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ria do Carmo Medina

passa parte da sua infância no Porto e cm > a Portugal cm 1938. ípleta os estudos secundários
e frequenta a ito, licenciando-se em 1948. nente nas lutas académicas pela democra- diversas
atividades culturais e políticas.

1 o estágio de advocacia e inscreve-se na ijados em Portugal.

política depara-se com dificuldades de rofissáo e em abril de 1950 resolve vir para se em
Luanda, onde inicia a sua ativida- aís a primeira mulher a abrir escritório de

icia até 1976, efetuando julgamentos em bunais de Angola e recursos para as mais al-iciais,
sedeadas então em Portugal, e toma sora em quase todos os processos dos presos os e em
múltiplos recursos e petições junto oloniais.

dependência exerce o cargo de Secretária s Jurídicos da Presidência da República e a na


magistratura judicial, sendo nomeada es,dente do recém-criado Tribunal Supremo.

ida desse cargo.

até ao presente é professora da Faculdade niversidade Agostinho Neto da cadeira de

lia.

|.i tatura de múltiplos diplomas legais, parccc-

h"OS * art'Sos sobre direito de família, lurisprudcncia, direito da criança.

TSOS dc formação e eapaeitação de advoga- «núbl, aVUrídÍCJaS' ma8ÍStrados Iniciais

^-»fictais do registo civüc. área

' <'uadrOT & Poluía Nacional e d,

CAPÍTULO I.°

INTRODUÇÃO

[1] O conceito genérico de família, as relações jurídicas familiares e

a sua autonomia
No âmbito do nosso estudo teremos que nos debruçar sobre o ramo de direito que regula e
disciplina as relações jurídicas familiares.

Estas relações jurídicas têm como alicerce um fenómeno social que é constituído pela família.
A família é em si um fenómeno natural inerente à sociedade humana. A socialização da pessoa
humana inicia-se na família.

O conceito de família não é, de qualquer forma, um conceito estático e imutável. Muito


pelo contrário: como os demais fenómenos humanos e sociais, está sujeito a um processo de
evolução e transformação. Não se pode entender a família como um instituto uniforme, sendo
que dentro do mesmo Estado pode haver mais de um tipo de grupo familiar.

Dentro do Direito de Família estão englobados diversos sub-ramos de direito: o direito


matrimonial, que regula as relações jurídicas de natureza pessoal e patrimonial que se
estabelecem entre os cônjuges; o direito da filiação ou direito paterno-filial, que estabelece os
direitos e deveres entre pais e filhos; o direito de parentesco, que determina os efeitos
jurídicos existentes entre pessoas ligadas por laços de sangue provenientes duma ascendência
comum; o direito da afinidade, que regula as normas vinculativas da aliança que se estabelece
entre o cônjuge e os parentes do outro cônjuge, ou, se quisermos entender num sentido mais
lato, as normas que regulam a aliança entre duas famílias; o direito da tutela, que visa regular
as formas de substituição da autoridade paternal; o direito que regula as relações jurídicas que
provêm da adoção, a qual, como veremos, estabelece um vínculo jurídico idêntico ao da
filiação entre pessoas não ligadas entre si por laços de filiação biológica, etc..

Dentro do Direito de Família iremos ainda estudar determinadas situações de facto que, pela
sua importância, o legislador não pode ignorar, tais como a

união livre entre um homem e uma mulher à margem do casamento, denominada união
defacto. E também a separação de facto entre cônjuges que, embora unidos legalmente por
laços do matrimónio, cessam, à margem do divórcio, a convivência comum.

Outra situação de facto de grande relevância no Direito de Família é a chamada posse de


estado das relações jurídicas familiares, a que o legislador reconhece efeitos legais, tais como a
posse de estado de casado ou a posse de estado de filho, que atribui ao filho uma real vivência
como tal.

Delas se faz derivar importantes consequências de direito e há quem chame a este fenómeno
a juridicização das relações de facto.

Dentro da família vigoram institutos de natureza patrimonial, como os regimes matrimoniais


de bens entre os cônjuges, onde está prevista a regulação de questões como a aquisição e a
gestão patrimonial dos bens do casal, a sua alienação, e ainda a administração do património
dos filhos menores atribuída aos progenitores, etc.. A própria estrutura e funcionamento do
direito sucessório estão intrinsecamente ligados às normas do Direito de Família.

O Direito de Família ou, se quisermos dizer, «os direitos de família» são em geral os direitos
que tutelam os interesses das pessoas que fazem parte da comunidade familiar. A família pode
assim ser definida como um grupo social relacionado entre si por obrigações e direitos
recíprocos.

O estado familiar é a situação subjetiva da pessoa dentro da família, como titular duma
pluralidade de direitos, poderes e deveres específicos.

a) Codificação do Direito de Família

Os sistemas de direito socialista rejeitavam a divisão bipartida do direito em direito público e


direito privado, adotando uma conceção unitária do direito, dimanado de uma fonte única do
poder do Estado.

O que é importante realçar é que, nesses sistemas, o Direito de Família consti¬tuía um ramo
autónomo do direito, destacado do direito civil. Autonomizava-se o direito de família em razão
do tipo específico das instituições jurídicas que ele regula, pelo que, nesses países, as leis de
família eram leis destacadas dos códigos civis.(1)

A nível do continente africano também se nota a tendência de autonomizar o direito de família


com a publicação dos respetivos códigos Leis de Família de S. Tomé e Príncipe (1977), os
Códigos de Família da Costa do Marfim e da Argélia. As leis de Família, Divórcio e Filiação de
1976, de Cabo Verde foram

revogadas e as normas inseridas de novo no Código Civil pelo Decreto-Legislativo n.°12-B/97


de 30 de Junho.

Nos sistemas de direito romano-germânico, que englobam a Alemanha e países da Europa


Ocidental, as normas de direito de família estão integradas nos respetivos códigos civis.
Verificamos que num sistema jurídico que nos é próximo, o direito brasileiro, foi aprovado pela
Lei n.° 10 406 de 10 de janeiro de 2002, o novo Código Civil que consagra o seu Livro IV ao
Direito de Família, seguindo assim o sistema romano-germânico.

No entanto na Catalunha, Espanha, existe o Código de Família que foi autonomizado do Código
Civil espanhol. O Código de Família aprovado pela Lei n.° 9/1990 de 15 de julho com alterações
das leis n.° 3/2005 e n.° 10/2008.

Porque se vive numa época de profundas alterações em todo o mundo, no direito de família,
tem sido frequentemente usado o método de publicação de leis avulsas que atualizam
pontualmente importantes matérias de direito de família. No Chile foi publicada a Lei n.° 19
947, de 17 de maio de 2004, a Lei do Casamento Civil. Na República Popular da China vigora a
Lei do Casamento de 1980 que sofreu profunda revisão em 2001. Na Suécia foi aprovada a Lei
dos Conviventes, de 2003. Em França foi aprovada a Lei do Divórcio de 26 de maio de 2004,
que entrou em vigor em 1 de janeiro 2005.

Em Moçambique foi publicada a Lei n.° 10/2004 de 25 de agosto que aprovou a Lei da Família
e que veio revogar o respetivo Título do Código Civil. Na África do Sul foi aprovada a Lei da
União Civil que entrou em vigor em novembro de 2006 e que foi a primeira lei no continente
africano a reconhecer efeitos à união entre pessoas do mesmo sexo. A Lei 54/2006 da Itália,
veio alterar o Código Civil na matéria relativa ao exercício da autoridade paternal por pais
separados, estabelecendo e regulando o exercício da autoridade paternal de forma conjunta.

Na Suíça foi aprovada a Lei do Partenariado Registado, que passou a vigorar a partir de 1 de
janeiro de 2007, aplicável a uniões entre pessoas do mesmo sexo. A Noruega aprovou a Lei do
Casamento em junho de 2008 que entrou em vigor em janeiro de 2009 e que permite
casamento formal entre pessoas de sexo diferente ou do mesmo sexo.

Em Portugal foi publicada a Lei n.° 61/2008 de 31 de outubro que veio alterar o regime jurídico
do divórcio, fazendo-o por via da alteração das disposições do Código Civil e completando-as
com alterações ao Código de Processo Civil e do Registo Civil. No ano de 2009 foram alteradas
disposições relativas ao estabelecimento da filiação, Lei n.° 14/2009 e relativas ao casamento
Lei n.° 29/2009, de 29 de junho, que passou a permitir o casamento entre pessoas do mesmo
sexo. Mais recentemente, a Lei n.° 2/2011 de 15 de março, veio estabelecer o precedimento a
seguir no registo civil para se alterar a mudança de sexo c de nome próprio.

já no sistema de direito anglo-saxónico o direito de família é integrado em leis específicas


sobre os seus institutos fundamentais, como o casamento, divórcio, filiação e direitos da
criança. Mesmo em países que procederam a reformas legislativas importantes após as
mudanças no mundo socialista manteve-se o direito de família em diplomas separados.^3' Há
que apontar que a República Checa apesar de muita controvérsia, optou por introduzir a partir
de 1998, as reformas do direito de família no Código Civil.

b) Função promotora do Direito de Família

Por fim, devemos apontar a função promotora do direito de família no âmbito do


comportamento dos membros da família e na defesa dos legítimos interesses dos seus
membros tal como são tutelados por lei.

Importa reconhecer que o direito de família está proíúndamente imbricado com questões que
se prendem com a sociologia e a antropologia e que estudam as bases do comportamento
humano no meio social e em que se estrutura o direito costumeiro.

É certo que questões de natureza eminentemente política se vão repercutir no direito de


família, como sejam a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana à liberdade e à
igualdade, a posição da mulher na sociedade, a política de cada país em relação ao aumento
ou à diminuição da população.

Acontece com frequência haver um desajuste entre o conteúdo da norma jurídicae a prática
social, porque muitas vezes o peso das tradições leva à exploração e à opressão dentro da
família e ao desrespeito dos princípios defendidos por lei e ao uso abusivo de direitos. Mas
também é certo que o conhecimento, por cada pessoa, dos seus próprios direitos permite que
mais facilmente se reivindique o seu exercício e a sua aplicação subjetiva.

Por isso as reformas no campo do direito de família têm um indiscutível impacto no meio
social e atuam como agente promotor do progresso da própria sociedade. O direito de família
confere um verdadeiro poder de intervenção pela via legal, alterando comportamentos
anteriores que deixaram de ser protegidos

por lei.

Muitas vezes as normas do direito de família são, na sua essência, normas de conteúdo ético-
jurídico que definem o tipo ideal das relações familiares. Este ramo do direito não pode, por
conseguinte, ser encarado de forma passiva como a reprodução, a nível jurídico, de uma
realidade social. Ele deve antes traduzir- -se num meio de atuação nas estruturas sociais,
visando em concreto um novo comportamento e um novo relacionamento entre os membros
da família.

[2] Breve noção histórica da família e dos sistemas familiares

O estudo do direito de família exige que tenhamos, antes de mais, uma noção do que é a
família. É um conceito que não pode ser entendido de forma dogmática, porque ele está em
correlação com a própria realidade económica, cultural e social das diferentes sociedades
humanas.

A família tem a sua origem no fenómeno natural da procriação e da pro¬pagação da espécie


humana. Mas é sobretudo um fenómeno social, pois através dos tempos se tem verificado que
nela não intervêm tão somente fatores biológicos. Nela intervêm outros fatores de ordem
social e económica. Como tal, o conceito varia de acordo com a estrutura social e política em
que se insere e interessa recordar os diversos conceitos de família que acompanharam a
evolução histórica das sociedades humanas. Não existe um conceito único de família, mas
diversos conceitos.

Temos a família extensa ou a grande família estabelecida com base no parentesco. É a família
parental formada por um largo conjunto de pessoas, unidas por uma ascendência comum,
ligadas por fortes laços de solidariedade e com uma comunidade de interesses económicos.

A família monogâmica é estruturada no casamento único e exclusivo dos cônjuges. A família


poligâmica, ou melhor dizendo, poligínica é aquela em que o marido se apresenta ligado por
laços de casamentos válidos com mais de uma mulher simultaneamente.

No século XIX invocava-se o conceito de livre arbítrio e do predomínio da razão para a


explicação dos fenómenos sociais.

Desde cedo a humanidade começou a impor restrições às relações de procriação entre


parentes consanguíneos (pais e filhos, irmãos e irmãs), proibindo o incesto e mais adiante
empreendendo ainda a exogamia, ou seja, o casamento fora do grupo familiar. Podemos
também assinalar a importância das sociedades de economia doméstica, em que as mulheres
representam grande parte da força de trabalho, produzindo os alimentos necessários à
manutenção da família com acentuada importância social.

O clã ou grupo é constituído por grupos de descendentes provenientes de um ascendente


comum e, como vimos, pode ser estatuído por via materna, quando há a referência a uma
ascendente feminina comum, ou ser estabelecido pela via paterna, quando a referência é feita
a um ascendente masculino comum.

Numa fase posterior, a família é caraterizada pela poligamia praticada pelo homem, tendo
como contrapartida a exigência de uma rigorosa fidelidade por parte da mulher. No entanto, a
poligamia é em regra praticada pelos elementos masculinos que detêm o poder: «A poligamia
é um privilégio dos ricos e dos poderosos... a massa do povo é monógama».(4)

Neste tipo de sociedade a mulher está subordinada ao marido e nos meios rurais a família
constitui uma unidade de produção em que cabe às mulheres executar os trabalhos agrícolas e
os serviços domésticos de manutenção do agregado familiar, como o transporte de lenha e
água, a preparação dos alimentos, os cuidados com os filhos, etc.. Nela os laços matrimoniais
não são indissolúveis.

Diferente é a sociedade familiar do tipo patriarcal que se baseia no poder exclusivo do homem,
o patriarca, e se carateriza pela organização de um grupo de pessoas, livres e não livres,
submetidas ao poder paterno de um chefe.

Este tipo de família aparece-nos retratado nos tempos bíblicos do Antigo Testamento, na
Roma antiga, na China dos mandarins e no mundo muçulmano em geral. Nela coexistiam os
escravos e os membros da família, como filhos, netos, e respetivas mulheres e outros
parentes, subordinados ao domínio paterno.

Aparece depois a família monogâmica ainda assente no predomínio do homem. Ela tem por
fim a procriação da prole, salvaguardando a paternidade indiscutível dos filhos por parte do
marido e tendo em vista a transmissão da propriedade e da posse dos bens dentro da família.

A família monogâmica carateriza-se pela maior solidez dos laços familiares, passando a vigorar
o princípio da indissolubilidade do matrimónio, salvo em casos excecionais, em que se
possibilita o repúdio da mulher pelo marido. A monogamia não impede que o homem pratique
o heterismo, ou seja, as relações sexuais fora do casamento, prática que é muitas vezes
aprovada pelo costume c pela lei. Apesar disso, a mulher atingiu no casamento monogâmico
uma posição mais elevada. O casamento permitiu, assim, a transmissão da propriedade
privada dentro da família, consolidando o poder da burguesia.

[3] A família na sociedade tradicional africana

Interessa apontar alguns dos carateres predominantes nos diversos tipos de organismos
familiares que se encontram no nosso continente, com especial relevo para a sua zona austral.
Os primitivos habitantes desta parte sul de África, os povos San, indevidamente designados
como bosquímanos, caraterizam-se por uma organização coletiva do poder e pelas relações
conjugais baseadas na monogamia/5*

Nos povos Bantos predomina a vida sedentária apoiada na atividade agrícola e na criação de
gado. Nestes povos negro-africanos a ideia de família é entendida nos seus fundamentos e
estruturas, tendo em conta as próprias relações que ligam o homem à terra. Esta é explorada
coletivamente pela família.
As relações de produção estão intimamente relacionadas com as relações familiares e estas
determinam o direito dos indivíduos sobre o solo e os seus produtos e os seus direitos e
obrigações de receber, dar e cooperar, como membros integrados no grupo familiar. As
relações de parentesco funcionam como relações de produção.

É nesta linha de pensamento que se enquadra o casamento, que se traduz numa aliança de
grupo a grupo e não de indivíduo a indivíduo. É uma aliança de grupos domésticos e não entre
grupos de filiação. A autoridade paternal não é forçosamente exercida pelo progenitor mas
pelo chefe da família.

No direito tradicional africano há regras próprias relativas ao parentesco, à filiação, ao preço


da noiva como integrante do casamento e ao regime matrimonial de bens.

A responsabilidade pelo cumprimento das obrigações e pelos demais negócios jurídicos vai
recair sobre o grupo familiar e não sobre o indivíduo unicamente a título pessoal. À mulher
não é, em regra, reconhecida capacidade jurídica para ser processada e responsabilizada sem a
assistência do representante legal.

O levirato e o sororato são largamente assinalados, confirmando a direção principal de que o


casamento se estabelece por acordo entre famílias.

A fase preliminar do casamento é constituída pela entrega de prestações da família do noivo à


família da noiva, o que representa uma compensação económica pela saída de um membro da
família (a mulher passa a estar subordinada ao poder do marido). Em contrapartida, os valores
recebidos pelos familiares da mulher podem ser aplicados no pagamento de uma prestação
para a celebração do casamento de um membro masculino da família e garante-se assim uma
compensação da saída de um membro feminino da família pela entrada de outra mulher.

Carlos Valiente Noialles, Les Bosquimanes, Peuples Oubliés de IXjrique Australe.

Pelo casamento, o marido adquire sobre a pessoa da mulher verdadeiros direitos in rem, pois
se alguém a mata, a agride, ou com ela pratica adultério, atribui-se ao marido o direito de
exigir uma indemnização. Mas se for o marido a maltratar a mulher ou a causar-lhe a morte,
são os parentes da mulher que têm o direito a ser indemnizados.

Reconhece-se que o direito costumeiro tem um elaborado sistema de normas e princípios que
se referem às questões do noivado, cerimónia do casamento, relações entre pais e filhos,
conflitos conjugais, direito sucessório, etc.. O direito a alimentos, a adoção e as relações de
afinidade vigoram dentro da família com regras próprias. O direito de família é, pois, o mais
desenvolvido nas comunidades africanas.

[4] A família na sociedade moderna

Períodos há em que a família é profundamente afetada e até destruída por determinados


fenómenos, como a escravatura, os períodos de guerra e insta¬bilidade que originam a
deslocação maciça da população, as migrações, etc.. Dá-se um afrouxamento ou até a rutura
das relações familiares.
Mas, passados esses períodos de transformação ou convulsão social, a sociedade familiar
recompõe-se e reconstitui-se sob novas formas.

A família na sociedade moderna corresponde a um dado estágio social resultante do


desenvolvimento técnico-científico industrializado: nela coexistem os cônjuges e os respetivos
filhos, formando a família nuclear ou conjugal.

É, pois, um conceito de família de âmbito mais restrito, composta por um homem e uma
mulher, formando uma comunidade de vida, unidos com estabilidade e a sua prole comum.

Dela resultam importantes direitos e deveres recíprocos de solidariedade entre os seus


membros, como o direito e o dever de ajuda mútua e à assistência moral e material, que se
traduz na prestação de alimentos, etc..

Embora no presente exista restrição à extensão da família ora reduzida à família nuclear, ou
pequena família em sentido estrito, não se lhe retira a sua grande importância social. É- lhe
atribuída atividade de grande relevo, pois é considerada o núcleo básico do tecido da
sociedade, e nela se encontram confundidos interesses de natureza pessoal e social.

A família é reconhecida uma função de natureza estabilizadora cuja pre¬servação interessa à


evolução da própria sociedade. Por isso ela deve ser apoiada e protegida pelo Estado. Incumbe
especialmente à família conjugal a procriação da prole, a educação e a formação dos filhos e,
em suma, a satisfação dos sentimentos afetivos de cada pessoa. Nela se efetivam de forma
direta as necessidades básicas da convivência humana.^

Numa forma mais reduzida de unidade familiar deparamo-nos hoje, em número cada vez
maior, com a família monoparental, composta tão somente por um único progenitor, o pai ou
a mãe, e pelos respetivos filhos. Tal ocorre no caso das mães solteiras, dos pais separados,
divorciados ou viúvos que vivem com os filhos.

Embora a pequena família moderna tenha perdido o seu valor económico, ela não deixa de ter
grande relevância no aspeto cultural, pois é nela que, de geração em geração, se vão
transmitindo, de pais para filhos, os valores culturais. Pela criação, instrução e educação dos
novos membros da família vão-se transmitindo o ensino da língua, os conhecimentos
adquiridos pelas gerações mais velhas, os hábitos de vivência, que formam a essência de cada
povo.

Postergou-se o conceito retrógrado de que a família conjugal devia ser estabelecida sob o
poder autoritário do marido sobre a mulher, consubstanciado na tutela marital, que
acarretava para a mulher uma verdadeira capitis diminutio.

Também deixou de se acatar o princípio segundo o qual, nas relações paternais, devia
prevalecer o poder do pai sobre os filhos, subalternizando a mãe.

É hoje aceite um novo conceito de família conjugal que não necessita da preponderância de
um «chefe», antes é baseada na liberdade e na individualidade dos dois cônjuges e na
convivência solidária dos seus membros. Substitui-se a família estruturada na hierarquia pela
família estruturada na diarquia (de marido e mulher) e baseada no consenso de ambos. Ao
marido e à mulher são atribuídos direitos e deveres estruturados em igualdade, à luz da
verdade essencial de que a dignidade humana é a mesma para o homem e para a mulher.

Da mesma forma se altera a visão das relações entre pais e filhos que se entendem dever ser
exercidas com autoridade mas sem autoritarismo.

^ A. Burguière, C. Zuber, M. Segalen e E Zonabend — «E amanhã, a família?» in História da


Família — vol. IV. Edição Terramar, 1995, p. 140: «A modernização das sociedades não foi feita
contra a família, mas sim com ela. Ora grupo de residência, ora rede, a família, é um ponto de
apoio para o indivíduo que tem que se deslocar, entrar na cidade, penetrar nos novos
mercados de emprego... o estudo das transformações familiares ligadas à modernidade põe
em evidência a diversidade de respostas da instituição face às novas condições económicas c
sociais».

As uniões entre pessoas do mesmo sexo, expressão do homossexualismo, vão ganhando


espaço na consagração legal, sobretudo em países com influência de cultura europeia. A
alteração da conceção sobre as relações familiares, leva à aceitação de novas realidades
dentro da vida familiar.

[5] Princípios fundamentais do Direito de Família

No direito moderno podemos, em síntese, expressar os seguintes princípios fundamentais


comuns aos diversos sistemas jurídicos atuais:

a) O princípio da separação do Estado e das confissões religiosas no direito de família, de


que resulta em regra, o reconhecimento único do casamento laico celebrado por um órgão
estatal, seja ele o conservador do registo civil, como entre nós sucede, ou o presidente da
câmara, o juiz, o notário. Nestes sistemas todas as questões relativas à validade e à dissolução
do casamento etc., são resolvidas pelos tribunais judiciais e não por tribunais eclesiásticos.
Outros sistemas jurídicos adotam o princípio da igualdade das diversas crenças religiosas
perante o Estado, e permitem que as igrejas legalmente reconhecidas celebrem casamento
religioso ao qual são atribuídos efeitos civis, desde que estejam conformes às normas
estipuladas na respetiva legislação vigente de direito matrimonial.

b) O princípio da liberdade de escolha da forma de constituir família e da dignidade dos


seus membros, segundo o qual assiste a cada pessoa o direito fundamental de constituir
família, sendo livre para escolher a forma como quer criar a sua própria família, pelo
casamento ou pela união de facto, ou até para a não criar, não sendo em qualquer dos casos
atingido na sua dignidade .

c) O princípio da igualdade de direitos e deveres entre o homem e a mulher em todos os


aspetos da vida família, princípio que tem a sua fonte no próprio direito constitucional, que o
assegura no seu art. 35.°, n.° 3ín). Este princípio é extensivo a todas as relações jurídicas
familiares, seja no casamento, na união de facto, nas relações entre pais e filhos e nos demais
institutos familiares.

Do princípio da igualdade de direitos no direito matrimonial deriva como princípio de ordem


pública, o princípio da monogamia ou monoandria, segundo o qual os laços conjugais têm
natureza exclusiva, não podendo aquele que se encontra no estado de casado, homem ou
mulher, contrair novo casamento, sob pena de cometer o crime de bigamia.

Quando se fala em igualdade de direitos e deveres não se quer impôr for¬çosamente a


existência de tarefas iguais do homem e da mulher dentro da família. Elas devem ser
repartidas de forma harmónica e equilibrada dentro do princípio da solidariedade que se deve
estabelecer entre os membros da família.

A lei deve abster-se de indicar qual o papel da mulher no seio da família, pois quando tal
acontece é para a colocar numa posição de subalternidade. Hoje a tendência é para
reconhecer que não basta a simples enunciação do princípios da igualdade de direitos, sendo
necessário obviar para que permaneçam as existentes desigualdades que se evidenciam em
todos os aspetos da vida política, social e económica, com desvantagem para a mulher.

É assim aceite o princípio da paridade que se propõe ir mais além, e transitoria¬mente vai
promover as denominadas «ações positivas», que gradualmente vão assegurando uma efetiva
paridade, ou seja uma futura igualdade, entre homem e mulher em todos os campos da vida
em sociedade.

d) O princípio da estabilidade, pelo qual se procura reforçar os laços familiares, dando


especial valor à manutenção da família de forma a estabelecer relações fortes e duráveis,
mantendo a sua união, tornando eficaz o direito-dever de ajuda mútua moral e material entre
os membros da família, na formação e educação dos filhos, na proteção dos membros idosos
ou deficientes, na prestação de alimentos, na restrição do direito ao divórcio, etc..

e) Proteção da criança em geral, como objeto primordial da atividade dos membros


adultos da família, assegurando os direitos fundamentais da criança como sujeito de direito, e
criando órgãos do Estado, como os tribunais, Procuradoria da República e de assistência social
que acima de tudo, procuram proteger os direitos da criança. A abolição da discriminação
entre crianças nascidas dentro ou fora do casamento, que data do fim do último quartel do
século XX, foi um passo decisivo nesse sentido. Ele vem hoje consagrado no art. 35.°, n.° 5 da
Constituição, como adiante melhor veremos.

Como corolário da concretização do direito à identidade, são facilitadas as ações para o


estabelecimento e impugnação de filiação que deixam de estar sujeitas a prazos de
caducidade.

Institui-se a adoção que deve sempre salvaguardar o interesse do menor adotado; carateriza-
se a tutela como instituto do direito público cujo fim em vista é a melhor proteção do menor
desprovido de proteção familiar. Em todos estes casos o Estado, através dos seus órgãos
judiciais e de assistência social, tem poderes para intervir nas relações intra-familiares, caso a
forma como são exercidos pelos titulares dos respetivos direitos, prejudique a criança.

f) Princípio da proteção do Estado à família. Pela relevância que a célula familiar tem na
sociedade, ela merece especial proteção por parte do Estado.

Essa proteção desenvolve-se em múltiplos aspetos, tais como a prestação de habitação, de


serviços de saúde, de educação, a atribuição de subsídios de segurança social em razão da
maternidade, incapacidade física ou velhice; a insti-tuição de órgãos especializados para ajudar
a resolver os conflitos familiares, os órgãos de mediação familiar, os tribunais especializados
de direito de família, etc..

Tudo isto procura preservar os vínculos familiares e a estabilidade social. No topo das questões
ligadas à família está a política demográfica de cada Estado que passa ou por incrementar o
planeamento familiar com vista ao controlo do crescimento da população ou pelo contrário,
incentivar o seu aumento atribuindo abonos e prémios às famílias numerosas.

A política demográfica de um respetivo Estado, pode contrariar o excesso de filhos, impondo


sanções fiscais e administrativas quando tal se verifique; ou ainda tomar uma posição de mera
neutralidade, deixando a questão ao arbítrio da cada cidadão. Certo é que o crescimento
descontrolado da população, sem que existam as condições básicas de acolhimento às crianças
que vão nascendo, mostra-se altamente negativo para o desenvolvimento sustentável do
Estado.

Na senda da proteção à maternidade e à criança, o Estado deve criar creches e jardins de


infância para benefício da criança e de seus pais. Em certos sistemas jurídicos prevê-se a
proteção dos indivíduos economicamente mais frágeis, por via do pagamento adiantado de
pensões de alimentos por parte do Estado, tendo este direito de regresso sobre o devedor.

Pode ainda o Estado conceder créditos aos jovens para terminarem a sua formação
profissional, ou ainda créditos aos jovens casais para aquisição de residência por meio de
abonos reembolsáveis. As medidas de natureza social ou patrimonial que o Estado pode tomar
são múltiplas e dependem do seu próprio estágio de desenvolvimento e da sua capacidade
económica.

Atualmente nota-se a tendência duma maior intervenção do Estado nas relações familiares,
visando não só a solução consensual dos conflitos familiares, como ainda a proteção dos
membros mais débeis da família, e sobretudo intervindo na defesa dos direitos da criança
quando se mostre que os titulares da autoridade paternal não estão a exercê-los de acordo
com a lei.

Em muitos aspetos deixou-se para trás o conceito de que a vida familiar era um reduto da
privacidade do cidadão, entendendo-se que há outros valores mais elevados que devem ser
protegidos. Há quem refira este fenómeno como a «desfuncionalização da família em virtude
da sociedade e do Estado terem assumido algumas das suas funções tradicionais, tais como a
função educativa, de assistência e de segurança. »(13)

Além disso o Estado não pode ficar indiferente perante o desagregar da célula familiar e a
rutura dos laços complexos que unem os membros da família pelo que em situações de crise,
deve procurar solucionar os conflitos e assim garantir uma maior estabilidade familiar que se
vai refletir na própria sociedade em si.

Neste campo, a atividade dos órgãos judiciais especializados (como os Tribunais de Família) e
dos órgãos para-judiciais (como os órgãos de mediação, de consulta familiar, centros de
diagnóstico, assistência social à família e outros) pode ter importante papel na prevenção e
solução dos conflitos familiares.
Entre nós, a Lei do Sistema Unificado de Justiça, aprovada pela Lei n.° 18/88, institui nos
Tribunais Provinciais as Salas de Família, com a competência que lhes é atribuída pelo art. 32.°:

«1. Compete à Sala de Família preparar e julgar os processos relativos à constituição, anulação,
alteração e dissolução das relaçõesjurídicas familiares e os respeitantes ao exercício de direitos
e deveres familiares, salvo os que por lei estejam afetos aos órgão do registo civil 2. Em
matéria de família o Tribunal Provincial não tem alçada.»

Entende-se como tribunal de competência especializada aquele que aprecia questões dentro
de determinada área do conhecimento jurídico com qualidade técnica específica. A relevância
dada às relações familiares é evidenciada pela instituição de tribunais de competência
especializada para apreciar os respetivos litígios.

De igual modo sobressai o facto de nas ações familiares a atuação do juiz ser acentuadamente
de intervenção direta na recolha da prova, podendo promover

(u) F. M. Pereira Coelho. Casamento e Família no Direito Português, in Temas de Direito de


Família, p. 26. Livraria Almedina, 1986.

ohciosamcntc atos judiciais que considere necessários para alcançar a verdade material, como
vem previsto no art. 7.° da Lei n.° 1/88.

Por outro lado o Procurador da República tem poderes de largo alcance nas ações familiares
que versem sobre os direitos da criança, devendo obrigatoriamente intervir em todas as ações
relativa a menores. A nova Lei Orgânica da Procuradoria Geral da República, Lei n.° 22/12 de
14 de agosto (D.R. n.° 156) integra o Ministério Público, com magistrados e estatuto próprio.
Ao Ministério Público é atribuída extensa competência no seu art.° 36.° e na alínea a),
coonferindo-lhe a representação do Estado, dos menores, incapazes, incertos e ausentes.

O Ministério Público tem a seu cargo a defesa dos direitos do menor de forma quer
preventiva quer repressiva, sendo-lhe ainda atribuída legitimidade para a propositura de
diversas ações em representação do menor. Como oportunamente veremos, estes poderes
vêm hoje igualmente consagrados na competência atribuída ao Ministério Público no art.
186.°, alínea b), da Constituição.

[7] Interligação do Direito de Família e outros ramos de Direito

0 direito de família está interligado a outros ramos de direito e as suas normas vão aí
repercutir-se. A ligação mais próxima é com o direito sucessório, cujas normas da sucessão
legítima lhe estão diretamente coorelacionadas.

O direito da proteção social à criança e ao jovem e o sistema de justiça juvenil estão


intrinsecamente ligados ao exercício da autoridade paternal pelos respetivos titulares.
Podemos hoje considerar que os direitos da criança se vêm autonomizando como ramo de
direito autónomo destacando-se do direito de família, de assistência social. Em Angola tem
sido dada particular atenção aos direitos da criança para cuja efetiva concretização foi
instituído pelo Dec. n.° 20/07 de 20 de abril o Conselho Nacional da Criança (CNAC) que
congrega diversos órgãos do Estado, da comunidade e da família.
Foi aprovada a Lei n.° 25/12 de 22 de agosto (D.R. n.° 162) Lei sobre a Proteção e
Desenvolvimento Integral da Criança, composta por XI Capítulos e 93 artigos de amplo
conteúdo programático e que atribui ao governo deveres e obrigações específicas nas suas
áreas de competência. Obrigações extensivas à família, às empresas públicas e privadas, ou de
agentes económicos e da sociedade civil.

A Lei da Pessoa com Deficiência, lei n.° 21/12 de 30 de julho (D.R. n.° 145) cujo âmbito de
aplicação é extensivo a toda a pessoa portadora de deficiência congénita ou adquirida, foi
igualmente aprovada. No seu art.° 10.° estabelece que compete ao Estado adoptar medidas
que proporcionem à família de pessoa com deficiência medidas que proporcionem a sua plena
participação e no art.° 16.° determina que o Estado tome medidas para conciliar a atividade
profissional do

deficiente com a vida familiar e bem assim dos familiares do deficiente com a respetiva
atividade profissional.

De igual modo, no direito penal vamos encontrar normas sancionadoras que têm origem na
violação de deveres familiares ou em condutas criminosas na prática de atos de natureza
familiar. O direito penal insere especificamente os denominados «crimes contra a família» que
punem as condutas que de forma grave violam deveres familiares.

A Lei contra a Violência Doméstica, Lei n.° 25/11 de 14dejulho(D.R.n.° 133) pune os factos
ocorridos no meio familiar ou outro, e criminaliza diversos tipos de violência sexual,
patrimonial, psicológica, verbal e física, o abandono familiar e condutas como a prática de
casamento com menores de 14 anos ou incapazes/15)

CAPÍTULO 2.°

FONTES FUNDAMENTAIS DO DIREITO DE FAMÍLIA

[8] O Direito Constitucional

Os princípios fundamentais em que se estrutura o direito de família têm normal¬mente


assento na própria Constituição do Estado, pois estão intrinsecamente ligados a toda a
conceção política estrutural de um determinado sistema jurídico. Isso acontece em quase
todas as constituições e leis fundamentais que consagram a importância social e política da
família.

Na primeira Lei Constitucional aprovada com a proclamação da Inde¬pendência, em 11 de


novembro de 1975, de natureza mais programática e orgânica, não se fazia qualquer menção à
família.

Foi primeiramente a Reforma Parcial da Lei Constitucional (aprovada pela Lei n.° 12/91) e
depois a Lei Constitucional aprovada pela Lei n.° 23/92 que vieram consagrar os princípios
fundamentais respeitantes à família e à criança nos seus artigos 29°, 30° e 31°.

O art. 29.°, n.° 1 desta Lei reconheceu que à família, como núcleo da organização da
sociedade, deve ser dada especial proteção por parte do Estado, quer ela se fimde em
casamento quer em união de facto.
Ao Estado é atribuída a obrigação de permitir aos seus cidadãos uma vida familiar normal. A
Lei garante expressamente a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, conferindo-lhes
os mesmos direitos e deveres no seio da família — art. 29.°, n.° 2. À família em colaboração
com o Estado, foi atribuída a obrigação de proteger e educar as crianças e jovens — art. 29.°,
n.° 3. O art. 30. conferiu à criança absoluta prioridade e foi dada a garantia da sua proteção
pela família, pelo Estado e pela sociedade. O art. 31.» consagrou o direito dos jovens à
efetivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais, a ser promovido pelo Estado pela
família e pela própria sociedade.

A atual Constituição no seu art. 35.° refere-se à família, ao casamento e filiação, o art. 80.° à
infância e o art. 81.° à juventude, como teremos ocasião de ver a propósito dos diversos
institutos.

A família é consagrada como «núcleo fundamental da sociedade e é objeto de especial,


proteção do Estado quer se funde em casamento quer em união de facto (...)» e «todos têm
direito de livremente constituir família (...)» — art. 35.°, n.°s l°e2°.

A Constituição atribui «absoluta prioridade à proteção dos direitos da criança, nomeadamente


ã sua educação integral e harmoniosa, à proteção da saúde, de condições de vida e ensino.» —
art. 35.°, n.° 6, pela família, pelo Estado e pela sociedade.

O direito à vida familiar, ou seja, o direito à integração da criança na família desde o seu
nascimento, é consagrado como um direito fundamental.

Estes princípios, consagrados como normas de direito constitucional, obrigam o legislador


ordinário, o que significa que o código de família tem que confirmar e desenvolver aqueles
princípios constitucionais. As normas que regem o direito de família estão estruturalmente
ligadas aos direitos fundamentais da pessoa humana e como tal constituem a pedra angular do
direito do cidadão em geral. São, portanto, protegidas ou pelo direito constitucional ou por
convenções internacionais.

É considerado como direito elementar de todo o ser humano, o direito de constituir família,
seja sob a forma de casamento seja por simples união de facto, de forma livre e consciente, e o
direito de, dentro da família, desenvolver a sua personalidade e as suas capacidades.

[9] O Direito Internacional e o Direito de Família

Os organismos internacionais, com especial relevância para a Organização das Nações Unidas,
têm contribuído de forma decisiva, nas últimas décadas, para a transformação dos princípios
norteadores do direito de família no sentido duma maior consagração do direitos da pessoa
humana e da elevação da sua dignidade, promovendo maior justiça social.

Esta nova conceção do direito de família está ela mesma intrinsecamente ligada aos princípios
fundamentais do direito à liberdade e do direito à igualdade inerentes à pessoa humana e que
se repercutem no seio da estrutura familiar, postergando estruturas familiares que se
traduziam em situações profundamente discriminatórias entre os membros da família. Desde
logo optou-se por dar primazia aos direitos que assistem à pessoa humana como tal, sobre os
direitos de certos membros da família que recaiam sobre os integrantes do seu grupo familiar.
A Carta das Nações Unidas proclamou, no seu Preâmbulo, a fé nos direitos humanos e a
igualdade de direitos entre homem e mulher, como princípio universal.

Por sua vez, a magna carta dos direitos humanos, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 10 de
dezembro de 1948, consagra, em relação à família (art. 16.°):

«1. A partir da idade núbil, homens e mulheres têm o direito de casar e de constituir família...
Têm direitos iguais quanto ao casamento, durante ele e no caso da sua dissolução.

2.0 casamento não pode ser celebrado sem o livre epleno consentimento dos futuros esposos.

3. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade, e tem direito à proteção


desta e do Estado. »

Esta norma além de consagrar o direito fundamental de constituir família, impõe como regra a
igualdade de direitos e deveres do homem e da mulher no casamento e vem opor-se ao
casamento forçado, muito comum em sociedades tradicionais, celebrado em idades
prematuras dos futuros esposos e imposto sem ou contra a vontade dos nubentes, que é
ajustado entre as famílias, selando o futuro do casal e em regra impedindo a jovem mulher de
prosseguir na sua formação escolar e profissional, reduzindo-a para sempre, a uma situação de
dependência.

O Pacto Internacional Relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, aprovado pelas
Nações Unidas em 16 de dezembro de 1996, reconhece no seu art. 10.° que:

«1. Uma proteção e uma assistência mais amplas possíveis serão proporcionadas à família que
é o núcleo natural e fundamental da sociedade, particularmente com vista à sua formação e
no tempo durante o qual ela tem responsabilidade de criar e educar os filhos. O casamento
deve ser livremente consentido pelos futuros esposos.

2. Uma proteção especial deve ser dada às mães durante um tempo razoável antes e
depois do nascimento das crianças (...).

3. Medidas especiais de proteção e de assistência devem ser tomadas em benefício de


todas as crianças e adolescentes, sem discriminação alguma derivada de razões de
paternidade ou outras (...).»

Além do apoio que os Estados devem dar à família e de se reafirmar o direito à liberdade de
casar, consagra-se neste artigo o dever do Estado proteger a educação das crianças, sem
discriminação em razão do nascimento e de proteger a mulher durante a gravidez.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aprovado igualmente em 16 de


dezembro de 1966 no seu art. 23.°, além de reafirmar os importantes

princípios já consagrados, dispõe :

«1. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem o direito à proteção da


sociedade e do Estado.
2. 0 direito de casar e defundar uma família é reconhecido ao homem e à mulher a partir
da idade núbil.

3. Nenhum casamento pode ser concluído sem o livre epleno consentimento

dos futuros esposos.

4. (...) igualdade de direitos e das responsabilidades dos esposos em relação ao


casamento, durante a constância do matrimónio e aquando da sua dissolução. Em caso de
dissolução, serão tomadas disposições a fim de assegurar aosfilhos a proteção necessária.»

São normas cuja importância não é demais realçar e que incidem sobre os institutos familiares
estruturantes que adiante estudaremos.

A Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação da Mulher, aprovada


pelas Nações Unidas em 18 de dezembro de 1979, a que Angola aderiu pela Resolução n.°
15/84 da Assembleia do Povo, consagra o seu art. 16.° especificamente ao direito de família da
forma seguinte, assegurando:

«1. (...) com base na igualdade dos homens e das mulheres:

a) 0 mesmo direito de contrair casamento.

b) (...) só contrair casamento de livre eplena vontade.

c) Os mesmos direitos e responsabilidades na constância do casamento e aquando da


dissolução do casamento, e (...)

d) (...) enquanto pais, seja qual for o seu estado civil, para (decidir) as questões relativas
aos seusfilhos, e (...)

e) (...) decidir livremente e com todo o conhecimento de causa, do número e do


espaçamento dos nascimentos.

f) (Os mesmos direitos) em matéria de tutela, curatela, guarda e adoção das crianças (...)

g) Os mesmos direitos pessoais ao marido e à mulher, incluindo o que respeita à escolha


do nome de família, de uma profissão e de uma ocupação.»

Esta Convenção estatui sobre as diversas formas de que se reveste a discriminação contra a
mulher e ao focalizar as relações no seio da família vai impondo que elas sejam combatidas e
ilegalizadas nos diversos sistemas jurídicos e para tal impõe novos princípios e regras
obrigatórios.

A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, aprovada pela Orga¬nização da Unidade
Africana em 1981 e ratificada pela Resolução da Assembleia do Povo n.° 1/91, consagra o seu
art. 18.° à família.

«ARTIGO 18.°

1. A família é o elemento natural e a base da sociedade.


2. (...) assistir à família na sua missão de guardiã da moral e dos valores tradicionais (...)

3. (...) velar pela eliminação de todas as discriminações contra a mulher e de assegurar a


proteção dos direitos da criança (...)»

Enaltcce-se o valor cultural da família sem embargo da obrigação dos Estados porem fim a
todas as formas de discriminação contra a mulher e de protegerem os direitos da criança.

A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, aprovada pelas Nações Unidas em 20


de novembro de 1989 e ratificada pela Resolução n.° 20/90 da Assembleia do Povo, reserva os
seus artigos 7o, 8o e 9o, ao direito de toda a criança a uma cidadania e às relações familiares,
impondo o seguinte:

«Art. 7.°

1. A criança é registada imediatamente após o nascimento e tem desde o nas¬cimento, o


direito a um nome, o direito a uma nacionalidade e sempre que possível, o direito de conhecer
os seus pais.

Art. 8.°

1. (...) o direito a preservara sua identidade incluindo a sua nacionalidade, o nome e


relações familiares (...)

Art. 9.°

1. (...) a garantir que a criança não é separada de seus pais contra vontade destes (...) sem
prejuízo de decisão judicial.»

A Carta Africana dos Direitos e do Bem Estar da Criança aprovada em 1990 e ratificada por
Angola em abril de 1992, determina o seguinte:

«Art. 18.°

1. A família é a bíise natural da sociedade (...)

2. (...) (se) tomarão medidas apropriadas para assegurar a igualdade de direitos e


responsabilidades dos cônjuges perante as crianças durante o casa¬mento e durante a sua
dissolução (...)

3. Nenhuma criança pode ser privada de meios para a sua manutenção em razão do
estatuto matrimonial dos seus pais.

Art. 19.°

1. Qualquer criança tem direito à proteção e aos cuidados de seus pais e se possível
residir com eles (...) salvo se autoridade judiciária decidir (...) que essa separação é no próprio
interesse da criança.

2. Qualquer criança separada de um dos pais ou dos dois, tem direito a manter
regularmente relações pessoais e contatos diretos com ambos os pais.»
A nível da organização regional Comunidade para o Desenvolvimento dos Países da África
Austral (SADC) de que Angola é membro, foi adotado em 17 de agosto de 2008 e aprovada
pela Resolução n.° 30/10 de 6 de setembro da Assembleia Nacional, o Protocolo sobre o
Género e Desenvolvimento que contém normas sobre Casamento e Direitos da Família (art.
8.°) Direitos de Viuvez das Mulheres e dos Homens (art. 10.°) e Crianças do Sexo Feminino e
Masculino (art. 11.°).0)

(,) ARTIGO 8.°

CASAMENTO E DIREITOS DA FAMÍLIA

1. Os Estados Partes deverão decretar e adotar medidas legislativas, administrativas e


outras apropriadas para garantir que as mulheres e os homens gozem de direitos iguais no
casamento e sejam considerados parceiros iguais no casamento.

2. A legislação sobre o casamento deverá garantir que:

a) nenhuma pessoa com idade inferior a 18 anos contraia casamento, salvo disposição
em contrário expressa na lei, atendendo sempre ao melhor interesse e bem-estar da criança.

b) todos os casamentos sejam celebrados com o livre e pleno consentimento de ambas as


partes.

c) todos os casamentos, incluindo os civis, religiosos e tradicionais tenham um assento


lavrado cm conformidade com as leis nacionais.

d) enquanto durar o seu casamento, as partes tenham direitos e deveres recíprocos para
com os seus filhos, sempre no supremo interesse destes.

3. Os Estados Partes deverão decretar e adotar medidas legislativas c de outra índole


apropriadas para garantir que os cônjuges, cm caso de separação, divórcio ou anulação do seu
casamento:

a) tenham direitos e deveres recíprocos para com os seus filhos, sempre no superior
interesse destes;

b) sujeitos à escolha de qualquer regime ou contrato matrimonial, tenham uma porção


equitativa de qualquer propriedade adquirida durante a sua relação.

4. Os Estados Partes deverão decretar medidas legislativas e outras, tendentes a


assegurar que as mães e os pais honrem o seu dever de cuidar dos filhos e sejam aplicadas
decisões em matéria de obrigação alimentar.

5. Os Estados Partes deverão estabelecer disposições legais para assegurar que as


mulheres c homens casados tenham o direito de optar pela manutenção da sua nacionalidade
ou pela aquisição da nacionalidade do seu cônjuge.

Trata-se de matéria de conteúdo muito atualizado que é dirigido cspeci- ficamente contra
situações sociais que a nível das relações familiares destes países da África Austral se mantêm
e que sáo francamente atentórias dos princípios estruturantes dos direitos humanos.
ARTIGO 10.°

DIREITOS DE VIUVEZ DAS MULHERES E HOMENS

1. Os Estados Partes deverão promulgar legislação e fazê-la cumprir, de modo a garantir


que:

a) as viúvas não sejam sujeitas a tratamento desumano, humilhante ou degradante;

b) salvo determinação em contrário por um tribunal competente, a viúva se tome


automaticamente encarregada de educação dos seus filhos e tenha a custódia dos mesmos em
caso de morte do esposo;

c) a viúva tenha direito a viver na casa matrimonial após a morte do esposo

d) a viúva tenha acesso a emprego e a outras oportunidades para que possa prestar um
contributo significativo à sociedade;

e) a viúva tenha direito a uma porção equitativa na herança do seu esposo;

f) a viúva tenha direito de voltar a casar-se com qualquer outra pessoa de sua escolha; e

g) a viúva esteja protegida contra todas as formas de violência e discriminação em razão


da sua condição.

2. Os Estados Partes deverão adotar medidas legislativas para assegurar que os viúvos
gozem dos mesmos direitos que as viúvas nos termos do n.° 1 do presente artigo.

ARTIGO 11.°

CRIANÇAS DO SEXO FEMININO E MASCULINO

1. Os Estados Partes deverão adotar leis, políticas e programas para garantir o


desenvolvimento e proteção de meninas:

a) eliminando todas as formas de discriminação contra as meninas a nível da família, da


comunidade, de instituições do Estado;

b) assegurando que as meninas tenham igual acesso à educação e a cuidados de saúde e


não sejam submetidas a tratamento algum que lhes faça desenvolver uma auto- -imagem
negativa;

c) assegurando que as meninas gozem dos mesmos direitos que os meninos e sejam
protegidas de atitudes e práticas culturais danosas, em conformidade com a Convenção das
Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e a Carta Africana sobre os Direitos e o Bem-Estar
da Criança;

d) protegendo as meninas da exploração económica, do tráfico de seres humanos e de


todas as formas de violência, incluído abuso sexual;
e) assegurando que as meninas tenham acesso a informação, a educação, a serviços c a
facilidades na área da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos.

2. Os Estados Partes deverão adotar medidas legislativas e outras para assegurar que os
meninos gozem dos mesmos direitos que as meninas nos termos do n.° 1 do presente artigo.

Aliás por força do preceito consagrado no art. 26.°, n.° 2, da Constituição os «preceitos
constitucionais e relativos aos direitos fundamentais e legais devem ser interpretados e
integrados» de acordo com os princípios a que nos referimos.

Importa reter que pelo disposto no art. 21.°, n.° 3, da Lei Constitucional, se consideravam
como vigentes na ordem jurídica interna os princípios dos instrumentos internacionais de que
Angola fazia parte «ainda que não sejam invocados pelas partes».

Hoje em dia este princípio vem reproduzido no art. 26.°, n.° 3, da Constituição, que em matéria
de direitos fundamentais manda aplicar «os instrumentos internacionais ainda que não sejam
invocados pelas partes ».

De especial relevância é a questão da garantia de que os direitos fundamentais da pessoa


humana já consagrados nesses instrumentos, não possam ser postergados ou atingidos por via
de outros valores que com eles se não compadeçam, designadamente por práticas do direito
costumeiro que vindas duma sociedade marcada pelo hegemonia masculina, são contrárias
aos direitos humanos da mulher e se refletem no desenvolvimento global dum pais.

Aliás o direito à igualdade de direitos de todo o ser humano, e portanto o da não


discriminação, seja porque razão for, além da repercussão que tem em direitos de toda a
natureza, é também invocado pelos homossexuais como fundamento para o reconhecimento
legal das suas uniões, alegando que não podem ser objeto de discriminação «em razão da sua
orientação sexual».®

[10] Acordo bilateral em matéria de Direito de Família

Em matéria de direito de família Angola não tem até ao presente celebrado acordos nem de
âmbito bilateral, regional ou internacional, sem embargo do facto de existirem múltiplos laços
familiares entre cidadãos angolanos e doutras nacionalidades.

A única exceção foi a do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre Angola e Portugal
celebrado em 30 de agosto de 1995, que incide sobre o «Reconhecimento e Execução de
Decisões Relativas a Obrigações Alimentares» a que nos referiremos a propósito do instituto
dos alimentos.

No entanto já foram firmados acordos internacionais a nível da SADC e da CPLP na área do


direito penal e processual penal.

Pela Resolução n.° 27/10 de 6 de setembro foi ratificada a Convenção sobre a transferência de
pessoas condenadas; pela Resolução n.° 28/10 da mesma

(2 Maria do Carmo Medina. «Direitos Humanos e Direito de Família». Revista da Faculdade de


Direito da Universidade Agostinho Neto, n.° 4, p. 127.
data foi ratificada a Convenção sobre Extradição e a criação de uma Rede de Cooperação
Jurídica e Judiciária Internacional entre os Estados membros. Todas estas Convenções tinham
sido assinadas pelos Estados da CPLP, na cidade da Praia, Cabo Verde, em novembro de 2005.

[11] Direito Internacional Privado em Direito de Família

O significativo aumento das relações familiares entre cidadãos de diversos países não só
dentro dos diversos continentes mas a nível de todo o globo, têm tornado urgente que os
estados envolvidos tracem normas legais que protejam os seus cidadãos e estabeleçam regras
de procedimento.

No campo do direito internacional privado e no da unificação das normas de direito de família


dos diferentes Estados, tem vindo a ser desenvolvido um grande esforço no sentido da solução
do conflito de leis e da criação de normas comuns de direito de família.

Os Estados compreendem que cada vez mais se torna necessário regular de forma harmoniosa
as relações familiares que se estabelecem entre cidadãos de nacionalidades diferentes.

O principal trabalho neste campo tem sido desenvolvido pela Conferência Diplomática de Haia,
a cuja iniciativa se deve a adoção de importantes convenções em matéria de direito de família.

Podemos citar, entre outras, a Convenção relativa ao Reconhecimento e Execução de Decisões


sobre Obrigações Alimentares e a Convenção sobre a Lei Aplicável às Obrigações Alimentares,
ambas de 1973, a Convenção sobre o Reconhecimento dos Divórcios e Separações de Pessoas,
aprovada em 1970, a Convenção sobre Regimes Matrimoniais e a Convenção sobre a
Celebração e Reconhecimento da Validade do Casamento, ambas de 1978.

