um neurologista, tendo como queixa
inicial déficits na memória diante dessa queixa, Alice foi submetida a avaliação clínica
e realizou exames de imagem.
Após extensa investigação, do quadro de saúde, Alice foi diagnosticada com
Alzheimer pré-senil3. É sabido que os impactos do Alzheimer afetam a saúde do
paciente de forma holística. Vale ressaltar que diagnóstico com a magnitude do
Alzheimer não se atém estritamente aos aspectos cognitivos, comparecem também
os aspectos psicológicos e comportamentais. Importante notar que o diagnóstico de
uma doença neurodegenerativa acarreta impactos diretos no paciente, bem como no
seu sistema familiar.
Tendo em vista que o longa metragem aborda a doença de Alzheimer de
maneira fidedigna, as conexões entre arte e neuropsicologia é de extrema relevância
Processo de doença marcado pelo declínio cognitivo, mas com clareza de cons-
ciência. A demência não se refere a um baixo funcionamento intelectual, nem
retardo mental, porque estas são condições de desenvolvimento e estáticas, e os
déficits cognitivos na demência representa, um declínio de níveis anteriores de
funcionamento. A demência envolve múltiplos domínios cognitivos, e déficits
No almoço de Natal ao pedir que Tom e Lisa levassem um objeto para sala de jantar
Alice não conseguiu nomear o objeto. Durante a permanência na casa de praia Alice
em diálogo com o marido afirmou que parou de ler um livro pois estava cansada de
ler diversas vezes a mesma linha.
A doença de Alzheimer não atinge apenas o paciente, envolve toda a família na sua
complexidade, nas angústias geradas, nas dúvidas não esclarecidas. Os familiares
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 345
Considerações finais
Considerando que na atualidade a população brasileira tende a ser longeva, é
importante que estejamos atentos aos processos de adoecimento, principalmente de
ordem degenerativa, neste caso especificamente a Doença de Alzheimer. Embora
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 347
haja esforços da ciência para compreender a DA, ainda não existe cura para este
quadro demencial, tampouco sabemos sua origem, logo desenhar uma estratégia de
tratamento ainda é algo complexo.
Sabemos que por se tratar de um quadro que gera déficits de ordem cognitiva
e transtornos mentais, o acompanhamento do paciente precisa ser multiprofissional.
Considerando a complexidade que é um quadro de demência de Alzheimer, inevita-
velmente existem reverberações que envolvem o ciclo social do paciente, neste caso
especificamente a família.
Considerando os aspectos acima citados compreendo que cada vez mais deve-
-se procurar alternativas que possam na medida do possível tornar a experiência
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cotidiana dessa patologia menos nociva tanto para o sujeito acometido pela doença
de Alzheimer quanto para seus familiares. No que tange a família, em virtude do
alto investimento nos cuidados com o membro da família com DA, a família precisa
reconfigurar-se para lidar com esta demanda que emerge mediante o diagnóstico.
Consideramos também que na mesma medida que sejam feitos investimentos para
cuidar da pessoa com DA, é necessário que os familiares também possam investir em
si no sentido de autocuidado, uma vez que a rotina de cuidados é extensa e cansativa.
Para tal é importante que os familiares que exercem o papel de cuidadores possam
contar com rede de apoio.
O longa metragem ilustrou como a rotina familiar foi alterada, planos adiados
e alteração nas funções de cuidado bem como afastamento e aproximação nas rela-
ções. No caso do filme analisado, os cuidados com Alice ficaram especificamente
a cargo de uma das suas filhas, que renunciou aos próprios planos para exercer a
função de cuidadora primária. Neste caso, talvez fosse interessante que a cuidadora
principal pudesse contar com rede de apoio mais continua principalmente dos demais
familiares, outro aspecto é a participação em grupos de apoio mútuo no qual os par-
ticipantes compartilham entre si suas experiências como cuidadores de pessoas com
DA e psicoterapia individual e/ou familiar, haja vista que demandas individuais e de
cunho familiar tendem a ficar mais tensionadas.
348
REFERÊNCIAS
ABREU, M. N.; BARBOSA, D. M.; DINIZ, M. et al. (org.). Neuropsicologia Apli-
cações Clínicas. Reabilitação da Memória. Porto Alegre: Artmed, 2016. p. 272-290.
Introdução
A escola proporciona a oportunidade de crianças e adultos se tornarem alunos,
deixarem para trás o ambiente familiar e se inserirem na relação pedagógica em
que as desigualdades que operam fora da escola estão suspensas ou interrompidas
(KOHAN, 2019, p. 87). Cunhado em Masschelein e Simons (2013), a suspensão é
um conceito que evidencia o caráter público da escola, enquanto espaço que torna
comum. Como característica da instituição escolar, tal conceituação de suspensão
indica que “na escola deixa de operar ou valer o que rege o mundo familiar e social
exterior à escola” (KOHAN, 2017, p. 593).
O professor, a partir de tal abordagem, é alguém que trabalha em uma realidade
com ritmo diferente da realidade produtiva, um tradutor de palavras que se encanta
por elevar o pensamento e ensinar o que se ignora. Rancière (2015) apresenta o
personagem emblemático de Jacotot, um mestre que opera uma ruptura com a sua
trajetória e a de seus alunos, que utiliza o espaço escolar e o tempo que dispõe para
construir a sua produção a partir do “improdutivo”.
Jacotot ensinva seus conhecimentos aos alunos, ensinando como os demais
professores, com o objetivo de efetivar o aprendizado. O seu ato essencial do mes-
tre, no entanto, era explicar: destacava os elementos simples dos conhecimentos e
harmonizava tal simplicidade de princípio com a simplicidade de fato, própria dos
espíritos jovens e ignorantes (RANCIÈRE, 2015, p. 19).
Rancière (2015) enfatiza a procura por uma experiência filosófica na trajetória
relatada por Jacotot no ensino da língua holandesa, desconhecida pelo próprio “mestre
ignorante”. Assim, relaciona o desconhecedor do próprio conhecimento, representado
pelo mestre ignorante, e a emancipação daqueles que se apropriam de sua falta. O
relato de experiência se amplia quando Jacotot estimula seus educandos a escreve-
rem em francês suas opiniões acerca do que haviam lido em holandês, revelando a
surpreendente autonomia dos educandos.
A partir da ideia de transmissão, abordada com o conceito de extensão, Freire
(2015) problematiza o entendimento do camponês enquanto “coisa”, objeto de planos
352
Essa “busca constante” ocorre pela ausência, mas também pela crença de que
nos fazemos sujeitos pensantes na relação com o outro, que também é sujeito. Pode-
mos pensar se existiria alguém com habilidade técnica suficiente para ensinar ao
professor para que este também ensina ao seu aluno. Ou onde estaria o professor que
“domina” o conteúdo diante das inúmeras vicissitudes da prática escolar. Não seria o
fato ignorado mais importante para mover essa ação transformadora que é o aprender?
A escola tem como característica potente demarcar seu espaço como ambiente
de aprendizado. Mas qual aprendizado pode ser proporcionado quando se tem um
mestre que desconhece? Parece-nos uma relação não hierárquica, entre o mestre que
tudo sabe e o aluno que tudo precisa aprender. Inaugura-se uma relação permeada pela
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 353
ignorância, pelo sentimento da falta que impulsiona, mobiliza, constrói, procura cartas
sobre a mesa mas não as encontra. Reposiciona-se novamente e estabelece seus parâ-
metros de aprender e ensinar. Essas são as características potentes do espaço escolar:
um local de conhecimentos encontrados na sua essência, combinados entre elementos
simples e necessários, no qual é importante que não seja preciso dar as explicações,
que a palavra do mestre tenha rompido a simples explanação que empobrece o pen-
samento. Acerca desse empobrecimento, Castillo (2014, p. 57) nos relembra
Um intelectual que só repete o que os outros disseram não cumpre seu papel de
educador, porque menospreza sua palavra, apesar de tê-la, apesar de suas expe-
riências, de sua prática, de sua história pessoal, do que viveu no dia a dia com
seus alunos e colegas. Ele deslegitima a própria palavra, a própria experiência, a
própria prática, a própria história, a própria vida (CASTILLO, 2014, p. 49-50).
ninguém dialoga com um inferior, nem com um superior. Só há diálogo entre iguais
[...]. O conceito “desigualdade” abrange os de superioridade e inferioridade, isto
é, a superioridade e a inferioridade são duas formas de desigualdade. Desde essa
lógica, se não há superiores e inferiores, também não há desiguais” [...]. se não
há desiguais, então só pode haver iguais (KOHAN, 2019, p. 85).
A experiência de estar por baixo leva os alunos a pensarem que, se você é um pro-
fessor dialógico, nega definitivamente as diferenças entre eles e você. De uma vez
por todas, somos todos iguais! Mas isto não é possível. Temos que ser claros com
eles. Não. A relação dialógica não tem o poder de criar uma igualdade impossível
como essa. O educador continua sendo diferente dos alunos, mas – e esta é, para
mim, a questão central – a diferença entre eles, se o professor é democrático, se
o seu sonho político é de libertação, é que ele não pode permitir que a diferença
necessária entre o professor e os alunos se torne “antagônica”. A diferença continua
a existir! Sou diferente dos alunos! Mas se sou democrático não posso permitir que
esta diferença seja antagônica. Se eles se tornam antagonistas, é porque me tornei
autoritário (FREIRE; SHOR, 1986, p. 62).
A escola é pública não por ser administrada pelo Estado [...] ela é pública porque
é para todos, no sentido de poder ser igualmente habitada por qualquer um e se
356
constituir num espaço em que as desigualdades entre seus habitantes ficam sus-
pensas [...]. Uma escola não é verdadeiramente pública quando coloca exigências
que desigualam os iguais, quando expulsa em lugar de acolher, ou quando uma
parte de seus estudantes pode mais que outra em termos de relações pedagógicas
(KOHAN, 2019, p. 88-89).
e tem uma novidade a dizer, o professor constitui uma forma, um canal pelo qual o
aprender e o ensinar acontecem. Sobre esse pensamento firmo uma ideia que constitui
parte desse diálogo-problema. Da mesma forma que se sente preparado para ensinar
apenas quando possui “domínio de seu conteúdo”, também entende que sua forma-
ção depende dessa mesma premissa. Mais um mergulho. Se se entende como aluno,
durante sua formação, o professor espera de seu formador a técnica e o “domínio de
conteúdo” necessários para ensiná-lo. Fazendo-se aluno, vê-se na condição em que
coloca seu aluno, aquele que necessita de um explicador capacitado. O professor
reproduz a forma como enxerga a aprendizagem: local onde se espera um mestre
sabedor e um aluno que não sabe.
Aqui lembramos a importante lição do mestre ignorante que apresenta Ran-
cière: “Para emancipar um ignorante, é preciso e suficiente que sejamos, nós mesmos,
emancipados [...]. O ignorante aprenderá sozinho o que o mestre ignora, se o mestre
acredita que ele o pode, e o obriga a atualizar sua capacidade” (RANCIÈRE, 2015, p.
35). Rancière chama essa relação de “círculo da potência” (RANCIÈRE, 2015, p. 35).
Da mesma maneira que o círculo da impotência liga o aluno ao explicador, precari-
zando o ensinar e o aprender, dizendo ao aluno que ele não pode aprender sozinho, o
círculo da potência estabelece a ligação entre o mestre e o aluno como fazedores de
conhecimento, não sem a presença do mestre, mas sem a dependência dele enquanto
explicador: “pode-se ensinar o que se ignora, desde que se emancipe o aluno […] que
se force o aluno a usar sua própria inteligência” (RANCIÈRE, 2015, p. 34).
Para tanto, há o reconhecimento primordial de que o aluno tem inteligência e
propriedade para aprender à própria sorte, tendo o professor também sua inteligência
em igualdade e, ambos, também sua ignorância: “Quanto mais me torno capaz de me
afirmar como sujeito que pode conhecer, tanto melhor desempenho minha aptidão
para fazê-lo […]. Ninguém pode conhecer por mim, assim como não posso conhecer
pelo aluno” (FREIRE, 2015, p. 121). Se ninguém pode conhecer pelo outro é porque
a educação se faz com sujeitos de potencialidade, de possibilidade, de emancipação.
E, assim, “quem emancipa não tem que se preocupar com aquilo que o emancipado
deve aprender. Ele aprenderá o que quiser, nada, talvez. Ele saberá que pode apren-
der” (RANCIÈRE, 2015, p. 37).
Portanto, imbricado nesse pensamento, Jacotot propõe o Ensino Universal: “Ele
proclamou que se pode ensinar o que se ignora e que um pai de família pobre e
358
nunca precisou o professor progressista estar tão advertido quanto hoje em face
da esperteza com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação
[…] espaço pedagógico, neutro por excelência, é aquele em que se treinam os
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 359
que temos nos debruçado. Discursos que se justificam, que tentam atribuir ao profes-
sor uma responsabilidade que deveria ter, esvaziando aquela que é sua. Algo sobra ao
mesmo tempo em que algo falta. Sobra opinião, falta formação. Estaria o professor
ausente ou a sua ausência seria um estar em si? A ausência é um estar em nós.
A pesquisa é um risco, um labirinto que nos atravessa ao mesmo tempo em que
o atravessamos: “A entrada do labirinto é imediatamente um dos seus centros, ou
melhor, não sabemos mais se existe um centro, o que é um centro (CASTORÍADES,
1987, p. 7). Temos algumas pistas, mas não certezas. “De todos os lados, as galerias
obscuras partem, emaranham-se com outras que vêm não se sabe de onde, que vão
talvez a parte alguma” (CASTORÍADES, 1987, p. 7).
Como encontrar caminhos diante do que nos propomos nessa análise? Precisa-
mos construir os caminhos, ponto por ponto. Precisamos tecer “esse verbo horizontal,
colorido, que só embeleza na diferença” (BRUM, 2019, p. 301). Na tecitura dessa
rede, pontuamos alguns aspectos, como nós. Tecendo a rede labiríntica, enredamos
uma aventura para a qual temos apenas algumas pistas. Mas sabemos se tratar de
uma construção a muitas mãos:
é preciso, porém, que quem tem o que dizer saiba, sem sombra de dúvida, não
ser o único ou a única a ter o que dizer […]. É preciso que quem tem o que dizer
saiba, sem dúvida nenhuma, que, sem escutar o que quem escuta tem igualmente
a dizer, termina por esgotar a sua capacidade de dizer por muito ter dito sem nada
ou quase nada ter escutado (FREIRE, 2016, p. 114).
Educar e educar-se, na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco
sabem – por isso sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais – em
diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes,
transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam
igualmente saber mais (FREIRE, 2015, p. 25).
Freire (2015) faz uma crítica ao conceito de extensão como invasão cultural,
atitude contrária ao diálogo, associada à “transmissão, entrega, doação, messianismo,
mecanismo, invasão cultural, manipulação etc.” (FREIRE, 2015, p. 10). A extensão
não percebe o educando enquanto sujeito, mas tenta substituir seus ‘conhecimentos’
associados a sua ação sobre a realidade, por outros conhecimentos técnicos especia-
lizados “aquele que é enchido por outros conteúdos cuja inteligência não percebe;
de conteúdos que contradizem a forma própria de estar em seu mundo, sem que seja
desafiado, não aprende” (FREIRE, 2015, p. 29).
Nas palavras de Kaplún (2014):
Com efeito, se fizermos um balanço introspectivo das coisas que realmente apren-
demos em nossa vida, comprovaremos que são majoritariamente aquelas que
tivemos, ao mesmo tempo, a oportunidade e o compromisso de transmitir a outros
(KAPLÚN, 2014, p. 70).
REFERÊNCIAS
APARICI, R. Introdução: a educomunicação para além do 2.0. In: APARICI, Roberto.
Educomunicação: para além do 2.0. São Paulo: Paulinas, 2014.
FREIRE, P. Extensão ou comunicação? 17. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
KOHAN, W. Paulo Freire, mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Hori-
zonte: Vestígio, 2019.
Introdução
Os métodos de pesquisa são sempre um “calo no sapato” de pesquisadores
iniciantes ou inexperientes, embora esteja no doutorado, não sou pesquisadora pro-
fissional, essa pós-graduação se tornou um desejo após anos de trabalho acumulados
na área da psicologia jurídica em que muitas inquietações e angústias foram surgindo
ao longo do tempo, dentre outros sentimentos que despertaram a vontade de saber
porque as coisas são como são e não como deveriam ser. Em um encontro com a
professora Flávia Lemos/UFPA por meio do grupo de pesquisa Transversalizando
fui apresentada ao método genealógico proposto por Foucault, embora inicialmente
este método me pareceu muito difícil, se apresentou também como um desafio, uma
forma inovadora e revolucionária de fazer ciência que me encantou.
Nesta perspectiva, temos a pretensão de desenvolver esta pesquisa, utilizando
o recurso metodológico da análise histórico-genealógica. Trata-se, portanto, de uma
forma inovadora que realiza uma análise histórica crítica acerca das práticas con-
cretas do tempo presente. O uso da palavra genealogia faz referências a Friedrich
Nietzsche que teve importante influencia no percurso do pensador francês Michel
Foucault. Conforme descrito por Lemos e Cardoso 2009, anteriormente ao método
genealógico, Foucault utilizava o método arqueológico, neste período o pensador se
preocupava com as “regras que regiam as práticas discursivas e enfatizando uma
prevalência teórica sobre a prática e as instituições”.
Foucault também foi intensamente influenciados pelo grupo de historiadores
conhecido como A Escola dos Annales em especial a terceira geração, que empreende-
ram uma forma inovadora de fazer história a qual recebeu a denominação de História
Nova ou História Cultural (DOLINSKI, 2011). A Escola dos Annales compreende
366
e tratada ao longo da história, a partir desta leitura entendemos que o louco do século
XV não é muito diferente do louco de hoje, pelo menos em relação aqueles que estão
encerrados no manicômio judiciários, isto é, em sua maioria pobres e indigentes,
totalmente excluídos das relações de produção capital.
Já o texto Vigiar e Punir aborda as estratégias de controle e disciplinarização
dos corpos, a descrição do panóptico, e a relação destes com as estratégias de controle
seja na prisão, na escola ou no hospital. Em Os Anormais o autor analisa documentos
médico-legais e define três figuras principais, todos eles capturados e regidos pela
psiquiatria e posteriormente pelo direito penal: os monstros, os incorrigíveis e os
onanistas, são figuras centrais deste texto.
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Almeida Prado (2017), ressalta ainda que o uso da genealogia como método
não é uma invenção exclusiva de Foucault, mas um desdobramento da proposta de
368
A justiça não pode ter competência sobre o louco, ou melhor, a loucura, tem que
se declarar impenitente quanto ao louco, a partir do momento em que o reconhe-
cer como louco: princípio da soltura, no sentido jurídico do termo (FOUCAULT,
2001, p. 39-40).
Considerações finais
Se observa que, na experiência paraense, a justiça ainda não abriu mão de
encarcerar o louco, assim como a instituição médica, entende que uma vez cometido
delito, seja ele louco ou não, deve ficar sob o julgo da justiça.
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Esta luta de poder, mantém, porém, viva a lógica da “perversidade” que, para
Foucault (2001), é o que se predomina no campo da “dupla determinação” e autoriza
o discurso do perito, isto é um discurso travestido de cientificismos que se diz capaz
de determinar quem é “perigoso”, ou seja, nem exatamente doente, nem propriamente
criminoso, permitindo a perpetuação da lógica do lugar nenhum e do a ninguém
pertence, justificando a existência do manicômio judiciário e de sua manutenção, a
partir de uma teoria construída pela dualidade entre “perversão-perigo”.
Imbuindo-se deste entendimento, justifica-se o encarceramento de uma popula-
ção que por motivos já explicados aqui necessitam de assistência em saúde e não de
prisão, e é, portanto, iminente a necessidade de continuar buscando a desconstrução,
desta teoria perversa, e isso só é possível pela eminencia de um outro discurso que
busca descontruir esta dualidade doença mental e perigo, promovendo a presunção
de sociabilidade em detrimento da presunção de periculosidade.
Assim, consideramos da pesquisa, a partir da análise histórico-genealógica,
buscamos uma possibilidade, uma perspectiva e uma estratégia para resistir, estudar
e agir a partir de um modo crítico e político de atuar, escrever e produzir uma outra
história numa visão ética, na medida que deslocamos o olhar da análise das práticas
de objetivação dos sujeitos para as práticas de modo de subjetivação.
Assim, acreditamos que esta pesquisa contribuirá para uma possível mudanças
nos enunciados estabelecidos atualmente de práticas excludentes e segregadoras
para práticas insurgentes e inovadoras, propondo uma transformação na forma como
são executados os processos de medida de segurança no Pará hoje, para a perspec-
tiva de inclusão social e garantia do direito ao cuidado integral, à liberdade entre
outros direitos.
372
REFERÊNCIAS
BARROS-BRISSET, F. O. Por uma política de atenção integral ao louco infrator.
Belo Horizonte: Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 2010.
Introdução
A proposta deste capítulo é provocar reflexões sobre as diversas formas violên-
cias apontadas em textos, seminários e no cotidiano de serviços que acolhem usuários
que sofrem as mais diversas modalidades de violência. Este momento pode ser a
possibilidade de um exercício crítico sobre a concepção de uma violência que vem
ocorrendo nos diversos espaços sociais e privados dos indivíduos.
Reconhecendo-se que a prevenção à violência tem sido pauta frequente nas
formações e encontros técnicos, então, aqui não se pretende por hora esgotar o tema
ou trazer respostas absolutas, mas, sobretudo, busca-se trilhar por um caminho de
trocas de saberes e experiências profissionais mútuas, mesmo quando estivermos
frente às dúvidas e incômodos.
A riqueza maior dessas trocas é que, ao partirmos de nossas experiências profis-
sionais na área da saúde, educação, segurança pública, assistência social, construída
de forma intersetorial, multidisciplinar ou interdisciplinar, estaremos implicados na
responsabilidade de buscar ações eficazes de prevenção à violência crescente apontada
por toda sociedade, por meio dos mais diversos meios de comunicação e atendimentos
das políticas públicas. Interessante que, entre os diversos tipos de violência, o surgi-
mento ou afloramento do desrespeito a si mesmo, reverbera no não reconhecimento “do
outro”, inclusive ultrapassando o espaço do outro de livre expressão e manifestação de
vontades, crenças, opiniões e, até mesmo orientações de gênero. Há um movimento de
invasão do espaço privado de cada um, conduzindo para um novo processo de violação
entre os diversos atores sociais que compõem a sociedade.
Desde a publicação da Lei nº 13.819, de 26 de abril de 2019, a qual instituiu
a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, a ser implemen-
tada pela União, em cooperação com os estados, o Distrito Federal e os municípios,
observa-se que houve a intensificação no trabalho ou nas tentativas de desenvolver
ações de prevenção à violência interpessoal e autoprovocada.
O aumento do suicídio tem chamado atenção de toda a sociedade, tendo sido
reconhecido como um problema de saúde pública, implicando diretamente na res-
ponsabilidade sanitária dos gestores. Logo, urge a necessidade de se reconhecer os
mais variados tipos de violências, visto que, muitos são negligenciados ou banali-
zados por fatores culturais e entre outros. Na referida lei citada acima, o reforço na
374
continuação
Meta 95% de notificações de violência interpessoal e autoprovocada com o campo raça/cor
preenchido com informação válida.
Relevância do Indicador - A violência é considerada uma questão de saúde pública mundial, o que torna necessária
a ampliação de estratégias que interfiram nesse quadro. No Brasil, esse agravo representa a
terceira causa de morte entre crianças de 0 a 9 anos, passando a ocupar a primeira posição
na população de 10 a 49 anos, decrescendo para a sexta posição entre os idosos (60 ou
mais anos). As vítimas, comumente, adquirem sequelas, permanentes ou não, que podem
levar à incapacidade para o trabalho ou para outras atividades rotineiras, ao absenteísmo, a
custos com o pagamento de pensões e de tratamentos de saúde, configurando um importante
problema de saúde pública. Nesse contexto, o Ministério da Saúde implementou o Sistema de
Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA/Sinan), como forma de sistematizar as informações
sobre os casos de violências e permitir o cuidado intersetorial às vítimas. Dados gerados
continuação
Responsável pelo Secretaria de Vigilância em Saúde
monitoramento e avaliação Departamento de Articulação de Ações Estratégicas de Vigilância em Saúde – DAEVS/
no Ministério da Saúde SVS/MS.
E-mail: dagvs@saude.gov.br
área de ciência e tecnologia, que o digam pesquisadores que tiveram seus projetos
de pesquisa paralisados ou reduzidos pelo caminho por falta de investimento.
A sociedade brasileira está com fatura imposta de custos elevados dos com-
bustíveis, inflação destaque em itens primordiais, como alimentação e fechamento
de empresas e aumento da precariedade da relação trabalho x empregador, perpe-
tuando crescimento da informalidade e uma série de contexto favoráveis a cenários
de violências.
Toda essa análise e constatação precisam ser colocados em discussão seja na
educação, seja nas relações que vamos construindo, seja nas decisões que vamos
assumindo, afinal não somos a políticos!
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transversal das nossas ações deve pautar nosso cotidiano profissional, evitando ser-
mos sugados pelos processos repetitivos de trabalho, identificando as sobretarefas
ou sobrecargas de tarefas, que nos afastam da reflexão crítica e emancipatória,
culminando no cansaço e descredito, impedindo a proatividade e as análises dos
cenários nos quais estamos envolvidos. Então, como prevenir as violências senão
a partir de exercícios de reflexões e reconhecimento das subjetividades regionais/
territoriais, análises, diagnósticos mais próximos possíveis de dados fidedignos.
Desta forma, cabe a todos nós, as discussões constantes a produção de dados, as
investigações e trocas avaliativas permanentes. E a pergunta continua para nosso
exercício. Como prevenir?
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Brasil: Zahar,
2004, 196
Introdução
A doença renal crônica atinge 10% da população mundial e afeta todas as faixas
etárias, crianças, adolescentes, jovens adultos e idosos. Não apresenta distinção de
raça, cor e etnia. A insuficiência renal crônica é considerada um grave problema de
saúde pública, em função da sua morbidade e mortalidade, bem como sua influência
sobre a qualidade de vida das pessoas. De acordo com a Sociedade Brasileira de
Nefrologia (2013), os principais fatores de risco que podem desencadear a insufi-
ciência renal crônica estão atrelados a questão do sedentarismo, do tabagismo, do
consumo de álcool, hábitos alimentares inadequados, do controle inadequado da
hipertensão arterial e da diabetes mellitus e o uso excessivo de medicamentos que
podem acabar afetando a função renal. Friedman (1999) ressalta que na infância estas
causas podem estar relacionadas a anormalidades congênitas e obstrutivas, sendo estas
mais comuns em crianças de 0 a 10 anos, e as doenças adquiridas são mais comuns
em crianças acima de 10 anos.
Segundo Angerami Camon (2002), a Insuficiência Renal Crônica (IRC) é uma
doença que tem como característica a perda da função renal definitiva, o que faz
com que a pessoa adoecida siga um tratamento rigoroso, constituído por uma dieta
restritiva, constante controle médico e, em geral, tratamento dialítico. O tratamento
da IRC é feito através da terapia renal substitutiva (TRS), que tem por objetivo
substituir a função renal que foi comprometida. Existem três tipos de TRS que são:
a hemodiálise, a diálise peritoneal (automatizada ou manual) e o transplante renal.
O tratamento é feito com o acompanhamento do médico nefrologista. É importante
ressaltar que o tratamento é custeado e regulamentado pelo sistema único de saúde
(SUS) (BAXTER, 2006).
A criança que é afetada por uma doença crônica, sofre mudanças em seu estilo
e qualidade de vida, desencadeadas pela presença da patologia, da demanda tera-
pêutica, do controle clínico e das hospitalizações recorrentes. São observadas alte-
rações significativas da doença crônica na infância, que perpassa pelas dificuldades
estruturais e instabilidade emocional que atingem todo o núcleo familiar. Na maioria
dos casos, a criança tende a apresentar o seu desenvolvimento físico e emocional
prejudicado, podendo acarretar desajustes psicológicos em virtude do tratamento
(VIEIRA; DUPAS; FERREIRA, 2009).
386
Além de afetar o paciente, a doença crônica afeta os grupos sociais nos quais
o indivíduo está inserido. O primeiro grupo social a enfrentar estas modificações é a
família/mãe/cuidadora (MINUCHIN, 1990). Sendo assim, o presente trabalho visa
analisar a vivência de mães de crianças com insuficiência renal crônica, seus anseios,
medos, fantasias e expectativas frente ao tratamento de hemodiálise e a possibilidade
de transplante renal.
Materiais e métodos
A metodologia empregada, de caráter qualitativo descritivo, comportou a reali-
Resultados e discussão
Eu quando soube fiquei arrasada, pois era tudo muito novo, pelo que as pessoas
falavam fiquei arrasada. Falavam que iriam tirar o sangue do menino todinho, aí
eu começava a chorar, pensando que realmente era assim (Gabriela).
O doutor examinou, bateu o eco do coração e disse não, está tudo bem. No outro
dia o doutor R desceu para ver o B, porque ele não estava muito bem, ele começou
a examinar ele pelas artérias e disse que era problema renal, ele foi direto para a
UTI e então para mim foi um choque muito grande, saber de uma notícia e ir direto
para a UTI, ainda mais eu que nunca tinha me deparado com uma UTI (Juliana).
388
Eu fiquei em desespero quando soube que ele ia fazer hemodiálise, chorava muito,
não sabia nem o que era aquela máquina, não entendia nada, perguntava por que
está acontecendo isso, porque meu filho está nessa máquina (Marcia).
Eu nem sabia o que era hemodiálise, quando vi minha filha entubada, naqueles
aparelhos, com o tempo fui me adaptando.[...]. Eu fiquei muito triste, chorei
Segundo Valle (1991), quando a criança é acometida por uma doença grave,
os pais experimentam transformações que significam a perda do mundo habitual-
mente vivido por ele, passando a habitar outro mundo, o mundo da doença do filho,
trazendo aos mesmos intensas vivências de estranhamento, insegurança em vários
níveis (familiar, financeiro), solidão, isolamento, marcados pela ambivalência ine-
rente ao processo de doença e tratamento. Como pode ser evidenciado nos relatos
de duas das entrevistadas:
Eu fiquei um pouco longe dos meus filhos [...]. Às vezes a família não entende,
a minha mãe fala assim: Há porque você não para na sua casa, não entende meu
lado, tudo que eu passo, mas aí eu não dou nem ouvido para isso, aí a gente se
afasta mais um pouco, porque a pessoa não entende (Marcia).
Minha vida mudou, pois agora estou aqui segunda, quarta e sexta. Que a gente
não pode sair mais, enquanto a gente não receber este transplante a gente não
pode sair de casa, que a qualquer momento podem ligarem para a gente ir para
São Paulo (Gabriela).
[...] neste período a gente passou quatro meses no hospital, com muita luta, muita
dificuldade, mas graças a Deus o pessoal de lá foi muito bom com a gente (Maria).
Foi um choque muito grande, só eu dentro do hospital, aí quando levaram ele, o médico
disse fica aqui, calma, não, quando mandaram entrar ele já estava todo entubado. Aí ele
passou em torno de oito dias entubado, acordou, depois ficou se recuperando (Juliana).
Para mim é difícil, quando ele passa mal eu fico agoniada, eu choro muito, pois
ele já tem falência de acesso (Marcia).
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 389
autonomia (Isadora).
quando você fizer o transplante minha filha, você vai poder beber água a von-
tade (Adriana)
acho que depois que ele transplantar, vai mudar a nossa vida, porque, vai ter os
dias para ele fazer exame, as consultas, eu vou ficar mais com meus filhos em
casa (Marcia).
Vou sentar com a Doutora e perguntar, assim como pode ser hoje ou amanhã o
transplante do meu filho, pode ser daqui um ano, dois anos, eu não quero, eu já
estou ansiosa, agoniada, quero ir embora. Estava conversando com a Doutora,
ela disse olha caso você vá doar o rim para F, já estou até fazendo dieta, eu vou
fazer exame, se for compatível com ele, eu vou doar meu rim para ele. (Juliana)
Eu peço para Deus que não de nada nos meus exames, que seja tudo compatível.
Eu não tenho medo de faca, eu não tenho medo de nada (Juliana).
Em pesquisa realizada por Knihs, Sartori, Zink, Roza e Schimer (2013) sobre
a vivência de pacientes que necessitam de transplante renal constatou-se que a
libertação da máquina traz o significado de poder desenvolver ações simples como
ir à praia, passear com a família, sair de casa ou simplesmente pela necessidade
de poder comer o que desejam. Uma das ações que mais traz alegria aos pacientes
após o transplante é o fato de poder tomar água, retomar essa rotina significa poder
voltar a desempenhar atividades até então restritas; restitui a sensação de satisfação
e controle; remete ao autocontrole; coloca-os em lugar de poder escolher; devolve
a sensação de autonomia.
Sendo assim podemos perceber nas falas das entrevistadas que o transplante é
Para mim o transplante vai ser a melhor coisa que vai acontecer na vida do A,
porque só dele não vir mais para o hospital, só dele sair dessa máquina, para mim
vai ser a melhor coisa na vida dele. [...] Mas sempre eu digo, eu estou aqui nesta
batalha com o meu filho, mas não quero passar três anos, quatro anos, aqui não.
Porque não é fácil, a gente perde totalmente a liberdade, não a minha, a dele. Eu
por mim.... meu negócio é ele, eu penso nele, o futuro dele daqui para frente. Eu
quero que ele tenha uma vida adequada, uma vida que ele possa brincar, tomar
banho no igarapé, sem estar se preocupando, amanhã vou ter que ir para Belém,
não......... ter uma vida normal (Isadora).
Que ele recebesse os rins. Que ele transplantasse, ver ele sorrindo. A palavra
transplante significa muita coisa......uma vida melhor, vai poder tomar banho de
praia, vai poder viajar, pois não vai ter que está com o celular no pé. Vai melhorar...
uma vida melhor, vai poder brincar, ele brinca, mas tem que ficar de olho para não
bater o cateter, mas depois acredito que ele vai se adaptar (Gabriela).