Teremos ocasião de nos referirmos a duas importantes convenções a propósito do estudo da


autoridade paternal e da adoção.

Desde já indicamos como de grande alcance internacional foi a aprovação da Convenção sobre
os Aspetos Civis do Rapto Internacional da Criança, (1980). Esta Convenção incide sobre a
subtração internacional de menores, ou seja sobre sequestro de menores que são retirados do
seu local de residência habitual onde estão à guarda de pessoa física ou jurídica, que sobre
eles exercia um legítimo direito de custódia e são levados para fora do país à sua revelia. A
mesma convenção aplica-se igualmente quando o menor não é devolvido ao seu lugar de
residência habitual após ter saído do país para que o titular do direito de visita o tenha em sua
companhia. Tem especial incidência nos casos cada vez mais frequentes,

de casais mistos, de distintas nacionalidades, que após a separação disputam entre si a posse
de filhos nascidos da sua união. As autoridades dos Estados parte desta Convenção cooperam
entre si no sentido duma imediata comunicação do traslado ilícito do menor ou da sua
retenção ilícita, para que ele seja devolvido ao seu local de residência e entregue à pessoa que
legitimamente tem a sua guarda. Esta Convenção tem tido grande sucesso na sua aplicação
prática e procura pôr fim a situações dramáticas de abrupta separação de menores do seu
meio normal familiar.
A Convenção sobre a Proteção da Criança e a Cooperação em matéria de Adoção Internacional
(1993) tem tido do mesmo modo, grande relevância em matéria de adoção internacional, para
a proteção administrativa e judicial da criança que é levada para fora do seu país de origem
para o país do adotante e igualmente para impedir que a adoção oculte um negócio financeiro
subjacente, ou propicie o tráfico internacional de crianças.

Angola não é membro desta organização internacional mas aderiu a esta Convenção pela
Resolução n.° 54/12 de 14 de dezembro de 2012 do (D.R. da Assembleia Nacional n.° 239), que
aliás têm vindo a revelar-se de grande efetividade prática em delicadas questões familiares.

Ao nível da Europa foram aprovadas a Convenção do Luxemburgo sobre o «Reconhecimento e


a Execução de Decisões Relativas à Direito de Guarda dos Filhos e seu Restabelecimento»
(1980) e a Convenção de Roma sobre «Obrigações Alimentares» (1990). Em 28 de maio de
1998 foi assinada a Convenção Europeia de Direito de Família que vincula os países que fazem
parte da União Europeia. Em setembro de 2001 foi constituída a Comissão de Direito de
Família Europeu, cujos trabalhos de forma mais alargada, visam a formulação dum direito
comum aos diversos países desse continente.

Também ao nível da Organização dos Estados Americanos têm sido adotadas diversas
convenções sobre os direitos humanos e o direito de família, tais como a «Convenção
lnteramericana sobre Obrigações Alimentares», aprovada em Montevidéu em 1989, e a
«Convenção lnteramericana sobre o Regresso Internacional de Menores», que trazem medidas
de grande alcance em matéria de obrigação alimentar devida a menores e sobre o exercício da
autoridade paternal no caso de os respetivos titulares viverem em estados diferentes.

Não temos conhecimento de que, sob a égide da Organização de Unidade Africana, tenha sido
aprovada qualquer convenção em matéria de direito de família. Salvo o Acordo Bilateral acima
referido e que incide sobre a matéria muito restrita da obrigação de alimentos, pois não
abrange sequer o direito de guarda dos filhos e pese embora a existência de vínculos familiares
com países

como Portugal, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe integrantes da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa (CPLP), não foi adotada qualquer convenção comum a esses Estados em
matéria de direito de família.

Igualmente ao nível da Comunidade dos Países da África Austral (SADC) países vizinhos entre
cujos nacionais são criadas relações familiares, ainda se não obteve qualquer instrumento
internacional para a resolução das questões que se põem nessas relações entre os cidadãos
dos diferentes Estados da região, o que, dado o seu estreitamento se vai tornando cada vez
mais necessário.
CAPÍTULO 3.0

FONTES DO DIREITO DE FAMÍLIA

ANGOLANO

[12] O direito colonial. A dualidade de estatutos: o indígena e o cidadão de pleno direito. O


direito escrito e o direito costumeiro

A estrutura da sociedade colonial no campo do direito de família estabelecia o princípio da


diferença de estatutos jurídicos: de um lado, o estatuto dos cidadãos de pleno direito (que
eram os colonizadores e escassos «assimilados»); de outro lado, o estatuto dos denominados
«indígenas»(l). A lei previa, aliás, para cada colónia um estatuto «especialmente promulgado
para cada uma delas» . Os designados «indígenas» eram definidos como «os indivíduos de
raça negra ou seus descendentes que tivessem nascido ou vivido habitual mente nelas, ou
seja, na Guiné, em Angola ou em Moçambique , os quais se encontravam numa situação de
verdadeira tutela legal.

Era assim aplicado um duplo sistema legal, pois os primeiros, os cidadãos de pleno direito,
estavam sujeitos às normas de direito escrito privado no que concerne ao direito de família,
enquanto que os segundos, os indígenas, regiam-se pelo direito costumeiro, limitado embora
pelos princípios fundamentais do sistema

jundico vigente. A verdade, porém, é que no período colonial os princípios de ordem pública
vigentes incidiam principalmente sobre a proteção dos interesses políticos e económicos do
colonizador e, tanto quanto as estruturas familiares não colidissem com aqueles interesses,
foram mantidas intatas, tal como ocorreu com a poligamia, o casamento sem o consentimento
da mulher, etc..

O primeiro Código Civil, conhecido por Código de Seabra, publicado em 1867 e tornado
extensivo às colónias em 1869, mandava já, relativamente a Angola, ressalvar os usos e
costumes das regedorias, além de mandar aplicar transitoriamente legislação especial.

Abolido o vergonhoso sistema do indigenato em 1961, fruto aliás do deflagrar da luta armada
de libertação nacional, foi no entanto mantida a dualidade de estatutos de direito pessoal, que
se passaram a designar como Estatuto do Direito Escrito e Estatuto dos Usos e Costumes
Locais.(5

Aos agora denominados «vizinhos de regedorias» continuavam a ser aplicados os usos e


costumes locais com as já apontadas limitações, mas permitia-se a todo o indivíduo fazer
declaração irrevogável perante os serviços do registo e identificação de que se submetia à lei
escrita do direito privado.
Por sua vez, o direito escrito privado, como era designado, também foi sendo alterado, e em
1910, com a proclamação da República, foram introduzidas importantes reformas ao Código
Civil do século XIX.

A Lei do Divórcio, de 3 de novembro de 1910, veio permitir a dissolução do casamento por


divórcio, tanto sob a forma de divórcio litigioso como sob a forma de divórcio por mútuo
consentimento. A Lei n.° 1, de 25 de dezembro de 1910, ocupa-se do casamento, conferindo
validade tão somente ao casamento civil. A Lei n.° 2, de 25 de dezembro de 1910 (lei da
Proteção dos Filhos) versa sobre o direito de filiação.

Entretanto, foi celebrada entre Portugal e a Santa Sé uma Concordata (Maio de 1940), que
trouxe importantes alterações em matéria de direito de família, designadamente quanto à
validade do casamento canónico, à renúncia ao direito ao divórcio e à atribuição do
conhecimento das causas relativas à nulidade do casamento católico aos tribunais
eclesiásticos.

A Concordata só entrou em vigor nas antigas colónias cerca de seis anos depois, pelo Decreto
n.° 35 461, de 22 de janeiro de 1946, mas com diversas adaptações/ *

O segundo Código Civil Português, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 47 344, entrou em vigor
nas antigas colónias por força da Portaria n.° 22 869, a partir de 1 de janeiro de 1968. O seu
Título IV é dedicado exclusivamente ao direito de família e nele se espelham as conceções
retrógradas das relações jurídicas familiares, quer no campo das relações matrimoniais (em
que é reconhecido o poder marital do marido sobre a mulher, o poder exclusivo deste como
administrador dos bens do casal), quer no campo das relações de filiação, discriminando os
filhos legítimos dos ilegítimos (com importantes restrições para estes últimos no campo dos
direitos pessoais e sucessórios) e atribuindo ao pai, nas relações paterno-filiais, poderes
prevalecentes, aparecendo a mãe como mera conselheira/ '

Toda esta matéria foi profundamente reformulada em Portugal depois do 25 de abril, com a
publicação do Decreto-Lei n.° 496/77, fruto das transformações políticas e económicas
operadas naquele país, que afastaram os anteriores princípios discriminatórios. Aliás o direito
português tem sofrido constante alterações, modernizando-se nos seus conceitos e
procedimentos, com profundas alterações designadamente em matéria de direito de família.

[13] O Direito Positivo Angolano posterior à Independência Nacional

Com a proclamação da Independência nacional e a aprovação da primeira Lei Constitucional,


foi instituído um novo sistema jurídico e as normas de caráter discriminatório contidas no
Código Civil passaram a ser consideradas derrogadas por inconstitucionais.

Aliás, por via do preceituado no art. 84.° dessa Lei, que norteava quanto à legislação vigente
vinda do sistema jurídico colonial, tinha que se entender como revogada toda a legislação que
contrariasse o processo revolucionário angolano.
No entanto, no campo do direito de família foram publicadas uma série de leis de relevante
importância que, em questões fundamentais, vieram alterar a legislação colonial naquilo que
se mostrava mais antagónico à nova realidade angolana.

Foram sendo aprovadas, sucessivamente, as seguintes íeis:

1 — Lei n.° 53/76, de 2 de julho, que afastou a aplicação das normas da Concordata,
permitindo a dissolução dos casamentos católicos celebrados em Angola ou entre angolanos;
autorizou a conversão da separação de pessoas e bens em divórcio e aditou novos
fundamentos ao pedido de divórcio.

2 — Lei n.° 10/77, de 9 de abril, que equiparou os direitos e deveres de todos os filhos
em relação a seus pais, qualquer que seja o estado civil destes, proibiu qualquer referência à
qualidade de filho legítimo ou ilegítimo e decretou a abolição do termo «incógnito»
relativamente à situação de paternidade ou de maternidade. Continha ainda normas quanto à
composição do nome e do registo civil dos cidadãos.

3 — Lei n.° 9/78, de 26 de maio, com as respetivas retificações publicadas em 29 de


julho de 1978, que versava sobre o divórcio por mútuo consentimento e revogou os arts.
1786.° a 1788.° do Código Civil e os arts. 1419.° a 1424.° do Código do Processo Civil.

4 — Lei n.° 7/80, de 27 de agosto (Lei da Adoção e Colocação de Menores), que revogou
todo o Título IV do Livro IV do Código Civil (arts. 1973.° a 2003.°), respeitante à matéria da
adoção.

5 — Lei n.° 10/85, de 10 de outubro, sobre a composição do nome, que alterou o art. l.°
da Lei n.° 10/77.

6 — Lei n.° 11/85, de 28 de outubro, que aprovou a Lei do Ato do Casamento e que
concedeu unicamente validade aos casamentos celebrados perante os órgãos do registo civil.
No rigor da lei, os casamentos canónicos só deixaram de ter validade a partir da publicação
desta lei, mas vinha sendo prática de há anos não serem celebrados casamentos canónicos
sem a prévia celebração do casamento civil. Continha ainda normas sobre o processo de
casamento, simplificando-as, e revogou diversos artigos do Código Civil.

7 — Decreto n.° 14/86 de 2 de agosto (Diário da República, n.° 61), que veio
regulamentar a Lei n.° 10/85 e que aprovou o Regulamento do Ato do Casamento, revogando
diversas disposições do Código do Registo Civil. Este Decreto continua ainda em vigor, mesmo
após a publicação do Código de Família, que trouxe algumas alterações à Lei n.° 11/85, pelo
que carece de ser devidamente adaptado.

Há ainda que ter em conta que permanecem parcialmente em vigor alguns diplomas vindos do
ordenamento jurídico colonial, que não foram expressamente revogados.

São eles os seguintes:

O Código do Registo Civil, aprovado após as reformas introduzidas pelo Código Civil, foi
publicado pelo Decreto-Lei n.° 47 678, de 5 de maio de 1967 e
foi tomado extensivo às ex-colónias pela Portaria n.° 23 101 (.Boletim Oficial de 30-12-1967,7.®
suplemento). Nessa portaria indicava-se que o código vigoraria como lei subsidiária, até que
fosse publicada lei do registo civil própria, o que, porém, nunca chegou a acontecer.

Depois da Independência, em matéria de registo civil foram publicados alguns diplomas que
visavam facilitar a prática de certos atos de registo civil, sendo o mais relevante o Decreto n.°
91/81, de 25 de novembro, sobre o registo de angolanos nascidos no estrangeiro e sobre a
justificação de óbito.

0 Estatuto de Assistência Jurisdicional aos Menores, aprovado pelo Decreto n.° 417/71,
de 29 de setembro, que definia a jurisdição de menores no domínio da prevenção criminal e
das providências cíveis aplicáveis no âmbito do direito familiar, foi profundamente alterado
pela publicação do Código da Família e parcialmente revogado pelo Código de Processo do
Julgado de Menores aprovado pelo Decreto n.° 6/03 de 28 de janeiro que no seu art. 86.®
dispõe: «Fica revogado o Decreto n.0 417/71 de 21 de setembro, exceto quanto às disposições
respeitantes aos processos cíveis que ainda estejam em vigor (...)». Este diploma contem ainda
normas vigentes em matéria de processo relativa ao direito das relações paterno filiais.

Mais recentemente foi publicado o Decreto n.® 31/07 de 14 de maio a que adiante nos
referiremos.

[14] Antecedentes históricos do novo Código de Família, sua sistemática

a) Antecedentes Históricos

A Assembleia do Povo foi institucionalizada em 1980 e logo nos seus primeiros trabalhos este
órgão supremo do poder do Estado, reconheceu a necessidade imperiosa de proceder a uma
revisão de fundo em matéria de direito de família, a despeito das dificuldades que tal tarefa
representava para um país com limitados recursos técnico-jurídicos.

Surgiu assim a Resolução da Assembleia do Povo n.° 2/82, de 12 de fevereiro, que decidiu
mandar proceder:

1 — À recolha de materiais sobre o casamento, a filiação, o divórcio, as sucessões e


outros para a compreensão do direito costumeiro a nível de todo o país, devendo eles ser
remetidos à Faculdade de Ciências Jurídicas e Administrativas.

1 — Lei n.° 53/76, de 2 de julho, que afastou a aplicação das normas da Concordata,
permitindo a dissolução dos casamentos católicos celebrados em Angola ou entre angolanos;
autorizou a conversão da separação de pessoas e bens em divórcio e aditou novos
fundamentos ao pedido de divórcio.

2 — Lei n.° 10/77, de 9 de abril, que equiparou os direitos e deveres de todos os filhos
em relação a seus pais, qualquer que seja o estado civil destes, proibiu qualquer referência à
qualidade de filho legítimo ou ilegítimo e decretou a abolição do termo «incógnito»
relativamente à situação de paternidade ou de maternidade. Continha ainda normas quanto à
composição do nome e do registo civil dos cidadãos.
3 — Lei n.° 9/78, de 26 de maio, com as respetivas retificações publicadas em 29 de
julho de 1978, que versava sobre o divórcio por mútuo consentimento e revogou os arts.
1786.° a 1788.° do Código Civil e os arts. 1419.° a 1424.° do Código do Processo Civil.

4 — Lei n.° 7/80, de 27 de agosto (Lei da Adoção e Colocação de Menores), que revogou
todo o Título IV do Livro IV do Código Civil (arts. 1973.° a 2003.°), respeitante à matéria da
adoção.

5 — Lei n.° 10/85, de 10 de outubro, sobre a composição do nome, que alterou o art. l.°
da Lei n.° 10/77.

6 — Lei n.° 11 /85, de 28 de outubro, que aprovou a Lei do Ato do Casamento e que
concedeu unicamente validade aos casamentos celebrados perante os órgãos do registo civil.
No rigor da lei, os casamentos canónicos só deixaram de ter validade a partir da publicação
desta lei, mas vinha sendo prática de há anos não serem celebrados casamentos canónicos
sem a prévia celebração do casamento civil. Continha ainda normas sobre o processo de
casamento, simplificando-as, e revogou diversos artigos do Código Civil.

7 — Decreto n.° 14/86 de 2 de agosto (.Diário da República, n.° 61), que veio
regulamentar a Lei n.° 10/85 c que aprovou o Regulamento do Ato do Casamento, revogando
diversas disposições do Código do Registo Civil. Este Decreto continua ainda em vigor, mesmo
após a publicação do Código de Família, que trouxe algumas alterações à Lei n.° 11/85, pelo
que carece de ser devidamente adaptado.

Há ainda que ter em conta que permanecem parcialmente cm vigor alguns diplomas vindos do
ordenamento jurídico colonial, que não foram expressamente revogados.

São eles os seguintes:

O Código do Registo Civil, aprovado após as reformas introduzidas pelo Código Civil, foi
publicado pelo Decreto-Lei n.° 47 678, de 5 de maio de 1967 e

foi tornado extensivo às ex-colónias pela Portaria n.° 23 101 (.Boletim Oficial de 30-12-1967,7.°
suplemento). Nessa portaria indicava-se que o código vigoraria como lei subsidiária, até que
fosse publicada lei do registo civil própria, o que, porém, nunca chegou a acontecer.

Depois da Independência, em matéria de registo civil foram publicados alguns diplomas que
visavam facilitar a prática de certos atos de registo civil, sendo o mais relevante o Decreto n.°
91/81, de 25 de novembro, sobre o registo de angolanos nascidos no estrangeiro e sobre a
justificação de óbito.

0 Estatuto de Assistência Jurisdicional aos Menores, aprovado pelo Decreto n.° 417/71,
de 29 de setembro, que definia a jurisdição de menores no domínio da prevenção criminal e
das providências cíveis aplicáveis no âmbito do direito familiar, foi profundamente alterado
pela publicação do Código da Família e parcialmente revogado pelo Código de Processo do
Julgado de Menores aprovado pelo Decreto n.° 6/03 de 28 de janeiro que no seu art. 86.°
dispõe: «Fica revogado o Decreto n.0 417/71 de 21 de setembro, exceto quanto às disposições
respeitantes aos processos cíveis que ainda estejam em vigor (...)». Este diploma contem ainda
normas vigentes em matéria de processo relativa ao direito das relações paterno filiais.

Mais recentemente foi publicado o Decreto n.° 31/07 de 14 de maio a que adiante nos
referiremos.

[ 14] Antecedentes históricos do novo Código de Família, sua sistemática

a) Antecedentes Históricos

A Assembleia do Povo foi institucionalizada em 1980 e logo nos seus primeiros trabalhos este
órgão supremo do poder do Estado, reconheceu a necessidade imperiosa de proceder a uma
revisão de fundo em matéria de direito de família, a despeito das dificuldades que tal tarefa
representava para um país com limitados recursos técnico-jurídicos.

Surgiu assim a Resolução da Assembleia do Povo n.° 2/82, de 12 de fevereiro, que decidiu
mandar proceder:

2 — À elaboração de projetos de lei sobre filiação e processo de casamento.

3 — À elaboração de legislação sobre o divórcio (ser concedido quando o

casamento tenha perdido o seu sentido) e sobre as uniões de facto.

4 — A elaboração de novas leis que revogassem a legislação que, no

domínio do direito de família, fosse discriminatória cm relação à mulher.

Entretanto, no ano seguinte, pela Resolução n.° 1 /83, de 18 de março, a Assembleia do Povo
concluiu que «pelos trabalhos apresentados se pode constatar que a comparticipação definida
não é a mais desejável, não só porque impede uma visão de conjunto mas também porque (...)
iria dificultar a sua aplicação» e, consequentemente, decidiu que até ao fim do l.° trimestre de
1983 se elaborasse um projeto global de Lei de Família.

Esse trabalho foi efetivamente realizado e o projeto do Código de Família, depois de


devidamente elaborado, foi apreciado no âmbito da Comissão dos Assuntos Constitucionais e
Jurídicos da Assembleia do Povo.

A formulação de um novo Código de Família justificava-se por diversas razões.

Por um lado, ele veio integrar num só diploma o conjunto das normas deste ramo de direito,
com todos os benefícios que derivam da codificação das leis.

Ele trouxe igualmente a sistematização, clareza e acessibilidade do texto legal ao cidadão


comum, o que constitui uma caraterística do direito de inspiração socialista.

Note-se que não se trata da codificação de normas de direito já existentes, de uma simples
compilação de leis anteriores, mas antes da formulação de um novo direito baseado em novos
princípios, orientados para uma visão criadora de novas regras de conduta que, por sua vez,
irão exercer uma influência determinante no meio social.
Como vem expresso no Preâmbulo do Código de Família, procurou-se, através dele, contribuir
para um novo relacionamento familiar livre da opressão e da discriminação. Ele visou
estabelecer um novo tipo de relações no grupo familiar, orientado no sentido da solidariedade
e da assistência recíproca entre os seus membros e, simultaneamente, no respeito pela
individualidade e dignidade pessoal de cada um deles.

O Código tem ainda uma função eminentemente política, no sentido da uniformização


do tratamento jurídico das relações sociais, agora tratadas de forma unitária para todos os
cidadãos do País.

Uma vez elaborado o Projeto de lei de Código de Família, foi apresentado à Sessão da
Assembleia do Povo que teve lugar em junho de 1984 e, em razão

da importância desse diploma na vida dos cidadãos, foi então decidido que o mesmo fosse
submetido à consulta popular, no âmbito da previsão legal contida no art. 45.° do respetivo
Regimento.

A consulta popular processou-se em todo o País, tendo o projeto sido discutido nas diversas
Comissões da Assembleia do Povo, dos Assuntos Constitucionais e Jurídicos, da Educação,
Ciência e Cultura, nas Assembleias Populares Provinciais, nas estruturas da organização
partidária, nas organizações de massas como a Oma e a Unta e nas organizações sociais como
UEA (União dos Escritores Angolanos), a AEES (Associação dos Estudantes de Ensino Superior)
e outras.

Foi o mesmo divulgado através da imprensa escrita, da Rádio e da Televisão.

Dessa ampla discussão resultou a proposta de diversas alterações, designadamente sobre a


matéria respeitante à promessa de casamento, à idade núbil, aos impedimentos para
casamento, ao casamento urgente, aos efeitos económicos do casamento, aos vícios do
casamento e aos alimentos. Concluída a reformulação, foi então elaborado um extenso
Relatório que acompanhou a versão final do Projeto submetido à apreciação final da
Assembleia do Povo.

Consta do Relatório final: «em nenhumas das discussões foram postos em causa os princípios
fundamentais que presidem ao projeto. Pelo contrário, vários são os relatórios que saúdam a
elaboração do projeto, que permite adequar o direito de família aos princípios políticos que
regem o nosso processo revolucionário, salvaguardando as realidades concretas do nosso
país».w

A própria Comissão que elaborou o Projeto propôs determinadas alterações e a introdução de


novos artigos no sentido de uma melhor arrumação das matérias e do seu enriquecimento.

Apresentado o novo projeto devidamente reformulado, ele foi discutido na Sessão da


Assembleia do Povo que decorreu de 12 a 14 de agosto de 1987.

Dos trabalhos da Assembleia resultaram algumas modificações de pequeno vulto. O Código de


Família foi promulgado em 27 de outubro de 1987 e publicado em 20 de fevereiro de 1988,
tendo sido aprovado pela Lei n.° 1/88, para entrar em vigor na data da sua publicação (art.
l.°).Decorridos que são mais de 20 anos sobre a sua aprovação, reconhece-se que se torna
necessário a sua adaptação às novas conceções que se vão criando sobre o direito de família,
que acelcradamente se vão processando em todo o mundo.

b) Sistemática do Código de Família

A Lei n.° 1/88, que aprova o Código de Família, contém normas de natureza transitória e outras
de natureza processual.

Convém atentar no conteúdo do Preâmbulo, pois ele traça algumas linhas mestras que
alicerçam as novas instituições do direito de família: «O novo código insere-se no combate de
toda a humanidade progressista contra o obscurantismo (...)» e deve entender-se «como meio
real da emancipação política, económica e social dos trabalhadores angolanos>>.

Na verdade, o novo código acolheu os princípios jurídico-sociais então consagrados no direito


de família dos países progressistas, adaptando-os à nossa realidade.

No Preâmbulo vêm enunciadas as suas linhas orientadoras, tais como a proteção de todos os
filhos nascidos ou não do casamento dos pais; o da divisão justa das tarefas e
responsabilidades no seio da família; a igualdade do homem e da mulher em todas as relações
familiares; a abolição da validade do casamento canónico; o novo conceito de casamento com
maior relevância para os seus aspetos pessoais do que para os patrimoniais; a possibilidade da
legalização das uniões de facto; a nova conceção da dissolução do casamento por divórcio; a
garantia do direito ao estabelecimento da filiação; a simplificação dos mecanismos da tutela; o
reforço da obrigatoriedade da prestação de alimentos, mormente quando destinados a
menores, etc..

A Lei n.° 1/88 contém ainda normas sobre a sua aplicação no tempo (art. 3.°); sobre a
contagem de prazos de natureza substantiva (art. 4.°); sobre a concessão de um novo prazo
para a propositura da ação de impugnação da paternidade do marido da mãe (art. 5.°).

Os arts. 6.° e 7.° contêm normas de natureza processual de grande interesse prático, pois
mandam aplicar a todas as ações de natureza familiar a forma do processo especial de
jurisdição voluntária do art. 1409.° do Código de Processo Civil, o qual, por sua vez, remete
para as normas processuais dos arts. 302.° a 304.°, referentes aos incidentes da instância. O
art. 7.° abre ao juiz um largo poder de intervenção processual, alterando a posição do julgador
de uma posição meramente dispositiva para uma posição de intervenção na recolha da prova.
O escopo do tribunal será o de obter a descoberta da verdade material, de forma a poder
decidir o objeto da lide de uma forma justa e de acordo com a realidade dos factos.

Compreende-se tal posição ao ter-se em conta que no direito de família estão em jogo não só
interesses pessoais mas também interesses sociais. Estas alterações

só são aplicáveis em segundo plano, pois o próprio Código de Família inclui normas dc
natureza processual em diversos dos seus Títulos.

Por outro lado, estava-se na expetativa de que se procedesse a reformas na lei processual civil
vigente, de forma a simplificá-la e a torná-la mais consentânea com a nossa realidade e
também com as exigências de celeridade do mundo moderno, o que infelizmente até ao
momento não aconteceu.

Adotou-se transitoriamente esta via para permitir maior intervenção do juiz no desenrolar do
processo, procurando-se tornar este menos formal.

No art. 8.° vem transposta a matéria que vinha consignada nos artigos 3o, 4o e 5o da Lei n.°
53/76 sobre o pedido de conversão em divórcio da separação de pessoas e bens, normas estas
que foram mantidas com caráter transitório, para a hipótese, pouco provável, de algum
interessado não ter entretanto exercido aquele direito desde a data da publicação da lei.

O art. 9.° veio confirmar a obrigatoriedade do registo civil de todos os atos mencionados nos
diplomas pertinentes, designadamente no Código do Registo Civil. Os atos sujeitos a registo
obrigatório vêm enunciados no art. l.° do citado Código. A publicação do Código de Família
tomou necessária a adaptação das normas do registo civil ao novo diploma, com especial
relevância em questões como a união de facto, a filiação, a adoção e outras.

E, embora tenha sido elaborado um projeto sobre tal matéria em 1993, o certo é que ele não
chegou a ser publicado, como o não foi ainda a adaptação do Regulamento do Ato do
Casamento às normas do Código de Família.

Adiante veremos a importância das normas do registo civil e como elas se refletem sobre a
prova da titularidade do estado civil das pessoas.

O art. 10.° refere-se à revogação tácita da legislação anterior com conteúdo contrário ao da
nova lei e bem assim à revogação expressa de outros textos legais, em especial das normas do
Código Civil, bem como das diversas leis publicadas após a Independência Nacional.

O conteúdo destas últimas leis foi, aliás, no essencial, integrado nos diversos títulos do novo
Código de Família fazendo parte dos respetivos institutos.

Do Código Civil vigente foram revogados o art. 86.° do Livro I sobre o domicílio legal da mulher
casada, os arts. 143.°, 144. e 146.° sobre a tutela, e a totalidade do Livro IV sobre o direito de
família.

As novas normas contidas no Código tornam urgente a necessidade de alterar outros ramos de
direito. As normas de direito das sucessões carecem de ser adaptadas aos novos conceitos
contidos no Código de Família, designadamente o da unidade do conceito dc filiação, o de
adoção como forma de parentesco, os direitos sucessórios na união de facto, etc..

O Código Civii contém ainda normas de conteúdo abertamente discrimi¬natório, tanto na


parte geral (as normas de conflito em direito internacional privado em que prevalece a lei
pessoal do marido), como no Livro das Sucessões, normas que, embora revogadas por
inconstitucionais, deverão ser banidas do

código.

O Código de Família está dividido em oito Títulos:

— Princípios fundamentais
— Constituição da família

— Casamento

— União de facto

— Relações entre pais e filhos

— Adoção

— Tutela

— Alimentos

O conteúdo dos 8 títulos é, em síntese, o seguinte:

0 Título I contém os princípios fundamentais que norteiam todo o diploma.

O Título II tem 3 capítulos: o das disposições gerais sobre as fontes das relações jurídicas
familiares, o do parentesco por laços de sangue, o da afinidade e do conselho de família.

0 Título III, que é o mais extenso, compõe-se de 5 capítulos: o das disposições gerais, que inclui
o conceito de casamento, a ineficácia da promessa de casamento, a capacidade matrimonial; o
da celebração do casamento; o dos efeitos do casamento; o da anulabilidade do casamento e
o da dissolução do casamento.

O Título IV refere-se à união de facto e tem 3 capítulos: o das disposições gerais com o
conceito de união de facto e seus pressupostos legais, o do reconhecimento por mútuo acordo
c o do reconhecimento em caso de morte ou rutura.

O Título V tem 3 capítulos: o primeiro sobre os direitos e deveres entre pais e filhos; o segundo
sobre o exercício da autoridade paternal c o terceiro sobre o estabelecimento da filiação.

O Título VI abre com o capítulo que contém os princípios gerais da adoção, vindo depois o que
contém as formas da adoção e o que se refere ao processo de adoção.

O Título VII contém 4 capítulos: o que contém as disposições gerais e se refere aos sujeitos e
fins da tutela; o da constituição da tutela; o do exercício da tutela e o do termo da tutela.

O Título VIII, concernente aos alimentos, define no seu capítulo I o respetivo conceito e os
sujeitos ativos e passivos da obrigação alimentar, a forma da sua

prestação, a sua natureza e a cessação da obrigação; o capítulo II refere-se à obrigação de


alimentos em caso de casamento e de união de facto.

[15] Princípios fundamentais do Código de Família e seus conceitos genéricos

a) Princípios fundamentais do Código de Família

O Título I, «Dos princípios fundamentais», contém normas que, pelo seu alcance e importância
normativa, se podem equipar a verdadeiras normas de natureza constitucional.
Os princípios básicos enunciados neste Título I vão servir de estrutura e nortear todas as
demais normas contidas no Código.

Podemos, em síntese, indicá-los da forma seguinte:

1) Especial obrigação do Estado de proteção à família, pela sua importância como núcleo
fundamental da organização da sociedade, promovendo o direito à instrução, ao trabalho, ao
repouso e a seguros sociais.

2) Especial obrigação da família de promover a educação cultural e moral de todos os


seus membros dentro dos princípios do amor ao trabalho e de fidelidade à pátria e em especial
a dos jovens, em ordem à sua integração na sociedade.

3) O direito de cada membro da família ao desenvolvimento da sua personalidade e


aptidões no interesse da nova sociedade.

4) A igualdade do homem e da mulher em todas as relações jurídicas familiares.

5) A igualdade de todas as crianças perante o Estado e a especial obrigatoriedade da sua


proteção, tanto pela família como pelo Estado.

6) A criação de uma nova moral nas relações familiares, estruturada na igualdade de


direitos, no respeito da personalidade dos seus membros e no princípio da solidariedade
recíproca.

Através da concretização destes princípios, procura-se obter uma transformação na estrutura


familiar, de forma a conseguir que, ao nível das suas relações internas, se estabeleça uma
interdependência recíproca mais justa e mais favorável aos membros que a compõem.

b) Conceitos genéricos do Código de Família

O Código de Família recorre a diversos conceitos genéricos ou conceitos de con¬teúdo jurídico


indeterminado, que a doutrina classifica como verdadeiras normas em branco cujos limites
não são definidos com exatidão e cujo preenchimento terá que ser encontrado, em cada caso
concreto, pelo intérprete ou pelo julgador.

A entidade ou o agente a quem caiba a aplicação da lei tem que se socorrer

de ideias supra-jurídicas, como os conceitos de boa-fé e de má-fé, para decidir de questões tão
importantes como a dos efeitos do casamento anulado (cfr. art. 72.° do Código de Família). Na
fundamentação do pedido de divórcio litigioso menciona-se que deve ser invocada causa grave
ou duradoura (art. 97.°) que comprometa a vida em comum dos cônjuges. Nas questões que
têm a ver com a situação dos menores, como seja a dos direitos e deveres paternais,
menciona-se que eles devem ser exercidos no interesse e em beneficio dos filhos e da
sociedade (art. 127.°, n.° 2). Nas decisões sobre o exercício da autoridade paternal, o tribunal
deverá sempre ter em conta o beneficio e o interesse do menor e a sua adequada inserção no
meio social (art. 160.°). Nos requisitos legais para o adotante impostos no art. 199.°, n.° 1,
alínea b) menciona-se que ele tem que possuir idoneidade moral e bom comportamento
social, especialmente nas relações familiares. Na nomeação do tutor, o tribunal terá em conta
os interesses do menor e da sociedade (art. 233.°, n.° 1).

Trata-se de expressões propositadamente amplas e de contornos difusos, que vão permitir a


quem tem de aplicar a lei ter em conta, por um lado, os sentimentos predominantes num
determinado momento histórico, e, por outro, as circunstâncias específicas do caso concreto.
Só essa valoração complexa permitirá que a lei se tome justa ao ser aplicada. No fundo,
estamos perante a aplicação do princípio da equidade, que, em sentido restrito, consiste na
«apreciação das circunstâncias de facto confiada à consciência do juiz e que éfeita de acordo
com as ideias morais e sociais do povo a que pertence» .

A vigência da lei, prolongando-se no tempo, torna necessário que se ajuste a decisão à nova
realidade concreta subjacente à norma jurídica. A integração dos factos à previsão da norma
legal nem sempre é uniforme e depende da conceção que a dado momento a sociedade tem
sobre determinados valores e até pode acontecer que em simultâneo, se confrontem sobre as
mesmas questões posiçõesadversas.

É no momento em que a norma vai ser aplicada que se vai delimitar para aquele caso em
concreto, a forma como se integra o conceito genérico.

[16] Relevância do direito costumeiro

O facto de coexistirem no mesmo país diversas etnias com usos e costumes diferentes, embora
possa ser positivo sob o ponto de vista da riqueza cultural, pode, por outro lado, ser usado
como elemento desagregador do novo Estado, suscetível de fazer reavivar o tribalismo,
travando o processo necessário à coesão política da nação.

Também a unidade legislativa, como é óbvio, põe fim à discriminação entre dois tipos de
cidadãos dentro do mesmo país que se verificava na ordem jurídica colonial, que contrapunha
o estatuto de direito pessoal regulado pelo direito escrito e o estatuto pessoal do direito
costumeiro.

É certo que diversos Estados adotam sistemas de pluralismo jurídico ou seja, admitem que
vigorem dois ou mais sistemas jurídicos diferentes e que eles se apliquem diferentemente aos
diversos grupos étnicos que coabitam dentro do território do respetivo Estado. Este sistema
era predominantemente aceite nas colónias britânicas que previa em simultâneo a vigência
em matéria de direito de família e sucessões, das leis inglesas, das normas do direito indiano e
do direito costumeiro das populações indígenas.

Esta não é a orientação política do Estado angolano que já se afirmava «como de caráter
unitário e laico» pela Lei Constitucional, art. 4.°, n.° 2, alínea e).

O princípio de que Angola é um estado unitário vem reafirmado na Constituição, no seu art. 8.°
«Angola é um Estado unitário que respeita, na sua organização, os princípios da autonomia dos
órgãos do poder local e da desconcentração e descentralização administrativas, nos termos da
Constituição e da lei».
Sendo certo que a unidade legislativa, como é óbvio, põe fim à discriminação entre dois tipos
de cidadãos dentro do mesmo país que se verificava na ordem jurídica colonial, e contrapunha
o estatuto de direito pessoal regulado pelo direito escrito e o estatuto pessoal do direito
costumeiro.

No entanto, o pluralismo jurídico é hoje aceite como uma realidade do direito angolano na
recente opinião dos analistas. Entende-se que as alterações a nível político e social que se
operaram no país, permitem a coexistência de pluralismos jurídicos no Estado que na sua
essência é um Estado heterogénio.

Atualmente a Constituição no seu art. 7.° veio consagrar a aplicabilidade do direito


costumeiro: « É reconhecida a validade e a força jurídica do costume que não seja contrário à
Constituição nem atente contra a dignidade da pessoa humana.»

Esta redação é distinta da que vinha prevista no Anteprojeto de Constituição que não chegou a
ir por diante, de além de não ser contrário à Constituição, tampouco «ser contrário á lei». No
referido Anteprojeto da República de Angola de 2004, posteriormente abandonado, previa-se
no seu art. 6.°: «É reconhecida a validade do costume que não seja contrário à Constituição
nem à lei vigente».

É certo que o direito costumeiro permanece a vigorar em Angola pois é indesmentível a sua
força e persistência não só pelas suas raízes culturais entranha¬das nas comunidades, mas
ainda em razão dos privilégios que ele outorga a certos membros da família que dos mesmos
não querem abdicar.

Tal é reconhecido pelos estudiosos da realidade jurídica angolana que salvaguardam a


existência do costume com efetiva vigência jurídica.112)

É um facto que nesta matéria, relevantes doutrinários vinham já sustentando a existência no


quadro normativo angolano de pluralismo jurídico.

«No que respeita ao pluralismo jurídico a primeira característica é a sua enorme riqueza e
complexidade. A riqueza reside no facto de sociologicamente vigorarem em Angola e
Moçambique várias ordens jurídicas e sistemas de justiça.

Quanto ao pluralismo jurídico, cuja relação geral não unívoca com a democra¬cia ficou feita, a
reflexão diz respeito aos múltiplos mecanismos de resolver conflitos que analisámos na cidade
de Luanda. »

No Código de Família procurou-se recolher alguns institutos tirados do direito costumeiro,


aproveitando o que de rico nos ensinou a experiência do nosso povo. Como exemplo,
podemos apontar o conselho de família, órgão de natureza consultiva do tribunal, e a união de
facto, de relevante preponderância na nossa realidade social, além de outras opções feitas
quanto ao regime económico do casamento e quanto à relevância do vínculo do parentesco,
entre outros.

Em contrapartida, não foram acolhidos outros usos e costumes não conci¬liáveis com
princípios fundamentais consagrados na lei constitucional ou em convenções ou pactos
internacionais que Angola subscreveu que, em última análise, têm a ver com os direitos
fundamentais da pessoa humana.

«Em última análise os atos que o direito não impõe nem proíbe, e que são por isso irrelevantes
para ele, ficam abandonados à disponibilidade das partes, que podem assim escolher entre
vários comportamentos (...)».

Por sua vez o constitucionalista Carlos Feijó aborda diretamente o reconheci¬mento e validade
do costume e sustenta que de acordo com o art.° 7.° da Constituição:

«A primeira ideia que ressalta é a de que a validade e força jurídica do costume são
reconhecidos pela Constituição (...) a segunda ideia imediata que ressalta do preceito é a de
que a validade e força do costume não dependem da sua conformidade com a lei (...). Só
merece tutela do Estado se não contrariarem a Constituição e não atentarem contra a
dignidade da pessoa humana.»

E em conclusão afirma: «A natureza plural do Estado e nação angolana deu origem a um


processo que culminou no pluralismo jurídico da ordem jurídica angolana caracterizado pela
presença simultânea do direito do Estado e dos diversos direitos de origem consuetinária
ordemada nas comunidades rurais.»

«Nos anos pós-Independência o posicionamento do Estado angolano face ao direito


costumeiro pode caraterizar-se dentro dos critérios usados na doutrina como vigorando
praeter legem, ou seja, para além da lei escrita, ainda que, na opinião dos comentadores, de
uma forma tímida (...). No entanto, face ao direito costumeiro, a posição tomada não foi nem
de expresso repúdio nem de repressão, porque se não proibiu a vigência das normas contidas
nos usos e costumes. Tampouco, ao inverso, se aceitou em bloco a sua vigência como normas
de direito de aplicação coerciva, tal como as do direito escrito» .

Põe-se, porém, a questão melindrosa e delicada de saber como apreender e atender ao direito
de família costumeiro, e em que medida é compatível com os princípios fundamentais do
ordenamento jurídico vigente. Acresce a falta de recolha documental do teor do direito
costumeiro que é diversificado nas diversas etnias do País.

A autoridade do costume coexiste em regra com dois fatores:

— a autoridade dos chefes e a autoridade dos antepassados.

Para que se possa falar em costume como fonte de direito, é necessário, como é sabido, que
se verifiquem simultaneamente os seguintes requisitos:

— a existência de um determinado comportamento social reiterado e comummente


aceite pelos membros de uma determinada comunidade;

— a convição da obrigatoriedade desse comportamento, de forma a tomá-lo vinculativo


perante os membros dessa comunidade.

A propósito das questões do dote e do alembamento, que são explicáveis sob o ponto de vista
histórico e cultural mas que se traduzem em práticas discrimina¬tórias contra a mulher, o
Presidente da República sublinhou que elas não podiam ser eliminadas de um dia para o outro
pela simples publicação de um decreto.

Reconhece-se que só com a evolução global da sociedade e com novas condições sociais serão
alteradas ou eliminadas as tradições que não se coadunem com os novos parâmetros do
desenvolvimento e do progresso.

A alteração constitucional ora operada, obriga-nos a rever em concreto em que medida é o


direito costumeiro suscetível de aplicação coerciva e de reconheci-

mento a nível dos órgãos do Estado, designadamente dos Tribunais. A regra geral é, como
sabemos, a da aplicação da lei escrita de caráter geral e de cumprimento obrigatório para
todos os cidadãos. Pode aceitar-se, no entanto, que o costume seja aplicável, em certas
condições, a título integrativo, ou seja, em complemento da lei. O costume será porém
aplicável nas comunidades sujeitas às autoridades tradicionais, quando não contrariem
princípios constitucionais.

Neste aspeto específico há que ter em conta o que vem disposto na Lei n.° 18/88, de 31 de
dezembro — Lei do Sistema Unificado de Justiça, no que se refere à competência dos Tribunais
Municipais, pois nele vamos encontrar a possibilidade legal de aplicação do direito costumeiro
pelos órgãos juridicionais.

A alínea d) do art. 38.° desta Lei dispõe que compete aos Tribunais Populares Municipais
«Preparar e julgar as questões cíveis, seja qual for o seu valor, quando as partes estiverem de
acordo com a aplicação exclusiva de usos e costumes não codificados, sempre que a lei o
permita.»

Desta disposição pode retirar-se o seguinte quanto aos limites da aplicação do direito
costumeiro, seja qual for o ramo do direito em causa, desde que englobado na designação
genérica de causa cível:

— que as partes o aceitem voluntariamente;

— que ele não contrarie os princípios fixados na Constituição.

Infelizmente, o funcionamento dos Tribunais Municipais, a nível sobretudo das províncias do


interior do país, tem impedido até há pouco, um mais amplo exercício da sua competência,
que na prática tem vindo a incidir quase unicamente na área do direito penal.

Não temos conhecimento da aplicação em concreto desta norma no âmbito do direito da


família Cremos mesmo ser de recear que o direito costumeiro esteja a ser aplicado mesmo
contra os princípios constitucionais, lá onde existia o vazio originado pela falta de cobertura
judicial para a proteção efetiva dos direitos dos cidadãos, ou nos casos em que são estes que
evadindo-se da ordem jurídica legalmente estabelecida, vão acolher-se às suas regras.

O estudo do direito costumeiro assume, sem dúvida, importância por duas razões
fundamentais: por um lado, possibilita o conhecimento aprofundado do comportamento social
de um determinado povo; por outro lado, proporciona o enriquecimento que pode advir de
alguns dos seus princípios.
De qualquer forma, em matéria de direito de família, o direito costumeiro não pode, por si só,
ser considerado como norma jurídica com poder normativo e vin¬culativo obrigatório. Ele
pode vigorar de facto entre grupos nacionais, na medida em que tal for aceite tacitamente
pelos membros de determinado agregado social. Mas os princípios constitucionais são iguais
para todos os cidadãos e o seu cumprimento só pode ser exigido coercivamente dos órgãos do
Estado com competência legal para tal.

Desde que não integrado na norma constitucional, o direito costumeiro no geral só pode
interessar aos juristas e aos tribunais, como órgãos de aplicação do direito, como situações de
facto subjacentes ao comportamento humano, e nesse aspeto a sua importância real é
indiscutível.

Não se deve nunca perder de vista, porém, que a sua importância está circuns¬crita a este
aspeto, não sendo admissível que uma norma do direito costumeiro se sobreponha, ou, menos
ainda, contrarie uma norma constitucional.

Considera-se inaceitável que dentro do mesmo Estado funcionem duas ordens jurídicas
distintas uma reconhecendo e proclamando os direitos humanos fundamentais aos seus
cidadãos e outra que consagre a sua discriminação e a supressão dos seus direitos. Neste
sentido podemos citar alguns dos mais distintos doutrinários do direito africano.

Assim, Kéba M’Baye reconhece que nos países saídos da situação colonial se verificava a
coexistência de duas comunidades (uma europeia, outra africana), com dois estatutos
diferentes (um moderno, outro tradicional), «mas a distinção entre os cidadãos e os indígenas
não é mais possível em razão da igualdade de todos perante a lei, pelo que é de tentar criar
um direito unificado, aplicável ao conjunto dos nacionais, qualquer que seja a sua origem, as
suas crenças e os seus estatutos anteriores. >>

Também Guy Kouassigan, no seu estudo sobre direito de família na África negra francófona,
vem afirmar que «a elaboração de um novo direito de família aparece como uma necessidade
imposta pelos imperativos do desenvolvimento económico. Trata-se de uma verdadeira
revolução, que deve substituir por um direito criador do futuro tanto quanto possível com a
codificação dos costumes que opõem a sua imutabilidade às necessidades de mudança.» E
conclui dizendo: «o progresso é na verdade o aprofundamento de si próprio (...) é necessário
que se reaproprie do seu mundo revalorizando os seus valores e os seus conceitos e que
elimine o que não se prestar à sua restruturação (...) como por exemplo a deturpação do dote
costumeiro ou do consentimento para casamento, trata-se de dados que perderam o seu
fundamento tradicional e que não se inserem no movimento de transformação. »

A realidade mostra-nos que entre os cidadãos do país existem diversos tipos de


comportamento, uns segundo a lei moderna, outros segundo os diversos

direitos costumeiros. Para estes últimos não será certamente de um momento para o outro
que se desvanecerá a suapraxis baseada em crenças íntimas e práticas centenárias. Importa
não perder de vista que em muitos países do continente africano continua a vigorar, em
matéria de direito de família, parte do direito costumeiro (havendo até tribunais próprios para
conhecer das questões afetas a tal matéria), e que é em si diferente do direito escrito, o qual,
em muitos casos, é ainda o direito colonial, ou seja o direito francês na África dita ffancófona e
o direito inglês na África dita anglófona.

Podemos citar a República dos Camarões, que é um estado composto por cerca de 250 grupos
étnicos, onde vigoram em simultâneo as leis francesas e inglesas e as diversas regras do direito
costumeiro.

No Zimbabwe permanece igualmente o sistema da dupla vigência do direito escrito c do


direito costumeiro, o que tem suscitado acesas questões sobre a prevalência da lei escrita
sobre normas abertamente discriminatórias do direito costumeiro. Designadamente, foi
reivindicada a aplicação da lei da Maioridade Legal, lei publicada depois da Independência e
que reconhece a todo o cidadão, homem ou mulher, plena capacidade civil, ao contrário do
que acontece no direito costumeiro, em que à mulher é atribuído um estatuto de menor
durante toda a sua vida.

Ao analisar a textura da sociedade africana no período colonial sob domínio inglês, Martin
Chanok observa que o direito costumeiro não se limita a simples regras de comportamento de
uma comunidade, mas é uma forma de manter a ordem e as relações de poder. Mais adiante
acrescenta que nas antigas colónias britânicas a lei costumeira era aceite como a congruência
de interesses entre os homens mais velhos da comunidade e os administradores britânicos.
Conclui afirmando: «Não desejo que me compreendam como subestimando a necessidade da
intervenção do estado no direito de família, com um papel vital no reverter de iniquidades
estabelecidas e na proteção dos dependentes. Em África, como em muitos outros lugares, a
vida é vivida fora da lei e envolve valores e padrões de comportamento que são diferentes dos
que vêm enquadrados no sistema legal».

No estudo sobre o direito de família no direito costumeiro da África do Sul, igualmente se


concluiu que: «A <invenção> da <tradição> dum direito costumeiro africano teve profundo
impacto no estatuto da mulher no direito costumeiro africano (...). A invenção dum direito
costumeiro tradicional, de família africano originou uma significativa fonte de opressão,
subordinação e discriminação contra a mulher.

(...) O sistema é na verdade um legado do passado (...). Ou vai a sociedade sul- africana
estabelecer uma nova sociedade baseada num sistema de direito de família geral moderno,
baseado em valores da dignidade humana, da igualdade, do não racismo e do não —
sexismo?»

Para concluir, entendemos que o direito costumeiro ou tradicional só poderá ser reconhecido
e aceite com força vinculativa de norma de direito se for livremente aceite pelo cidadão e
desde que a sua aceitação esteja em área da disponibilidade das partes.

Ele terá forçosamente que ser rejeitado quando o seu conteúdo viole princípios constitucionais
ou internacionais, como sejam o da liberdade e igualdade de todos os cidadãos perante a lei,
ou o do mútuo consentimento para a celebração do casamento.

[17] Fontes das relações jurídicas familiares


Podemos caraterizar como negócios jurídicos familiares todos aqueles que constituem,
modificam ou extinguem as relações familiares. A causa nestes negócios jurídicos está num
interesse familiar.

No direito de família os negócios jurídicos familiares, como adiante melhor veremos, podem
derivar de simples factos naturais, ou consistir ou em atos unilaterais, pois se precludem numa
declaração de um só declarante, ou em atos bilaterais, que se concluem com o acordo de duas
vontades.

Como factos naturais temos a procriação e o nascimento com vida que vai dar origem ao mais
importante vínculo familiar — a filiação, como adiante veremos, e a morte que só por si faz
extinguir os vínculos familiares.

Como exemplo de um ato unilateral podemos apontar a declaração de adoção do apelido do


outro nubente, declaração que qualquer dos nubentes pode lazer no ato de celebração do
casamento. Negócio jurídico bilateral é o ato do casamento. Mesmo quando intervêm duas
vontades, o ato não se resolve num contrato propriamente dito, pois as regras que regulam o
direito das obrigações não lhe são aplicáveis.

A regra é que, pela importância dos atos jurídicos familiares, que vão gerar situações de
caráter duradouro, a lei prescreva uma forma solene para a sua prática, como se verá. Definido
o que se deve entender por negócios jurídicos familiares, podemos agora ver quais são as suas
fontes, ou seja, quais são os factos jurídicos dos quais eles derivam. São fontes dos negócios
jurídicos familiares os factos ou

atos jurídicos dos quais derivam os vínculos familiares previstos na lei, ou seja, os que
constituem a família.

É interessante comparar as fontes dos negócios jurídicos familiares, tal como vinham previstas
no Código Civil, com as que constam do Código de Família.

O Código Civil, no art. 1576.°, que iniciava o Título IV, referente ao Direito da Família,
estabelecia como fontes das relações jurídicas familiares o casamento, o parentesco, a
afinidade e a adoção.

Já o art. 7.° do Código de Família diz que «são fontes das relações familiares o parentesco, o
casamento, a união de facto e a afinidade». E logo a seguir o art. 8.° explicita que «o
parentesco estabelece-se por laços de sangue e por adoção».

0 parentesco tem origem derivada da própria causa natural e biológica da filiação pois
estabelece-se sempre tendo por base uma ou mais relações de filiação. Por seu lado, também
teremos ocasião de estudar que a adoção constitui entre o adotante e o adotado um vínculo
idêntico ao da filiação, mas já não por razões biológicas tendo como origem uma sentença
proferida em processo de adoção, que em razão do efeitos que produz, o Código de Família o
englobou dentro do mesmo instituto do parentesco, que passou a abranger o parentesco por
laços de sangue e o parentesco por adoção.
Ao lado do parentesco surge, como fonte de relações jurídicas familiares, o casamento, o qual
é considerado por muitos dos doutrinários que estudam o direito de família como a única
fonte com dignidade para gerar relações familia-res, sendo as demais dele derivadas. Segundo
este ponto de vista, só através do casamento se constituem relações legítimas entre o cônjuge
e os seus parentes, ascendentes e descendentes, sendo as relações familiares constituídas à
margem do casamento simples relações ilegítimas ou para-familiares.

É evidente que este não é o ponto de vista do Código de Família, que teve em conta o facto de
na sociedade angolana ter muito mais relevância o vínculo do parentesco baseado na filiação
do que o do casamento formalizado. Daí que se tenha indicado que, além do casamento, a
união de facto constitui também uma das fontes das relações familiares.