Deixo uma garrafinha para ela na geladeira. Digo para ela, eu sei minha filha que
a sede dói, mas deixa você ficar boa, fazer o transplante que você vai beber água
a vontade (Adriana).
todas as mães têm um medo, pois tem uns que dá certo, outros não, acho que este
negócio de transplante é acreditar em Deus, ele que sabe (Marcia).
medo do transplante eu tenho, Deus o livre de dar uma coisa errada na hora, tenho
medo de depois do transplante os rins rejeitar (Isadora).
olha eu não sei te dizer, eu nem si te dizer, até porque, quando não é uma coisa é
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outra, aí eu nem sei te responder. Porque quando ela tá bem, lá aparece outra coisa,
transplante tem que estar bem. Eu não penso, quando ela estiver bem, eu penso,
nem na fila ela está. Às vezes eu não consigo nem pensar direito, acontece uma
coisa, acontece outra, é uma pera de peso. Não consigo pensar direito (Amanda).
amor (filho) que foi super investido, narcisado vem ao mundo como um ser faltoso,
ou seja, desprovido de saúde. Isto por si só já é um fator de intenso sofrimento no
psiquismo desta mulher, mãe/cuidadora, que ao longo do processo de cronicidade do
filho, vivência constantes reedições desta castração, tais como: a perda de saúde do
filho, a perda do ambiente familiar, a perda da sua liberdade imposta pela rotina do
tratamento hemodialítico, a perda da conivência com os outros filhos, a quebra dos
vínculos conjugais e a mais nefasta de todas elas é a de se deparar constantemente
com situações que lhe remetem a perda do seu objeto de amor, o filho. Sobre está
temática temos os seguintes relatos:
O pai do F abandonou a gente por que eu só vivia para Belém. [...] Eu não ia
abandonar o meu filho, porque quando eu estava aqui em Belém, ele já estava
tendo outro caso, eu acho que foi por causa disso, não sei né (Marcia).
Porque nossa vida era praticamente naquele Ophir Loyola. No Ophir era acom-
panhado com o nefro, pois ele tinha muita infecção e eu não sabia do que estava
dando, eu passava de 20 a 30 dias naquele hospital com ele tomando antibió-
tico (Isadora).
Por que C já passou por uma cirurgia para tirar os rins, ela não tem mais os dois
rins, foi muita luta, ela só não foi a óbito porque Deus não deixou (Adriana).
Desse modo, podemos salientar que estas mães passaram a habitar o mundo
do filho, intensificando a simbiose mãe-bebê. Como forma de garantir os cuidados
necessários e com isso manter a sobrevivência do filho e garantir a imortalidade de
seu Eu. Neste momento, instaura-se a lei paterna, aquela lei que irá ser responsável
pela separação mãe/bebê, sendo assim podemos atribuir à instituição hospitalar este
papel, que ao mesmo tempo em que separa esta díade, é responsável por substituir os
cuidados maternos. Este ponto, podemos verificar nos relatos das mães/cuidadoras, em
que estas atribuem aos médicos e a equipe, detentores de conhecimento, sujeitos do
suposto saber, que seriam responsáveis pelo conhecimento da patologia, oferecendo
um suporte e cuidado diante do desamparo, vivenciado durante todo o tratamento
de seus filhos. Como se evidencia no relato a seguir:
o que eu puder fazer eu vou fazer, o que o médico mandar eu vou fazer, eu vou
fazer, e é assim. [...] venho mesmo com ele, se for preciso vir no outro dia venho,
porque não adianta nos reclamar, apontar o dedo na cara do Doutor, [...] eles
estão falando porque estão entendendo de alguma coisa, eles estudaram, então
não vou chegar e apontar na cara, dizer não você está errada, você estudou, você
sabe o que está falando. Então vou primeiramente confiar em Deus e em vocês
(médicos). E está aí (Isadora).
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 393
Freud (1930) ressalta ainda que nós, seres humanos, em sua maioria nunca
seremos capazes de superar essa visão da vida. Pois em nossa psique, só um pai engra-
decido pode compreender as nossas necessidades. “A vida, tal como a encontramos,
é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas
impossíveis. A fim de suportá-las, não podemos dispensar as medidas paliativas. Não
podemos passar sem construções auxiliares” (FREUD, 1930, p. 93).
Acreditar que podemos contar com forças espirituais traz sentimentos de con-
forto. A espiritualidade encoraja a família (mãe/cuidadora) e produz sentimentos de
esperança ou de aceitação da condição imposta pela doença da criança. A religião
tem fornecido um conforto aos membros da família, sendo também uma forma de
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Sempre eu falo, e tenho falado paras as mãezinhas, busquem pelos seus filhos,
busquem força no senhor, porque só ele, eu te digo com a sinceridade de uma mãe
sincera, se eu não tivesse Deus na minha vida, eu não sei o que seria de mim. Que
é só Deus. Tanto é que só mora eu e o F aqui em Belém, a minha família é imensa,
minhas cunhadas moram, tenho cunhadas por parte do meu marido, não conto
com ninguém, primeiramente só eu, meu filho e Deus. Deus tem me prometido
muito, não te preocupa com nada, Deus tem mandado me falar, não te preocupa
com nada, eu estou entrando com as providencias em tua vida. Aquilo que tu
tanto pedes eu vou dar em tuas mãos, e eu creio. Deus me prometeu que este ano
ele vai me entregar uma chave, e está perto, está perto, estou te falando (Juliana).
Nesse sentido, Freud (1927) mostra que a necessidade de proteção perdura por
toda a vida. Quando descobrimos que a força do “pai” é limitada, ou seja, que ele
não garante tudo na vida, retornamos para aquele pai da infância, supervalorizando-o
e o transformando em divindade. Transformamos esse pai em um ideal protetor de
todos os perigos.
Menezes (2008) ressalta que a questão do desamparo desenvolvida ao longo da
obra freudiana está sob o ponto de vista da falta de garantias do sujeito no mundo,
que é obrigado a uma renúncia pulsional como condição de viver em sociedade. A
autora salienta ainda que a perda do outro amado remeterá à condição de abandono
total, de desajuda, de desamparo ante o aumento pulsional.
“la vai para o bloco, mas não sei ela vai resistir. Ai graças a Deus ela foi, quando
ele veio de lá, ele disse: olha já terminou a cirurgia, daqui a pouco ela vai para a
UTI, depois que ela vai para a enfermaria. Foi um milagre pois a plaqueta estava
muito baixa, na hora parecia um olho de água, jorrando sangue. É doutor para
o senhor ver que Deus existe e ouviu meu pedido, então ela é para mim, se não
fosse para ficar comigo Deus tinha levado (Adriana).
Freud (1927, p. 43) revela que, dentre outros aspectos, o desamparo tem o papel
principal na formação do complexo paterno e da religião. Para ele a “impressão ter-
rificante do desamparo na infância despertou a necessidade de proteção através do
amor”. O Desamparo do homem, porém, permanece, junto com ele, seu anseio pelo
394
pai e pelos deuses. Os deuses mantem sua tríplice missão: exorcizar os terrores da
natureza, reconciliar os homens com a crueldade do destino, particularmente a que
é demonstrada na morte, e recompensá-los pelos sofrimentos e privações que uma
vida civilizada em comum lhes impôs. (FREUD, 1927, p.26).
Na fila do transplante você já está, a mamãe está correndo atrás de tudo para você
conseguir transplantar. Aí só esperar nas mãos de Deus e esperar o que ele tem
que fazer. Tem que ter fé que você vai sair dessa (Isadora).
Considerações finais
A partir deste estudo foi possível identificar pontos significativos em relação aos
sentimentos, medos e expectativas das mães/cuidadoras de crianças com IRC, que
permeiam todo o processo de adoecimento do seu filho, que vai desde o diagnóstico,
o tratamento de hemodiálise, o enfrentamento da doença e as expectativas diante
da possibilidade de realização do transplante renal. Este percurso é permeado por
medo, tristeza, desespero frente ao desconhecido, frustrações, esperas, perdas, até
os novos sentidos dados à vida e a sua própria existência. E é através deste processo
que constroem e atribuem novos significados ao tratamento de seus filhos.
Por tratar-se de uma doença crônica, há uma especificidade no que diz respeito
a ser mãe/cuidadora de criança com IRC. No decorrer desta experiência surge uma
série de consequências para estas mães, que podem ser físicas, psíquicas, emocionais
ou familiares, gerando uma desestabilização do sujeito (mãe).
A realização desta pesquisa nos proporcionou uma experiência inusitada, de
poder proporcionar uma escuta acerca destes sentimentos e emoções vivenciados
por estas mães/cuidadoras durante o diagnóstico, o tratamento de hemodiálise
e a possibilidade de transplante renal de seus filhos, durante as entrevistas uma
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 395
vasta gama de sentimentos emergia em seus relatos, podendo ser observados por
alguns comportamentos como a mudança de voz, a pausa no meio do seu discurso
e o olhar às vezes distante, estes nos remeteu a questão do desamparo ao qual
estamos submetidos.
Portanto, os profissionais da saúde envolvidos neste contexto, em especial os
psicólogos, devem possibilitar a esses sujeitos a reconstrução de sua nova iden-
tidade, perpassada e ressignificada por tudo o que lhe acometeu. Em vista disso,
considera-se que é também tarefa dos psicólogos possibilitarem a essas pessoas
reprocessar sua história, pensar e refletir a doença e todas as implicações que ela
traz para suas vidas, auxiliando-os na compreensão da situação que se apresenta,
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REFERÊNCIAS
ANGERAMI-CAMON, A. V. et al. (org.). Novos rumos na Psicologia da Saúde.
São Paulo: THOMSON, 2002.
FREUD, S. O futuro de uma ilusão (1927). In: FREUD, S. Obras Psicológicas com-
pletas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 21, p. 15-80.
KNIHS, N. S.; SARTORI, D. L.; ZINK, V.; ROSA, B. A.; SCHIRMER. Texto &
Contexto – Enferm., Florianópolis, v. 22, n. 4, out./dez. 2013.
Introdução
A crise mundial, deflagrada pelo início da pandemia da covid-19 (doença infec-
ciosa causada pelo novo coronavírus, SARS-CoV-2), entre dezembro de 2019 e janeiro
de 2020, irrompeu no impacto sanitário que atingiu em cheio o mundo presumido de
cada sujeito, aquela percepção que, de acordo com Parkes (2009), trata do signifi-
cado e propósito de vida que cada pessoa tem em sua relação com a realidade social
(BASSANI; FABRIS; JÚNIOR, 2021). O viés drástico socioeconômico foi traspas-
sado pelos pensamentos de medo, desamparo e impotência frente ao desconhecido.
A imposição ao global despreparo para lidar com a urgência de um caos, escan-
cara nosso limite e finitude e nos atravessa com rapidez e perplexidade, lançando um
convite ao debate sobre a importância de uma formação em saúde que possa lidar com
as perdas de uma maneira mais realista e humanitária (DOMICIANO et al., 2021).
Bassani, Fabris e Junior (2021) indicam que em um mundo capitalista no qual,
muitas vezes, a questão da saúde mental é deixada de lado em prol do desgastante
lugar de conquistas materiais, a perplexidade com que se lida com a obrigatorie-
dade de parar, trouxe à tona a necessária reflexão sobre o que é mais importante: a
manutenção do ideário de trabalho neoliberal ou a preservação da saúde, ficando em
casa para se proteger do vírus? A estabilidade da vida financeira vai de encontro ao
despreparo dos governos em garantir a sobrevivência do seu povo, o que acrescenta
mais dificuldades em um cenário desolador.
1 Psicólogo. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Gestalt-Terapeuta. Psicólogo
Educacional /SEMEC. E-mail: Warlington@ufpa.br
2 Mestra em Psicologia, pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Especialista MBA em Gestão de Pessoas
(Anhanguera/LFG/2012). Psicóloga efetiva da Secretaria Municipal de Saúde de Belém (SESMA). E-mail:
renatasabrina@ufpa.br
3 Especialista, Mestre e Doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). Professor
Adjunto III da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Pará (UFPA). E-mail: pttarso@gmail.com.
4 Psicóloga e Mestra em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da Universidade
Federal do Pará (UFPA). E-mail: lyahcorrea34@gmail.com
400
5 “[...] história falsa que aparenta ser uma notícia, divulgada na internet ou utilizada em outra forma de mídia,
geralmente criada para influenciar visões políticas ou para ser uma piada” (CAMBRIDGE DICTIONARY, 2019).
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 401
não existe para ela [...]. Ela vai prontamente a extremos; a suspeita exteriorizada
se transforma de imediato em certeza indiscutível, um germe de antipatia se
torna um ódio selvagem.
divide um cuidado que devia ser uníssono e constrói narrativas pautadas, e alicerça-
das, em um discurso histriônico que apenas trata com escárnio os mortos, articulado
na medida certa para encobrir incapacidades governamentais. Esta tática consiste
em uma forma de manipulação que extrapola as mídias sociais e desagua em quem
está especialmente na linha de frente, lutando para salvar vidas: os profissionais da
saúde. Para Sá, Miranda e Magalhães (2020, p. 34):
6 “[...] ambiente em que os fatos objetivos têm menos peso do que apelos emocionais ou crenças pessoais
em formar a opinião pública” (BUCCI, 2019).
402
A ausência dos ritos fúnebre pode gerar incertezas em relação à morte do ente,
provocando a ilusão de que ele pode não ter morrido e a sensação de irrealidade
da perda. [...] A adaptação à vida sem a presença da pessoa perdida se relaciona
com a terceira tarefa do luto que é ajustar-se ao mundo sem a pessoa morta.
Considerações finais
A pandemia da covid-19 trouxe uma nova realidade que se sustenta perene até
o presente. Os impactos sociais nas novas formas de significar as perdas apontam
para a continuidade de estudos sobre o tema. Neste cenário, a psicologia mostra os
caminhos necessários para que a saúde mental seja preservada durante tal período.
A procura por atendimento psicológico tem aumentado o que deixa uma grande
parte da população, com acesso desigual aos cuidados, sem conseguir um tratamento
digno. É preciso coletivizar os cuidados em saúde para resistir e buscar o fortaleci-
mento do SUS, na tentativa de um ganho efetivo, seja na prevenção ou tratamento
de transtornos (DANZMAN; SILVA; GUAZINA, 2020).
O distanciamento social impõe novas formas de encarar as perdas e só com o
passar do tempo, e estudos mais aprofundados, será possível compreender totalmente
406
REFERÊNCIAS
BASSANI, A. T.; FABRIS, G.; JUNIOR, S.S. SARS-COV-2: pandemia, negacio-
nismo científico populista de extrema direita e a utilização off label de medicamentos.
Revista de políticas públicas, Rio Grande do Sul, p. 1-17, 2020.
BUCCI, E. Existe democracia sem verdade factual? In: CULTURA política, imprensa
e bibliotecas públicas em tempos de fake news. Barueri: Estação das Letras e Cores,
2019. E-book.
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D A N TA S , C . R . e t a l . O l u t o n o s t e m p o s d a c o v i d - 1 9 :
desafios do cuidado durante a pandemia. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São
Paulo, 2020.
Introdução
Ainda hoje se discute a respeito do papel do psicólogo na área escolar educa-
cional, na busca de identidade profissional permeada por objetivos claros que possam
determinar uma atuação mais definida. Assim, mudanças estão a ocorrer, pela própria
prática profissional, direcionadas a descobertas de novos rumos na sua atuação. O
psicólogo escolar educacional também está relacionado a sua capacidade de auxiliar
os indivíduos a enfrentar futuras situações que lhes afetarão a vida (ROSSI, 1996).
O fazer do psicólogo Escolar Educacional (PEE) está atrelado às relações a
serem estabelecidas ou já estabelecidas na instituição escolar pelos principais atores
desse âmbito: professores, alunos, pais e demais profissionais presentes. Sendo assim,
o PEE tem como uma das principais funções atuar como mediador dessas relações
e do processo educativo (PETRONI; SOUZA, 2014).
Além disso, de acordo com Martínez (2010), está entre as novas formas de
atuação do PEE participar das principais decisões quanto ao projeto político peda-
gógico da escola e acompanhar sua execução. Bem como identificar e desenvolver
as habilidades dos alunos por meio da construção de estratégias e métodos criativos,
juntamente com a comunidade escolar e de acordo com a realidade da instituição,
maximizando o processo de ensino aprendizagem (DIAS; PATIAS; ABAID, 2014).
Ademais, entre os níveis de atuação que o psicólogo pode ter no contexto
educacional está o de prevenção, que pode ser por meio da prática inclusiva na qual,
de acordo com Machado, Almeida e Saraiva (2009), o PEE deve buscar estratégias
e criar possibilidades ao aluno de superar suas dificuldades e déficits, bem como a
garantia do direito de inclusão desses alunos no ambiente escolar.
Então, para que o PEE tenha êxito, é necessário que inicie seu trabalho conhe-
cendo a instituição onde irá atuar. Não esquecendo que o ensino aprendizagem, por
ser dinâmico, necessita ser realizado com a colaboração de outros sistemas da escola,
ou seja, com os demais funcionários, tornando-se um trabalho multidisciplinar.
A fim de alcançar estes papéis, a formação do PEE deve estar justamente atrelada
a este processo preventivo. É muito importante, pois, o momento do estágio super-
visionado, para além de necessariamente estar embasado em práticas que reforcem
este lugar a partir de diagnóstico, intervenção e avaliação (CORREIA, 2004), se
voltar para o afastamento de conceitos clínicos e suprir a necessidade no que tange
o aprendizado dos alunos sobre as práticas que divergem do campo teórico e se
mostram mais desafiantes nas realidades educacionais brasileiras, contribuindo para
a compreensão de que o PEE precisa estar engajado na instituição escolar como um
Metodologia
O estágio supervisionado em Psicologia Escolar Educacional dividiu-se em qua-
tro momentos: discussão teórica, planejamento, intervenção e análise dos resultados.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 413
remota, mais especificamente pelo Google Meet, para a realização das videoconfe-
rências digitais, e pelo Google Forms, para o levantamento dos dados dos alunos
referente aos temas que fossem de seus interesses.
Para o 1º ano do Ensino Médio foi realizada uma live com os alunos e a produção
de uma cartilha direcionada aos pais. Para a live os estagiários organizaram apresenta-
ção de slides com os principais tópicos debatidos em cada um dos temas trabalhados
(Educação Sexual, Violência e Responsabilidade). Também se fez uso de estratégias
para incentivar a interação dos alunos, como o uso de memes, imagens e um quiz sobre
alguns dos conteúdos apresentados. A cartilha, por sua vez, foi elaborada em uma lin-
guagem acessível, com uma configuração pensada para facilitar o entendimento. Nesse
sentido, foram inseridas diversas imagens e símbolos para ilustrar determinados pontos,
ressaltar questões e estimular a imaginação e o interesse pelo material.
Para os alunos do 2º ano, assim como para os do primeiro, foi feita uma live
utilizando o recurso de uma cartilha direcionada sobre a compreensão do tema “Saúde
mental e sexualidade” voltada para os alunos e para o público em geral do ambiente
escolar, na qual, além de um conteúdo informativo foram inseridas dinâmicas refle-
xivas sobre os conceitos deturpados acerca do tema com a utilização de charges e
perguntas disparadoras.
Foi ofertado, para ambas as séries, o serviço de Plantão Psicológico Virtual
de Escuta e Acolhimento. Aos alunos do 1º ano, foram destinados os dias de terças
e quintas pela manhã; para os alunos do 2º ano foram destinados os mesmos dias,
porém em horários diferentes. Às terças a equipe se disponibilizou por dois turnos,
das 8h às 11h e das 14h às 17h e às quintas, o tempo ofertado foi das 8h às 11h.
Por fim, após a realização das intervenções foi elaborado um relatório contendo
e discutindo as experiências ocorridas no estágio. Além disso, foi realizada uma reu-
nião final entre os discentes e a supervisora com a finalidade de apresentar e debater
as experiências de cada grupo na prática do estágio.
Resultados e discussão
Como resultados, é preciso avaliar a divergência que houve entre a demanda apresen-
tada pelos coordenadores da escola com as demandas que surgiram dos alunos a partir dos
questionários aplicados de forma virtual. Além disso, é necessário levar em consideração
414
É com olhar otimista que podemos perceber que esse período pandêmico vai
ter seu fim e que um ideal de normalidade irá retornar, mas aprendemos algo nesse
contexto? Ou tudo vai ficar escamoteado? Naturalmente, com o retorno das ativida-
des presenciais, as investigações e intervenções dos PEE vão retornar para modelos
anteriores, porém há algo que pode se levar destas soluções remotas.
Houve baixa adesão dos alunos às nossas intervenções: plantão e live. Para o
plantão destinado aos alunos do primeiro ano, não houve procura e para a live apenas
cinco pessoas compareceram. Para o segundo ano, houve a busca pelo plantão por
apenas um aluno e na live realizada compareceram três alunos. De início essa baixa
frequência nas atividades produziu efeitos ansiosos nos estagiários, pela frustração
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de uma relação. Mas seriam necessários outros estudos e vivências para constatar se
tais situações produziriam efeitos positivos.
É importante mencionar que apesar de ter havido poucos alunos (cinco alu-
nos provenientes das cinco turmas de primeiro ano e três alunos de duas turmas de
segundo ano), a participação destes foi bastante satisfatória, o que consideramos
como um feedback positivo do trabalho. A baixa frequência foi proveitosa pois todos
os alunos desejavam participar da intervenção. Não havendo a “obrigatoriedade” da
participação, a qualidade desta é outra, pois a atividade da Psicologia na escola não
é apenas um momento recreativo, mas algo que realmente faz sentido para aqueles
que acharam interessante as propostas e se identificaram com os assuntos.
contexto escolar. Relatos que pareciam indicar a necessidade de procura pelo plantão
de escuta e acolhimento psicológico para que algumas demandas pudessem ser aco-
lhidas, algo que foi observado de forma mínima. Assim, surgem questionamentos e
hipóteses acerca da existência de dificuldades em falar sobre o tema saúde mental e
seus atravessamentos por não ser este acolhido com frequência pelas pessoas.
De acordo com Goffman (2004), o estigma envolve a sinalização de grupos
que devem ser evitados e excluídos por serem marcados por algum tipo de diferença
em relação à norma social. Os indivíduos em adoecimento mental estão sujeitos a
processos de estigmatização devido a existência de discursos que compreendem este
estado como “desvio”, “deficiência” e “fraqueza”. Em nosso modelo de organização
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neoliberal ocorre uma reafirmação desse lugar de exclusão de indivíduos que “falham”
frente às cobranças por produtividade, resultados e adequação (COIMBRA, 2000).
É preferível que o sofrimento seja patologizado e medicalizado, de modo a
gerar lucro, ao invés de ouvido e acolhido. Justifica-se, assim, uma série de práti-
cas marcadas pela discriminação e desvalidação da experiência desses indivíduos.
Realidade que se estende ao contexto escolar na qual os alunos, ao entrar no ensino
médio, se deparam com cobranças excessivas e as mudanças próprias da adolescência
e início da vida adulta.
As demandas de saúde mental se relacionam com experiências de violências, a
sexualidade e as cobranças às quais os alunos estão submetidos, temas que apareceram
no questionário e foram abordados na live. Dessa forma, os estagiários promoveram
discussões sob um viés contextualizado e de responsabilidade coletiva em detrimento
a uma visão que potencializa a culpabilização do indivíduo em relação aos seus
processos de adoecimento.
Os processos de educação podem viabilizar a reprodução dos preconceitos asso-
ciados aos alunos que estão em adoecimento ou possuem algum transtorno mental.
Contudo, também podem promover a sua desconstrução, visto que a educação é uma
ferramenta importante para dialogar, problematizar e romper com os preconceitos
presentes na sociedade (CASTILHO, 2009 apud SANTOS et al., 2019).
Além disso, é interessante destacar o sentimento de angústia dos estagiários
perante os desafios enfrentados nas intervenções, principalmente envolvendo as
expectativas sobre o papel do psicólogo e as dificuldades que o período remoto
apresenta. A prática de estágio por si só carrega diversos desafios pela sua novidade
e por ser um dos primeiros momentos em que o psicólogo em formação lida com a
realidade da sua profissão (GONÇALVES; VERAS, 2019).
Lidar com as expectativas talvez seja o maior desafio dentro da prática de estágio
e, nisso, a atenção do professor supervisor é essencial. Ao planejar uma intervenção,
o estagiário pode estar imerso a uma busca de participantes ideais, sendo, no nosso
caso, tanto os discentes quanto os docentes. Conforme Machado (2007), para rom-
per com estas queixas, é necessário buscar aliados dentro das instituições a fim de
construir uma prática coletiva.
Outra forma de angústia comum dentro do ambiente de estágio em Psicologia
Escolar Educacional advém justamente da contradição aparente entre aquilo que foi
418
estudado dentro de sala de aula e a prática possível, dentro daquilo que é demandado
pela escola (GOMES, 1999). Isso foi sentido particularmente quando a própria escola
apresentou uma demanda específica, que foi de encontro com o que de fato foi per-
cebido pelo uso de questionários com os discentes. Era esperado, nesse sentido, que
fosse possível ter momentos de investigação a fim de promover uma ação preventiva.
Nesse sentido, o psicólogo estagiário precisa perceber a dinâmica do funcio-
namento da própria instituição e, com isso, verificar quais as demandas que surgem
a partir das investigações, sendo capaz de produzir rachaduras a partir daquilo que
está naturalizado dentro do ambiente estudado (ULUP; BARBOSA, 2012).
Os desafios supracitados já são recorrentes dentro da literatura do estágio curricular
Considerações finais
Atividades voltadas para o público adolescente são sempre importantes, pois a
adolescência, por ser uma fase da vida permeada por conflitos de identidade e des-
cobertas, precisa receber orientações e referências para que os adolescentes cheguem
à vida adulta de forma saudável, ou seja, com as questões típicas da adolescência
resolvidas e bem elaboradas a fim de se tornarem adultos saudáveis e criativos tanto
para si mesmos quanto para a sociedade como um todo.
Ademais, cabe ao psicólogo escolar educacional trazer assuntos relevantes
sobre adolescência para a escola e seus agentes, propondo debates construtivos com
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 419
o objetivo de desenvolver a cidadania do estudante para que assim ele possa ter
uma melhor qualidade na sua formação, priorizando a conscientização acerca da
pluralidade de condições possíveis de expressão de si e dos outros, contribuindo
para formas menos violentas de existência, priorizando sempre o acolhimento das
diversidades e a busca pela saúde mental. O projeto desenvolvido pelo estágio teve
como base essa premissa, a partir do trabalho com temas sobre sexualidade, violência
e desenvolvimento da adolescência. Foi oferecida também uma escuta mais ativa
sobre as questões que os alunos manifestavam sobre esses assuntos.
A partir dessa premissa e das respostas coletadas no instrumento de avaliação ini-
cial da demanda do público, consideramos relevante programar as atividades do estágio
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da maneira exposta neste trabalho, visto que a ideia era que os alunos participassem
ativamente do encontro assim como fosse uma intervenção que perdurasse perante a
comunidade acadêmica alcançando inclusive os educadores. Adaptações foram feitas
também ao longo de todo o projeto de estágio visando respeitar o tempo da escola.
Por não ser uma atividade obrigatória, houve poucos participantes; no entanto,
os que estiveram presentes foram por interesse próprio no tema, o que contribuiu
significativamente para o sucesso da proposta. A participação dos jovens foi essencial,
pois entendemos que essa troca abre caminhos para que eles possam construir saberes
sobre si mesmos, sem copiar modelos prontos ou aplicar fórmulas de sucesso em suas
vidas, respeitando suas subjetividades e as realidades em que estão inseridos. E o
conhecimento adquirido poderá ser utilizado pela escola para planejar novos projetos
de intervenção com os temas sugeridos pelos próprios estudantes e contribuir para
formas mais criativas de acesso aos jovens.
Dito isto, conclui-se que o objetivo do trabalho foi alcançado. Ademais, para
promover e reiterar a importância do Psicólogo Escolar Educacional (e dos estagiários
de Psicologia) dentro da escola, sugere-se que atividades como esta sejam oferecidas
com regularidade aos adolescentes. A partir da experiência relatada neste trabalho,
entende-se que este tipo de atividade, deve ser planejada a partir de um conhecimento
mais amplo do público escolar e de seus anseios, que seja direcionada apenas a um
tema específico por encontro, para que não se torne cansativa em virtude da carga
horária e que não seja um mero repasse de conteúdos e informações, mas sim um
momento de trocas frutíferas com foco nos eixos que envolvem a saúde mental.
420
REFERÊNCIAS
ALARCON, D. F.; LEONEL, A. A.; ANGOTII, J. A. O estágio curricular supervi-
sionado em tempos de pandemia: experiência em um curso de ciências biológicas.
EmRede, v. 8, n. 1, p. 1-14, jan./jun. 2021.
SANTOS, D.; SILVA, I.; BARBOSA, V.; FERREIRA, S.; BARROS, C. Práticas
educativas em saúde mental: a escola como espaço para a ruptura dos estigmas
sobre a doença mental. Rev. Principia: divulgação científica e tecnológica do IFPB,
n. 46, 2019.
Introdução
A adolescência é frequentemente descrita como uma fase de inúmeras e com-
plexas transformações e mudanças, tanto de ordem biológica quanto emocional e
social. Assim, é mister ressaltar que os adolescentes não podem passar incólumes a
essa fase do ciclo de desenvolvimento humano. Isto decorre do fato de, na referida
fase, se fazerem presentes situações novas e impasses que inundam o mundo dos
jovens, que podem ser vivenciados de modo peculiar, por meio das manifestações de
pensamentos, comportamentos e sentimentos singulares, saudáveis ou com sofrimento
psíquico. Tal miscelânea poderá ser representada de diversas formas, em função da
própria subjetividade dos adolescentes ao se depararem com essas situações novas
e impasses, mais especificamente com a necessidade e até mesmo a obrigatoriedade
da escolha de uma profissão.
O próprio termo adolescência – etimologicamente composto pelo prefixo latino
ad, o qual significa para a frente, e o complemento dolescere, que designa crescer,
com dores – já denota tratar-se de um período de transformações, de crises, sendo as
principais transformações não apenas de natureza anatômica e fisiológica, mas tam-
bém de natureza psicológica, especialmente voltadas para a busca de uma identidade
individual, grupal e social (ZIMERMAN, 1999). Desse modo, a adolescência pode
ser compreendida como um período em que o indivíduo se redefine como pessoa,
notadamente marcado pela “busca de si mesmo, numa transição da identidade infantil
para a identidade adulta” (LEVISKY, 1998, p. 35). Ressalta-se que essa transição será
vivida com maior ou menor dificuldade, bem como “a resultante dessa busca exerce
papel fundamental na formação e consolidação da estrutura básica da personalidade”
(LEVISKY, 1998, p. 35).
1 Mestra em Psicologia Clínica e Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Especialista em Docência
do Terceiro Grau pela União das Escolas Superiores do Pará. Professora da Universidade Federal do
Pará (UFPA).
424
Método
Participantes
Participaram das atividades todas as turmas do segundo ano, porém nesse estudo
foram apresentados apenas os dados referentes a uma das turmas, em que o total de
alunos no dia da atividade foi de dezoito, com faixa etária entre dezesseis e dezes-
sete anos, com maior predominância de adolescentes do sexo feminino, sendo doze
mulheres e seis homens. Utilizou-se nomes de flores para identificar os participantes.
Instrumento
Procedimento
Resultados e discussão
continuação
Aluno Questão 1 – Ser adolescente Questão 2 – Escolher uma profissão é Questão 3 – Quando penso
é [...] [...] na escolha profissional me
sinto [...]
A11 – Amarílis “depressivo, senti muita “estressante ter de definir o futuro “estressada, medo do
coisa misturada”. sozinha”. futuro”.
A12 – Cravina “às vezes bom, mais muito “estresse me acho muito nova pra isso, “imatura”.
estressante, estudar, esco- aí choro”.
lher, corpo diferente, cabeça
vaga...”.
A13 – Begônia “depressivo, dá medo, “dá angústia e medo de tudo, mais ainda “angustiada, com muito
esquisito”. quando fala de ENEM”. medo”.
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A14 – Camélia “não saber quem a gente é”. “perturbador, tira o sono, dá medo de não “muito medo, insegura”.
conseguir”.
A15 – Calêndula “não entender o que sente, “muita pressão de todos para escolher “com muito medo de errar”.
fica confusa, tudo mudando e acertar”.
rápido”.
A16 – Lírio “radical, não sei explicar”. “difícil, sinistro, triste, impossível não “triste”.
surtar”.
A17 – Gérbera “difícil de definir, não sei”. “difícil tem muita pressão de todos os “triste, angustiada”.
lados”.
A18 – Hortência “confuso, angustiante, muda “triste ter de escolher agora”. “depressiva”.
muito tudo rápido, bem rá-
pido mesmo”.
Total 18 respostas
Fonte: COSTA, 2019 (não publicado).
Considerações finais
Considera-se que vivenciar a adolescência como uma etapa do desenvolvi-
mento que não se modifica de forma instantânea e nem da mesma forma para todas
as pessoas e também ser convocado a fazer uma escolha profissional ainda durante
este ciclo se evidencia com a manifestação de sofrimento, dúvidas, desconhecimento
da realidade socioprofissional, incertezas e dilemas, produtos de um processo cons-
truído na história singular do desenvolvimento humano desde a infância e refletindo
a natureza da integração da personalidade de cada sujeito e da história de vida e
do contexto no qual vem se desenvolvendo, momento este de muitas demandas e
exigências a serem cumpridas como a busca da identidade, a busca de um lugar
no mundo, a tomada de decisão, dentre outras; demandas estas que podem desen-
cadear intenso sofrimento psíquico para o adolescente, para sua família e para a
sociedade, causando-lhes prejuízos psicológicos, principalmente quando existem
conflitos inconscientes não resolvidos. Assim, destaca-se que na vivência deste
contexto existencial específico, aos adolescentes deve ser possibilitado o acesso
432
REFERÊNCIAS
ABERASTURY, A.; KNOBEL, M. Adolescência normal: um enfoque psicanalítico.