A união de facto carece, porém, de ser reconhecida para que lhe possa ser atribuída a
plenitude dos efeitos previstos na lei, o que não significa que a união que não possa ser
reconhecida seja totalmente postergada por lei.

Por fim, a afinidade que deriva do ato do casamento e liga o cônjuge aos parentes do outro
cônjuge também constitui fonte de relações familiares, embora de muito menor alcance.

Dentro da metodologia do Código de Família, estudaremos sucessivamente o parentesco e a


afinidade.

CAPÍTULO 4.0

NATUREZA JURÍDICA

DO DIREITO DE FAMÍLIA

Interessa apontar alguns aspetos de caráter geral que percorrem o direito de família e que
evidenciam a existência do próprio interesse familiar, ligado não só à célula familiar, mas
também a cada um dos membros que a compõem.

São traços gerais do direito de família que caraterizam este ramo de direito e ajudam à sua
compreensão, mas que admitem, no entanto, áreas diferenciadas e exceções, pelo que não
devem ser encarados de forma monolítica e de valor absoluto.

[18] Natureza de grupo e intercorrente

O direito de família define as relações jurídicas familiares que se desenvolvem dentro de um


determinado grupo, o grupo familiar. O grupo familiar é composto por membros ligados entre
si por diversos vínculos familiares: a filiação e parentesco (por laços de sangue ou por adoção),
o casamento e a união de facto, a afinidade e a tutela.

A esta comunidade dá o Estado o apoio necessário à sua proteção e fortaleci¬mento, pois é do


reforço do núcleo familiar que depende o desenvolvimento dos indivíduos que o integram e,
portanto, da própria sociedade de que fazem parte, ou seja, em última análise, o da própria
comunidade em geral e do Estado.

O grupo familiar, porém, não tem a natureza de pessoa jurídica, não sendo, portanto, titular
de direitos e deveres de forma autónoma. E isto porque o interesse juridicamente tutelado é o
interesse de cada membro da família e não o do grupo familiar em si.

Diz-se que o direito de família é um direito de grupo porque, tal como o direito do trabalho e o
direito cooperativo, se desenvolve dentro de um grupo restrito e porque, em primeiro plano,
regula as relações dos membros desse grupo social.

Diz-se que é um direito intercorrente porque circula de membro para membro em


reciprocidade. Ou seja, aos direitos do marido em relação à mulher correspon-

dem os direitos da mulher em relação ao marido, e o mesmo ocorre nas demais relações,
entre pais e filhos, entre parentes, etc..

Dentro das relações de grupo podem caraterizar-se como direitos de natureza relativa,
recíproca e intercorrente, que se desenvolvem entre os membros da família e estão baseados
no princípio de solidariedade.

[19] Natureza funcional

Os direitos familiares são, na sua maior parte, verdadeiros poderes funcionais, porque devem
ser exercidos de acordo com a função social que a lei lhes assinala. Diga-se, aliás, que esta
conceção do exercício do direito de acordo com a sua íunção legal é, por alguns juristas,
tornada extensiva ao próprio direito civil, não sendo assim, considerada como específica do
direito de família.

0 fim em vista do qual o direito é exercido tem que ser aquele que é permitido por lei, sob
pena de abuso do direito.

Assim, os direitos que regulam as relações familiares são, simultaneamente um direito e um


dever, pois se, por exemplo, a lei reconhece aos pais o direito de guardar, vigiar e educar os
filhos, imputa-lhes, por outro lado, o dever de assim proceder. No exercício do seu direito, o
titular não pode agir como quiser nem para fins não consentidos por lei, mas só com vista ao
fim legal para o qual esse direito foi atribuído. Não devem, pois, ser entendidos como direitos
estritamente subjetivos, porque não devem ser exercidos tendo em vista o interesse do seu
titular, mas tão só o interesse que a lei protege.

0 interesse juridicamente protegido é o interesse social, e o exercício do direito desviado do


fim legal conduz ao abuso de direito.

O direito-dever de uma cooperação permanente torna-se mais evidente no direito de família e


determina a forma como ele deve ser exercido.

[20] Predomínio da natureza imperativa e oponibilidade

Prova de que o direito de família não deve ser considerado como pertencendo ao direito civil é
a forma como o Estado intervém na defesa dos interesses desse importante organismo social.

Com efeito, os institutos de direito de família são regulados na sua generalidade por normas
inderrogáveis, de natureza imperativa.
As normas relativas ao instituto do casamento, à sua dissolução por divórcio, à filiação, às
relações de parentesco, à adoção, à tutela etc., não podem ser derrogadas ou substituídas por
outras estabelecidas por acordo entre as partes.

Esta caraterística do direito de família evidencia o predomínio do caráter público deste direito
e mostra também a inconsistência da divisão bipartida do direito em direito público e direito
privado.

Existe, é certo, uma importante intervenção de autonomia de vontade em diversos institutos


de direito de família.

Podem citar-se o casamento e a adoção, que dependem, para a sua constituição, de uma
declaração de vontade inicial, seja do nubente ou do adotante.

A voluntariedade na constituição de vínculos familiares é comum ainda à união de facto, à


aceitação do cargo de tutor, etc..

A vontade dos nubentes é, por exemplo, revelante na adoção do apelido do outro, ou na


opção entre os dois regimes matrimoniais de bens que a lei prevê.

Na constituição do vínculo da filiação, a vontade do progenitor não intervém, pois ele deriva
do facto natural de procriação. Há diversas vias legais que levam ao estabelecimento desse
vínculo, independentemente da via da declaração de vontade pelo próprio progenitor.

Também o consentimento é um elemento essencial em diversos institutos familiares.

Mas os efeitos do casamento, da adoção, da tutela, etc., são os que a lei estatui, o mesmo
acontecendo com a escolha do regime matrimonial de bens que, a partir da celebração do
casamento, já não pode ser substituído por outro. O mesmo acontece com o consentimento
para o reconhecimento da união de facto, ou do divórcio por consentimento mútuo, cujos
efeitos vêm definidos na lei, não podendo ser objeto de disposição por vontade das partes.

Diz-se ainda que os direitos familiares são de oponibilidade absoluta porque o respetivo titular
pode opô-los erga omnes, isto é, os seus direitos podem ser invocados, quer em relação à
pessoa, membro de família, com a qual se estabelece o vínculo intercorrente, quer em relação
a qualquer terceiro, fora do grupo familiar. São direitos estatuídos por lei e como tal oponíveis
a todos.

[21 ] Natureza pessoal: titularidade exclusiva

Uma das caraterísticas essenciais do direito de família é precisamente o facto de ser um direito
eminentemente pessoal. É atribuído a alguém na sua qualidade concreta e no seu próprio
interesse, tanto moral como material. Os direitos familiares são, no fundo, direitos essenciais
da pessoa.

Têm que ser exercidos pelo seu titular de forma estritamente pessoal e exclusiva. Mesmo
quando, em certos casos, a lei permite que uma das partes seja representada num negócio
jurídico, a vontade expressa no negócio jurídico é a do
mandante e não a do mandatário. No casamento, por exemplo, é sempre a vontade expressa
pelo representado que é juridicamente relevante, e não a do mandatário: como veremos, este
atua como um simples «núncio», pois o mandante tem que identificar a pessoa do outro
nubente. A lei não admite um mandato genérico para a celebração de quaJquer negócio
jurídico familiar.

No caso de incapacidade, esta pode ser suprida pelo representante, mas quando a lei exige o
consentimento, este é dado pelo incapaz, embora autorizado pelo representante.

O direito de família não é suscetível de uma valorização e compensação económica. Não


obstante, existem relações de natureza patrimonial dentro do direito de família, tais como as
que regulam o regime de bens, as dívidas dos cônjuges, a administração dos bens dos filhos
menores pelos seus representantes legais. Mas para cada um deste tipo de relações
patrimoniais há no direito de família normas específicas que arredam as normas gerais do
direito das obrigações e dos direitos reais.

E isto porque elas não têm como objeto relações jurídicas patrimoniais.

O direito de alimentos, como também veremos, embora possa ter como objeto uma prestação
de valor pecuniário, não é uma relação de conteúdo patrimonial, pois tem como objeto
imediato a sobrevivência da pessoa beneficiada por eles.

Da sua natureza eminentemente pessoal deriva, como consequência, o facto de serem direitos
indisponíveis, que não podem ser cedidos ou transmitidos a outrem por vontade das partes.

Os direitos de família são intransmissíveis quer inter vivos ou mortis causa, pois extinguem-se
com a morte do respetivo titular. Excecionalmente, a lei permite que alguns «direitos de ação»
se transmitampost mortem a certos herdeiros.

Mas há manifestamente diferença entre o efetivo exercício de um direito familiar e a mera


transmissão de um direito de acionar para obter a produção de certos efeitos de natureza
pessoal ou patrimonial.

Isso sucede designadamente com a ação de anulação de casamento por falta ou vício da
vontade (art. 68.°, n.° 1), que tem que ser intentada pelo cônjuge. Mas, caso o autor venha a
falecer na pendência da causa, pode esta ser prosseguida pelos parentes em linha reta ou
pelos seus herdeiros. No caso de impugnação da declaração de filiação feita por outrem que
não o próprio progenitor, se ocorrer o falecimento deste podem os herdeiros impugnar a
declaração por via judicial — art. 189.°. Também nas ações de reconhecimento da união de
facto, em caso da morte, o direito transmite-se aos herdeiros — art. 123.°, alínea b).

Acresce ainda que não são direitos que possam estar sujeitos a condição ou a termo, o que
impede que a aceitação dos efeitos legais esteja dependente da

verificação de determinado facto ou que esses efeitos perdurem apenas durante determinado
prazo fixado por uma ou ambas partes.

Ninguém pode pôr condições, como por exemplo fazer depender o estabelecimento da
paternidade da circunstância de o filho ser deste ou daquele sexo, ou de ter determinados
atributos físicos ou intelectuais. Ninguém pode casar a prazo, declarando que, findo
determinado período de tempo, o casamento se considera findo.

Pela sua própria essência, são ainda, em regra, direitos irrenunciáveis, pois a lei não consente
que os seus titulares a eles renunciem, dado que, ao atribuí-los, a lei teve em vista um
interesse mais amplo do que o próprio interesse individual. São também em regra direitos
inalienáveis e imprescritíveis.

Isto vai ter relevância em relação às denominadas «ações de estado», que são ações cujas
decisões se vão repercutir no estado civil das pessoas e que produzem efeitos em relação a
terceiros — art. 674.° do Código do Processo Civil. Podemos indicar como ações de estado as
ações de divórcio, de anulação de casamento, de reconhecimento da união de facto, as de
estabelecimento judicial de filiação, as de impugnação de filiação, de adoção, que são ações
constitutivas de direitos.

Como elas versam sobre direitos pessoais e indisponíveis, estão sujeitas a um regime
processual específico.

O art. 299.° do Código do Processo Civil não permite a confissão, desistência ou transação,
quando a ação respeite a direitos de natureza indisponível. No seu n.° 2 permite a livre
desistência nas ações de divórcio e separação de pessoas e bens, pois, como veremos, estamos
perante uma faculdade legal cujo titular pode ou não querer exercer.

A confissão dos factos invocados pelas partes não é permitida quando a vontade das partes for
ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela ação se pretende obter — art. 485.°, alínea c),
do Código do Processo Civil. É porém de ter em conta que é possível a confissão quando o
facto jurídico em causa transcenda o âmbito da vontade das partes.

Como veremos, nas ações para o estabelecimento de filiação seja do vínculo da maternidade
ou da paternidade, e que sejam propostas contra o próprio progenitor, este pode vir aceitar ou
por outras palavras «confessar» o facto. E isto porque o lacto jurídico em que se baseia o
vínculo da filiação é o da procriação c do nascimento com vida do filho e não depende da
vontade do progenitor.

Aliás no direito francês admite-se a confissão no processo de divórcio, que configura uma das
formas de dissolução do casamento, pois o mútuo acordo pode levar à dissolução do
casamento.

Temos ainda que atender ao facto de que a natureza da indisponibiiidade do direito de família
se reflete na impossibilidade da renúncia ao direito em si, mas não impede que o titular do
direito regule os respetivos litígios familiares por via da conciliação ou recorrendo a processo
de mediação preventiva ou no decorrer do processo judicial.

Tal não significa que as partes não possam através de convénios regular os seus próprios
direitos estabelecendo regras que estabeleçam acordos em situações de conflito. Esses
acordos têm a natureza jurídica de pactos e podem ser feitos extrajudicialmente e
apresentados em tribunal ou feitos diretamente em tribunal. Se o acordo ou pacto disser
respeito a filhos menores terão obrigatoriamente que ser sujeitos a homologação do tribunal
com prévia audição do Procurador da República.

São por natureza indivisíveis, pois não podem ser usados parcialmente: o seu titular não pode
usufruir de uma parte desses direitos e dispensar outra.

Há, no entanto, certos direitos no âmbito do direito de família, como o direito ao divórcio, o
direito a alimentos, que a lei consente que seja o titular a decidir, em concreto, se quer exercê-
los ou não. O titular é quem pode pedir ou não, que seja decretado o divórcio ou que o
obrigado seja ou não condenado a satisfazer a prestação alimentícia.

Mas o direito em si não é afetado, dado que o que a lei proíbe é que alguém possa renunciar
ao direito que em concreto lhe é conferido por lei. Esta regra conhece uma exceção, que
respeita ao instituto da adoção, por via da qual o progenitor natural, ao dar o seu
consentimento à constituição do vínculo de adoção entre adotante e adotado, vai fazer cessar
o vínculo da filiação natural.

Da caraterística de direito de natureza pessoal resulta, por fim, o facto de os direitos de família
serem de natureza imprescritível, pois o direito não se extingue pelo facto do decurso do
tempo. Mas existe a caducidade relativamente ao direito de intentar determinadas ações
familiares, como a ação de divórcio, a ação de anulação de casamento, a ação de
reconhecimento de união de facto, etc..

O Código de Família aceita o princípio da natureza formal deste ramo do direito. Podemos citar
como exemplificativos deste princípio os que se referem à obrigatoriedade da intervenção do
tribunal nas ações do divórcio litigioso (arts. 97.° e ss.), nas ações de anulação de casamento
(art. 66.° e ss.), na constituição do vínculo da adoção (art. 212.° e ss.), na ação de tutela — art.
224.°.

Os órgãos do registo civil são chamados a intervir, entre outros atos, na celebração do ato de
casamento (art. 33.°), na declaração de filiação, que pode também ser feita perante o notário
ou tribunal — art. 175.°.

Excecionalmente, até se prevê a intervenção do Ministro da Justiça, no caso de validação do


casamento por falta de requisitos formais — art. 73.°, alínea d).

A caraterística da tipicidade deriva da natureza imperativa do direito de família. Os institutos


do direito de família são limitados por numerus clausus o que quer significar que só são
permitidos os institutos previstos na lei, não estando dentro da disponibilidade das partes criar
outros por qualquer via.

A enumeração legal dos institutos é assim de natureza taxativa e só os que estão previstos na
lei de família podem como tal ser reconhecidos. É o que acontece com o casamento, o
divórcio, a filiação, a adoção, etc.. A lei não consente que as partes criem institutos familiares
por via contratual ou outra.

Alguns direitos de família são suscetíveis de posse, o que se traduz na detenção em concreto e
no exercício dos correspondentes direitos e deveres próprios de certa situação familiar. Com
especial relevância surge a posse de estado defilho, que consiste, como veremos, em alguém
aparecer como sendo tratado e considerado como filho de certa pessoa. E também a posse de
estado de casado, quando, por exemplo, homem e mulher vivam como se casados fossem e
como tal sejam reputados nas suas relações sociais, embora não haja registo de casamento.

Fala-se em posse de estado quando se verifica que alguém está no exercício das prerrogativas
de uma determinada situação familiar. A posse de direito de família constitui, no entanto,
mera presunção legal da titularidade do direito respetivo.

[23] Estabilidade: o estado jurídico familiar

As relações de família são, por sua própria natureza, de caráter duradouro, delas resultando
situações jurídicas estáveis e permanentes a que se chama estados.

O status familiae, ou o estado civil, é caracterizado pela situação jurídica de cada pessoa em
relação a determinado grupo familiar em que se insere.

O estado civilé, pois, uma situação jurídica complexa e duradoura, e é formado por um
conjunto de direitos, deveres, faculdades, etc., relativos a uma determinada pessoa enquanto
membro da comunidade familiar.

Os estados de família que se reportam ao casamento são o estado de solteiro, o estado de


casado, o estado de divorciado ou de viúvo.

Em relação à filiação, temos o estado de filho\ quanto ao parentesco e à afinidade, temos o


estado de parente, o estado de afim, etc.. As falsas declarações sobre o estado civil constituem
um ilícito penal no Anteprojeto do Código Penal.(n

Os direitos pessoais familiares persistem enquanto dura a situação objetiva que lhes serve de
suporte. Assim, eles só se extinguem ou alteram por causas previstas na lei. Por exemplo: a
morte do cônjuge ou o divórcio dissolvem o casamento.

[24] Importância e obrigatoriedade do registo civil

Os direitos pessoais e os direitos familiares, pela importância social que têm na vida de cada
cidadão e da sociedade em geral, estão sujeitos a um regime especial de registo que se
denomina o registo civil.

0 registo civil toma públicos os factos pertinentes à identificação de cada cidadão e bem assim
ao seu estado familiar. Estão portanto sujeitos a registo os factos que originam, constituem, ou
modificam o estado jurídico familiar. Cabe assim ao registo civil coligir e tornar público os
dados fundamentais da vida de cada cidadão do País, como seja o nascimento, o casamento,
os outros factos decorrentes da vida familiar, como o divórcio, o estabelecimento da filiação, a
inibição da autoridade paternal, a adoção, a tutela e a morte. É portanto pela via do registo
civil que se prova a idade, elemento integrador dos direitos civis e políticos, ou seja a
capacidade civil e eleitoral e se faz o recenseamento militar. Ele deve também servir para o
Estado fazer a estatística da sua população permitindo uma melhor planificação económica.
É pelo registo civil que se prova a condição de cidadão, por outras palavras, o registo civil
contem em si a prova da cidadania, da condição de cidadão angolano.

Na apreciação dos termos nacionalidade e cidadania há quem entenda que eles se não
confundem.(2)

Como regra o registo civil é obrigatório e consiste no único meio de prova dos factos sujeitos a
registo. Sem nos alongarmos na apreciação destas questões poderemos adiantar que
infelizmente por razões históricas e culturais, o registo civil em Angola sofre de debilidades
estruturais e não tem cumprido as atribuições que a lei lhe confere.

Para substituir a falta de registo civil, recorre-se com frequência à prova dos factos por via de
testemunhos, geralmente das autoridades tradicionais, que não se revestem de precisão ou
mesmo de veracidade. São por demais conhecidas as dificuldades que têm advindo da falta de
segurança do sistema de registo civil.

O art. 9.° da Lei n.° 1/88 mantem a obrigatoriedade do registo de todos os atos previstos nas
leis do registo civil e subsidiariamente no Código do Registo Civil em vigor. O acesso às
certidões dos atos do registo civil é, em regra, livre, mas as certidões de cópia integral estão
sujeitas a restrições. '

Os direitos familiares, pelo seu caráter estável e duradouro, estão obrigatoria¬mente sujeitos a
registo. O art. l.° do Código do Registo Civil define quais os factos que constituem objeto do
registo civil, havendo ainda a acrescer os que importam a sua modificação ou extinção/ *

Porque são factos que se vão refletir na vida pessoal e familiar do cidadão, devem ser objeto
de registo obrigatório.

O registo civil destina-se a fazer prova dos atos sujeitos ao registo obrigatório. Segundo a lei,
na falta de registo, a prova só poderá ser feita por outro meio que conste das ações de estado
ou de registo civil — art. 4.° do Código de Registo CiviP*.

Como veremos diversos artigos do Código de Família reiteram este princípio: o art. 38.°, n.° 1,
quanto ao ato de casamento e o art. 162.°, n.° 1, quanto ao estabelecimento da filiação.

No Código de Família foi alargada a intervenção das Conservatórias do Registo Civil e a


atribuição da sua competência em processos familiares. A elas passou a caber,
designadamente:

— receber a declaração dos nubentes sobre a adoção do regime económico do


casamento;

— o processo de divórcio por mútuo acordo que já lhe era atribuído pela Lei n.° 9/78 de
26 de maio, em certas condições;

— o processo de reconhecimento da união de facto por mútuo acordo;

— o processo de impugnação de declaração de filiação feita por terceiro que não o


progenitor;
— o processo de afastamento da presunção de paternidade do marido da mãe;

— a obrigatoriedade do envio ao Ministério Público competente da certidão do assento


de nascimento que seja omisso quanto aos vínculos da maternidade ou de paternidade.

A prova dos factos constantes do registo quando derivem de enunciações feitas pelo
declarantes e não comprovadas diretamente pelo oficial do registo civil podem ser objeto de
prova em contrário, nos termos normais do direito.

0 registo civil está entre nós institucionalizado como função dos órgãos do Estado de âmbito
nacional. O seu fortalecimento e integração em todo o território nacional é de importância
vital para consolidação das próprias estruturas do Estado.

[25] Natureza específica da garantia

Aponta ainda alguma doutrina o facto de os direitos pessoais de família serem direitos de
garantia frágil ou resultarem de normas de juridicização de preceitos morais fracamente
coercíveis. A violação dos direitos impostos por lei fica muitas

vezes sem sanção.

Sendo normas de natureza pessoal, os comportamentos ou prestações que elas determinam


podem ou não ser realizados, sem que possa exercer-sc coação direta

sobre a pessoa que, por lei, está obrigado a cumpri-los.

qualquer outra, a não ser nas ações de estado c nas ações de registo. 2. Os factos
comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo, sem que seja pedido o
cancelamento ou a retificação dos assentos e averbamentos que lhes correspondem.»

Na verdade, sendo o direito de família eminentemente pessoal, se o próprio titular o não


quiser exercer ou o exercer ao arrepio da lei, o Estado ou o titular do direito só por via indireta
o pode coagir. O titular do direito que foi violado não pode, como por exemplo no direito das
obrigações, obter a execução específica. Mas há que ponderar se pode ou não à face da lei
obter indemnização por danos morais, dado que nada na lei parece proibir tal ressarcimento.

Na conceção subjacente ao Código de Família vigente não era aceitável o princípio da


indemnização por danos morais em virtude da violação de deveres familiares, dado que se não
aceitava na conceção socialista do direito, o pretium doloris, ou seja que os danos morais
pudessem ser compensados com valores materiais.

Já outros sistemas jurídicos aceitavam o pedido de indemnização por danos morais no caso de
faltas familiares graves, devendo o pedido ser formulado em simultâneo com o pedido de
divórcio.

No direito português está previsto esse direito, na nova redação do art. 1792.° do Código Civil,
que lhe foi dada pela Lei n.° 61/2008 de 31 de outubro.

No entanto há certas violações dos deveres familiares que, pela sua gravidade, constituem
ilícito penal. Tanto assim é que os códigos penais tipificam crimes, denominados crimes contra
a família, tais como o crime de bigamia, o da subtração de menores, o da não prestação de
assistência moral e material à família, a violação grosseira dos deveres paternais, etc..

A Lei n.° 2 053, de 22 de março de 1952 (Lei do Abandono da Família), pune a não prestação
alimentar ao menor ou ao cônjuge, a falta de assistência económica e moral a filhos menores e
ao cônjuge, o abandono do domicílio conjugal, desde que preenchidas as demais condições
especificadas no diploma. O certo é que essa lei se mostrou quase totalmente inoperante e
despida de valor coativo.

A própria legislação penal em matéria de violação ilícita dos deveres familiares tem evoluído
de forma sensível. O Código Penal Português, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 48/95, de 15 de
março, previa como crimes contra a família o crime de bigamia (art. 247.°), o de falsificação de
estado civil (art. 248.°), o de subtração de menor (art. 249.°), e o de violação da obrigação de
alimentos (art. 250.°). A Lei n.° 59/2007 de 4 de setembro veio ainda punir a violência intra-
familiar autonomizando a par dos maus tratos, o crime de violência doméstica.

Teremos ocasisão de a propósito de cada instituto do direito de família, de estudar as


previsões da lei penal que recaiem sobre determinadas condutas.

O crime de adultério, por exemplo, deixou de ser punido na maior parte das legislações penais,
sendo certo que, em regra, o adultério da mulher era punido com muito mais severidade do
que o do homem.

Em compensação, alterou-se a lei, prevendo-se que o crime de violação possa existir entre
marido e mulher. Hoje procura-se proteger os membros mais débeis da família, dar maior
eficácia ao combate aos crimes ligados à violência doméstica e à falta de assistência material
que põem em causa a própria subsistência das pessoas que compõem a família.

0 Anteprojeto do Código Penal relativamente ao crime contra a liberdade sexual pune como
agressão sexual todo o ato sexual realizado por meio de violência., coação ou colocação da
vitima em situação de inconsciência ou de impossibilidade de poder resistir — artigos I68°e
169°.

Prevê ainda especificamente Crimes contra a Família, que abrangem os crimes contra o
Casamento, o Estado Civil e a Filiação e contra Outros Bens Jurídicos Familiares, como o
Abandono Material, a Subtração ou Recusa de Entrega de Menor, a Divulgação de Falsa
Paternidade — artigos 221° a 232°.

A Lei contra a Violência Doméstica, Lei n.° 25/11 de 14 de julho a que atrás nos referimos
pune, entre outros, factos ocorridos no meio familiar.

Quando não constitua um ilícito penal, a violação dos deveres familiares pode conferir ao
titular do direito ofendido a faculdade do exercício de direitos. É o caso do direito a pedir
divórcio por violação dos deveres conjugais por parte do outro cônjuge. No caso de violação
dos deveres paternais, o Ministério Público ou o outro representante legal do menor podem
vir pedir a inibição da autoridade paternal relativamente a quem a esteja a exercer.
No referido Anteprojeto do Código Penal prevê-se como pena acessória para os crimes da
natureza sexual a decretação da inibição da autoridade paternal do agente do crime — art.
187.°.

Deve apontar-se que, em muitas legislações, se começa a manifestar, através de diversos


mecanismos instituídos com o propósito da proteção da família, a tendência para assegurar
maior garantia aos direitos familiares.

CAPÍTULO 5.0

O PARENTESCO

[26] Noção

O parentesco é o vínculo que une duas pessoas, em consequência de uma delas descender da
outra ou de ambas procederem de ascendente comum.

No Código de Família, o conceito de parentesco por laços de sangue vem contido no seu art.
9.°, nos termos do qual «parentesco por laços de sangue é o vínculo que liga duas pessoas por
virtude de uma descender da outra ou de ambas descenderem de progenitor comum».

Tem, pois, como causa o facto biológico de alguém descender de outrem ou entre ambos
existir um comum ascendente. Tal como a generalidade dos direitos de família, o parentesco é
uma relação intercorrente entre duas pessoas que, neste caso, estão ligadas por laços de
sangue.

O conceito de parentesco é, pois, baseado, em regra, em laços carnais ou de sangue, mas não
quer dizer que ele seja assim uniformemente aceite por todos os povos, pois em algumas
estruturas familiares não são só os laços de sangue que estabelecem as relações de
parentesco.

Basta lembrar que no direito romano a família de tipo patriarcal era agnática, pois era
constituída pelos membros submetidos à patria potes tas, mesmo que não ligados entre si por
laços de sangue.

Há assim quem distinga entre a agnatio, que é o vínculo que se estabelece pela subordinação
comum dos membros da família ao respetivo chefe, e a cognatio, que é o vínculo de
parentesco baseado na comunidade de sangue. Quando se dá prevalência aos laços de
parentesco temos a família linhagem; se se atende mais aos laços de aliança, temos afamília
lar, mais restrita. Estes dois conceitos de parentesco podem aparecer nas sociedades
tradicionais africanas, nas quais, em certos casos, a mulher é considerada como membro da
família, embora não estando ligada por laços de sangue ao marido e seus parentes.

Se forem tomadas em consideração de forma mais ampla as relações de parentesco vamos


encontrar a família extensa ou grande família. Se os laços de parentesco forem restringidos ou
limitados, temos a família estreita ou restrita que representa a tendência das sociedades
modernas.
Pode ainda aceitar-se o parentesco espiritual, como o do direito canónico, que liga os
padrinhos do batismo aos seus afilhados, figura que surge igualmente com maior ou menor
relevância quando alguém é introduzido por outrem numa determinada comunidade.

[27] Linhas e graus de parentesco

a) Linhas de Parentesco

0 conceito de parentesco do Código de Família é o mesmo que consta do Código Civil no seu
art. 1578.°, mas o Código de Família nâo consente qualquer tipo de discriminação entre
«parentesco ilegítimo» e «parentesco legítimo», ao invés do que fazia o Código Civil. Dentro
do ponto de vista que era defendido por este Código, o parentesco legítimo era aquele que
derivava de pessoas unidas pelo casamento e o parentesco natural era o que advinha de
pessoas não unidas pelo casamento. Nas linhas de parentesco distingue-se entre a linha
paterna e a linha materna que identificam a ascendência pelo lado do pai e a ascendência pelo
lado da mãe. Em certos sistemas de parentesco predomina ou uma ou outra linha de
parentesco, mas o Código de família não faz qualquer discriminação.

Pode ainda classificar-se o parentesco em parentesco «duplo» ou «simples», sendo o


parentesco duplo o de irmãos do mesmo pai e da mesma mãe, ou seja, de pais comuns e com
as mesmas linhas maternas e paternas de parentesco. No parentesco simples, há só um
vínculo que une o irmão a outro irmão, ou seja, só pelo lado paterno ou só pelo lado materno.

O grau de parentesco costuma ser classificado consoante as suas linhas e pelos seus graus.

As linhas e os graus de parentesco servem para determinar a proximidade e a natureza do


vínculo, como define o art. 10.° do Código de Família.

As linhas de parentesco são classificadas no art. 11.°, n.° 1 do Código de Família, da seguinte
forma:

a) linha reta ou estirpe, que liga as pessoas que descendem uma da outra;

b) linha colateral ou transversal, que liga as pessoas que têm um ascendente

comum.

A. Parentesco na linha reta

A linha reta liga, pois, entre si, as pessoas que descendem uma da outra ou seja a estirpe. A
estirpe é um tronco comum de pessoas que têm um ascendente comum.

Quando se considere a linha reta do ascendente para o descendente, ou seja, do avô para o
pai e para o filho, temos a linha reta descendente\ se caminharmos em sentido inverso, a
partir do descendente, ou seja filho, pai e avô, temos a linha reta ascendente — art. 11.°, n.° 2
do Código de Família, tal como fazia o art. 1580.° do Código Civil.

Na linha de parentesco colateral, já se não encontra o encadeado de relações de filiação, pois


essa linha tem origem no facto de os parentes terem só um ascendente comum.
Os ascendentes e os colaterais bifurcam-se em dois troncos distintos, os da linha paterna e os
da linha materna, quando o ascendente comum vem por via do pai ou por via da mãe.

Relativamente aos irmãos é que pode haver simultaneamente a mesma ascendência paterna e
materna e temos os irmãos germanos ou bilaterais.

Mas se os irmãos têm unicamente o mesmo pai, já são consanguíneos e se têm somente a
mesma mãe são irmãos uterinos, sendo uns e outros irmãos unilaterais.

Vejamos as diferentes linhas de parentesco e a forma como podemos representá-las


graficamente para melhor apreensão deste vínculo familiar.

Tomando como ponto de partida X-EGO, temos os seus ascendentes em linha reta materna e
os seus ascendentes pela linha paterna.

Os primeiros são a mãe, os dois avós maternos, os quatros bisavós maternos e os oitos trisavós
maternos. Os da linha paterna são o pai, os dois avós paternos, os quatros bisavós paternos e
oitos trisavós paternos. Na linha reta descendente temos dois filhos, quatro netos e oito
bisnetos. Na nossa ascendência o número de ascendentes aumenta em progressão aritmética:
2,4, 8,16,32, etc. na l.a, 2.a,

3. a, 4.*, 5.a gerações, de forma sucessiva e infinitamente.

Figura 1 — Parentesco em linha reta

B. Parentesco na linha colateral

O ascendente comum é A, que teve um filho B e uma filha B\ que são parentes em 2.° grau,
parentes na linha colateral, ou seja, irmãos. B é o pai de C e B* é a mãe de C\ Na segunda
geração temos os tios e os sobrinhos, ou seja B é tio de C’ e C é sobrinha de B. B\ por sua vez, é
tia de C e C é sobrinho de B\ Entre si, C e C são primos. Tio e sobrinho são parentes no 3.° grau
da linha colateral. C e C\ sendo primos, são parentes em 4.° grau na linha colateral. O filho de C
é D e a filha de C\ que é D’, são, respetivamente, sobrinhos-netos de B e B\ que são seus tios-
avós, parentes no 4.° grau da linha colateral, e são primos de C e C\ parentes no 5.° grau da
linha colateral e, entre si, são parentes no 6.° grau da linha colateral, que é o limite legal do
parentesco estabelecido no art. 13.° do Código de Família.

A - PROGENITOR COMUM

Figura 2 — Parentesco na linha colateral

C. Irmãos bilaterais e unilaterais


Tomemos como exemplo A (pai) que teve de X dois filhos, X’ e X”. A veio a casar com B (mãe).
A e B tiveram três filhos, respetivamente C, C’ e C”. Posteriormente, B enviuvou de A e veio a
casar com Y. De B e Y nasceram os filhos Y* e Y”.

Relativamente a C, C’ e C”, temos que eles são entre si irmãos germanos ou bilaterais. Já em
relação a X e X’, eles são unicamente irmãos pelo lado do pai, ou seja, irmãos consanguíneos.

E, em relação a Y* e Y”, C, C’ e C” são irmãos pelo lado de sua mãe, ou seja, irmãos uterinos.
Qualquer destes são, entre si, irmãos unilaterais.

Assim e exemplificando:

— A e B tiveram os filhos C, C’ e C” — irmãos germanos.

— A e X tiveram os filhos X e X’, que são, relativamente aC,Ce C”, irmãos consanguíneos.

— B e Y tiveram os filhos Y’ e Y”, que são, relativamente a C, C’ e C”, irmãos uterinos.

Os irmãos consanguíneos e os uterinos, como só têm um progenitor comum, são irmãos


unilaterais.

É de notar que X* e X” não têm qualquer vínculo de parentesco com Y* e Y” por não terem
entre si qualquer progenitor comum.

Figura 3 — Irmãos bilaterais e unilaterais

b) Graus de parentesco

0 parentesco é medido por graus, e é tanto mais próximo quanto menos são os graus de
parentesco que há entre dois parentes.

A lei define a forma do cômputo dos graus de parentesco, partindo aliás de uma base natural
de contagem das diversas gerações.

O art. 1581.°, n.° 1 do Código Civil explicava como se fazia o cômputo dos graus, dizendo:
«Entre parentes na linha reta, há tantos graus quantas as pessoas que formam a linha de
parentesco, excluindo o progenitor.»

O n.° 2 do art. 1581.° dizia que na linha colateral se contavam os graus pela mesma forma,
subindo por um dos ramos e descendo pelo outro, mas sem contar o progenitor comum.

0 Código de Família faz por igual forma a contagem dos graus de parentesco, embora no art.
10.° se fale de gerações e não em pessoas que compõem a linha de parentesco.

Aplicando estes conceitos, veremos que a contagem dos graus de parentesco se faz contando
as gerações entre as pessoas em causa, ou contando os parentes incluídos na linha de
parentesco e excluindo o progenitor comum, consoante se trate de linha reta ou linha
colateral.

Assim, entre o pai e um filho há um grau de parentesco; entre avô e neto, dois

graus; entre bisavô e bisneto, três graus.

Na linha colateral, temos os irmãos como parentes em 2.° grau; tio e sobrinho, parentes em 3.°
grau; os primos filhos dos irmãos, parentes em 4.° grau e os filhos

de primos são entre si parentes no 6.° grau.

Nesta linha somam-se os graus e exclui-se o ascendente comum.

A lei civil impõe limites ao parentesco na linha colateral, já que, na linha reta, o parentesco não
qualquer limite.

Assim dispunha o art. 1582.° do Código Civil, ao dizer que, salvo disposições de lei em
contrário, os efeitos do parentesco produziam-se em qualquer grau da linha reta e até ao
sexto grau da linha colateral.

No mesmo sentido dispõe o art. 13.° do Código de Família.

Na linha reta não há limites de parentesco, pois eles resultam do facto natural do termo da
longevidade humana, que não permite que coexistam vivas mais de três e raramente quatro
gerações.

Já na linha colateral o parentesco podia produzir-se indefinidamente, e daí o limite previsto na


lei.

O direito canónico faz a contagem dos graus de parentesco de uma forma diferente, contando
só o número de gerações entre o ascendente comum e os parentes em causa. Segundo este
critério, os irmãos são parentes em l.° grau; os primos co-irmãos, parentes em 2.° grau; os
primos segundos, parentes em 3.° grau, etc.. Havendo dois ramos de extensão diferente,
conta-se o mais extenso, como o parentesco entre tio e sobrinho, que é do 2.° grau.

[28] Efeitos do parentesco: direitos, obrigações e incapacidades

O parentesco produz importantes efeitos de diversa natureza: dele derivam direitos,


obrigações e impedimentos.

Verifica-se que estes efeitos tendem, cada vez mais, nas diversas legislações, a produzir-se
entre parentes de graus mais próximos, pois a família extensa vai perdendo a sua importância
social e, restringindo-se o círculo familiar, vai ganhando maior relevo a família restrita.

a) Efeito sucessório

O principal efeito do parentesco é o efeito sucessório. No caso de o autor da herança falecer


sem testamento, são chamados os sucessores legítimos — art. 2131.° do Código Civil.
Nos termos do art. 2132.° do Código Civil, são sucessores legítimos os parentes c o cônjuge. A
ordem da sucessão legítima vem especificada no art. 2133.° e tem como limite os colaterais do
6.° grau.

A classe dos sucessíveis vem ordenada de forma escalonada, de acordo com a ordem e a
proximidade do grau de parentesco.

O art. 2157.° do Código Civil define como herdeiros legitimários os des¬cendentes e os


ascendentes, que são especialmente protegidos.

b) Obrigação e direito a alimentos

Outro importante efeito que decorre do parentesco é a obrigação e o direito de alimentos,


que, como já temos dito, provêm do direito e dever de assistência que deve existir entre os
membros da família.

O direito e a obrigação de alimentos vêm regulados no Título VIII do Código de Família e


estabelecem-se entre pessoas ligadas por diferentes vínculos familiares, como o parentesco, o
casamento, a união de facto, a afinidade e a tutela, por vezes.

O art. 249.°, n.° 1 do Código de Família dispõe sobre quem está obrigado a prestar alimentos
ao menor, mencionando em primeiro lugar os pais e adotantes e depois os outros
ascendentes, irmãos maiores, e tios e o padrasto ou madrasta, o que significa que a obrigação
de alimentos a um menor se estende até ao 3.° grau da linha colateral e a um afim, como
veremos.

Entre maiores, a obrigação vem regulada no n.° 2 do art. 249.° e estabelece-se entre cônjuge
ou ex-cônjuge, descendentes ou adotados e irmãos, ou seja, na linha colateral a obrigação
estende-se só até aos parentes do 2.° grau.

c) Impedimento matrimonial

0 parentesco produz ainda efeitos no campo do direito matrimonial, pois pode constituir
impedimento matrimonial.

Há tipos de parentesco que importam a proibição absoluta de contrair casamento, como é o


caso do casamento entre parentes em linha reta (ex: entre pai e filha, ou entre mãe e filho) e
ainda o casamento entre parentes no 2.° grau da linha colateral, ou seja, entre irmão e irmã.
Era o que prescrevia o art. 1602.° do Código Civil e vem consignado no art. 26.° do Código de
Família.

O art. 26.° proíbe o casamento entre parentes ou afins na linha reta na sua alínea a), e o
casamento entre parentes do 2.° grau da linha colateral na sua alínea b). Os atuais artigos 25°
e 26° do Código de Família foram reformulados na sua redação após a consulta popular
efetuada sobre o projeto do Código para tornar mais compreensível o seu conteúdo. No corpo
destes artigos definc-se agora o próprio conceito de impedimento matrimonial absoluto c
relativo.
A redação do art. 26.°, alínea b) também foi alterada, pois onde antes se mencionavam os
«irmãos naturais ou adotivos» passou a dizer-se «parentes no segundo grau da linha
colateral», o que, por força do que já vem estatuído no art. 8.°, tem precisamente o mesmo
alcance.

O parentesco em 3.° grau, entre tio e sobrinho, constituía impedimento meramente


impediente segundo o que dispunha a alínea b) do art. 1604.° do Código Civil.

Tal impedimento não vem previsto no Código de Família.

Esta questão foi objeto de controvérsia aquando da consulta popular do projeto do Código de
Família.

Houve quem sustentasse que se deveria introduzir obrigatoriamente o impedimento de


casamento entre tio e sobrinha ou entre tia e sobrinho, dado o lugar privilegiado que tem o tio
materno e a tia na sociedade em que predomina o sistema matrilinear.

Tal tipo de união seria considerada incestuosa em diversas áreas do direito costumeiro no
nosso País.

Não obstante, essa posição não prevaleceu, porque se concluiu que não seria necessário
proibir tal tipo de casamento quando fosse o próprio direito costumeiro a rejeitá-lo.

Os impedimentos matrimoniais relativos são fixados em normas de natureza excecional, por


serem de natureza proibitiva. Eles impedem a celebração do casamento entre certas e
determinadas pessoas e contêm restrições ao direito de casar. Ora o facto de não se proibir
não significa, como é óbvio, que esse tipo de casamento seja favorecido pelo legislador.

O casamento entre tia e sobrinho ou tio e sobrinha poderá, pois, ocorrer entre nubentes que
não sigam as normas predominantes do direito tradicional, pelo que a proibição não foi
introduzida no Código de Família como impedimento matrimonial.

d) Exercício de funções e direito de acionar

Também veremos que o parentesco tem relevância no exercício de certas funções de natureza
familiar, como a de membro do conselho de família (art. 17.°, n.°s 1 e 2), ou a de tutor de
menor ou interdito (arts. 233.° e 235.°).

A função de membro do conselho de família é atribuída aos parentes das partes no processo e
a tutela cabe em primeiro lugar, de forma genérica, aos parentes do tutelado.

De igual modo podem os herdeiros propor certas ações de estado, como a do reconhecimento
da união de facto por morte de um dos companheiros (art. 123.°, b)) e de impugnação de
declaração de filiação (art. 189.°), e os parentes na linha reta têm o direito de prosseguir na
ação de anulação de casamento (art. 68.°, n.° 1).

e) Impedimentos e inabilidades

O parentesco impede, por outro lado, o exercício, em determinados casos, das funções de
alguém que nelas está investido. Pode fundamentar o impedimento do Juiz, no caso do art.
122.°, n.° 1, alíneas b) e d) do Código de Processo Civil, que se referem cônjuge aos parentes
ou afins na linha reta ou no 2a grau da linha colateral ou ser causa de dedução de suspeição
com os fundamentos do art. 127.°, n.° 1, alíneas a) que se refere ao cônjuge e aos parentes e
afins na linha reta até ao 4o grau da linha colateral e d) que se refere ao cônjuge e aos
parentes ou afins na linha reta, do mesmo Código, nos casos aí especificados.

O Código de Processo Civil, no seu art. 618.°, alínea b), define quais são as inabilidades legais,
por motivo de ordem moral, para depor como testemunha, mencionando os descendentes e
os ascendentes.

0 Código de Processo Penal tem normas proibindo certos parentes de serem testemunhas (art.
216.°, n.° 3) e proíbe as perguntas sobre certos factos aos parentes, afins e cônjuges (artigo
218°). O art. 125.° do Código de Processo Civil torna extensivos aos representantes do
Ministério Público e aos funcionários judiciais os artigos do Código de Processo Civil que
regulam os impedimentos e suspciçóes dos juízes.

f) Relevância noutros ramos do direito

O vínculo do parentesco tem também relevância no campo do direito penal, pois, nos casos
em que existe parentesco entre o réu e a vítima, tal facto pode constituir circunstância
agravante, como no caso do crime de parricídio, que prevê a qualidade de ascendente da
vítima como circunstância qualificativa do homicídio — art. 355.° do Código Penal. No
Anteprojeto do Código Penal o art. 136.°, alínea a) pune como homicídio qualificado aquele
que for cometido contra ascendente, descendente, adotante ou adotado ou parente até ao
3ograu da linha colateral.

Quando o agente tenha agido em desafronta de parente, essa circunstância é tida em conta
para a atenuação da culpa — art. 39.°, n.° 13 do Código Penal.

O parentesco tem igualmente relevância no direito do arrendamento, pois o Dec. n.° 43 525,
de 7 de março de 1961, reconhece o direito à transmissão do arrendamento, por morte do
arrendatário, para o cônjuge, descendentes c ascendentes, nas condições fixadas no art. 76.°.

CAPÍTULO 6.°

A AFINIDADE

[29] Noção de afinidade, linhas e graus

O vínculo de afinidade, segundo a lei, é aquele que liga cada um dos cônjuges aos parentes do
outro cônjuge. É o vínculo que deriva da aliança entre marido e mulher e que se estende à
família do outro cônjuge. Não advém de laços de sangue mas do casamento.

É, assim, um vínculo pessoal que liga uma pessoa a todos os parentes do respetivo cônjuge.

O art. 14.° do Código de Família diz: «Os parentes de um dos cônjuges são afins do outro
cônjuge».
A afinidade inicia-se com o casamento e só produz efeitos a partir da sua celebração. Ao
contrário do que acontece, por exemplo, com o estabelecimento da filiação, não tem efeitos
retroativos.

A afinidade não advém do facto natural da procriação e tem como causa o ato jurídico do
casamento, constituindo-se em relação a um parentesco alheio, ou seja, ao parentesco do
outro cônjuge. Mas como a afinidade não gera afinidade já não liga o cônjuge aos afins do
outro cônjuge.

A afinidade reproduz as mesmas linhas e os mesmos graus do parentesco.

O art. 15.° do Código de Família diz precisamente que a afinidade se determina pelas mesmas
linhas e graus que definem o parentesco por laços de sangue. Idêntico teor quanto às linhas e
graus de afinidade vinha consagrado no art. 1585.° do Código Civil.

ss

Vínculo da Afinidade

AVÔ AVÓ AVÔ AVÓ w

Av. Av: Av.*

(ENTEADO)

Figura 4 — Afinidade

A contraiu casamento com B.

B é filha de C e D.

B é irmã de B\ B” e B”\

B é mãe de F.

C é filho de Av. e Av.’ e D é filha de Av.” e de Av.’”.

B’ é pai de S, B” é pai de S’ e B’” é mãe de S”.

Em virtude do casamento de A e B, A passou a ter os seguintes vínculos de afinidade com os


parentes de B:

A é genro de C e D que, por sua vez, são, respetivamente, seu sogro e sogra, sendo estes seus
afins no l.° grau da linha reta, a qual é ascendente em relação a A e descendente em relação a
C e D.

A é cunhado de B, B’ e B”, que, por isso, são seus afins no segundo grau da linha colateral.
A é padrasto de F, o qual é enteado de A, ou seja: A e F são afins no 1.° grau da linha reta,
descendente em relação a A e ascendente em relação a F.

Sogro e sogra, padrasto e madrasta, enteado e enteada e cunhados são designações


específicas do vínculo de afinidade, pois quanto aos demais afins, como avô, tio, sobrinho e
primo, a designação é a mesma que a do parentesco,

acrescentando-se «por afinidade» para expressar que o vínculo não está estabelecido por
laços de sangue.

Como se explicitou, a afinidade não se estabelece com os afins do cônjuge mas tão só com
parentes do próprio cônjuge.

Tal conceito estrito da afinidade não é aquele que predominou no passado e que ainda
predomina na sociedade tradicional africana, em que o casamento vai estabelecer vínculos de
aliança entre os próprios familiares de ambos os cônjuges.

A afinidade, tal como é reconhecida na lei vigente, restringe-se, pois, ao vínculo que une os
cônjuges aos parentes do outro cônjuge, mas não se estabelece entre os parentes de um dos
cônjuges e os parentes do outro, nem se estende aos seus afins. Assim, os irmãos de um dos
cônjuges são cunhados do outro cônjuge, mas já os cônjuges dos irmãos não são seus afins. E
igualmente os irmãos de um cônjuge são cunhados do outro cônjuge, mas não têm qualquer
vínculo com os irmãos dele.

Da mesma forma, se algum dos cônjuges tiver filhos de anteriores matrimónios, estes filhos
não são afins entre si, e por isso nada impede que venham a contrair matrimónio.

No caso de o casamento ser declarado nulo extingue-se de imediato o vínculo de afinidade,


pois o casamento de que ele derivava foi dado sem efeito.

De igual modo, a união de facto que não chegou a ser reconhecida não é causa de constituição
do vínculo da afinidade.

Segundo o Código de Família, a afinidade também tem relevância para o exercício de certos
cargos de natureza familiar, como o de membro do conselho de família (art. 17.°, n.° 1), o
cargo de tutor do menor (art. 233.°, n.° 2).

Também o vínculo de afinidade em linha reta impede que alguém seja chamado a depor como
testemunha nas causas cíveis em que os seus afins sejam parte, e, nos processos de natureza
criminal, o impedimento abrange também os afins em 2.° grau, ou seja, os cunhados.

Constitui igualmente caso de impedimento e de suspeição do Juiz e do Magistrado do


Ministério Público, nos termos da lei processual, já citada no capítulo do parentesco.

[31] Não cessação da afinidade

O vínculo de afinidade está dependente do próprio casamento do qual ele deriva, e segundo a
conceção de que o casamento válido devia perdurar em princípio por toda a vida dos cônjuges,
entendia-se que a afinidade devia prevalecer depois da dissolução do casamento.
A orientação de que o vínculo da afinidade perdurava mesmo depois da dissolução por morte
ou por divórcio do casamento é a consagrada no art. 1585.° do Código Civil Esta é a posição
adotada por outras legislações, como o direito civil francês, italiano e espanhol.

No projeto do Código de Família propunha-se de forma diferente, entendendo-se que em


certos casos não se justificava a perduração do vínculo da afinidade para além da dissolução
do casamento.

O teor da proposta do projeto era o seguinte: «Salvo para o efeito de constituir impedimento
matrimonial, a afinidade cessa nos casos de dissolução do casamento por divórcio e ainda nos
casos de dissolução por morte quando o cônjuge sobrevivo contraia novas núpcias».

Mas, após a discussão popular do projeto do Código de Família, prevaleceu a opinião de que a
afinidade devia continuar em todos os casos após a dissolução do casamento, fosse ela por
morte ou por divórcio.

A razão fundamental foi a do receio de que a dissolução do vínculo pudesse vir a afetar as
relações entre os afins do cônjuge e os filhos havidos durante o casamento, ou seja, avós e tios
relativamente aos descendentes do cônjuge que faleceu ou se divorciou.

Apesar de se reconhecer que o vínculo de afinidade se torna bastante ténue no caso da


dissolução do casamento por divórcio, e que ele se não repercute em termos jurídicos na
situação que estava no centro das preocupações apresentadas,

pois o vínculo de parentesco com os menores não é afetado pelo divórcio dos pais, o projeto
foi alterado, dispondo o art. 15.°, n.° 2.° do Código de Família que: «A afinidade não cessa pela
dissolução do casamento». No entanto assinala-se que na recente reforma do direito de
família português o correspondente art. 1585.° do Código Civil foi alterado e afinidade só não
cessa pela dissolução de casamento por morte.

Em qualquer caso, é preciso ter em conta que a dissolução do casamento faz com que os
parentes do ex-cônjuge que surjam após a dissolução já não sejam afins do outro cônjuge.

Por exemplo, os filhos do outro cônjuge tidos antes do casamento, ou os filhos nascidos de
terceira pessoa durante a vigência do casamento são enteados do cônjuge. Mas os que
nascerem depois de declarado o divórcio, já o não são.

Depois da dissolução do casamento já se não constitui o vínculo de afinidade com os novos


parentes do ex-cônjuge.
CAPÍTULO 7.0

CONSELHO DE FAMÍLIA

[32] Noção e alcance social

O novo Código de Família veio dar especial relevo ao Conselho de Família, que surge como
órgão coadjuvante das funções judiciais, chamado a intervir nas diversas ações relativas às
relações jurídicas familiares.

Ao atribuir ao Conselho de Família tal importância teve-se em mente a realidade social


subjacente à sociedade tradicional angolana.

O relevo que lhe é dado resulta do aproveitamento de um instituto familiar do direito


costumeiro a que se refere o relatório do Projeto do Código de Família.

É sabida a importância que nas relações familiares tem a intervenção dos membros da família
de uma e de outra parte, para resolver os litígios que se deparam na vida familiar. São as
chamadas «reuniões de família», que são convocadas para apreciação e deliberação sobre
questões e dissídios que surgem nas relações entre membros da comunidade familiar.
Normalmente são chamados a intervir os elementos mais idosos ou os considerados mais
idóneos pelos demais familiares.

Partiu-se da ideia de que os membros da família são os que, em princípio, melhor devem
conhecer os problemas e os factos que se processam no seu seio, suas causas e possíveis
efeitos e que, por isso, serão quem melhor poderá informar e dar parecer ao tribunal sobre as
questões submetidas a julgamento.

O Conselho de Família deve, por conseguinte, intervir nas ações em que se discute a
constituição, modificação ou extinção das relações familiares. Por esse motivo, as normas que
se lhe referem vêm inseridas no Capítulo IV do Título II, «Constituição da Família».