3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
Esse modo de fazer pesquisa se ancora na lógica das ciências humanas, que se
distanciam da tradição estrutural-funcionalista que opera com o objetivo de alcan-
çar uma verdade mais asséptica, volumosa produção de dados e que privilegiam a
confirmação de hipóteses previamente construídas. A perspectiva fenomenológica
de investigação dirige-se ao singular e à complexa qualidade dos fenômenos que
brotam nos encontros interpessoais.
A escolha por essa modalidade analítica-vivencial, se deve ao reconhecimento
de que, o território de cuidado dos redutores de danos se realiza a partir de prática
fenomenológica compreensiva, que permite aos personagens envolvidos uma vivência
permanente de aprendizagem.
Percurso metodológico
Este artigo se constitui em um relato de experiência e descreve a trajetória de
realização da pesquisa de mestrado profissional realizado pelo primeiro autor no
programa de pós-graduação de Psicologia e Intervenção em Saúde da Escola Bahiana
de Medicina e Saúde Pública nos anos 2019 e 2021. O trabalho deriva da produção
de dados de uma pesquisa de doutorado intitulada: Invenções de Cuidado, perspec-
tivas clínicas em saúde mental e redução de danos (OLIVEIRA, 2020) aprovada
pelo comitê de ética da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública sob parecer de
número nº 2.809.812; CAAE 90497418.0000.5544.
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um certo conhecimento sobre o tema. Não se trata de uma conversa superficial, com
um propósito informal. Há método, uma estrutura e uma racionalidade que funda-
menta o modelo de trabalho de construção narrativa e produção de conhecimento.
Nesse método, o entrevistador deve estar profundamente implicado no processo.
A atividade demanda deslocamentos tanto nos diferentes espaços físicos de contextos
variados das entrevistas, quanto dos lugares subjetivos que ele precisa estar durante
a entrevista. A plasticidade no fazer é uma característica marcante tanto da entrevista
compreensiva quanto do trabalho do redutor de danos, pela própria exposição às
distintas variáveis implicadas nos contextos.
Essa flexibilidade que caracteriza o processo de entrevista compreensiva e o
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trabalho do redutor de danos, tem uma dimensão prática, mas de natureza intelectual.
Ambos sujeitos são afetados pelo encontro que singulariza o processo qualitativo de
pesquisa. A abordagem qualitativa fenomenológica-compreensiva investiga e percebe
as diferenças como formas de criar teorias a partir da contribuição e construção de
saberes conjuntos.
É importante lembrar que ontologicamente a prática e a formação da função e
dos sentidos de trabalho dos redutores de danos é confeccionada de maneira dialógica
em um movimento de construção intencionado ao cuidado, se constituindo em modos
e métodos de intervenção. A contribuição imprescindível das pessoas que também
fazem uso de drogas com suas vivências e seus modos possíveis e particulares de
cuidados junto aos saberes científicos, constroem uma perspectiva mais democrática
e humanizada que sustenta cuidados e direitos.
proteção em locais muitas das vezes “nocivos” aos usuários. Relatou experiências
pessoais passadas com uso abusivo de substâncias psicoativas e afirmou que essas
experiências no território onde atualmente trabalha contribuem para o manejo na
relação com as pessoas em sofrimento por uso abusivo de substâncias psicoativas.
Em sua fala sobre o trabalho com a redução de danos, ressaltou a necessidade
de saber se aproximar dos usuários, a criação de um laço afetivo e aproximação física
e a importância de manejar as dimensões técnica-afetivas na relação com os usuários
como fatores importantes na efetividade do cuidado.
Ao término da entrevista, a sensação era de agradecimento pela qualidade da
presença e das informações que tinham circulado. Enquanto a entrevista acontecia, foi
Considerações finais
O presente relato de experiência discute a singularidades observadas no manejo
da clínica de cuidado os redutores de dano que atuam junto a usuários de substâncias
psicoativas moradores de rua na cidade de Salvador.
Os caminhos percorridos pelo entrevistador/pesquisador no curso do processo
de coleta de informações para uma pesquisa de mestrado assinalaram a proximidade
entre a metodologia fenomenológica-compreensiva adotada pelo pesquisador e a
prática cotidiana do RD. Nela o trabalho de aproximação e construção de vínculo
são tecidas na rua, na linguagem, através do corpo e dos afetos, desses profissionais
A metodologia compreensiva se diferencia de outros métodos, por vivenciar
a relação entre os participantes como um encontro intersubjetivo que valoriza os
afetos, a singularidade e relevância das narrativas dos entrevistados, abrindo-se para
um diálogo flexível e de construção conjunta na direção de objetivos comuns. Os
participantes são mutualmente afetados tanto no contexto interrelacional, quanto dos
fenômenos externos decorrentes dos contextos de cada entrevista.
As práticas de trabalho dos Redutores de Danos se caracterizam por atos sin-
gulares, que fazem toda diferença no manejo com os usuários de drogas que vivem
pelas ruas. Em suas práticas foi encontrado muita disponibilidade para o cuidar de
444
REFERÊNCIAS
AYRES, J. R. C. M.; CALAZANS, G. J.; SALETTI FILHO, H. C.; FRANCA
JUNIOR, I. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde.
In: TRATADO de saúde coletiva. São Paulo: HUCITEC/ FIOCRUZ, 2009.
SEVALHO, G. The concept of vulnerability and health education based on the teory
laid out by Paulo Freire. Interface, Botucatu, v. 22, n. 64, p. 177-88, 2018.
Introdução
O inconsciente é o ponto central da teoria psicanalítica, a pedra angular, sobre
a qual se concentra toda a obra freudiana. Freud (2018), através de sua experiência
clínica diz que o psiquismo não se reduz ao consciente e que certos conteúdos só
são possíveis à consciência após serem superadas certas resistências (CORDEIRO,
2010). No livro A Interpretação dos Sonhos, Freud (2019, p. 668) traz:
[...] vejo tais desejos inconscientes como sempre ativos, sempre dispostos a achar
expressão quando lhes é oferecida uma oportunidade de se aliar a um impulso
do consciente e de transferir sua grande intensidade para a deste, que é menor
(FREUD, 2019, p. 604).
Nesse sentido, ele tem por modelo a primeira experiência de satisfação e, para
além desta experiência, permite orientar dinamicamente o sujeito na busca de um
objeto suscetível de proporcionar essa satisfação, a qual não existe, pois a dimensão
do sujeito não tem outra realidade que não uma realidade psíquica. É a pulsão que
encontra (ou não) um objeto de satisfação na realidade.
Para Lacan (1999), o desejo nasce da defasagem entre a necessidade e a demanda
e se define de fato e em primeiro lugar, epistemologicamente, em sua relação intrín-
seca com a ordem biológica das necessidades e com a ordem linguageira da demanda
de amor. O homem deseja, porque a satisfação de suas necessidades vitais passa pelo
apelo dirigido a um Outro (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). A dimensão do desejo
aparece intrinsecamente ligada a uma falta que não pode ser preenchida por nenhum
objeto real. Além do fato de que esse vazio circunscreve um lugar a ser ocupado por
qualquer objeto, tais objetos irão sempre constituir-se como objetos substitutivos do
objeto faltante. Neste sentido, não existe, na realidade, objeto do desejo, a não ser que
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 449
designe tal objeto como “objeto eternamente faltante”. Portanto, o objeto pulsional só
pode ser um objeto metonímico do objeto do desejo (ROUDINESCO; PLON, 1998).
Para ilustrar o desejo, na psicanálise, trago o mito grego de Sísifo. Sísifo era rei
de Corinto, que, depois de seduzir a sobrinha, roubar o trono do irmão, trair a con-
fiança de Zeus, foi condenado a ficar acorrentado no tártaro; mas Sísifo era ardiloso.
Ele atrai Tânatos (deusa da morte), e consegue prendê-la em seu lugar. Sísifo foge
e nenhum ser humano iria mais morrer, o que desagrada a Ares (o deus da guerra),
o qual solta Tânatos e manda Sísifo de volta ao tártaro, mas dessa vez o castigo era
outro. Sísifo é condenado a empurrar uma pedra até o topo da montanha, um trabalho
eterno, pois sempre que chegava ao topo, a pedra rolava de novo para baixo.
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Entre essas satisfações pela fantasia se destaca a fruição de obras de arte, que
por intermédio do artista se torna acessível também aos que não são eles mesmos
criadores. Quem é receptivo à influência da arte nunca a estima demasiadamente
como fonte de prazer e consolo para a vida. Mas a suave narcose em que nos induz
a arte não consegue produzir mais que um passageiro alheamento às durezas da
vida, não sendo forte o bastante para fazer esquecer a miséria real.
Ademais, acredito que essa pesquisa tem uma relevância para a psicologia, com
contribuições acerca do inconsciente, ou seja, o psíquico e sua expressão através da
arte, sobretudo, para a arte no Brasil, visto que há uma desvalorização em relação a
essa área. De acordo com Abreu (2017), há quem desvalorize toda a vertente artística,
ou simplesmente não lhe dá importância. Dizem que a arte não dá de comer. Por
vezes, as obras de arte são alvo das mais injustas críticas.
3 Em Freud (2019), encontramos a palavra “realização” para falar dos desejos (por exemplo: o sonho é uma
realização – disfarçada – de desejos), e temos a palavra “satisfação” para falar da pulsão (a pulsão busca um
objeto que possa satisfazê-la). Ainda que Freud apresente estes dois termos para especificar os conceitos de
desejo e o de pulsão, seguirei usando com liberdade o termo satisfação – e o seu antônimo – para falar do
desejo inconsciente, uma vez que esta ideia se presta a indicar relações entre a obra de arte e a psicanálise.
450
Todavia, a arte faz parte da vida humana antes mesmo da escrita, pois era
através da pintura nas paredes de uma caverna que o homem se comunicava e se
relacionava com os outros. Na pintura, idealizavam os seus pensamentos, seus ins-
tintos; planejavam os rituais da caça, simbolizavam o mundo feminino e masculino
(MALLMANN, 2013). Ou seja, a arte sempre foi uma via de expressão. Do latim
ars, a arte tem como conceito englobar todas as criações realizadas pelo ser humano
para expressar uma visão do mundo, seja este real ou imaginário, transmitindo ideias,
emoções, percepções e sensações. Além disso, Freud (2010) traz que a arte é uma
forma sublimatória dos instintos, ou seja, consiste em deslocar as metas dos instin-
tos, já que eles não podem ser atingidos pela frustração a partir do mundo externo.
4 Um dos destinos possíveis do complexo de Édipo nas mulheres. O que para Freud se faz acompanhar de
certa mácula: nunca superar completamente a inveja do pênis, jamais ter um supereu adequadamente
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 451
os seguintes descritores: arte, Frida Kahlo, psicanálise. O intuito era saber quais obras
apresentariam elementos para contemplar o objetivo deste estudo. Após esta primeira
fase da pesquisa, foram estabelecidos como critérios de exclusão artigos que faziam
referência à arte como forma de superação, suporte, uma vez que a pretensão foi,
através deste estudo, lançar um olhar outro, renovado, sobre as obras de Frida Kahlo,
articulando as categorias privilegiadas no trabalho. Serão analisadas duas obras de
Frida Kahlo, O Hospital Henry Ford” do ano de 1932 e Autorretrato con Pelo Corto,
do ano de 1940, que favorecem pensar questões sobre o desejo da feminilidade. O
acesso às obras se deu via online pelo site Wikiart – Enciclopédia de artes visuais e
também pelo livro O Diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo.
Para fins de fundamentar a leitura das obras de Frida Kahlo com base no refe-
rencial psicanalítico, serão privilegiados alguns textos da coleção de Sigmund Freud,
em especial A interpretação dos sonhos, de 1900, e O mal-estar da civilização, de
1930, bem como algumas releituras de Lacan (1999); além da recorrência aos clás-
sicos, também serão utilizados, autores contemporâneos como Tania Rivera (2008)
e dicionários de psicanálise.
Frida Kahlo
Filha de pai alemão e mãe espanhola, Magdalena Carmen Frida Kahlo y Cal-
derón, mais conhecida por seu pseudônimo artístico, Frida Kahlo, nasceu no dia 06
de julho de 1907, na vila de Coyoacán, próxima à cidade do México. Frida teve uma
vida marcada por doenças: com seis anos de idade contraiu poliomielite, que lhe
estabelecido de modo a poder ocupar lugar de produção na cultura, viver eternamente presa às condições
pré-edípicas da sexualidade e, portanto, a uma forma narcísica de amar (POLI, 2007). Freud trabalha com
três possíveis saídas para a menina no Complexo de Édipo. Tendo em vista, que, a descoberta de que é
castrada é algo decisivo na constituição feminina, a partir disso, a menina teria três linhas possíveis: “uma
conduz à inibição sexual ou à neurose” – decorre do fato de a menina, assustada pela comparação com os
meninos, sentir-se inferiorizada com o seu clitóris. Outra, à modificação do caráter no sentido de um complexo
de masculinidade – faz com que ela se agarre de forma desafiadora à sua masculinidade ameaçada,
acreditando na possibilidade de obter um pênis, podendo resultar numa escolha de objeto homossexual
manifesta. A terceira saída, finalmente, se refere à feminilidade – tornar-se mulher pela maternidade e pela
passividade, possibilita à menina encontrar o caminho da feminilidade definitiva pela substituição de seu
desejo masculino de ter um pênis do pai por um desejo feminino de maternidade (ter um filho do pai) e
pela substituição do gozo ativo masculino do clitóris pelo gozo passivo da vagina” (FREUD, 2016, p. 126).
452
deixou uma sequela no pé. Com 18 anos sofreu um grave acidente de ônibus, sendo
que, durante o período em que esteve se recuperando, surgiu a pintora. Frida levou
meses para se recuperar. Ao todo foram necessárias 35 cirurgias. Sua mãe colocou um
espelho sobre sua cama e um cavalete adaptado para que ela pudesse pintar deitada.
Pintou vários autorretratos, 55 ao todo, que representam um terço de toda sua obra, ela
justificava dizendo: “Pinto a mim mesma porque sou sozinha e porque sou o assunto
que conheço melhor”. Em 1929, Frida casa-se com Diego Rivera. A história de Frida
e Diego começou quando ela foi lhe mostrar suas obras para saber sua opinião. Frida
tinha então 22 anos e Diego era 21 anos mais velho que ela. Ele já havia sido casado
várias vezes e tinha três filhas, além de inúmeros casos com mulheres.
O desejo da feminilidade
A obra da artista Frida Kahlo fascina por suas constantes alternâncias de signos como
da feminilidade e masculinidade. Entretanto, o desejo feminino é semelhante ao desejo
da criança pelo falo. Ou melhor, o desejo feminino é semelhante àquele desejo alienado
da criança ao desejo da mãe, que é o falo. E o falo é um objeto metonímico; ou seja, a
feminilidade é, também, fundamentalmente metonímica (RIVERA; FERREIRA, 2008).
Rivera e Ferreira (2008) complementam, que, durante a fase pré-edipiana, o
objeto materno começa a ser reconhecido pela criança de forma alternada. Ora ele é
mais, ora é menos; ora é ausência, ora é presença. E é daí, dessa alternância, que se
origina a condição fundamental para o nascimento de uma ordem simbólica. Sendo
assim, podemos identificar, no desenvolvimento feminino, constantes alternâncias:
alternâncias de objeto de amor, alternâncias de zona erógena e alternâncias entre ati-
vidade e passividade. Geralmente se consideram como características da feminilidade
as preferências por fins passivos, entretanto, “para chegar em fins passivos, pode ser
necessária uma grande parcela de atividade” (FREUD, 1933, p. 116).
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 453
No quadro O Hospital Henry Ford, de 1932 (Figura 1), Frida aparece nua, toda
ensanguentada, deitada numa cama de hospital, segurando seis fitas que parecem sair
de seu corpo e que ligam a seis elementos: a) um modelo anatômico do corpo humano
da cintura à coxa; b) o osso da bacia; c) um feto, cuja fita se amarra a um pedaço de
seu cordão umbilical cortado; d) um caracol; e) uma orquídea violeta; e f) uma peça
de máquina que, juntamente com o cenário no fundo do quadro, faz referência a um
lugar industrializado (RIVERA; FERREIRA, 2008).
A peça de máquina e o fundo industrial são cinza, frios, distantes, e, soma-
dos a esse cenário, vemos uma pequena e frágil Frida, deitada no canto de uma
cama enorme de hospital. Essa cama, em que Frida escreveu o nome de um
hospital e de uma cidade, flutua no meio do quadro, no meio de uma paisagem
limpa e pouco acolhedora. Não existem paredes, de modo que Frida, no quadro,
está sozinha, sofrendo e completamente exposta. (RIVERA; FERREIRA, 2008).
Esse quadro remete, mais uma vez, a sofrimento e perda. Os elementos amarrados
estão escapando e ela tenta segurá-los com as mãos. O feto no centro do quadro
é o feto abortado, o sangue sobre o lençol branco e sobre Frida nos indica isso.
Frida pinta um caracol ou uma concha como uma forma própria de representar
a sexualidade feminina e a vida, o amor. (RIVERA; FERREIRA, 2008). Assim
como no quadro Autorretrato com cabelo cortado, o amor e a sexualidade são
importantes elementos que marcam a obra.
454
Em 1940, Frida pintou o quadro Autorretrato com cabelo cortado (Figura 2).
Nele, ela se apresenta sentada numa cadeira, com roupas masculinas e largas e com
uma tesoura na mão. Grandes mechas de cabelos pretos estão espalhadas por todo o
chão, pelo seu colo e sobre a cadeira. Na parte superior do quadro ela pintou o verso
de uma canção mexicana: “Olha, se te amei foi pelo teu cabelo, agora que estás careca,
já não te amo”. Em grande parte dos seus quadros, Frida é pintada com vestidos
tradicionais mexicanos, com seus longos cabelos soltos ou em tranças e com alguns
adereços como colares e brincos, entretanto, nesse quadro ela se veste com um terno
masculino, tão largo que seria impossível dizer se é um corpo masculino ou feminino
que se encontra por debaixo dessas roupas. Seus cabelos não aparecem simplesmente
curtos, eles aparecem cortados pela tesoura que Frida segura e espalhados por todo
o chão da tela. O único adereço que permanece é o brinco, um elemento feminino
(RIVERA; FERREIRA, 2008).
Os cabelos chamam atenção desde a letra da música escrita na parte superior
da tela até a forma como aparecem espalhados no chão, enroscados na cadeira e
colocados sobre a perna de Frida. Devido a essa dimensão que é dada aos cabelos
na tela, podemos dizer que os cabelos são tomados como significantes provisórios
da sexualidade feminina: “Agora que estás careca, já não te amo”. Há, nessa tela, a
remissão à perda e essa perda gera sofrimento pela possibilidade de uma segunda
perda, que é a perda de amor (RIVERA; FERREIRA, 2008).
Além disso, a obra de Frida Kahlo é marcada também por uma questão impor-
tante, a falta. O próprio início de sua obra parece marcar as origens dessa falta. Lacan
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 455
(1999) relata que as idas e vindas da mãe deixam claro para a criança que ela não
satisfaz a mãe, que ela não é o objeto de desejo da mãe, ela não é o falo. Portanto,
essas caprichosas idas e vindas representam o falo – aquilo que a mãe não tem e
deseja ter – e a criança passa, então, a desejar ser o falo da mãe. O que é desejado
na mãe está, portanto, para além dela mesma e se constitui justamente naquilo que
lhe falta (RIVERA; FERREIRA, 2008). A feminilidade é, portanto, determinada por
uma perda, que é, primordialmente, perda do falo. Essa perda não é sem efeitos para a
menina e deixará traços em seu desenvolvimento. Se a menina é marcada pela ausên-
cia do falo, podemos afirmar que falta um significante para a sexualidade feminina.
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Considerações finais
[...] quero uma realidade inventada.
Clarice Lispector
A escrita deste artigo teve a intenção de mostrar a imensidão da arte – que não se
esgota, não se limita, que permite ser inventada, assim como, (re)criada, (re)interpre-
tada –, e também destacar a relevância deste trabalho para estudos futuros, tendo em
vista, a amplitude que a arte pode oferecer junto à psicanálise, por exemplo a femi-
nilidade – assunto que foi pincelado nesse escrito e que merece um aprofundamento.
Também se destacou o quanto a arte tem a função de permitir ao sujeito expres-
sar o não dito, o inominável, permite dar voz ao silêncio, assim como permite ser o
silêncio quando há muitas vozes. A arte é uma linguagem, uma forma de comuni-
cação com o outro e consigo. Ademais, cada sujeito tem sua visão de mundo, seja
ela externa ou interna, a partir das suas vivências, assim também é na arte, como
foi representado perfeitamente por Frida Kahlo. Em suas obras, ela mostra a sua
vida, mas vai muito mais além, “vemos” o seu mundo interno, assim como também
vemos o que queremos ver, que é nosso e ali está representado em uma obra. A arte
tem esse artifício, transmite ao outro um atravessamento, uma significação, a partir
do que foi vivenciado.
Diante do exposto e do trabalho em si, ainda um ponto a se ressaltar sobre
a arte é o seu uso no contexto terapêutico, ou seja, a importância da arte terapia –
dispositivo terapêutico que absorve saberes das diversas áreas do conhecimento,
constituindo-se como uma prática transdisciplinar, visando a regatar o sujeito em sua
integralidade através de processos de autoconhecimento e transformação. Este campo
recebeu influência de áreas do conhecimento como a psicanálise, que se interessou
pela arte como meio de manifestação do inconsciente, através de imagens, no qual
o artista pode simbolizar concretamente o inconsciente em sua produção, retratando
conteúdos do psiquismo.
Para refletir a respeito da arte no contexto terapêutico, novamente Freud (2010),
em O mal-estar da civilização: ele se referiu à arte como um recurso para a vida,
oferecendo gratificações substitutivas a partir de ilusões frente à realidade, pois as
fantasias possuem eficácias para o psiquismo, produzindo, assim, saúde mental.
456
Nietzsche (1992 apud FONSECA, 2005) enfatiza que, a principal questão da arte
é o seu poder instaurador, e o artista é o divinizador da vida. A arte possui raízes
profundas nas quais o intelecto não consegue chegar, isto é, segundo o filósofo, a
linguagem da arte nasce de dentro para fora. Neste âmbito, Fonseca (2005) realça
que o gesto artístico não se resume apenas em produzir belos quadros ou músicas, as
quais a psicanálise visa interpretar, o gesto artístico sustenta a produção de uma vida,
ligada a uma estética da própria existência, a vida como uma obra de arte.
Em vista disso, ao falar sobre o processo de criação, apresenta-se uma condição
de movimento, aberta a novas construções, críticas, enunciações e olhares. Nesse
âmbito, é necessário, sempre que possível, falar, expor, validar a arte, ainda mais no
REFERÊNCIAS
ABREU, Z. A (Des)valorização da Arte. Funchal Notícias, [s.l.], 3 jul. 2017. Dispo-
nível em: https://funchalnoticias.net/2017/07/03/a-desvalorizacao-da-arte/. Acesso
em: 13 set. 2020.
FREUD, S. A interpretação dos Sonhos. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019. (Obras completas, v. 4).
GUTFREIND, C. A arte de tratar: Por uma psicanálise estética. Porto Alegre: Art-
med, 2019.
KAHLO, F. Autorretrato com Pelo Corto. 1940. 1 pintura. Disponível em: https://
www.wikiart.org/pt. Acesso em: 20 set. 2020.
KAHLO, F. Henry Ford Hospital (La cama volando). 1932. 1 pintura. Disponível
em: https://www.wikiart.org/pt. Acesso em: 20 set. 2020.
458
LACAN, J. O seminário: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. (Livro 20).
Introdução
O consumo de drogas é considerado uma prática milenar e ainda é realizada por
inúmeras pessoas, de idades e culturas diferentes. As opções de drogas são variadas
desde sua composição até a forma de uso, há substâncias perturbadoras, depressoras,
estimulantes, há as que são cheiradas, inaladas, injetadas, há as produzidas natural-
mente e as sintéticas etc. Por conta dessa diversidade, não existe um consenso sobre
os propósitos de se consumir drogas. Dentre as opções que se repetem com frequência
é possível citar algumas como o uso para socializar, para relaxar, para se estimular,
para lidar com o sofrimento e para se conectar à espiritualidade. No entanto, embora
os objetivos sejam variados, é imprescindível destacar aspectos que os unem: o uso
de droga é uma experiência que, em princípio, causa prazer no sujeito ao mesmo
tempo em que silencia ou afasta seus sofrimentos psicológicos e/ou físicos.
A experiência do prazer é uma das forças motrizes do psiquismo humano –
princípio de prazer, pois é natural que se busque por estímulos que causem satisfação
de modo ilimitado e, assim, evite o desprazer (ROUDINESCO; PLON, 1998). No
entanto, a problemática dessa questão emerge quando o sujeito elege a droga como
um dos poucos objetos, ou o único, capaz de lhe proporcionar as sensações de supres-
são do mal-estar. Além disso, é importante ressaltar que o uso da droga não almeja
apenas a sensação de prazer, mas também o distanciamento das dores do existir. É
nesse contexto de prazer e desprazer, que a psicanálise analisa a subjetividade que
atravessa a relação estabelecida entre o sujeito e a droga. Assim, identifica o lugar
ocupado pela droga no psiquismo do sujeito, ou seja, estuda quais mecanismos psí-
quicos podem levar o indivíduo a escolher uma substância química para intermediar
a relação da sua subjetividade com a sua realidade.
A partir disso, o objetivo deste ensaio é descrever e analisar, por meio da teoria
psicanalítica, as relações subjetivas que o sujeito pode vir a estabelecer com o objeto
droga, perpassando o abuso e a toxicomania. Para isso, será abordada a evolução dos
estudos e do entendimento psicanalítico acerca do assunto; no campo teórico, desta-
car-se-á conceitos fundamentais como supereu, pulsões, narcisismo e função paterna.
Em suma, esse estudo se faz necessário, sobretudo, para reconsolidar a ideia de que o
abuso de drogas é uma prática singular, que deve ser entendida a partir do histórico
460
época ele já se interessava pela área neuropsiquiátrica. Assim, ele e outros médicos
apostavam na probabilidade da substância ser uma forma de tratamento medicamen-
toso, principalmente, para alguns transtornos psiquiátricos, dentre eles a depressão.
Por conta disso, debruçou-se de forma vivaz e empenhou-se nos estudos sobre a
cocaína (GURFINKEL, 2008).
No entanto, após alguns anos de uso, indicações e estudos, a esperança de
encontrar na cocaína a resolução de questões psíquicas e orgânicas foi se esvaindo,
pois no meio desse percurso ele veio a perder um colega, esse se viu sob o efeito
do vício e transgrediu a dosagem que lhe foi orientada, fato que culminou em sua
morte. Além disso, a comunidade médica da época, então, alertou que pessoas que
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estavam sob efeito de outras drogas, a morfina por exemplo, substituíam o vício e
não se curavam, de acordo com outra potencial promessa da cocaína. Após receber
críticas por essas e outras considerações acerca do alcaloide, Freud foi não apenas se
afastando do assunto, mas também deixou de usá-la (GURFINKEL, 2008).
Contudo, Freud volta a mencionar sua experiência com a cocaína quando ana-
lisa dois sonhos no livro A Interpretação dos Sonhos (1900) – a menção à substância
surge na análise do “Sonho da Injeção de Irma” e no “Sonho da monografia botânica”.
Naquele sonho, ele associa uma cena à uma recomendação feita e, prontamente,
reafirma um alerta quanto ao tipo de uso: “As injeções voltam a me lembrar o amigo
infeliz que se intoxicou com a cocaína. Eu havia recomendado a droga apenas para
uso interno [oral] enquanto abandonava amorfina; ele mesmo, porém, passou imediata-
mente a injetar a cocaína” (FREUD, 2019, p. 148). Já neste sonho, sua análise converge
para a ideia inicial, na qual a droga poderia servir continuamente para avanços médicos:
Porém, ao fim desse estudo, Freud constata que os sintomas subjetivos dos efeitos
da cocaína são diferentes para cada pessoa e que a ação da cocaína é indireta,
efetuada por meio de uma melhora na condição do bem-estar. Com isso, se com
o uso de cocaína obteve sucesso em relação aos efeitos terapêuticos analgésicos e
anestésicos, que permitiram a realização de diversas cirurgias, também demonstrou
o fracasso dessa prática, que conduzia ao vício, aos efeitos de intoxicação e até
mesmo ao apagamento do inconsciente (MENDONÇA, 2011, p. 252).
Após algum tempo de estudo, então, Freud, ao rever seus conceitos sobre o
abuso de drogas, propõe uma nova perspectiva: o uso da droga é uma substituição à
pulsão sexual não satisfeita. Essa referida pulsão sexual correspondia ainda à primeira
dualidade pulsional – pulsão do eu (autoconservação) e pulsão sexual, que perdurou
até meados do ano de 1923.
A ideia da droga como substituta da pulsão sexual ganha embasamento quando
ele afirma que os vícios se desenvolvem na vida adulta em substituição à masturbação,
462
pois essa era compreendida por ele, por meio da clínica, como o grande hábito – o
vício primário (MENDONÇA, 2011). A ideia é mantida, porque concluiu-se que a
pulsão sexual durante a fase infantil até a fase da puberdade não se assume como tal
e, por conta disso, não é atendida, mas dissipa-se em forma de outros tipos de pulsão,
para então, só na adolescência servir ao seu objetivo original: a satisfação genital.
Sendo assim, durante esse processo, essas pulsões são satisfeitas de acordo com as
necessidades básicas de uma criança (ROUDINESCO; PLON, 1998).
A meta que cada um deles procura atingir é o prazer do órgão; somente após
efetuada a síntese eles entram a serviço da função reprodutiva, tornando-se geral-
mente reconhecidos como instintos sexuais. Ao aparecer, apoiam-se inicialmente
mais atenua os efeitos colaterais vivenciados pelo sujeito inserido na cultura, também é
problemática, pois coloca o real do corpo no circuito de enfrentamento, fato que pode
culminar, mais à frente, emprejuízos graves para o sujeito (OLIVEIRA, 2010). Além
disso, com a progressividade das ações compulsivas, quando a droga se torna o único
objeto possível de satisfação, o indivíduo adentra o circuito do gozo, que significa:
“obediência do sujeito a uma ordem – quaisquer que sejam sua forma e seu conteúdo –
que o conduz, abandonando o que acontece com seu desejo” (ROUDINESCO; PLON,
1998, p. 300). Esse gozo, quando fixado unicamente no corpo, é capaz de promover uma
falência simbólica significativa e difícil de ser reestruturada (LISITA; ROSA, 2013).
Essa satisfação voltada para o corpo implica o conceito de narcisismo – “retirada
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[...] quando localizam o uso de drogas num primeiro momento como recuperação
da satisfação pulsional (diante de um excesso de regulação operado pelo supereu),
e, num segundo momento, como um recurso que busca amenizar a severidade do
supereu em sua exigência de gozo (MENDONÇA, 2011, p. 256).
464
Ainda sobre esse contexto, Lacan alerta que o valor de uso de um objeto pode
não condizer com seu valor de gozo (ALVAREZ, 2005 apud LISITA; ROSA, 2013).
A partir dessa afirmação é possível pensar sobre o descrito em O princípio do prazer,
onde Freud postula que o organismo visa sempre evitar tensões e para isso, recorre
aos mecanismos já conhecidos como causadores de prazer. No entanto, notou-se
depois que, em casos específicos, o indivíduo não recorre aos mecanismos de puro
prazer, mas sim a mecanismos que deixam ônus ao organismo, como é o caso do
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 465
kon”, pois tinham a potência de ser usadas para curar, para remediar e para envenenar,
todos ao mesmo tempo, a depender de sua dosagem (OLIVEIRA, 2010). No contexto
contemporâneo psicanalítico, “toxicomania refere-se a uma modalidade de ligação
tóxica com o objeto droga” (DOCKHORN; MACEDO; RIBAS, 2014). Por conta
disso, a psicanálise atenta-se não só para o objeto em questão, mas para a relação
tóxica que o sujeito elegeu para lidar com o objeto droga, a qual se desvencilha da
rota do desejo e torna-se uma necessidade (DOCKHORN; MACEDO; RIBAS, 2014).
É extremamente importante reconhecer que quando se trata da toxicomania
dois fatores têm de ser levados em consideração: a dependência de nível orgânico
e a dependência de nível psicológico. Isso se deve ao número incontável de vezes
que o sujeito enfrenta os procedimentos de desintoxicação e abstinência. Se apenas
a dependência de nível orgânico fosse suficiente para abarcar a complexidade desse
processo, esses procedimentos citados cessariam a dependência às drogas, quando
desejada (VIANNA, 2014). No entanto, as pesquisas teóricas psicanalíticas não
convergem para esse fato.
Sylvie Le Poulichet faz um estudo relacionando os tipos de toxicomania com o
mito “A farmácia de Platão”. Nessa perspectiva, ela informa dois caminhos os quais
os toxicômanos podem trilhar com o objeto droga ao seu dispor. Um segue a lógica
do suplemento e o outro a lógica da suplência, sendo ambos suscetíveis à mudanças.
O abuso que segue a lógica do suplemento tem o intuito de suprir uma falta, preen-
cher, além disso, essa relação com o objeto fornece ao psiquismo mecanismos para
evitar lidar com a castração, ou seja, para não lidar com as dores de existir. Já a lógica
da suplência aponta para uma relação mais devastadora da droga com a psique, pois
suplência implica necessariamente em substituição. Nessa relação, o sujeito tem seu
psiquismo silenciado, suas formações inconscientes e sua capacidade de simboli-
zação inativos – assim, para lidar com a realidade, ele não tem outra escolha a não
ser consumir compulsivamente a droga. Essa última lógica visa a autoconservação
básica (DOCKHORN; MACEDO; RIBAS, 2014).
Nesses tipos de relações, a compulsão à substância droga está estabelecida. Sendo
assim, é indispensável entender o engendramento do supereu com a pulsão de morte –
“essa compulsão leva o sujeito a se colocar repetitivamente em situações dolorosas,
réplicas de experiências antigas” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 631). A instaura-
ção do supereu, que se dá por meio da função paterna, aquela que barra a criança da
466
É importante citar que Lacan, então, postula que a toxicomania é uma tentativa
do sujeito de retornar ao estado de unicidade com a mãe, momento em que, por meio
da amamentação, o sujeito ainda não se via frente à subordinada falta e, portanto, não
se constituía como sujeito do inconsciente. Assim, “Lacan defendeu que o recurso à
droga pode ser entendido como busca de unidade através de um complemento ima-
ginário” (OLIVEIRA, 2010, p. 243).