O projeto do Código de Família referia-se ao Conselho de Família em dois únicos artigos. Após
a conclusão da discussão popular e em razão da importância que se reconheceu ter este novo
órgão nas ações familiares, foram introduzidas novas disposições legais, que ampliaram a sua
intervenção e vieram regular a forma

de designação dos membros do Conselho e a respetiva tomada de deliberações. Foram então


consagrados quatro artigos (art. 16.° ao art. 19.°) ao instituto do Conselho de Família.

Quis-se deste modo sublinhar que as questões familiares nem sempre são do foro
exclusivamente pessoal das partes envolvidas e que elas se repercutem no meio social em que
as partes se inserem.
No Código Civil os poderes atribuídos ao Conselho de Família eram muito restritos e previam-
se unicamente no instituto da tutela, nos arts. 1951.° e seguintes. O Conselho de Família era
constituído unicamente por dois vogais e pelo representante do Ministério Público, que a ele
presidia.

O art. 1954.° imputava ao Conselho de Família a função de fiscalizar as funções do tutor,


devendo ser ouvido em deliberações sobre certas questões relativas à instauração da tutela e
à administração dos bens do tutelado e nas conferências de interessados nos processos de
inventário obrigatório.

Outro alcance é dado no Código de Família à intervenção deste órgão como coadjuvante da
administração da justiça, pois a sua participação junto do tribunal vai desde logo permitir que
sejam esclarecidas as questões que estão na base dos litígios existentes, dando ao Juiz uma
versão dos factos muito mais próxima da realidade do que aquela que se pode obter através
dos depoimentos de testemunhas.

[33] Natureza consultiva, constituição e indicação dos membros, funcionamento

a) Natureza consultiva

O Conselho de Família é chamado a coadjuvar o tribunal na sua função de administração da


justiça. É-lhe atribuída por lei uma função de órgão consultivo nas ações de natureza familiar.

As deliberações do Conselho de Família não têm, assim, caráter executivo mas meramente
opinativo, pois, como a sua designação de conselho indica, trata-se de um corpo pluripessoal
que dá o seu parecer sobre a causa em apreciação, mas que não pode decidir a questão.

No entanto, dada a composição do próprio órgão, a deliberação que vier a ser tomada,
mormente no caso de ser tomada por unanimidade, terá indiscutível peso na apreciação que o
tribunal fizer da causa.

O tribunal não está, porém, adstrito ao parecer do Conselho de Família, pois, de acordo com os
princípios que regem a função jurisdicional, o Juiz só tem que

decidir de acordo com a sua convição íntima, a partir de todos os elementos de facto
constantes dos autos e segundo os preceitos da lei a que deve obediência.

Não obstante, se o tribunal entender ser de afastar o parecer do Conselho de Família, deverá
justificar os motivos que o levaram a não o aceitar; deverá ainda o tribunal expressar-se sobre
o grau de isenção e imparcialidade que tiver sido evidenciado pelos membros do Conselho de
Família ao pronunciarem-se sobre as questões postas à sua apreciação.

b) Constituição e indicação dos membros

O Conselho de Família é constituído por quatro membros. Dispõe o Código de Família no art.
17.°, n.° 1 que «O Conselho de Família é constituído por quatro pessoas que não sejam parte
na ação.»

Quer-se assim dizer que os membros que compuserem o Conselho de Família não devem ter
qualquer interesse direto na decisão do caso.
A escolha deve ser feita seguindo esta ordem de prioridade: em primeiro lugar os parentes,
preferindo os de grau mais próximo, depois o cônjuge e os afins.

Quando não for possível integrar qualquer destes familiares, poderão então ser chamados a
fazer parte do Conselho de Família pessoas que convivam com as partes, ou seja, das suas
relações sociais.

Para intervir na ação pendente os membros do Conselho de Família devem ter residência na
área de jurisdição do tribunal. É que pode acontecer que as pessoas da família das partes
residam fora dessa área de jurisdição do tribunal ou até fora do País. Neste caso, a lei permite
que o Conselho de Família seja integrado por pessoas que, muito embora não façam parte do
grupo familiar, pertençam ao círculo de relações das partes.

O art. 17.°, n.° 2 impõe a regra da representação equitativa dos membros do Conselho de
Família, por forma a garantir um justo equilíbrio no seu funcionamento.

Deste modo, se se tratar de ações em que sejam partes marido e mulher ou companheiros de
união de facto, o Conselho de Família será constituído:

— por dois membros da família do marido ou do companheiro da união de facto e dois


membros da família da mulher, como sucede designadamente nas ações de divórcio, anulação
de casamento, ou de reconhecimento de união de facto, de declaração de presunção de morte
e alimentos entre os mesmos;

Se a ação disser respeito às relações paterno-filiais, como as de estabelecimento ou


impugnação de filiação, exercício de autoridade paternal, adoção, tutela ou alimentos entre
pais e filhos:

— por dois membros da linha paterna e dois membros da linha materna do filho.

Nas demais ações, designadamente de alimentos fora dos casos atrás apontados, por dois
membros da família de cada uma das partes, segundo a mesma ordem de precedência. 0 que
se pretende é que as duas famílias, tendo como referência o homem e a mulher, o filho ou
interdito ou ambas as partes, tendo em conta a sua ascendência paterna e materna ou as
respetivas famílias, estejam representadas em igualdade de condições.

Os membros do Conselho de Família são indicados pelas partes respetivas; se o Ministério


Público for parte na ação, deve igualmente fazê-lo, ou só por si, ou conjuntamente com a parte
junto de quem litiga.

Em princípio, a parte que pretenda que o Conselho de Família intervenha na ação deve indicar
quais os membros que, pelo seu lado, o devem integrar, identificando-os na petição inicial,
devendo a outra parte proceder de igual modo na sua contestação.

Se a parte que tenha o dever de indicar os membros do Conselho de Família o não fizer, o
tribunal poderá fixar às partes um prazo para o fazerem e, caso tal não seja acatado, será o
próprio tribunal a nomeá-los, depois de recolhidas as necessárias informações. Permite ainda a
lei que o tribunal, procedendo de forma idêntica, substitua os membros do Conselho de
Família quando necessário.
É desta forma que o art. 18.° do Código de Família regula a indicação dos membros do
Conselho de Família.

c) Funcionamento

Uma vez constituído o Conselho de Família, devem os seus membros, quando forem chamados
a intervir no tribunal, prestar juramento perante o Juiz, comprometendo-se a desempenhar
fielmente as suas funções.

Entendemos ser aplicável o disposto nos arts. 559.°, 593.° e 635.°, n.° 1, Código do Processo
Civil, que mandam prestar juramento a todos os que intervêm em tribunal, mormente aos
peritos que juram desempenhar fielmente as suas funções. São funções de aconselhamento
judicial que lhe é atribuído por lei e que se reveste de toda a relevância na decisão da causa.

Ao serem chamados a desempenhar tão importante papel, «encargo que lhes é confiado», e a
opinar sobre o conflito em apreço do qual resultam efeitos decisivos para as partes e até para
terceiros, os membros do Conselho de Família devem pôr acima de tudo a verdade e a justiça e
desempenhar o cargo de boa fé, procedendo com isenção e com espírito de neutralidade, de
forma a ajudar o

tribunal a ter um conhecimento mais aprofundado da situação subjacente ao litígio e a decidir


com justeza.

O Conselho de Família só poderá reunir quando estiverem presentes pelo menos um membro
indicado por cada parte, e deve tomar as suas deliberações por unanimidade. Quando tal não
for possível, a decisão será tomada por maioria dos seus membros — art. 19.°, n.° 1.

Quando não for possível obter uma deliberação, por não se conseguir maioria, deve o tribunal
mandar constar da ata o conteúdo das opiniões expressas, por forma sucinta — assim o
determina o n.° 2 do art. 18.° do Código de Família.

Admite-se deste modo que cada membro do Conselho de Família possa expressar
individualmente o seu parecer, no caso de não ser possível obter-se uma deliberação que
vincule o órgão.

[34] Intervenção obrigatória e intervenção facultativa do Conselho de Família e nova


perspetiva de intervenção

a) Intervenção do Conselho de Família

No projeto do Código de Família já se previa com bastante extensão a intervenção do Conselho


de Família nas ações de natureza familiar. Mas, como vimos, após discussão popular a que o
projeto do Código foi submetido, ampliou-se a sua intervenção em certas ações específicas,
como as ações de divórcio, ainda que de forma facultativa.

O critério legal usado é o seguinte: a intervenção do Conselho de Família é de caráter


obrigatório, em certas ações especificadas na lei, o que significa que ele deve ser chamado a
intervir na ação, sob pena de nulidade processual. A falta de audição deste órgão nos casos em
que a lei obrigatoriamente prevê a sua intervenção, leva à nulidade dos autos e
consequentemente da decisão que tiver sido proferida.

Noutras ações, a lei indica que o Conselho de Família poderá vir a intervir facultativamente,
seja por iniciativa das partes, seja por iniciativa do próprio tribunal, quando o considere útil
para a decisão da causa.

Convém, porém, ter em atenção que, por força do art. lé.°, n.° 2 do Código de Família, a
intervenção facultativa do Conselho de Família depende não só do facto de as partes tal
requererem mas ainda do tribunal entender que o pedido é pertinente.

A intervenção do Conselho de Família fica, pois, nestes casos, sujeita ao prudente arbítrio do
julgador.

Em síntese, podemos indicar que a audição do Conselho de Família se processa:

1 — Intervenção com caráter obrigatório

a) na autorização para casamento de menores quando houver injustificada recusa por


parte do seu representante — art. 24.°, n.° 3;

b) no reconhecimento por via judicial da união de facto - art. 125.°;

c) na escolha do nome do filho no caso de desacordo dos pais — art. 133.°, n.° 2;

d) na tutela, para a nomeação do tutor de menor e de maior interdito — arts.


232.°e235.°,n.01;

2 — Intervenção com caráter facultativo

a) nas ações de divórcio, quando for útil à conciliação dos cônjuges — art. 105.°, n.° 3;

b) nas ações relativas ao exercício da autoridade paternal — art. 139.°, a);

c) nas ações de estabelecimento ou de impugnação de filiação — art. 195.°;

d) nas ações para instituição de adoção — art. 215.°;

c) em todas as demais ações familiares, segundo a regra geral do art. 16.°, n.°l

b) Novas perspetivas de intervenção

Como já referimos reconhece-se como necessários a existência de órgãos de mediação familiar


que possam intervir numa fase preliminar do litígio, ouvindo as partes, propondo modos de
comportamento novos, suscetíveis de atenuar os antagonismos. Eles aparecem com uma
função marcadamente neutral para pacificarem os ânimos e elucidarem as partes sobre os
seus direitos. Esses órgãos são quase sempre integrados por técnicos especialistas, como
psicoterapeutas, juristas, sociólogos, etc.. Entre nós, o Conselho de Família poderá em breve
ser substituído por um órgão de mediação e ser chamado a intervir numa fase pré- judiciária,
ou seja, antes da introdução em juízo de qualquer ação familiar, o que está em vias de ser
implementado.
CAPÍTULO 8.°

A FILIAÇÃO

[35] Importância do direito da filiação; sujeitos da relação jurídica de filiação

a) Importância do direito da filiação

A filiação é a relação jurídica que se estabelece entre cada pessoa e os seus progeni¬tores.
Como os demais direitos familiares, é de natureza intercorrente e recíproca e estabelece-se
entre alguém e aquele homem e aquela mulher que o conceberam.

A filiação constitui, por isso, o primeiro elo, certamente o mais profundo, entre todos os que
constituem as relações de parentesco.

O vínculo de parentesco é, aliás, o resultado de um encadeado mais ou menos alargado de


sucessivas filiações.

A situação jurídica do filho constitui um estado familiar que assume importância fundamental
dentro das relações de família. É nas relações de filiação que se manifesta com maior relevo o
princípio de solidariedade e cooperação que deve prevalecer entre os membros da família de
grau mais próximo, ou seja, entre pais e filhos.

Ao serem enunciados os princípios fundamentais subjacentes ao Código de Família é


sublinhado (art. 4.°) que as crianças merecem especial atenção no seio da família e que a ela
cabe, em colaboração com o Estado, assegurar-lhes a mais ampla proteção e prover à sua
educação. Este princípio tem hoje consagração no já citado art. 35.°, n.° 6, da Constituição.

O n.° 2 do art. 127.° do Código de Família explicita que: « Os direitos e deveres paternais
devem ser exercidos em beneficio dosfilhos e da sociedade».

Estamos perante verdadeiros poderes funcionais que são atribuídos ao respetivo titular mas
de que não é este o beneficiário.

O Estado, como sociedade politicamente organizada, tem interesse na defesa da família e em


especial na defesa das crianças. Essa defesa abrange a preservação

da sua vida, a saúde e o normal desenvolvimento e mais ainda a sua defesa quanto ao aspeto
da sua formação moral, inteletual e profissional. Por isso o Estado dá uma especial atenção ao
modo como são exercidos os direitos e os deveres paternais, impedindo que eles assumam
formas antissociais que prejudiquem a criança e a própria sociedade onde ela vive.

O interesse do Estado na proteção do menor e da sociedade dentro das relações jurídico-


familiareséasseguradopela intervenção do Ministério Público nas ações judiciais relativas à
situação jurídica dos menores — consagrados na Lei n.° 22/12 da PGR a que nos referimos.
Estes poderes vêm atualmente consagrados na Constituição — art. 186.°, alínea b).

Podemos dizer que o Estado controla a forma como os pais exercem os seus direitos e deveres
funcionais, chamando o tribunal a intervir quando eles são exercidos contra os interesses dos
filhos ou quando os pais os maltratam física ou inteletualmente, ou são negligentes no seu
exercício, abandonando-os e não lhes prestando a devida proteção e assistência.

Tal como consta da Lei do Julgado de Menores aprovada pela Lei n.° 9/96, de 19 de abril e do
Decreto n.° 6/03, de 28 de janeiro que aprovou o código de Processo de Julgado de Menores e
legislação complementar, o Estado através dos seus órgãos judiciais e de assistência deve
proteção social à criança.

Os direitos dos menores merecem pois, especial proteção por parte de todos os órgãos
estatais com competência para intervir nos assuntos que a eles dizem respeito, tal como os
Tribunais, a Procuradoria da República, as Conservatórias do Registo Civil, os organismos de
assistência, etc., constituindo uma área em que está em causa o interesse público.

O papel dos pais na criação e educação dos filhos é considerado de primordial importância,
tendo sempre em conta que os pais têm o dever de o exercer no interesse da sociedade em
geral, colaborando com as escolas e as instituições sociais de apoio à infância e à juventude na
formação das crianças e dos jovens.

b) Sujeitos da relação jurídica de filiação

Podemos definir o instituto jurídico de filiação como o conjunto de normas que estabelece
essa relação específica entre pais e filhos, bem como as que definem os direitos e deveres
recíprocos entre uns e outros.

A palavra filiação vem do termo latino filliatio, que tem a sua raiz na palavra fillius, da qual
derivou «filho».

A situação jurídica de filho é assim um estado familiar de caráter permanente, situação essa
que, vista em sentido inverso, corresponde à situação jurídica de pai e de mãe respetivamente.

A filiação é, pois, o vínculo jurídico que liga o filho a cada um dos seus progenitores.

A relação jurídica de filiação desdobra-se em dois vínculos, o que se estabelece entre o filho e
o pai e o que se estabelece entre o filho e a mãe.

Pode também falar-se, com rigor, no vínculo de paternidade e no vínculo de maternidade.

Ao falar-se de filiação pensa-se em geral na filiação natural biológica. Mas no nosso sistema
jurídico ela abrange igualmente a filiação adotiva.

Esta molda-se, aliás, precisamente nos termos em que se processa a filiação natural, com a
diferença de o vínculo de adoção ter como causa a sua declaração por sentença constitutiva do
vínculo.

No direito de filiação estão abrangidas as relações entre pais e filhos, em regra a partir do
nascimento dos filhos, mas com maior relevância durante a sua menoridade, abrangendo o
chamado direito dos menores e o complexo de direitos e deveres que constituem a autoridade
paternal.
Essas relações prolongam-se sob forma diferente após a maioridade dos filhos e permanecem
em regra durante a vida de uns e de outros.

A relação jurídica de filiação tem como causa o facto natural da procriação e não está
dependente do estado de casado ou não casado do pai e da mãe. Veremos que, quando os
pais estão unidos pelo casamento, a lei faz presumir o vínculo de paternidade em relação ao
marido da mãe.

A base da filiação é essencialmente biológica. Mas, porque nem sempre se vai determinar
diretamente a filiação biológica, a lei socorre-se de determinados critérios legais para o seu
estabelecimento.

O Código de Família afastou desta forma o sistema segundo o qual a filiação se estabelece por
reconhecimento do progenitor (pai ou mãe), que seria um ato voluntário deste e por si só
constitutivo de direito.

No Código Civil anterior este ato era designado por «perfilhação». É agora aceite o sistema de
filiação assente no facto natural da procriação, com repercussão jurídica da filiação biológica.

O estabelecimento da filiação não depende, porém, da vontade do progenitor, pois ele pode
verificar-se por via de presunções legais, por via da declaração do progenitor, ou de terceira
pessoa, ou ainda advir de uma decisão judicial que a reconheça.

[36] Direito ao estabelecimento da filiação

Para que os pais assumam a plenitude dos seus direitos e cumpram os seus deveres para com
os filhos, o Estado tem todo o interesse em que seja estabelecida a filiação, quer em relação
ao pai, quer em relação à mãe.

O direito ao estabelecimento da filiação vem hoje expressamente reconhecido no art. 129.°,


n.° 1, do Código de Família : «A todos é reconhecido o direito ao estabelecimento da filiação»
o qual deve ser considerado como direito fundamental da pessoa humana.

A Convenção sobre os Direitos da Criança no seu art. 7.°, n.° 1, consagra: «A criança será
registada imediatamente após o seu nascimento e terá direito desde o momento em que
nasce a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer os seus pais e a
ser cuidada por eles.»

Este artigo consagra afinal o direito à identidade que assiste a cada ser humano, distinguindo
cada pessoa de todas as outras.

Este direito vem corroborado no art. 8.° da mesma Convenção que obriga a «respeitar o
direito da criança de preservar a sua identidade, inclusive a nacio¬nalidade, o nome eas
relaçõesfamiliares.»

Por sua vez a Carta Africana dos Direitos e Bem Estar da Criança no seu art. 6.° assegura que a
criança tem «direito ao nome, o direito ao registo e o direito a uma nacionalidade.»

O Decreto n.° 31/07, de 14 de maio, veio no seu art. l.° determinar «Agratuitidade do registo
de nascimento e de óbito para a primeira infância (...) e na atribuição do bilhete de identidade
a menores na faixa etária prevista no artigo 7.°». Este diploma veio tomar gratuito o registo de
nascimento efetuado dos 0 aos 5 anos de idade e a concessão gratuita do bilhete de
identidade aos menores dos 8 aos 11 anos de idade.

No direito ao estabelecimento da filiação está subjacente o interesse público em proteger o


direito de todo o cidadão a conhecer os seus progenitores e o direito a que a filiação que for
estabelecida corresponda à verdadeira filiação natural. Direito hoje de novo consagrado na Lei
n.° 25/12 de 22 de agosto de 2012, a que atrás nos referimos.

Do estabelecimento da filiação paterna e materna deriva para o filho o direito à titularidade


substancial da relação de filiação.

O conceito de filiação hoje corrente como vimos, não é o que existia anterior¬mente e que
contrapunha os filhos legítimos (que advinham do casamento dos pais) aos filhos ilegítimos ou
filhos naturais, estes muitas vezes considerados como filhos nascidos do pecado, os filhos
bastardos.

Hoje aceita-se que a família tanto pode ser constituída com base no casamento, como na
união de facto, no parentesco com base nos laços de sangue, ou na adoção, não havendo lugar
à discriminação entre os seus membros em razão da sua proveniência. Assim, todos os filhos
têm, em relação aos pais, iguais direitos e deveres, independentemente da existência ou não
de vínculo matrimonial.

Aliás o atrás citado art. 35.° da Constituição veio no seu n.° 5 dispor: « Osfilhos são iguais no
seio da família, sendo proibida a sua discriminação e a utilização de qualquer designação
discriminatória relativa à filiação.»

Os pais têm, em relação aos seus filhos nascidos dentro ou fora do casamento, iguais direitos e
deveres e o Código de Família já consagrara no seu art. 128.° a igualdade dos filhos, dispondo:
«Osfilhos têm iguais direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres para com os pais, estejam
estes unidos ou não pelo casamento.»

Chegou-se assim à aceitação de um conceito unitário de filiação, segundo o qual a situação


jurídica do filho é uma só, correspondendo a um único estado de filho.

O estabelecimento da filiação consiste essencialmente na questão jurídica de determinar, em


relação a cada pessoa, a sua filiação. Se é certo que ninguém, ao nascer, vem externamente
identificado como filho de tal pai ou de tal mãe, o legislador tem que se socorrer de critérios
legais que levem a atribuir em concreto a maternidade e a paternidade em relação à pessoa
em causa.

Sabemos que, relativamente ao direito à filiação, o Código de Família consagra os seguintes


princípios:

— cada cidadão tem direito a ver estabelecida a sua filiação;

— a filiação estabelecida deve, em regra, estar de acordo com a filiação biológica ou


natural.
Se a filiação não estiver estabelecida o filho carece do estado jurídico de filho e o pai e a mãe
carecem do estado respetivo, não podendo dejure exercer os direitos e deveres que lhes
cabem por lei. É o próprio Estado que procura assegurar o direito ao estabelecimento da
filiação a cada cidadão.

A titularidade substancial da filiação deriva do facto natural que é a procriação e do


nascimento com vida, convertendo-se em titularidade formal da filiação quando é inscrita no
assento do registo civil.

No campo da procriação da espécie humana e demais seres vivos, também os avanços da


ciência nas últimas décadas têm sido consideráveis e ela tem-se desenvolvido de forma tão
acelerada que as questões postas, de natureza jurídica, social e ética, se tornam cada vez mais
complexas.

Para o que agora nos interessa, e que é o estabelecimento do vínculo jurídico da filiação,
importa desde já aceitar que a filiação pode advir, além da forma normal da conjugação carnal
entre um homem e uma mulher, e de outras formas englobadas na designação genérica de
«procriação medicamente assistida ».

Estes métodos científicos de procriação surgiram da necessidade de tornar possível que o


homem ou mulher estéreis ou com dificuldade em terem filhos ou até em razão do
falecimento do parceiro masculino, venham a ter descendência.

As hipóteses desta procriação medicamente assistida são bastante diversificadas:

— doação de óvulos e/ou doação de esperma, com a fecundação de embriões


implantados no útero da mãe biológica;

— inseminação artificial em que a mulher é fecundada artificialmente, sendo que, se a


mulher for casada, pode dar-se o caso de a fecundação ser efetuada com o esperma do
marido, ou de dadores terceiros, com o consentimento do marido;

— fecundação em laboratório, ou seja, a fecundação in vitro, que dá origem ao «bebé


proveta», que é inserido no útero da mãe;

— situação em que intervêm mães portadoras, mães subrogadas ou mães substitutas,


situação em que a mulher que dá o óvulo que é fecundado não é a mesma em cujo útero o
embrião é inserido e no qual se processa toda a gestação e o parto;

— inseminação post-mortem na viúva a partir do esperma congelado do falecido marido.

É evidente que as diversas situações que foram descritas exigem um condicio¬nalismo legal
que as regulem, bem como um suporte de princípios éticos em que se baseiem e que variam
consoante as convições aceites pelas diferentes comunidades humanas.

Questões como o direito de recorrer à procriação medicamente assistida quando não há


condições para a fecundação normal pelo ato sexual, as do destino a dar aos embriões
excedentários após a fecundação artificial operada em laboratório, vão prender-se com
princípios tão importantes como o de determinar qual o momento em que se inicia a vida do
ser humano. Sendo ainda que esses embriões guardados em laboratório poderiam vir a ser
usados para dar vida a seres humanos para além da morte dos respetivos progenitores.

No caso das mães portadoras importa definir se o filho deve ser atribuído à mulher que deu o
óvulo ou àquela que suportou todo o processo de gestação e em cujo útero ele se desenvolveu
sucessivamente até ao nascimento. No caso de acordo prévio com a mãe portadora sobre a
entrega final do filho à mulher que deu o óvulo e em cujo interesse se baseou a gravidez, como
classificar esse acordo e qual a sua validade?

Princípios éticos e jurídicos, tais como o do anonimato dos doadores, da gratuitidade das
doações com proibição de venda de materiais genéticos, impres- cindibilidade do
consentimento dos diversos intervenientes nos procedimentos usados, são já geralmente
aceites. Definir quais os limites a pôr ao direito à procriação que assiste a cada ser humano, e
se o mesmo deve estar condicionado ao facto do progenitor ser heterossexual ou
homossexual, têm sido objeto de acesas controvérsias.

Questiona-se se o direito à procriação deve ou não ser considerado como um direito humano
fundamental, se deverá ser limitado ao condicionalismo económico-social do genitor. Por
outras palavras, como exigir tanto da futura mãe como do futuro pai uma maternidade e uma
paternidade consciente, tendo como prioritário o interesse da criança ?

Não temos ainda no direito angolano nenhuma legislação sobre toda esta complexa e
controversa matéria e o Código de Família faz só uma breve alusão à inseminação artificial que
ocorre dentro do casamento, dizendo no art. 192.°, n.° 2 que: « O marido da mãe não pode
impugnar a paternidade do filho concebido por inseminação artificial, à qual tenha prestado
consentimento».

Pressupõe-se, neste caso, que tenha havido doação de esperma por terceiro que não o
marido, o que se costuma designar por procriação heteróloga, por vir dum dador que não o
marido.

Mas poder-se-á questionar sobre o procedimento a seguir se posteriormente o marido vier a


contestar a sua paternidade.^

Dada a omissão do nosso sistema jurídico relativo à procriação medicamente assistida, o que
não significa que cidadãos angolanos a ela não recorram, teremos decerto que nos socorrer de
normas integradoras para preencher o vazio legal.

[37] Novos métodos aplicáveis ao estabelecimento da filiação; conceitos legais do


estabelecimento da filiação

Em relação à titularidade substancial da filiação, a lei aponta critérios legais que vão auxiliar a
definir como se estabelece a filiação. Esses critérios variam consoante se trata de estabelecer o
vínculo da maternidade ou o vínculo da paternidade e ainda consoante se está perante filho
nascido do casamento ou fora do casamento.

O vínculo da maternidade vai-se estabelecer através do facto natural do parto, que é


diretamente verificável. Mas o mesmo já não acontece em relação ao vínculo da paternidade,
que tem a sua origem no momento da fecundação do óvulo, por via sexual, momento este
que, no estado de evolução da ciência em que nos encontramos, não é ainda determinável.

Atualmente dado os extraordinários progressos e avanços da ciência genética é possível provar


com um elevadíssimo grau de certeza a relação biológica entre pais e filhos. Cada indivíduo
apresenta o seu próprio sistema genético-cromossómico diferente do outro.

Examinando as respetivas células com núcleo, o ADN (definido como uma macro molécula
complexa contida nas células de cada pessoa, mais precisamente no núcleo celular) determina-
se seja a identidade de cada indivíduo seja as dos respetivos progenitores.

O gene é uma unidade na cadeia do ADN, o qual é a molécula dentro do núcleo de cada célula.
Em termos muito simples, temos que cada ser humano tem em cada célula um núcleo que
contém 23 pares de cromossomas que constituem o genoma. Por exames específicos pode
adiantar-se, com uma margem de erro praticamente nula, quem é o pai biológico e a mãe
biológica de cada ser humano.

A determinação do ADN é um verdadeiro bilhete de identidade genético.

Havia pois uma diversidade de situações, que tinham então a sua raiz na incapacidade de
determinação biológica da paternidade e que costumava ser sintetizada, embora com
manifesto exagero, na expressão latina mater semper est certa, pater nunquam.

A mãe pode ser certa e por isso se fixa a regra segundo a qual o estabelecimento da
maternidade deriva do facto do parto.

É o que dispõe o art. 167.° do Código de Família, que estabelece: «0 estabelecimento da


maternidade resulta em qualquer caso, dofacto do nascimento». Mas o início da capacidade
civil só se inicia com a vida do titular. Será pois simultaneamente necessário que determinada
mulher dê à luz uma criança, o que se traduz no facto do nascimento, e que a criança havida
desse parto nasça com vida e tenha determinada identidade.

A prova da identidade da pessoa que nasceu pode fazer-se, na normalidade dos casos, pela
posse de estado de filho em relação à mãe.

Em suma, a maternidade estabelece-se pelo facto natural do parto e da identidade biológica


do filho.

Há conceitos legais que têm que ser tidos em conta e que eram de capital importância para
entendimento desta matéria, mostrando-se hoje com muito menor relevância.

Esses conceitos são os de posse de estado de filho e o de período legal de conceção. O


primeiro interessa a todo o instituto do estabelecimento da filiação, quer em relação ao
vínculo da maternidade, quer em relação ao vínculo de paternidade, pois consubstancia a
situação material de filho. O conceito de período legal de conceção interessa para fazer
funcionar a regra da presunção da paternidade e releva quer haja casamento dos pais, quer
não haja.

a) A posse de estado de filho


Na introdução ao estudo do direito da família, já referimos que existem determinadas
situações de facto na vida familiar que, pela sua importância, o legislador não pode
desconhecer, sendo forçado a dar-lhes relevância jurídica.

Uma das mais importantes, no âmbito do direito da família, é a posse de estado de filho.

A posse de estado de filho significa que este está a usufruir, de facto, da situação de filho,
estando na titularidade dos direitos e deveres que dessa posse derivam. A posse de estado
corresponde a uma situação material e aparente da situação de filho. O conteúdo da posse de
estado de filho, segundo os antigos comentadores, pode desdobrar-se em três aspetos
distintos e complementares: nomen, tratactus et fama.

O nome {nomen) significa que o filho usa o nome de família do pai ou da mãe, evidenciando a
sua integração na família e ainda simultaneamente que este, ao dirigir-se aos seus
progenitores, lhes chama respetivamente pai ou mãe, recebendo destes o nome de filho.

O tratamento {tratactus) abrange toda a conduta específica de um pai ou mãe em relação ao


filho, como a prestação dos cuidados e desvelos próprios de tal relação familiar e a
correspondente assistência moral e material. Esse tratamento deve também estender-se a
outras pessoas ligadas por vínculos familiares, em especial pelo parentesco.

Ayk/tfrf (/£;»*) abrange a reputação que o filho tem junto do público em geral, e
especialmente junto dos familiares da mãe ou do pai e respetivo meio social, da sua situação
de filho. É o reconhecimento da situação de filho como tal, pela família e pela sociedade.

Para ser relevante, a posse de estado deve satisfazer determinados requisitos legais. Ela deve
ser contínua (isto é, prolongar-se no tempo sem interrupções) e deve ser constante. Ela deve,
em princípio, nascer no momento do nascimento do filho e prosseguir no tempo, de forma
pacífica e não equívoca.

A posse de estado ligada à existência de assento do nascimento, ou seja, ao estabelecimento


formal da filiação, constitui um índice probatório quase irre- fragável da filiação.

A posse de estado de filho é um conceito que vai ser aplicado quer no esta¬belecimento do
vínculo da maternidade, quer no da paternidade. Para o estabe¬lecimento da paternidade ele
tem ainda maior relevância por constituir um índice preferencial da filiação biológica.

Como ainda veremos, ela vai ter relevância na questão da paternidade do marido em relação
aos filhos nascidos de mulher casada, e ainda como presunção geral da paternidade, no caso
dos filhos nascidos fora do casamento dos pais.

O art. 169.° do Código de Família define o conceito de posse de estado dizendo: «Dá-se por
estabelecida a posse de estado quando ofilho seja tido e tratado como tal pelo progenitor e
assim seja considerado pelafamília deste e pelas pessoas do seu meio social.»

b) O período legal da conceção

O período legal da conceção é um conceito jurídico fixado com a finalidade de se poder


atribuir a um homem a paternidade em relação a determinado filho. Isto deriva do facto de
não ser possível, na generalidade dos casos, verificar direta¬mente o facto da fecundação do
óvulo, que é um processo oculto, pelo que surge a necessidade de se indicar os parâmetros
dentro dos quais ela pode ter ocorrido.

O período legal de conceção é determinado em termos latos pela lei. Comprovado que o
pretenso pai manteve, com a mãe do filho, relações sexuais com caráter de continuidade
durante o referido período, faz-se derivar desse facto a presunção legal de que ele é
efetivamente o pai. Essa presunção legal funciona

quer no caso de casamento dos pais, quer no caso de simples união de facto, mesmo que não
reconhecida. Trata-se de uma presunção júris tantum, suscetível de ser afastada mediante
prova em contrário.

Para se fixar o período legal da conceção tem que se ter em conta, como ponto da partida, o
facto certo e determinado que é a data do nascimento do filho. Vai então contar-se
retroativamente, a partir da data de nascimento, um período imediatamente anterior de 300
dias.

O art. 166.° do Código de Família define este conceito e assume que a conceção do filho se
verifica nos primeiros 120 dias dos 300 que precederem o seu nascimento. Em termos gerais,
prevê-se que o tempo de gestação do ser humano se confine entre o mínimo de 6 meses e o
máximo de 10 meses.

A contagem para se estabelecer os limites legais de conceção opera-se da seguinte forma:

a) não se conta o dia em que o nascimento ocorreu, como é regra do art. 279.°, alínea b)
do Código Civil, regra esta que é aplicável a todas as contagens de prazos fixados na lei por
força do art. 296.° do mesmo Código;

b) faz-se a contagem retroativa de 300 dias sobre a data do nascimento e vai assim fixar-
se o limite máximo de gestação do filho;

c) contam-se, a partir da data assim encontrada, 120 dias para diante, fixando-se o limite
mínimo de gestação, que não poderá ser inferior a 180 dias.

O período legal em que a conceção do filho se pode ter operado é, assim, todo o período dos
primeiros 120 dias que vão dos300aos 180 dias anteriores ao nascimento. Admite-se que a
fecundação se possa ter produzido em um dia qualquer desse período, o que vai fazer
funcionar a presunção de paternidade, que se pressupõe ter operado ornni meliore momento
dentro desse período de tempo.

Vejamos como exemplo o caso de uma criança nascida no dia 1 de dezembro de um ano não
bissexto. Para determinarmos qual o período legal da sua conceção, teremos que encontrar
qual o 300.° dia anterior ao seu nascimento, não contando o dia em que ele ocorreu.

O período máximo de conceção, ou seja, os trezentos dias, vai retroativamente cair no dia 4 de
fevereiro anterior. Contam-se então 120 dias para a frente dessa data e encontra-se o dia 2 de
junho. O período legal de conceção, neste caso, é aquele que decorreu entre os dias 4 de
fevereiro e 2 de junho inclusive.
Este período de tempo não é de natureza rígida, e costuma ser fixado tendo em conta o
interesse do filho, admitindo que a conceção pode ter decorrido dentro de todo esse período.
É possível, em concreto, fixar a data provável de conceção, através da determinação do
período em que se processaram as relações sexuais de que poderia ter decorrido a
fecundaçào.(3)

Atualmente através de exames médico-legais feitos sobre a pessoa do recém- nascido é


possível determinar com limitada margem de erro, a duração da sua gestação. Estes exames,
que devem incidir sobre o peso, estatura, perímetro craniano e outros aspetos do seu
desenvolvimento físico e neurológico, podem alcançar a posteriori a fixação da época da
conceção dentro de uma margem de probabilidade de cerca de 2 semanas de diferença.

Consequentemente, a determinação feita a posteriori de que a data da conceção e o tempo da


gravidez foi mais ou menos prolongado, pode vir a afastar a atribuição da paternidade a um
pretenso pai. Mas se, durante todo o período legal de conceção, as relações entre a mãe e o
pretenso pai se mantiveram, a presunção funciona em pleno.

Ao fixar o período legal de conceção, o legislador teve em vista que o tempo normal de
gestação do feto humano é, no mínimo, de 180 dias, cerca de seis meses, e, no máximo, de
300 dias, cerca de 10 meses. Excecionalmente, admite-se que o período de gestação possa ser
inferior a 6 meses ou prolongar-se além dos 300 dias, podendo, segundo alguns, atingir os 302
ou 310 dias.

Se tal acontecer, terá que ser o interessado (o filho ou qualquer terceiro legitimamente
interessado) a fazer a prova de que a conceção ocorreu fora desse período. É o que dispõe o
n.° 2 do art. 166.° do Código de Família. Dá-se aqui a inversão do ónus da prova e o tribunal, de
acordo com a prova que for produzida, poderá fixar a data provável da conceção fora do
período legai.

A fixação da data provável da conceção pode ser pedida em ação específica proposta para esse
efeito, ou suscitada como questão de facto essencial em ação que vise o estabelecimento ou
impugnação de paternidade, quer para concluir que ela se deve dar como provada, quer para a
afastar no caso concreto.

[38] Filiação havendo casamento dos pais

No caso de haver casamento dos pais a filiação estabelece-se por presunção legal.

O casamento dos pais constitui a forma legal de constituição da família. Por isso mesmo, a lei
faz derivar dele, em relação ao marido e à mulher, simultaneamente,

(5) Guilherme de Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade, p. 321. Coimbra, 1983: «A idade
gestacional (...) diminuindo o período legal de conceção para um espaço de tempo relevante
muito menor e conseguindo provar que a coabitação entre a mãe e o réu se verificou nessa
altura, o autor acrescenta nitidamente o valor causal da coabitação provada relativamcnte ao
nascimento(...).»
o estabelecimento da filiação no que toca aos filhos concebidos e nascidos na constância do
casamento.

É esta a regra que vem contida no art. 163.° do Código de Família.: «0 esta-belecimento da
filiação do filho concebido e nascido na constância do casamento, mesmo que seja anulado,
resulta relativamente a ambos os pais do facto do nasci¬mento, salvo os casos previstos nesta
lei.» O facto de o casamento poder vir a ser anulado não altera os efeitos jurídicos que ele
produz em relação aos filhos.

A regra da atribuição da paternidade dos filhos nascidos de mulher casada ao respetivo marido
tem as mais profundas raízes históricas e é comum a todos os sistemas jurídicos. É o princípio
do favor legitimitatis que visa proteger a prole nascida de mulher casada e nascida e concebida
na constância do casamento. A presunção legal de que o marido é o pai vinha já expressa no
direito romano que assim se expressava: pater is est quem nuptiae demonstrant.

Tal princípio radica no facto de que a vida matrimonial entre o marido e a mulher estabelece
entre ambos a plena comunhão de vida subjacente à própria substância material do
casamento.

A mulher casada deve manter relações sexuais com o seu marido, cumprindo o débito
conjugal, sendo certo ainda que ela está adstrita ao dever de fidelidade. Dessa dupla situação
deriva a regra legal da qual se infere que a paternidade dos filhos nascidos de mulher casada
deve atribuir-se ao marido da mãe, uma vez que é de admitir a exclusividade das relações
mantidas entre os cônjuges.

O dever de fidelidade da mulher ao marido faz derivar ope legis a regra legal de que o marido é
o pai dos filhos que nascem já na constância do casamento.

Esta regra geral só admite exceção quando não estiver estabelecida a posse de estado de filho
entre este e o marido da mãe.

Nos sistemas jurídicos que aceitam a classificação da filiação em filiação legítima e ilegítima,
entende-se que a filiação legítima é indivisível, porque, estabelecida a maternidade da mulher
casada, fica estabelecida a paternidade do marido desta, pois ninguém pode ser filho legítimo
de uma mulher unida pelo casamento a determinado homem sem que seja este homem o pai.

Ou, a contrario, se o marido não for o pai, o filho será forçosamente ilegítimo. Se a presunção
de paternidade do marido tiver que ser afastada, o filho deixará de ter o estatuto de filho
legítimo para estar ligado à mãe por um vínculo de filiação natural.

Em Angola como já vimos, a distinção entre filiação legítima e ilegítima deixou de ter
relevância, muito embora a existência do casamento entre os pais vá fazer derivar, por força
da lei, o vínculo de paternidade em relação ao marido da mãe. É a proteção do filho que se
tem em mente ao ser estabelecida a regra contida no art. 163.° do Código de Família.

De acordo com o conteúdo deste art. 163.°, é preciso distinguir entre o filho concebido e o
ülho nascido na constância do casamento.
Interessa agora invocar o conceito de período legal de conceção para melhor se aplicarem as
previsões deste art. 163.°.

a) Filho concebido e nascido durante o casamento

Considera-se concebido dentro do período do casamento o filho que nascer a partir de 180.°
dia após a celebração do ato do casamento. Isto porque se deve ter em conta que o período
mínimo de gestação fixado na lei é de 180 dias.

O filho que nascer antes de decorridos 180 dias após a data do casamento (digamos, dentro
dos 179 primeiros dias posteriores ao casamento) considera-se concebido antes do
casamento. O nascimento durante vigência do casamento, a partir do 180.° dia posterior à
celebração do casamento, confere ao filho o pleno direito à atribuição do vínculo de
maternidade e paternidade em relação a ambos os cônjuges.

b) Filho nascido depois de dissolvido ou anulado o casamento

Considera-se ainda concebido durante o casamento o filho que venha a nascer até 300 dias
após a dissolução ou anulação do casamento.

Se a dissolução do casamento se tiver operado por morte do marido, os 300 dias contam-se a
partir do dia seguinte à data do seu falecimento.

Se o casamento se tiver dissolvido por divórcio já pode ser entendido que não é a data da
dissolução do casamento por sentença transitada em julgado que servirá para fixar o período
de 300 dias.

Em princípio, a contagem dos 300 dias deve ser feita a partir da data do trânsito em julgado da
sentença, de acordo com o art. 81.°, n.° 1 do Código de Família. Mas podem os efeitos pessoais
do casamento cessar antes de declarada a sua dissolução quando for fixado na sentença o fim
da coabitação. No caso de divórcio por mútuo acordo, o divórcio provisório proferido aquando
da conferência dos cônjuges, faz suspender o dever de coabitação dos cônjuges — art. 94.° do
Código de Família.

No caso do divórcio litigioso, pode qualquer dos cônjuges pedir que seja fixada na sentença
que declare o divórcio, a data do fim da coabitação e pedir que cessem, a partir dessa data, os
efeitos do casamento. É o que vem consignado no n.° 2 do citado art. 81.°. O que é
fundamental em cada caso, é determinar se durante o período legal de conceção o casal
estava ou não separado de facto.

Assim, se tiver cessado entre os cônjuges o dever de coabitação, ou se a coabitação cessou


efetivamente por separação de facto, é a partir dessa data que se tem que fazer a contagem
do período de 300 dias. Nesses casos embora subsista

o vínculo formal do casamento, ele de facto deixou de existir por ter cessado a plena
comunhão de vida.
O filho que nasça até 300 dias após a cessação da coabitação beneficia da presunção da
paternidade do marido da mãe. Esta regra, como já vincámos, é suscetível de ser afastada por
prova em contrário que possa demonstrar perante

0 tribunal que a gestação em concreto durou mais ou menos tempo, através de exames
periciais efetuados após o nascimento do filho.

Também a mulher poderá usar de meios de prova tendentes a demonstrar que, mesmo após a
cessação da coabitação, voltou a manter relações sexuais com o marido. Neste último caso,
deixará de funcionar a presunção legal de paternidade do marido da mãe, invertendo-se o
ónus da prova, cabendo à mulher fazer a prova da paternidade do marido. Estes princípios são
aplicáveis mutatis mutandis ao casamento que for anulado por sentença transitada em
julgado.

c) Filho concebido ou nascido antes do casamento

Considera-se concebido antes do casamento dos pais o filho que nascer até aos primeiros 179
dias posteriores ao casamento. Suponhamos que o filho nasceu em

1 de junho de um ano e que os pais A e B contraíram casamento em 1 de março desse


ano.

O período legal de conceção confina-se entre o máximo de 10 meses e o mínimo de 6 meses.


Ora, nesta hipótese, teríamos somente o período que abrange os meses de março, abril e
maio, o que leva a dar como certo que o filho foi concebido antes do casamento, facto esse
que afasta desde logo a presunção de paternidade do marido tal como configurada na lei. Por
maioria de razão, o mesmo acontece quando o filho nasce antes de os pais terem celebrado o
casamento.

Qualquer destas situações é hoje muito frequente. Muitas vezes, o facto de a mulher se
encontrar grávida antes do casamento leva a apressar o casamento para que o filho nasça
depois do casamento dos pais. Os filhos concebidos ou nascidos antes do casamento estavam,
segundo o critério do Código Civil, na situação de filhos ilegítimos. O casamento dos pais
operava a legitimação dos filhos. Os efeitos da legitimação, consignados no art. 1875.° o
Código Civil, eram os de conferir ao filho o estado e o título de filho legítimo.

O Código de Família trata desta matéria no seu art. 164.°, englobando na mesma disposição o
caso de a conceção ou o nascimento do filho se ter operado antes da celebração do
casamento.

Esta disposição já não tem em vista, como é óbvio, conferir aos filhos conce¬bidos ou nascidos
antes do casamento o estatuto de filho legítimo, que não tem hoje qualquer acolhimento
legal.

Com eia visa-se o acolhimento de uma situação muito generalizada de existência de filhos cuja
proteção se pretende assegurar, pois simplifica a forma do estabelecimento da sua filiação em
relação a ambos os pais, se este, por qualquer razão, ainda se não tiver operado. Assim,
permite-se que, por declaração efetuada no processo preliminar de casamento, os cônjuges
mencionem se existem filhos já concebidos, no caso filhos nascituros ou filhos já nascidos
anteriormente a essa data.

Se tal declaração for feita, o Conservador do Registo Civil deverá lavrar, concomitantemente
com o assento do casamento, o assento ou assentos de nascimento respeitantes aos filhos.
Isto no caso de os respetivos assentos de nascimento não terem sido lavrados, pois, se eles já
existirem, será averbada a sua filiação em relação a um ou a ambos os cônjuges consoante
tenha ou não sido já estabelecida a filiação em relação a ambos os pais.

Tem aqui plena aplicação o disposto no Regulamento do Ato de Casamento (o Decreto n.°
14/86), que obriga os nubentes a declararem se têm ou não filhos nascidos antes da
celebração do casamento (art. 3.°, n.° 2, alínea e)). Tendo em conta que existe muitas vezes
negligência por parte dos pais em proceder aos registo dos filhos, esta via permite, de forma
expedita e simplificada, obter a declaração que leva ao estabelecimento da filiação do filho em
relação a ambos os progenitores, caso tal se não tenha verificado antes.

d) Filho nascido do novo casamento da mãe

Esta questão irá ser abordada a propósito da não existência de impedimento meramente
impediente designado como «prazo intemupcial» podemos porém explicitar qual a razão de
ser da disposição legal contida no art. 165.° do Código de Família.

Pode acontecer que uma mulher casada dissolva o seu casamento e vá contrair novo
casamento antes de decorridos 300 dias sobre a data da dissolução do casamento anterior.
Pode até dar-se o caso de uma mulher já casada vir a contrair segundo casamento sem estar
dissolvido o casamento anterior, ou seja, em situação de bigamia. Em tais situações,
deparamo-nos com conflitos de presunção de paternidade.

Ora, dentro da regra prescrita no art. 163.° em conjugação com a do art. 166.°, n.° 1, ambos do
Código de Família, os filhos nascidos até 300 dias após a dissolução do casamento presumem-
se filhos do marido da mãe. Mas se a mãe tiver contraído novo casamento logo a seguir à
dissolução do anterior casamento, dado que o Código de Família não instituiu nenhum prazo
intemupcial, pode haver dupla presunção de paternidade.

De acordo com o conceito de período legal de conceção que interessa para definir o que deve
entender-se por «filho concebido durante o casamento», se a mulher vier a contrair novo
casamento e se o filho nascer depois de 180 dias após a celebração do segundo casamento e
dentro dos 300 dias posteriores à data da dissolução do casamento anterior, vão entrar em
conflito duas presunções de paternidade, em relação a esse filho, a do primeiro marido e a do
segundo marido.

No caso de o segundo casamento ter sido realizado sem ter sido dissolvido o casamento
anterior, estaremos perante um casamento que está ferido de vício insanável por falta de
capacidade matrimonial da nubente. Mas, ainda que o casamento seja anulado, esse facto não
altera a presunção de paternidade em relação ao segundo marido. Como veremos em relação
aos efeitos do casamento anulado, estão salvaguardados, pelas disposições dos artigos 71.°,
n.° 3 e 163.° do Código de Família, os direitos dos filhos dele nascidos.
Daí que, por força destas disposições legais, possa vir a verificar-se conflito de presunções de
paternidade. Para resolver tal conflito deve ter-se em conta o que dispõe o art. 165.° do
Código de Família. Esta disposição contém a presunção legal de que, neste caso, a paternidade
seja atribuída ao segundo marido e não ao primeiro, e isto por uma questão de realismo, uma
vez que o relacionamento com o marido do último casamento deve ser aquele que, com mais
probabilidade, levou à fecundação.

Embora o art. 165.° do Código de Família não o diga expressamente, tem que se entender que
a presunção da paternidade do segundo marido é uma presunção juris tantum e como tal
pode ser afastada em ação própria de impugnação. Nessa ação de impugnação poderá intervir
quem nela tiver legítimo interesse, ou seja, o filho, representado pelo Ministério Público ou
por si próprio, quando maior, e o primeiro ou o segundo marido, para afastarem ou
reivindicarem a paternidade do filho.

[39] Filiação não havendo casamento dos pais

Quando os pais não estão unidos pelo casamento, a lei não faz operar, relativa¬mente a eles, o
estabelecimento do vínculo de paternidade pelo facto do nasci¬mento, pelo que há que
operar o seu estabelecimento por via de presunções legais, quando tal for o caso em concreto.

a) Vínculo da maternidade

O art. 167.° do Código de Família contém a regra geral segundo a qual o estabe¬lecimento da
maternidade resulta, em qualquer caso, do facto do nascimento, como já foi mencionado.

Há, pois, que provar que uma mulher deu à luz determinado filho, bem como a identidade do
filho. Por nascimento deve entender-se a separação completa e com vida do feto do ventre
materno.

Se o feto se separa sem vida do ventre materno é um nado-morto, que não chega a ter
personalidade jurídica. A prova da identidade do fi lho faz-se, na generalidade dos casos, pela
posse de estado de filho, consubstanciada no tratamento próprio de filho que a mãe lhe
dispensa. Mas, na falta de posse de estado, essa prova pode ser por outros meios (prova
documental, por testemunhas, pericial etc.).

A falsa declaração sobre a existência de um parto por uma mulher que não tenha dado à luz,
constitui uma infração penal, o crime de suposição de parto, previsto no art. 340.° do Código
Penal. A falsa indicação de nascimento ou morte de filho é igualmente punida criminalmente,
nos termos do art. 341.° desse Código.41

O Anteprojeto do Código Penal prevê igualmente os crimes de registo de nascimento


inexistente — art.0 226.° e o crime de parto suposto — art. 227.°.(5)

ARTIGO 340.°

(Parto suposto e substituição de infante)

1. A mulher que sem ter parido, der o parto alheio como seu, ou que tendo parido filho vivo ou
morto, o substituir por outro, será condenada a prisão maior de 2 a 8 anos.
§ Io. A mesma pena será imposta ao marido, que for sabedor e consentir.

ARTIGO 341.°

(Falsas declarações relativas a nascimento ou morte de infante)

Será punida com prisão maior de 2 a 8 anos e com multa a falsa declaração dos pais dum
infante, feita com o consentimento ou sem consentimento deles, perante autoridade
competente e com o fim de prejudicar o direito de alguém, e bem assim a falsa declaração
feita perante a mesma autoridade e com o mesmo fim, do nascimento ou morte de um infante
que nunca existiu.

ARTIGO 226.°

(Registo de nascimento inexistente)

1. Quem declarar no registo civil nascimento inexistente é punido com pena de prisão de
1 a 3 anos ou com pena de multa de 120 a 360 dias.

2. Se a declaração for feita com a intenção de prejudicar outra pessoa a pena é de prisão

de 2 a 6 anos de prisão.

ARTIGO 227.°

(Parto suposto)

Quem der parto alheio como seu é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

A disposição do art. 167.° é bem clara ao dizer que o estabelecimento se opera, em qualquer
caso, pelo facto do nascimento, e isto tem o alcance de fazer produzir o efeito jurídico do
estabelecimento do vínculo, independentemente do facto de a mãe ter ou não idade núbil.

Mesmo que a mãe não tenha idade núbil, a maternidade considera-se estabelecida porque ela
não depende da vontade do progenitor, antes deriva do facto jurídico do nascimento.

b) Vínculo da paternidade

A lei estabelece dois casos de presunção da paternidade, mesmo que não haja casamento
entre a mãe e o pretenso pai.

Essas regras de presunção da paternidade vem expressas no art. 168.° do Código de Família,
que usa uma forma menos conclusiva do que aquela que consta do art. 167.° respeitante ao
estabelecimento da maternidade.

Diz o art. 168.° que a paternidade «pode resultar», expressão que indica uma simples
presunção legal, a admissão da possibilidade de que assim seja, e que o legislador quis acolher
na lei.

Trata-se de uma presunção ope legis, que a lei formula em benefício da atribuição da
paternidade aos filhos nascidos de pais não casados. Estamos perante uma disposição
inovadora que não constava do sistema jurídico anteriormente vigente. Esta disposição do
Código de Família visa fazer funcionar o beneficio da presunção legal de paternidade em duas
situações muito comuns entre nós e que em princípio devem levar a que se considere como
estabelecida a paternidade.

É o caso da posse de estado de filho e o de existência de união de facto entre a mãe e o


pretenso pai durante o período legal de conceção.