Além disso, Lacan adotou um conceito no qual inclui as drogas: os gadgets –
invenções científicas, com pouca utilidade, mas que proporcionam uma rápida distra-
ção para quem usa, fingindo satisfazer a pulsão (OLIVEIRA, 2010; SHIMOGUIRI;
COSTA; BENELLI; COSTA- ROSA, 2019).
Sendo assim, o sujeito reduz seus recursos para lidar com a vida na mesma
proporção que, então, reduz a sua própria vida. Pois, se a aliança entre supereu e
pulsão de morte induz no sujeito um desejo de eliminar tensões, é relevante con-
siderar que essa é uma ação de “reconduzir o que está vivo ao estado inorgânico”
(ROUDINESCO; PLON, 1998). Além disso, com o silêncio de seu inconsciente e
com a limitação de sua capacidade de simbolizar suas angústias, a compulsão ao
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 467
da pulsão de morte coordena esse estado paradoxal de “nada a ser ou tudo a ser com
a droga” (VIANNA, 2014).
Considerações finais
Discorrer e refletir sobre o tema do abuso de drogas e da toxicomania, implica
também envolver o fator sociedade, pois “a realidade psíquica é de consistência
moebiana: é social e histórica, subjetiva e inconsciente, estrutural e singular” (SHI-
MOGUIRI; COSTA; BENELLI; COSTA-ROSA, 2019, p. 2). Ou seja, é imprescin-
dível considerar a história de vida do sujeito, desde sua infância até o momento no
qual se encontra e essa investigação deve englobar a sua união com o objeto droga,
o contexto de uso e fatores psicossociais que o atravessam. Sem essas considerações
aliadas à compreensão psíquica do sujeito, torna-se difícil a delimitação do tipo de
relação subjetiva que ele pode vir a estabelecer ou já estabelece com a droga. Essa
dependência à droga aponta para a fragilidade do ser humano e para seu desejo
deevitar as tensões. O sofrer faz parte da vida e nenhum sujeito consegue livrar-se
completamente dessa condição. Como retoma Freud, as adversidades do existir podem
surgir do próprio corpo, do mundo externo e das relações com os outros.
Assim, mesmo envolto na fragilidade e de frente para essas potenciais ameaças,
o ser humano, como já citado, também desenvolve formas de escapar ou suportar todo
esse conflito. Essa afirmação corrobora com a ideia de Freud de que viver a realidade
sempre produz um nível de angústia considerável, então, o sujeito forja sua fuga da
realidade para se reestruturar e liberar suas tensões (CÂMARA, 2012). No entanto,
o discernimento que se faz necessário nesses momentos é saber como intermediar a
subjetividade com a realidade para evitar escolhas problemáticas e de difícil reversão.
Portanto, acredita-se que durante a vida, o sujeito remodela seu psiquismo a ponto de
evoluir suas habilidades de sentir tanto o prazer quanto o desprazer. Faz-se a aposta,
portanto, na desconstrução dos mecanismos infantis, os quais reconduzem o sujeito
a formatos arcaicos de enfrentamento e muitas vezes revelam-se pouco eficazes para
ser reutilizados na fase adulta.
Ressalvas sobre essa incapacidade de criar novos mecanismos para lidar com
a vida e sua complexidade cabem, significativamente, à psicanálise. Retomar a prer-
rogativa de que a capacidade de simbolização do sujeito é comumente silenciada
468
junto ao recurso à droga é, sobretudo, relembrar que essa capacidade perdida pode
igualmente ser recuperada. A psicanálise acredita na potência criativa do ser humano,
tanto no que tange às formas possíveis de sentir as dores do existir quanto às formas
de dissipá-las. Sendo assim, as pesquisas teóricas e clínicas convergem para a capa-
cidade de fala do sujeito, pois atravessada por formações inconscientes, é o principal
mecanismo usado por ele mesmo para se deslocar de sua relação problemática com
a droga (SHIMOGUIRI; COSTA; BENELLI; COSTA-ROSA, 2019). “O incons-
ciente é estruturado como uma linguagem. Lacan assinala que o inconsciente não
está dentro nem fora, mas sim na própria fala do analisante, cabendo ao analista
fazer com que esse inconsciente exista” (QUINET, 1991, p. 51). Portanto, cabe à
REFERÊNCIAS
CÂMARA, G. O papel da droga para o sujeito no mal-estar da civilização atual.
Cógito, Salvador, n. 13, p. 53-57, 2012. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/
pdf/cogito/v13/v13a08.pdf. Acesso em: 30 out. 2020.
Introdução
A legislação brasileira explicita que a prática do assédio sexual pode vitimizar
tanto por homens quanto de mulheres, podendo ocorrer nas relações com as mais
diversas configurações, sejam elas “homens contra mulheres, mulheres contra homens,
homens contra homens e mulheres contra mulheres” (SENADO FEDERAL, 2011,
p. 19). No entanto, em virtude da maioria de ocorrências apresentarem a mulher como
vítima e o homem como agressor, este projeto concentrará seu foco na análise desta
configuração, especialmente daquelas que se dão em ambiente acadêmico.
A violência de gênero
das brasileiras acima de 16 anos afirmam ter sofrido algum tipo de violência ou
agressão durante 2020.
Para se compreender a dimensão do que significam estes 24,4% são 1 em cada
4 mulheres que sofreram violência física, psicológica ou sexual só no ano de 2020.
Ainda citando o relatório do FBSP, a respeito da tomada de atitude em relação à
agressão mais grave sofrida, 44,9% relatam não terem feito nada, 35% procuraram
órgão não oficial, enquanto somente 24,7% procuraram órgão oficial. Estes dados
reforçam a compreensão de que as estatísticas a respeito da vitimização da mulher
no Brasil podem estar descrevendo números menores do que a realidade, posto que
a dificuldade de formalização de denúncia é problema fundamental na atividade de
enfrentamento às violências (D’OLIVEIRA).
Das violências relatadas no estudo acima, uma das descritas foi o assédio
sexual, cuja situação descrita seria de que, em média, 26,5 milhões de brasileiras
teriam sido vítimas de assédio sexual no país. Este tipo de violência é relatado nos
mais diversos ambientes: laborais, esportivos, hospitalares, domésticos, de trans-
porte e educacionais.
Ao analisar a bibliografia que discorre sobre a violência de gênero, percebe-se
o pioneirismo das feministas norte-americanas nesta discussão. O termo “violência
de gênero” foi cunhado enquanto termo jurídico pela primeira vez em 1979 pela
advogada feminista Catherine MacKinnon, que inseriu o termo na doutrina legal
estado-unidense como forma de discriminação sexual, tratando da prática em ambiente
laboral. No ano de 1986, a Suprema Corte dos Estados Unidos acolhe a teoria de
MacKinnon e decide que o assédio viola o Título VII do Civil Rights Act de 1964,
que proíbe a discriminação no mundo do trabalho com base em raça, cor, religião,
sexo e origem nacional. (TAVARES E LOIS, 2016)
reconhecem ter sido submetida a muitas das violências listadas. Outrossim, a pesquisa
também reitera o impacto da violência de gênero sobre a formação feminina quando
revela o medo das mulheres dentro do espaço universitário, apontando que 42%
das alunas já sentiram medo de sofrer violência no ambiente universitário e 36% já
deixaram de fazer alguma atividade por medo de sofrer violência.
Este mesmo estudo também questionou os homens quanto a sua percepção
da temática, e os dados levantados evidenciam que os estudantes homens ainda
não reconhecem várias formas de violência, acabando por naturalizá-las. Espon-
taneamente, 2% da amostra masculina admitiram ter cometido algum tipo de
violência contra mulheres em festas universitárias, todavia, o número sobe para
Metodologia
Considerações finais
Concluindo, a bibliografia é enfática ao dispor sobre a repercussão do assédio
sobre a vida psíquica da pessoa vítima de assédio sexual. Conforme afirma a pes-
quisadora Wânia Pasinato (2021), a experiência da violência afeta a saúde física
e mental das vítimas, em consequências últimas podendo levar até a morte, sendo
que, ao se darem nas instituições de ensino, podem inibir seu desenvolvimento
REFERÊNCIAS
ARAUJO, A. I. R. et al. Percepção e ocorrência de assédio em ambientes acadêmi-
cos. In: CONEDU, 7., 2020, Campina Grande. Anais [...]. Campina Grande: Realize
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Acesso em: 24 maio 2021.
CARNEIRO, L.; SARAIVA, A. IBGE: Mulheres têm mais acesso ao ensino superior,
mas ainda são minoria em áreas como engenharia e TI: Maior parcela de mulheres
com ensino superior, no entanto, ainda não mudou a realidade do perfil das pro-
fissões escolhidas, reforçando a existência de barreiras em determinadas áreas de
conhecimento. Valor Econômico, Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: https://valor.
globo.com/brasil/noticia/2021/03/04/ibge-mulheres-tem-mais-acesso-ao-ensino-su-
perior-mas-ainda-sao-minoria-em-areas-como-engenharia-e-ti.ghtml. Acesso em: 27
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FERREIRA, J. A violência por trás dos muros universitários: uma análise do assédio
moral no ensino superior. Jus.com.br, 2017. Disponível em: https://jus.com.br/arti-
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SAYURI, J.; SICURO, R. Abusos no Campus. The Intercept Brasil, 10 dez. 2019.
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UFPA confirma caso de assédio sexual a aluna. Diário Online, Belém, 2018. Dispo-
nível em: https://dol.com.br/noticias/para/noticia-500956-ufpa-confirma-caso-de-as-
Considerações iniciais
A covid-19, causada pelo vírus SARS-CoV2, se expandiu em forma de pan-
demia e assola o mundo até os dias atuais. O primeiro caso do novo coronavírus foi
identificado em Wuhan, cidade localizada na China e capital da província de Hubei,
no ano 2019. Em março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou
a pandemia pela alta capacidade de contaminação viral e velocidade com que houve
a propagação da referida enfermidade (WHO, 2021).
Apesar da inadequada coordenação da crise sanitária por parte do Ministério
da Saúde brasileiro, foram implementadas nos Estados e municípios medidas de
prevenção como o chamado distanciamento social/físico, como forma de evitar a
disseminação do vírus. Nesse sentido, o isolamento social, dentre outras medidas,
obrigou as instituições de ensino, a se adaptarem ao contexto de pandemia e imple-
mentar o Ensino Remoto (ER). A adesão a um ensino de caráter online afetou toda
a população acadêmica, tanto as pessoas que atuam diretamente nas entidades edu-
cacionais, como a comunidade que é beneficiada por elas.
No Brasil ocorreu a suspensão das aulas presenciais nas universidades frente
à pandemia a partir de março de 2020 e as atividades retornaram de forma remota.
Diante desse cenário social e necessidade de flexibilidade, programas de inclusão
foram criados, avaliados e aprovados, com a finalidade de incluir e auxiliar discentes
que se encontram em situação de vulnerabilidade econômica.
A partir do contexto pandêmico, emergiram, novos significados e formas de
lidar com as vivências do cotidiano. No que se refere às demandas originadas pela
pandemia da covid-19, principalmente na saúde mental mundial, o profissional da
psicologia se torna um dos mais requisitados nesse período, o que aponta para a impor-
tância desses profissionais no contexto posterior à situação emergencial e por muitos
anos à frente (GONG; LI; WANG, 2021). É importante reconhecer as perspectivas e
1 Capítulo de livro derivado de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) com o mesmo título.
2 Universidade Federal do Pará – (UFPA), Belém – Pará – Brasil. Graduanda de Psicologia. ORCID: https://
orcid.org/0000-0001-8254-9803. E-mail: joanamlima2020@gmail.com
3 Universidade Federal do Pará – (UFPA), Belém – Pará – Brasil. Docente Associada III da UFPA. Doutora
em Psicologia (UFPA). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1035-8968. E-mail: mveloso@ufpa.br
482
Percurso metodológico
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa de caráter exploratório,
que tem a finalidade de proporcionar uma visão geral sobre determinado fato, bem
como de desenvolver ou modificar certos conceitos e ideias de acordo com a reali-
dade vigente (GIL, 2008). A coleta de dados foi realizada através de um questionário
composto por perguntas abertas, para que os estudantes formulassem sua resposta
livremente, bem como perguntas fechadas, com alternativas de múltipla escolha. O
instrumento foi aplicado através do Google Forms. Cabe destacar que Gil (2008)
conceitua o questionário como uma técnica de investigação constituída por questões
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que visam obter variadas informações sobre determinado assunto. Assim, possibilita
atingir grande número de pessoas, flexibilidade e segurança quanto ao anonimato.
Os discentes foram convidados a participar do estudo por E-mail, disponibili-
zado pela Faculdade de Psicologia, mas também foi realizada a divulgação da pes-
quisa por meio das redes sociais. O formato online de coleta de dados e divulgação
permitiu atingir um maior número de estudantes da uma forma mais ágil. Optou-se
por acadêmicos dos 9º e 10º semestres por terem sido matriculados em disciplinas
que marcam a conclusão do curso e foram ministradas de forma remota, estando mais
perto da atuação e mercado de trabalho.
Os dados obtidos foram analisados utilizando a metodologia de análise de con-
teúdo de Bardin (1977), com foco na análise temática. Os resultados obtidos passaram
pré-análise, momento em que foram explorados e lidos em um primeiro contato, em
seguida, o material foi agregado em categorias que se mostraram recorrentes, para
enfim serem tratados e interpretados de acordo com os recortes temáticos escolhidos
para a pesquisa. Os tópicos analisados foram a eficiência do ensino remoto, os impac-
tos na rotina, os impactos na saúde mental, os impactos no desempenho acadêmico,
a perspectiva dos discentes sobre mudanças na atuação profissional oriundas da
pandemia e o uso de estratégias de enfrentamento.
A presente pesquisa seguiu a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012,
do Conselho Nacional de Saúde – CNS (BRASIL, 2012) e após envio ao Comitê de
Ética e Pesquisa através da Plataforma Brasil, o projeto foi aprovado com o CAAE
52732621.0.0000.0018. Obteve-se 30 respostas de discentes matriculados no curso
de Psicologia da UFPA. Desses trinta (30) respondentes, oito (8) são de semestres
diferentes do que foi requerido (9º e 10º), portanto, apenas vinte e dois (22) partici-
pantes foram consideradas para a análise. Desse total, 21 (95,4%) participantes se
encontravam no 10º semestre, enquanto apenas 1 (4,6%) estava matriculado no 9º
semestre, além disso, todos aderiram ao ensino remoto (ER).
Principais resultados
Primeiramente, acho que o ensino remoto deveria ter sido planejado, pois nós
sabemos que não houve planejamento algum. O que tivemos foi uma transposição
de um modelo (o presencial) para outro (o remoto), sem estudos sobre o impacto
disso na comunidade acadêmica. Para funcionar de verdade, o ensino virtual deve
ser estruturado e pensado por uma equipe multiprofissional e que considerem
também as experiências (objetivas e subjetivas) dos alunos! (Participante 5).
Acredito que a universidade poderia ter passado algum curso para os professores
No início da pandemia, eu tive que ir embora de Belém, e com a crise, não tenho
mais como pagar meu aluguel, então o ensino remoto foi essencial para que eu
conseguisse me formar, mesmo morando em outra cidade (Participante 2).
aula e ficava em redes sociais por não me envolver na aula, vontade de desistir
de assistir por cansaço mental. (Participante 7).
Os horários das aulas ficaram muito desorganizados, espalhados nos dois turnos.
Cansaço pelo excesso de atividades. Estresse com trabalhos em equipe. Dificul-
dade em conseguir estágios pelos horários das aulas (Participante 8).
O ponto positivo do ensino remoto foi que eu me familiarizei mais com as ferra-
mentas de ensino pela internet. Hoje em dia eu vejo que fazer cursos online por
exemplo é uma forma bem prática de estudar (Participante 6).
Apenas negativos como ansiedade e angústia e também o fato de não estar sempre
bem para assistir as aulas, ao considerar o contexto pandêmico, e mesmo assim
ter que assistir e fazer as atividades assíncronas (Participante 18).
Às vezes sinto que melhorou em alguns casos pois eu tenho mais tempo pra fazer
as atividades (Participante 6).
0 motivação para estudar, facilmente podia tirar tudo da internet e colar a prova,
postergação (Participante 21).
Acho que o atendimento online será mais requisitado que antes, ainda assim
o presencial permanecerá predominante. Os profissionais que não tiverem a
oportunidade de atendimento presencial na faculdade serão prejudicados (Par-
ticipante 2).
Sim, de forma negativa. Com certeza o aproveitamento do curso está sendo bem
menos efetivo através do EAD, não há estágios, práticas. A flexibilização de
preencher carga horária foi boa por um lado mas os alunos irão finalizar o curso
com lacunas na formação (Participante 8).
Entendo que são comportamentos que temos que emitir em situações de confronto
(Participante 4).
Penso em coping. O que tem muito haver com quais recursos tempos para enfren-
tar uma situação de estresse. Eu com certeza vejo em mim rs (Participante 23).
Eu tenho um pouco de dificuldade de nomear elas em mim. Mas foi uma série de
atitudes, algo dinâmico que me fez enfrentar a situação. TENTAR Manter uma
rotina saudável fisicamente e emocionalmente, estar em contato com as pessoas
de casa e conversar sobre a situação da pandemia e adentrar em outros assuntos
mais gerais, estudar, ler muito. foi um ano em que aprendi muitos assuntos novos,
escrever (Participante 23).
Eu procurei realizar tais estratégias pois estava muito angustiada vendo meu
desempenho acadêmico baixando. As estratégias traçadas por mim precisam ser
diariamente exercitadas. Eu não consigo ser efetiva todos os dias, mas eu fico
melhor com elas que sem (Participante 2).
Escrever é algo que me relaxa, é uma atividade que gosto de fazer desde criança,
então achei que eu poderia me beneficiar disso e funcionou! Escrever “força”
a gente a organizar os pensamentos, a seguir uma linha de raciocínio, o que é o
lado oposto da mente ansiosa (tudo confuso e nebuloso) (Participante 5).
Discussão
Estudos abordam que tal prática de ensino emergencial afetou todo o corpo
social das universidades e que, nesse sentido, as instituições desenvolveram medidas
imediatas que colocassem em prática o ER de forma rápida e efetiva (CASTIONI et
al., 2021). Apesar disso, pela urgência da situação e o curto tempo disponível, enten-
de-se que não houve um consenso frente aos critérios tomados por cada entidade de
ensino (BEZERRA et al., 2020).
Além disso, houve uma ampliação do modelo de ER emergencial que se mostrou
como a solução para o momento de crise. No entanto, é importante que se diferencie
Por outro lado, a vulnerabilidade econômica faz parte das inúmeras dificuldades
enfrentadas durante a pandemia, como a perda de emprego, a ausência de renda fixa
e a alta dos preços dos alimentos foram fatores com impactos diretos na vida dos
universitários. O fator socioeconômico é um obstáculo ao ensino on-line/remoto, pois,
exige condições objetivas como acesso à internet, equipamentos adequados o que
repercute na adaptação a todos as mudanças, na rotina, no desempenho acadêmico
e na saúde mental (CARVALHO; SILVEIRA, 2021).
Cabe ainda mencionar que o Sistema Único de Saúde (SUS), a ciência e as uni-
versidades passaram a ser mais demandadas durante a conjuntura pandêmica. O reco-
nhecimento do direito à saúde como um valor público passa a ser citado em noticiários
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Considerações finais
A pandemia decorrente do novo coronavírus demandou adaptações das institui-
ções de ensino à novas demandas e desafios. O ER, modelo de ensino à distância, se
caracterizou como medida emergencial com o propósito de dar continuidade ao calen-
dário acadêmico. A adesão a essa modalidade de ensino causou repercussões na vida
acadêmica dos discentes do curso de graduação presencial de Psicologia da UFPA.
Os universitários se mostraram insatisfeitos com diversos aspectos do ER e seus
impactos na rotina, saúde mental, desempenho acadêmico e futura atuação profis-
sional. De forma geral, houve pontos positivos, como a flexibilidade de horário e a
490
possibilidade de dar continuidade ao curso, bem como, pontos negativos, como a falta
de planejamento e capacitação adequada do corpo docente para o ER, falta de socia-
bilidade entre os estudantes, desmotivação com o curso e problemas com a internet.
Entende-se que as ponderações e vivências no contexto pandêmico universitário
dos estudantes são de suma importância para o entendimento dos impactos, deman-
das, lacunas de formação e apoio necessário. A elaboração de estratégias coletivas
e apoio social e a criação e manutenção de projetos de auxílio são imprescindíveis
para a conjuntura atual, no qual as instituições de ensino e seu corpo social são
fundamentais para essa construção. Assim como, investimentos nas universidades
públicas e na assistência estudantil são essenciais para a permanência e sucesso dos
REFERÊNCIAS
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distance education method applied in this process: The sample of Muş Alparslan
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494
YANG, C.; CHEN, A.; CHEN, Y. College students’ stress and health in the covid-
19 pandemic: The role of academic workload, separation from school, and fears of
contagion. Plos One, 2021. Disponível em: https://journals.plos.org/plosone/arti-
cle?id=10.1371/journal.pone.0246676. Acesso em: 11 abr. 2021.
Introdução
Falar sobre sexualidade nos dias de hoje é um tabu, ainda mais com o cres-
cimento do conservadorismo no Brasil, especialmente no contexto escolar. Como
discutido por Furlanetto et al. (2018) e por Ventimiglia e Menezes (2020), desde
2004 há um forte movimento político no Brasil que visa afastar a discussão de temas
relativos à sexualidade de espaços educacionais. Parte-se da ideia de que este assunto
não é algo que deva ser discutido em ambientes como as escolas, ou com determinada
faixa etária, justamente pelo fato de erroneamente relacioná-la estritamente ao ato
do coito. No entanto, a OMS define:
Apesar dessa compreensão da saúde sexual como direito humano básico ser
muito debatida na literatura acadêmica, nem sempre consegue ultrapassar as barreiras
para alcançar a compreensão pela sociedade como um todo. Este é um desafio ainda
maior quando o público alvo é composto por pessoas com deficiência, principalmente
as com deficiência intelectual ou cognitiva (FAUSTINO, 2019).
O conceito de deficiência intelectual (DI) preconizado pela AAIDD (Ameri-
can Association on Intellectual and Developmental Disabilities) caracteriza-se por
“limitações significativas, tanto no funcionamento intelectual quanto no compor-
tamento adaptativo, como também nas habilidades práticas, sociais e conceituais”
(SANTIAGO, 2009). O documento afirma, ainda, que pessoas com deficiência ten-
dem a ser alvo de preconceitos e atos de exclusão por parte dos demais membros da
comunidade. Isso é observado também no acesso aos direitos, como o de vivenciar
seus próprios desejos.
496
Confundir orientação sexual com estímulo à prática sexual precoce é algo muito
comum (BRANCALEONI; OLIVEIRA, 2015), mas que não possui dados que fun-
damentem essa concepção.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 497
A oposição ao debate sobre sexualidade torna-se ainda mais intensa quando o tema
passa a abranger questões de gênero e de orientação sexual (VENTIMIGLIA; MENEZES,
2020). De acordo com Maia e Ribeiro (2010), há uma lacuna tanto na prática profissional
quanto na literatura científica sobre a expressão da homossexualidade entre pessoas com
deficiência, sendo uma área sob forte influência das pressões da heteronormatividade.
A orientação sexual não deve ser confundida com identidade de gênero que
consiste na dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como
se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se
traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído
no nascimento (BRASIL, 2016). Ou seja, trata-se de como a pessoa se reconhece:
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homem, mulher, ambos ou nenhum dos gêneros. Nesse sentido o que prevalece é a
maneira como a pessoa se sente e se percebe, assim como a forma que esta deseja
ser reconhecida pelas outras pessoas.
Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo IBGE – Instituto Bra-
sileiro de Geografia e Estatística em 2013, 0,8% da população nacional possuía
DI. Contudo, a pesquisa não levantou informações a respeito da sexualidade ou da
identidade de gênero destes indivíduos, sendo priorizadas informações acerca da
deficiência em si e de acesso a serviços.
De acordo com Chagas e Fernandes (2018) há poucos estudos sobre pessoas homos-
sexuais com DI. Contudo, segundo os autores, existem problemas específicos que são
vivenciados por pessoas homossexuais com DI, dentre eles “a alta prevalência de expe-
riências sexuais negativas, a falta de apoio da família, a falta de uma educação sexual, e
a dificuldade no encontro de um parceiro adequado” (CHAGAS; FERNANDES, p. 210).
Esta falta de estudos só corrobora o quanto estas pessoas são invisibilizadas
pela sociedade e indica que mesmo quando o assunto é abordado, não é dada “voz”
a estas pessoas. Pode-se observar isso em estudos sobre o tema a partir da visão do
professor (MAIA; REIS-YAMAUTI; SCHIAVO; CAPELLINI; VALLE, 2015), dos
pais (LEME; CRUZ, 2008), entre outros. Porém a poucos estudos mediante a visão dos
próprios indivíduos com deficiência a respeito da sua sexualidade (FAUSTINO, 2019).
A falta de abertura à fala das próprias pessoas com deficiência sobre sua sexualidade
é uma grande lacuna, pois impede a compreensão real da sexualidade destas pessoas,
incluindo sua orientação e identidade sexual. Esta posição também é defendida por
Chagas e Fernandes (2018, p. 105) que afirmam ser “primordial que informações cor-
retas aliadas ao trabalho de autoconhecimento e de reflexão sobre a própria sexualidade
sejam dadas as pessoas jovens e adultas com deficiência intelectual”.
Assim, defende-se aqui que a melhor forma de saber sobre sexualidade de
pessoas com deficiência cognitiva ou intelectual é ouvindo estas pessoas. Como diz
a Declaração de Vancouver (1992):
Metodologia
A pesquisa foi qualitativa, exploratória e no formato de entrevista.
Participantes
Material
Procedimento
Ao final, foi feita uma análise de conteúdo das entrevistas transcritas, para a
partir das falas dos entrevistados poder compreender os significados de tais fenôme-
nos na vida de cada um. Para tal, foi utilizada a metodologia de Análise de Conteúdo
de Bardin (2011) que indica a utilização de três fases fundamentais da análise de
conteúdo: pré-análise; exploração do material; e tratamento dos resultados.
A pré-análise se refere a uma fase de organização, na qual são definidos os
procedimentos, ainda que com flexibilidade. A exploração do material se refere ao
estabelecimento de unidades de codificação a partir da escolha de unidades de registro
que são classificadas de acordo com o sentido das palavras e então categorizadas em
temas maiores para análise. Por fim, os resultados são tratados de modo a permitir a
interpretação da informação que se torne os dados significativos.
Para garantir o sigilo das entrevistas, os nomes dos participantes foram muda-
dos para nomes de personagens do desenho animado Miraculous: As Aventuras
de Ladybug.
Resultados e discussão
Os dados referentes ao sexo, idade, série e grau de DI dos oito participantes
da pesquisa constam na Tabela 1. Apesar do número reduzido de participantes, a
diversidade da amostra pode contribuir para uma compreensão mais abrangente do
fenômeno em questão.
Marinette: Mas ou menos. Olha não sei eu ouvi falar sobre aparência, ah se tu
se acha feia, no espelho se acha gorda.
Adrien: Hum, como assim? É um homem e uma mulher.
Nino: Como assim? Deve ser de sexo? Está relacionado assim com o sexo?
Kim: Sim, sim sei. (Porém relacionou com a alimentação).
Gabriel: Nada, nada.
Alya: (Risadas). Sim um pouco, que pode falar de homem com homem? Homem
Os relatos aqui transcritos demonstram que esta não é uma temática abordada
com frequência com os participantes e quando abordada é feita de forma equivo-
cada, em alguns casos envolvendo inclusive ameaças – como serem expulsos de
casa –, este fato se dá na maioria das famílias, pois falar sobre sexualidade com um
filho gera um desconforto comum para a maior parte da população (GONÇALVES,
FALEIRO; MALAFAIA, 2013), isso se agrava ainda mais quando se trata de um
filho com DI. Abordar o tema “namoro” pode se constituir em desafios para as
pessoas com DI e suas famílias.
Pode-se constatar ainda mais este fato nas respostas sobre o recebimento de
algum tipo de orientação sexual. Dentre os participantes, três afirmaram que nunca
tiveram nenhum tipo de orientação. Sendo que um participante respondeu que sim,
porém relacionou à alimentação. Os demais quatro descreveram algum tipo de
orientação recebida:
Nino: Já. Da minha mãe. Ela falou pra eu respeitar as mulheres, respeitar
os homens e a não engravidar e um “bocado” de coisa. Usar camisinha um
“bocado” de coisa.
Alya: Eu já conversei com a minha mãe e com o papai, com eles. Papai mana,
ele fala que “quando for com alguém especial vai acontecer, não tem que ser na
presa pra perder a virgindade com a pessoa, tem que ser no teu momento e nas
horas que tu tiver com a pessoa que tu se apaixonou vai acontecer, calma não vai
na pressa, não vai atrapalhando o teu momento com a pessoa, o teu romance, o
teu namoro com a pessoa”.
Chloé: Só a minha professora que eu trabalho com ela, ela falou só das mulheres
porque elas menstruam só essa parte, mas dos homens ela não falou não.
Sabrina: Sim, do meu pai. Ele falou que, que fazer sexo leva a muitas doenças e
uma doença a pessoa pode morrer.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 501
Pode-se observar que somente dois participantes relatam uma conversa mais
aberta sobre o tema no âmbito familiar. Enquanto cinco informam que não tiveram
esse tipo de diálogo, a participante Sabrina descreve novamente um contexto que
associa a sexualidade a um cenário ameaçador.
Quando perguntados sobre experiências sexuais prévias, apenas um dos parti-
cipantes informou que já teve uma relação “carnal” (sic) com outra pessoa. Segundo
Nino, aos 17 anos ele teve relações com uma prima, sendo sua única experiência.
Foi questionado, assim, se já tiveram algum relacionamento romântico e como
esse teria se desenvolvido. Quatro participantes responderam que não, como o caso
de Kim que foi bem enfático quanto a isso.
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Kim: Eu nunca namorei, não, não. Eu não falo com ninguém. Acham quem eu sou
bem, bem diferente, foi isso. Não, não, não eu não falo com os rapazes nem com
as moças, acho que eu sou bem diferente, diferente porque eu sou um ser humano.
Adrien: Só uma namorada que estudava na minha escola. Eu tinha eu acho uns
9 anos, não chegamos a se beijar. Nunca tive esse tipo de relacionamento.
Nino: sim com a minha prima, primeiro a gente se conheceu e depois ela começou
a me abraçar, dar um amasso, ai foi isso. E perdi a virgindade. Foi só com ela.
Sabrina: Já namorei 4 vezes, os meus pais estavam cientes e eram todos do sexo
masculino [...].
Sabrina: Que na vida com uma pessoa tem que ter química ou sentir uma atração
pela aquela pessoa.
Após explicar o conceito, foi perguntado qual a orientação sexual de cada um.
Um afirmou nunca ter se interessado por ninguém. Seis alegaram se sentirem atraídos
pelo sexo oposto e um afirmou sentir atração por ambos os sexos.
Alya: Do meu interesse assim, do meu cotidiano, homem. Mas às vezes mulheres.
Marinette: R1: Eles dizem pra eu me chegar mais nas pessoas, mas eu pre-
firo estudar.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 503
R2: Não sei por que as pessoas... Eu tenho só uma amiga as outras se afastam
tudinho, tem aquele grupo entendeu? Ai, eu só tenho ela mesmo.
Nino: R1: A minha volta? A minha mãe antes de morrer falava “Olha tu tá bem
na foto tá namorando uma mulher mais velha que tu. Tu já namorou até com a
minha sobrinha” que no caso é a minha prima. Tu tá por fora daqui do colégio.
Me “encarnam” por que sou namorador, tenho um monte de contato de menina
no meu celular de tudo quanto é canto do interior, São Paulo, do Rio.
Gabriel: Vão aceitar. (Riu de forma sem graça e não complementou a resposta).
Alya: R1: Mana eu não sei, eu acho que a mamãe vai reagir de um jeito que
ela vai gostar, ela sempre quis que as filhas, que eu e minha irmã casássemos,
constituíssem família, tivesse a vida, seguisse em frente. Papai mana um dia que
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Considerações finais
Diante das respostas dos participantes, podemos inferir que de fato a sexualidade
não é um assunto frequentemente abordado com pessoas com DI e quando feito é
de forma equivocada. Esse cenário de desinformação não os impede, contudo, de
terem desejos e poderem se relacionar com outras pessoas. Ademais, é importante a
sociedade reconhecer que indivíduos com DI – como os demais indivíduos – possuem
sim sexualidade e vivenciam suas múltiplas e complexas facetas, como identidade
504
REFERÊNCIAS
BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.
LEME, C.; CRUZ, E. Sexualidade e síndrome de down: uma visão dos pais. Arq.
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Disponível em: https://repositorio-racs.famerp.br/racs_ol/vol-15-1/IIIIDDDD%20
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SASSAKI, R. K. Nada sobre nós, sem nós: da integração à inclusão – Parte 2. Revista
Nacional de Reabilitação, ano X, n. 58, set./out, p. 20-30. 2007.
Que vai fazer agora o governo? Vai demitir o administrador da Casa de Deten-
ção? Daqui a pouco será obrigado a demitir o cidadão que o substituir, e as coisas
continuarão no mesmo pé – porque a causa dos abusos não reside na incapacidade
de um funcionário, mas num vício essencial do sistema, num defeito orgânico do
aparelho penitenciário. E não há de ser a demissão de um administrador, que há
de consertar o que já nasceu torto e quebrado
(Olavo Bilac, 1902).
Introdução
A proposta desta pesquisa teve o intuito de analisar a saúde mental e os tipos
de doenças que mais acometem a saúde física e mental dos Agentes Prisionais1 que
atuam na cidade de Belém/PA, uma vez que é levada em consideração a inserção
no cargo/função de Agente Prisional, em um sistema social diferenciado – o dos
estabelecimentos penais – dadas às características típicas da instituição penitenciária.