Em qualquer destes casos, o filho ou quem o represente, tem apenas que fazer a prova de que
se encontra na posse de estado de filho, ou que a sua mãe viveu em união de facto com aquele
que pretende ser o seu pai, durante o período legal da conceção.

Não se exige, como acontecia no Código Civil no caso da «convivência notó¬ria» ou


«concubinato duradouro» a que se referia o art. 1862.°, que a situação de união de facto se
tivesse prolongado para além do nascimento do filho.

Para aplicação do disposto no art. 168.°, alínea b), basta que tenha havido a situação de união
de facto durante o período legal da conceção. Não é necessário que a união de facto tenha
sido objeto de reconhecimento nem sequer se exige que reuna os pressuposto legais para que
se possa operar o seu reconhecimento.

O alcance deste art. 168.° é precisamente o de permitir que beneficiem da presunção legal de
paternidade em relação ao companheiro da mãe os filhos

nascidos de todas as uniões de facto existentes no nosso país, incluindo as uniões poligâmicâs,
que não poderão ser objeto de reconhecimento.

A força destas presunções legais não é, porém, de molde a impedir que o pretenso pai as
possa afastar e venha negar a sua paternidade. Simplesmente, se ele o quiser fazer, terá que
ser ele a provar que não é o pai.

O afastamento da presunção que deriva da posse de estado de filho, como consta da


abundante jurisprudência estabelecida sobre a matéria a propósito das disposições
pertinentes que constavam do Código Civil, não é questão de fácil aplicação.

A posse de estado de filho só pode ser afastada se o pretenso pai provar que, por razão
decisiva e convincente, veio a retirar ao filho o tratamento que lhe dispensava nessa
qualidade. Ou seja, o pai é que terá de provar o facto que alterou a situação anterior em que
considerava o filho como seu e que levou a modificar a titularidade da posse de estado de filho
que lhe atribuía.

No caso de presunção derivada de união de facto, será igualmente o pretenso pai que terá de
provar que a mãe manteve relações sexuais com outro homem durante o período legal de
conceção, ou que a união de facto se não verificou durante esse mesmo período, ou existia
impossibilidade física de o filho ser por si gerado.

[40] Estabelecimento da filiação por declaração


Não se trata propriamente de uma forma autónoma de estabelecimento da filiação, pois a
declaração de paternidade ou a declaração de maternidade deve coexistir quer haja ou não
casamento dos pais, e na generalidade dos casos coexiste com as demais regras do
estabelecimento da filiação derivadas de presunção legal.

Na verdade, quando os pais estão casados, podem e devem vir declarar o nascimento do filho,
podendo até ser só um deles a faze-lo. A declaração, nos termos do Código do Registo Civil,
que se aplica subsidiariamente, é obrigatória para os pais e até para terceiras pessoas
mencionadas na lei. Como declaração que é feita por um cidadão perante uma autoridade
pública, o funcionário do Registo Civil, ela está sujeita às regras de direito penal no caso de
falsidade.

A declaração deve pois atestar uma situação real e não fictícia}6'

^ Dccreto-Lei n.° 33 725, dc 21 de junho de 1944:

ARTIGO 22.°

Aquele que declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no

exercício das funções, identidade, estado, ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos

jurídicos, próprios ou alheios, será punido com prisão até 6 meses.

Distingue o Código de Família entre a declaração feita pelo progenitor e a declaração feita por
terceiros. Esta declaração só se toma definitiva decorrido o prazo para impugnação, sendo que
o impugnante poderá ser, consoante os casos, ou a pessoa indicada como progenitor ou o
marido da mãe.

O pai ou a mãe têm o direito de declarar a sua situação para assumirem a titularidade
substancial do vínculo de paternidade ou de maternidade.

Este direito sofre, no entanto, restrições legais.

No caso de o filho nascer de mulher casada, já se não permite, a não ser a título excecional,
como adiante veremos, que outro homem que não o marido, venha declarar a sua
paternidade.

O outro caso dá-se quando se constitui o vínculo de adoção, entre o filho e outrem, que
assuma a posição jurídica de adotante.

Como veremos ao estudar o instituto da adoção, ele faz nascer entre o adotado e o adotante
uma situação legal em tudo idêntica àquela que une o filho ao pai ou à mãe natural.

Ora, se for adotada uma criança em relação à qual não estivesse estabelecido o vínculo de
paternidade ou de maternidade, a lei não consente que, depois de constituída a adoção, venha
o progenitor natural declarar que é pai ou mãe do adotado (art. 202.° do Código de Família).
No caso de os pais não serem casados, a declaração de paternidade ou de maternidade pode
ser feita em conjunto por ambos, ou separadamente. Uma declaração não depende da outra e
qualquer delas pode, indiferentemente, ser feita em primeiro lugar.

Tal não acontece em diversas legislações que, no caso de os pais não serem casados, não
permitem que seja feita em primeiro lugar a declaração de paternidade, nem que ela seja feita
separadamente pelo pai, sem a mãe dar o seu consentimento à declaração.

Entre nós, entendeu-se que essas restrições iriam prejudicar a situação do filho e por isso se
não faz depender a declaração de paternidade, por parte de quem se considera progenitor
natural, de qualquer condição de consentimento da mãe.

O Código de Família não restringe pois, o direito do pai ou da mãe de declararem


individualmente a sua qualidade de progenitor, não carecendo de autorização recíproca para o
fazerem. A declaração de filiação, segundo as disposições dos artigos. 171.° e 172.° do Código
de Família, pode ser feita pela

§ Io. A pena será de prisão até 1 ano quando as declarações se destinem a ser exaradas

em documento oficial.

$2°. Se a falsidade a que se referem o corpo do artigo e o § Io tiver sido cometida por

negligência aplicar-se-á a pena de multa até 1000 KZ R.

mãe e pelo pai e ainda por terceira pessoa. Mas a declaração por terceiro está sujeita a
determinadas condições legais e não tem valor definitivo, salvo se não for impugnada.

[41 ] Declaração do progenitor

Quando a declaração de filiação é feita pelo progenitor, seja este o pai ou a mãe, tem uma
natureza jurídica própria e produz efeitos jurídicos específicos, distintos da declaração feita
por terceiros.

A declaração de filiação que o Código Civil designava como «perfilhação» tinha uma natureza
jurídica diferente daquela que ora está consagrada no Código de Família. Este não a considera
já como um ato unilateral de reconhecimento e de atribuição do vínculo da maternidade ou da
paternidade, pois não é através dele que o vínculo de filiação se constitui.

Na conceção do Código de Família, pode considerar-se a declaração feita pelo progenitor como
um ato jurídico voluntário e pessoal, mas não um negócio jurídico, dado que não é constitutivo
de direitos e os efeitos que ele produz não são determinados pelo próprio declarante, dado
que vêm estatuídos na lei. É uma declaração de ciência emitida pelo progenitor, «uma
declaração com a natureza jurídica de uma confissão». Ela faz fé do convencimento do
declarante quanto à maternidade ou paternidade que for declarada. Pode assim dizer-se que
estamos perante um ato jurídico stricto sensu.

A declaração produz efeitos retroativos pois estes vão ter início à data em que se operou o
nascimento, data em que se iniciou a relação jurídica de filiação.
É um ato pessoal, pois só pode ser levado a cabo pelo próprio ou por terceiro que seja
constituído como procurador com poderes especiais para o ato. É ainda um ato voluntário, que
deve dimanar da vontade livre e esclarecida da pessoa que emite a declaração. Se houver vício
na declaração por erro essencial, coação ou falsidade, a declaração pode ser anulada.

Uma vez operada a declaração, esta é de natureza irrevogável, pelo que não pode ser retirada
pelo declarante, como consta do art. 173.° do Código de Família. Pressupõe a lei que se trata
de uma confissão exata e feita de acordo com a verdade dos factos.

O art. 170.° do Código de Família refere-se ao estabelecimento da filiação operado por via de
declaração no caso em que se não verifiquem quaisquer das circunstâncias previstas nos
artigos anteriores, ou quando for de afastar a presunção de paternidade prevista na lei.

A declaração de filiação é, como na generalidade dos atos previstos no direito de família, um


ato formal segundo o qual o progenitor se assume como tal.

O art. 175.° do Código de Família estabelece as formas legais de que deve revestir-se a
declaração:

a) declaração perante os órgãos do registo civil, que deverá constar de um assento


assinado pelo declarante;

b) declaração perante o tribunal, que deverá ser reduzida a termo, de acordo com o
estatuído no art. 7.°, n.° 2 da Lei n.° 1/88, que aprovou o Código de Família;

c) declaração em documento autêntico ou autenticado lavrado pelo notário, sendo


necessário, neste caso, que se trate de documento com reconhecimento presencial de letra e
assinatura — art. 375.° do Código Civil.

A declaração do progenitor perante o funcionário do registo civil constitui a via mais comum
de reconhecimento do vínculo que o liga ao filho, e tanto pode constar do assento do
nascimento como ser feita posteriormente.

A declaração feita perante o tribunal pressupõe, como é óbvio, que esteja proposta em juízo a
pertinente ação para o estabelecimento da filiação.

Se a parte contra quem foi proposta a ação na qualidade de pretenso progenitor, aceitar a
imputação de maternidade ou paternidade que lhe é atribuída, o juiz da causa deverá mandar
exarar nos autos um termo do qual conste não só a identificação do progenitor como a do filho
e no qual seja recebida formalmente a declaração de filiação.

A declaração feita perante o notário pode constar de documento autêntico (como escritura
pública ou testamento) ou documento autenticado cujo conteúdo vise expressamente essa
declaração.
Tem-se discutido na doutrina se a declaração de filiação feita em testamento perderá a sua
validade no caso de o testamento ser revogado. O Código de Família não aborda
expressamente essa questão, mas, dada a forma como está redigido o art. 175.°, entendemos
que, se for válido o testamento quanto à capacidade do testador e à forma usada, e desde que
a emissão de vontade esteja isenta de vício, a declaração feita sobre a filiação constante desse
documento autêntico mantém plena torça para o estabelecimento do respetivo vínculo.

Em súmula podemos concluir que a declaração de filiação é um ato pessoal, voluntário, formal
e irrevogável.

Ocorre com frequência que, aquando da celebração de casamento de um homem com uma
mulher que já tem um filho anterior relativamente ao qual não foi ainda estabelecida a
paternidade, o marido, mesmo não sendo o pai natural, faz a declaração de ser ele o pai
natural, em declaração contrária à verdade, e com a cumplicidade da mãe.

Pretende-se integrar a criança na nova família que se constitui, prescindin¬do-se de um


processo de adoção que seria o adequado. É a paternidade por «complacência». Pretende-se
desta forma estabelecer uma relação de paternidade

sócio-afetiva que não se baseia na paternidade biológica.

A capacidade para emitir a declaração vem estatuída no art. 174.° do Código de Família, que
permite que ela seja feita por quem tenha a idade mínima para contrair casamento. São, por
conseguinte, capazes de fazer a declaração a mulher com mais de 15 anos de idade e o homem
com mais de 16 anos, em conformidade com o disposto na alínea a) do art. 174.° do mesmo
Código.

No caso de incapacidade do progenitor, a declaração deve ser suprida nos termos gerais de
direito, como prevê a alínea b) do mesmo do art. 174.°. Trata-se, porém, de ato de natureza
estritamente pessoal, pelo que a declaração provém sempre do próprio progenitor, ainda que
ele seja menor ou incapaz.

A declaração de maternidade pode ser estabelecida pela própria mãe a todo o tempo (art.
171.°, n.° 1 do Código de Família) e a declaração de paternidade pode ser estabelecido pelo pai
a todo o tempo (art. 172.°, n.° 1 do mesmo Código). Permite ainda a lei a declaração de
paternidade em relação ao filho nascituro, desde que identificada a pessoa da mãe (art. 176.°).

Esta possibilidade de fazer a declaração a todo o tempo tem que ser, porém, compreendida
dentro dos termos legais, pois, além do caso da constituição do vínculo da adoção, que já
mencionámos atrás, há ainda outra restrição que vem prevista no art. 177.°, n.° 2, em relação
a filho maior, pois neste caso a declaração não poderá ser feita sem o consentimento do filho.

Entende-se que se o progenitor não cumpriu o seu dever de declaração da sua qualidade de
pai ou de mãe, até à maioridade do filho, ou seja na fase da infância e juventude quando ela
era mais necessária, este deve ser ouvido sobre tal declaração, e, de acordo com o seu
interesse, vir ou não a prestar o seu consentimento a tal ato.
Se, entretanto, o filho houver falecido e tiver deixado descendentes, serão estes, por si ou
pelos seus representantes legais, que deverão prestar o consentimento — art. 177.°, n.° 2, já
citado. As razões para tal condicionalismo legal são as mesmas do n.° 1, pois entendeu-se que
se transmite aos herdeiros do filho falecido o direito de consentir ou não na declaração. Se o
filho já tiver falecido sem deixar descendentes, deve entender-se que a declaração já não pode
ser emitida porque já não há quem preste consentimento.

No caso de filiação incestuosa a que se refere o art. 183.° do Código de Família, ambas as
declarações podem ser emitidas, mas a que for feita em segundo lugar será considerada
secreta. A filiação incestuosa é que resulta do facto de pai e mãe

estarem impedidos de contrair casamento em razão de laços de parentesco ou afinidade em


linha reta ou de parentesco no 2.° grau da linha colateral.

A orientação do art. 183.° é a de admitir o estabelecimento da paternidade e da maternidade,


mas com a ressalva de que um destes vínculos, indiferentemente, deve ser considerado
secreto para se não revelar perante o filho e terceiros a situação de incesto e imoralidade em
que se operou a procriação.

Não obstante, fica a permanecer, segundo o n.° 2 do art. 183.°, a obrigatoriedade da prestação
de alimentos do segundo progenitor em relação ao filho, sendo ainda a filiação relevante para
a constituição de impedimento matrimonial.

[42] Declaração feita por terceiros que não o progenitor

O Código de Família veio permitir que a declaração seja feita, em determinadas condições
legais, por terceira pessoa que não o progenitor.

Com o alargamento a terceiros da possibilidade de fazer tal declaração teve-se em mente levar
a que seja possível o estabelecimento da filiação em um maior número de casos.

Dado, porém, o melindre que pode advir de declaração feita por terceiro, o Código de Família
concede, em contrapartida, a mais ampla possibilidade de impugnação à pessoa que tiver sido
indigitada como progenitor e que não vier a aceitar tal imputação. Não obstante, se o
progenitor tiver conhecimento da declaração de maternidade ou de paternidade que lhe for
atribuída e não a impugnar no prazo legal, a declaração torna-se plenamente eficaz,
produzindo os mesmos efeitos legais atribuídos à declaração feita pelo próprio progenitor.

A lei estabelece distintas condições legais para o caso de declaração de mater¬nidade ou de


declaração de paternidade feita por terceiro que não o progenitor.

Relativamente à declaração para o estabelecimento de maternidade, rege a segunda parte do


art. 171.°, n.°s 1 e 2 do Código de Família. Ela pode ser operada por declaração de terceiro,
desde que se verifiquem as seguintes condições, insertas no n.° 1 deste artigo:

a) que seja feita por terceiro que tenha conhecimento do facto do nascimento;

b) que seja feita dentro do prazo de 3 anos após o nascimento;

c) que seja feita durante a vida da mãe.


De acordo com o n.° 2 deste art. 171.°, a declaração de outrem que não a mãe deve ser
notificada à mãe.

A notificação deverá ser operada pelo Conservador do Registo Civil segundo a forma prescrita
na lei, podendo a pretensa mãe impugná-la ou não.

Rdativamente à declaração de paternidade, ela só poderá ser feita por outra pessoa se esta for
a própria mãe do filho. Trata-se de uma disposição de caráter verdadeiramente inovador. Por
via de tal permissão legai, faculta a lei que seja a mulher que deu à luz o filho que venha fazer
a declaração, atribuindo a paternidade a quem ela entende ser o pai natural.

Esta declaração feita pela mãe do filho está sujeita a condicionalismo legal mais rigoroso e
pode ser livremente impugnada pelo pretenso pai.

O art. 172.°, n.° 2 do Código de Família fixa as seguintes condições para que possa ser
declarada a paternidade do filho por terceiro:

a) que a declaração seja feita pela mãe do filho;

b) que seja feita dentro do prazo de um ano após o nascimento;

c) que seja feita durante a vida do pai;

d) que possa ser pessoalmente notificada à pessoa declarada como pai.

Previne-se desta forma a obrigatoriedade de a pessoa indicada como pretenso pai vir a ter
conhecimento da atribuição de paternidade que lhe é feita e restringe-se a legitimidade para
fazer a declaração à própria mãe, encurtando-se para um ano o prazo dentro do qual a
declaração pode ser feita. Grave é a responsabilidade que impende sobre a mãe do filho, pois,
ao fazer tal declaração, ela sabe que poderá vir a ser impugnada pelo interessado, o que leva à
posterior necessidade de fazer prova do facto por via judicial.

Qualquer destas declarações feitas por terceiro que não o progenitor não têm a força
afirmativa do facto que é atribuída à declaração do próprio progenitor, pois é permitida a
impugnação pelo pretenso progenitor por simples declaração de oposição.

O art. 178.° do Código de Família permite, sem restrições, que a declaração de filiação feita por
terceiro seja impugnada, impondo só um limite de prazo para tal. A impugnação deverá ser
deduzida dentro do prazo de um ano após a pessoa indicada como progenitor ter tido dela
conhecimento, mas não poderá ser feita pela via do registo civil após decorridos 5 anos sobre
a data em que tenha sido lavrado o ato de registo.

Dá-se como assente que se a pessoa indicada como progenitor não impugnou, junto da
Conservatória do Registo Civil, a qualidade que lhe foi atribuída por terceiro, de pai ou de mãe,
é porque dá a sua anuência e aceita a declaração feita.

Se tiverem decorridos 5 anos após a declaração no registo, por uma questão de estabilidade da
situação do filho, que deve ser protegida, já a declaração de impugnação não poderá ser feita
junto dos órgãos do Registo Civil, como já referimos.
Não obstante, a última parte do art. 178.° é bem clara, quando salvaguarda que, quer no caso
de ter decorrido um ano sobre a data do conhecimento da declaração, quer no caso de terem
decorrido 5 anos sobre a data em que for lavrado o ato de registo, o pretenso progenitor que
quiser afastar o vínculo de paternidade ou de maternidade, poderá sempre recorrer à
impugnação por via judicial.

[43] Declaração de afastamento da presunção da paternidade do marido da mãe

O estabelecimento da paternidade dos filhos de mulher casada é atribuído ao marido da mãe,


nos termos da regra consagrada no art. 163.° do Código de Família. Tal disposição é de caráter
genérico, mas pode sofrer ressalvas, como prevê a parte final desse art. 163.°, que, a título
excecional, permite que seja afastada a presunção legal.

É preciso ter em mente que, ao permitir-se o afastamento da presunção legal de paternidade


do marido da mãe, como atrás vimos, se estão a prever situações de separação de facto dos
cônjuges em que em regra a coabitação cessou, ou em que já não existe entre os cônjuges
uma verdadeira união de vida.

Tendo em conta certas condições excecionais em que uma mulher, embora formalmente
casada com determinado homem, tenha na realidade encetado vida marital com outro,
permite a lei o estabelecimento da verdadeira paternidade do filho de acordo com o vínculo
natural.

Instituíram-se regras de natureza excecional, que permitem, dentro de certas condições, quer
à mulher casada, quer àquele que se considere como progenitor natural, fazer a declaração
contrária à presunção de paternidade do marido.

Saliente-se que idêntica faculdade não é conferida ao marido, o qual, se pretender afastar a
presunção da sua paternidade em relação a filho nascido da mulher com quem for casado, terá
obrigatoriamente que recorrer a ação de impugnação de paternidade.

Os artigos 180.° e 181.° do Código de Família, que permitem declaração de paternidade


contrária à presunção legal, tiveram, pois, em conta situações em que os cônjuges se
encontravam separados de facto e que prevaleciam no passado quando o divórcio era mais
difícil de obter. Admite-se que possam ainda surgir no presente, precisamente quando os
cônjuges estabelecem novas uniões, sem terem a cautela de dissolver atempadamente o
casamento anterior.

Foram, pois, razões de natureza pragmática que levaram a admitir que, inde¬pendentemente
da propositura de ação judicial, como acontece na generalidade dos sistemas jurídicos, se
permitisse à mulher casada ou ao progenitor natural

afastar, por simples declaração, uma presunção legal com a força daquela que deriva da
regrapater is est quem nuptiae demonstrant.

Trata-se dum processo que deve correr na Conservatória do Registo Civil e que permitirá repor
a verdadeira identidade do genitor, afastando uma atribuição legal de paternidade coberta
pelo vínculo do casamento.
Há, porém, que ter em conta que existe um apertado condicionalismo legal a ser observado
para que a declaração seja válida.

Só tem legitimidade para fazer a declaração a mulher casada e o progenitor natural, de acordo
com o que dispõem o n.° 1 do art. 180.° e o n.° 1 do art. 181.°.

A declaração só é considerada válida e eficaz caso se verifiquem as seguintes condições:

a) haja ausência de posse de estado entre o filho e o marido da mãe;

b) que a declaração possa ser pessoalmente notificada ao marido da mãe;

c) que o marido a não venha impugnar dentro do prazo de um ano.

A primeira condição (a não existência de posse de estado entre o filho e o marido da mãe) é de
natureza substancial e de caráter decisivo, pois deve assentar numa situação real e concreta
de que o declarante tem que ter conhecimento, e que não pode falsear, sob pena de
responsabilidade (civil e criminal) por falsas declarações.

Se o marido reconhecer e tratar o filho como tal, e se, portanto, se tiver estabelecido entre
ambos a posse de estado, já a declaração do afastamento da sua paternidade não poderá ser
feita nem pela mulher nem por aquele que se considere progenitor natural.

Neste caso, o legislador optou por dar preferência à estabilidade das relações íamiliarese
designadamente àpatemidade social, postergando a possível paternidade biológica ou natural.
Na verdade, se o marido da mãe considerar o filho como seu e por essa via estiver
estabelecida a sua paternidade, esta só poderá ser afastada através de ação própria, que é
ação de impugnação da paternidade do marido.

A segunda condição posta na lei é a de que a declaração de afastamento da paternidade do


marido lhe possa ser notificada pessoalmente. Obsta-se desta forma a que se faça tal
declaração no caso de morte ou ausência do marido.

Por fim, a última condição para que a declaração se possa tornar eficaz consiste no facto de,
uma vez efetivada a notificação pessoalmente ao marido, este a não venha impugnar no prazo
legal, que a lei fixa em 1 ano, tanto no n.° 2 do art. 180.° como no n.° 2 do art. 181.°.

O silêncio do notificado durante todo o prazo conferido por lei para a impugnação é
entendido, por via de presunção legal, como comprovativo da sua concordância com a
declaração feita sobre o afastamento da sua paternidade em

relação ao filho nascido de mulher com quem está ainda unido pelo matrimónio.

O art. 182.° do Código de Família atribui exclusivamente ao marido a legiti¬midade para fazer a
impugnação e define a forma que esta deve revestir.

A forma da declaração é a mesma que vem prevista no art. 179.°, relativa à impugnação de
declaração feita por terceiro que não o progenitor.
Ou seja, admite-se que o marido impugnante use de qualquer forma de impu¬gnação oral ou
escrita, sendo necessário apenas que o funcionário do registo civil se certifique da identidade
do impugnante. Havendo oposição à declaração pelo marido, a lei considera inexistente a
declaração feita pela mãe ou por quem se considere progenitor natural, averbando-se
oficiosamente ao registo de nascimento do filho a paternidade do marido da mãe.

Se tal ocorrer, vai de novo aplicar-se a previsão legal que obriga a que a presunção da
paternidade estabelecida em relação ao marido da mãe só possa ser afastada por via de ação
de impugnação judicial. Ou seja terá que ser no foro, que se terá que averiguar qual a
verdadeira filiação paterna do filho.

[44] Ações judiciais de filiação

As ações relativas à filiação são de dois tipos:

— ações de estabelecimento de filiação — que se destinam à determinação jurídica de


vínculo de filiação paterna ou materna;

— ações de impugnação de vínculo de filiação já estabelecido mas que se entende ser


contrário à verdade biológica e que portanto deve ser substituído pelo verdadeiro.

A tendência na doutrina, hoje em dia é para considerar que os dois tipos de ações não devem
estar sujeitas a qualquer prazo de caducidade ou de prescrição, pois têm a ver com a
salvaguarda dum direito fundamental da pessoa humana, o direito à identidade própria de
cada indivíduo. Domina assim na doutrina que as normas que limitam no tempo a propositura
destas ações devem ser consideradas como feridas de inconstitucionalidade.

Por um lado interessa defender o interesse do filho em conhecer a sua verdadeira progenitura,
mas por outro lado interessa também defender a estabilidade sócio- -afetivas em que
assentam as relações familiares.^

(?1 Guilherme de Oliveira — obra citada, p. 465: «É necessário organizar um regime que se
abra à verdade biológica e que dê um ensejo para cada indivíduo descobrir o seu lugar no
sistema dc parentesco; mas a certeza e a segurança também são valores de organização
social.»

Dado o princípio já enunciado do direito ao estabelecimento da filiação, a lei permite com a


maior amplitude que, caso ele não se verifique por via das presunções legais ou por
declaração, seja o tribunal a estabelecer por sentença essa filiação.

O art. 184°, n.° 2, do Código de Família permite a propositura da ação:

a) ao Ministério Público oficiosamente, até 3 anos após o nascimento;

b) ao filho, por si próprio ou pelo seu representante legal enquanto for menor ou por
quem for designado como seu curador especial para o efeito no caso de incapacidade.

A ação proposta pelo filho pode ser proposta sem limite de prazo, e independen¬temente do
facto de o Ministério Público ter decaído na ação por si proposta — art. 186.°.
A ação pode ter como fundamento de facto a existência de presunções legais (como a posse
de estado de filho, a união de facto entre a mãe e o pretenso pai, a promessa de casamento,
escrito do progenitor, simples relações de amantismo, etc.), porque a lei não especifica
qualquer fundamento específico. A causa de pedir só pode ser o facto natural da procriação do
qual a filiação deriva automaticamente.

0 Conselho de Família pode ser chamado a intervir, quer por decisão oficiosa do tribunal, quer
a pedido de qualquer das partes, segundo dispõe o art. 195.° do Código de Família «Nas ações
de filiação deve o Tribunal oficiosamente ou a pedido das partes, sempre que o julgue
conveniente, ouvir o Conselho de Família.»

E compreende-se bem como, neste tipo de ações, pode ser proveitosa a sua intervenção,
elucidando o Tribunal sobre a real situação do filho e os pretensos progenitores. Quanto aos
meios de prova, o art. 196.° expressamente abre a mais ampla disponibilidade de investigação,
consignando: « Pode o Tribunal nas ações de filiação, socorrer-se de todos os meios de prova e
designadamente:

a) Da declaração das partes, e dos seus parentes ou afins em qualquer grau;

b) De exames hematológicos, somãticos e outros.»

Quer isto dizer que desde a confissão, à declaração por depoimento de parte de pessoas
impedidas de intervir como testemunhas, prova testemunhal, documen¬tos, gravações,
fotografias e exames médico-forenses, tudo poderá ser levado a tribunal como meio de prova.
Aplica-se o princípio de liberdade de prova.

Aliás hoje em dia para salvaguarda do direito à identidade, considerado como direito
fundamental da pessoa humana, a aceitação de todos os meios de prova nestas ações é
considerado como meio legítimo e inalienável do filho.

A doutrina classifica os meios de prova em dois tipos:

— Provas históricas.

— Provas imuno-genéticas.

Como já referimos na introdução deste Capítulo, os avanços da ciência genética vieram


suplantar as demais provas que de forma circunstancial eram usadas para a determinação da
progenitura e que fizeram correr rios de tinta provocando abundantíssima jurisprudência
sobre a matéria.

Até há poucos anos, a prova pericial usada nas ações de estabelecimento de filiação (que no
Código Civil eram denominados ações de investigação de maternidade ou paternidade) eram
sobretudo os exames médicos forenses de natureza hematológica.

Os exames podem incidir sobre a pessoa da pretensa mãe, do pretenso do pai e do filho e
podem ter como objetivo apenas questões de natureza médica, biológica ou antropométrica.
Questões como a determinação de impotênciagenerandi ou coendi por parte do homem, ou a
impotência concipendi por parte da mulher, podem pôr-se no caso de falsa atribuição de
paternidade ou de maternidade.

Nas ações para o estabelecimento da paternidade era usado como meio de defesa do
«investigado» a denominada exceptioplurium concubentium\ alegava- -se o facto de a mãe do
filho se não ter mantido com estrita fidelidade durante o período de relacionamento com o
pretenso pai. Hoje não é aceitável tal alegação, que não deve considerar-se como uma
verdadeira exceção no sentido processual, que por si só possa tornar a ação improcedente.

Se for feita a prova de que a mãe do filho manteve relações sexuais durante o período legal de
conceção com o pretenso pai e com outros homens, a determinação da paternidade será mais
difícil, mas dependerá de meios de prova mais convincentes para o juiz formular a sua decisão.

Desde o princípio do século XX predominaram os exames hematológicos ou serológicos, aliás


mencionados no art. 196.° do Código de Família e que foram evoluindo com o melhoramento
dos sistemas usados. Incidiam sobre determinados marcadores genéticos existentes no
sangue, que é classificado em tipos sanguíneos que são divididos em quatro grandes grupos
principais.

Havia, pois, que determinar os respetivos grupos sanguíneos da mãe, do pretenso pai e do
filho, para se apurar se este podia ou não ser filho de ambos, pois as caraterísticas do filho têm
obrigatoriamente que derivar da combinação das dos dois progenitores.

Através de um de cada vez maior número de sistemas classificativos utilizados, foi-se tornando
possível excluir, cada vez com maior rigor, a atribuição de maternidade ou paternidade, sendo
esta úJtima a que em regra, é objeto do maior número de casos levados às instâncias judiciais.

Eram, em suma, por via exames de natureza negativa, que se podia concluir pela
impossibilidade de A ser pai de B, ou pela possibilidade da A ser pai de B.

Mas atualmente a situação inverteu-se e de provas negativas passou a ser possível obter uma
resposta positiva à questão colocada.

No estado atual da ciência genética e através do conhecimento do ADN(8) de cada ser vivo é
possível determinar o elo da hereditariedade.

Relativamente à obtenção de prova pelo exame hematológico-genético a fazer para


determinação dos respetivos padrões genéticos do filho e dos pretensos progenitores
suscitam-se questões que só por força da lei poderão vir a ser resolvidas, e que aliás
entendemos serem de evidente urgência.

A primeira que é de índole processual, tem a ver se será de prever que nas ações para a
determinação de filiação será de instituir uma fase preliminar de admissibilidade do pedido,
em que a pessoa indigitada como progenitor possa desde logo vir requerer o exame ao ADN
dos intervenientes na ação. Tal procedimento pode ser legitimado quando da parte de quem é
demandado possa haver dúvidas, justificadas ou não, sobre se é de atribuir a qualidade de seu
filho ao demandante e obter uma certeza prática de que existe ou não, o vínculo de
maternidade ou paternidade.
Para a efetuação do exame é em regra necessário que na pessoa física do demandado seja
efetuada uma recolha ou de saliva ou de sangue, sendo que normalmente esse tipo de exame
é efetuado em organismos públicos apetrechados para o efeito. Ora a questão que mais
controvérsia tem gerado, prende-se com a definição legal sobre se o Juiz da causa pode ou não
ordenar a obrigatoriedade do pretenso progenitor, se sujeitar ao exame para determinação do
ADN mesmo que seja contra a sua vontade.

Confrontam-se neste caso dois direitos fundamentais de que são titulares as partes em litígio,
por parte do pretenso progenitor o direito à liberdade e inte¬gridade física ao fornecer os
elementos de recolha. Por parte do filho o direito à sua identidade e a conhecer os seus pais.

Segundo um ponto de vista, o demandado não será obrigado a submeter-se ao exame e não
poderão ser usados meios coativos que a tal o obriguem. Porém, quando se entende que o
exame não pode ser imposto coercivamente jurisprudência quase uniforme, tem vindo a
considerar que nestes casos o juiz da causa se entender que é injustificada a recusa do
demandado em se submeter ao

W ADN — Ácido desoxiribonucleico que constitui o suporte da informação genética.

exame, pode tirar desse comportamento as suas ilações para concluir em desfavor do
demandado.

Mas em posição oposta vem sendo sustentado que o exame ao ADN deve poder ser imposto
coercivamente ao demandado mesmo contra sua vontade. Em primeiro lugar pelo facto da
recolha de material a ser feita (um pouco de saliva ou de sangue) não atingir o examinado na
sua integridade física e que está em proporção com o fim a que se destina que é o direito à
identidade pessoal do demandante que é um direito fundamental que assiste a todo o ser
humano consagrado quer constitucionalmente quer intemacionalmente, atinente ao seu
status de filho.

« Aparentemente haveria apenas que questionar se o ato de recolha de material biológico


deve ser considerado uma violação à integridade física de um indivíduo ou ao seu direito à
liberdade (...) esta violação não é arbitrária pois apresenta-se como absolutamente necessária
para o exercício de um direito constitucional, o direito à identidade pessoal (...). Como é
reconhecido pelo Comité de peritos para o direito de família do Conselho da Europa, no estado
atual do conhecimento, o teste de ADN é a melhor prova num processo de estabelecimento de
filiação fundada numa derivação genética (...) a realização desse tipo de exames não
consubstancia qualquer violação da Convenção Europeia dos Direitos Humanos por ser
conforme ao interesse superior da criança (...). A recolha de sangue por meio de uma picada
num dedo, não constitui violação à integridade física, aliás é considerado conforme à
Constituição a recolha de sangue no caso de condução em estado de embriaguez>>

A efetuação de exames desta natureza cuja complexidade de equipamentos adequados e


técnicos é reconhecida, está hoje ao alcance através da justiça angolana o que constitui um
indescutível avanço na determinação do ADN como chave para a determinação da filiação, o
que satisfaz o interesse público e a proteção do Estado em situações desta natureza,
ampliando a recurso a este meio de prova.
[45] Titularidade formal da filiação

Estabelecido o vínculo jurídico da filiação que confere ao filho a titularidade substancial da


situação de filho, esta necessita de se converter em titularidade

formal, que se traduz na inscrição no assento do registo civil. Do estabelecimento público e


formal da filiação no assento do nascimento resulta para o filho a titularidade formal da
filiação.

O art. 162.°, n.° 1, do Código de Família diz que o estabelecimento da filiação se prova pelo ato
lavrado no órgão do registo civil. Tal vem previsto no Código do Registo Civil, art. 1 °: «
Constituem objeto do registo civil os seguintes factos: (...) b) Afiliação». Como atrás vimos, a
prova dos factos sujeitos a registo «(...) só pode ser feita pelos meios previstos neste Código»
— art. 5.°.

0 assento de nascimento é um ato administrativo que não tem natureza constitutiva. Nele é
recebida uma declaração produzida por uma ou duas pessoas que intervêm no ato. Essa
declaração, como vimos, pode ser feita por um progenitor, pelos dois progenitores
simultaneamente, ou até por terceira pessoa. Neste assento, uma autoridade pública lavra um
ato administrativo do nascimento de uma pessoa, por via do recebimento de uma declaração,
ato declarativo que se não confunde com ela.

0 funcionário do registo civil recebe a declaração do facto do nascimento a qual se for feita por
quem se declare progenitor produz simultaneamente os efeitos já atrás descritos quanto ao
nascimento e quanto ao vínculo de filiação e recolhe ainda os demais elementos de
identificação referentes à pessoa que nasceu.

Como já apontámos, o declarante está sujeito a responsabilidade criminal por crime de


falsidade quando dolosamente fizer declaração contrária à verdade quer quanto ao facto do
nascimento quer quanto à identidade de progenitor que não seja quem gerou o registado. Mas
a declaração de filiação, materna ou paterna, pode ser feita posteriormente à declaração de
nascimento e ser objeto de averbamento à declaração de nascimento.

A obrigatoriedade do registo para prova de filiação faz com que não se possa invocar perante
terceiros a situação jurídica de filho sem o título formal de filiação. Há quem entenda que o
registo constitui uma verdadeira condição de atendibilidade da filiação.

Em 1998 decorreu, com âmbito nacional, uma campanha para o Registo Civil gratuito das
crianças angolanas até à idade de 17 anos, com o objetivo de suprir a situação difícil criada
pela falta ou desaparecimento do registo de muitos milhares de crianças em resultado da
guerra, da deslocação em massa das populações e ainda da prática generalizada do
comportamento da não prestação da declaração atempada dos nascimentos aos órgãos do
Registo Civil.

Há, porém, que ter em conta que as declarações de paternidade e de maternidade feitas
nesses assentos de nascimento por outrem que não os progenitores e não confirmadas por
estes, servem exclusivamente como elementos de «identificação
pessoal», de acordo com o art. 4.° do Decreto Executivo do Ministério da Justiça n.° 3/98 de 16
de janeiro.

[46] Efeitos do estabelecimento da filiação

a) Data da produção dos efeitos

Uma vez operado o estabelecimento da filiação, este vai ter efeitos retroativos à data do
nascimento, como vem estabelecido de forma expressa no art. 162.°, n.° 2 do Código de
Família.

Ao filho é deferido o status de filho ex tunc, pois a causa jurídica da filiação deriva do facto
natural da procriação e do nascimento com vida. Sendo assim, uma vez verificada a
maternidade e a paternidade, a relação jurídica entre o filho e os seus progenitores considera-
se iniciada a partir do momento do seu nascimento.

b) Vínculo paterno-filial

Do estabelecimento da filiação advém, como efeito primordial, a aquisição da situação jurídica


de filho com a aquisição global dos direitos e deveres que lhe correspondem e que são de
natureza pessoal, patrimonial e ainda moral. Pelo lado dos pais, estes entram igualmente na
titularidade da situação de pai e de mãe.

Deste vínculo de filiação deriva ainda, ipso facto, o estabelecimento dos demais vínculos
familiares de parentesco e de afinidade com os respetivos parentes e afins de ambos os
progenitores, por via materna e paterna.

c) Direito ao nome

O filho tem direito ao uso dos apelidos do pai e da mãe, como vem estabelecido no art. 133.°,
n.° 1 do Código de Família.

Está em vigor a Lei n.° 10/85, de 19 de outubro, que regula a Composição do Nome e que veio
revogar a Lei n.° 10/77, de 30 de abril, permitindo uma maior flexibilidade na escolha do nome
próprio e dos nomes da família ou apelidos. Quanto aos nomes próprios, pelo menos um deles
deverá ser em língua nacional ou em língua portuguesa (art. l.°, n.° 3), podendo ir até dois
vocábulos.

Os apelidos deverão obrigatoriamente pertencer à família paterna ou materna (art. 1.°, n.° 5) e
poderão ir até três vocábulos. A ordem da atribuição dos apelidos não vem prevista na lei, mas
segundo o uso predominante entre nós, o apelido paterno aparece em último lugar.

A escolha do nome próprio dever ser feita por acordo entre o pai e a mãe. Na falta de acordo,
o nome será escolhido pelo tribunal, ouvido o Conselho

de Família — art. 133.°, n.° 2 do Código dc Família. Trata-se de um caso de intervenção


obrigatória do Conselho de Família, que se justifica para auxiliar o

juiz a proferir uma decisão equitativa para o caso em apreço.


O Código do Registo Civil (art. 120.°) atribuía em primeiro lugar ao pai e só depois à mãe a
obrigação de fazer a declaração de nascimento, e era o declarantc que tinha o direito de
declarar o nome do filho — art. 129.°.

Desta sorte, privilegiava-se o pai em relação à mãe quanto à escolha do nome do filho,
situação que veio a ser alterada com a entrada em vigor do Código de Família, que póe os
progenitores em situação de igualdade em relação a todos os direitos e deveres relacionados
com o filho.

Este preceito que é discriminatório em relação aos direitos da mãe, deve ser considerado
como ferido de inconstitucionalidade à luz do preceituado no art. 35.°, n.° 3, da Constituição e
art. 127.°, n.° 1, do Código de Família.

d) Direito à nacionalidade

Como consequência de maior relevo temos a do direito à nacionalidade angolana de origem.

Todas as leis da nacionalidade que vigoraram a partir da Independência privilegiaram sempre a


nacionalidade baseada na regra do jus sanguinis, sendo considerado como cidadão angolano
de pleno direito o filho de cidadão angolano (homem ou mulher), quer nascido em Angola,
quer no estrangeiro.

A Lei de Nacionalidade em vigor Lei n.° 1 /05 de 1 de julho prevê no artigo 9.°: «l.£ cidadão
angolano de origem:

a) o filho de pai ou mãe de nacionalidade angolana nascido em Angola;

b) o filho de pai ou mãe de nacionalidade angolana nascido no estrangeiro. »

É uma lei muito abrangente dentro do critério da transmissão da nacionali¬dade por via
hereditária, privilegiando a qualidade de cidadão de qualquer dos progenitores.

Nas relações de direito internacional privado a lei aplicável deve ser a lei nacional do filho no
momento do nascimento.

Devem considerar-se revogados os artigos 56.°, n.° 2, 57.°, n.° 2 e 58.° do Código Civil que
contêm matéria discriminatória em relação à mãe por privi¬legiarem a lei nacional do pai e
que portanto devem ser considerados como feridos de inconstitucionalidade.

e) Direito a pensão de segurança social

A situação jurídica de filho repercute-se em toda a ordem jurídica e designadamente na área


da previdência social.

A Lei n.° 7/04 de 15 de outubro, Lei de Bases de Proteção Social, dispõe: «Artigo. 6.°: Estão
vinculados à Proteção Social Obrigatória na condição de dependentes do segurado: (...) b)
Osfilhos menores de 18 anos de idade ou inválidos, bem como os filhos dos 18 aos 25 anos de
idade com frequência universitária de acordo com as disposições legais vigentes no domínio
das prestações.»
O art. 6.° do Decreto n.° 38/08, de 19 de junho, que regulamentou esta Lei, dispõe: «Estão
vinculados à Proteção Social Obrigatória na condição de dependentes do segurado: b) Osfilhos
menores de 18 anos de idade ou inválidos, bem como os filhos dos 18 aos 25 anos de idade
com frequência universitária de acordo com as disposições legais vigentes no domínio das
prestações.»

O Decreto Presidencial n.° 8/11 de 7 de janeiro de 2011 regulamenta o art. 18.° da Lei n.° 7/04
de 15 de outubro e constitui os seguintes subsídios inseridos no art. l.° do Regime Jurídico das
Prestações Familiares:

— Subsídio de maternidade;

— Subsídio de aleitamento;

— Abono de família;

— Subsídio de funeral.

Os três primeiros subsídios são atribuídos respetivamente à mulher trabalhadora, aos filhos
dos segurados desde o nascimento até aos 36 meses de vida, aos descendentes dos
trabalhadores e dos pensionistas de velhice a partir dos 3 anos até aos 14 anos de idade e o
último subsídio aos descendentes do segurado e ao cônjuge do segurado e do pensionista de
velhice do falecido — art. 3.°.

CAPÍTULO 9.0

AUTORIDADE PATERNAL

E SEU EXERCÍCIO

[47] Âmbito, titularidade e duração da autoridade paternal

Um dos efeitos fundamentais do estabelecimento do vínculo da filiação é a atribuição, ao pai e


à mãe de filhos menores, da autoridade paternal. Ela visa a prossecução do fim primordial da
célula familiar que é a conceção, criação e educação dos filhos. O conjunto de direitos e
deveres específicos atribuídos aos pais para a criação e educação dos filhos é, digamos, de
ordem natural: existe nas sociedades humanas desde os seus primórdios.
Nodireito romano era denominado «patriapotestas» ou «potestasgenitoria», caraterizada pelo
poder absoluto do pai sobre os filhos, que se prolongava por toda a vida do filho,
independentemente da idade do filho e de ele ser ou não casado.

No Código Civil, a expressão legal usada era «poder paternal», significando que era um poder
especialmente exercido pelo pai, o qual era o elemento hierarquicamente superior dentro da
família, quer em relação à mulher quer em relação aos filhos. À mãe era atribuída uma posição
secundária de mera conselheira nos assuntos que dissessem respeito aos filhos.

No direito europeu procura-se uma nova expressão — «autoridadeparental» —, para evitar


que o conceito contenha em si um sentido discriminatório em relação à mãe.

Mais recentemente privilegia-se a expressão responsabilidade parental que se considera como


«mais rigorosa e mais adequada à evolução da realidade social e jurídica (...) de os pais em pé
de igualdade e em concertação com os filhos menores se encontrarem investidos de uma
missão de prossecução dos interesses destes, sentindo-se ambos responsáveis. »

Direito de Família

sua Recomendação N°R(84)-4 define: ZmLdespZZlão o conjunto d e dever,

o bem-estar moral e material do filho, designadamente tomando conta da ílho mantendo


relações pessoais com ele, assegurando a sua educaçao, o seu sua representação legal e a
administração dos seus bens. >>

Jigo dc Família adota a expressão «autoridade paternal», procurando ir a igualdade dos pais e
indicar que ela deve ser exercida com base no ie ambos os pais.

aridade da autoridade paternal pertence, em princípio, exclusivamcntc íáe; o seu exercício


pode, porém, depender das circunstâncias concretas so. A autoridade paternal é, portanto, um
direito atribuído ao pai e à natureza pessoal, irrenunciável e intransmissível. Excecionalmente,
a paternal é renunciável — é o que acontece no caso da constituição do adoção.

tureza funcional, pois é atribuída ao pai e à mãe, não no seu próprio tas como se diz no art.
127.°, n.° 2, do Código de Família: « Os deveres itemais devem ser exercidos no interesse dos
filhos e da sociedade.» Os es estão vinculados à finalidade legal prevista na lei e não detêm um
jetivo.

oder dever, um ojficium, um munus, que não é exercido sobre o filho filho.®

cicio pelos pais, no seu próprio interesse, da autoridade paternal, do o interesse do filho,
constitui abuso de direito e deve obrigar à D dos órgãos de educação e de assistência, da
Procuradoria da República mais, em defesa do menor. Dado o superior interesse de defesa dos
cnores, a autoridade paternal é, na generalidade dos sistemas so a v igilância e controlo da
sociedade e dos órgãos do Estado, a os Pa!s nao se mostram à altura de educar os seus filhos,
poderá ser

leveres d ^ L^0’ SCn^° toma^as medidas que podem alterar os

ribunalintervenh '8° 'i Fam‘*la prevê Suc. » pedido do Ministério


»te à vida do 61ho7qlV“^ SSÔe*<1UeOSPaÍ*tCnham t0mad° :m geral. ^ m Csivas mtcressc do
menor c da

d°—- **

•Plicar uma medida sancionatória ^T * f°rmaSào morai' H1'

S^MoroM ,qUC C 3 inibi^ «tal ou parcial da

autoridade paternal. Em síntese: pode afirmar-se que a autoridade paternal um poder-dever


atribuído aos pais mas que deve ser exercido em benefício dos filhos, estando sob o controlo
do Estado através dos seus órgãos de natureza administrativa e judicial.

A causa jurídica da autoridade paternal reside na incapacidade natural do ser humano de se


bastar nos seus primeiros anos de vida, no plano físico e inteletual. Ela representa a expressão
mais relevante do dever de solidariedade, de entreajuda c de assistência moral e material que
deve prevalecer nas relações familiares.

A autoridade paternal visa, no plano jurídico, suprir a incapacidade de exercício do menor,


que, em razão da sua inexperiência, carece de quem o dirija na sua formação pessoal e de
quem cuide dos seus interesses patrimoniais, por via da representação legal que é atribuída
aos pais para agir em nome dos filhos.

A autoridade paternal é exercida, consequentemente, durante a menoridade do filho e


termina quando este atinge a maioridade. A maioridade atinge-se, segundo a lei angolana, aos
18 anos, como dispõe a Lei n.° 68/76, de 12 de outubro e está hoje consagrado no art. 24.° da
Constituição.(3)

A Convenção das Nações Unidas sobre o Direitos da Criança dispõe no seu art. l.° que «(...)
considera-se criança todo 0 ser humano com menos de 18anos de idade».

O art. 134.°, n.° 1, do Código de Família explicita que a autoridade paternal é exercida durante
a menoridade do filho.

Ela perdura durante todo esse período da vida do filho e só pode extinguir-se por duas causas,
como dispõe o n.° 2 do citado art. 134.°:

— a morte do progenitor;

— a constituição do vínculo de adoção.

A morte é um facto natural que põe fim às relações familiares de natureza pessoal. A
constituição do vínculo de adoção vai criar um novo vínculo de filiação entre adotante e
adotado e como tal vai fazer cessar o vínculo de filiação naturah Os pais são, porém, chamados
a dar o seu consentimento à adoção art. 202. ^

Código de Família.

Por sua vez os deveres dos filhos para com os pais vêm expressos no art.
«Os filhos devem respeito, cuidados e assistência aos pais». São deveres e permanente
extensivos a toda a relação paterno-filial quer durante a meno ^ como depois da maioridade.

A autoridade paternal tem como conteúdo um conjunto de poderes, de deveres e de


prerrogativas que incidem sobre a própria pessoa física e moral do filho e sobre o seu
património.

Com vista à prossecução dos fins para cuja realização se atribui a autoridade paternal, a lei
prevê o dever de obediência dos filhos em relação a seus pais. É estatuído no art. 137.° do
Código de Família o princípio genérico de que os filhos devem obediência aos pais. A lei
estabelece, porém, as linhas orientadoras desse dever, pois no art. 137.°,n.°l menciona que:
«Osfilhos menores devem obediência à legítima autoridade paternal», o que quer enfatizar
que essa autoridade tem que ser exercida dentro da finalidade legal para a qual é atribuída (o
interesse do menor), pois se o não for toma-se ilegítima e como tal não há que pedir ao filho
obediência.

De acordo com o n.° 2 do art. 137.°: «A medida do seu desenvolvimento a personalidade e


vontade dos filhos deve ser tida em conta pelos pais ».

Quis-se sublinhar aqui a necessidade de aplicar um dos princípios fundamentais do Código de


Família (consignado nos seus art. 2.°, n.° 2 e art. 6.°), e que se refere à contribuição que todos
os membros da família devem dar para que cada um possa realizar plenamente a sua
personalidade e as suas aptidões, tendo em conta o respeito pela sua personalidade, a especial
proteção à criança e o espírito de colaboração e entreajuda.

A reforma constitucional introduzida pela Lei n.° 23/92, de 16 de setembro, previa no art. 30.°,
n.° 2, que o Estado promovesse o desenvolvimento harmonioso da personalidade das crianças
e dos jovens; e o art. 31.° vinha explicitamente consagrar o princípio de que o Estado, a família
e a sociedade deviam promover o desenvolvimento harmonioso da personalidade dos jovens e
das crianças.

No art. 80.° (Infância) da atual Constituição vem consagrado no n.° 2: «As políticas públicas no
domínio da família, da educação e da saúde devem salvaguardar o princípio do superior
interesse da criança como forma de garantir o seu pleno desenvolvimento físico, psíquico e
cultural».

Aliás, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança no seu art. 12.°, n.° 1, já
confere à criança «(...) o direito de expressar as suas opiniões livremente sobre todos os
assuntos relacionados com a criança (...)» e no n.° 2 o de expressar livremente a sua opinião
em todos os assuntos que lhe digam respeito em «(...) processojudicial ou administrativo (...) »
e «<? direito a que as suas opiniões sejam tidas em conta, de acordo com a sua idade e
maturidade».

Estamos perante uma nova conceção, oposta à do autoritarismo e da prevalên¬cia da vontade


de adulto sobre a da criança e do jovem, anteriormente dominante.
Os pais devem respeitar a personalidade, as aptidões e inclinações pessoais do filho, não lhe
impondo regras de conduta ou opções na sua vida, como sejam a escolha de fé religiosa, de
profissão, da celebração ou não de casamento, etc., que contrariem a vontade do filho.

O conteúdo da autoridade paternal engloba poderes-deveres de natureza pessoal, de natureza


patrimonial e de representação dos filhos menores.

[49] Conteúdo de natureza pessoal

O conteúdo de natureza pessoal da autoridade paternal vem expresso no art. 135.° do Código
de Família, segundo o qual «Incumbe aos pais a guarda, a vigilância e

0 sustento dos filhos menores e a prestação de cuidados com a sua saúde e educação ».

Importa analisar cada um destes poderes-deveres discriminados na lei:

1 — Poder-dever de guarda

Este poder-dever envolve, na sua materialidade, o encargo direto do filho pelos pais e está
ligado, portanto, à própria pessoa física do filho. O dever da guarda ou custódia é da maior
relevância e pode dizer-se que dele derivam os demais direitos e deveres paternais. Este
direito vem hoje de novo consagrado no art.0 9.° da Lei sobre a Proteção Integral da Criança
(Lei n.° 25/12 de 22 de agosto de 2012,

D. R. n.° 162). Os pais devem manter os filhos em convivência direta consigo, protegendo-
os na sua integridade física e moral e integrando-os no seu agregado familiar em vivência
comum.

O direito de guarda consubstancia-se assim na obrigação e no direito do filho a viver com os


pais na residência destes. Este poder-dever vem consignado no art. 136.° do Código de Família:
« Os filhos menores devem viver com os pais, não podendo deixara residência destes sem o
seu consentimento».

Por via do poder-dever de guarda, os pais estão investidos no direito de fixar o domicílio do
filho menor. O domicílio do menor é, em regra, o do seu representante legal, como prevê o
art. 85.°, n.° 1, do Código Civil.

A retirada dos filhos menores da residência dos pais sem o seu consentimento constitui ilícito
penal que pode ser tipificado na forma de subtração de menores

— art. 342.°, no constrangimento do menor a abandonar a casa dos pais ou tutores

— art. 343.°, ou na ocultação troca ou descaminho de menores — art. 344.°, todos do


Código Penal.

O Anteprojeto do Código PenaJ prevê no art. 231.° o crime de Subtração ou recusa de entrega
de menor.

Os pais podem pedir a intervenção de meios policiais para a entrega do filho que for
ilicitamente retirado da sua guarda.
Inversamente, a lei não permite que os pais afastem os seus filhos menores da residência
familiar, seja por meio de expulsão ou de qualquer outro meio violento ou fraudulento. O art.
18.° da Lei do Julgado de Menores, Lei n.° 9/96, de 19 de abril, carateriza a violação do dever
de proteção social ao menor e engloba na sua alínea b) como violadora desse dever: «A ordem
de saída do menor da residência familiar nào autorizada pelo Julgado de Menores, por parte
dos pais, tutores ou qualquer pessoa que tenha o menor a seu cargo.»

O abandono dos filhos constitui igualmente um ilícito penal, sendo uma das formas do crime
de abandono de família.'

Os pais podem, no entanto, delegar os seus poderes em terceira pessoa, colocando o filho em
colégio, em casa de parente, ou instituição social, desde que seja idónea a entidade a quem o
menor é entregue.

Dá-se então a continuação do exercício do poder-dever de guarda através desse intermediário.


Esta delegação do poder-dever de guarda pela entrega material do filho a terceiro é um ato de
natureza temporária e sempre revogável.

2 — Poder-dever de vigilância

O poder-dever de vigilância atribui aos pais o dever de velarem pela integridade física e moral
dos filhos, afastando-os dos perigos que os possam atingir na sua própria pessoa ou na sua
formação moral. Os pais devem proteger o filho na sua integridade física, não permitindo que
ele seja exposto a perigos dos quais, em razão da sua menoridade, não esteja apto a defender-
se, impedindo que sofra lesões ou que a sua vida corra algum risco.

No aspeto moral, devem velar sobre as relações do filho, impedindo que ele conviva e
acompanhe pessoas moralmente mal formadas que possam incutir-lhe vícios ou
comportamentos censuráveis. Os pais têm o direito de fiscalizar as relações sociais dos filhos.

Este direito ter que ser exercido no interesse do filho e não deve estar submetido a caprichos
ou malquerenças dos pais. Se os pais impedirem a relacionamento com os avós ou outros
parentes próximos do menor, como irmãos, tios e primos, o tribunal pode ser chamado a
intervir, se essa proibição tiver caráter abusivo e for injustificada.

Os pais têm o direito de abrir a correspondência do filho menor, no quadro do dever de


vigilância sobre as relações sociais do filho — art. 461.°, n.° 1 do Código Penal.

Nele está também englobado o controlo sobre a vida privada do filho e a difusão da sua
imagem ou de relatos de índole pessoal.

Do dever de vigilância resulta ainda para os pais a obrigação de impedirem que o filho pratique
atos lesivos dos direitos de outrem, sendo no geral responsáveis pelos atos cometidos pelo
filho. O art. 491.° do Código Civil responsabiliza os pais relativamente aos danos causados a
terceiros por filho menor, naturalmente incapaz, quando não tenham exercido de forma
diligente o seu dever de vigilância.
É a própria lei que estabelece a presunção de culpa in vigilando, atribuindo aos pais ou a quem
os substitui, o dever de reparar os danos causados por condutas de natureza dolosa ou
meramente culposa dos filhos menores.

A Lei do Julgado de Menores, atrás citada, veio abranger na sua jurisdição art. 3.° « b) os pais,
tutores, ou quem tenha o menor a seu cargo, nos casos previstos na

presente lei». Os pais estão obrigados a coadjuvar a ação do Julgado de Menores e a fazer
cumprir as decisões que forem tomadas relativamente a seus filhos.

De acordo com o art. 50.° do Código de Processo do Julgado de Menores, aprovado pelo
Decreto n.° 6/03 de 28 de janeiro, se «Durante a execução das medidas decretadas ao
menores se verificar o seu incumprimento por parte dos pais, tutores ou da pessoa que tenha
o menor a seu cargo, será mandado extrair certidão dos autos para procedimento de
contravenção por violação do dever de proteção social, caso a conduta não integre infração
mais grave.»

O Código Aduaneiro aprovado pelo Decreto-Lei n.° 5/06, de 4 de outubro, no seu art. 175.°, n.°
1, responsabiliza os pais pelas infrações fiscais e aduaneiras cometidas pelos filhos/"

3 — Poder-dever de prestação de sustento e cuidados de saúde O dever de sustento e


prestação de cuidados de saúde faz parte, bem como o dever de educação, do dever geral de
prestação de alimentos que incumbe aos pais a favor do filho. É o dever primordial dos pais em
relação aos filhos, consignado não só no art. 135.° mas também no art. 249.°, n.° 1, do Código
de Família.

A obrigação de alimentos é uma forma do dever de assistência material e nela se incluem a


prestação de alimentação, vestuário, habitação e educação, como adiante veremos. Esta
obrigação incumbe ao pai e à mãe e é de natureza solidária, o que significa que ela pode ser
exigida na sua totalidade a qualquer um dos pais. Se for um único progenitor a prestá-la, ele
terá direito de regresso contra o outro. Entre os pais existe uma responsabilidade solidária.

O quantitativo desta obrigação varia consoante a situação económica e social dos pais, pois ao
filho deve ser assegurado um nível de vida idêntico aos dos seus progenitores e proporcional
aos rendimentos destes. Os alimentos não devem, pois, restringir-se ao quantitativo
necessário à mera subsistência do alimentado.

A prestação de cuidados de saúde (também incluída na obrigação genérica de alimentos)


envolve tudo quanto diga respeito ao desenvolvimento físico e psíquico do menor,
protegendo-o de doenças através de vacinações c outros meios de sanidade e da devida
assistência médica preventiva e curativa. Este direito vem de novo consagrado no art.° 14.° da
citada Lei da n.° 25/12 sobre Proteção e Desenvolvimento Integral da Criança. Cabe aos pais
prestar autorização para tratamentos ou intervenções cirúrgicas a que o menor seja
submetido.
Código Aduaneiro:

ARTIGO 175.°

1. Os pais ou representantes legais dos menores são responsáveis pelas infrações fiscais c

aduaneiras por eles cometidas.

Entendemos estar fora dos poderes dos pais autorizar que o filho menor seja objeto de
esterilização ou que seja doador de um órgão a terceira pessoa dado o caráter de mutilação
física de tais intervenções.

4 — Poder-dever de educação

O fim primordial da autoridade paternal é a formação do filho menor, que em primeiro plano
incumbe ao pai e à mãe. O art. 130.° do Código de Família, já citado, considera «a formação
moral e a preparação profissional dos filhos como cidadãos válidos e socialmente úteis» como
o fim social mais relevante da autoridade paternal (n.° 2).

O poder-dever de educação dos filhos está em consonância com as capacidades e recursos dos
pais, como menciona o n.° 3 do art. 130.°, o que implica que quanto mais elevado for o nível
de vida dos pais, maior quantitativo estes devem proporcionar aos filhos para a sua formação
e para a sua educação.

O direito da criança à educação vem consagrado no art. 28.° da Convenção dos Direitos da
Criança.;8)

É exatamente no altruísmo e espírito de abnegação dos pais, que se radica a possibilidade de


as gerações menos favorecidas permitirem que os seus descen¬dentes ultrapassem situações
de desvantagem cultural em que eles se encontrem.

No esforço de educação do filho, o pai e mãe devem colaborar com os organismos do Estado
vocacionados para a educação e assistência do menor, dado que a importância e
complexidade da tarefa não permitem que sejam só os pais a levá-la a cabo. Mas por outro
lado, os pais não podem relegar para esses órgãos do Estado essas tarefas fundamentais.

Os pais podem escolher a educação do filho e orientá-lo nas suas opções escolares e
profissionais. O dever de educação engloba, assim, o dever de propor¬cionar instrução ao
menor, obrigando à matrícula dos filhos em idade escolar em estabelecimento de ensino e ao
cumprimento da obrigação de frequentar a escola. Devem ser sancionados os pais que
impeçam o filho de frequentar a escola, ou que sejam negligentes na forma como
acompanham o filho em idade escolar.

Foi aprovado por Despacho n.° 30/08, de 24 de janeiro, o Regulamento Nacional de


Alfabetização e Atraso Escolar, que veio permitir a recuperação de alunos que tinham
interrompido a sua formação no quadro do ensino normal. 1
A tendência nos diversos sistemas jurídicos é, como já se mencionou, no sentido de o Estado
controlar os pais na forma como estes cuidam da instrução e educação dos filhos,
estabelecendo vias de fiscalização através dos competentes

órgãos escolares e de assistência social.

A educação do filho envolve também a sua integração gradual na execução de tarefas na vida
cotidiana do lar, de acordo com os hábitos de vida de cada povo, como forma de
aprendizagem e transmissão de valores culturais.

O poder-dever de educação insere dentro de si o poder de comando sobre os filhos, do qual


decorre o poder de correção dos filhos. Já diz o velho ditado que «quem dá o pão dá a
educação». O poder de correção permite aos pais sancionar os filhos, impondo-lhes castigos.

Os castigos revestem-se de diversas formas: corporais ou de outra natureza, como privações


de atividades ou benesses dadas pelos pais, etc..

É muito controversa a questão da aplicação de castigos corporais aos menores e em que


medida eles podem ser aplicados pelos próprios pais.

Aliás predomina o conceito de que a violência contra a criança é um flagelo a combater e a


Convenção dos Direitos da Criança no seu art. 19.°, n.° 1: «(...) manda adotar medidas
legislativas, administrativas, sociais e educativas apropriadas para protegera criança contra
todas as formas de violência física ou mental (...)».

A aplicação de castigos corporais pelos pais, parentes ou professores, ou outros, devem ser
sempre considerados ilícitos. Efetivamente apartir de um novo conceito de violência
doméstica, aprovado pela Lei n.° 25/11 de 14 de julho, estão interditos todos os atos
praticados no seio da família, nas escolas, instituições que envolvam todo o tipo de violência
seja ela física, verbal ou psicológica.

Os métodos de correção de menores variam segundo os usos e costumes de cada sociedade,


sendo umas mais repressivas e dominadas pelo autoritarismo, outras mais liberais e abertas a
métodos não coercivos de educação.

O direito de correção sempre que envolva violência é punido criminalmente, pois prejudica o
menor, na sua integridade física ou psíquica.

Se, por outro lado, os filhos se mostrarem de difícil correção ou com especial vocação para
prática de condutas antissociais, os pais podem requerer ao tribunal a imposição de medidas
de correção que poderão ir até ao internamento cm instituições educativas ou de assistência
apropriadas, como vem hoje consagrado no art. 14.°, alínea c), da Lei do Julgado de Menores
(Lei n.° 9/96, de 9 de abril), que prevê a aplicação da medidas de proteção social ao menor
«que se mostre gravemente inadaptado à disciplina da família e da comunidade».

[50] Conteúdo de natureza patrimonial

1 — Administração ordinária dos bens dos filhos


A autoridade paternal abrange em regra os poderes de administração legal dos bens dos filhos
— art. 138.° do Código de Família. A administração dos bens do menor é um direito e um
dever que o pai e a mãe devem exercer conjuntamente.

No exercício desse direito os pais têm o dever de diligência, como impõe o art. 144.°, n.° 1, do
Código de Família.

Essa administração está dirigida para a conservação e frutificação normal dos bens do menor,
aproveitando os frutos e rendimentos que os mesmos produzem, sem alterar a sua estrutura e
substância. Os atos a praticar devem ter como objetivo a gestão e conservação do património,
são pois atos de administração ordinária.

O direito à administração dos bens envolve o direito ao usufruto legal dos bens dos filhos (art.
143.° do Código de Família). Entende-se, por via desta atribuição, que os pais custeiem as
despesas necessárias com os alimentos dos filhos e, se excedentes houver, eles revertam a
favor dos pais como compensação dos encargos da administração. No atual Código Civil
Português os rendimentos do filho devem ser aplicados no seu próprio sustento e em
necessidades do agregado familiar.

O direito ao usufruto dos pais não pode porem ser alienado ou onerado pelo próprio ou em
execução movida por terceiros.

Relacionado com o direito ao usufruto, está o disposto na última parte do n.° 1 do art. 144.° do
Código de Família, segundo o qual os pais «não são obrigados a prestar contas da sua
administração dos bens dosfilhos».

Na prática, seria difícil impor aos pais o dever de prestar contas dos rendimentos dos bens dos
filhos, uma vez que todos vivem em economia comum e tendo em conta o princípio da
solidariedade que rege as relações familiares.

Os pais «podem ser responsabilizados pelos atos de administração que, intencio¬nalmente ou


com grave negligência, pratiquem em prejuízo dos filhos» (art. 144.°, n.° 2 do Código de
Família). Havendo violação do dever de diligência na adminis¬tração dos bens do filho menor,
além da responsabilidade civil ou criminal do progenitor, podem ser-lhe retirados os poderes
de administração e estes serem atribuídos ao outro progenitor ou a um terceiro que seja
nomeado curador.

Essa decisão tem que ser tomada pelo tribunal, no âmbito das medidas de inibição da
autoridade paternal que adiante estudaremos.

2 — Bens excluídos da administração dos pais

A administração legal dos bens dos filhos pode, porém, em certos casos, não pertencer aos
pais. É o que se verifica, de acordo com o previsto no art. 142.° do Código de Família, quando
se trate:

— de bens excluídos da administração dos pais por imposição expressa de terceiro ou do


tribunal;
— do produto do trabalho dos filhos.

No primeiro caso, encontram-se os bens que tenham sido doados ou deixados a título
sucessório ao menor, com a condição de não ficarem sob a administração dos pais, ou com a
condição de se destinarem a um fim específico da vida do menor, como seja o seguir
determinada carreira profissional, uma vocação artística, etc..

Neste caso, o autor da doação ou da herança pode indicar como administrador um terceiro
que não qualquer um dos pais.

No segundo caso, a lei prevê que seja o próprio menor a auferir rendimentos com o produto
do seu trabalho, permitindo que seja ele a administrar o montante por si auferido.

A legislação laborai angolana permite a prestação de trabalho por conta de outrem ao menor
que tenha completado 14 anos de idade.

Já era assim na Lei Geral do Trabalho (aprovada pela Lei n.° 6/81, de 24 de agosto), cujo art.
160.° permitia a admissão ao trabalho de menores que tivessem completado 14 anos de idade,
prevendo o art. 161.° a validade da relação jurídica laborai estabelecida com menores dos 14
anos aos 18 anos, desde que autorizada pelo representante legal.

Hoje, a Lei n.° 2/2000, de 11 de fevereiro, permite igualmente a celebração por escrito do
contrato de trabalho, desde que o menor faça a prova de que completou 14 anos de idade;
para a validade do contrato é necessária a autorização expressa de quem represente o menor
ou a autorização tácita, caso o menor tiver completado os 16 anos — art. 282.°.

Pela Resolução n.° 8/01 da Assembleia Nacional — D. R. de 16 de fevereiro, Angola aderiu à


Convenção sobre a Idade Mínima de Admissão ao Emprego, que fixa que ela «não deve ser
inferior à idade em que termina a escolaridade obrigatória, nem em qualquer caso, a 15 anos».

A lei não abrange o trabalho dito «doméstico» que o menor efetua a título permanente, a
maior parte das vezes sem qualquer tipo de remuneração.

O menor que trabalhe por conta de outrem e aufira o seu próprio salário tem direito a dispor
da sua remuneração.

Mas se viver em economia comum com seus pais, deve contribuir para as despesas comuns
que constituem os encargos normais do agregado familiar.

3 — Atos de administração extraordinária

A administração legal dos bens dos filhos é, porém, de natureza restrita, pois é exercida dentro
dos limites da denominada administração ordinária, destinada à conservação dos bens e à sua
frutificação normal. Os atos que extravasem estes limites só podem ser praticados com
autorização do tribunal.

Estão sujeitos à autorização judicial os atos mencionados no art. 141.° e que são:

— alienação ou oneração de bens imóveis;


— alienação ou oneração de bens móveis de caráter duradouro;

— repúdio de heranças;

— assunção de obrigações que vinculem o filho depois dele atingir a maioridade.

Todos estes atos, que estão fora dos parâmetros da administração normal dos bens, têm que
ser especificadamente autorizados, caso por caso, peio tribunal, que, dadas as circunstâncias,
deverá ponderar se o negócio jurídico posto à sua apreciação é patrimonialmente benéfico
para o menor.

Os contratos feitos pelos pais na vigência da menoridade do filho, como o contrato de


arrendamento, de exploração ou de aluguer, cessam quando o filho atinge a maioridade.
Procura-se desta sorte que, quando cesse a menoridade, o filho não fique vinculado a
obrigações que não foram por si contraídas.

Após a adoção na sociedade angolana da chamada «economia de mercado» tem-se posto com
acuidade a questão de saber se é ou não necessária a autorização do tribunal para os pais
criarem sociedades comerciais de capital com os filhos menores, ou fazerem com que eles
intervenham nas sociedades recém-constituídas.

Não se trata do caso de o filho menor receber, a título sucessório, quotas sociais de sociedades
comerciais, mas do aparecimento exnovo do menor como detentor de uma quota social ou
ação de uma sociedade que anteriormente não existia.

A questão tem sido objeto de grande controvérsia, havendo na doutrina e na jurisprudência


dos sistemas de direito romano a opinião dominante de que a entrada de um menor, mesmo
como mero sócio de capital, numa sociedade comercial, deve ser autorizada pelo tribunal.

Esta não era orientação da nossa jurisprudência, que entendeu estar abrangido nos poderes
de representação dos filhos atribuídos aos pais, o da aquisição pelos menores de quotas em
sociedade por quotas de responsabilidade limitada .

Dado que não se tratava de alienação ou oneração de bens havidos anterior¬mente pelo
menor, mas na realidade de uma doação indireta de valores feita pelo

progenitor, entendeu-se que esse ato estava fora da previsão legal do art. 141.° do

Código de Família.

Esta doutrina perfilhada pela nossa jurisprudência, à face da lei então vigen¬te, tem que ser
revista em razão da entrada em vigor da Lei das Sociedades

Comerciais, Lei n.° 1/04 de 13 de fevereiro.

O art. 76.°, n.° 1, desta lei estipula que os fundadores, gerentes ou adminis¬tradores da
sociedade respondem solidariamente para com a sociedade pela inexatidão e deficiência de
quaisquer declarações que tenham prestado para a sua constituição. E o n.° 3 desse artigo faz
responder os sócios fundadores pelos danos que causem à sociedade. Acresce que o art. 78.°
dessa lei, estatui que a responsabilidade dos sócios fundadores, gerentes e administradores é
de natureza solidária, ficando vedada qualquer cláusula que exclua ou limite essa
responsabilidade que por força do art. 79.° será declarada nula.

Ora envolvendo a qualidade de sócio fundador a responsabilidade pessoal descrita na lei


comercial, é manifesto que extravasa os poderes legais de representação de filho menor para
a constituição de uma nova sociedade em que ele apareça na qualidade de sócio fundador.

Na verdade, como já vimos, os poderes de administração legal dos bens do filho menor é no
essencial dirigida para os atos de administração ordinária e por conseguinte, destinada à sua
conservação e frutificação normal, não podendo envolver atos dos quais possa advir
responsabilidade pessoal imputável ao menor.

Pelo atual dispositivo da lei, entendemos que a constituição duma nova sociedade comercial,
em que o menor entre como sócio fundador, nem tam¬pouco poderá ser enquadrada como
ato de administração extraordinária cuja autorização possa ser dada pelo tribunal, como vem
previsto no art. 141.° do Código de Família.

A qualidade de sócio fundador envolve responsabilidade de natureza pessoal e só pode ser


assumida por quem tenha plena capacidade civil pelos efeitos de que dela derivam. Daí que
tampouco ela não possa ser objeto de autorização judicial, sendo de afastar por completo a
intervenção de um menor no ato de constituição duma sociedade comercial.

Por maioria de razão é também de afastar poder um menor ser investido em qualquer cargo
social na qualidade de gerente ou administrador, para os quais a mesma Lei n.° 1/04 exige que
as pessoas investidas tenham plena capacidade de agir. O menor poderá ser sócio não
fundador unicamente em sociedade de capital.

Já a situação que decorre posteriormente à constituição da sociedade e aquisição da qualidade


do sócio tem que ser encarada de forma diferente. Ao sócio menor não poderão ser atribuídas
funções de gerência comercial, mesmo

através do seu representante legal, pois são funções atribuídas em razão da pessoa escolhida
para a gerência e não podem ser objeto de delegação.

Em consequência, passam a estar sujeitos a autorização judicial quaisquer atos que envolvam
alienação ou oneração de quotas sociais ou alteração do pacto social. Mas cabem nos atos da
administração ordinária, os poderes dos pais de representarem os filhos nos atos que
decorram da vida normal da sociedade, como a aprovação de contas, recebimento de
dividendos e lucros, eleição de órgãos sociais, etc..

4 — Anulação e validação de atos praticados pelos pais

Os atos de administração praticados pelos pais dentro ou fora dos seus poderes de
administração e que sejam lesivos dos interesses dos filhos podem ser anulados — art. 145.°
do Código de Família.

A anulação pode ser pedida pelo Ministério Público durante a menoridade do filho. E o próprio
filho pode vir pedir a anulação do ato dentro do prazo de um ano após ter atingido a
maioridade.
Além de que, como já apontámos, os pais podem ser responsabilizados pelos atos que,
intencionalmente ou com grave negligência, pratiquem em prejuízo dos filhos (art. 144.°, n.°
2). Aos pais que administrem indevidamente os bens do filho, violando os seus deveres para
com este, fazendo um uso abusivo dos seus poderes, pode ser retirado o poder legal de gestão
dos bens dos menores, procedendo-se à remoção dos seus poderes de administração.

A remoção da administração é uma sanção contra a gestão inapropriada dos progenitores que
redunde na lesão dos interesses económicos do filho, seja por incapacidade dos pais, seja por
apropriação ou dissipação indevida dos bens daquele.

Em contrapartida, os atos feridos de invalidade, por não terem sido devidamente autorizados
pelo tribunal, podem ser validados nos termos do art. 146.° do referido Código.

Pode ocorrer que determinado ato tenha sido benéfico para o património do filho,
justificando-se que seja suprido o vício na sua celebração. A validação pode ser feita a pedido
dos pais durante a menoridade do filho ou pelo próprio filho após ter atingido a maioridade,
não impondo a lei de família um prazo para o pedido.

Quando o filho atinja a maioridade os pais devem fazer-lhe a entrega dos bens que estejam na
sua administração remetendo-os à sua posse.

[51] Representação legal

Como corolário da autoridade paternal, a lei confere aos pais o poder da representação legal
dos menores.

O art. 138.° do Código de Família atribui aos pais «opoder-dever de represen¬tação dos filhos
em todos os atos e negócios jurídicos salvo os de natureza estritamente pessoal».

Este poder de representação tem simultaneamente natureza pessoal e patrimonial e engloba


os atos relativos à pessoa e aos bens do menor.

A representação é atribuída ao pai e à mãe indistintamente quando exerçam em conjunto a


autoridade paternal.

Na verdade, estando a autoridade paternal dividida em diarquia entre o pai e a mãe é a eles
que, em caso de coabitação, cabe a representação comum do filho menor (art. 139.°, n.° 1 do
Código de Família).

Presume-se que a vontade expressa por um é a vontade de ambos, tratando-se de uma


presunção simples, que pode ser afastada por qualquer manifestação em contrário do outro
progenitor. Esta presunção é válida perante terceiros de boa fé e, no geral, para os atos usuais
da vida do filho menor.

Para estes atos normais do dia a dia do menor seria prejudicial que fosse necessário chamar os
dois progenitores a intervir, dificultando os necessários procedimentos para resolver cada
caso.

Quando estiver em causa uma questão de natureza grave ou de caráter excecional (como, por
exemplo, a escolha de profissão, continuação de formação profissional, autorização para o
menor ser submetido a uma intervenção cirúrgica, a saída do menor do país por longo tempo,
etc.) já é necessário que ambos os pais sejam chamados a representar o menor.

Do poder de representação dos pais estão excluídos os atos de natureza estritamente pessoal
(art. 138.° do Código de Família) c os atos de natureza patrimonial sujeitos a autorização
judicial (art. 141.° do mesmo Código).

Os atos de natureza estritamente pessoal são aqueles que estão ligados à própria vontade e
consciência do menor, titular do direito, e em que é essa vontade própria que tem de ser
expressa.

Como atos de natureza estritamente pessoal estão englobados: o consentimento para


casamento, previsto no art. 35.° do Código de Família que tem que ser dado pelo próprio
nubente, embora tenha que ser complementado com a autorização dos pais prevista no art.
24.°, n.° 3.

O consentimento à adoção, a que refere o art. 203.°, que é indispensável à constituição do


vínculo da adoção de menores que tenham completado 10 anos de idade.

A declaração do vínculo da qualidade de progenitor, seja de maternidade ou de paternidade,


feita por menor que já tenha a idade mínima para contrair casamento, ou seja, 16 e 15 anos,
respetivamente, para homem e mulher, como consente o art. 174.°, alínea a), não carece de
autorização. Já no caso de idade inferior àquelas a declaração é feita pelo menor e tem que ser
objeto de autorização pelo representante legal — art. 174.°, alínea b).

A audição do menor que tenha completado 10 anos de idade em todas as causas a si


respeitantes — art. 158.°, n.° 3, do mesmo Código representa também um direito de natureza
pessoal a ser exercido pelo menor.

A audição do menor constitui «uma das consequências mais importantes do princípio favor filii
que o julgador deve ter em conta como elemento relevante da sua decisão.»

De realçar que a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança, de 1996, no
seu art. 3.° dispõe:

«A criança que segundo o direito interno é considerada como tendo o necessário


discernimento, nos processos em que seja interessado e perante uma autoridade judiciária é
titular dos seguintes direitos (...)

a) receber toda a informação pertinente;

b) ser consultada e exprimir a sua opinião;

c) ser informada das consequências eventuais da aplicação da sua opinião e das


consequências eventuais de qualquer decisão.»

[52] Relações paterno-filiais depois da maioridade dos filhos


Uma vez atingida a maioridade pelos filhos cessa o exercício da autoridade paternal,
alterando-se consequentemente as relações jurídicas paterno-filiais que passam a processar-se
entre adultos titulares dos seus direitos e deveres.

Os filhos, mesmo quando maiores, estão, porém, adstritos a certos deveres específicos,
próprios da qualidade de filho, em relação a seus pais.

São eles, como atrás vimos, os deveres de respeito, cuidados e assistência, como prescreve o
já citado art. 132.° do Código de Família.

Vemos que a lei, num vínculo familiar tão próximo como o da filiação, exige, em primeiro
lugar, o respeito dos filhos em relação aos pais.

O dever de cuidados implica o dever de ajuda e desvelo dos filhos pela pessoa dos pais e o
dever de assistência de prestação moral e material. Tal como acontece nas relações entre os
cônjuges, a lei impõe que os filhos prestem assistência de natureza moral e material aos pais.‘l)

Esta traduz-se na obrigação de alimentos, consignada no art. 249.°, n.° 2, alínea b) do Código
de Família, que obriga os descendentes à prestação de alimentos aos seus ascendentes.

[53] Exercício da autoridade paternal

O exercício da autoridade paternal pertence, em primeiro plano, ao pai e à mãe como fruto de
um direito natural. Não obstante, é necessário que esteja estabelecido o vínculo da filiação em
relação a ambos para existir a titularidade do direito ao seu exercício.

No nosso sistema jurídico, e porque foi afastado o conceito de filho de mãe ou pai
«ilegítimos», a autoridade paternal é exercida consoante entre eles existe ou não coabitação.

Deste modo, há que ter em conta o facto concreto de estarem na titularidade dos seus direitos
de progenitores, ou seja se está ou não estabelecido o vínculo da filiação em relação a cada
progenitor, independentemente de estes estarem ou não unidos pelo casamento.

Independentemente de os pais serem casados ou não, a autoridade paternal é exercida em


igualdade, com os mesmos direitos e deveres em relação aos filhos, sobretudo se ambos
viverem em coabitação.

Nas relações entre pais e filhos teve um considerável impacte a nova perspetiva do direito que
se tem acentuado nas últimas duas décadas e que passou a encarar a criança (abrangendo a
infância e a adolescência) como titular de direitos que lhe são diretamente atribuídos.

Em vez de dar predominância aos direitos dos pais sobre os filhos menores, iniciou-se uma
importante inversão de perspetiva e passou a centrar-se a atenção nos direitos da criança em
relação aos seus pais. Para a questão do exercício da autoridade paternal que agora
apreciamos, é fundamental o direito do filho a ter pai e mãe e a manter, sejam quais forem as
circunstâncias de cada caso, o relacionamento normal com ambos os progenitores. Entende-se
que é benéfico

(n) Francisco Rivero Hernandez. «Relaciones Personales entre Abuelos y Nictos en las Familias
Reconstituidas», in Lex Familioe — Revista Portuguesa de Direito de Família,, pp. 36-37: «Los
abuelos y la família extensa, cn general, ofrcccn un cspacio de socializacion idóneo que
favorece un desarroilo individual y social adecuado. Los abuelos, en la sociedad atual,
desenpenam un importante papel de socializacion respecto a sus nictos.»

para a criança estabelecer com o progenitor-pai e a progenitora-mãe um relacionamento


equilibrado. Ou seja a permanência da biparentalidade.

Este princípio vem consagrado no art. 9.° da Convenção sobre os Direitos da Criança, que
protege a criança assegurando que ela « não seja separada de seus pais», salvo as exceções
exempiificativas de ser a criança «objeto de negligência ou maus tratos por parte dos pais» ou
quando estes vivam separados. Mas quando tal acontecer deverá ser respeitado o direito da
criança de manter «relações pessoais e contato direto com ambos os pais de modo regular»,
salvo se tal for contrário ao superior interesse da criança.

É também esta orientação partilhada pelo Código de Família, que não privilegia, nas relações
com os filhos, nem o pai nem a mãe, não discriminando estes consoante se trata de família
matrimonial ou natural, e atribuindo aos filhos o direito de convivência com ambos os
progenitores em perfeito equilíbrio e paridade.

[54] Exercício conjunto da autoridade paternal

O exercício da autoridade paternal em conjunto vem assegurado quando o pai e a mãe vivam
em coabitação, ou seja, desde que vivam como marido e mulher debaixo do mesmo teto.
Ambos exercem em plenitude a autoridade paternal.

Para o nosso direito é irrelevante saber qual dos progenitores estabeleceu primeiro o seu
respetivo vínculo de filiação em relação ao filho, pois, uma vez este estabelecido, derivam em
pleno todos os efeitos das relações paternais e filiais.

O art. 139.°, n.° 1 do Código de Família dispõe que a autoridade paternal será exercida
conjuntamente pelo pai e pela mãe, em caso de coabitação, estatuindo assim o modelo real de
família nuclear composta pelo pai, mãe e filhos menores, que constituem o cerne da estrutura
familiar.

No exercício em comum da autoridade paternal, cada um dos progenitores de per si ou os dois


conjuntamente, podem praticar os atos de representação da pessoa do filho menor ou de
administração dos seus bens.

Como vimos, existe a presunção de que cada um deles está a agir com o consentimento
expresso ou tácito do outro progenitor e de acordo com a sua vontade, que se mantém desde
que exista boa fé nas relações entre os progenitores e entre estes e terceiros. Perante
terceiros de boa fé, quando o pai ou a mãe do filho menor praticam um ato em nome deste,
presume-se que o ato foi acordado entre ambos os pais.

O acordo entre os pais no exercício da autoridade paternal constitui a regra normal e de


procedimento comum, o que não significa, porém, que antes de ser

obtido não possa haver entre ambos graves desinteligências e que o acordo só venha a ser
possível depois de longas discussões e concessões recíprocas.
No caso de não ser possível obter-se o entendimento entre os pais, não prevalecerá a
autoridade de nenhum deles e a questão será posta à apreciação do tribunal.

Ao contrário do que anteriormente acontecia, o tribunal pode ser chamado a dirimir conflitos
entre os pais, mesmo vivendo estes em comum. Antes prevalecia a vontade do pai, como
chefe de família; agora não prevalece a vontade do pai sobre a da mãe nem a desta sobre a
daquele. Hoje o art. 140.°, n.° 1, do Código de Família estabelece que, no caso de desacordo
dos pais, incumbe ao tribunal a decisão. É de pressupor que sejam de natureza grave e de
relevância para a vida do filho as questões submetidas ao tribunal para decisão.

Tendo em vista a constituição da família nuclear e a existência de solidariedade entre os seus


membros que vivem em coabitação, o art. 139.°, n.° 2 do Código de Família trouxe uma
inovação. Ele impõe, a cada um dos membros do casal, o dever de cooperação no exercício da
autoridade paternal sobre os filhos menores do outro que com eles coabitem.

Neste caso, estando o filho menor a coabitar com o casal e embora ele seja filho só de um
deles e de uma terceira pessoa, o equilíbrio e a harmonia do agregado familiar impõem que
não seja adotada uma postura de neutralidade ou afastamento por parte daquele que não é o
pai (ou a mãe) natural do menor.

A cooperação envolve a participação de facto na autoridade paternal exercida pelo outro


cônjuge ou companheiro de união de facto, assumindo muitas vezes o papel de «pai» (ou de
«mãe») junto do filho menor do outro. Esta realidade impõe o dever de prestar ajuda
construtiva em todos os complexos deveres que constituem a autoridade paternal.

É preciso, porém, ter em conta que isto não significa que seja atribuída a titularidade do direito
ao exercício da autoridade paternal ao cônjuge que não for pai (ou mãe), pois esta só é
atribuída em razão de filiação natural ou adotiva.

este a exercer em exclusivo a autoridade paternal. Se o vínculo estiver estabelecido cm relação


a ambos os pais, o exercício único verifica-se nos casos mencionados no art. 147.° do Código
de Família.

Em primeiro lugar, quando ocorrer a morte de um dos progenitores, a autoridade paternal


passa a ser exercida unicamente pelo sobrevivo que assume — art. 147.°, n.° 1 — a totalidade
dos direitos e dos deveres que integram o exercício da autoridade paternal.

O exercício exclusivo por parte da mãe, no caso de morte do pai, não era aceite no Código Civil
de Seabra: a mãe tinha que ser coadjuvada por um conselho de tutela. Tampouco ocorre no
direito tradicional africano, em que a autoridade paternal é, em regra, exercida por um
membro masculino da família.

Existem ainda outros casos de exercício único da autoridade paternal previstos no n.° 2 do art.
147 do Código de Família e que são a ausência, incapacidade ou impossibilidade por parte de
um deles. Estamos perante situações que retiram ao progenitor a possibilidade de exercer a
autoridade paternal, seja por razões de facto, seja por razões de direito. Se cessar a causa
temporária do impedimento, pode ser readquirido o exercício da autoridade paternal.
[56] Exercício da autoridade paternal em separado a) Regime dijuntivo

O exercício da autoridade paternal em separado resulta do fim da coabitação dos pais. A título
de exemplo, o art. 148.° do Código de Família menciona que isso pode ocorrer no caso de
separação de facto, de anulação de casamento ou de divórcio dos pais.

O fim da coabitação nem sempre é fácil de determinar, pois esta, como situação de facto que
é, pode interromper-se e ser retomada uma e mais vezes, ou até ser mantida tão só em razão
da existência dos filhos comuns.

Operada que seja a separação de facto dos progenitores, ela vai repercutir-se sobre a pessoa
do filho menor, que, em princípio, terá que ficar entregue à guarda de um dos progenitores. A
separação de facto dos pais não vai atingir a titularidade do direito dos pais à autoridade
paternal. Eles continuam a ter os direitos que lhes são atribuídos em razão do vínculo de
filiação existente. Mas vai ter efeitos, sem dúvida, quanto à forma como esse exercício se vai
realizar em concreto.

Uma das mais profundas transformações operadas no atual direito de família incide
precisamente no relacionamento entre o filho e os pais após a separação destes.

As estatísticas, sobretudo nos estados europeus e americanos, demonstravam que, após a


separação dos pais, mormente peio seu divórcio, os filhos na maioria das vezes eram
entregues à mãe, que ficava no quase exclusivo exercício dos direitos e deveres da autoridade
paternal, passando o pai a não ter quase nenhuma intervenção na vida do filho e a distanciar-
se cada vez mais no relacionamento com este, passando à figura do «pai ausente».

Esta situação tinha perniciosos reflexos na vida emocional do filho e na sua formação, sendo
que por parte do pai se verificava muitas vezes uma fuga ao cumprimento das suas obrigações
paternais, não satisfazendo a pensão de alimentos c cortando o relacionamento com o filho.

Daí que atualmente se procure inverter tal procedimento, tendo em vista que o fàcto de os
pais viverem em separado não deve afetar os respetivos direitos e deveres paterno-filiais.

Teve influência nesta nova maneira de ver o facto de se ter deixado de conside¬rar o divórcio
como uma sanção para a má conduta de um dos cônjuges, com o inerente castigo que envolvia
a «perda» dos filhos para o cônjuge declarado «culpado».

A nova visão do divórcio como resultado de uma situação objetiva de rutura do vínculo
conjugal, desdramatizou a situação anterior, tomando o interesse do filho e o seu normal
desenvolvimento como ponto fulcral a ter em conta.

Os conflitos familiares que surgem do exercício em separado da autoridade paternal são


fontes de desestabilização e causa de sofrimento para os filhos e para os pais.

Para dirimir os conflitos familiares lança-se mão, cada vez mais, de formas de mediação que
visam tomar possível que sejam os próprios pais a encontrar acordos que beneficiem todas as
partes envolvidas.
Acresce ainda que cada vez mais ganha relevância, a questão de saber como se vai processar o
exercício da autoridade paternal em separado, quando o pai e a mãe são nacionais de
diferentes estados ou têm residência permanente em diferentes estados, o que acarreta para
um dos pais a perda mais ou menos efetiva de manter as relações pessoais com o filho.

Dado o número crescente de casamentos entre cidadãos de nacionalidades diferentes e o


facto de o pai ou a mãe, a quem não foi atribuído a guarda do filho, enveredar pelo rapto do
próprio filho e levá-lo para o seu país, fez com que se procurasse dar uma solução a situações
muito melindrosas através da Convenção da Haia de 1980 sobre «Aspetos Civis do Rapto
Internacional da Criança». A mesma preocupação levou à celebração de convenções regionais
sobre esta matéria, por parte dos países latino-americanos e europeus.

Angola não é parte em qualquer tratado ou acordo internacional que estipule os


compromissos inter-Estados no caso de crianças angolanas serem levadas para fora de Angola
pelo progenitor de nacionalidade estrangeira, o que tem sido fonte de graves casos de ruturas
familiares em que normalmente impera a lei do mais forte sob o ponto de vista económico.

No exercício da autoridade paternal em separado há que determinar, em primeiro lugar, a qual


dos progenitores fica entregue a guarda e custódia do menor e como ficarão distribuídos os
demais poderes que compõem a autoridade paternal, como o da vigilância, prestação de
cuidados de saúde e educação.

Estas obrigações devem ficar repartidas entre os dois progenitores, e o progenitor a quem o
filho não for entregue conserva o direito de visita, que se consubstancia no direito a ter o filho
na sua convivência durante determinados períodos de tempo.

Entende-se que, ao determinar qual é o superior interesse da criança, o tribunal deve decidir
qual dos pais é mais capaz de promover e assegurar o seu bem-estar físico, moral, emocional e
espiritual...

Os critérios são os seguintes:

— o amor, afeição e outros laços emocionais que existem entre os pais e o filho e a sua
compatibilidade com o filho;

— as capacidades, caráter e temperamento dos pais e o seu impacte sobre as


necessidades e os desejos da criança e a capacidade para o guiar;

— a possibilidade de cada um dos pais prover às necessidades físicas da criança (como


comida, vestuário, habitação e outras necessidades materiais) e prover à sua educação e bem-
estar.

A obrigação de alimentos é cumprida de formas distintas. O progenitor a quem for entregue o


filho cumpre essa obrigação ao integrar o menor no seu agregado familiar, ao passo que o
progenitor que com ele não conviver deve prestar-lhe alimentos na forma de prestação
pecuniária e por outros bens e serviços de que o menor possa beneficiar.

O art. 149.° do Código de Família diz que ao progenitor a quem for atribuído o exercício da
autoridade paternal vai caber em especial o exercício dos direitos e deveres para com o filho.
O outro progenitor terá em regra a obrigação de prestação de alimentos, como indica a parte
final do art. 149.°.

Já o art. 150.° explicita que o progenitor a quem não for atribuído esse exercício, mantém o
direito às relações pessoais com o filho, devendo cooperar na sua formação e acompanhar o
exercício da autoridade paternal por parte do outro.

Arredou-se a expressão direito de fiscalização e adotou-se o termo cooperar para deixar claro
que o exercício da autoridade paternal pelo outro progenitor não se limita a uma espécie de
<direito de vigiar >.

Com estes princípios procurou-se alterar a situação prevalecente no Código Civil, que era
omisso quanto a questão tão importante. Procurou-se salvaguardar, com a maior latitude
possível, os direitos e deveres do progenitor a quem o filho não for entregue, de forma a que
ele se não sinta afastado do filho, criando uma situação de perda e amputação no
relacionamento recíproco.

Ao mencionar-se na lei que o progenitor tem o direito a manter as relações pessoais com filho
quis-se enfatizar que o relacionamento do menor com o pai ou a mãe, com quem ele não
coabite, deve manter-se tão normal e tão próximo quanto possível, de forma que a vivência
humana entre ambos não seja atingida.

O direito às relações pessoais é um direito da personalidade diretamente vinculado às próprias


pessoas entre quem se estabelece.

O progenitor que não conviva com o filho, terá o direito a visitas, a contatos telefónicos, à
correspondência, a indagar da sua situação de saúde ou a saber da sua vida escolar, etc.
Manterá assim o direito a ter o filho junto de si e a comunicar com ele quando estiver longe.

Além disso, cabe-lhe cooperar plenamente, dentro das suas capacidades e possibilidades, na
formação e educação do filho, pois, mesmo vivendo em separado, deverá exercer o fim último
da autoridade paternal. Ambos os pais deverão, no interesse do filho, acompanhar sempre a
evolução da vida do menor.

No exercício da autoridade paternal em separado as questões a resolver são csscncialmente


três: a entrega do filho a um progenitor, o direito da visita por parte do outro e a obrigação de
alimentos.

Ganha cada vez mais relevância a questão que se prende dos direitos de convivência de outros
parentes próximos, como avós e irmãos no caso de famílias destruturadas, como a de pais
separados ou porque se divorciaram ou porque não chegaram a estabelecer comunhão de
vida. Nestes casos a tendência vai no sentido de reconhecer estes parentes como titulares de
direito a manter relações pessoais com a criança.

No Código de Família da Catalunha o direito dos avós a manterem relações pessoais com os
netos, salvo a existência de justa causa que o impeça, vem reconhecido no art. 135.°, n.° 2, o
mesmo acontecendo em diversos sistemas legais europeus que reconhecem esse direito «em
relação a pessoas consideradas com especial relacionamento com a criança». A questão é
encarada sobretudo, sob o prisma do interesse da criança.

b) Regime da guarda conjunta

A forma como se vai regular o exercício da autoridade paternal em separado tem sido objeto
de estudo e evolução nos diversos sistemas de direito, com vista a dar solução a questão de
tão grande melindre nas relações familiares.

Surge agora como modelo a adotar, sempre que tal seja possível, a designada guarda conjunta,
em que o filho menor pode ter residência em casa de um dos pais, ou ficar alternadamente
com um e com outro, mas em que ambos os progenitores mantêm o direito de serem
chamados a intervir em todas as questões de particular importância para a vida do filho.

Esta nova tendência visa substituir a posição anterior da entrega do filho a um dos
progenitores e da atribuição de alguns direitos e deveres ao outro a quem o filho não era
entregue, que fiscalizava como o outro progenitor exercia a sua autoridade paternal, dando
agora lugar a uma verdadeira participação dos dois progenitores no exercício da autoridade
paternal.

Defendendo o regime da guarda conjunta, entende-se ser ela aquela que funcionalmente mais
se aproxima da estrutura familiar anterior, estrutura essa que é a mais estabilizante e digna de
crédito para a criança e que corresponde ao seu ideal de família, ou seja, a «afirmação de que
ambos os pais permanecem para lá da separação, reforçando a continuidade da família».^

A guarda conjunta pressupõe que tanto o pai como a mãe são igualmente capazes e
responsáveis no exercício dos seus deveres e que, mesmo separados, será do interesse do filho
que ambos continuem a prestar-lhe toda a contribuição necessária à sua criação e educação.

«A repartição do exercício das responsabilidades parentais deverá promover também no


interesse do menor, a co-parentalidade (art. 1905.° do Código Civil) Interessará,
designadamente assegurar a comunicação c a informação entre os pais a respeito da criança,
em especial sempre que os seus interesses essenciais sejam ou possam ser afetados »

só poderá ser feito a título exeedonT™ “T“'8" ü<> "“T'

:to o iustifiouem C <luando razôcs ponderosas do

stqaemsituaçãodeaexercerporforlTcr“^10^“'0^011

F iorça de circunstâncias concretas. Sc o

menor for entregue a um terceiro, o tribunal deve igualmente regular os direitos e deveres de
cada um dos pais em relação ao filho.

A mesma disposição do art. 151.° prevê ainda a atribuição do exercício da autoridade paternal
a terceira pessoa quando estiver em perigo a segurança física ou moral do menor. Neste caso,
estamos já no campo da fundamentação legal da inibição do poder paternal, que pode ser
declarada expressamente ou derivar implicitamente da atribuição da autoridade paternal a
outrem que não o progenitor.
Na escolha da terceira pessoa a quem deva ser atribuído o exercício da autoridade paternal o
tribunal deve ter em conta fundamentalmente o interesse do menor e, de preferência,
escolher um parente próximo do menor, os avós, tios, irmãos mais velhos, para que o menor
se mantenha, tanto quanto possível, dentro do meio familiar onde se sinta integrado. E, na
falta de parentes, alguém que demonstre particular afeição pelo menor e que seja idóneo.

Em último caso, se não puder ser entregue a terceira pessoa, dispõe o citado art. 151.° que o
menor deverá ser entregue a estabelecimento de assistência.

Neste caso, os pais mantêm em relação aos filhos os direitos contidos no art 150 ° do Código
de Família, independentemente do dever de alimentos.

Como vemos, o exercício da autoridade paternal deve corresponderem concreto àsituação real
vivida pelo filho menoreàcapacidadeeresponsabdida^

dos pais de responderem pelo cumprimento dos seus deveres. O pnncqno erd

de que deve ser assegurada a ^"^^

o interesse do filho menor, contido noa . •>

permitir que sejam tomadas decisões que podem ser diferentes para cada caso.

i o disposto no art. 77.°, § 2.°, do Código Penal: « Os condenados ulo crime de lenocínio ficam
definitivamente incapazes de exercer

i a tutela.»

autoridade paternal não se opera de pleno direito, mesmo em ão penal do progenitor por
crime doloso cometido contra a

(art. 152° do Código de Família).

to do Código Penal prevê-se a condenação por crimes sexuais inibição da autoridade


paternal.“61 Neste caso a inibição da nal será decretada como pena acessória da condenação
pelo

i sexual.

isos, o art. 152.° obriga a que, seja necessário um procedimento >, procedendo-se ao envio da
certidão da sentença, que condenou ribunal competente para procedimento.

>is tipos de inibição do poder paternal, e que são, respetivamente, jue se refere a situações de
incapacidade jurídica ou de ausência,

, que abrange os casos em que haja impedimento de facto para o de idoneidade ou negligência
reiterada por parte do progenitor, evistos no art. 153.° a extinção da inibição opera-se ipso
facto . incapacidade do progenitor em razão de menoridade ou de ssar a ausência, de acordo
com o art. 154.° do Código de Família, ibição resulta de uma outra situação jurídica de
incapacidade ou genitor e não foi ocasionada por nenhuma ação judicial dirigida izão da falta
de exercício da autoridade paternal.
-, l°g° que cessar a causa jurídica de que deriva a inibição ela cessa lenoridade do progenitor,
da incapacidade ou da ausência), cessa :to a inibição, assumindo o progenitor a plenitude do
seu exercício Código de Família).

s do art. 152.°, acima mencionado, e do art. 155.° a inibição é ialmente e terá que ser
levantada ou alterada também judicialmente ipetente processo. E isto porque só o tribunal
pode decidir se se > que a decisão anterior seja alterada.

A declaração da inibição pode ser total ou parcial, sempre depois de devida¬mente apreçadas
as circunstâncias do caso. O mesmo se passa com o levantamento

da inibição.

Estas disposições do Código de Família quiseram acautelar todas as mais diversas situações
que podem surgir nas relações entre pais e filhos e em que seja necessário proteger a pessoa
do filho.

A alínea a) do art. 155.° menciona a circunstância de o progenitor estar impedido de facto de


exercer a autoridade paternal. Tal pode ocorrer no caso de enfermidade prolongada, de
ausência do País por período longo, embora sendo conhecido o paradeiro do progenitor,
condenação a pena de prisão, etc..

A alínea b) desse artigo refere-se a toda a conduta do progenitor que possa envolver perigo
moral para o filho, tais como atos de crueldade, maus tratos físicos e morais e condutas
socialmente condenáveis, que possam refletir-se no

seu relacionamento com o filho.

A negligência do progenitor em relação ao cumprimento dos seus deveres para com o filho
vem mencionada na alínea c) do citado art. 155.°. Abrange o

abandono e desamparo mais ou menos completo do menor.

A negligência pode também revelar-se na má administração do património do filho, praticando


atos lesivos ou omitindo deveres de proteção dos seus interesses, o que levará à remoção dos
poderes de administração de bens por parte dos pais

por decisão judicial.

Maior gravidade tem a prática de crime doloso cometido contra a pessoa do filho e a
condenação do progenitor em pena maior, sobretudo se disser respeito à prática de crime de
ofensas corporais graves ou atentado contra a vida, ou de

crimes de natureza sexual.

Mesmo nos casos de maior gravidade, a inibição da autoridade paternal traduz-se numa
suspensão dos direitos e não retira aos pais em definitivo a titula¬ridade desses direitos.

Ela é, assim, de natureza temporária, muito embora a sua extensão e duração

variem consoante a natureza do caso concreto.


A declaração de inibição não exonera o progenitor da sua obrigação e prestar

alimentos ao filho, pois a prestação de alimentos é um dever que a

sempre, em primeiro plano, aos pais.

Por essa razão, o art. 157.« do Código de Família consagra o principio de que, mesmo depois
da inibição, o progenitor deve prestar alimentos ao .

A situação do menor em relação à sua família e, em especial, aos seus pais, o seu
enquadramento social e todo o processo que visa o seu crescimento físico e inteletual são
questões de tão magna relevância que se não podem circunscrever ao âmbito das relações
jurídicas privadas.

A criança e o adolescente carecem de proteção legal em todo o período que antecede a


maioridade e essa proteção cabe ao tribunal no qual o Procurador da República intervém
sempre em representação dos interesses do menor.

0 tribunal pode intervir, não só durante a coabitação dos pais no caso do art. 140.°, mas
também quando os pais estejam separados de facto, como estabelece o art. 148.°, ou sempre
que for necessário declarar ou levantar a inibição da autoridade paternal — arts. 155.° e 156.°,
todos do Código de Família.

Como regra genérica estatui o art. 158.° deste Código que o tribunal deve tomar as medidas
necessárias à proteção do menor e decidir sobre as questões que a este respeitem, sempre
que as circunstâncias de facto o exijam.

As decisões serão tomadas depois de audição obrigatória, em todos os casos, de acordo com o
n.° 2 e 3 desse mesmo artigo:

— do representante do Ministério Público;

— do menor que tenha completado 10 anos de idade nas causas a si respeitantes.

Estabeleceu-se, com caráter facultativo, a audição, decidida oficiosamente pelo tribunal ou a


pedido das partes, dos órgãos de natureza consultiva que são o Conselho de Família ou
organismos de assistência social de apoio à juventude — art. 159.° do mesmo Código.

Como fim último a ter em vista por todas as decisões judiciais, está o benefício e interesse do
menor e o da sociedade onde ele se insere^17*

A prevalência deste interesse superior da criança sobre o dos pais, tutores ou outros
interventores na causa não pode sofrer qualquer desvio, como imperativa¬mente vem
consignado no art. 160.°. Definir o que constitui « o superior interesse da criança» tem sido
objeto de aprofundamento.

(,7) «O critério do interesse do menor não pode deixar de ser ligado ao pressuposto da
valorização c adaptação das circunstâncias concretas; De facto um voto de preencher, de
quando em quando, enquanto critério de natureza subjectiva que esta ligado a identidade
pessoal e particular daquele menor particular c não da natureza objectiva c predeterminada
nem determinável...a audição do menor estabelece a diferença, pois representa na minha
opinião e indubitavelmente o instrumento processual mais eficaz para tentar senão realizar
pelo menos tê-lo em vista.» — Lea Querzola, in Ricercatore deWUniversità di Bolonha, pg.
1361.

Como já referimos, o conceito do superior interesse da criança que é pre¬valecente em todas


as decisões quer judiciais quer administrativas que lhe digam respeito, é um conceito jurídico
indeterminado que se concretiza para cada caso de acordo com as suas circunstâncias
específicas.

A lei deixa em branco as delimitações para que ao ser aplicada ela possa atender ao
condicionalismo do momento nos aspetos individuais e sociais.