Goffman cria a concepção de prisão como instituição total, que se caracteriza por
ser uma instituição “fechada”. “Seu ‘fechamento’ ou caráter total é simbolizado pela
barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas
vezes estão incluídas no esquema físico” (GOFFMAN, 2015, p. 16).
Para Foucault, que entende a prisão como uma “instituição completa”, a pri-
são toma a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, em uma ação ininterrupta de
disciplina incessante, a fim de impingir uma nova forma ao “indivíduo pervertido”.
Desta forma, a prisão apresenta um caráter de “reformatório integral” que vai além
da pura privação jurídica de liberdade (FOUCAULT, 2014).
Dejours (apud BARROS, 2009) diz que trabalho não é somente uma relação
social ou sócio-salarial, mas também implica em trabalhar. Não é somente os gestos, o
saber-fazer, pensar, refletir, interpretar, (re)inventar. É algo que vai além das relações
pré-estabelecidas e envolve o engajamento da personalidade.
1 Nesta pesquisa será usado a denominação do cargo de Agente Prisional, conforme estabelecido na Lei
nº 8.322, de 14 de dezembro de 2015. Pois no início desta pesquisa a nomenclatura de Policial Penal
ainda não estava aprovada pela ALEPA, tendo sido aprovada pela Emenda Constitucional nº 82 de 09 de
dezembro de 2020.
510
Sendo assim, quero enfatizar que esta pesquisa visa, a princípio, tornar visível
uma categoria que consta nos censos penitenciários anuais do Ministério da Justiça
de forma muito tímida, apenas com dados do quantitativo de servidores, mas sem
revelar dados de afastamento por licença saúde, quais as doenças que mais acomete
os servidores penitenciários, números de agentes prisionais que são feitos reféns e
mortos dentro e fora das unidades penais de todo o Brasil. Daí a razão da imensa
vacância que a carência de informações sobre a vida desses profissionais deixa nas
instituições penais.
Há no contexto carcerário, não só no Pará, mas em todo país, uma necessidade
latente de contratação de novos agentes prisionais, ou seja, um crescimento no número
2 A taxa de aprisionamento é calculada pela razão entre o número total de pessoas privadas de liberdade e
a quantidade populacional do país, a razão obtida é multiplicada por 100 mil.
3 O primeiro dos órgãos da execução penal é o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária,
com sede na Capital da República e subordinado ao Ministro da Justiça. Já existente quando da vigência
da lei (foi instalado em junho de 1980), o Conselho tem proporcionado, segundo consta da exposição
de motivos, valioso contingente de informações, de análises, de deliberações e de estímulo intelectual e
material às atividades de prevenção da criminalidade. Preconiza-se para esse Órgão a implementação, em
todo o território nacional, de uma nova política criminal e principalmente penitenciária a partir de periódicas
avaliações do sistema criminal, criminológico e penitenciário, bem como a execução de planos nacionais
de desenvolvimento quanto às metas e prioridades da política a ser executada.
4 Criado em 2004, o INFOPEN compila informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro, por
meio de um formulário de coleta estruturado preenchido pelos gestores de todos os estabelecimentos
prisionais do país.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 511
Agente Prisional com as devidas atribuições do cargo, bem como define a forma
de ingresso, quantidade de pessoal, a formação profissional e a criação do grupo de
operações penitenciárias formado por ocupantes do cargo de provimento efetivo de
Agente Prisional.
É possível observar no relatório mensal da instituição, denominado SEAP EM
NÚMEROS, publicado mensalmente no site do órgão, algumas informações sobre a
SEAP. No mês de novembro de 2018, na época denominada SUSIPE EM NÚMEROS,
foram realizados 57 atendimentos psicológicos à servidores. Atendimentos estes
realizados pela Coordenadoria de Assistência e Valorização do Servidor – CAVS,
bem como foram recebidos 162 atestados médicos, realizados 10 atendimentos com
médicos do trabalho e 14 atendimentos com médico psiquiatra, além de 7 atestados
médicos recebidos para benefícios e CAT’s realizadas entregue na mesma coordena-
ção. Ainda no SUSIPE EM NÚMEROS, referente a janeiro de 2019, a distribuição
de servidores por tipo de vínculo era: 3.258 por contrato temporário, 332 efetivos,
37 efetivos comissionados, 77 estáveis e 184 comissionados. Sendo o total de ser-
vidores 3.888, em que 3.019 eram lotações ocupadas por agentes prisionais, o que
corresponde a 77,6% do total de servidores da SEAP.
Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias –
INFOPEN de junho de 2017, mostra que o Estado do Pará possui o maior número
de servidores ativos, em relação às demais Unidades da Federação, na condição de
vínculo empregatício temporário, sendo 23,79% feminino e 64,43% masculino.
Nos anos de 2019 e 2020 houve um acréscimo de Agentes Prisionais no quadro
de servidores da SEAP. Segundo uma publicação no site da SEAP, de 3 de agosto de
2019, foram empossados 485 novos Agentes Prisionais. Em janeiro de 2020, a SEAP
informa a chamada de mais 592 Agentes Prisionais oriundos do concurso público.
Portanto, se somarmos as duas chamadas de posse do concurso público teremos um
acréscimo de mais 1.077 novos Agentes Prisionais no Estado do Pará.
Este foi o primeiro concurso a ser realizado para o cargo de Agente Prisional no
Estado, pois a lei que legitima o cargo de Agente Prisional é do ano de 2015, antes
5 No início desta pesquisa a SUSIPE era uma Autarquia ligada administrativamente a Secretaria de Segurança
e Defesa Social – SEGUP. Com a alteração na Lei nº 8037/2019, passou a ter autonomia independente,
passando a ser chamar Secretaria Estadual de Administração Penitenciária – SEAP, sendo está a
nomenclatura a ser utilizada nesta pesquisa a partir de agora.
512
da lei não existia o cargo na estrutura funcional da SEAP. Mesmo com o ingresso de
novos Agentes Prisionais concursados, ainda existe a condição de servidor temporário
no cargo de Agente Prisional. O que retrata uma precarização na prestação de serviço
na função pública, já que não há estabilidade, direitos adquiridos que só a ocupação
de cargo público efetivo pode oferecer, além de não haver uma classe trabalhadora
com um sindicato capaz de lutar por melhores condições de trabalho, já que são tem-
porários e em alguns casos as pressões políticas se fizeram presentes nas indicações
de alguns destes servidores que hoje estão ocupando a função de agente prisional.
Segundo Bodê de Moraes (2005), essa é uma questão-chave no processo da
construção da identidade e do desgaste no trabalho, uma vez que a necessidade de
6 O Panóptico de Bentham é uma figura arquitetural. O princípio é conhecido: na periferia uma construção
em anel; no centro, uma torre: esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel;
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 513
a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas
têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior,
permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada
cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar (FOUCAULT, 2014, p. 194).
514
Bárbara, no qual se tentava observar a separação por sexo e pelo tipo de infração, mas
que nem sempre era possível. Em todas estas construções os espaços eram pequenos,
insalubres, propícios a doenças (SANTOS; SANTOS, 2015).
Segundo Rossler (2019), com a redemocratização do país, o Brasil passou a
discutir as questões de violência, crime e segurança, pós-período da ditadura militar,
já que o cenário vivido no período da ditadura colocou o Brasil em uma situação de
estagnação econômica já exaustivamente presente na bibliografia especializada. Para-
doxalmente, algumas conquistas democráticas, sobretudo as iniciativas que levaram
à criação da Lei de Execução Penal, estavam inseridas nesse contexto. No debate
prisional, autores como Ramalho (1979), Coelho (1987), Paixão (1987) são talvez
7 O artigo 7º, inciso V, do Estatuto da Advocacia, determina ser direito do advogado não ser recolhido preso,
antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades
condignas, e, na sua falta, em prisão domiciliar.
516
que veio se instalar após o corpo não ser mais o alvo principal da punição, preexiste
à sua utilização sistemática nas leis penais. Ela se constituiu fora do aparelho judi-
ciário quando se elaboraram por todo o corpo social os processos para repartir os
indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo
de tempo e o máximo de forças.
Nas palavras do próprio Foucault (2014, p. 195), a prisão surgiu com a inten-
ção de treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa
visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação,
registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza.
A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, através
Franklin de Toledo Piza havia construído sua carreira nas fileiras da Polícia, onde
chegou a ser delegado-geral; em seguida, dirige por alguns anos a Penitenciária
da Tiradentes e depois, com a inauguração da nova no Carandiru, mantém-se à
frente dela até o início da década de 30. Percursos parecido com Alfredo Issa
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Ássaly que também sai dos quadros da polícia para a vice-diretoria da Peniten-
ciária (SALLA, 1997, p. 137).
des de adaptação entre a organização do trabalho e o desejo dos sujeitos, então emerge
o sofrimento”. O sofrimento psíquico no trabalho surge como uma estratégia de não
adoecimento, um espaço de luta contra o enlouquecimento (DEJOURS, 1992, p. 10).
Segundo Campos e Sousa (2011), o adoecimento também pode surgir da difi-
culdade que o agente prisional, às vezes, encontra em separar sua posição diante
de atitudes dos detentos que possivelmente fazem com que se sintam mortificados,
humilhados e desafiados. Diante de situações como esta, verificamos que o agente
penitenciário despende muita energia ao tentar se equilibrar entre os dois mundos
em que vive – intra e extramuros; e ainda, enquanto aquele que obedece às ordens e
ao mesmo tempo as impõem.
Goffman (2008) também diz do amortecimento do eu que ocorre durante o
tempo em que estão sujeitos a uma equipe dirigente que pode torná-lo alienado em
sua capacidade de trabalho, o que também contribui para a formação do estigma.
Por outro lado, enquanto responsáveis pelos detentos, os agentes podem se sentir
mortificados, humilhados e desafiados quando o detento não reage corretamente.
Essa situação paradoxal para o agente também pode se tornar um fator provável de
adoecimento caso ele não consiga separar bem sua posição em momentos diversos.
O agente precisa entender e apreender rapidamente a dinâmica da (con)vivência no
mundo dos cativos para conseguir exercer o seu papel e manter a ordem.
O agente prisional, suscetível ao processo de aculturação que afeta o trabalho
pela prisionalização, passa a desenvolver uma série de transtornos de ordem psico-
lógica, como sentimento de inferioridade, perda da sua identidade, empobrecimento
psíquico, regressão e infantilização, que acabam por interferir em suas escolhas e
tomadas de decisão. Contudo, os agentes necessitam “pensar como o preso”, “traba-
lhar preso com o preso” e isto lhe demanda um enorme custo psíquico e identitário
(CAMPOS; SOUSA, 2011, p. 5).
A prisionalização, num outro momento, torna os agentes passíveis de outro
tipo de estigma decorrentes de psicopatologias do trabalho: insônia, nervosismo,
depressão, estresse, paranóia, dependência química, burnout, dentre outros (CAM-
POS; SOUSA, 2011, p. 5).
Um ponto que chama a atenção é que assim como os agentes apreendem as
competências necessárias para desempenharem bem sua função é no cotidiano, na
convivência direta com os detentos, este mesmo contato também proporciona ao
detento um mínimo de conhecimento sobre a personalidade, temperamento, hábitos
520
Procedimentos metodológicos
Nesta pesquisa desenvolvida junto aos trabalhadores do Sistema Penitenciário
Paraense, mais precisamente os agentes prisionais, adotamos a Psicodinâmica do
Trabalho de Dejours, mas optando pela abordagem qualitativa por ser consoante e
essencial a escuta dos trabalhadores quanto às condições de trabalho e a situação de
saúde física e mental. Porém a abordagem qualitativa nesta pesquisa teve o aporte da
Psicodinâmica em que as vivências subjetivas dos trabalhadores servem de mediação
entre o trabalho e as exigências da organização. Assim, a metodologia de pesquisa
envolve uma abordagem interpretativa do objeto de estudo.
A Psicodinâmica do Trabalho sendo uma clínica, busca desenvolver o campo de
saúde mental e trabalho, partindo do trabalho de campo e deslocando-se e retornando
constantemente a ele. Tem como objetivo intervir em situações concretas de trabalho,
compreender os processos Psíquicos e formular avanços teóricos e metodológicos
reproduzíveis a outros contextos.
PERCEPÇÕES DE SI: estudo sobre saúde mental dos agentes prisionais na
cidade de Belém/PA, apresenta dados que possibilitará compreender o processo de
saúde X doença de um determinado grupo de trabalhadores, que carregam marcas
por trabalharem em um lugar estigmatizado custodiando uma clientela marginalizada
pela sociedade e de relações determinadas por um desequilíbrio no exercício do poder.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 521
Como é possível observar nos relatos acima, a atividade profissional dos agentes
prisionais deixa marcas na saúde física e mental destes profissionais. Na saúde física,
as mais frequentes patologias citadas foram: hipertensão, diabetes, problema renal,
colesterol e triglicerídeos alto. “Batman” diz: “Lá na unidade muitos temos problemas
né, eu luto contra a diabete e tento controlar, minha glicose deu muito alta de 2017
pra cá” “Homem de Ferro” relatou que já fez quadro de Hipertensão, Colesterol e
Triglicerídeos alto. Já “Mulher Maravilha” relata Hipertensão e Depressão.
pelo Estado, porém diz que apesar da sociedade não acreditar na ressocialização das
pessoas presas, os agentes prisionais podem sim contribuir para a formação do ser
humano que está preso e, relata: “[...] pessoas que trabalham do lado da escória da
sociedade e isso traz para nós um estigma negativo e a sociedade nos vê inserida
nesse processo de segregação de pessoas sem cultura, pessoas brutalizadas e vejo
a sociedade ainda vendo dessa forma”.
Os relatos nos mostram que, assim como já citado por “Homem de Ferro” que
as atividades/função do agente prisional são a guarda, segurança, movimentação da
pessoa presa e alguns ainda desenvolvem atividades administrativas por terem sido
realocados em setores administrativos, como acontece com “Mulher Maravilha” e
Apontamentos finais
A presente pesquisa demonstrou o quanto é difícil trabalhar em uma instituição
fechada e politicamente controlada. Melo (2020) nos fala a história da configuração
do dispositivo penitenciário brasileiro e mostra que os confrontos e acomodações
entre a produção do Direito e sua violação na produção da ordem, da vigilância e da
punição, entre os valores e práticas da Justiça e da Segurança, foram determinantes
para a emergência da gestão prisional e da burocracia penitenciarista que a caracteriza.
Assim sendo, Oliveira (2012) fala sobre a realidade do Pará quanto aos desafios
enfrentados pelos servidores penitenciários, diante do exercício de suas atividades,
e diz: são obrigados a recorrerem a estratégias, como por exemplo, o afastamento
subjetivo que coloca o servidor penitenciário a não falar e nem pensar no trabalho ao
sair da casa penal, demonstrou ser uma estratégia defensiva que contribui para que
526
da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições
de trabalho.
Segundo a Portaria nº 3.120/GM/1998 a Vigilância em Saúde do Trabalhador
– VISAT, compreende uma atuação contínua e sistemática, ao longo do tempo, no
sentido de detectar, conhecer, pesquisar e analisar os fatores determinantes e condi-
cionantes dos agravos à saúde relacionados aos processos e ambientes de trabalho,
em seus aspectos sociais, tecnológicos, organizacional e epidemiológico, com a
finalidade de planejar, executar e avaliar intervenções sobre esses aspectos, de forma
a eliminá-los ou controlá-los.
Portanto, ao demonstrar o real, entende-se como uma proposta de intervenção a
implantação de políticas públicas voltadas à segurança e a saúde do agente prisional,
proporcionando ao servidor melhores condições de saúde física e mental, contribuindo
para um ambiente de trabalho que tenha mais salubridade, melhor infraestrutura,
adequação da carga horária de trabalho, diminuindo assim, o sofrimento psíquico.
À CAVS/SEAP, cabe um plano de ações contínuo de atendimentos, avaliação e de
estratégias de ações de valorização e qualidade de vida, de forma acessível e efetiva,
trabalhando também de forma preventiva.
Por fim, nesta dissertação buscou-se apresentar o dispositivo prisão, com um
olhar diferenciado, a partir dos aspectos da saúde mental dos agentes prisionais, indi-
víduos carregados de subjetivação, atravessamentos e implicações, que desenvolvem
seu trabalho em um contexto que proporciona adoecimento.
528
REFERÊNCIAS
BAGALHO, J. O.; MORAES, T. D. A organização do trabalho prisional e as vivências
de prazer e sofrimento. Estudos de Psicologia, v. 22, n. 3, p. 305-315, jul./set. 2017.
SILVEIRA, J. T. “Se tirar o colete não dá pra saber quem é agente”: trabalho, iden-
tidade e prisionização. In: SEMINÁRIO NACIONAL SOCIOLOGIA & POLÍTICA
UFPR, 1., 2009, Curitiba. Anais [...]. Curitiba: UFPR, 2009.
Fontes eletrônicas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
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Q%3A1636977713379&ei=MUySYZrVFsjN1sQP_Ju_yAQ&oq=integralidade+de+-
sa%C3%BAde++pela+dimens%C3%A3o+do+SUS&gs_lcp=Cgdnd3Mtd2l6EAMy-
BQghEKABOgcIIxDqAhAnOgQIIxAnOggIABCABBCxAzoKCC4QxwEQrwEQ-
QzoLCC4QgAQQxwEQowI6BQguEIAEOggIABCxAxCDAToECAAQQzoECC-
Introdução
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1 Psicóloga, pós-doutora pela Universidade de São Paulo/SP. Doutora e Mestre pela Universidade Estadual
Paulista. Professora universitária, orientadora educacional e psicóloga clínica.
534
a vida cotidiana da maioria das pessoas, assim como também nas empresas e insti-
tuições. Assim, essas novas modalidades de comunidades on-line vêm constituindo
um novo modo de fazer sociedade (ROSA; SANTOS, 2015). Esse novo modo de
relacionar-se, focado principalmente nas redes sociais, gerou uma nova forma de
cultura denominada cibercultura (ROSA; SANTOS, 2015).
A cibercultura é considerada por Lemos (1999) uma modalidade sociocultural
que emerge da relação simbiótica entre a sociedade, a cultura e as novas tecnologias de
base microeletrônica que surgiram com a convergência das telecomunicações e com
a informática na década de 1970 (LEMOS, 1999, p. 11 apud CHAMPANGNATTE;
CAVALCANTE, 2015). Para Levy (1999) conforme citado por Lima et al. (2009),
Para Lacan, segundo Oliveira (2008), a fantasia tem seu início no momento do
recalque originário, em outras palavras quando o pai ou até mesmo a metáfora do
nome-do-pai surge na vida do sujeito ainda criança, e isso acontece durante o segundo
tempo do Édipo. O pai quebra essa relação simbiótica do filho e isso o impede de
aproveitar o gozo absoluto. Deste modo a fantasia então não permite que a criança
tenha o gozo total, mas sim outra forma de gozo, dando-lhe em troca o gozo fálico.
Pode-se pensar na fantasia como uma fuga à pulsão de morte, pois ao impedir o
gozo total ela faz uma espécie de conexão entre o inconsciente e a realidade. Porém,
ela não consegue dominar a pulsão de morte por inteiro, pois uma parte permanece
liberta no inconsciente; a consequência aparece quando ela ganha espaço em relação
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Portanto, ainda de acordo com Oliveira (2008), a fantasia entra em cena e faz a
articulação entre o registro simbólico e o real, por meio do registro imaginário. Sendo
assim com base nesse conceito de fantasia, permanecemos em Lemos (2011) que declara
que essa forma de se relacionar no ciberespaço, ou seja, o indivíduo utilizar o computador
para se relacionar com as pessoas, ou ainda dizendo que nesse contexto a relação do
indivíduo com as pessoas mediada pelo computador, nada mais é do que afirmarmos
que o modo como essa se relaciona com as demais é fundamentado e mediado pela
fantasia. A autora ainda acrescenta que a tela do computador é o que está visível aos
nossos olhos, porém, a tela que está atuando (atuante) durante a relação, e funcionando
durante esse processo, é a da fantasia. As fantasias têm funções que podem ser observadas
no ciberespaço como a função protetora que faz com que os fatos sejam sublimados e
embelezados, o que, por sua vez, leva a que ocorra a autoabsolvição. Isso pode causar
impactos negativos na vida das pessoas, tendo efeitos e repercussões principalmente na
subjetividade e nas formas de relacionamentos dos indivíduos (LEMOS, 2011, p. 63).
É notório como as redes sociais alteraram diretamente a forma como nos
comunicamos e nos relacionamos. Por um lado, as redes sociais ampliaram a inte-
ração, dando oportunidade de manter contatos com pessoas que estão distantes,
536
de uma maneira muito mais próxima do que através de cartas por exemplo. Com
a tecnologia, hoje, podemos conversar com quem quisermos por meio de uma tela
de celular ou computador podendo vê-la em momento real. Além disso, pode-se
compartilhar trabalhos, trocar ideias e até mesmo se expressarem e mostrarem
o seu dia a dia. No entanto, quando refletimos sobre a maneira como as pessoas
estão se mostrando nas redes sociais, caímos numa reflexão. Até que ponto estamos
expondo aquilo que realmente somos?
Desenvolvimento
mecanismo de defesa de algumas pessoas para proteger o verdadeiro self, uma forma
de deixar a mostra somente o que é socialmente aceito e esperado. Isso acontece, pois,
o falso self tenta resguardar o verdadeiro self de um ambiente que não foi suficiente-
mente bom. Para Winnicott (1983), esta estrutura se desenvolve desde o nascimento
da criança; se a mãe supre as necessidades do bebê e estabelece uma boa relação com
ele, esse indivíduo consegue fortalecer seu ego e organizar melhor suas defesas e mais
rapidamente tornar-se verdadeiro. Além disso, ele vai conseguir distinguir o seu “eu”
do “não eu”. Diferentemente do bebê que não tem suas necessidades supridas e não
consegue desenvolver essa estrutura e acaba tendo que camuflar muitas vezes o se
“eu” através do falso self (WINNICOTT, 1983 apud PEREIRA; TOKUDA, 2017).
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Pereira e Tokuda (2017), ainda, descrevem como o falso self tem correlação
direta com os comportamentos das pessoas nas redes sociais:
A identificação do falso self nas redes sociais é visível, pois todos os aspectos da
teoria de Winnicott se cruzam com a maneira em que os usuários utilizam esses
meios. Para Galván (2013), o falso self causa um empobrecimento da persona-
lidade real e um enriquecimento na personalidade mostrada nas redes sociais,
sendo assim o indivíduo se mostra ao mundo de uma maneira saudável imerso
na irrealidade, porém seu verdadeiro eu está doente, vazio e sem forças para se
mostrar. O falso self é nutrido por meio da apresentação ambiciosa e sedutora do
indivíduo, que desenvolvem a habilidade de dissimular, fingir e mentir (PEREIRA;
TOKUDA, 2017, p. 869).
Supõe-se dessa maneira que pelo fato das pessoas apresentarem nas redes sociais
uma imagem muitas vezes irreal, faz com que ela se confunda com a sua própria
personalidade, não conseguindo distinguir o que se é de verdade e o que é máscara.
Com isso, desenvolve um sentimento de vazio e futilidade, podendo levar a questões
emocionais ligadas a dificuldades afetivas.
ser. Conforme Dornelles (2004 apud ROCHA; SOUZA, 2019), a internet nos permite
explorar facetas de nossa personalidade que em relações presenciais, ou seja, off-line
não podemos assumir. As limitações de comportamentos individuais impostas pela
sociedade nos impediram de ter uma identidade livre. Isso não ocorre na vida on-line,
o que nos dá livre acesso a exposição de uma identidade virtual.
Segundo Silva, Azevedo e Galhardi (2015), mesmo as redes sociais apresen-
tando inúmeras vantagens, é possível ainda destacar situações em que as pessoas
fazem o uso inconsciente dessa tecnologia, e isso pode resultar em consequências
negativas, como a perda de privacidade. Nessas redes de relacionamento virtual são
encontradas várias informações pessoais desses indivíduos, das quais seriam dificil-
mais vista esta pessoa será. Isso faz com que busquem cada vez mais fazerem parte
dessas redes (MARRA E ROSA, 2015).
Desta forma, uma experiência perde seu sentido se não for registrada e com-
partilhada com o outro. Onde o indivíduo só passa a existir se for visto e se ele gerar
repercussão na rede social. Esse movimento possui relação direta com o surgimento
do narcisismo, tão marcante na contemporaneidade. Considerando esse narcisismo
como a marca da fragilidade do “eu” e da obsessão do indivíduo para consigo mesmo
(SOBRINHO, 2014). Destaca Rosa e Santos (2015) que há uma repercussão do uso
das redes na subjetividade contemporânea que acarreta uma dependência da relação
fantasiosa e da imaginação, o que acaba camuflando o real.
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disputam poder e popularidade, o que ocorre principalmente nas redes sociais. As ilu-
sões de grandeza e fantasia refletem em suas colocações e posts na internet, atendendo
às demandas do Narcisismo Patológico. Aos narcisistas é vital a aprovação do outro,
necessitando também da confirmação de seu suposto glamour por todos que estão à
sua volta ou fazem parte de suas redes. Isso possibilita ao narcísico o sentimento de
segurança e poder, tendo como seu espelho a grandiosidade de ser aceito por aqueles
que o seguem e o admiram (MELO; SACCHQ; REIS, 2019).
Aqui percebe-se a importância de fazer parte das redes, até mesmo para estar
por dentro de tudo o que ocorre na sociedade. Hoje tudo é colocado ou postado nas
redes sociais, ou seja, há um senso de importância e o papel de “inserção” onde
Lasch (1983, p. 44) afirma que “toda cultura constrói um tipo psicológico ideal
[...] exigido pela sociedade”. Freud (1996) relata sobre o Ideal do Ego, que se
refere a um conceito dinâmico, ou seja, apoiando-se sobre as pulsões dos sujei-
tos, desta forma, os sujeitos encontram-se em uma eterna tentativa de recuperar
a perfeição narcísica obtida no período da infância, prolongando essa tentativa
de modo que ela seja vista como algo a se alcançar no futuro. A origem do Ideal
de Ego encontra-se nas identificações do Complexo de Édipo; a partir de então,
o sujeito sempre busca novas formas de identificação, encontrando nas redes
sociais seus ídolos e investindo libido nesses novos modelos de identificação
superficiais. Desta maneira, o Ideal do Ego pode ser compreendido como uma
força pulsional que leva o sujeito para o progresso, transpondo para as redes
sociais. Os sujeitos a percebem como lugar de exposição e engrandecimento,
onde podem conquistar os louros da fama, ainda que não sejam celebridades de
fato (MELO; SACCHQ; REIS, 2019, p. 9).
Outra rede social que não poderíamos deixar de citar, e que possui um poder de
influência muito grande, é o Instagram. Esse aplicativo que foi criado em 2010 abre
espaço para que seus usuários compartilhem fotos e vídeos, podendo utilizar de vários
filtros para editá-los. Segundo Hage e Kublikowski (2019), o Instagram é utilizado
por mais de 400 milhões de pessoas ao redor do mundo, e o Brasil é o segundo país
que mais acessa essa rede. Apesar do grande número de usuários, há pouquíssimas
pesquisas, principalmente na área da Psicologia, no que se refere sobre as influências
desse aplicativo no cotidiano das pessoas, e também sobre pesquisas que ofereçam
subsídios para lidar, nas práticas clínicas, com as consequências dessa grande exposição
que o indivíduo se submete (SIBILA, 2008 apud HAGE; KUBLIKOWSKI, 2019).
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 541
Neste novo momento em que vivemos, o status de riqueza também sofre uma
nova configuração, transformando-se em conectividade. Isto é, somos avaliados pela
quantidade de amigos, seguidores e curtidas que possuímos no nosso perfil das redes
sociais, assim quanto mais números você contabilizar mais valioso você se torna
dentro desse meio, e com isso, consequentemente influencia os amigos a adquirirem
bens ou tomarem decisões (KEEN, 2012 apud JEFFMAN, 2014). Ainda conforme
Keen (2012 apud JEFFMAN, 2014), o mesmo cita Michel Foucault que aponta que
a “visibilidade é uma armadilha” em sua obra Vigiar e punir (FOUCAULT, 1987), o
que traduz exatamente o que temos presenciado hoje. Podemos observar que as redes
sociais, ao invés de unir a sociedade, podem estar fragmentando pois, ironicamente,
Considerações finais
Em suma, podemos refletir que nessa atual era em que vivemos a internet
veio como uma ferramenta de acesso à informação, contribuindo de maneira
significativa ao processo de globalização que estamos vivendo. Junto a isso, as
redes sociais se tornaram parte do cotidiano da maioria das pessoas, influen-
ciando-as nas novas maneiras de se relacionarem, trazendo aspectos positivos
e negativos. Cabe aqui mencionar que compreendemos as contribuições que as
redes sociais proporcionaram como: a facilidade de se comunicar de maneira
instantânea podendo conversar com pessoas de até outros países por exemplo,
além de outras colaborações. No entanto, nosso foco foi fazer uma crítica no
modo como as pessoas estão fazendo o uso das redes sociais e como tudo isso
influencia nos relacionamentos interpessoais.
De acordo com o visto, as pessoas que utilizam com maior frequência as redes
sociais, apresentam dificuldade em compreender as emoções humanas incluindo as
próprias emoções. As redes sociais, como já dissemos, favoreceu um ambiente onde
os problemas de relacionamentos podem ser resolvidos com um simples “bloqueio”
na pessoa, fazendo com que as pessoas fujam de enfrentar um diálogo aberto, olho
no olho. Sendo assim, percebemos como essa interação on-line colabora na perda
da capacidade de empatia do sujeito. A comunicação via internet não proporciona o
uso da linguagem não verbal, como as expressões das emoções, tom de voz, fazendo
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 543
perder, dessa forma, aspectos essenciais para uma comunicação mais efetiva e esta-
belecimento de conexões humanas mais reais.
Ademais, foi possível perceber como estamos substituindo o prazer de viver a
vida real pelo prazer de sermos vistos. Há uma necessidade de se exibir e mostrar o
que está fazendo, e geralmente as postagens estão relacionadas aos lugares que as
pessoas estão, o que estão comendo e a roupa que estão vestindo, refletindo numa
constante busca de mostrar que se está feliz. É como se a rede social fosse uma
competição de quem está melhor e na maioria das vezes todo mundo perde nessa
batalha, pois, a cada instante uma pessoa posta algo considerado “melhor” que o
seu post e nesse momento você já fica “para trás”. Desta forma, entendemos que é
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REFERÊNCIAS
ARÓS, A. C. S.C. Irrealidade, futilidade e vazio: sofrimentos radicais e sociedade
contemporânea. Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCamp), Cam-
pinas, 2009.
JEFFMAN, T.M. W. Resenha do livro: Vertigem digital: por que as redes sociais
estão nos dividindo, diminuindo e desorientando? Revista Famecos, Porto Alegre,
v. 21, n. 1, 2014.
Processo avaliativo
O processo avaliativo neuropsicopedagógico engloba um conjunto de sessões,
onde a queixa trazida pelos pais, professores e/ou demais profissionais que o enviou
para a avaliação, será investigada. O número de sessões é variável e geralmente
segue as seguintes etapas:
Método
Delineamento
Materiais
O objeto de análise neste trabalho foram artigos de revistas cientificas que
visaram caracterizar dificuldades no aprendizado da leitura, escrita e aritmética,
encontrados em bases de dados, abrangendo os últimos cinco anos. Aplicaram-se
restrições à cronologia e à língua original de publicação.
Procedimentos
Para realizar esta revisão foram consultadas as bases de dados Pepsic e SciELO,
da data de publicação até agosto de 2021. Os documentos potencialmente relevantes
foram selecionados com os seguintes descritores: “leitura”, “escrita”, “aritmética”,
“teste”, “escala”. Foram usados os seguintes operadores booleanos: “e” entre os
descritores e “ou” para as variações de um mesmo descritor.
Foram aceitos artigos publicados em 2017 a agosto de 2021, textos comple-
tos e escritos em português. A seleção dos estudos foi baseada no título e resumo,
e a extração dos dados na análise dos artigos completos. Critérios de inclusão:
(1) artigos que tratavam de instrumentos para caracterização das dificuldades na
aprendizagem; e (2) artigos que se referiam do 1º ao 9º ano. Critérios de exclusão:
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(1) artigos repetidos; (2) artigos não disponíveis na integra; (3) artigos em língua
diferente do português; (4) artigos que utilizavam instrumentos de outros países; e
(5) instrumentos de uso restrito a psicólogos.
Visando amenizar o risco de viés, dois juízes realizaram os procedimentos de
seleção e extração dos artigos, de forma independente, com índice de concordância de
94%. Nos casos de desacordo, uma especialista foi consultada. Com base na análise
final da seleção, os estudos foram caracterizados de acordo com seus autores e ano
de publicação, instrumentos utilizados e funções avaliadas.
Resultado
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A busca inicial nas bases de dados identificou 132 artigos. Após a análise dos
títulos e dos resumos, foram descartados 121 artigos por não corresponderem aos
critérios de inclusão, visto que foram publicados fora do período escolhido, a faixa
etária era inferior ou superior ao estabelecido, alguns estavam escritos em outros
idiomas e/ou não representavam pesquisas voltadas para o uso de instrumentos ava-
liativos em Transtorno Específico de Aprendizagem. Portanto, os estudos elegíveis
somaram 11 artigos nacionais (Tabela 2).
continuação
Título do artigo científico Objetivo/ Amostra/público Autores
Verificar o desempenho ortográfico de alunos do 4º ano do ensino
Disortografias de escolares
fundamental, de escolas públicas de uma cidade do interior de
do 4º ano do ensino funda- Sampaio e Toschi
Goiás.
mental da rede pública do (2018)
Número de participantes: 186
interior do estado de Goiás.
Público: Crianças de 8 a 13 anos
Intervenção multissensorial Avaliar o efeito de intervenção multissensorial e fônica no desen-
e fônica nas dificuldades de volvimento de habilidade de leitura e escrita.