As decisões judiciais tomadas em processos desta natureza são transitórias e suscetíveis de ser
alteradas sempre que se modifiquem as próprias circunstâncias de facto que lhes serviram de
fundamento, como aliás acontece em todas as decisões proferidas em processos de jurisdição
voluntária. Mas o art. 161.° do Código de Família entendeu expressar de novo este princípio.

O tribunal competente sob o ponto de vista territorial é o da residência do menor no


momento da instauração do processo — art. 6.°, n.° 1 do Código de Processo do Julgado de
Menores.

a) Intervenção judicial no caso de coabitação dos pais

O tribunal deverá intervir a pedido de um ou de ambos os pais quando a divergência destes


seja sobre questão de natureza grave.

Nestes litígios o tribunal terá que exercer o papel de um árbitro do conflito, procurando obter
dos pais uma solução conciliatória, sem nunca perder de vista a primazia do interesse do filho
menor.

Em todos os casos de dissídio dos pais, o juiz tem que executar o trabalho deli¬cado de um
conselheiro das partes, procurando esclarecer-se sobre as condições de vida da família, quais
as normas de conduta até aí seguidas em situações idênticas, qual a finalidade em vista por
cada um dos pais, etc..

b) Intervenção judicial no caso de separação de facto dos pais

O exercício da autoridade paternal em separado pode ser estabelecido por via de acordo entre
os pais, como já vimos, vem previsto no art. 148.°, n.° 1 do Código de Família, como veremos
em relação ao divórcio por mútuo acordo (art. 85.°, alínea a)) e em relação ao divórcio litigioso
(art. 109.°, n.° 1 do mesmo Código).

Em todos estes casos, qualquer dos progenitores ou terceira pessoa, através do Ministério
Público, podem ir a tribunal suscitar a sua intervenção, sendo a decisão obrigatória para os
progenitores, para o filho e para terceiros.

c) Intervenção judicial no caso de inibição da autoridade paternal ou de necessidade de


aplicação de medidas de proteção social
A intervenção do tribunal no caso de ser necessário declarar a inibição da autoridade paternal
é da iniciativa do Ministério Público. As normas processuais são, além das que vêm contidas no
Código de Família, as do Decreto n.° 6/03, de 28 de janeiro, do Código de Processo do Julgado
de Menores.

Em termos latos, podem participar ao Ministério Público para que este venha a agir em juízo
em representação do menor, qualquer parente deste, afim, ou pessoa que o tenha a seu
cargo, tal como funcionário público ou entidade privada que tenha conhecimento da
necessidade do procedimento judicial.

Estamos perante uma situação em que sobreleva o interesse público da defesa do menor,
esbatendo-se a estrutura familiar, por incapaz de exercer o papel que lhe está reservado na lei,
e em que é o direito social de defesa do menor que tem de ser assumido pelos órgãos judiciais
e órgãos sociais para tal vocacionados.

A Lei n.° 9/96, de 19 de abril (Lei do Julgado de Menores) estabelece no seu art. 14.° quando
devem ser aplicadas as medidas de proteção social aos menores, especificando, além do mais,
nas suas alíneas a) e b), que tal ocorre quando eles «sejam vítimas de maus tratosfisicos ou
morais ou de negligência por parte de quem os tenha à sua guarda ou se encontrem em
situações de abandono ou desamparo». Nestes casos, será o Julgado de Menores a intervir
para tomar as medidas adequadas e previstas no n.° 18, e não a Sala de Família do Tribunal
Provincial, como acontece sempre que estejam em causa as relações familiares.

Por sua vez o Julgado de Menores quando aplica qualquer medida que envolva alteração ou
inibição no exercício da autoridade paternal, deve dar conhecimento do facto ao Ministério
Público junto da Sala de Família competente para procedimento — art. 22.° da Lei n.° 9/96.

CAPÍTULO I0.°

O CASAMENTO

[59] Breve história da evolução do casamento

Uma breve retrospetiva histórica do instituto do casamento mostra que, durante um longo
período da vida do homem, o casamento não se formalizava por qualquer ato solene. Era o
estabelecimento da vida em comum de forma plena entre homem e mulher, feito no
propósito de fundarem a família, que caraterizava o casamento. No direito romano já se
distinguia o simples concubinato do casamento, pela affectio maritalis, elemento subjetivo que
evidenciava o propósito comum de convivência duradoura entre homem e mulher.

Com o advento do cristianismo, as convições religiosas passaram a dominar por inteiro o


instituto do casamento, o qual passou a ser considerado como um sacramento em que
intervinha a vontade divina. O casamento devia, pois, revestir-se de forma canónica e era o
ministro do culto que autorizava a celebração. Só numa época mais recente, ou seja, a partir
do Concílio de Trento, no século XVI, passou o sacerdote a intervir na sua celebração, sendo as
questões relativas à validade do casamento do conhecimento das autoridades eclesiásticas.

Entretanto, o advento do protestantismo e o seu predomínio em muitos países europeus veio


retirar o casamento do controlo da igreja católica, submetendo-o ao poder do Estado, como
assunto terreno. É o poder absoluto do monarca que se vai afirmando. Em países como a
Inglaterra, a necessidade da dissolução de um casamento real levou à rutura das relações
entre o rei e a igreja católica, o que foi um passo para o caminho do absolutismo. A
secularizaçào do direito matrimonial começou nos países onde se verificou a contra-reforma,
mas nos países predominantemente católicos o casamento era da competência da igreja.

Foi com a Revolução Francesa, no final do século XVIII, que se alterou esta situação e se passou
a adotar a conceção de que o casamento é um ato meramente civil, baseado na vontade livre
dos nubentes e como tal não sujeito à intervenção obrigatória da igreja. Surgiu nessa data o
casamento civil de natureza laica,

independente do casamento religioso, e da competência dos representantes do estado.

No direito português, o casamento civil só foi introduzido no Código Civil do século XIX, com
caráter meramente facultativo, mantendo-se em plena validade o casamento canónico a ser
celebrado por quem professasse a religião católica. Com a proclamação da República em 1910,
o casamento civil tornou-se obrigatório e deixou de se atribuir efeitos civis aos casamentos
católicos.

Posteriormente, com a celebração da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, em 1940, foi
reintroduzida a dualidade de formas de casamento, o civil e o canónico, o qual passou de novo
a produzir efeitos civis, deixando de ser obrigatória a celebração do casamento civil.

Este sistema perdurou com o Código Civil de 1967, que admitia as duas modalidades de
casamento, o casamento canónico e o casamento civil (art. 1587.°). Ao casamento católico era
reconhecido valor e eficácia nos termos das disposições do Código. Esta dualidade de formas
de casamento mantém-se ainda no direito português.

Aliás, a conceção canónica do casamento influenciou os juristas católicos, que procuram


definir o casamento como uma instituição. Nesta perspetiva, o casamento, dando origem à
constituição da família, corpo organizado composto pelos cônjuges e filhos, é considerado
indissolúvel durante a vida dos cônjuges.

A vontade individual dos cônjuges não pode ultrapassar os interesses da própria instituição.

O Código de Família reconhece unicamente como casamento válido o casamento civil, pois,
como já vimos, o Estado angolano afirma-se constitucio¬nalmente como um estado laico, não
sendo reconhecidos quaisquer efeitos ao casamento celebrado segundo os ritos das diferentes
confissões religiosas.

Consequentemente, o casamento celebrado perante os órgãos do registo civil não tem caráter
subsidiário, mas sim caráter obrigatório, pois só ele produz efeitos legais. Na verdade, o Código
de Família só reconhece validade ao casamento celebrado ou reconhecido nos termos nele
previstos (art. 27.°) c a única entidade com competência para a celebração do casamento é o
conservador do registo civil — art. 34.°.

O Código de Família no seu art. 20.° define: «O casamento é a união voluntária entre um
homem e uma mulher, formalizada nos termos da lei, com o objetivo de estabelecerem uma
plena comunhão de vida.»

Neste conceito estão evidenciados os seguintes elementos essenciais:

— o elemento subjetivo da voluntariedade do ato do casamento por parte dos nubentes,


homem e mulher.

— a necessidade da sua formalização segundo a forma estabelecida na lei, o que constitui


o traço fundamental que distingue o casamento da união de facto.

— a finalidade legal do casamento, que é o estabelecimento da plena comunhão de vida.

[60] A promessa de casamento no direito positivo e no direito costumeiro

Constitui fenómeno comum a diversos povos e culturas, o facto de o casamento ser


antecedido pela existência de uma promessa recíproca de casamento por parte dos noivos.

O noivado ou os esponsais têm tanta mais relevância quanto maior é a impor¬tância


económica, social ou até mesmo política dos noivos, pois nesses casos o casamento cumpre
uma função de estabelecimento de alianças para reforço de influência política ou para
acumulação de capital. Dentro desta ótica, o casamento era normalmente antecedido de
protocolos de entendimento concertados pelos conselheiros familiares e só mais
recentemente pelo noivo e pela noiva.

Em regra, buscava-se o acordo de ambas as famílias sobre a celebração do casamento e sobre


as disposições de caráter patrimonial que iriam vigorar durante o casamento. Os esponsais,
como eram denominados, eram um verdadeiro pactum in contraendum. Os franceses
designam-nos como «fiançailles» e os ingleses chamam à promessa recíproca de casamento
«engagement».

Nos nossos dias, embora com muito menos relevo, ainda é atribuído ao noivado importância
social, podendo ver-se em jornais de grande tiragem na Europa os esponsais serem anunciados
e tornados públicos.

Por outro lado, toma-se cada vez mais frequente a convivência pré-nupcial dos noivos,
sobretudo nos países germânicos e nórdicos. Entre nós também se acentua o fenómeno do
estabelecimento da união de facto entre um homem e uma mulher, com vida marital comum
mais ou menos prolongada e que é transformado em casamento formal, dispensando o
processo de reconhecimento de que adiante falaremos.
O noivado consiste na convivência que antecede a vida em comum e traduz-se num
compromisso mútuo que se destina a um melhor conhecimento dos futuros nubentes. Na
tradição ocidental o noivado costuma expressar-se com a entrega pelo noivo do anel de
noivado à noiva, que passa a simbolizar o compromisso recíproco. No entanto, a importância
do noivado vai sendo cada vez menor à medida que se individualiza o ato de casamento e o
mesmo se despe de formalismo

social, ou seja, à medida que se reforça a noçáo de casamento como ato de vontade do foro
pessoal dos nubentes, cada vez menos entendido como um acordo entre os familiares destes.
E isto porque, nas sociedades mais desenvolvidas, a emancipação económica e política do
homem e da mulher assegura-lhes maior independência no exercício dos seus direitos
pessoais.

Em contrapartida, e de acordo com o seu desenvolvimento económico e social, na sociedade


tradicional angolana a promessa de casamento tem ainda acentuado relevo, expresso nas
entregas feitas pelo noivo ou pela sua família à família da noiva, a título de ilembo ou
alembamento.

Desde há muito, e unanimemente, os diversos sistemas jurídicos consideram como não


relevante, sob o ponto de vista de obrigar a contrair casamento, o facto de haver uma
promessa de casamento, pois esta não dá direito a exigir a sua celebração. Aliás, em todos os
ordenamentos que incluem normas referentes à promessa de casamento, há o cuidado de
determinar que ela não constitui o promitente na obrigação de casar.

Note-se que nas leis de família publicadas após a independência de Cabo Verde e de S. Tomé e
Príncipe omite-se qualquer referência à promessa de casamento, o que significa que se lhe
nega qualquer relevância jurídica. A reforma legislativa operada em Cabo Verde com a
introdução do Direito de Família no Código Civil alterou a omissão deste instituto no direito de
Cabo Verde.

Procura-se deste modo respeitar a liberdade dos nubentes, permitindo-lhes que eles mudem
de vontade até ao momento da celebração do casamento.

A lei estipula que os nubentes prestem o seu consentimento no momento em que o


casamento é celebrado, ou seja, que se verifique a atualidade do mútuo consentimento nesse
preciso momento, e isto porque se considera que o casamento é um ato de demasiada
importância e por isso ele deve ser celebrado em plena aceitação e liberdade por parte de
ambos os nubentes.

Há que precisar o que se deve entender por promessa de casamento, tanto no conceito
genérico e comum aceite universalmente, como no caso específico do direito tradicional
angolano e das suas diversas etnias.

A promessa de casamento é em si um ato já revestido de certa ressonância social, realizado


com seriedade entre os noivos, mas também conhecido dos seus familiares e pessoas do seu
meio social.
É óbvio que não é qualquer promessa de casamento, feita de forma leviana e revestida de
secretismo, que pode ser considerada como tal. Houve até jurispru¬dência francesa que
entendeu ser necessário que a promessa, para ser entendida como tal, deveria tomar a forma
escrita, mas esse entendimento foi afastado pela doutrina. O namoro não é em si uma
promessa de casamento, mas uma simples forma de convivência afetiva.

No direito tradicional, a promessa de casamento é um preliminar do casamento em si e


reveste-se de formalismo mais ou menos rigoroso. As praxis diferem de etnia para etnia, mas
envolvem sempre a intervenção da família dos futuros esposos e é sempre levada ao
conhecimento público na comunidade de residência da noiva e do noivo, através de atos
externos que a assinalam.

Traduzem-se no envio de mensagens verbais ou escritas, na entrega e recebi¬mento de


ofertas, conciliábulos entre os parentes dos noivos, festejos de celebração e outros sinais que
vão variando mas que conservam uma essência idêntica. Podemos dizer que são no fundo,
preliminares do próprio casamento tradicional.

No direito positivo anterior a promessa de casamento era regulada nos arts. 1591.° a 1595.° do
Código Civil. Em súmula, no art. 1591.° estabelecia-se o princípio da ineficácia da promessa,
dispondo-se que «não dá direito a exigir a celebração do casamento». O art. 1592.° definia o
direito à restituição dos donativos feitos pelos promitentes ou por terceiros em virtude da
promessa ou na previsão do casamento. O art. 1594.° previa o direito à indemnização que
assistia ao «esposado inocente». Era fixado o prazo de um ano para as respetivas ações de
restituição ou de indemnização no art. 1595.°.

Outra é a posição adotada no Código de Família, ao afirmar a ineficácia jurídica da promessa


de casamento, mesmo que ela seja acompanhada da entrega de bens ou valores ao outro
nubente ou à sua família Como está expresso claramente na lei, art. 22.°: «\. A promessa de
casamento, seja ou não acompanhada da entrega de bens ou valores ao outro nubente ou à
sua família., não produz quaisquer efeitos jurídicos e não dã direito a exigir a celebração do
casamento.»

De forma redundante, acrescenta-se que, por via dela, qualquer dos nubentes está impedido
de exigir que se celebre o casamento. A irrelevância da promessa permanece, sem embargo de
terem sido feitas entregas de bens ou valores ao outro nubente ou à sua família.

Tal posicionamento foi tomado precisamente tendo em conta que, na prática do


alembamento, as ofertas são feitas no geral aos familiares da noiva, traduzindo- -se muitas
vezes na entrega de bens fungíveis e rapidamente consumíveis. Quis-se primordialmente
impedir que essas entregas fossem usadas por via indireta, como forma de coação por parte
desses familiares sobre a noiva, obrigando-a a celebrar o casamento e coarctando a sua
liberdade. É evidente que se a situação for inversa e se foi o noivo quem recebeu as ofertas,
ele não pode de igual modo ser coagido à prática do ato do casamento.

Ora, não prevendo o Código de Família a obrigação de restituição dos bens ou valores
entregues com vista à celebração do casamento, deveremos entender que a lei
deliberadamente não quis reconhecer o direito à restituição desses bens, dando primazia legal
à liberdade pessoal dos nubentes sobre o interesse patrimonial daquele que tiver feito essas
ofertas.

Deparamo-nos com uma obrigação que não é juridicamente exigível, que podemos classificar
como uma obrigação natural. «A obrigação natural\ contra¬pondo-se à civil distingue-se desta
em ser desprovida de ação, não podendo assim o devedor ser compelido diretamente ao
cumprimento da prestação>>.(1)

Hoje, a obrigação natural vem prevista no Código Civil, que a define como a obrigação que se
funda num dever moral ou social, cujo cumprimento não é juridicamente exigível, mas que
corresponde a um dever de justiça (art. 402.°).

Este tipo de obrigação — a obrigação natural — desdobra-se em três aspetos:

— é uma obrigação;

— é fundada em meros deveres que correspondem a um dever de justiça;

— não é exigível juridicamente.

Para que exista uma obrigação natural é essencial que exista uma disposição legal que vede
por quaisquer razões o recurso aos tribunais.

Podemos assim entender que a restituição dos bens ou valores recebidos pelo outro nubente
ou pelos familiares dele é uma simples obrigação natural, que poderá ser satisfeita
voluntariamente pelos interessados, mas cujo cumprimento não poderá ser exigido
coativamente.

É o que se verifica no direito vigente, já que, por disposição expressa da lei, não pode exigir-se
a restituição dos bens ou valores recebidos. Porém, se a outra parte espontaneamente operar
essa restituição, devolvendo tudo quanto houver recebido, essa restituição é efetivamente
válida, não dando lugar à repetição do indevido — art. 403.° do Código Civil.

Já quanto ao direito à indemnização, ele é reconhecido, mas só nos termos restritos do n.° 2
do art. 22.°. É necessário, em primeiro lugar, que exista a rutura injustificada por parte de um
dos nubentes, o que significa que é necessário que o seu procedimento não tenha sido
causado por conduta indevida por parte do outro nubente, justificativa da desistência do
propósito anterior.

Portanto, ter-se-á que determinar a causa da rutura, havendo que ter em conta que no Código
de Família se afastaram, nos diversos institutos familiares, os conceitos de culpa e inocência
que a cada passo surgiam como linha divisória de condutas nas disposições do Código Civil
relativas ao direito de família.

O comportamento dos nubentes deverá, pois, ser apreciado, tanto quanto possível, em termos
objetivos e não com base em preconceitos discriminatórios. O direito à indemnização referido
neste artigo 22.° circunscreve-se aos próprios nubentes, cuja legitimidade para a ação haverá
que determinar em cada caso, não sendo extensivo a terceiros, como os pais ou parentes dos
nubentes, os quais terão que ser indemnizados nos termos gerais de direito. Entre os
nubentes, os limites da indemnização estão circunscritos às obrigações contraídas com o
acordo do outro nubente.

Também dentro da orientação do direito civil socialista, no art. 22.°, n.° 2, não está prevista
qualquer indemnização a título de danos morais. Este artigo refere-se às obrigações de
natureza patrimonial, designadamente as que possam ter sido contraídas com a aquisição de
mobiliário, da residência do casal, de bens para a festividade da boda, etc.. Também aqui se
pode pôr a questão de saber se poderá haver indemnização por danos morais sofridos pelo
nubente que tenha sido vítima de rutura injustificada ou que tenha justificadamente posto
termo à promessa de casamento, uma vez que a conceção do direito atrás referida, subjacente
a esta disposição legal foi alterada.

A promessa de casamento, como questão de facto, pode ainda ter relevância no


estabelecimento da paternidade do filho nascido das relações sexuais mantidas pelos
nubentes no período de convivência pré-nupcial.

É sabido que a promessa de casamento constitui um meio idóneo, diríamos mesmo o mais
idóneo, para a sedução da mulher e para dela obter o consentimento para a prática de
relações sexuais antes do casamento. Embora não venha expressa na lei qualquer presunção
de paternidade atribuída ao noivo, a promessa de casamento constitui, sem dúvida, elemento
de facto preponderante para a decisão judicial a tomar em ação para o estabelecimento da
filiação.

[61 ] Natureza jurídica do casamento

O casamento ou matrimónio pode ser caraterizado como um negócio jurídico solene, ou seja,
formal, mediante o qual um homem e uma mulher aceitam voluntária e reciprocamente
estabelecer entre si convivência comum de caráter duradouro. Estas relações caraterizam-se
pela estabilidade e intercorrência de direitos e deveres complexos, entre os quais avulta o de
assistência e ajuda mútuas.

Assim, o casamento pode ser entendido como o ato em si, pelo qual ele se formaliza, ou como
o estado familiar que decorre para os intervenientes, marido e mulher, da celebração do ato
do casamento.

O casamento como estado é, pois, um vínculo familiar que une marido e mulher e é
constituído por um complexo de direitos e deveres que se estabelece entre ambos.

Interessa debruçarmo-nos sobre a natureza jurídica do ato de casamento, determinando qual


o seu verdadeiro conteúdo e qual a intervenção da vontade das partes na sua celebração e na
produção dos efeitos que dele derivam. Predomina na doutrina civilista a conceção segundo a
qual o casamento é um contrato civil no qual intervêm duas vontades contrapostas mas
harmonizáveis, e que, ao contrário dos demais contratos, pressupõe a diversidade de sexos.

Nesta mesma orientação há quem sustente que o casamento pode ser definido como um
contrato entre duas pessoas de sexo diferente, pessoal, consensual, solene e indivisível.
Autores há que, embora atribuindo ao casamento uma natureza contratual, reconhecem que
ele é um negócio jurídico familiar, onde a autonomia da vontade concedida às partes tem uma
margem limitada.i5)

Há ainda quem opine que o casamento deve ser enquadrado como a soma de dois atos
jurídicos simples... incompatível coma ideia de vinculação contratual.^ A atribuição da essência
contratual ao casamento vem aliás do direito canónico, que enfatiza a importância da vontade
das partes na sua celebração.

O próprio Código Civil definia expressamente o casamento como um contrato entre duas
pessoas de sexo diferente (art. 1577.°).

Mais do que discutir se deve ou não usar-se a expressão contrato, cremos que o que na
verdade é relevante é distinguir em substância, qual o limite e o alcance da intervenção das
partes.

Concluímos que existe por parte dos nubentes liberdade para celebrar ou não celebrar o
casamento. A liberdade matrimonial como vimos, constitui um direito fundamental da pessoa
humana.

Mas já não existe por parte dos nubentes liberdade de estipulação relativamente aos efeitos
que o casamento produz. Estaríamos, pois, perante um ato jurídico stricto sensu e não perante
um negócio jurídico.

Há, porém, quem entenda ser de afastar o conceito de que o casamento possa ser encarado
como um contrato, porquanto o casamento não é um ato de natureza patrimonial, mas sim
um negócio jurídico do qual resulta a constituição

de relações de natureza patrimonial. Ao casamento não se aplicam as normas gerais da


disciplina contratual.

Legislações como a francesa, italiana e alemã abstêm-se de definir o que é o casamento,


partindo do princípio de que ele é um conceito que vem dos primórdios da humanidade e cuja
definição legal pode criar mais dificuldades do que benefícios.

No Código de Família de Cuba o casamento vem definido como uma união estabelecida
voluntariamente entre um homem e uma mulher, dotados de capacidade legal para tal, e com
o fim de fazerem vida em comum.

Arredando-se da polémica teórica sobre a natureza jurídica do casamento, o legislador cubano


quis expressamente que o matrimónio deixasse de ser conside¬rado como um contrato civil,
embora se reconheça ser ele um negócio jurídico.

O mesmo entendimento foi aceite no Código de Família, que rejeitou a designação do


casamento como um contrato, para o definir como uma união.

O casamento como ato não deve, pois, ser encarado como um contrato stricto sensu, pois a
declaração de vontade emitida pelos nubentes vai produzir unicamente os efeitos jurídicos já
previstos na lei e que são de natureza imperativa. Existe, na verdade, uma convergência de
duas vontades para a aceitação dos efeitos que vão derivar do ato praticado, que são comuns
e recíprocos e que vão instituir entre ambos relações de natureza pessoal e familiar próprias
do vínculo conjugal.

Há, no entanto, que ter em conta que a autonomia da vontade das partes se circunscreve a
dois pontos, que são aliás de decisiva importância:

— cada pessoa é livre de casar ou não casar;

— cada pessoa é livre de escolher a pessoa do outro sexo com quem quer celebrar o
casamento.

O direito à livre celebração e à livre escolha do nubente é reconhecido nos instrumentos


internacionais já mencionados relativos aos direitos humanos.

À declaração de vontade expressa no ato de casar são aplicáveis subsidiaria- mente alguns
princípios essenciais a todos os negócios jurídicos em geral, designadamente os que se
referem à nulidade por falta ou vício de vontade.

Mas, uma vez emitida a vontade, é a lei reguladora do direito matrimonial que determina
todos os efeitos jurídicos que derivam da celebração do ato do casamento.

Nenhum dos nubentes pode celebrar o casamento impondo condições ou cláusulas que
alterem ou modifiquem os efeitos legais. Por exemplo, a lei não

consentiria que fosse celebrado um casamento em que os cônjuges se comprome¬tessem a


não viver juntos.

A lei não consente também que os nubentes imponham prazos à convivência conjugal.

A vontade dos nubentes não pode, pois, impor-se para além da celebração do ato de
casamento, pois os efeitos do ato estão previamente estabelecidos na lei.

Estamos perante uma declaração de vontade dirigida a produzir certos efeitos previstos na lei,
efeitos esses que não podem ser nem restringidos nem alargados.

No consentimento não existe, por conseguinte, a liberdade de estipular quais os efeitos


jurídicos a produzir pelo ato, caraterística do direito das obrigações .

Aliás, como veremos, está previsto que durante a celebração do casamento o oficial do registo
civil proceda perante os nubentes à leitura dos artigos do Código respeitantes aos direitos e
deveres que derivam para os cônjuges do ato de casamento. Isto pressupõe que os nubentes
devem estar previamente esclarecidos dos efeitos do ato que vão praticar e que antecipada e
conscientemente os aceitem.

Como definir, pois, a natureza jurídica do casamento?

Cremos que o casamento deve ser entendido como um negócio jurídico familiar bilateral, com
a natureza de um pacto, celebrado entre os nubentes. É o ato jurídico condição da aceitação
do estado de casado, que dele decorre, estado de casado que se estabelece em reciprocidade
entre os dois nubentes.

Através da celebração do casamento os nubentes comprometem-se a estabele¬cer uma


convivência mútua integral e recíproca de vida, de natureza estável e duradoura, ou seja, a
convivência familiar do tipo marital. Comprometem-se a cumprir os seus deveres pessoais e
matrimoniais, quer entre eles, quer em relação aos filhos comuns.

Mas põe-se ainda a questão de saber quantas vontades intervêm no ato jurídico do
casamento: apenas as dos dois nubentes ou ainda a do Estado através do funcionário do
registo civil que celebra o casamento?

Será então o casamento um negócio jurídico plurilateral, em que é necessária a intervenção da


vontade do Estado ao declarar os nubentes casados?

Esta opinião é afastada pela corrente doutrinária representada por aqueles que encaram o
casamento como um contrato civil: a vontade do Estado não intervém no ato da celebração do
casamento de forma diferente daquela em que intervêm os notários ao lavrarem os
documentos autênticos.

O oficial do registo civil seria, segundo este ponto de vista, mera testemunha privilegiada, pois
a causa do vínculo matrimonial estaria na permuta das declara- çócs de vontade dos nubentes
e o ato de casamento fica perfeito logo que o consentimento é prestado.

Cremos que esta conceção não traduz de forma cabal a intervenção do Estado no ato solene
do casamento, cujo processo formal teremos de estudar mais adiante.

O funcionário do registo civil tem que verificar se estão reunidos os pressupos¬tos legais para
autorização do casamento, ou seja, a capacidade dos nubentes, e tem que lavrar despacho a
autorizar a sua celebração.

E no ato da celebração do casamento é indispensável a intervenção dos nuben¬tes e do oficial


do registo civil, além de duas testemunhas que certifiquem a prática do ato e a identidade e
capacidade matrimonial dos nubentes.

Expresso o consentimento dos nubentes, o casamento considera-se celebrado e o oficial do


registo civil proclamará que os nubentes estão unidos pelo casamento. É certo que a vontade
do conservador do registo civil não intervém no ato em si, mas a sua intervenção tem natureza
certificativa e a sua participação é indispensável à própria existência jurídica do ato.

Vemos, pois, que o Estado intervém no ato do casamento antes da sua celebra¬ção, estando
presente ao ato através do conservador do registo civil e recebendo na ordem jurídica a
declaração dos cônjuges para lhe atribuir eficácia legal. A declaração emitida pelo conservador
do registo civil, proclamando o ato, é, em nosso entender, elemento indispensável à sua
eficácia jurídica.

Entendemos, porém, que é juridicamente mais correto fazer a distinção entre o vício de
inexistência jurídica e o da nulidade absoluta.
Do conteúdo das normas do Código de Família consideradas essenciais à própria existência
jurídica de casamento, podemos estabelecer os pressupostos de existência do ato de
casamento em si, da seguinte forma:

a) Diversidade do sexo

É essencial que o ato de casamento seja celebrado entre duas pessoas de sexo diferente. Este
requisito deriva da própria natureza substancial do casamento, que a lei define como a união
plena entre a homem e mulher. Afasta-se a aceitação legal ou a equiparação ao casamento de
qualquer tipo de união, estabelecida entre pessoas do mesmo sexo, como seja o
homossexualismo.

No Código de Família, o próprio conceito de casamento (art. 20.°) implica que este ato
pressupõe a união de um homem e uma mulher em plena comunhão de vida, conceito legal
que arreda, sem dúvida, qualquer tipo de união entre pessoas do mesmo sexo.

Aliás este conceito de obrigatoriedade de diversidade de sexo está atualmente reforçado com
o já citado art. 35.°, n.° 1 da Constituição que ao definir a família expressa que tanto o
casamento como a união de facto devem ser constituídos «entre homem e mulher».

Devemos acrescentar que se tem acentuado a nível de muitos sistemas jurídicos a alteração do
próprio conceito de casamento definindo-o com a união entre duas pessoas, mas omitindo
que elas devem ser de sexos diferentes, precisamente para permitir que o casamento se
celebre entre pessoas do mesmo sexo.

Mais complexos para o nosso sistema jurídico, poderão ser os casos de intersexualismo e
transexualismo, em que pode ocorrer ser uma pessoa portadora de genes intermédios entre o
género masculino e o feminino (intersexualismo) ou ser suscetível de alteração de morfologia
de um sexo para outro (transexualismo).

Na verdade, num caso destes, pode um dos nubentes apresentar-se como sendo de um
determinado género, quando mais tarde se verifique haver uma alteração quanto ao género a
que pertence.

Em casos como estes já não se estaria perante a inexistência jurídica do casamento, mas
perante um caso de anulabilidade do casamento por erro quanto às qualidades físicas
essenciais do outro nubente, se tivesse havido ocultação dessas circunstâncias.

b) Duas declarações de vontade

No momento de celebração do casamento é essencial a existência de uma declaração de


vontade por parte de cada um dos nubentes.

O casamento, como negócio jurídico bilateral, pressupõe que sejam emitidas duas declarações
de vontade e a omissão de declaração por parte de qualquer dos nubentes é causa de
inexistência. No caso do casamento celebrado por procuração, pode esta ter deixado de
produzir efeitos em virtude da sua revogação por parte do mandante ou por caducidade em
virtude da morte deste, ou por estar a procuração ferida de falsidade. A falta de declaração de
vontade por parte do nubente, torna inexistente o mútuo consentimento em que ele se vai
estruturar.

É evidente que a exigência da existência de duas declarações de vontade pressupõe a presença


fisica de duas pessoas presentes ao ato por parte dos nubentes, e se por absurdo, o casamento
for realizado com a presença de um só, ele será obviamente inexistente.

O Código de Família determina expressamente no art. 35.°, n.° 1 que «É essencial para a
validação do casamento que cada um dos nubentes manifeste de forma expressa, a vontade
de contrair o casamento com o outro nubente.»

Não basta o simples assentimento gestual de qualquer dos nubentes, impondo a lei que haja
uma declaração verbal que revele a existência de vontade de contrair casamento. No diploma
que regulamenta o ato de casamento, o Decreto n.° 14/86, de 2 de agosto, no art. 26.°, n.° 3
prevê os casos de casamento de mudos ou surdos mudos ou de os nubentes não dominarem a
língua em que o ato é celebrado.

O que é essencial é a existência da declaração expressa de vontade de cada um dos nubentes


no ato de celebração do casamento da aceitação voluntária do ato em si, o que constitui o
próprio substractum do ato do casamento.

c) Intervenção do Conservador do Registo Civil

O casamento deve ser celebrado por funcionário competente do registo civil, que é em regra o
conservador ou o seu substituto legal.

A intervenção do funcionário com competência para a prática do ato é outro requisito


essencial à existência do casamento. A cerimónia celebrada perante pessoa despida dessa
competência, mesmo que investida em autoridade pública, ou até por um terceiro sem
quaisquer poderes para o ato, é irrelevante perante a ordem jurídica. Este princípio vem
consignado no art. 34.° do Código de Família: «No ato de celebração do casamento é essencial
a intervenção: a) dos nubentes, podendo um ser representado por procurador; b)
dofuncionário do Registo Civil;».

Pode acontecer que ambos os nubentes, de boa fé, julguem estar perante o funcionário do
registo civil no momento da cerimónia, ou pode acontecer que

um dos cônjuges esteja de má fé e pactue com terceiro para simular uma farsa de casamento
com o intuito de ludibriar o outro consorte/10) A celebração do casamento sem competência
para tal integrará uma infração penal.

Só o casamento urgente, que adiante estudaremos, permite a celebração do casamento sem a


presença do competente funcionário do registo civil, mas em condições especiais e sujeito a
homologação posterior.

Podemos dar como assente que, à luz do Código de Família, persistem determinados
pressupostos de existência do casamento, sem os quais o casamento não chega sequer a
existir na ordem jurídica. Quando se verifica a inexistência jurídica do casamento não há
necessidade de propor qualquer ação para a declaração de inexistência.
A inexistência jurídica pode ser invocada em qualquer tempo, seja por via de ação seja por via
de exceção.

[63] Validade do casamento: elementos de fundo e elementos de forma

O casamento, como negócio jurídico bilateral e solene, é constituído por elementos de


natureza substancial e de natureza formal, que podem ser classificados como:

a) Condições de fundo, englobando a capacidade matrimonial e o mútuo consentimento;

b) Condições de forma, que se referem ao processo preliminar do casamento e à


celebração do ato do casamento.

As condições de fundo referem-se à aptidão natural para contrair o casamento e englobam a


diferença de sexo, a idade púbere, a saúde física, a inexistência de impedimentos previstos na
lei e em concreto aplicáveis aos nubentes, e que se fundam em razões de ordem genética e
social.

A vontade de contrair casamento e a capacidade das partes para o celebrarem é também um


elemento essencial à validação do casamento.

As condições de forma reportam-se ao processo preliminar que antecede o casamento e à


forma solene e pública da celebração.

(10) Anteprojeto do Código Penal:

ARTIGO 224.°

(Simulação de competência para celebrar casamento)

Quem se fizer passar por autoridade competente para celebrar casamento e, nessa condição o
celebrar é punido com a pena de prisão de 1 a 3 anos ou com a multa de 120 a 360 dias, se
pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição penal.

[64] Capacidade matrimonial

Embora à primeira vista pareça ser um dado assente que toda a pessoa humana que preencha
as condições legais deverá ter direito a casar, o certo é que tem havido através dos tempos e
em diferentes sociedades uma série de medidas discriminatórias impostas por razões de índole
religiosa, ou políticas (como no caso do regime do « apartheid», que proibia o casamento
entre pessoas de raças diferentes), ou ainda por preconceitos de índole social.

Em certas profissões, como as de enfermeira, hospedeira aérea, professora primária, eram


incluídos nos contratos de trabalho ou de admissão à função pública cláusulas que proibiam o
casamento. Atualmente, tais prescrições são consideradas contrárias aos direitos
fundamentais da pessoa humana e nulas de pleno direito.

Dentro de certas áreas do direito costumeiro angolano, a tendência é para que os casamentos
tradicionais se celebrem entre primos ou entre pessoas da mesma aldeia.
A capacidade matrimonial oferece uma situação especial em relação à capacidade em geral
para celebrar negócios jurídicos de outros ramos de direito. Atendendo aos fins sociais
específicos do casamento, a lei estabelece condições naturais para que, em princípio, este se
vá celebrar entre pessoas que estejam aptas para a propagação da espécie humana. Essa
aptidão revela-se por condições de maturidade física e ainda por maturidade psíquica que
permita que os futuros cônjuges possam estar em condições de arcar com as
responsabilidades derivadas do casamento.

Não quer isto dizer que uma pessoa fisicamente incapaz de procriar não possa contrair
casamento. A impotência, seja por razão natural ou fisiológica, seja provocada por doença ou
mutilação, não impede o homem de contrair casamento, tal como a mulher estéril por razões
fisiológicas, cirúrgicas ou outras também não está inibida de contrair casamento.

Só que, em casos como esses, o outro nubente deve ter conhecimento cabal de qual a situação
fisiológica da pessoa com quem vai casar para saber se aceita, mesmo assim, celebrar o
casamento.

Se o vício for ocultado ao outro nubente até ao momento da celebração, isso constitui, como
veremos, um erro essencial sobre a qualidade do outro nubente e pode acarretar a nulidade
do casamento.

A lei não exige só condições físicas ou psíquicas adstritas a cada nubente, mas impõe ainda
restrições ao casamento entre pessoas ligadasporvínculos familiares ou por práticas
delituosas, por razões de ordem moral e até de eugenia.

Há, por outro lado, que ter em conta que existem certas incapacidades para a prática de
negócios jurídicos, como a dos inabilitados por cegueira, surdez-mudez e prodigalidade,
previstas nos arts. 138.° a 152.° do Código Civil, que em nada afetam a capacidade
matrimoniai.

1 — A idade núbil

A puberdade, ou seja, a maturidade sexual é a condição biológica primeira para a celebração


do casamento.

O casamento leva à plena comunhão de vida entre homem e mulher, e, além do aspeto de
convivência física e sexual dos cônjuges, há ainda que ter em conta o desenvolvimento
psíquico que é de exigir a quem vai constituir família, assumindo com responsabilidade os
inerentes direitos e deveres.

Não interessa, pois, favorecer os casamentos precoces nem por parte do homem nem por
parte da mulher. Os casamentos entre indivíduos demasiadamente jovens não traz em regra
qualquer benefício nem ao nubente nem à sociedade, pois impede o seu desenvolvimento
físico global e a sua preparação profissional como cidadão socialmente útil.

Na generalidade dos países faz-se coincidir a idade núbil com a maioridade, ou seja, esta é
reconhecida aos 18 anos. Há países que estabelecem idade superior, como na República
Popular da China, por exemplo, onde não é encorajado o casamento com a idade inferior a 25
anos, posição que visa combater o excesso demográfico daquele país, o mais populoso do
mundo.

O Código Civil dispunha que a idade núbil era de 16 anos para o homem e de 14 anos para a
mulher (art. 1601.°, alínea a)).

O art. 24.° do Código de Família estabelece a regra de que a idade núbil se atinge aos 18 anos,
sendo permitido excecionalmente o casamento com idade inferior quando tal se mostrar
preferível. Adotou-se, assim, como idade núbil, a maioridade fixada na Lei n.° 68/76, de 12 de
outubro, e atualmente contida no art. 24° da Constituição.

Vemos que a lei estabelece um padrão normal de idade mínima de casamento, que é a idade
de 18 anos, mas prevê que, excecionalmente, o casamento se possa celebrar quando o homem
tiver 16 anos e a mulher 15 anos.

Neste caso, é necessária uma autorização do representante ou representantes legais do


menor. Deve, no entanto, existir uma causa ponderosa que justifique ou torne mais benéfico
para o menor que seja dada a autorização para a celebração do casamento. Isto pode
acontecer, por exemplo, pelo estado de gravidez da mulher ou, por parte do jovem, pelo facto
de este ter mantido relações sexuais das quais resultou a gravidez da nubente. Nestes casos
está evidenciado que os nubentes

têm já aptidão física natural para a celebração do casamento, embora em muitos casos não
tenham ainda maturidade psíquica para tal.

O menor púbere de 16 anos do sexo masculino ou de 15 anos do sexo feminino pode,


portanto, ser autorizado a casar, sendo a menoridade de 18 anos uma incapacidade
meramente relativa.

A lei, por uma questão de preservação do casamento, não fere de nulidade absoluta os
casamentos celebrados por pessoas com incapacidade matrimonial ou sem a idade núbil.

Poder-se-á dar o caso da celebração de casamento de menor não núbil, ou seja, de menor com
idade inferior a 16 ou 15 anos, idades mínimas previstas pelo Código de Família. Nem por isso
o casamento será, por si só, nulo, pois a lei permite a sua convalidação posterior, e sujeita a
ação de anulação do casamento a prazos de caducidade.

O casamento de menor núbil carece de autorização, que deverá ser dada por ambos os pais,
dada a importância do ato do casamento para a vida do menor. Na falta de ambos os pais,
caberá ao tutor legalmente instituído, e, na falta deste, à pessoa que tiver o menor a seu
cargo.

Quando a autorização para o casamento for negada pelo representante legal do menor, ou por
quem o tiver a seu cargo, será o tribunal que decidirá, ouvido obrigatoriamente o Conselho de
Família, podendo, se assim o entender suprir judicialmente a falta de autorização e garantir a
celebração do casamento.

Ao tomar a decisão, o tribunal deve ter sempre em conta o interesse e beneficio do próprio
menor.
Estado de saúde

Na legislação de muitos países é exigido aos nubentes um certificado médico comprovativo de


que eles não padecem de doenças contagiosas ou hereditárias, tendo em vista a proteção da
saúde da sociedade em geral.

Nesses casos, não se pode celebrar o casamento sem ser apresentado um certifi¬cado pré-
nupcial, emitido por um médico, que declare o nubente fisicamente apto a contrair
matrimónio e atestando não ser ele portador de doença hereditária ou contagiosa.

O esclarecimento sobre a globalidade da situação física de cada nubente é um dever que se


impõe a ambos os nubentes que pretendam vir a celebrar casamento, dado que do casamento
irá resultar uma plena comunhão de vida que envolve a vida sexual recíproca e em regra, a
procriação de filhos comuns.

É assim fundamental que os nubentes saibam se há risco de contaminação de doenças


contagiosas ou de genes de doenças hereditárias, transmissíveis à descendência.

A questão põe-se com especial acuidade na região sub-sahariana do continente africano onde
se instalou o flagelo da propagação do vírus V1H e do Síndroma da Imunodeficiência Adquirida
— SIDA. A Lei n.° 8/04, de 1 de novembro, que tem como finalidade a proteção integral da
saúde na prevenção, controlo, tratamento e investigação do VIH/SIDA impõe o dever aos
infetados de informarem sobre a sua situação os respetivos parceiros sexuais.111*

Ora de acordo com o disposto no art. 15.° da mesma lei, o portador que não cumpra os citados
deveres que lhe são impostos incorre nas penalidades nele previstas/12*

A transmissão dolosa do vírus é punida como crime de envenenamento e a meramente


negligente como o crime de homicídio negligente Já o Anteprojeto do Código Penal prevê uma
punição menos rigorosa/13*

Entre nós predomina a opinião médica de que não deviam ser permitidos casamentos entre
duas pessoas portadoras de doença de sangue, predominante em países de clima tropical, a
drepanocitose, comummente designada como de «células falsiformes», dado que o facto de
caso ambos os progenitores serem portadores do genes dessa doença, isso levará a que a
mesma seja transmitida por via hereditária aos descendentes. «Estima-se importante a
implementação no País, de forma sistmática, do aconselhamento genético, como via de
gradualmente se diminuir e diluir o Gene S nas comunidades mais afetadas. >>

Já a impotência ou esterilidade dos nubentes não leva, por si só, como vimos, à
impossibilidade de contrair o casamento.

A condição comprovativa do estado de saúde do nubente não era exigida pelo Código Civil,
nem o é pelo Código de Família, pelo que não há que fazer a prova da aptidão física do
nubente para o casamento.

Aliás, é de ter em conta que as pessoas eventualmente portadoras de doenças hereditárias e


contagiosas podem manter uma união de facto, o que não evitaria os malefícios da
transmissão dessas doenças entre si e aos descendentes.
2 — Impedimentos matrimoniais

Além da idade núbil, a lei exige, como elemento definidor da capacidade matrimo¬nial, a
circunstância negativa de que se não verifiquem em relação aos nubentes quaisquer
impedimentos matrimoniais.

As normas que estabelecem os impedimentos matrimoniais devem ser consi¬deradas como


normas de natureza excecional e portanto de interpretação restrita, pois de facto restringem
um direito fundamental da pessoa humana que é o direito de casar.

Os impedimentos matrimoniais podem ser classificados como impedimentos dirimentes


absolutos, impedimentos dirimentes relativos, ou impedimentos meramente impedientes.

Podemos assim concluir, a contrario sensu, que existe capacidade matrimonial quando se
verifica a inexistência de qualquer impedimento matrimonial previsto na lei. Era este o
entendimento do artigo 1600.° do Código Civil, que definia a regra geral de que tinham
capacidade para contrair casamento todos aqueles em que se não verificasse algum dos
impedimentos matrimoniais nele previstos.

Regra idêntica vem consignada no Código de Família (art. 23.°): «Têm capacidade para contrair
casamento todos aqueles em que se não verifique algum dos impedimentos matrimoniais
previstos nos artigos seguintes ou em lei especial». No recente diploma que aprovou o
Estatuto do Diplomata, Decreto Presidencial n.° 209/11 de 3 de agosto, foi aprovada a
interdição aos funcionários diplomáti¬cos de contrairem matrimónio ou de terem ligação
marital com pessoa de nacionalidade estrangeira ou que receba qualquer tipo de remuneração
de Estado estrangeiro — art. 41.°, n.° 2.

A doutrina costuma distinguir entre impedimentos dirimentes e impedimentos não dirimentes


ou meramente impedientes. Os impedimentos são em geral factos jurídicos que obstam à
realização do casamento.

Os impedimentos dirimentes são aqueles que dirimem, ou que destroem os efeitos do


casamento.

Os impedimentos dirimentes são, pois, os que proíbem que o casamento se celebre e


costumam ser classificados em duas categorias:

a) impedimentos dirimentes absolutos;

b) impedimentos dirimentes relativos.

Os primeiros impedem a pessoa em causa de casar seja com quem for: dizem-se, por isso,
impedimentos dirimentes absolutos.

Os impedimentos dirimentes relativos impedem unicamente que duas pessoas casem uma
com a outra, mas não impedem que casem com outrem. Mas tanto uns como outros impedem
que se realize o casamento. Em sentido lato, todos os impedimentos constituem obstáculos à
celebração lícita e válida do casamento.

a) Impedimentos dirimentes absolutos


Demência

O primeiro impedimento dirimente absoluto é o da demência. Esta proibição de contrair


casamento funda-se simultaneamente em duas razões: não permitir que o ato de casamento
seja celebrado por quem não tenha capacidade de discerni¬mento para compreender o
alcance do ato que pratica e portanto os efeitos pessoais e sociais do casamento e impedir que
indivíduos portadores de taras psíquicas as vão transmitir à sua descendência.

A incapacidade por demência abrange não só a interdição por demência decretada por
sentença judicial, e reconhecida sob o ponto de vista jurídico, mas ainda a demência notória, o
que quer dizer, a que se evidencia como facto público, e que portanto é geralmente conhecida
no meio onde o nubente vive. A demência será considerada notória quando seja do
conhecimento público das pessoas do meio social em que vive o portador da doença, mesmo
que esta seja desconhecida do outro nubente.

Em sentido jurídico, a demência abrange todas as diversas doenças do foro psiquiátrico, sejam
elas de que natureza forem, e não só a demência em sentido clínico.

A demência constitui causa de incapacidade matrimonial mesmo que o casamento seja


celebrado num intervalo lúcido da doença mental. Aliás discute-se se é possível falar em
intervalos lúcidos num doente mental pois cientistas há que sustentam que a doença está
sempre subjacente, embora possa ter períodos de crise em que ela se acentua. Procura-se
assim proteger interesses sociais que são lesados pela celebração de um casamento de
consequências nefastas para o outro cônjuge e até para o próprio demente e para a possível
prole.

Em certas legislações a demência é encarada como causa de nulidade absoluta do casamento


em razão de vício do consentimento.

Se houver sentença de interdição ou inabilitação por anomalia psíquica anterior ao casamento,


ela impede em absoluto a celebração do casamento, enquanto não for levantada a interdição.

Se a sentença de interdição for posterior, mas nela for fixado o início da doença mental em
data anterior ao casamento, este fica ferido de nulidade. O artigo 1601.°, alínea b), do Código
Civil previa este impedimento, expressando que ele abrangia a demência notória, mesmo
durante os intervalos lúcidos, e a interdição ou inabilitação por anomalia psíquica.

No mesmo sentido dispõe o Código de Família, que proíbe em absoluto o casamento no caso
de demência, quando esta for notória, ou no caso de interdição ou inabilitação por anomalia
psíquica (art. 25.°, alínea a)).

b) Casamento anterior ou união de facto legalmente reconhecida

O segundo impedimento dirimente absoluto provém do facto da existência de casamento


anterior não dissolvido ou de união de facto legalmente reconhecida, que, como veremos,
produz os efeitos do casamento.

O casamento pode ter sido celebrado no país ou no estrangeiro ou ter sido celebrado sob a
forma civil ou canónica, desde que em condições legais de produzir efeitos civis. A alínea b) do
citado art. 25.° do Código de Família dispõe que o casamento ou união de facto legalmente
reconhecida impedem o casamento com qualquer outra pessoa enquanto o casamento ou a
união anterior não forem dissolvidos.

Este impedimento visa a consagração do princípio da monogamia, comum a todos os países


democráticos. Ele deriva do conceito de igualdade de direitos e deveres do homem e da
mulher no casamento, complementando-o com o próprio conceito do casamento, que assenta
numa plena comunhão de vida entre marido e mulher.

A bigamia ou poligamia, que pressupõem a existência simultânea de dois ou mais casamentos


celebrados seja por um homem com mais de uma mulher, seja por uma mulher com mais de
um homem, não são consentidos na nossa ordem jurídica. Há quem fale em poligamia
sucessiva quando alguém dissolve um casamento anterior, por divórcio, para, após a
dissolução, contrair novo casamento com outro cônjuge.

Quem tiver o estado de casado não pode celebrar novo casamento enquanto o anterior não
for dissolvido, pelo que só pode contrair casamento quem estiver no estado de solteiro, viúvo
ou divorciado.

A união de facto, para produzir efeitos como tal, carece de um processo de

reconhecimento.

O reconhecimento da união de facto para o fim de constituir impedimento matrimonial tem


que ser anterior ao casamento e resultante do mútuo acordo dos companheiros, mediante um
processo proprio e um despacho administrativo de reconhecimento, devendo depois ser
objeto de registo no livro próprio, como adiante estudaremos.

Não obsta, porém, à celebração de casamento, a existência de união de facto, ainda que
reunindo os pressupostos legais de reconhecimento, desde que o reconhecimento se não
tenha previamente operado, por via do comum acordo dos companheiros. O acordo mútuo
para o reconhecimento da união de facto é essencial para o seu reconhecimento, como
veremos.

c) Impedimentos dirimentes relativos

Estes impedimentos matrimoniais fundam-se na existência de certos vínculos familiares


existentes entre duas pessoas e ainda na existência de facto ilícito penal grave (crime de
homicídio voluntário cometido por um dos nubentes contra o cônjuge do outro). Embora
sejam designados como impedimentos dirimentes relativos, eles impedem em absoluto que se
celebre o casamento entre as pessoas em causa.

Se a despeito do impedimento, o matrimónio vier a ser celebrado, a existência do


impedimento é causa de invalidade e conduz à anulabilidade do casamento.

Os impedimentos dirimentes relativos vêm definidos no corpo do art. 2° o

Código de Familia como aqueles que «impedem a celebração do casamento entre

si das pessoas a que respeitam». ,


Eles incidem sobre os parentes e afins na linha reta (alínea a) do artigo) e so

os parentes no 2.» grau na linha colateral, ou seja os irmãos por laços de sangue ou

adotivos (alínea b) do preceito). ;rr

A alínea c) do mesmo art. 26.“ refere-se à pronúncia como autor ou p

por homicídio doloso contra o cônjuge do outro. „undo

o ^... *rr -

grau da linha colateral fúnda-se na interdição q > ^

sociedades humanas levantaram contra a prática do inc . .1^16^ Desde

O repúdio do incesto é um dos tabus mais Pr^^^^^l^^nstjtuir família os tempos mais recuados,
o ser humano sentiu a exoeamia como

com elementos novos, encontrados fora da família, optando pela exogam

forma de mais salutar propagação da espécie hum

"^ITanCarhnnnier. Droit Civil- La FamilUp. - >•

Como vimos, as sociedades humanas baniram desde sempre as relações incestuosas entre
ascendentes e entre irmãos, tendo estas persistido cm certas classes aristocráticas ainda nos
tempos históricos.

São razões de ordem ética que punem o incesto, nuns casos como ilícito civil, noutros até
como ilícito penal.

Há quem distinga entre o incesto absoluto, que será aquele que advém das relações entre
parentes em linha reta ou no segundo grau da linha colateral, e o incesto relativo, que se
refere às relações entre parentes no terceiro grau da linha colateral, entre tio-sobrinha ou tia-
sobrinho.

A lei civil, ao falar em «parentesco», explicita que não é necessário que ele esteja estabelecido
e formalizado em termos de registo civil, bastando a existência do simples parentesco de
facto.

Este é o entendimento consagrado no artigo 1603.° do Código Civil, segundo o qual o


parentesco, mesmo não reconhecido, constitui impedimento quando apurado no processo
preliminar de publicações anterior à celebração do casamento. Por isso, uma vez suscitada a
questão da existência do parentesco, embora este não esteja devidamente estabelecido, o
Conservador do Registo Civil deverá sustar o processo para a averiguação do facto. Se ele se
provar, o casamento não poderá ser celebrado. A prova feita nesse processo preliminar não
poderá valer para qualquer outro efeito (art. 1603.° do Código Civil). O resultado deste
apuramento poderá por seu lado, ser impugnado em ação comum pelas pessoas que mostrem
ter legitimidade para impugnar o parentesco.
O Código de Família não contempla expressamente esta hipótese. Apesar disso, deve
entender-se que o parentesco, mesmo que não estabelecido formalmente, constitui
impedimento à celebração do casamento, pois o fim da lei é impedir que se realize o
casamento entre pessoas ligadas por laços de sangue muito próximos.