Leal et al. (2017)
leitura e escrita: um estudo Número de participantes: 1
de caso. Público: Criança de 10 anos
Implicações de fatores aten- Identificar e comparar os níveis atencionais e os desempenhos na
Bateria de Avaliação de Competências Iniciais para Avaliar processos implicados na aprendizagem, como a percep-
Leitura e Escrita – BACLE ção auditiva e visual, esquema corporal e orientação espaço-cor-
poral, motricidade e linguagem.
Ditado de Palavras – DP Avaliar regras ortográficas do português.
Ditado de Pseudopalavras – DPP Avaliar correspondência grafofonêmica.
Teste de Competência de Leitura de palavras e Avalia o padrão de leitura específico de uma criança segundo
Pseudo palavras – TCLPP modelo cognitivo de desenvolvimento de leitura e escrita;
Identifica as estratégias de leitura que prevalecem em seu
desempenho.
Prova de Consciência Fonológica por Produção Oral Avaliar a consciência fonológica das crianças que frequentam a
– PCFO educação pré-escolar.
Teste de Repetição de Palavras e Pseudopalavras Avaliar memória fonológica de curto prazo.
– TRPP
Bateria de Avaliação de Leitura e Escrita On-line – Avaliar habilidade de leitura e escrita.
BALE ON-LINE
Tarefa de Leitura de Palavras Irregulares Avaliação de linguagem por meio de lista de palavras, traba-
lhando o número de letras, sílabas e semelhança estrutural.
Tarefa de Ditado de Palavras Irregulares Avalia o conhecimento ortográfico a partir da direção de classi-
ficação fonema-grafema (direção da escrita).
Provas de Avaliação dos Processos de Leitura Avaliação dos processos de leitura.
– PROLEC
Teste de Indicadores dinâmicos de Habilidades Bási- Rastreio precoce para o diagnóstico de dislexia.
cas de Alfabetização – DIBELS
Fonte: Elaborado pelas autoras.
O Teste de Desempenho escolar – TDE II, (STEIN et al., 2019) avalia alunos do
ensino fundamental nas habilidades básicas de leitura, escrita e aritmética, podendo
ser utilizado como instrumento de avaliação com fins diagnósticos e clínicos de pla-
nejamento e intervenções clínico-educacionais. O subteste Leitura avalia a habilidade
de leitura de palavras isoladas. Possui duas versões: a versão A é composta de 36 itens
e destinada a estudantes do 1º a 4º ano; versão B composta de 33 itens e destinada
aos alunos do 5º a 9º ano. O subteste Escrita, avalia a escrita de palavras isoladas e
é composto por duas versões: A e B, ambas com 40 palavras que diferem no nível
de complexidade no momento da escrita. A versão A é aplicada nos alunos de 1º a 4º
ano e a versão B, nos alunos de 5º a 9º ano. O instrumento foi o único identificado
para avaliar as três habilidades básicas.
556
Considerações finais
Os resultados descritos evidenciam a existência de poucos instrumentos avaliati-
vos destinados a investigar habilidades básicas em leitura, escrita e aritmética em alunos
do ensino fundamental, cabendo investir na elaboração e adequação destas ferramentas.
Contudo, apesar desta limitação, o capítulo descreve instrumentos de grande
valia aos profissionais que atuam no processo de ensino-aprendizagem, os quais
potencializam a identificação precoce das dificuldades de aprendizagem e o diag-
nóstico criterioso dos transtornos específicos de aprendizagem, o que favorece a
implementação de estratégias interventivas que minimizem as consequências da
defasagem acadêmica.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 561
REFERÊNCIAS
ABREU, E. S. et al. Relação entre atenção e desempenho em leitura, escrita e arit-
mética em crianças. Avaliação psicológica, Itatiba, v. 16, n. 4, p. 458-467, out. 2017.
HECHT, S. et al. The relations between phonological processing abilities and emerg-
ing individual diferences. In: MATHEMATICAL Computation skills: a longitudinal
study from second to fifth grades. Journal of Experimental Child Psychology, v. 79,
p. 192-227, 2001.
YUILL, N.; OAKHILL, J.; PARKIN, A. Working memory, comprehension ability and
the resolution of text anomaly. British Journal of Psychology, v. 80, p. 351-361, 1989.
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O ENSINO DE QUÍMICA E A
PRÁTICA EDUCATIVA
Gilson Pompeu Pinto
Heidiany Katrine Santos Moreno
Introdução
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Há muito tempo que o ensino de Química vem enfrentando uma série de difi-
culdades. De um lado os alunos reclamam constantemente que a matéria é chata,
difícil, sem significado, com muitas fórmulas e exigências de cálculos matemáticos.
Por consequência, os alunos que têm dificuldades em Matemática encontram sérios
problemas em Química. Temos ainda do outro lado os professores que dizem que
por mais que explique a matéria, os alunos na maioria das vezes não conseguem
assimilar o mínimo necessário.
Isto nos coloca diante de um enorme dilema: como lecionar qualquer conhe-
cimento que analisamos admirável para a desenvolvimento da cidadania, quando os
adolescentes, posteriores críticos, não a contemplam e nem a avaliam acentuado. A
sociedade hoje, com toda a tecnologia que dispõe não acolhe além disso uma metodo-
logia de exemplo unicamente expositivo. Isso se conjetura na ausência de empenho dos
estudantes em apresentações convencionais. Porém, apropriado membro dos estudantes
não são mais alunos em período completo, o que determina embora além disso do
educador em termos do programa de aulas que aprovem às obrigações dos educandos.
Lembramos que os educadores se deparam desprovidos de alternativas para
esquivar do ensino clássico. Temos que analisar também que o educador em universal
não recebe, nem durante nem após a sua graduação, que lhe permita desenvolver
técnicas para uma capacitação para desenvolver um ensino mais ativo. Avisados
da conformidade entre os educadores da disciplina Química que a empregarão de
ensaios é um procedimento que atrai os estudantes, determinando requerer algo nesta
direção. O costume de ensaios pode ser uma probabilidade de mudança dos exemplos
clássicos de educação para a construção de configurações alternadas de lecionar a
disciplina Química. De combinação com nosso ensaio, quando o educador coloca os
ensaios em uma turma de aula comum, ele se depara frente a uma nova conduta dos
estudantes; mais preocupados e atuantes. Nesta ocasião ele poderá praticar a opção
por qualquer determinada didática que compreenda o uso de ensaios.
Não podemos deslembrar que nas relevâncias discutidas sobre o espaço didá-
tico que chamamos de laboratório didático e sobre os seus direcionamentos, tem-se
insistido muito na sua relação com a estrutura mental dos alunos e com suas histórias
educacionais: como consequência, tem se observado a utilização da fenomenologia
do cotidiano, incentivando a procura de regularidades nas experiências propostas em
classe de aula e em domicílio. Por enquanto, essa preocupação representa somente
568
sendo comum que ele possui atualmente. Para que isso ocorra, no entanto, o professor
precisará criar situações em que o aluno se torne insatisfeito com suas concepções
prévias, isto é, situações em que as concepções prévias do aluno não se apliquem,
tornando-se pouco plausíveis e pouco proveitosas.
Quando se utiliza experimentos, em turma ou laboratório, o que se almeja é
aquele que pode ocorrer um intercâmbio do indivíduo, com algum elemento da ciên-
cia, assim sendo, particular. Sua potencialidade em didática estar amarrado muito da
excitabilidade do professor em geral provocações e desvendar novas importâncias de
seus estudantes. Portanto, quando o aluno interagir com os experimentos, terão que
acontecer determinadas probabilidades para o ensinamento adjacente e prometida.
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não para o saber. Nestas perspectivas, os alunos são levados, pela disciplina e pelo
respeito ao mais velho, a acatar tarefas que não fazem sentido, e que são justificadas
com frases de comprovação duvidosa do tipo “você verá que no futuro isto será útil”.
Pode ser que, algumas vezes, esta frase seja verdadeira, e até mais sincera do que
uma simples forma “assegurar os alunos”, mas, se a atividade não tiver sentido para
o sujeito, ele simplesmente estará “fingindo que aprende”.
Não se trata de ir ao outro extremo e “fazer tudo o que se quiser” (e por que
não, às vezes?), mas de uma constatação: se houver interesse por parte do sujeito, a
aprendizagem será uma decorrência natural. De uma forma mais ampla, entre o traba-
lho obrigatório e o trabalho interessado, este último terá uma perspectiva psicológica
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Além disso:
[...] toda atividade, para quem decidir agir, lhe é reveladora da precisão de seu
querer e da natureza de seu poder. Não sabemos verdadeiramente bem o que
queremos e o que podemos, senão quando nos pomos a caminho para atingir o
objetivo do nosso querer (COUSINET, 1974, p. 102).
É claro que não se tem interesse abstratamente. Tem-se interesse por uma pes-
quisa, por um trabalho, por uma realização... dentro de um determinado contexto,
segundo cada sujeito. Desafios também servem para provocar interesses. Eles podem
estar envolvidos em problemas corriqueiros do cotidiano ou podem ser colocados
claramente ao sujeito. É o caso de Édipo, frente a Esfinge, que lhe perguntou: “O
que é que tem uma vez quatro pernas, depois tem 2 e depois tem 3? – Decifra-me
ou devoro-te!”.
Em geral, os desafios (charadas, problemas, quebra-cabeça), que encontramos,
não são colocados de maneira tão drástica como fez a Esfinge a Édipo, mas são sufi-
cientes para gerar um interesse em procurarmos a solução. No caso de Édipo (que
respondeu certo!), o interesse era a própria vida. Não desejamos chegar a este extremo
para conseguir ensinar na escola (não é o caso de vida ou morte!), mas podemos
lançar mão desta prática, através de conteúdos que envolvam a Química, tomando o
572
cuidado de não transformar esta prática em mais uma forma artificial para o ensino.
Obstáculos e desafios são situações comuns e cotidianas. Educar, utilizando tais
recursos, é preparar o sujeito para atuar na sua realidade. Freire salienta este aspecto:
Entendendo tais aplicações também para o adulto. Não se trata de utilizar estes
instrumentos como atrativos ao ensino, mas de permitir acesso ao conhecimento também
através deles. Chateau discute a busca do atrativo lúdico, considerando que, se essa for
à única razão para utilizarmos jogos e brinquedos, não teremos mais do que uma ilusão,
isolando o sujeito da vida. Para ele, o jogo revela um importante princípio de que “se
faz tudo que se faz com prazer”. Isso é o mesmo que dizer que qualquer atrativo tem
valor educativo, diferenciando, pois, o “atrativo do jogo” (que ele considera superior)
do “atrativo da guloseima”. Jogos ou trabalhos escolares também podem ser encarados
como “atrativos-guloseima”, se não tiverem nenhuma conexão com o aprendizado real.
Freinet questiona a utilização do jogo na educação, enquanto busca de uma
“escola atraente”, principalmente no que diz respeito ao conceito de uma educação
ativa. Para ele, como também para Chateau e Piaget, a educação ativa não é apenas
a obtida com a composição de diferentes “atividades”, mas é apenas aquela cujo
processo de construção tenha a participação atualmente atuante do sujeito. É nessa
mesma perspectiva que procura diferenciar os tipos de jogos aplicados à educação,
com os rótulos de “jogos” e “jogos de trabalho”. Nessa sua análise, o trabalho preva-
lece sobre o jogo, segundo o que argumente ser uma “prioridade orgânica”, dizendo
haver uma necessidade de trabalho e não de jogo, decorrente de um potencial de vida,
ao mesmo tempo individual e social. Para ele, o jogo tem consequência educacional
com forma travestida de trabalho, uma espécie de pré-aprendizagem do mesmo:
[...] esse jogo, que é essencial ao animal pequeno como à criança, é, em última
análise, trabalho, mas trabalho de criança, cujo objetivo nem sempre captamos,
trabalho que, de modo algum, reconhece por que é menos terra a terra, menos
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 573
Lúdico no ensino-aprendizagem
Alguns educadores têm dificuldade em perceber a importância do lúdico no
processo de ensino-aprendizagem. Porém profissionais da educação comprometidos
com a qualidade de sua prática pedagógica, reconhecem a importância do lúdico
como veículo para o desenvolvimento social, intelectual e emocional de seus alunos.
Para entender o universo do lúdico, é necessário compreender que ele envolve os
jogos, os experimentos e as brincadeiras. Brincar é uma atividade que facilita o desen-
volvimento físico, cognitivo, psicológico, estimula o desenvolvimento intelectual,
574
dos conteúdos. Tem-se, além disso, diferentes que poderíamos considerar como sendo
de atitude mais genérica, ou seja, abordam sobre os alicerces da educação experi-
mental, seus materiais, seus condicionantes sócios e culturais, políticos e dinâmicos.
Ainda que, esse atraente variada de aspectos Nardi (1998) acredita que, de
forma dilatado, tais exames apresentam uma descrição banal: a averiguação de uma
contenção além disso aberta e densa de vários elementos que diferenciam o ensino
das ciências (Biologia, Física e Química), ambicionar assim gerar adequações ou
deformações nas aprendizagens pedagógicas do educador no seu local de afazer.
Involuntariamente das esperanças construtivas da metodologia de aprendi-
zagem tem sido aconselhado que as atividades de ensino desenvolvidas nas aulas
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motivo e vocacional, que confiam que as aulas experimentais possam ajudar a ligar
os pensamentos nas ciências, curiosidade ou o comprometimento pela disciplina.
Na atualidade do julgamento, o interesse ascendente incide na altercação da
importância dos experimentos. A Química é uma permuta irredutível entre o ensaio
e a hipótese, e assim, o isolamento total entre o prático e a teoria não é aconselhável
e nem admissível. A ocupação do ensaio é praticar com que a hipótese se ajuste ao
fato, poderíamos ajuizar que, como atividade socioeducativa isso poderia ser feito
em múltiplos planos, estar sujeito ao conteúdo, da metodologia abraçada ou dos
alcances que se quer com o ensaio.
Não vive ainda um código de publicação bem situado (FRAZER, 1982, p. 127).
Ponderar a Didática das Ciências uma infantil aplicação do exercício das Ciências
da Educação pode improvisar com que ignoremos a importância da epistemologia
582
da ciência para uma melhor aprendizagem das ciências [...] Além disso, é a existên-
cia de uma corporação próprio de conhecimentos sobre o ensino e a aprendizagem
das ciências que torna admissível a integração de conhecimentos alcançados da
Psicologia da Educação (CACHAPUZ, 2011, p. 161).
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Química.
Brasília: MEC/SEF, 1997.
BRUNER, J. Uma nova teoria de aprendiz. Tradução: Noray Levy Ribeiro. 2. ed.
Rio de Janeiro: Bloch, 1969.
DUIT, R. On the role of analogies and metaphors in learning science. Science Edu-
cation, v. 75, n. 6, p. 649-672, 1991.
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1980.
584
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. 18. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
Introdução
Este capítulo versa sobre os desdobramentos de uma pesquisa desenvolvida
pela Coordenação do Curso de Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade
Estado do Pará – UEPA, realizada durante os meses de setembro e outubro de 2021,
com o objetivo de investigar as condições socioeconômicas e de saúde mental dos
discentes do curso em meio à pandemia de covid-19.
A iniciativa foi motivada pela constatação de evidências presentes na rotina do
curso que indicavam distintas formas de interação entre a condição socioeconômica,
a pandemia, a saúde mental, o desenvolvimento dos componentes curriculares e o
desempenho acadêmico dos discentes. Os indícios da confluência desses fatores
pululam diariamente na interação entre alunos, professores e técnicos da instituição
e costumam demandar a gestão administrativa e pedagógica do curso com ocorrên-
cias que envolvem alunos com manifestações de ansiedade, depressão, ideação e
tentativas de suicídio, problemas familiares e econômicos de diversas ordens, além
de inúmeras situações que requerem manejo especializado.
Durante os meses de agosto e setembro de 2021, foram realizados 12 atendimentos
a discentes que procuraram a coordenação de curso em busca de ajuda e/ou orientação.
Dentre as situações apresentadas destacaram-se alunos com dificuldades em manter-se
no curso em função de problemas socioeconômicos que vão desde a falta de recursos
para o deslocamento às atividades acadêmicas, até dificuldades em alimentar-se.
Demandas em relação à saúde mental igualmente mostraram-se frequentes por
parte de alunos que tinham aproveitamento acadêmico prejudicado pelo sofrimento
mental instalado e pela falta de assistência qualificada.
A intermitência de situações agudas como crises de ansiedade intensificadas
pela dificuldade em manter-se nos estudos e, por vezes, sem os recursos financei-
ros que outrora mantinham a aquisição de medicação adequada para o tratamento
desses quadros, ideação suicida e tentativas de suicídio, explicitou um cenário que
não poderia ser ignorado. Trata-se de um contexto complexo que aglutina múltiplos
fatores que envolvem demandas familiares, violência física e sexual, abuso de subs-
tâncias psicoativas, problemas financeiros, sofrimento mental diagnosticado e sem
acompanhamento, dentre outras coisas acentuadas após a instalação da pandemia.
588
Método
A pesquisa teve delineamento quanti-qualitativo e transversal. Baseou-se na
obtenção de informações junto aos discentes de todas as séries do curso Terapia
Ocupacional, no ano letivo de 2021. Os dados foram obtidos por meio de questionário
constituído por questões abertas e fechadas que abordavam primeiramente informa-
ções relacionadas à condição socioeconômica e, em segundo lugar e majoritariamente,
informações sobre a saúde mental dos discentes.
A elaboração do questionário levou em consideração as principais demandas
relacionadas à condição socioeconômica e de saúde mental dos alunos com as quais
a coordenação do curso lidou durante os meses de julho, agosto e setembro de 2021.
A estrutura do instrumento para obtenção dos dados foi formada por 34 questões
envolvendo múltipla escolha, narrativas sobre a autopercepção em relação à saúde
mental e questões baseadas em escala Likert. O instrumento, durante sua etapa de
elaboração, foi submetido à apreciação de profissionais com expertise nesse tipo
de pesquisa e em saúde mental, assim como contou com a colaboração do Centro
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 589
Resultados
A taxa de retorno dos formulários foi de 76% (N=127) e os respondentes
foram predominantemente mulheres (85,8%) com faixa etária que vai dos 17 aos
30 anos de idade.
Em valores absolutos e percentis obteve-se a seguinte distribuição dos partícipes:
a) Condição socioeconômica
uma tentativa de suicídio. Ademais, (75,6%) acusa o cenário pandêmico como fator
que ampliou algum comprometimento já existente em sua saúde mental.
Sobre o uso do tempo e organização das tarefas cotidianas, apenas 3% referem
não ter nenhum tipo de dificuldade. As principais razões apontadas como dificul-
tadoras da organização do tempo em relação à dinâmica da vida acadêmica foram
“sentir-se ansioso”, estar “sobrecarregado de atividades” e a “falta de habilidade ou
dificuldade na organização pessoal”.
Diante dessas dificuldades mais da metade dos discentes (57,9%) afirma que
prioriza as atividades acadêmicas a despeito de outras áreas e fazeres de sua vida
cotidiana (Gráfico 4).
Em relação aos fatores aos quais atribuem influência negativa sobre a saúde
mental destacam-se (Gráfico 6) a perspectiva em relação ao futuro (60,6%) e o cenário
político e econômico do país (57,5%).
• Você poderia nos dizer sobre como entende que a sua vivência acadêmica
poderia afetar sua saúde mental?
A1: No sentido de sobrecarga de trabalhos e o não aviso prévio dos
mesmos. E também as muitas responsabilidades a cumprir, lidar com
pacientes e ao mesmo tempo fazer os trabalhos.
A2: Com o excesso de atividade tem dias que eu deixo de dormir ou
durmo 2h da manhã como aconteceu essa semana, pra acordar às 6h
pra voltar a UEPA e assim conseguir concluir as atividades. Quando eu
tento deixar momentos de lazer, por exemplo, no fim de semana me sinto
muito culpada como se eu não devesse estar ali porque provavelmente
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não vai dar tempo de cumprir alguma atividade a tempo e ela irá se
sobrepor a outras matérias.
A3: São muitos prazos a cumprir, ir pra faculdade virou sinônimo de
pavor. A gente chega na sala e é bombardeado, professores sem más-
cara, aulas se estendendo do tempo. Falta de zelo num período que se
faz tão medonho
A4: Vivenciei experiências muito difíceis dentro e fora do ambiente aca-
dêmico, que acabam refletindo na minha saúde mental ao formarem um
combo que me afeta negativamente. Prazos curtos, diversos seminários,
provas, que ao se acumularem acabam deixando-me em uma situação
totalmente estressante, em que já fui para as aulas sem conseguir dormir
ou comer por conta desses fatores.
A5: Aulas extensas fazem com que meu engajamento seja muito afetado.
A forma como alguns professores não entendem o que passamos também
faz com que eu me sinta desamparada. Com tudo isso me sinto inútil e
na maioria das vezes me culpo e fico intrigada. Será que realmente esta
muito pesado ou eu que sou fraca demais para aguentar isso?
A6:O curso em tempo integral demanda muito tempo. Pouco tenho
vivenciado momentos de lazer por ter que cumprir com minhas obriga-
ções acadêmicas, que são muitas. mesmo em dias que não temos aulas
durante o dia todo, meu dia é praticamente todo voltado para fazer
trabalhos, ler textos e estudar, porque, caso contrário, eu não consigo
atingir boas notas. isso me afeta demais, por uma infinidade de motivos.
é muito angustiante e desesperador.
A7: Sinto-me esgotada pela alta demanda de atividades, além da pres-
são que, direta e indiretamente, a família exerce sobre expectativas
para minha carreira acadêmica. Além de ser uma pessoa muito tímida
e insegura, o que traz grande prejuízo na tutoria (sempre recebo notas
baixas, e eu reconheço o motivo), haja vista que não costumo ser tão
participativa devido à ansiedade, medo, insegurança. E que isso também
interfere no processo de socialização com os demais alunos e acabo por
me sentir mais sozinha. Fora o fato de conciliar o curso (que demanda
muito tempo, esforço e dedicação) com mecanismos para ter uma renda
que ajude pelo menos nas despesas básicas, já que é um custo bem alto.
596
Discussão
As demandas que se apresentaram a partir deste estudo não poderiam ser ignora-
das. São problemáticas que requerem intervenções a curto, médio e longo prazo e devem
envolver múltiplos atores sociais e institucionais. No que concerne à Coordenação do
Curso de Terapia Ocupacional, na tentativa de contribuir para a melhoria deste preo-
cupante cenário, articulou-se uma rede de colaboradores internos e externos à UEPA
com o propósito de oferecer algumas ações de cuidado à saúde mental dos discentes.
São ações pontuais conduzidas, na maioria, por professores do Departamento de
Terapia Ocupacional – DETO, que atuam no campo da saúde mental ou que possuem
formação em alguma técnica/abordagem que pode contribuir com este propósito.
Igualmente somam a esta intenção colegas terapeutas ocupacionais de outras insti-
tuições públicas e privadas que juntos formam uma rede de colaboração importante
para o enfrentamento do sofrimento mental no ambiente acadêmico.
598
da Medicina que, por meio do poder da narrativa médica, costuma sobrepujar outros
saberes como aqueles advindos da sabedoria popular e de outras profissões da saúde.
O “inédito viável” de Freire, embora não tenha sido cunhado como conceito
formal pelo educador pernambucano, surge em sua obra como um elemento que
aponta para condições de emergência que podem ser decodificadas como algo que era
inédito, não evidentemente conhecido e vivido, e que se torna um “percebido desta-
cado”, deixando de residir no campo imaginário para tornar-se realidade (FREIRE,
2013; FREIRE, 2014; PARO; VENTURA; SILVA, 2020).
Ao refletirmos sobre as condições socioeconômicas e de saúde mental dos dis-
centes, encontramos no inédito viável de Freire, associado à noção de consciência
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defendida pelo autor, ressonâncias que podem contribuir para a compreensão deste
processo. Neste sentido, Freire ressalta o caráter histórico da consciência. Trata-se de
um ponto de vista que se opõe à interpretação solipsista do termo, tomado usualmente
como um ato relativo à psique. Assim, a tomada de consciência freiriana diz de uma
inserção crítica na história, de seres que, ao se assumirem como sujeitos, fazem e
refazem o mundo (FREIRE, 2016).
Ao retomarmos a emergência aqui destacada que ativou uma tentativa de inédito
viável, obrigatoriamente tangenciamos a consciência, nos moldes pensados por Freire,
enquanto um ato histórico, contextualizado com a realidade, de se fazer e refazer
esse microcosmo em que orbitamos, ou seja, docentes, discentes e comunidade da
UEPA inseridos em uma realidade impactada pela ocorrência de uma pandemia que
se prolonga por mais de dois anos.
Nesse sentido, uma prática educativa dialógica e consciente precisa ser fundamen-
tada na situação presente, existencial e concreta dos sujeitos. Freire propõe que se inves-
tigue dentro de um espectro de ação, quais temáticas têm sentido e pelas quais é possível
desenvolver uma leitura crítica da realidade (PARO; VENTURA. SILVA, 2020).
Na concretização do “inédito viável” os entes “não sobrepassam a situação
concreta, a condição na qual estão, por meio de sua consciência apenas ou de suas
intenções, por boas que sejam [...] Mas, por outro lado, a práxis não é a ação cega, des-
provida de intenção ou de finalidade. É ação e reflexão” (FREIRE, 2015, p. 221-222).
Podemos associar o inédito viável à noção do percebido-destacado, que trata
daquilo que é percebido e destacado na vida cotidiana dos sujeitos como algo que não
pode e nem deve permanecer como está, mas, ao contrário, precisa ser enfrentado,
quando é discutido e superado (FREIRE, 2014).
600
Considerações finais
Os dados obtidos e a amostra estatisticamente significativa deste estudo nos
permitem afirmar que o curso de Terapia Ocupacional da UEPA é constituído por
alunos de baixo poder aquisitivo. O fato de quase 60% das famílias desses discentes
sobreviverem com renda de até dois salários mínimos prediz um leque de dificuldades
que o aluno em formação pode encontrar em seu caminho e na vivência acadêmica.
Além disso, o fato de 1/3 dos alunos ainda residirem em seus municípios de
origem agrava esse cenário, considerando os altos custos com passagens intermuni-
cipais, dentre outros gastos com a formação graduada. Ao participarem de um curso
com carga horária integral, a possibilidade de trabalho remunerado é parca e aqueles
que assim o fazem utilizam o turno da noite, comprometendo a qualidade do sono,
descanso, lazer, desempenho acadêmico e, por conseguinte, sua saúde mental.
Preocupa o fato de que a maioria dos discentes do curso (87,1%) ou já foi diag-
nosticada com algum problema de saúde mental ou reconhece que necessita de ajuda
nesse campo, o que nos direciona a avaliar que estamos diante de uma população
que inspira cuidados contínuos nessa área.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 601
REFERÊNCIAS
FREIRE, A. M. A. Inédito viável. In: STRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. J.
(org.). Dicionário Paulo Freire. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 263-265.
FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 15. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2015.
FREIRE, P. Conscientização. Tradução: Tiago José Risi Leme. São Paulo: Cor-
tez, 2016.
Introdução
Em decorrência do avanço e crescimento da população, a violência se tornou
algo corriqueiro na vida das pessoas, principalmente relacionada às crianças e ado-
lescentes, que são as mais vulneráveis e de fácil ludibriação. No entanto, o presente
artigo justifica-se no esclarecimento e pela necessidade de entender a importância
do profissional de psicologia na rede no atendimento às vítimas de violência sexual
infantil, perigo esse que fica eminente às crianças, na sua maioria, dentro da própria
residência, por pessoas, muitas vezes, do próprio vínculo familiar.
Tendo a abrangência de consequências e danos que o abuso sexual sofrido
por crianças e adolescentes provocam no comportamento e no psicológico, o tema
se justifica em discutir o papel do psicólogo em diferentes contextos, bem como a
importância da qualificação das políticas de enfrentamento às violências, em que
pode se defrontar com situações de difícil manejo envolvendo abuso sexual de crian-
ças. São situações delicadas que exigem tomadas de decisões baseado em um bom
conhecimento sobre abuso sexual. (PADILHA; GOMIDE, 2004, p 56). Diante do que
foi exposto, espera-se destacar a importância do atendimento psicológico as vítimas
de abuso sexual infantil, como também a necessidade de se ressaltar a relevância
em desenvolver novas políticas de prevenção, que não apenas venham a abordar a
temática, mas que despertem o interesse dos profissionais psicólogos na qualificação
profissional nessa área, considerando as especificidades nos casos de violência sexual
infantil, e consequentemente numa maior produção de conhecimento.
Para além dessa abordagem, a perspectiva de enaltecer os problemas vivenciado
na sociedade, que muitas vezes ficam obscuras e esquecidas, mais que precisam ser
expandidas, pois é de interesse coletivo, de todas as classes sociais, como também
políticas, sendo um direito garantido por lei, que se não cumprido fere os princípios
éticos e morais dos direitos já garantidos pela Constituição Federal de 1988, gerando
1 Acadêmico do terceiro período de Psicologia, Faculdade Católica Dom Orione – FACDO – E-mail:
helio.m.araujo@catolicaorione.edu.br
2 Professora na Faculdade Católica Dom Orione, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Saúde da Família na Universidade Federal do Pará – E-mail: suelimarquespsicologaarg@gmail.com
606
e a sociedade, que vivencia a dor dessas pessoas, nesse sentido o Conselho Federal
de Psicologia em suas referências técnicas, diz que:
[...] dos 159 mil registros feitos pelo Disque Direitos Humanos ao longo de 2019,
86,8 mil são violações de direitos de crianças ou adolescentes, um aumento de
quase 14% em relação a 2018. A violência sexual figura em 11% das denúncias
que se referem a este grupo específico, o que corresponde a 17 mil ocorrências
(BRASIL, 2020).
Considerações finais
REFERÊNCIAS
AUGUSTO, H. S. S. et al. Atuação do psicólogo em casos de abuso sexual infantil.
Revista Eletrônica de Trabalhos Acadêmicos, Universo, Goiânia, n. 3, 2017.
Introdução
A discussão sobre a inclusão de estudantes público-alvo da educação especial
vem evoluindo de forma significativa, principalmente, no que tange a produção de
estudos sobre as diversas áreas que caracterizam as deficiências, os transtornos de
desenvolvimento e as altas habilidades.
Nesse sentido, a inclusão nas escolas nos oportunizar aos estudantes a participa-
ção no processo educacional formal. O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um
dos principais transtornos globais de desenvolvimento, vem apresentando um número
considerável de pessoas diagnosticadas. Em 2018 estima-se que 105.842 de alunos foram
inseridas no sistema educacional em salas regulares. Muitos profissionais da Educação
e Saúde têm se mostrados preocupados em como realizar o melhor atendimento as
às pessoas com TEA, pois requerem um diagnóstico e acompanhamento médico e
na escola precisam de um planejamento diferenciado, bem com recursos didáticos e
pedagógicos específicos para proporcionar processos de aprendizagens e desenvolvi-
mento. O objetivo geral deste trabalho foi analisar a legislação brasileira e as políticas
públicas relacionadas aos direitos do deficiente, sobretudo as crianças com TEA e os
objetivos específicos: investigar sobre a inclusão destas crianças na educação regular,
compreender as características do TEA. A relevância deste trabalho está na defesa
dos direitos das pessoas com TEA e conscientizar as famílias e a comunidade escolar
sobre a legislação que regulamente e positive os direitos desta sociedade.
De acordo com Bosa (2006), o planejamento do atendimento à criança com
TEA deve ser estruturado de acordo com o desenvolvimento dela. Por exemplo, em
crianças pequenas as prioridades devem ser a fala, a interação social/linguagem e a
educação, entre outros, que podem ser considerados ferramentas importantes para
promoção da inclusão da criança com autismo. Além disso, como afirma Kupfer
(2004), deve-se promover uma mudança na representação social sobre a criança com
autismo, sendo importante que a escola e o professor baseiem sua prática a partir da
1 Professora na Faculdade Católica Dom Orione, psicóloga historiadora, mestra e doutoranda do curso de
Pós-Graduação em Psicologia – UFPA.
2 Historiador pedagogo e mestre professor no Centro Universitário Planalto de Brasília.
3 Aluno do curso de Bacharel em Direito da Faculdade Católica Dom Orione.
614
Trilha da pesquisa
A delimitação do tema de pesquisa é um fator bastante importante tendo em
vista que este é o direcionamento que leva a escolha da metodologia, escolha das
fontes, estudo das mesmas, objetivos específicos e gerais.
Tendo escolhido o tema os direitos da criança com transtorno do espectro autista
no Brasil nossa preocupação foi a escolha da metodologia da pesquisa. Marconi e
Lakatos (2017) relatam que a ação de pesquisar de forma científica acontece seguindo
várias perspectivas epistemológicas4, tanto da pesquisa qualitativa quanto a quantitativa.
Neste tópico serão apresentados aspectos gerais sobre os direitos das pessoas
com TEA e quais as políticas públicas estão positivadas no Brasil que atenda as
demandas destas pessoas. Para aprofundar neste tema é necessário analisarmos as
leis em vigor, além de verificar nas pesquisas anteriores realizadas por estudiosos
do tema, para conhecer melhor as características e demandas deste público. A pes-
soa diagnosticada com Transtorno do Espectro Autismo (TEA) tem dificuldades de
comunicação e de convivência social, decorrente de sua forma de viver ser diferente
das outras pessoas.
Neste sentido, estão garantidos a inclusão social e o direito de estudar e ser
contemplado com um currículo adaptado para atender as necessidades, e dentro destes
direitos é que nossa pesquisa analisa. A metodologia de ensino a partir do lúdico e o
apoio da brinquedoteca é dever do Estado possibilitar mecanismo de qualidade para
o desenvolvimento cognitivo da criança e do adolescente. Seguindo o seu contexto
social do TEA, tem direito a um acompanhamento especializado dentro da Escola
(BRASIL, 2005).
616
Diante dos estudos sobre autismo, entendemos que não se podem generalizar as
pessoas com TEA, são graus diferentes de autismo, também a convivência varia de
acordo com a funcionalidade de cada um. Alguns são impedidos de estudar, trabalhar
ou se relacionar, este é considerado alta funcionalidade, outros casos necessitam de
auxílio em atividades do dia a dia, como por exemplo, a higiene pessoal, ou preparar
seu alimento, sendo este grau médio. E aqueles que têm baixas funcionalidades têm
muitas dificuldades e necessitam de especialistas que os auxiliam por toda a vida (KLIN,
2006). Assim, entendemos que ao nos relacionarmos de alguma forma com pessoas com
Transtorno do Espectro Autista, é necessário conhecer mínima mente estas característi-
cas, para que possam auxiliar estas pessoas e proporcionar segurança, autonomia e ao
que as pessoas com TEA podem trazer outros distúrbios como depressão epilepsia
e hiperatividade. Além da questão do grau de autismo, que pode ser do mais severo
ao mais leve. Também há uma diferencia entre a forma de relacionar com o mundo,
alguns não falam, não aceitam serem tocados, e tudo isso deve ser levado em con-
sideração (OLIVEIRA, 2020).
Levando em consideração que a educação é o principal mecanismo para a
socialização que proporciona o indivíduo ter qualidade de vida social, e a mesma
é de caráter social, entendemos que seja relevante apresentar neste trabalho um
pequeno contexto histórico da educação especial e os motivos que levaram a pro-
posta de inclusão dos alunos deficiente no ensino regular. A educação é responsável
pela socialização, que é a possibilidade de uma pessoa conviver com qualidade na
sociedade, tendo, portanto, um caráter cultural acentuado, viabilizando a integração
do indivíduo com o meio. Como relata Rogalski (2010).
O que se percebe nas literaturas que trata deste tema é que no Brasil mesmo
quando foi criada associação com atenção as pessoas com deficiência, eram mais
voltadas para o atendimento à saúde, como relata Rogaiski (2010 p. 5), “no Brasil, os
deficientes sempre foram tratados nesta área, porém agora surgem clínicas, serviços
de reabilitação psicopedagógicos alguns mais outros menos voltados à educação”.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 4.024/61, no seu
artigo 88, destaca o direito dos alunos excepcionais à educação. Em sua narrativa
determina que estes alunos só devem ser inseridos na educação regular dentro do
possível, e que as pessoas com deficiência têm direito a educação especial. Analisando
620
As adaptações mais utilizadas no âmbito escolar para alunos autistas são funda-
mentado em propostas que exige um maior conhecimento desse aluno, a exemplo:
conhecer o histórico do aluno através da família, e dos profissionais clínicos que o
acompanham; averiguar por meio do grau do espectro as probabilidades e limites
no relativo às aprendizagens escolares e sociais; descobrir os temas e elementos
de seu interesse; propor tarefas concretas num curto intervalo de tempo; Utilizar
formas alternativas de comunicação (ALBUQUERQUE, 2017 p. 8).
uma leitura geral da situação que lhe é exibida. Desta maneira, tais incapacidades
se refletem nas habilidades de interpretar uma informação a partir das ligações
entre os seus componentes e o próprio comportamento adotado para se adaptar
às exigências do assunto (ALBUQUERQUE, 2017 p. 6).
a rotina desta criança em casa, e aproximar as mesmas atividades entre escola e lar
(ALBUQUERQUE, 2017).
Quando se trata de inclusão, não podemos esquecer que é necessário atividades
coletivas. Neste sentido as estratégias metodológicas devem ser ajustadas de forma
que contempla os alunos regulares incluindo os com TEA. Não é necessário que
todas as atividades da rotina escolar sejam modificadas, tendo em vista que os alunos
regulares seguem uma rotina sistematizada seguindo direcionamento da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), mas é relevante sempre dentro destas atividades aplicar
algumas adaptadas que contempla a inclusão (ALBUQUERQUE, 2017). Segundo
Menezes (2013 p. 10), os alunos autistas demonstram bons desempenhos nas salas de
aulas com alunos regulares, não em todos os aspectos, mas sobretudo em atividades
que “compõe a tríade do transtorno”, assim é necessário que os profissionais estejam
preparados para atender estas crianças e ter também apoio das salas especiais.
Considerações finais
O Transtorno do Espectro Autista – TEA, há mais de um século que foi diag-
nosticado pela primeira vez, mesmo assim ainda existe um grande desconhecimento
sobre suas características e apenas no século XXI, que a Legislação Brasileira veio
622
dar uma atenção especial para estas crianças. Mesmo com toda visibilidade que esta
síndrome recebeu nestes últimos anos, ainda muitos profissionais da educação não
tem um conhecimento amplo sobre ela, e por isso dificulta as vezes a inclusão destes
alunos em escolas regulares. A generalização das crianças com TEA, causa as vezes
estranhamento e discriminação com elas e resistência no atendimento educacional
por alguns profissionais.
Diante desta pesquisa, entende-se que é necessário que os pais e professores,
bem como toda comunidade escolar, aprofunde o conhecimento sobre as caracte-
rísticas do TEA, as metodologias de aprendizagem que mais atendem as demandas
deles, e conheça melhor como eles se relacionam, de que forma gostam de serem
REFERÊNCIAS
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sam os professores? João Pessoa: UFPB, 2017. Disponível em: https://repositorio.
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https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.03.61572. Acesso em: 2 dez. 2021.
624
KLIN, A. Autismo e síndrome de Asperger: uma visão geral. Braz. J. Psychiatry, v. 28,
Introdução
O direito fundamental a uma infância protegida de forma integral é assegurado
à todas as crianças e adolescentes do nosso país. Por estes estarem em estágio de
desenvolvimento físico, intelectual, emocional e social, pertencem a um dos grupos
que merecem atenção e cuidados adequados para que o crescimento desses indivíduos
ocorra de forma completa e sua infância seja preservada, sendo de grande importância,
interesse e responsabilidade de toda a sociedade destinar cuidados e a defesa dos anos
iniciais dos sujeitos, estando em evidência os profissionais do cuidado.
O trabalho infantil é um tema bastante delicado por envolver questões de subsis-
tência de indivíduos e suas famílias. Tornando-se pouco debatido nas esferas comu-
nitárias, e por vezes, defendido e incentivado de forma camuflada por uma parcela da
população. Estes que concebem e defendem a ideia de que o trabalho infantil é uma
alternativa para a fuga da marginalidade, sendo indiferente aos danos gerados por esta
prática ilegal (MUNIZ, 2008). Por trabalho infantil, compreende-se qualquer atividade
laboral exercida por crianças e adolescentes com idade menor que 16 anos, havendo
retorno financeiro ou não. Em nosso ordenamento jurídico brasileiro, tanto no Estatuto
da Criança e do Adolescente – Lei nº 8069/90, como no artigo 227 da Constituição
Federal Brasileira de 1988, ainda nos artigos 402, 403 e 441, na Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT), proíbe qualquer trabalho antes dos dezesseis anos de idade,
salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos. Ainda o artigo 403 da CLT,
parágrafo único, delibera que: “O trabalho do menor não poderá ser realizado em
locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e
social e em horários e locais que não permitam a frequência à escola”.
Apesar da proibição estima se que há 38,3 milhões de crianças e adolescentes
exercendo alguma atividade laboral, no ano de 2019, de acordo com de acordo com
para a identificação das formas de trabalho infantil, e o guia de fácil atendimento “Tra-
balho Infantil: Manual de atuação do Conselho Tutelar” (2018), elaborado pelo MPT.
Todos esses materiais norteiam a atuação dos profissionais, assim como direcionam
e regulamentam as ações da sociedade contra o trabalho precoce.
Ainda é de obrigação das equipes de saúde das Unidades Básicas de Saúde
notificar os agravos e casos suspeitos de violência que se enquadrarem no objeto de
notificação da ficha de Violência Interpessoal/Autoprovocada no Sistema de Infor-
mação de Agravos de Notificação – SINAN, a saber:
Logo que o profissional identificar os casos de acidentes e/ou trabalho entre crianças
menores de 14 e/ou que estejam entre 14 a 15 anos que não seja na condição de aprendiz;
e/ou entre 16 a 17 anos que não seja amparado nas normas da CLT e em condições ina-
dequadas, o profissional da saúde deve realizar a notificação compulsória de violências
interpessoais e autoprovocadas no âmbito da saúde, não como forma de denúncia, mas sim
como um instrumento de garantia de direitos. Após as etapas de acolhimento, atendimento
e notificação, deve-se proceder ao seguimento das pessoas em situação de violência na
rede de Proteção Social Especial do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Nesta perspectiva, o estudo teve como objetivo contribuir para a compreensão
das subnotificações numa UBS dos agravos à saúde de crianças e adolescentes que
vivem numa comunidade ao entorno de um lixão na região Norte, bem como com-
preender como os profissionais da saúde estabelecem a relação entre agravos à saúde
e a relação com o trabalho e, se fazem o registro no Sistema de Informação do e-SUS
e SINAN. Tendo em vista que, de acordo com as leis brasileiras a proteção à infância
é prioridade absoluta e o trabalho iniciado de maneira antecipada acarreta danos à
saúde das crianças e adolescentes, assim como o seu desenvolvimento físico, men-
tal, espiritual, moral ou social (Convenção dos Direitos da Criança (ONU), art. 32).
Metodologia
O estudo foi realizado com profissionais que atuavam na Unidade Básica de
Saúde (UBS) rural de comunidade na região Norte, no período de agosto de 2019 à
de março de 2020. Devido à pandemia de covid-19, a continuidade do estudo deu-se
através de atividades remotas e contatos com os profissionais da UBS e da Secretaria
Municipal de Saúde (SEMUSA) via WhatsApp e E-mails institucionais. Tratou-se
de um trabalho de natureza qualitativa, do tipo descritiva.
Os participantes do estudo são profissionais da saúde (médicos, enfermeiros,
assistente social e técnicos de enfermagem) da UBS. Em termos éticos a pesquisa
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 631
Alan – Até este momento não houve nenhuma suspeita, seja por co-
municação verbal ou por algum sinal no corpo da criança.
Faz relação entre a ocupação e o acidente/ Ana – Algumas vezes por exploração de trabalho infantil, negligência
doença? familiar.
Alan – Por que a maioria dos agravos são relacionados à higiene e não
em relação direta com o trabalho.
Dos pacientes (crianças e adolescentes) que Ana – Sempre faço essa pergunta, até para sabermos se estão ex-
vem consultar, você pergunta se o adoeci- postos mesmo ao lixão.
mento/acidente tem relação com a atividade
no lixão? Alice – Por ser a única atividade deles aqui.
Costuma preencher no prontuário identificando Ana – Temos que fazer todas as anotações precisas para acompa-
que se trata de acidente/agravo de trabalho? nhamento do caso.
continuação
Pergunta Resposta
Como são registrados e encaminhamento os Ana – Notificamos e encaminharmos a original e cópia para a secretaria
casos? SEMUSA/DVE.
Considerações finais
Conhecer a realidade dos profissionais da saúde na UBS da comunidade, que
fica situada na zona rural e próximo ao lixão da capital de Rondônia, fez-nos com-
preender os desafios que a Atenção Básica municipal enfrenta, principalmente ao
se tratar dos cuidados em saúde às crianças e adolescentes, em especial daquelas
640
REFERÊNCIAS
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abes-dn.org.br/pdf/Ranking_2019.pdf. Acesso em: 13 ago. 2020.
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3setor.org.br/carrossel/trabalho-infantil-ainda-e-realidade-para-998-mil-criancas-
-brasileiras/. Acesso em: 14 jul. 2020.
Introdução
Segundo os estudos de Kant (1999) a educação deve ter como objetivo tornar o
indivíduo maior, pensador por si próprio de forma crítica, posto que há comodidade
em ser ou estar como menor, um estado de acomodação onde os outros decidem o
que deverá ser realizado.
O projeto defendido por Kant, como processo formativo em uma educação
moral que é a educação da liberdade, tem como primeiro passo a disciplina. Isso
quer dizer a busca pela regulação das liberdades para que coexistam em sociedade.
Neste sentido, a educação formal realizada no ambiente escolar emerge no
contexto dos afetos domésticos e familiares com a intenção de mitigá-los. Rom-
pem-se os vínculos afetivos no ambiente escolar com o propósito de enquadrar os
educandos a uma espécie de adestramento de liberdades educadas. Aprende-se que
existem momentos determinados para fazer as refeições e que todos devem atender
aos comandos, a entrar na fila e esperar a vez de cada um.
Observa-se que disciplina é importante para a aprendizagem, aqui trazemos a
ideia de disciplina não apenas social, mas a disciplina necessária para que os educan-
dos aprendam os conteúdos que serão ministrados. Há muito já se considera a atenção
e a concentração como fatores de primeira ordem para a efetivação do aprendizado.
Entretanto, a escola aparentemente não estava preocupada se a disciplina teria
continuidade fora de suas paredes, posto que há poucos meses a ordem era que os
educandos fossem disciplinados no ambiente escolar. Não havia um planejamento
que pudesse dar conta do ensino domiciliar dos educandos.
Com as medidas adotadas para o enfrentamento à pandemia do novo coronavírus
(covid-19), o ensino a distância que dava sinais de tendências na educação, tornou-se
1 Professor de Ensino Fundamental I (Prefeitura Municipal de São Paulo), bacharel em Psicologia (psicólogo),
licenciado em Letras (Português/Inglês), Pedagogia e Filosofia, Pós-Graduado em: Formação e Profissão
Docente e em Psicologia Social e a Antropologia.
*Aluno especial do mestrado em Filosofia Contemporânea - 2021 (USP).
E-mail: lluisadrianodasilva@gmail.com
2 Bacharel em Direito (advogado), magistrado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, licenciado em
Letras, graduando em teatro, especialista em Docência na Educação Infantil, Filosofia/ Sociologia e Direito
Educacional, e Mestre em Educação (UFS).
E-mail: jeysonlucena1@gmail.com
646
Está muito claro, portanto, que a educação concebida por Kant é, acima de tudo,
uma educação para a moralidade. Kant não usa meias palavras: o ser humano
deve ser educado para o bem. E note-se que “bem” não pode ser confundido ou
trocado pela “felicidade”, nem coletiva e nem individual. O bem ao qual Kant se
refere é o bem moral, cujo princípio deve valer incondicionalmente para todos
os seres racionais (SANTOS, 2005, p. 35).
3 Pode-se compreender, com base no livro de Michel Foucault, Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão (2009) que
um corpo dócil diz respeito àquele que pode ser submetido ao sistema social, tendo como base a disciplina
e as políticas de coerções (punições). Deste modo, “a disciplina fabrica corpos submissos e exercitados e
os submete aos interesses utilitaristas do capitalismo”.
O corpo dócil é aquele que, apresenta utilidade econômica e doçura no que diz respeito à obediência política.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 647
Sugere-se que se deve agir de tal forma como se a máxima das vontades possa
ser elevada como leis universais. Ressalta-se que a submissão à lei ou as obrigações
morais não afastará aquilo que o indivíduo é. Deve-se tomar a lei, enquanto ser
racional, como algo imperativo e universal, posto que ao se sujeitar a ela, se sujeita
a si mesmo, o que permite a percepção de liberdade e respeito indivisíveis.
Assim, a abordagem realizada nos estudos de Kant atenta-se para a formação
do homem, para que este possa determinar-se de forma autônoma, ou seja, não se
deixar guiar pelos demais, para que consiga, por meio de seu próprio esforço e
entendimento, agir no mundo. Depreende-se de tal discussão um dos problemas
que deve ser enfrentado pela educação, encontrar a conciliação entre a disciplina e
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
tinham a mesma receptividade e eram, por vezes, motivos de conflitos que chegavam
inclusive a ser levados às esferas judiciais para que pudessem ser sanados. Assim,
com as implicações das medidas de enfrentamento a pandemia, faz-se necessário
pensar formas de delimitar o espaço familiar do espaço socializado da educação
formal apresenta-se como uma difícil tarefa.
Aspectos metodológicos
O presente estudo por sua natureza possui forma de abordagem qualitativa,
considerando que há vínculos indissociáveis entre o mundo objetivo e a subjetividade
Foucault, tornou-se possível contextualizar suas teorias com a nova realidade que
se impôs. Nesse contexto, expomos o projeto defendido por Kant em suas princi-
pais obras atendendo a um dos objetivos específicos da investigação, bem como
de modo a especificar, no modelo de ensino remoto, “o olhar hierárquico, a sanção
normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame”
(FOUCAULT, 2009, p. 164). Evidencia-se que, ao relacionar as ideias kantianas
e foucaultianas com as práticas pedagógicas do ensino remoto, debate-se sobre as
dificuldades e as potencialidades que tal modalidade de ensino apresenta.
Kant, ao abordar o conceito de autonomia4, ou seja, de esclarecimento aponta
para um pensar por si mesmo e o do exercício crítico da razão esclarecida. Em Crítica
da Faculdade de Julgar, expõe três máximas:
Tal citação remete–nos à questão problemática de que, a educação por ser uma
forma de condução mediadora ao mundo da cultura, em si, não é libertária em sua
essência, entretanto, o que é possível são as práticas libertárias que tenham como
objetivo a formação do exercício do livre pensar. Concomitantemente, a Immanuel
Kant, Michel Foucault (2009) denúncia que a submissão ocorre por muros altos, ou
porque o sujeito foi condicionado a obedecer por não saber fazer de outra maneira.
Em sua concepção, o poder submete e cria sujeitos que se curvam ao modo de vida
capitalista e a sua maneira de existir. Conforme expõe, o corpo docilizado torna-se
mais uma peça na grande máquina de produção. Assim, tem-se que a escola deve
ser um lugar de ensino que forma a autonomia dos educandos, no sentido de que os
mesmos devem aprender a exercitar ativamente o pensamento ao agirem criticamente
sobre ele. Nesta lógica, aproximando os dois filósofos, o mobiliário escolar e o
4 “Autonomia, segundo Kant, é um termo que designa a independência da vontade em relação a qualquer tipo
de desejo ou objeto de desejo e sua capacidade de determinar-se em conformidade com uma lei própria, que
é a da razão. Já o termo heteronomia, pressupõe que, a vontade é determinada pelos objetos da faculdade
de desejar, lei externa [...]” (ABBAGNANO, 2020, p. 111).
650
5 “Heteronomia, em que a vontade é determinada pelos objetos da faculdade de desejar. Portanto, sujeição
a uma lei exterior ou à vontade de outrem” (ABBAGNANO, 2020. p. 111).
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 651
Deste modo, cabe salientar que, neste momento histórico marcado pela pre-
sença de novas tecnologias, teremos a constituição de novos sujeitos, considerando:
a constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objetos etc.
Para que o ensino remoto seja de fato um facilitador deve ter como base: além
do acesso equitativo dos aparelhos tecnológicos e de serviço de internet de qualidade,
uma rotina de estudos, a organização do tempo, a realização de atividades regulares,
aulas síncronas e a comunicação de forma assertiva. É imprescindível neste processo
a participação da família (socialização primária), a sensibilização sobre os conteúdos
a serem estudados, a atenção e a concentração dos sujeitos aprendentes.
Diversos especialistas destacam a escola como um lugar privilegiado para se
adquirir o domínio da cultura letrada, de apropriação dos bens culturais promovidos
pela sociedade e formadora das capacidades cognitivas (intelectuais), sendo assim, é
considerada insubstituível. No entanto, no que concerne à pandemia, o que se nota são
as distâncias que tornam explícitas a exclusão digital, neste período pós-moderno. Cabe
salientar que, no Brasil, assim como em outros países emergentes a taxa de analfabe-
tismo ainda é considerada alta, o que torna ainda mais preocupante essa problemática
social. Conforme é proposto pela Lei nº 9394/96 de 20 de dezembro de 1996 (LDB),
em seu artigo 32, § 4, “o ensino fundamental será presencial, sendo o ensino à distância
utilizado como complementação da aprendizagem em situações emergenciais”.
Deste modo, tem-se que o ensino remoto é válido no sentido de complemen-
tar aprendizagens, por exemplo, através de pesquisas extraescolares, mas não no
sentido de substituí-la. Em tempos de neoliberalismo, em que os governos têm se
pautado em uma ética utilitarista/economicista e de ataque às disciplinas de ciências
humanas, se faz necessário que os militantes da educação se unam para reinventá-la
democraticamente. Contemporaneamente, os autores Jan Massachelein e Maarten
Simons (2013) discutem essa e outras questões no livro – Em defesa da escola: uma
questão pública (2013). Na referida obra, a questão da igualdade é compreendida
como ponto de partida da prática educativa e não como um objetivo a ser atingido.
Ou seja, todos são capazes de aprender pensar.
652
Considerações finais
Ao final, espera-se obter respostas quanto a aplicabilidade do pensamento kan-
tiano e foucaultiano ao ensino remoto emergencial com o fim de tornar os sujeitos
autônomos, considerando eventuais mecanismos disciplinares que tiveram que ser
eventualmente adaptados.
Por fim, considera-se que o analfabetismo e a inclusão digital ainda represen-
tam entraves no que tange a universalização do ensino tal como propõem as novas
políticas de tendência neoliberal. Sendo assim, mesmo que as novas tecnologias
sejam consideradas válidas no sentido de possibilitarem o acesso aos bens culturais
produzidos historicamente pela humanidade; podem também ser usadas a favor do
sistema como controle social (sociedade de vigilância ou disciplinar)
Esta problemática leva-nos também a refletir se estes recursos tecnológicos,
considerando o conceito de “governança coletiva de dados”, poderiam ser usados,
por exemplo, a favor de interesses políticos e controle de pessoas?
Além disso, conforme fora supracitado no início deste artigo, reconhece-se que,
a atenção e a concentração são consideradas funções psicológicas importantíssimas
para a aprendizagem. Concernente a essa questão o filósofo Christoph Türke (2016)
em Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção, entende que estamos per-
dendo as capacidades de atenção e concentração, devido a exposição exacerbada aos
aparelhos digitais (celular, computador, tablets etc.).
Pois, desde a invenção do cinema, cada vez mais se exige a capacidade mental
de se atentar e se concentrar em estímulos cada vez mais fluídos e instantâneos, o
que tem efeitos sobre os reflexos e o sistema nervoso. Nesta acepção, temos que as
novas tecnologias têm desgastado cada vez mais as nossas capacidades de atenção
e concentração, as quais se desenvolveram ao logo da história da humanidade em
milhões de anos, de modo cultural. Logo, pode-se considerar que, as aulas remotas
e os dispositivos de comunicação digital podem ser aliados à educação no sentido de
complementar e consolidar aprendizagens, mas não no sentido de substituir as escolas.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 653
REFERÊNCIAS
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deficiência auditiva no século XVI além de efetivar o que a pesquisadora do centro de Estudos de reabilitação
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para a comunidade de surdos” (Reily. O papel da igreja na educação dos surdos. In: Revista Brasileira de
Educação, p. 303. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu. Acesso em: 6 nov. 2021.
2 Cristina B. F. de Lacerda, Um pouco da história das diferentes abordagens na educação dos surdos, p. 70, §2 e 3.
656
Pode-se dizer que para os cegos surge uma alfabetização com representações em
relevo. Denota-se assim que nos séculos XVI e XVII, surgem as noções de ensino rela-
cionadas às experiências dos sentidos. Nesse ínterim, o Abade Charles M. De Epée
desenvolveu a linguagem gestual como um método para educação de surdos bem como
para o trabalho das habilidades de cognição e reflexão dos surdos. Sabe-se que tal fato
propiciou a participação de cegos e surdos na produção à sociedade. No século XVIII, com
a fundação do instituto de jovens surdos, que não era propriamente uma escola e sim um
asilo com características diferenciadas que oferecia uma contrapartida à sociedade para a
produção artesanal para fins econômicos. Nesse meio, tempo surge o Instituto de Cegos
de Paris (ICP) e a invenção do alfabeto Braille, sendo configurado de fato os primeiros
já que cada criança apresentava uma ou várias deficiências que esboçavam uma
determinada especificação de limitação que deveria ser trabalhada e promover um
pensamento de agrupamento de crianças com deficiências semelhantes para se tra-
balhar com elas de maneira mais produtiva e específica de acordo com necessidades
educativas similares, como bem cita Álvaro Marchesi, no texto “Da linguagem da
deficiência às escolas inclusivas”
Muitas crianças são afetadas por várias deficiências [...] A escolha do termo
“necessidades educativas especiais” reflete o fato de que os alunos com defi-
ciência ou com dificuldades significativas de aprendizagem podem apresentar
necessidades educativas de gravidades distinta em diferentes momentos.3
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Outro fator que levou a busca por esse termo foi o reconhecimento de que as
limitações dos alunos não se encontravam tão somente neles, nas suas deficiências
especiais, mas no próprio contexto onde a aprendizagem era desenvolvida, isto quer
dizer, uma maior flexibilidade no ensino, na metodologia, nos processos avaliativos
até o limite da capacidade do portador de deficiência. Para responder a que categorias
de pessoas estavam incluídas nesta classificação, gostaria de sustentar a argumentação
da sociologia da educação, que cita:
5 Ibidem, p. 26.
6 Ligia Assumpção Amaral, Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua
superação, p. 17.
7 Bullying seria a ação, ato seja de violência física seja de psicológica. O termo tem raiz norte-americano e
vem da palavra “bully” que numa tradução adaptável ao nosso idioma significa aquele que é tirano e em
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 659
termos mais prosaicos é o “valentão”, o opressor. Adaptado do dicionário Aurélio: Bullying. In: Novo Aurélio.
Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
8 Essas adaptações são assim chamadas por dar enfoque nas competências e habilidades básicas como a
escrita, a leitura e o manejo de cálculos.
9 Rosa Blanco, A atenção à adversidade na sala de aula e as adaptações do currículo, p. 290.
660
essas estratégias têm por finalidade ajustar o currículo de acordo com a necessidade
especial do aluno, sendo necessários alguns equipamentos para facilitar o processo
de aprendizagem do aluno.
10 Afasia é uma expressão derivada do grego A (não) Fasia (Falar) sendo um distúrbio que afeta a a capacidade
de linguagem de quem tenta se comunicar havendo diversos fatores de saúde para o surgimento da doença
inclusive o AVC (Acidente Vascular Cerebral). Adaptado do dicionário Aurélio: Afasia. In: Novo Aurélio.
Dicionário da Lingua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
11 Priscila Augusta Lima e Terezinha Vieira, Surdez: as linguagens como sistema de representação e organização
mental, p. 51.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 661
dizado pelas libras e a comunicação oral: “As pessoas podem ser bilingues-isto é,
dominar Duas línguas, [...] – adotando o português como língua materna a as Libras
como segunda Língua”13. A linguagem de sinais seria, desde que o indivíduo com
surdez aceite, uma linguagem padrão e a linguagem oral ou apenas uma alternativa
no caso da compreensão da pessoa surda. Um dos principais motivos do estabeleci-
mento dessa dualidade de ensino se dá pela própria necessidade de atendimento de
uma comunidade de pessoas surdas:
12 Ibidem, p. 68.
13 Ibidem, p. 59.
14 Cesar Coll et al., Desenvolvimento psicológico e educação Transtornos do desenvolvimento e necessidades
educativas especiais. Álvaro Marchesi, Desenvolvimento e educação de crianças surdas, p. 88-89.
15 O sistema Braille é um método prático de leitura e escrita táteis inventado pelo francês Louis Braille no séc.
XVII como importante marco para a educação dos portadores de deficiência visual.
662
16 Esperanza Ochaíta e Maria Angeles Espinosa, Desenvolvimento e intervenção educativa nas crianças cegas
ou deficientes visuais, p. 160.
17 Ibidem, p. 165.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 663
O quadro acima ainda remonta um ensino mais fechado sem muita diversidade
ou pluralidade inclusiva. Mas, a partir de 1994, começam as mudanças:
1994 – Declaração de Salamanca: Define políticas, princípios e práticas da
Educação Especial e influi nas Políticas Públicas da Educação.
664
18 Dados retirados do VII Congresso Nacional de Educação, de outubro de 2020. Disponível em: https://
editorarealize.com.br/editora/anais/conedu/2020/. Acesso em: 20 nov. 2021.
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 665
não procede de forma exata, porque se apóia em elementos cuja abrangência resulta
da própria condição do fazer humano nas suas ações históricas e lingüísticas [...]” 19.
Nessa perspectiva, Vico privilegia a imaginação e não a razão, como eixo fun-
damental para obtenção do conhecimento, pois havia uma corporeidade instintiva que
representava uma linguagem natural e que Vico assinalou como três idades no período
histórico. Na idade divina, a linguagem era muda, isto é, por atos mudos na idade
heroica, fortemente assinalada pelos mitos e a metáfora, a idade humana, fortemente
marcada pela ironia, na qual todos se reconhecem iguais por natureza e iniciam a
fundação das comunidades. Assim, Vico trabalha não só a estruturação do surgimento
do pensamento mito-poético como também do surgimento de uma linguagem sensi-
tiva, ou seja, não articulada, pois a razão era débil e por se caracterizar por formas de
expressões como grunhidos e gestos em que a mente primigênia não era abstrata, mas
sensitiva, o homem não se pensa separado da natureza, mas como parte integrante da
mesma: “O homem, ao entender, abre a sua mente e compreende essas coisas, mas,
ao não entender, ele faz de si essas coisas e, ao transformar-se nelas, vem a sê-lo”20.
Àquela corporeidade instintiva que Vico cita tem certa relação com a educação
especial visto que a grande maioria dos PNES partem do lúdico, das percepções
sensoriais, do instintos-guias que lhe estão disponíveis e aumentam suas possibili-
dades de uso. Vico, o logicismo Wittgenstaniano é contraposto a partir da tese da
“mente primigênia” na qual a razão se desenvolveu por último, sendo precedida
pela imaginação em conjunto com os sentidos. Assim, através de um processo de
necessidade e utilidade o homem começa a reconhecer o ambiente a sua volta bem
como a relação com outros povos, não como consequência de uma dedução, mas para
satisfazer suas necessidades e tentar garantir sua sobrevivência. Havia apenas o que
Vico denominou de “Tópica sensível”, esta que gerou o engenho e a fantasia não no
intuito de uma dedução lógica, mas para a satisfação de suas necessidades e utilidades
de sobrevivência. Surgindo assim as normas que fundarão a “História das Nações”.
Por conseguinte, não cabe aprofundar aqui nessa discussão filosófica, mas vale
notar que mesmo grandes pensadores com suas teses nos mais variados temas, assi-
nalam para as possibilidades de que o ser humano já havia recorrido aos instintos de
forma lúdica para resguardar sua sobrevivência. Tal fato denota que os portadores de
necessidades especiais não são os únicos que dependem dos instintos que lhe restaram,
mas isso foi assertiva do real já no processo de formação do ser humano haja vista o
berço grego da cultura ocidental que muito seguiu a mitologia para explicar fenôme-
nos da natureza. Desta mesma forma são recursos lúdicos que proporcionam certos
avanços na educação especial e inclusiva atualmente. Desta forma, Educação especial,
hoje chamada de educação inclusiva representa uma correspondência entre os vários
métodos de estabelecimento não só na educação, mas como na própria sociedade dos
PNE’S (Portadores de Necessidades Especiais). Atualmente eles não estão mais alija-
dos de seus direitos à saúde e agora à educação básica bem como ao ensino superior.
REFERÊNCIAS
ANA, B. S. et al. Condutas típicas autismo. Belém, PA: Projeto Gráfico da Assessoria
de comunicação da SEDUC, 1984.
LIMA, P. A.; VIEIRA, T. Educação inclusiva e igualdade social. São Paulo: Aver-
camp, 2006.
668
VICO, G. Ciência Nova. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os
Pensadores).
Sites consultados
1 O curso de extensão foi aprovado pela Pró-Reitoria de Extensão da UFC e está registrado sob o código
2022.CS.0908 no SIGAA. Aproveitamos essa nota para, inclusive, para agradecer às demais pessoas da
equipe: Aline Rebouças, Anderson Pires, Edinaldo Monteiro, Fernando Maia da Cunha, Gesailton Lima,
Lwdmila Constant, Stefanie Macêdo e Taynara Araújo.
2 O projeto de extensão, por sua vez, foi iniciado em 2021 e teve continuidade em 2022, sob o código 2021.
PJ.0588/2022.
670
porque acreditamos que com essa partilha possamos instigar mais grupos de pes-
quisa das universidades a buscarem pela expansão as trocas de conhecimento entre
tais instituições e a comunidade em geral, promovendo uma relação cada vez mais
horizontalizada e crítica à opressão e marginalização de diversos grupos sociais.
relacional, foi pensada como uma aliada na compreensão dos estudos e intervenções
de profissionais, estudantes e público em geral interessados na temática (COLLINS;
BILGE, 2021). Principalmente porque, enquanto ferramenta analítica, ela “considera
que as categorias de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade,
etnia e faixa etária – entre outras – são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente”
(COLLINS; BILGE, 2021, p. 16-17). Além disso, a perspectiva interseccional se
desenvolveu a partir da experiência de mulheres negras que não se viam represen-
tadas nos movimentos de luta que faziam parte, como apontam Gonzalez (1982) e
Carneiro (2003), posto que de um lado estava o movimento feminista universal que
trazia como pauta a experiência de mulheres brancas deixando a raça de lado, e de
outro, a luta do movimento negro que preconizava a experiência do homem negro,
deixando o gênero de lado.
Dessa maneira, pensando o cenário do nosso país, o “patriarcalismo e o colonia-
lismo são partes imprescindíveis do capitalismo, sustentando um mesmo sistema de
privilégios e poder” (LIMA, 2021, p. 75) que tem como alicerce o racismo estrutural
(ALMEIDA, 2019) e que produz e reproduz violências e desigualdades, a ferramenta
da interseccionalidade aparece como uma práxis crítica que amplia o nosso olhar
para o mundo e para as relações que desenvolvemos. Esse olhar não deve acontecer
apenas dentro do espaço acadêmico e profissional, mas também nas relações coti-
dianas, familiares e de amizade, afinal, nessas relações também ocorre a reprodução
das relações de poder que geram violência e opressão.
A oficina foi um convite para adotarmos a lente interseccional e observarmos
nossos espaços de convívio diário, como aparecem os cruzamentos identitários de
nossas vidas e das vidas de quem nos cerca, seja no trabalho, em casa, na escola,
com os amigos, dentre outros lugares. Utilizamos como recurso para embasar essa
conversa, uma pasta no Google Drive contendo algumas imagens, fotografias, tex-
tos literários, letras de músicas e poemas que trouxessem de alguma maneira o viés
interseccional para pensarmos nossas realidades cotidianas. Foi preciso sair do texto
científico e acessar, por exemplo, poemas em que as autoras narrassem as formas de
violência que sofriam cotidianamente e através de seus relatos pudéssemos perceber
que aquele corpo era atravessado por categorias identitárias, como classe, raça e
gênero e que dessa maneira existia um determinado tipo de violência incidindo sobre
esta mulher, a exemplo o poema de Bell Puã:
674
Aquela que não te pertence tem várias faces e nomes, acadêmica, poeta, nordestina,
negra. Mas, homem, guarde essa minha face e nome: aquela que não te pertence.
Minha pertença não é para seus padrões racistas, numa prisão, cozinha ou na mira
da polícia. Aquela que não pertence a patrão, nem senhor de engenho e muito
menos pertenço à escória do conhecimento (PUÃ, 2019, p. 34).
em torno das identidades LGBQIA+, não nos propormos a “engessar” essas identi-
dades e apresentar “menus” de comportamentos específicos de cada representante da
sigla. O que pretendemos, antes de tudo, foi evidenciar o que identificar-se dentro do
escopo das siglas representa para essas pessoas: a reivindicação por uma identidade
política que, ao mesmo tempo que retrata a busca por respeito e reconhecimento,
proporciona também uma inserção dentro da burocracia estatal, no que diz respeito
à implantação de políticas públicas específicas (CARVALHO, 2017).
Para além de apresentar conceitos e definições, a ideia foi trazer à tona estigmas
e preconceitos se lançam sobre esses corpos apenas por serem compreendidos como
desviantes e marginais. Não por acaso, iniciamos a oficina na perspectiva dialógica
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(In)conclusões
É certo que ainda haveria muito o que falar sobre a experiência nas oficinas.
Porém, parece-nos que os fragmentos apresentados oferecem algumas pistas da potên-
cia que cada atividade proporcionou para participantes e ministrantes. Os medos de
que gestos, olhares, partilhas de materiais, atividades em roda e possibilidades de
interação na oficina apresentariam limitações comuns à virtualidade, exigindo de
participantes a criatividade e desenvoltura de nós e das demais pessoas da equipe
organizadora, foram se dissipando. Isso porque seguimos na construção coletiva
da atividade, a cada encontro, avaliando e reavaliando as dinâmicas utilizadas e,
ao mesmo tempo, ouvindo dos/das participantes suas percepções, expectativas e
contribuições, sempre no sentido de garantirmos um espaço que refletisse o nosso
esforço de construção coletiva de conhecimento.
Gostaríamos de salientar que os conceitos com os quais trabalhamos, tanto
na oficina sobre interseccionalidade quanto no que se refere às questões de gênero
e sexualidades, exigiram de nós, ministrantes do curso, um movimento necessário
de reflexão sobre os nossos próprios preconceitos e limitações, diante das temáticas
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 677
apresentadas. Isso significou, muitas vezes, termos que reconhecer as formas usual-
mente violentas com as quais falamos, escrevemos e agimos com os nossos amigos,
colegas, familiares e demais membros da comunidade, tão disseminadas e tão natu-
ralmente aceitas. E, assim, passamos a assumir o compromisso não só de entender
conceitualmente as temáticas, mas também de firmarmos uma posição de recusa em
promover, incitar e favorecer discursos e práticas que promovam a desumanização
de pessoas e grupos, em nossas práticas pessoais, acadêmicas e profissionais.
Tínhamos consciência de que surgiriam alguns impedimentos que são inerentes
ao desafio que é desobedecer às normas de gênero e sexualidade, tão arraigadas.
Contudo, consideramos que a experiência da oficina foi muito interessante, por fazer
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circular, ainda que de forma limitada, as pesquisas que desenvolvemos e abrir brechas
para se pensarmos uma realidade menos cruel para quem, por suas formas de vida,
tem seus corpos expostos à execração moral e ao extermínio. Em palavras freirianas,
foi algo que nos faz esperançar, ou seja, manter a esperança enquanto lutamos por
um mundo mais justo onde inexista a barbárie.
Por fim, gostaríamos de agradecer aos muitos depoimentos que recebemos ao
longo das atividades. Pessoas que se dispuseram a compartilhar conosco aspectos
sensíveis de suas histórias de vida, experiências profissionais e questões de ordem
familiar, sempre no sentido de contribuir com as atividades propostas e trazer ele-
mentos que pudessem ser incorporadas às discussões previstas para cada atividade.
Ficamos felizes em saber que muitas das discussões ali levantadas estavam suscitando
mais e novas reflexões, subsidiando práticas profissionais e inspirando pesquisas.
Acreditamos ter compartilhado, nessas atividades, muito mais do que a ampliação
– sempre necessária – da compreensão sobre determinados conceitos. Falamos da
possibilidade de pensarmos coletiva e criticamente sobre a urgência de construção
de uma sociedade comprometida com a inclusão da diversidade humana.
678
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Sílvio. Racismo Estrutural. Belo Horizonte, MG: Letramento, 2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020.
HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo:
Elefante, 2019.
PUÃ, Bell. Aquela que não te pertence. In: DUARTE, Mel (org). Querem nos calar:
poemas para serem lidos em voz alta, uma antologia. São Paulo: Planeta do Bra-
sil, 2019.
B
Biopolítica 27, 32, 61, 115, 116, 121, 122, 123, 125, 127, 154, 157, 158, 187, 198,
199, 279, 281, 282, 370, 719
C
Campos profissionais 117, 119, 123
Capacidade reflexiva 164, 307
Capitalismo neoliberal 69, 71, 82
Ciúme 257, 258, 259, 260, 261, 262, 263, 264, 265, 267, 270, 271, 273
Classe social 42, 96, 107, 110, 111, 112, 117, 123, 135, 313, 473
Conflito 28, 31, 32, 88, 105, 107, 159, 231, 265, 378, 416, 463, 464, 467, 518,
519, 708
Construções simbólicas 119, 120
Cor da pele 107, 110, 111, 292
682
D
Dança 43, 234, 321, 322, 323, 324, 325, 326, 327, 328, 329, 330, 331, 332, 333,
334, 335, 337, 338, 443
Decolonialidade 55, 129, 133, 134, 141, 143, 692
Deficiência auditiva 655, 660
Deficiência física 194
Deficiência intelectual 495, 497, 498, 503, 505, 506, 548, 698
Deficiências 379, 484, 506, 548, 581, 613, 619, 620, 655, 657, 664, 665
Deficiência visual 661, 666
Denegação 239, 241, 244, 248, 249
Depressão 426, 430, 461, 492, 519, 523, 551, 587, 591, 594, 619
Desejos inconscientes 447, 448, 450
Diagnóstico 64, 206, 207, 241, 339, 343, 344, 345, 347, 370, 374, 386, 387, 391,
394, 401, 412, 506, 547, 548, 551, 554, 555, 558, 560, 561, 562, 564, 590, 591, 613,
617, 618, 623, 661
Direitos humanos 30, 56, 145, 147, 148, 152, 154, 155, 156, 158, 159, 162, 191,
217, 236, 239, 242, 247, 248, 250, 251, 252, 253, 255, 283, 284, 294, 295, 296, 297,
303, 305, 318, 420, 441, 474, 475, 476, 526, 607, 611, 658, 706, 707, 718, 723, 728,
731, 737, 738
Disciplina 26, 27, 151, 152, 157, 175, 186, 198, 208, 232, 320, 324, 509, 513, 525,
567, 571, 575, 576, 577, 578, 582, 617, 645, 646, 647, 648, 649, 659
Discurso contra-hegemônico 137, 138, 236
Dislexia 548, 550, 554, 555, 558, 563, 564, 662
Droga 459, 460, 461, 462, 463, 464, 465, 466, 467, 468, 469, 470
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 683
Drogas 101, 106, 107, 109, 113, 190, 191, 199, 284, 286, 287, 288, 337, 380, 435,
436, 437, 439, 441, 443, 445, 459, 460, 461, 462, 463, 465, 466, 467, 468, 470, 591,
710, 711, 716, 728, 737
E
Eca 25, 99, 105, 107, 113, 284, 296, 297, 424, 610
Educação 3, 21, 25, 27, 31, 33, 34, 35, 40, 51, 69, 70, 72, 82, 83, 87, 97, 106, 115,
116, 117, 118, 119, 120, 121, 123, 124, 125, 127, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135,
136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 145, 148, 149, 150, 152, 153, 154, 155, 156,
157, 158, 159, 161, 162, 163, 164, 165, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 187,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
188, 189, 192, 193, 195, 197, 223, 224, 228, 231, 232, 235, 236, 244, 263, 266, 272,
288, 289, 291, 292, 293, 294, 296, 297, 298, 300, 302, 303, 304, 305, 307, 308, 309,
311, 313, 318, 336, 339, 352, 355, 356, 357, 358, 359, 360, 362, 373, 378, 379, 380,
381, 396, 399, 404, 407, 408, 413, 414, 417, 418, 420, 421, 471, 472, 478, 479, 491,
496, 497, 498, 505, 506, 507, 526, 549, 555, 556, 561, 562, 567, 569, 572, 573, 574,
576, 577, 578, 579, 580, 581, 582, 583, 584, 585, 586, 603, 607, 608, 610, 613, 617,
619, 620, 621, 622, 623, 624, 625, 628, 629, 640, 641, 642, 645, 646, 647, 648, 649,
650, 651, 652, 653, 654, 655, 656, 657, 659, 661, 663, 664, 665, 666, 667, 668, 691,
692, 694, 695, 696, 698, 699, 701, 702, 703, 705, 706, 707, 708, 709, 710, 711, 712,
715, 716, 717, 718, 719, 720, 721, 722, 723, 724, 726, 727, 729, 730, 731, 732, 735,
737, 738
Educação do campo 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 137, 138, 139, 140, 141,
142, 143, 703, 732
Educação especial 339, 506, 561, 562, 613, 619, 620, 625, 655, 656, 659, 664, 665,
666, 708, 730, 731
Educação inclusiva 420, 421, 561, 665, 666, 668, 695, 698, 705, 717
Educação popular 125, 133, 134, 140, 142, 399, 408, 703, 716
Educação sexual 291, 292, 293, 294, 298, 302, 303, 304, 305, 413, 414, 496, 497,
505, 506
Ensino remoto 414, 421, 481, 482, 483, 484, 485, 486, 491, 493, 494, 600, 646,
648, 649, 651, 652
Escola 9, 40, 41, 43, 45, 46, 61, 70, 71, 101, 116, 119, 121, 126, 127, 130, 131, 132,
133, 134, 140, 150, 151, 154, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 171,
174, 176, 177, 182, 187, 192, 195, 196, 232, 239, 247, 256, 292, 293, 303, 304, 305,
334, 351, 352, 353, 354, 355, 356, 358, 365, 366, 367, 369, 370, 379, 397, 399, 411,
412, 413, 414, 416, 418, 419, 420, 421, 426, 427, 430, 434, 437, 445, 447, 464, 498,
501, 504, 507, 517, 548, 550, 551, 558, 564, 569, 570, 571, 572, 573, 577, 579, 580,
585, 603, 613, 614, 616, 618, 620, 621, 624, 627, 645, 647, 649, 650, 651, 652, 654,
656, 657, 660, 662, 663, 664, 666, 667, 668, 694, 695, 696, 698, 705, 706, 707, 716,
720, 723, 725, 726, 731, 732
Espaços afrodiaspóricos 223, 226, 228, 229, 230, 232, 235
684
Esporte 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 69, 182, 525
Estado negacionista 240
Estética 97, 145, 148, 152, 156, 182, 456, 457
Ética 37, 56, 58, 66, 72, 74, 75, 76, 77, 79, 81, 82, 83, 84, 86, 94, 96, 104, 145,
148, 152, 154, 155, 159, 183, 184, 255, 292, 314, 316, 319, 322, 325, 330, 336, 337,
359, 371, 386, 415, 421, 437, 441, 483, 491, 522, 631, 651, 691, 692, 699, 705, 713,
727, 731
Exibicionismo 537, 538, 541, 545
Expansionismo neoliberal 53
F
Família 30, 38, 47, 50, 54, 66, 91, 92, 100, 110, 111, 117, 131, 133, 194, 207, 221,
242, 261, 297, 312, 341, 342, 344, 345, 347, 348, 349, 357, 381, 383, 386, 387, 388,
390, 391, 393, 416, 425, 428, 430, 431, 434, 487, 497, 503, 504, 525, 548, 594, 595,
598, 605, 607, 611, 620, 621, 629, 634, 635, 636, 639, 650, 651, 660, 691, 696, 705,
707, 708, 710, 726, 738
Feminicídio 257, 258, 259, 260, 261, 269, 270, 271, 377, 473
Feminilidade 119, 266, 450, 451, 452, 455, 458, 497
Feminização 115, 117, 121, 123, 126, 127
Fotografia 180, 181, 182, 183, 196
Foucault 26, 27, 31, 32, 33, 34, 44, 50, 61, 97, 100, 110, 113, 115, 116, 117, 121,
122, 123, 125, 127, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 154, 155, 156, 157, 158,
159, 178, 179, 183, 184, 185, 186, 187, 192, 193, 194, 196, 197, 198, 199, 200, 201,
218, 251, 253, 275, 281, 282, 285, 288, 292, 305, 322, 323, 324, 336, 337, 365, 366,
367, 368, 369, 370, 371, 372, 509, 512, 513, 515, 516, 529, 542, 544, 646, 648, 649,
650, 651, 653, 654, 706, 708, 709, 721
Francisco Varela 74, 79
Freire 70, 87, 99, 121, 125, 129, 133, 141, 142, 281, 285, 288, 302, 351, 352, 354,
355, 356, 357, 358, 359, 360, 361, 445, 450, 457, 572, 573, 583, 584, 588, 598, 599,
600, 603, 646, 653, 728, 731
Frida Kahlo 447, 450, 451, 452, 453, 454, 455, 456, 458
G
Genealogia 31, 32, 61, 66, 121, 122, 149, 157, 158, 179, 183, 184, 198, 199, 365,
366, 367, 368, 369, 372
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 685
Gênero 56, 71, 73, 103, 104, 106, 107, 109, 110, 111, 112, 115, 116, 117, 118, 119,
120, 121, 123, 124, 126, 127, 136, 175, 182, 217, 219, 221, 227, 257, 259, 260, 261,
262, 263, 266, 267, 269, 271, 272, 273, 274, 278, 291, 292, 293, 294, 297, 298, 300,
302, 303, 373, 377, 381, 471, 472, 473, 474, 475, 477, 479, 480, 497, 501, 502, 503,
504, 505, 506, 631, 691, 711, 720, 723, 726, 738
Gestão democrática 161, 164, 165, 166, 168, 171, 172, 173
Gestão do trabalho 696
Griô 223, 224, 226, 228, 231, 234, 235
Guerra 55, 67, 145, 175, 178, 181, 182, 188, 195, 196, 213, 240, 245, 246, 247, 251,
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H
Hemodiálise 385, 386, 387, 388, 389, 394, 710
História cultural 177, 178, 365, 706
I
Igualdade 133, 165, 209, 294, 316, 351, 353, 354, 355, 356, 357, 358, 361, 616,
651, 658, 667, 668, 709
Infância 23, 30, 32, 34, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 51, 190,
191, 192, 201, 266, 296, 297, 385, 393, 424, 425, 431, 450, 467, 540, 594, 614, 617,
627, 629, 630, 640, 641, 643, 647, 705, 706, 716, 728
J
Jacotot 351, 357, 358, 361
Jornais 175, 180, 184, 195, 199, 201, 258, 408, 606
Jornal 57, 70, 95, 174, 175, 180, 182, 183, 193, 258, 479
Jovens negros 175
K
Kant 147, 162, 316, 320, 645, 646, 647, 648, 649, 653, 654
L
Lazer 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 33, 34, 35, 182, 346, 380, 405, 524, 574, 595,
598, 600, 629
Ledoc 134, 135, 136, 138
Lideranças 246
Linguagem 39, 40, 51, 58, 63, 76, 87, 143, 242, 264, 292, 305, 310, 315, 320, 325,
333, 339, 340, 341, 342, 343, 348, 349, 354, 413, 435, 437, 438, 443, 455, 456, 468,
686
469, 542, 545, 549, 555, 556, 565, 586, 613, 651, 655, 656, 657, 660, 661, 663, 664,
665, 666, 668, 737, 738
Linhas diagramáticas 23
Loucura 184, 185, 240, 241, 242, 243, 245, 275, 276, 279, 281, 282, 283, 286, 288,
366, 368, 369, 370, 371, 528, 650
Luto 196, 399, 402, 403, 404, 407, 408, 409, 424, 486, 489, 492, 523, 726
M
Marcos legislativos 25, 26
N
Natureza 39, 41, 43, 47, 82, 136, 137, 138, 139, 188, 205, 221, 225, 226, 230, 231,
233, 269, 295, 322, 332, 337, 343, 353, 394, 423, 431, 436, 439, 502, 571, 600, 630,
633, 635, 648, 665, 666, 703
Negacionismo 239, 240, 241, 242, 243, 244, 245, 246, 248, 250, 251, 253, 256,
400, 407, 408
Neoliberalismo 53, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 133, 161, 162, 163, 165, 168, 169,
170, 171, 174, 187, 199, 420, 651, 713
O
Otelo 257, 258, 259, 261, 263, 264, 265, 266, 267, 268, 269, 270, 271, 274
P
Pandemia 228, 240, 243, 246, 252, 255, 374, 375, 379, 383, 399, 400, 401, 402,
403, 404, 405, 407, 408, 409, 411, 412, 414, 420, 421, 481, 482, 483, 484, 486, 487,
488, 489, 490, 491, 492, 493, 494, 521, 587, 588, 595, 599, 600, 601, 603, 628, 630,
631, 634, 638, 639, 645, 646, 648, 649, 651, 653
Pedagogia decolonial 142
Pobres 26, 35, 107, 119, 120, 150, 175, 181, 189, 192, 193, 197, 213, 261, 367, 628
Política 25, 27, 33, 34, 35, 44, 56, 57, 66, 67, 74, 95, 105, 106, 115, 117, 122, 123,
124, 126, 129, 130, 131, 132, 133, 135, 140, 141, 142, 145, 147, 148, 149, 150, 156,
EDUCAÇÃO-ARTIFÍCIO:
tecer o diferir no cuidado em saúde como agência de conexões plurais 687
158, 161, 164, 167, 168, 172, 173, 174, 177, 178, 181, 183, 188, 189, 190, 193, 195,
196, 198, 199, 209, 211, 217, 218, 219, 232, 239, 240, 241, 243, 244, 246, 247, 249,
250, 252, 253, 259, 275, 276, 279, 281, 284, 285, 286, 287, 288, 292, 294, 297, 302,
303, 324, 331, 332, 333, 355, 358, 372, 373, 377, 378, 380, 381, 383, 401, 407, 408,
442, 510, 527, 530, 531, 533, 534, 561, 602, 606, 607, 616, 623, 640, 646, 663, 664,
703, 704, 706, 710, 711, 716, 723, 727, 728, 737
Políticas públicas 26, 31, 33, 34, 35, 94, 96, 98, 99, 103, 110, 111, 113, 117, 127,
130, 132, 140, 142, 188, 195, 200, 201, 214, 219, 221, 229, 231, 235, 236, 260, 276,
278, 284, 285, 286, 288, 291, 293, 294, 295, 296, 297, 301, 302, 303, 373, 374, 376,
377, 381, 383, 405, 407, 441, 443, 488, 489, 490, 491, 520, 527, 606, 607, 610, 613,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
615, 619, 620, 628, 629, 640, 643, 644, 664, 666, 703, 705, 706, 712, 713, 717, 723,
724, 728, 729, 731, 737, 738
Prática educativa 354, 355, 567, 599, 651
Preconceito 39, 110, 125, 126, 134, 159, 171, 175, 298, 307, 310, 313, 314, 315,
316, 317, 318, 320, 369, 377, 501, 503, 506, 649, 658
Produção de conhecimento 57, 85, 94, 95, 96, 103, 136, 158, 236, 369, 439, 605, 715
Psicanálise 31, 38, 39, 43, 50, 51, 86, 87, 88, 97, 100, 101, 155, 239, 240, 241, 242,
244, 249, 250, 253, 254, 255, 256, 339, 396, 434, 447, 449, 450, 451, 455, 456, 457,
458, 459, 460, 465, 467, 468, 470, 530, 533, 534, 539, 544, 707, 711, 730, 731
Psicologia 28, 31, 32, 33, 34, 35, 38, 39, 40, 47, 51, 65, 70, 71, 77, 83, 86, 97, 99,
100, 101, 103, 104, 106, 110, 112, 113, 114, 125, 127, 129, 130, 136, 137, 138, 139,
140, 141, 142, 143, 154, 155, 156, 158, 159, 161, 168, 172, 177, 196, 197, 199, 200,
222, 239, 253, 254, 255, 259, 263, 272, 273, 275, 279, 287, 288, 289, 291, 294, 295,
297, 298, 303, 304, 305, 335, 336, 337, 339, 348, 365, 372, 396, 399, 402, 404, 405,
408, 409, 411, 412, 413, 414, 416, 417, 418, 419, 420, 421, 423, 432, 433, 437, 439,
441, 447, 449, 457, 458, 469, 470, 472, 477, 481, 482, 483, 488, 489, 490, 491, 492,
493, 496, 505, 506, 507, 528, 529, 530, 531, 540, 544, 545, 547, 565, 581, 582, 585,
605, 606, 607, 608, 610, 611, 613, 617, 624, 625, 627, 632, 633, 645, 658, 691, 692,
695, 696, 697, 700, 701, 702, 704, 705, 706, 707, 708, 709, 710, 711, 712, 713, 715,
716, 717, 718, 719, 720, 723, 724, 726, 727, 728, 729, 730, 731, 735, 736, 737, 738
Psicologia escolar 83, 291, 303, 304, 411, 412, 413, 417, 418, 420, 421, 624, 705,
713, 723, 724
Psicologia moderna 77
Q
Quilombo 335
Química 349, 369, 459, 468, 502, 519, 567, 568, 569, 572, 575, 576, 577, 578, 579,
580, 581, 582, 583, 584, 585, 731
Quociente de inteligência 656
688
R
Rede socioassistencial 105, 106, 107
Redes sociais 99, 246, 273, 378, 483, 485, 486, 490, 534, 535, 536, 537, 538, 540,
541, 542, 544, 545, 598, 711
Relações subjetivas 459, 460
Resistências 60, 94, 145, 146, 147, 148, 150, 159, 193, 321, 334, 447
S
Saúde 3, 9, 21, 27, 44, 45, 48, 49, 61, 83, 85, 86, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 98, 99, 100,
Sujeito 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 49, 50, 54, 59, 60, 82, 83, 85, 87, 88,
90, 93, 94, 95, 96, 97, 99, 101, 107, 110, 111, 120, 122, 143, 146, 147, 148, 149,
150, 152, 156, 157, 158, 162, 163, 176, 179, 185, 186, 198, 204, 206, 212, 215, 218,
221, 240, 241, 245, 248, 249, 255, 261, 268, 269, 275, 276, 285, 292, 293, 295, 297,
315, 316, 321, 323, 325, 336, 341, 342, 343, 344, 346, 347, 352, 356, 357, 358, 359,
360, 368, 369, 370, 378, 381, 393, 394, 395, 399, 402, 415, 431, 442, 448, 449, 450,
455, 459, 460, 462, 463, 464, 465, 466, 467, 468, 469, 506, 518, 522, 527, 530, 534,
535, 536, 537, 540, 541, 542, 569, 570, 571, 572, 573, 578, 581, 614, 616, 640, 646,
648, 649, 650, 651, 656
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T
Tea 562, 613, 614, 615, 616, 617, 618, 619, 620, 621, 622, 625
Territorialidade 37, 38, 40, 42, 43, 44, 47, 48, 49, 50, 230, 232
Toxicomania 459, 460, 465, 466, 467, 469, 470
Trabalho 24, 26, 47, 53, 59, 60, 64, 67, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 85, 87,
89, 90, 91, 92, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 103, 104, 106, 108, 109, 110, 111, 112,
115, 116, 118, 119, 120, 121, 123, 125, 126, 127, 131, 135, 136, 139, 142, 161, 163,
164, 167, 169, 170, 171, 174, 177, 183, 184, 189, 191, 192, 193, 196, 203, 204, 205,
207, 208, 209, 210, 211, 212, 214, 216, 239, 241, 243, 247, 257, 258, 261, 263, 271,
283, 286, 293, 303, 318, 324, 334, 358, 362, 365, 366, 373, 375, 376, 378, 379, 380,
381, 382, 386, 399, 401, 404, 405, 408, 409, 411, 412, 416, 418, 419, 426, 427, 428,
432, 436, 437, 438, 439, 440, 441, 442, 443, 445, 449, 450, 451, 455, 460, 461, 467,
473, 474, 478, 481, 483, 488, 490, 497, 500, 502, 509, 511, 512, 513, 516, 517, 518,
519, 520, 522, 523, 524, 525, 526, 527, 528, 529, 530, 550, 552, 554, 559, 560, 562,
570, 571, 572, 573, 574, 578, 579, 580, 583, 598, 600, 603, 606, 608, 610, 613, 615,
619, 623, 627, 628, 629, 630, 631, 632, 633, 634, 635, 636, 637, 638, 639, 640, 641,
642, 643, 644, 648, 651, 654, 655, 656, 692, 696, 701, 703, 707, 708, 710, 716, 724,
727, 728, 730, 737
U
Ubs 91, 93, 627, 629, 630, 631, 632, 633, 634, 635, 638, 639, 705
Utilitarismo 24, 25, 26
V
Verneinung 241, 248, 255, 256
Vidas precárias 175
Violência 26, 27, 28, 30, 33, 35, 38, 45, 55, 57, 59, 63, 64, 66, 108, 137, 159, 186,
190, 191, 194, 195, 197, 206, 209, 214, 216, 217, 219, 220, 221, 222, 257, 259, 260,
261, 262, 263, 265, 266, 267, 269, 270, 271, 272, 273, 274, 278, 283, 285, 291, 293,
294, 295, 296, 297, 298, 300, 301, 302, 303, 304, 332, 368, 369, 373, 374, 375, 376,
377, 378, 381, 383, 401, 404, 408, 409, 413, 414, 419, 472, 473, 474, 475, 476, 477,
690
478, 479, 514, 522, 524, 525, 529, 587, 602, 605, 606, 607, 608, 609, 610, 611, 616,
630, 637, 638, 658, 663, 691, 713, 738
Violências 109, 135, 137, 139, 200, 206, 224, 257, 258, 259, 260, 261, 262, 263,
271, 272, 279, 291, 301, 373, 374, 375, 376, 378, 379, 381, 382, 414, 417, 437, 438,
473, 474, 476, 605, 607, 630, 631, 635, 636, 637, 713, 735, 738
Violência sexual 108, 291, 293, 294, 295, 296, 297, 298, 300, 301, 302, 303, 304,
475, 476, 605, 606, 607, 608, 609, 610, 611
que promove bate-papos informais sobre temas e pesquisas acadêmicas que versam
por gênero, feminismo e psicologia. Realiza treinamentos, oficinas e consultoria em
temáticas que envolvam relações de gênero, feminismos e violências a partir de uma
perspectiva crítica de estudos de gênero, antiracistas e à favor de diversidade sexual.
Daiana Malito
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (2009) e
mestrado em Psicologia Estudos da Subjetividade pela Universidade Federal Flumi-
nense (2011). Atualmente trabalha com Saúde Mental no Programa de Assistência
Ambulatorial em Niterói. Tem experiência nas áreas de Psicologia Social e Psicolo-
gia Clínica, atuando principalmente nos seguintes temas: micropolítica, juventudes,
políticas públicas e produção de subjetividade.
Fabiola Colombani
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mes-
quita Filho – UNESP/Assis (2000), especialização em Psicologia Escolar e Educa-
cional pelo CFP – Conselho Federal de Psicologia (2008), mestrado em Psicologia
pela UNESP/Assis (2009) na linha de Infância e Realidade Brasileira, doutorado em
Educação pela UNESP/Marília(2016) na linha Psicologia da Educação: Processos
Educativos e Desenvolvimento Humano – financiado pela CAPES e Pós-Doutorado
pela UNESP/ Marília (2017) pelo programa de Educação, financiado pela CAPES/
Edital PNPD com estágio na Universidad de Buenos Aires (2017). Tem experiên-
cia em docência presencial, ensino a distância e tutoria desde (2009), nos cursos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Gerfson Oliveira
Psicólogo graduado pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública – EBMSP (2005);
Doutor em Medicina e Saúde (EBMSP, 2020); Mestre em Saúde, Ambiente e Trabalho
(UFBA, 2011); Especialização, sob forma de Residência Multiprofissional, em Saúde
da Família (SESAB, 2008); Especialização em Avaliação Psicológica (Universidade
Paulista, 2012); Especialização em Micropolítica da Gestão e do Trabalho em Saúde
(Universidade Federal Fluminense, 2018) e Especialização em Práticas Integrativas e
Complementares em Saúde – PICS (Cruzeiro do Sul, 2020). Tem experiência na área
de Saúde Coletiva, Saúde Mental, Gestão em Saúde, PICS, Psicologia Clínica e do
Trabalho. Atualmente trabalha como psicólogo clínico e do trabalho, é professor de
Graduação e Pós-Graduação da Escola Baiana de Medicina e Saúde Pública e Tutor
do Programa de Residências Integradas em Saúde da Família FESF-SUS/FIOCRUZ.
Luciano Dias
Pós-doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro – PPGPSI/UFRRJ; Bolsista pelo Programa Nacional
de Pós-Doutorado – PNPD/CAPES, lucianodsdias@gmail.com.
Marilda Castelar
Possui doutorado em Psicologia Social pela PUC-SP – Pontifícia Universidade Cató-
lica de São Paulo, mestrado em Multimeios pela UNICAMP – Universidade Estadual
de Campinas e graduação em Psicologia pela PUC Campinas – Pontifícia Universi-
dade Católica de Campinas. Possui experiência em Políticas Públicas, tendo atuado
na Prefeitura Municipal de Campinas durante 14 anos. Foi Conselheira Presidente
do CRPBA Conselho Regional de Psicologia da Bahia (Gestão 2007-2010) e Con-
selheira Suplente do CFP – Conselho Federal de Psicologia (Gestão 2010-2013).
Atua como Professora Adjunta no Curso de Psicologia, desde 2003 e no Mestrado
em Tecnologias em Saúde, desde 2012 e no Mestrado Profissional em Psicologia e
Intervenções em Saúde, na EBMSP – Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
Possui experiência na área de Psicologia clínica, social e em Pesquisa com ênfase nos
temas: políticas públicas de saúde, inclusão social, memória da psicologia, psicologia
social, gênero, saúde mental, relações etnico-raciais, saúde da população negra e
direitos humanos. Coordena o Grupo de Pesquisa Psicologia, Diversidade e Saúde,
inscrito no CNPq e certificado pela BAHIANA. Desenvolve os seguintes projetos
de pesquisa na atualidade: Atuação de Profissionais de Saúde nos Conselhos e na
Efetivação da Política Nacional de Saúde Mental na Bahia e Atuação de Profissionais
de Saúde nas Políticas Públicas para as Mulheres. Com experiência de orientação
Mestrado, de projetos de Iniciação Científica, de Trabalhos de Conclusão de Curso
(TCC) de graduação e especialização. Atua também como Editora Científica Revista
Psicologia Diversidade e Saúde.
Milena Lisboa
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Graduada em Psicologia.
Saúde Mental pela Universidade do Estado do Pará – UEPA com atuação na Fundação
Estadual Hospital de Clínicas Gaspar Vianna – FHCGV. Mestrado no Programa de
Pós-Graduação em Psicologia, Linha de Pesquisa: Psicologia, Saúde e Sociedade pela
Universidade Federal do Pará UFPA. Tem experiência na área de saúde (SUS): pro-
grama de IST/HIV/Aids, como psicóloga educacional e coordenadora de saúde men-
tal. Psicologia Clínica, atuando com adolescentes e adultos em consultório particular.
Saúde Coletiva com ênfase em Saúde Pública, Saúde Mental, Educação Especial e
Inclusiva, Relações Raciais, Psicanálise e Psicologia Social.
Vinicius Furlan
Psicólogo com Pós-doutorado em Estudos Culturais pela USP-SP, Pós-doutorado
e doutorado em Psicologia Social pela PUC-SP. Mestre em Psicologia pela UFC e
especialista em Epistemologias do Sul pela CLACSO. Professor visitante e colabo-
rador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidad Nacional de San
Luis – Argentina. Professor do Pós-Graduação em Psicologia Social e Comunidades
da UniFatec-PR e do Curso de Psicologia da CEUNSP. Foi ainda professor do Depar-
tamento de Psicologia Social da Unesp-Assis e do Programa de Pós-Graduação em
Estudos Culturais da USP-SP. Pesquisador-colaborador do Grupo de Pesquisa em
Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo (GEPSIPOLIM/USP), do
Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social
Crítica (o “PARALAXE” /UFC) e Núcleo de Estudos e Pesquisas em Identidade-Me-
tamorfose (NEPIM / PUC-SP). Recebeu o Prêmio “Psicologia e Direitos Humanos”
do Conselho Federal de Psicologia. Membro do Grupo de Trabalho (GT) em Psico-
logia Política da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia
(ANPEPP) e da Rede Ibero-Latino-Americana de Psicologia Social.
Vinícius Furlan
Psicólogo com Pós-doutorado em Estudos Culturais pela USP-SP, Pós-doutorado e
Doutorado em Psicologia Social pela PUC-SP. Mestre em Psicologia pela Univer-
sidade Federal do Ceará e especialista em Epistemologias do Sul pela CLACSO.
Professor visitante e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidad Nacional de San Luis – Argentina. Professor do Pós-Graduação em
Psicologia Social e Comunidades da UniFatec-PR e do Curso de Psicologia da Fatep.
Foi ainda professor do Departamento de Psicologia Social da Unesp-Assis e do Pro-
grama de Pós-Graduação em Estudos Culturais da USP-SP. Pesquisador-colaborador
do Grupo de Pesquisa em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo
738
SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 9,5 | 10,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Offset 75 g (miolo)
Royal | Supremo 250 g (capa)