Relativamente ao Código de Família, temos ainda que ter em conta que o parentesco se
estabelece quer por laços de sangue quer por adoção. Por isso, a proibição abrange os
parentes por adoção em linha reta, ou seja adotante e respe¬tivos ascendentes e
descendentes e o adotado e seus descendentes.

A proibição do casamento entre irmãos é extensiva a todos os irmãos, sejam eles bilaterais ou
germanos, sejam irmãos unilaterais, uterinos ou consanguíneos, sejam irmãos adotivos.

Por outro lado, o adotado, embora pelo efeito da constituição do vínculo da adoção veja
extinguir os laços de parentesco natural com os seus anteriores parentes — o que pode
acontecer simultaneamente em relação ao ramo paterno e materno, ou só em relação a um
dos ramos, como teremos ocasião de ver, fica impedido de contrair o casamento com os seus
parentes naturais em linha reta ou no segundo grau da linha colateral, entendendo-se que o
vínculo do parentesco natural não se extingue para efeito de constituir impedimento
matrimonial.

Na verdade, o art. 206.° do Código de Família dispõe que «a adoção dupla do menor faz
extinguir os laços de parentesco entre o adotado e os seus parentes naturais, os quais só serão
de atender para o efeito de constituírem impedimento matrimonial».

O vínculo de afinidade em linha reta constitui igualmente impedimento dirimente, já não


constituindo impedimento a afinidade no segundo grau da linha colateral. É pois, proibido o
casamento entre sogro-nora, genro-sogra, padrasto- -enteada, enteado-madrasta, mas é
permitido o casamento entre cunhados. Certas legislações, como por exemplo a legislação
italiana, preveem o impedimento do casamento entre afins do segundo grau da linha colateral,
sendo este, no entanto, de natureza dispensável.

O impedimento em razão do vínculo da afinidade perdura mesmo que o casamento do qual


ele deriva tenha sido dissolvido, uma vez que o vínculo da afinidade não se extingue com a
dissolução do casamento. É esta a posição legal adotada pelo art. 15.° do Código de Família.

Já não existe impedimento matrimonial entre um afim e o cônjuge respetivo, podendo por
exemplo o padrasto de um indivíduo vir, por morte deste, a contrair casamento com a
respetiva viúva.

O conjugicídio é o impedimento dirimente relativo a que se referia a alínea d) do art. 1602.° do


Código Civil e que vem previsto na alínea c) do art. 26.° do Código de Família.

Segundo o art. 1602.°, alínea d), a condenação por homicídio devia constar de decisão com
trânsito em julgado, devendo tratar-se de condenação em razão da prática de homicídio
doloso e não de homicídio involuntário. Nesta proibição está abrangida tanto a forma de
participação criminosa por autoria como por cumplicidade. Também estão abrangidas as
diversas formas de execução do crime, ou seja a forma consumada, frustrada ou tentada.
Esta regra funda-se em princípios de ordem moral e é comum a muitas legislações.

Por ela se impede que, por exemplo, o cônjuge viúvo venha contrair casamento com o autor
do crime de homicídio de que foi vítima o cônjuge falecido, e o impedimento dirimente
subsiste quer o cônjuge sobrevivo tenha participado na ação criminosa, quer seja em relação a
ela completamente alheio.

Seria chocante para a consciência dos cidadãos, permitir que um cônjuge viesse a contrair
matrimónio com o assassino de seu marido ou mulher.

No Código de Família a redação é diferente porque se fundiu numa única disposição legal o
que vinha contido no disposto na citada aJínea d) do art. 1602.° e o que constava da alínea c)
do art. 1604.°, ambos do Código Civil.

E isto operou-se porque se eliminou no Código de Família a referência expressa aos


impedimentos impedientes.

Por tal razão, o impedimento surge desde que tenha sido proferido o despacho de pronúncia
do nubente pela prática do crime de homicídio doloso contra o cônjuge do outro, e perdura
enquanto o réu não vier a ser despronunciado ou absolvido por decisão transitada em julgado
— art. 26.°, alínea c) do Código de Família.

Do que se infere que, a contrario sensu, se houver condenação com trânsito em julgado do
outro nubente, o impedimento perdura, prejudicando em absoluto a possibilidade de o
casamento se realizar.

O Anteprojeto do Código Penal pune como crime a celebração de casamento com indução em
erro sobre impedimento e também quando haja conhecimento e ocultação de impedimento
por parte de um dos nubentes.(I7)

d) Impedimentos impedientes

O artigo 1604.° do Código Civil previa ainda os impedimentos meramente impedientes:


aqueles cuja existência obstava à realização do casamento mas não afetavam a sua validade,
se o casamento tivesse sido celebrado. O funcionário do Registo Civil sofreria sanção
disciplinar, estando os nubentes sujeitos às sanções especiais previstas nos artigos 1649.° a
1650.° do Código Civil (na generalidade de natureza económica).

O Código de Família eliminou, como se disse, a referência específica aos impedimentos


impedientes.

Mas o art. 23.°, ao referir-se à capacidade matrimonial, menciona não só os impedimentos


previstos no próprio Código mas ainda os que constarem de lei especial. Deixou-se, assim, em
aberto que determinadas leis pudessem vir a condicio¬nar o direito de contrair casamento à
obtenção de determinadas autorizações.

Efetivamente, existem determinadas situações em que se pode impedir que se contraia o


casamento (como no caso de prestação de serviço militar ativo), ou se pode impor que seja
obtida licença para a sua celebração.
Deixou-se desta forma em aberto que leis especiais, tal como o Estatuto do Diplomata,
restrinjam a capacidade matrimonial.

Interessa comparar como foram ou não acatados no Código de Família os impedimentos


meramente impedientes previstos no Código Civil.

Eram eles os seguintes:

Prazo intemupcial

Não vem previsto na maioria das atuais legislações. O n.° 1 do 1605.° definia o conceito de
prazo intemupcial como o espaço de tempo que decorria entre a data da dissolução,
declaração de nulidade ou anulação de um casamento e a data a partir da qual podia o ex-
cônjuge vir a contrair novo casamento. Esse prazo intermédio vinha fixado na lei em 180 dias
para o homem e em 300 dias para a mulher.

A razão de ser deste impedimento fundava-se em razões do foro social, que visavam impedir
que alguém que terminou a vida conjugal com uma pessoa, viesse a reatar de seguida um
casamento com outra.

Certas legislações designam este prazo como «delai de viduité» ou de «luto vedovile».

Em relação à mulher invoca-se a questão da turbatio sanguinis, ou seja, a incerteza sobre a


verdadeira paternidade do filho nascido nos trezentos dias que decorressem após a dissolução
do primeiro casamento.

Como tivemos oportunidade de aprofundar, a lei fixa o denominado «período legal de


conceção» para, a partir desse conceito, poder atribuir a paternidade do marido relativamente
aos filhos concebidos e nascidos durante o casamento.

Ora, o Código de Família no seu art. 165.° prevê a hipótese em causa, na parte relativa às
regras gerais do estabelecimento da filiação, dizendo que, no caso de segundo casamento da
mãe, antes de dissolvido o casamento anterior ou dentro dos 300 dias posteriores à sua
celebração, presume-se que a paternidade é do marido do casamento celebrado em último
lugar. Trata-se, porém, de mera presunção suscetível de ser ilidida pela parte interessada.

O artigo 1605.°, n.° 2 do Código CiviJ permitia que a mulher contraísse casamento dentro de
prazo de 180 dias após a dissolução do casamento anterior, desde que obtivesse declaração
judicial de não estar grávida ou se entretanto tivesse tido um filho após a dissolução do
casamento ou da declaração de nulidade ou da anulação.

Esta matéria já tinha sido objeto de alteração pelo artigo 8.° da Lei n.° 53/76, que estipulava
que o prazo internupcial era contado a partir do trânsito em julgado da sentença de separação
de pessoas e bens, que tivesse sido convertida em divórcio, ou da data do abandono do lar ou
da separação de facto, desde que a mesma tivesse sido reconhecida em sentença com trânsito
em julgado.
A sanção legal para a celebração do novo casamento sem a observância do prazo internupcial
vinha prevista no art. 1650.°, n.° 1 e consistia em fazer perder ao cônjuge os bens que tivesse
recebido por doação ou sucessão do primeiro cônjuge.

0 parentesco em terceiro grau da linha colateral

Este impedimento obstava ao casamento entre tio e sobrinha ou tia e sobrinho, e vinha
previsto na alínea b) do art. 1604°. Mas aqui o Código Civil tomava uma posição diferente
relativamente ao estabelecimento do parentesco, pois este tinha que estar legalmente
reconhecido, não bastando a prova do vínculo do parentesco natural.

Este impedimento era, porém, suscetível de dispensa, pois o art. 1609.° permitia que o
Ministro da Justiça ou o tribunal, se o nubente fosse menor, autorizassem o casamento.

São razões de eugenia que levam a que, em princípio, se não permita casamento entre
parentes tão próximos. Mas se, ouvido parecer médico, se concluir não haver razões de saúde
que desaconselhem o casamento, este pode ser autorizado. Já atrás mencionámos por que
razão o Código de Família não inclui o parentesco no 3.° grau da linha colateral entre os
impedimentos matrimoniais.

O art. 1604.° do Código Civil mencionava ainda os impedimentos do vínculo da tutela, curatela
e administração legal de bens, que são de natureza temporária, e o art. 1608.° do Código Civil
referia o vínculo da adoção restrita, que é uma figura jurídica que não subsiste entre nós desde
a aprovação da Lei n.° 7/80, de 7 de agosto.

[65] O consentimento, seu caráter pessoal e atual

O segundo elemento substancial que integra o ato do casamento é o elemento psicológico e


subjetivo: a vontade do nubente.

A autonomia da vontade na celebração do casamento, que se traduz na liberdade matrimonial,


é considerada como um direito fundamental da pessoa humana, um verdadeiro direito de
personalidade.

O consentimento tem que revestir, por isso mesmo, um caráter eminentemente pessoal. É
esta a regra consagrada no art. 1619.° do Código Civil e agora contida no n.° 1 do art. 35.° do
Código de Família segundo o qual «É essencial para a validação do casamento que cada um dos
cônjuges manifeste, de forma expressa, a vontade de contrair casamento com o outro
nubente».

Postulando a lei a essencialidade da vontade dos futuros esposos, afasta-se, em absoluto, a


vontade das famílias.

Quando um dos nubentes estiver representado no ato de casamento por um procurador, a lei
impõe que a procuração seja de natureza especial, o que quer dizer que ela é válida tão
somente para a celebração do ato, devendo mencionar expressamente qual a pessoa do outro
nubente. É o que prescreve o n.° 2 do art. 35.°: «No caso de um dos nubentes estar
representado por procurador a procuração deve ter poderes especiais para o ato e especificar
a pessoa do outro nubente». Daqui se infere que só um dos nubentes se pode fazer
representar por procurador e não os dois simultaneamente.

O consentimento no casamento, como veremos ao estudarmos o formalismo da sua


celebração, expressa-se pela frase que é dita após a pergunta feita pelo Con¬servador do
Registo Civil, e que consta do Regulamento do Ato do Casamento, ora em vigor. Isso não
impede que possa ser substituída por outra forma de expressão da qual se infira, sem dúvidas,
a existência da vontade do nubente.

Como atrás vimos, admite a lei, no caso de casamento de surdo-mudo, que ele se expresse por
intérprete, tal como no caso de nubentes que não compreendam a língua em que é celebrado
o ato. A declaração de aceitação do casamento tem que ser pura e simples, não sendo possível
que se formulem quaisquer condições ou termo para aceitação do negócio jurídico do
casamento. Se o nubente quiser aditar alguma condição ou cláusula, tal não deve ser
consentido e não deve ser aceite a declaração. Mas se, porventura incorretamente, tiver sido
aposta alguma cláusula, há quem entenda que tem de se optar por uma de duas soluções: ou a
cláusula é nula e válido o casamento, ou é válida a cláusula e nulo casamento.

Para ser válido, o consentimento tem ainda que ser atual, o que significa que ele tem que
existir no momento em que é celebrado o casamento. Esta é a razão fundamental do
afastamento do princípio que atribui qualquer relevância à promessa de casamento que haja
sido formulada antecipadamente.

A vontade de casar tem que existir no momento em que se celebra o ato de casamento, sendo
irrelevante que ela tenha ou não existido antes. Se o casamento tiver sido celebrado por
intermédio de procuração, é necessário que a procuração seja válida no momento da
celebração, ou seja, que não tenha caducado ou que não tenha sido objeto de revogação. O
art. 1621.° do Código Civil regulava o caso de revogação ou caducidade da procuração especial
para o casamento, permitindo a sua revogação em qualquer tempo, mas responsabilizando o
nubente que o fizesse, pelos prejuízos que causasse no caso de o casamento vir a ser
celebrado.

A morte do mandante extingue os poderes conferidos pelo nubente ao constituinte tal como a
morte deste extingue os poderes que lhe tiverem sido outorgados na procuração.

O Código de Família não prevê estas hipóteses, que devem ser regulada nos termos gerais da
revogação e da caducidade do mandato com representação, permitindo-se sempre a sua
revogabilidade nos termos gerais do direito, mas impondo ao mandante e ao mandatário o
dever de dar conhecimento da revogação com a maior diligência ou do facto que tiver feito
caducar a procuração.
CAPÍTULO I I.°

FORMA DO ATO DE CASAMENTO

[66] Formalidade

O terceiro elemento essencial à validade do ato do casamento é a forma do casa¬mento,


forma esta a que o legislador confere a maior importância e que se carateriza pela existência
de um processo administrativo preparatório do casamento e pela forma solene e ritual a que
está sujeita a celebração da cerimónia e, por fim, pela obrigatoriedade de se proceder ao
registo do ato que se acabou de efetuar.

Este princípio legal vem consagrado no Código de Família, art. 27.°: «0 casamento só é válido
quando celebrado perante os órgãos do Registo Civil ou reconhecido de acordo com as regras
da presente lá».

Nesta disposição reconhece-se validade jurídica, por um lado, aos atos de casamento que
revestem a forma legal prevista na própria lei e, por outro lado, àqueles que venham a ser
reconhecidos pela via legal. Quis-se assim abranger os casamentos que sejam objeto de
transcrição no Registo Civil, bem como aqueles que venham a ser reconhecidos por decisão
judicial, como ocorre no caso de se verificar a falta do ato do registo.

As disposições do Código Civil e do Código do Registo Civil foram alteradas quanto ao ato do
casamento pela Lei n.° 11/85, de 25 de outubro, que veio afastar a validade do casamento
canónico, além de introduzir importantes alterações às normas que regulam o processo de
casamento e o próprio processo da celebração do casamento, designadamente quanto à
adoção dos apelidos por parte dos nubentes.

A Lei n.° 11 /8 5 foi, como nela estava previsto, objeto de regulamentação pelo Decreto n.°
14/86, de 2 de outubro. Foram assim alteradas e consequentemente revogadas as disposições
que no Código do Registo Civil (arts. 166.° a 236.°) diziam respeito à matéria em causa.

Este Decreto n.° 14/86, que contém o Regulamento do Ato do Casamento (abreviadamente, R.
A. C), publicado antes da entrada em vigor do Código de

Família, carece de ser adaptado a este Código, em tudo quanto ele veio alterar os dois
diplomas anteriores (o Código Civil e a própria Lei n.° 11/85); no entanto o R. A. C. continua em
vigor e como tal terá que ser objeto do nosso estudo.

As formalidades a que está sujeito o casamento podem subdividir-se em:

— Formalidades preparatórias do ato do casamento;

— Formalidades da celebração do casamento.

[67] O processo preliminar

O processo preliminar constitui uma formalidade preparatória do casamento que, como


dispõe o art. 28.° do Código de Família, se destina a comprovar a capacidade matrimonial dos
nubentes.
No Código Civil (art. 1610.°) dizia-se que a celebração do casamento era precedida por um
processo de publicações; hoje, o Código de Família fala em processo preliminar.

A diferença entre estas duas disposições está na eliminação, a que se procedeu no Código de
Família, do termo «publicações», o que corresponde a uma simplificação que se operou no
próprio processo que corre perante os órgãos do Registo Civil, por ter sido suprimida a fase da
publicação dos editais.

A finalidade do processo preliminar é a de garantir à entidade que vai celebrar o ato de


casamento (que tanto pode ser a que organizou o processo preliminar como outra) que os
nubentes possuem capacidade matrimonial para o ato. Essa capacidade será demonstrada não
só pela documentação necessária à instrução do processo como ainda pela declaração sob
juramento que é exigida aos nubentes.

Procura-se obstar a que venha a ser celebrado casamento ferido de vício substancial, que
possa acarretar a sua anulação, com as graves consequências que dela resultam. Também, em
certa medida, o formalismo necessário à prática do casamento permite que os nubentes
tenham um determinado lapso de tempo para sopesar as consequências do ato que vão
celebrar e os efeitos ponderosos que, por via dele, irão incidir na vida pessoal de cada um,
procurando evitar resoluções precipitadas.

O processo preliminar desdobra-se nas seguintes fases:

a) Declaração inicial

Trata-se de uma declaração cujo modelo vem publicado no final do R.A.C. e que é subscrita por
ambos os nubentes. O art. 29.° do Código de Família, indevidamente, menciona que o
processo se inicia a «requerimento» dos nubentes, quando devia antes dizer por «iniciativa»
dos nubentes, dado que, uma vez elaborada a declaração inicial, o processo fica oficialmente
aberto na respetiva Conservatória.

De acordo com o art. l.° do R. A.C., a organização do processo preliminar é da competência da


Conservatória do Registo Civil da área de residência de qualquer dos nubentes nos últimos 30
dias. A declaração para casamento deve ser feita pessoalmente por cada um dos nubentes ou
por procurador com poderes especiais para tal — art. 2.°.

Essa declaração deve conter os elementos essenciais à identificação pessoal dos nubentes, dos
seus ascendentes, do tutor, se houver tutela instituída. No caso de segundas núpcias, deve
mencionar-se o nome do cônjuge anterior e a causa da dissolução do casamento. Deve indicar-
se se algum dos nubentes tem filhos, como preceituam as alíneas a), b), c) e e) do n.° 2 do art.
3.°.

A alínea f) deste art. 3.° está revogada, pois o Código de Família não prevê a celebração de
convenções antenupciais.

No caso de os nubentes pretenderem optar pelo regime de separação de bens, devem desde
logo fazer essa menção na declaração inicial — art. 29.°, n.° 3 do Código de Família.
Com a declaração para casamento devem ser entregues diversos documentos comprovativos
da sua capacidade matrimonial, o mais importante dos quais é a certidão de registo de
nascimento dos nubentes (art. 4.° do Decreto n.° 14/86).

De acordo com a legislação anterior (Código do Registo Civil) o processo que antecedia o
casamento designava-se por processo de publicações e continha a forma de publicidade
destinada a dar conhecimento a terceiros do projeto de casamento, a fim de que, se alguém
soubesse da existência de impedimento matri-monial, pudesse vir dar conhecimento do facto
ao funcionário do Registo Civil.

Este formalismo foi herdado do direito canónico, que obriga à publicação dos « banhos »
proclamados oralmente nos lugares de culto durante as 3 semanas que antecedem a
celebração do casamento.

No casamento civil passaram a publicar-se editais afixados à porta das Conservatórias do


Registo Civil. Mas porque o público não tem o hábito de ler esses editais, tal formalismo só
servia para sobrecarregar o serviço das Conservatórias, já em si muito carentes de recursos,
quer em funcionários, quer em meios materiais.

Para obviar a este excessivo formalismo foram abolidas as «publicações», substituindo-as por
uma declaração sob juramento.

Note-se que, hoje em dia, tal formalismo já não é aplicado cm grande número de legislações.
Em certos países como no Brasil os anúncios de casamento a contrair são publicados na
imprensa o que se torna mais eficaz.(1)

O atual processo preliminar impõe que o Conservador esclareça os nubentes de quais são os
impedimentos matrimoniais previstos na lei — art. 29.°, n.° 1: «O processo preliminar é
iniciado a requerimento dos nubentes, que serão previamente esclarecidos dos impedimentos
matrimoniais.»

Depois de estarem cientes de quais são esses impedimentos, os nubentes devem declarar sob
juramento se estão ou não abrangidos por qualquer deles.

«A declaração para casamento éprestada sobjuramento e afalsa declaraçãofaz incorrer o


nubente em responsabilidade criminal e civil» — art. 29.°, n.° 2.

b) Oposição ao casamento

Após a apresentação da declaração de casamento, a lei prevê que possa ser suscitada oposição
à sua celebração.

A legitimidade para deduzir oposição vem prevista no Código de Família (art. 30.°, n.° 1), que
impõe a qualquer cidadão que tenha conhecimento da existência de algum impedimento à
realização do casamento, o dever cívico de vir declarar o facto até ao momento da celebração.
O n.° 2 deste art. 30.° diz que a declaração é obrigatória para funcionários do Registo Civil.
Por maioria da razão, nas suas funções de Ministério Público, o representante do Procurador
Geral da República deve deduzir oposição ao casamento quando tiver conhecimento da
verificação de impedimentos.

O art. 9.° do R. A. C. prevê, quer o caso de dedução de impedimento por qualquer pessoa, quer
o facto de o Conservador, dessa ou doutra forma, chegar a ter conhecimento da existência de
impedimento.

A oposição pode ser deduzida de diferentes formas, designadamente pelos pais do nubente
menor a quem não tenha sido concedida autorização para casar, pelo cônjuge do nubente que
pretenda contrair novo casamento sem ter dissolvido o anterior, etc..

Deduzida oposição, ou havendo conhecimento de impedimento, o Conservador deve proceder


a diligências de prova e suspender o andamento do processo. Se concluir pela procedência
da existência de impedimento, deve recusar a celebração do casamento. Do seu despacho que
recusar a celebração do ato, cabe recurso para o tribunal competente.

O recurso das decisões dos conservadores e notários deve ser interposto para o respetivo
Tribunal Provincial como vem previsto no art. 31.°, n.° 1, alínea c), de 18/88 de 31 de
dezembro, que define a competência geral da Sala do Cível e Administrativo.

No entanto dada a natureza específica deste recurso que se prende com o exercício de direitos
de família, ele está abrangido pela competência atribuída à Sala de Família de acordo com o
art. 32.° da mesma Lei.

Se não houver oposição ou se esta for considerada improcedente, entra-se na fase final.

c) Despacho final

O art. 31.° do Código de Família diz no seu n.° 1: «Verificados os pressupostos legais, cabe ao
funcionário do Registo Civil autorizar por despacho a celebração do casamento.»

Foi alongado o prazo de validade do despacho que autoriza a celebração do casamento, por se
atender à dificuldade na obtenção da documentação necessária à constituição do processo
preliminar e à falta de registo civil de grande parte da população já atrás apontada. Pode
adiantar-se que, na maioria dos casos, são essas mesmas dificuldades, acrescidas da falta de
recursos económicos, a causa que leva a que a maior parte da população se afaste da
celebração do casamento e opte pela vivência marital em comum, não formalizada.

Uma vez concluído o processo preliminar, se os nubentes pretendem celebrar o casamento em


conservatória diferente daquela por onde correu o processo, podem pedir o certificado para
esse efeito — art. 13.° do R. A.C.

[68] Celebração do casamento

Concluído o processo preliminar, pelo qual se apurou a não existência de impedi¬mentos, e


lavrado o despacho de autorização, segue-se a celebração do casamento.

A cerimónia do casamento carateriza-se pela sua solenidade e publicidade — art. 32.°, n.° 1.
a) Intervenção das testemunhas

A solenidade corresponde a um verdadeiro rito que é seguido durante o ato, no qual são
chamados a intervir os nubentes e o Conservador do Registo Civil, bem

com duas ou quatro testemunhas, que servem, como se disse, para fazer prova da identidade
dos nubentes e da realização do próprio ato.

As testemunhas servem ainda para atestar a capacidade matrimonial dos nubentes e como
demonstração da importância social que é dada ao ato do casamento, como ato que não se
circunscreve à esfera privada dos nubentes e repercute-se no meio social em que eles vivem.

O art. 25.°, n.° 1 do R. A. C. indica que é indispensável a presença dos nubentes ou de um deles
e a do procurador do outro, do funcionário do Registo Civil e das testemunhas que devem ser
no mínimo duas e no máximo quatro.

No mesmo sentido, o art. 34.° do Código de Família indica quais devem ser os intervenientes
no ato do casamento, devendo ter-se em conta, porém que, ao contrário do que diz o corpo
do artigo, a presença das testemunhas não constitui condição essencial à validade do ato de
casamento, como adiante veremos ao estudarmos a anulabilidade do casamento.

b) Línguas e local de celebração

O ato pode ser celebrado em português ou em qualquer das línguas nacionais — art. 32.°, n.° 2
e art. 26.°, n.° 1 do R. A. C.

O local da celebração do casamento vem previsto no art. 33.° do Código de Família e no art.
24.° do R. A. C.. Em princípio, ele deve ser realizado em local condigno que permita que o ato
se desenrole com a dignidade que a sua importância social requer.

Poderá ser em salas próprias para o efeito das Conservatórias, nas sedes do governo local, ou
em instituições culturais e recreativas legalmente reconhecidas. É também permitido que o
casamento se realize em residências, desde que tal seja autorizado pelo órgão do Registo Civil
— n.° 2 do art. 33.°.

Também vem previsto no n.° 3 deste artigo que, nos meios rurais, sejam adotadas formas de
celebração adaptadas aos condicionalismos locais, pelo que, nesse caso, a cerimónia poderá
ter lugar no local de reunião da população (um «jango», uma árvore majestosa, etc.),

c) Forma pública e solene

O formalismo a ser usado no decorrer da cerimónia vem estabelecido no já citado art. 26.° do
R. A. C., o qual estipula as diversas fases do ato, que obrigatoriamente tem que decorrer de
forma pública.

Com efeito, além de ser um ato solene, o casamento é um ato públicoy como expressa o já
citado art. 32.°, n.° 1, o que significa que o público deve ser admitido livremente no local.

As portas da sala do edifício onde ele se celebre, seja a repartição do Registo Civil, seja uma
residência ou outro local, têm que se conservar abertas, para permitir que, até ao momento da
celebração, quem assim o pretender possa vir dizer algo sobre a existência de impedimentos à
realização do casamento. O público deve ter livremente acesso ao local da celebração do
casamento, o que exclui a possibilidade de qualquer forma de casamento secreto.

As diferentes fases da celebração do casamento consistem essencialmente no seguinte:

a) a leitura das peças que instruíram o processo preliminar;

b) a prestação de autorização, no caso de casamento de menores, quando ainda não


tenha sido prestada, ou da declaração de oposição, por quem tiver que a prestar;

c) a interpelação aos presentes sobre se alguém tem conhecimento de algum


impedimento que obste à realização do casamento, o que, a acontecer, levará à suspensão da
celebração do ato;

d) se tal não ocorrer, serão então interpelados os nubentes sobre se aceitam o outro
nubente por consorte;

e) cada um dos interpelados deverá expressamente proferir a frase legal: «É da minha


livre vontade casar com <F> », indicando o nome completo do outro nubente.

Uma vez prestado o consentimento pelos nubentes, o funcionário do Registo Civil declarará,
em nome da República de Angola, os nubentes — identificados pelos nomes completos —
unidos pelo casamento.

Ao apreciarmos a natureza jurídica do ato do casamento já analisámos a questão respeitante


ao momento em que se deve dar como celebrado o ato do casamento. Se aquele em que os
nubentes expressam formalmente o seu consentimento ou aquele em que o funcionário
proclama a sua união. Entendemos que a declaração do funcionário é indispensável à eficácia
jurídica da declaração dos nubentes, porque é ele que declara os nubentes unidos pelo
casamento.

d) Declarações facultativas

Efetuada a celebração do casamento e recebida a declaração dos nubentes pelo Conservador


do Registo Civil, há duas declarações de natureza facultativa que podem ser feitas ato contínuo
e que são respetivamente:

— declaração sobre a adoção do nome, que vem prevista no art. 36.°, n.° 1, do Código de
Família. E que, como veremos, pode ser a adoção do apelido do outro ou de um nome comum
de família.

— declaração a confirmar a sua opção pelo regime de separação de bens, se for esse o regime
que quiserem que vigore no seu casamento — art. 49.°, n.° 2 do Código de Família.

De relevância prática é ainda o que consta do art. 164.° do Código de Família, que prevê a
existência de filhos comuns dos nubentes cuja declaração de filiação não tenha sido ainda
efetuada.
Como adiante veremos, este preceito visa a efetiva proteção do interesse dos filhos nascidos
ou concebidos antes do casamento, prevendo que os progenitores efetuem a declaração de
filiação logo que celebrado o ato de casamento, ficando a cargo do Conservador do Registo
Civil fazer o respetivo averbamento ao assento de nascimento, se tal for o caso, sendo tal
averbamento de natureza oficiosa.

[69] Casamento urgente

A lei permite que, em certos casos de natureza excecional, o casamento se celebre sem o
formalismo normalmente exigido para o ato.

Segundo o Código Civil, os casos excecionais em que isso podia acontecer eram os dos
casamentos in articulo mortis, ou seja, o de perigo de morte próxima de algum dos nubentes
ou a iminência de parto — art. 1622.°.

Hoje, o casamento urgente vem previsto no artigo 37.° do Código de Família, que prevê tal
forma excecional de celebração de casamento quando:

a) haja fundado receio de morte próxima de algum dos nubentes, ainda que derivada de
circunstâncias externas;

b) haja iminência de parto.

O receio de morte próxima pode advir do facto de um dos nubentes se encontrar em perigo de
vida ou de facto externo à pessoa dos nubentes que faça recear pelas suas vidas, como seja a
situação de guerra, a de perigo de epidemia ou catástrofe natural, etc..

Todas estas situações relacionadas com qualquer dos nubentes ou resultantes de


circunstâncias externas objetivas podem justificar a celebração urgente do casamento. Neste
caso, pode não ter havido processo preliminar c o funcionário do Registo Civil ser chamado a
celebrar a cerimónia ou pode até acontecer que o funcionário não esteja presente e o
casamento seja celebrado na sua ausência.

Não obstante, o casamento urgente tem de obedecer a determinado forma¬lismo que vem
expresso no art. 27.° do R. A.C..

O art. 28.° do R. A. C. manda proceder ao assento provisório do casamento urgente. O n.° 2


deste art. 28.° refere-se ao casamento urgente que tenha sido celebrado em campanha ou em
viagem por mar ou a bordo de navio ancorado.

Posteriormente, terá que ser organizado o processo de averiguação da capacidade


matrimonial dos nubentes, pois esta é condição essencial à validade do casamento. O ato do
casamento urgente só é validado quando o funcionário do Registo Civil proferir o despacho de
homologação.

A homologação pode ser recusada quando se não verifiquem os requisitos legais, não tenham
sido observadas as formalidades legais ou exista algum impedimento dirimente — art. 31.° do
R. A.C..

O casamento urgente que não for homologado é considerado juridicamente inexistente.


[70] O registo do casamento: registo por inscrição e registo por transcrição

Terminado o ato solene da celebração do registo civil, deve realizar-se o ato instrumentário
que consiste em lavrar o assento do casamento — art. 40.° do Código de Família e art. 38.° do
R. A. C.

Ele é redigido pelo funcionário do Registo Civil e deve ser assinado pelos nubentes, pelas
testemunhas e pelo funcionário do Registo Civil. Se algum dos nubentes for menor, deverá
ainda assinar a pessoa que tenha autorizado o casamento — art. 39.° do R. A. C.

O registo do casamento é de natureza obrigatória (art. 38.°, n.° 1 do Código de Família) e


constitui meio de prova privilegiado do estado conjugal.

O registo tem efeitos retroativos à data da celebração do casamento, o que tem especial
relevância nos casos em que o registo só venha a efetuar-se depois do casamento.

É pelo registo que se prova a realização do casamento e se demonstra erga omnes a situação
jurídica do estado de casado, situação que, sem ele, não pode ser invocada nem inter-partes,
nem perante terceiros.

Pode excecionalmente ocorrer a perda do registo, quando, por hipótese, tenha havido a
destruição do livro de registo onde ele foi lavrado, quando o funcionário o tiver indevidamente
lavrado numa folha volante que tenha perdido, etc..

Mas pode dar-se o caso de o ato não ter sido lavrado por má-fé do próprio funcionário do
Registo ou por causa de força maior. Estaremos então perante a falta de registo, situação que
é diferente da do seu desaparecimento posterior.

Pode acontecer que os cônjuges vivam na convição da existência do registo e na posse do


estado de casados e só muito tarde se venham a dar conta de que o registo do ato não existe
ou foi destruído. O art. 41.° do Código de Família prevê a forma de suprir quer a falta quer o
desaparecimento do registo. Tal pode até acontecer após a morte de um ou de ambos os
cônjuges e serem os filhos a verificar a inexistência ou a perda do registo. A lei prevê o
reconhecimento judicial do casamento no caso de falta de registo e o suprimento do registo
desaparecido, nos termos previstos no Código do Registo Civil.

Os efeitos destes procedimentos serão efeitos retroativos à data da celebração do casamento.


Esses efeitos, porém, podem não se produzir em relação a terceiros, como tem entendido a
jurisprudência.

O registo do casamento pode revestir-se de duas formas: o registo por inscrição e o registo por
transcrição.

O art. 39.° do Código de Família distingue entre o casamento registado por inscrição e o
casamento registado por transcrição.

O casamento lavrado por inscrição é aquele cujo assento é lavrado logo após a celebração do
casamento (art. 40.° do Código de Família) o que ocorre:
a) nos casos de celebração do casamento perante o funcionário do Registo Civil, ou seja,
de casamento celebrado em Angola;

b) nos casos de celebração do casamento perante agente diplomático ou consular


angolano, ou seja, de casamento celebrado no estrangeiro.

O art. 38.° do R.A.C. menciona a forma do registo do casamento celebrado pelo Conservador
do Registo Civil, dizendo que ele é lavrado e assinado logo após o ato solene. O casamento
celebrado perante o agente diplomático ou consular angolano vem previsto nos arts. 32.° e
seguintes do R. A.C.. Os agentes diplomáticos e consulares angolanos no estrangeiro que
celebrarem o casamento devem inscrevê-lo no livro próprio (art. 44.°) c remeter o duplicado à
Conservatória dos Registos Centrais (art. 46.°).

O casamento é registado por transcrição quando é reconhecida eficácia jurídica a um


casamento que não foi celebrado perante os órgãos do Registo Civil.

O art. 41.° prevê os casos em que o registo de casamento é lavrado por transcrição:

a) O casamento urgente que for homologado;

b) O casamento de angolanos no estrangeiro, fora da representação diplomá¬tica


angolana;

c) O assento mandado lavrar por decisão judicial, no caso de omissão do

respetivo assento;

d) O casamento canónico que tenha validade civil por ser anterior à vigência da Lei n.°
11/85;

e) A transcrição de um assento de casamento de uma repartição de Registo Civil ou


representação diplomática.

O casamento de cidadão angolano celebrado em Angola, quer com cidadão nacional quer com
estrangeiro, pode ser celebrado pela forma e nos termos previstos no art. 35.° do R. A. C..

Os cidadãos estrangeiros podem livremente celebrar casamento perante as suas


representações diplomáticas ou consulares, desde que igual competência seja reconhecida aos
agentes diplomáticos e consulares angolanos (art. 36.° do

R.A.C.).

CAPÍTULO I2.°

NULIDADE DO CASAMENTO
[71 ] Graus de invalidade

Depois de terem sido estudados os elementos constitutivos do ato do casamento no que diz
respeito ao fundo e à forma, é mais fácil compreender quando o vínculo matrimonial contraído
com a violação de qualquer dos preceitos previstos na lei se pode considerar eivado de vício.

Atendendo a que o vício que afeta o casamento pode ser mais ou menos grave, a doutrina
tem-se inclinado no sentido de distinguir entre casamento inexistente, casamento nulo e
casamento anulável.

a) Inexistência do casamento

Já estudámos os pressupostos da existência do casamento, pelo que podemos definir como


casamento inexistente todo aquele a que faltar qualquer dos pressupostos atrás enunciados. É
juridicamente inexistente o casamento que foi celebrado entre pessoas do mesmo sexo,
aquele que foi celebrado por pessoa que não tinha poderes funcionais para tal (ou seja, o
casamento «farsa») ou aquele em que faltou a declaração de vontade de um ou de ambos os
nubentes.

A doutrina considera como inexistente o matrimónio em que faltam os elementos essenciais


requeridos para a identificação da fattispecie negociai do casamento.

Sabemos já que o Código de Família não consagra nenhuma disposição que se refira
diretamente à questão da inexistência do casamento. Mas, através das suas normas
imperativas, podemos concluir sobre o que, do ponto de vista da lei, é essencial à estrutura do
casamento.

O conceito de casamento consta do art. 20.° do Código de Família, que o define como a união
entre um homem e uma mulher e agora do texto da Constituição, art. 35.°, n.° 1.

O que significa que só uma união entre pessoas de sexo diferente pode ser considerada como
casamento. A diversidade de sexo pode ser patente ou encoberta, mas a sua ausência é, em
qualquer caso, causa de inexistência do casamento.

De igual modo, os arts. 34.° e 35.° do Código impõem como essencial a intervenção dos dois
nubentes e a sua manifestação de vontade no ato de casamento, bem como a intervenção do
funcionário do Registo Civil, o que claramente nos indica que se trata de elementos sem os
quais o casamento não chega sequer a ter existência jurídica.

A manifestação de vontade tem que ser expressa, tem que se dirigir ao outro nubente e tem
que ser produzida perante a autoridade pública com competência para o ato.

Este entendimento é corroborado à luz do conteúdo das disposições referentes à


anulabilidade do casamento — Capítulo IV do Título III do Código, art. 65.° e alíneas a), b) e c)
—, que indicam os casos em que o casamento pode ser anulado e nada dizem quanto à
inexistência do casamento.

Ora se tal acontece é porque o casamento não chegou a ser introduzido na ordem jurídica.
Como vimos, a doutrina inclui entre os casamentos inexistentes o casamento urgente não
homologado. Cremos que esta espécie de casamento inexistente pode ser abrangida pela
previsão que se refere aos casos de inexistência por falta da intervenção do funcionário do
Registo Civil no próprio ato do casamento ou a posteriori, reconhecendo por despacho a sua
validade.

O facto de o casamento inexistente não produzir qualquer efeito civil e de a sua inexistência
poder ser invocada em qualquer tempo e por qualquer via tem inegável efeito prático quanto
à distinção entre esta figura jurídica e a que se reporta ao casamento ferido de nulidade.

A falta de qualquer dos elementos que a lei reputa como essenciais leva a que o casamento
seja considerado juridicamente inexistente, não sendo em regra necessário que se declare a
sua inexistência.

«Quando há inexistência, o ato, como nada é, não produz consequência jurídica alguma e o
juiz tem um papel meramente passivo e secundário na sua apreciação. Apenas verifica a
inexistência como verifica qualquer outro facto cuja verificação lhe seja pedida. Pelo contrário,
se o facto chegou a ter existência jurídica, o juiz, para lhe não atribuir o efeito que
normalmente devesse produzir, terá que atuar de forma ativa e principal, pronunciando a
nulidade. Verificar a existência epronunciara nulidade.>>w

0> Pires de Lima, 0 Casamento Putativo, p. 130.

b) Nulidade do casamento

Quando o vício é a nulidade a situação jurídica do ato do casamento é inteiramente diferente,


pois o ato existe mas foi contraído com violação das regras estabelecidas, quer quanto à
capacidade matrimonial dos nubentes, quer quanto ao mútuo consentimento, quer quanto à
forma prescrita na lei.

Quando se verifique vício que possa ser causa de anulabilidade do casamento, o vício de
nulidade terá que ser declarado em ação judicial de natureza impugnativa proposta
expressamente para esse efeito. O art. 6é.° ressalva que, sem ser declarada a nulidade do
casamento, ela não é invocável para nenhum efeito e de nenhuma forma e que, antes de ser
anulado, o casamento produz os efeitos do casamento formal constante do registo.

A diferença entre o casamento inexistente e o casamento ferido de nulidade reside cm que o


primeiro nem tão pouco existe como tal e não produz qualquer efeito. No segundo caso, tem
que ser o juiz a pronunciar-se sobre a nulidade em ação própria e a determinar os efeitos que
ele produziu de acordo com as circunstâncias concretas de cada caso. Embora o Código de
Família não se refira à inexistência do casamento, o certo é que, em qualquer das hipóteses
apontadas, a lei não lhes reconhece qualquer efeito jurídico, ao passo que o casamento nulo
ou anulável pode produzir efeitos, sendo-lhe até aplicável a fattispecie do casamento putativo,
em certos casos.

A despeito da lei se referir tão somente à anulabilidade do casamento, a doutrina distingue,


consoante os vícios de que enferma o ato, entre a nulidade absoluta e a nulidade relativa ou
mera anulabilidade.
Estariam feridos de nulidade absoluta os casamentos celebrados com violação de
impedimentos dirimentes (absolutos ou relativos) e estariam feridos de mera anulabilidade os
casamentos celebrados com violação de disposição meramente proibitiva ou com falta ou vício
de vontade.

A nulidade absoluta seria invocável não só por qualquer dos cônjuges mas ainda por terceira
pessoa cujo interesse em obter a anulação esteja protegido por lei e também pelo Ministério
Público, porque com tal casamento foi violado um princípio de ordem pública.

Já na nulidade relativa só certas pessoas, os próprios cônjuges e os representantes do menor


ou do interdito, poderão vir pedir a declaração de nulidade.

Além de que, nestes casos, o casamento, mesmo ferido de nulidade, pode ser validado.

São, pois, critérios de uma mais larga ou mais restrita legitimidade para a propositura da ação
de anulação ou de uma maior ou menor dilatação do prazo fixado na lei para a ação de
anulação ser proposta, que nos servirão de indicadores para determinarmos se estamos
perante uma nulidade absoluta ou uma nulidade meramente relativa.

O Código Civil fazia somente distinção entre a inexistência jurídica e a anulabilidade, não
reconhecendo a figura da nulidade absoluta.

Já no direito canónico se reconhece a anulação do casamento cuja sanção do reconhecimento


do vício pode ser aplicada aos casamentos católicos que tivessem produzido efeitos civis
segundo o Código Civil. Daí que, neste Código, haja diversas disposições referentes a
casamentos «declarados nulos» ou «anulados».

No Código de Família fala-se igualmente de anulabilidade do casamento e de casamento


anulável, não havendo qualquer menção a casamento nulo.

Podemos indicar como casamentos nulos os que contenham vício de incesto, bigamia e
conjungicídio. E ainda os que, embora possam ser suscetíveis de validação, contenham os
vícios de impuberdade e de demência.

[72] Regime de nulidade

Discute-se na doutrina se a sentença que decreta a nulidade tem natureza meramente


declarativa ou se tem natureza constitutiva de direitos. Em nosso entender, a resposta não
pode ser uniforme, pois a figura do casamento putativo (art. 71.° do Código de Família) faz
com que, nesse caso, a sentença, muito embora anulando o casamento, vá ser constitutiva de
direitos, reconhecendo aqueles que se produziram durante o período da sua anterior vigência,
ou seja, durante determinado lapso de tempo, ao passo que, quando a sentença vai destruir
retroativamente todos os efeitos produzidos desde o início do casamento anulado,
entendemos que ela tem natureza meramente declarativa.

Importante, porém, é ter em conta que, uma vez decretada a anulação do casamento, em
razão de causa mais grave ou menos grave, o casamento como tal deixa de existir na ordem
jurídica.
Consequentemente, os efeitos que produz a nulidade do casamento são os mesmos,
independentemente de se tratar de nulidade relativa ou de nulidade absoluta.

Importa igualmente ter em atenção que não são aplicáveis à nulidade do casamento os
princípios gerais estabelecidos relativamente à nulidade dos negócios jurídicos em geral (arts.
285.° e ss. do Código Civil), uma vez que impera o princípio dofavor matrimonii, que procura,
tanto quanto possível, salvaguardar a validade do ato.

Caso não venha a ser declarada a nulidade do casamento, este, como é óbvio, produz todos os
efeitos. Mesmo que seja anulado, ele pode, como já vimos, produzir efeitos, o que contraria as
regras gerais dos efeitos da anulação que vêm previstas para os demais negócios jurídicos.

Os casos de anulabilidade do casamento vêm previstos na alínea a) do art. 65.° e abrangem os


que violem o disposto nos arts. 24.°, 25.° e 26.°, todos do Código de Família, e ainda os
mencionados nas alíneas b) e c) do art. 65.°, que se referem à falta de vontade ou ao vício de
vontade, à finalidade que se teve em vista ao praticar o ato e à inobservância da formalidade
da alínea c) do art. 34.°.

A — Falta de capacidade matrimonial

1. Falta de idade núbil

O art. 24.° fixa a idade núbil aos 18 anos, mas, excecionalmente, permite o casa¬mento do
homem com 16 anos e da mulher com 15 anos. No caso de se tratar de menor púbere, o
casamento só pode ser celebrado mediante autorização dos pais, dos tutores ou de quem
tenha o menor a seu cargo, podendo ainda ser suprida judicialmente a falta de autorização.

O casamento do menor não núbil estará em princípio ferido de nulidade absoluta.

2. Demência

A alínea a) do art. 25.° dispõe que os dementes estão em absoluto proibidos de casar. Esta
proibição é extensiva não só aos interditos em razão de enfermidade mental mas também
àqueles dementes que, sendo-o à data do casamento, só posteriormente venham a ser
declarados como tal, e ainda aos que forem notoria¬mente dementes à data da celebração do
casamento, embora não íbrmalmente interditos.

3. Bigamia

Consiste na violação à norma contida na alínea b) do art. 25.°, que contém um princípio de
ordem pública. Ocorre quando alguém é casado e vai contrair novo casamento antes de
dissolvido o anterior, facto que acarreta para o segundo casamento o vício de nulidade
absoluta. O primeiro casamento é válido e eficaz na ordem jurídica, enquanto o segundo está
ferido de nulidade. Não é permitida a coexistência de dois vínculos matrimoniais que
comprometam a mesma pessoa.

Por outro lado, a união de facto que for reconhecida por mútuo acordo produz efeitos
retroativos desde a data do início da união, se ela estiver em conformidade com a lei, o que
implica, como veremos, que ambos os companheiros tenham capacidade matrimonial. Ora,
desde que se opere o reconhecimento, ele vai

precisamente produzir os mesmos efeitos do casamento, de acordo com o que

dispõe o art. 119.° do Código de Família.

4. Incesto

O casamento incestuoso vem interdito nas disposições das alíneas a) e b) do art. 26.°, que
consagram também um princípio de ordem pública. O incesto abrange os ascendentes naturais
ou adotivos, os afins na linha reta, bem como os irmãos naturais ou adotivos, sendo que este
vício vai ferir o casamento de nulidade absoluta.

5. Conjugicídio

Vem estatuído na alínea c) do art. 26.°, o qual se refere à autoria ou cumplicidade de um dos
nubentes em crime de homicídio doloso contra o cônjuge do outro nubente.

O vício surge desde que haja pronúncia com trânsito em julgado ou decisão final condenatória.
Trata-se igualmente de nulidade absoluta. Entende a doutrina que este impedimento
(designado como impedimentum criminis) deve dar-se como verificado mesmo que a
condenação seja posterior ao casamento, desde que o delito tenha sido cometido antes da
celebração do casamento. Mas ele não abrange as formas de homicídio preterintencional ou
meramente culposo.

6. Falta ou vício de vontade

Na alínea b) do art. 65.° vêm mencionados os seguintes vícios, que se referem ao elemento de
fundo do ato do casamento, o mútuo consentimento. São eles:

a) a falta de vontade;

b) o vício da vontade;

c) a celebração do casamento com finalidade diversa da prevista na lei.

Ao analisarmos os elementos essenciais do ato do casamento vimos que um deles é o mútuo


consentimento, o que simultaneamente impõe que haja uma declaração de vontade por parte
de cada um dos nubentes e que essa declaração esteja isenta de vícios. É essa uma das razões
que determina a proibição do casamento por quem seja demente, uma vez que não há, por
parte do demente, consciência e vontade lúcidas que lhe permitam abarcar o conteúdo e os
efeitos legais do ato do casamento.

Torna-se necessário adaptar a teoria geral dos vícios da vontade à natureza específica do
instituto do casamento dentro dos princípios do direito de família.

a) Falta de vontade

Diz-se que existe falta de vontade no caso de incapacidade acidental do nubente, por privação
da vontade de caráter temporário. É o que pode ocorrer no caso de o nubente se encontrar
em estado de embriaguez completa, no estado de drogado, no estado de hipnotizado, ou em
estado de sonambulismo. Situações dessas, embora pouco verosímeis, podem porventura
escapar à observação do Conservador do Registo Civil ou verificar-se na celebração do
casamento urgente. Mais verosímil pode ser o caso em que um tóxico-dependente vá celebrar
o ato do casamento em estado de parcial incapacidade e sem a plena consciência do ato que
pratica.

b) Vício da vontade

A patologia do consentimento dá-se ainda quando se verifica o vício da vontade, porque neste
caso a vontade existe, foi expressa a declaração, mas ela estava viciada na sua formação ou na
sua liberdade de expressão, prevalecendo ou o erro ou a violência quando ela foi expressa.
Também aqui os vícios da vontade no casamento diferem substancialmente dos vícios
suscetíveis de invalidar os negócios jurídicos em geral.

No Código Civil estipulava-se que, uma vez emitida a declaração de vontade, existia a
presunção legal de que ela era válida e isenta de vícios e, portanto, quem alegasse o vício tinha
sobre si o ónus da prova da sua existência. Cremos que este princípio se mantém válido.

Os vícios da vontade que podem ser considerados como relevantes em matéria que afeta o
mútuo consentimento no casamento são fundamentalmente o erro e

a coação.

O erro pode incidir sobre a identidadefísica do outro nubente ou sobre as suas qualidades
essenciais e pode incidir sobre aspetos de natureza física ou de natureza moral. O erro tem
que se traduzir numa falsa representação da realidade, seja ela referente à identidade
propriamente dita do outro nubente ou a qualidades consideradas essenciais ao
desenvolvimento normal da vida conjugal ou ainda ao comportamento moral do outro.

Como relevantes no erro que envolve a situação física do outro nubente, podemos apontar
doenças físicas como a epilepsia, o sida, as doenças venéreas, a esclerose em placas, e doenças
psíquicas como a paranóia, a esquizofrenia, o alcoolismo, a toxicodependência, ou anomalias
sexuais como a impotência, a homossexualidade e as que sejam de caráter permanente e
irreversível. A impotência pode ser a impotência coendi, que impede a prática de relações
sexuais, ou impotência generandiy quando tão só impede a procriação.

A gravidez de mulher casada por facto de terceiro c oculta ao outro nubente, desde que não
seja manifestamente aparente no momento da celebração do ato do casamento, constitui erro
relevante suscetível de viciar a vontade do noivo.

O erro sobre as qualidades morais do outro nubente tem que ser igualmente de natureza
essencial e manifestamente incompatível com o comportamento moral desse nubente. Pode
consistir no facto de o outro nubente ter sofrido condenação penal em pena maior e ter
ocultado o facto, ou ter-se dedicado a práticas ilícitas ou desonrosas, como a prostituição, o
tráfico de droga, etc..
Para ser relevante, o erro tem que ser essencial, isto é, tem que incidir sobre qualidades
essenciais do outro nubente ou sobre a identidade da própria pessoa. Isto pode acontecer
quando alguém falsamente se intitula com determinada identidade civil e casa sob falso nome.

Mas o erro tem também que ser desculpável, o que implica dizer que o cônjuge cuja vontade
foi viciada não deve ter sido negligente em se inteirar da verdade e aperceber-se da realidade.
A ignorância das circunstâncias que configuram o vício de vontade tem que ser desculpável e
não fruto de negligência de quem o invoca.

A coação física não é muito de admitir na celebração do casamento, embora seja admissível no
casamento urgente. Já a coação moral ou a violência é mais admissível. Para que a coação se
verifique, porém, é necessário que exista uma ameaça com cominação de dano, uma ameaça
usada intencionalmente pelo autor para forçar a vontade do nubente e o levar à celebração do
casamento.

A coação moral (violência) pode concretizar-se por pressões, situações de guerra, perseguições
políticas, etc., devendo revestir a forma de ameaça efetiva da prática de um facto ilícito, seja
sobre a pessoa do próprio nubente seja sobre terceira pessoa.

O art. 1638.° do Código Civil estipulava: «É anulável o casamento celebrado sob coação moral
contanto que seja grave o mal com que o nubente é ilicitamente ameaçado e justificado o
receio da sua consumação.» A coação moral vem prevista no art. 255.°, n.°s 1 e 2 do Código
Civil.

Dela está excluído tanto o exercício normal de um direito bem como o temor reverenciai (n.°
3). Por conseguinte, o simples temor reverenciai que consista no acatamento da vontade dos
pais ou de outros parentes mais velhos, não é suscetível de ser relevante como gerador de
vício de consentimento.

Já o dolo não é admitido como vício atendível, pois, segundo o velho provérbio, acontece em
regra que « no casamento engana quem pode ». Faz parte da natureza humana a necessidade
de cada um dos nubentes se apresentar perante o outro nubente revestido de mais qualidades
e atributos do que aqueles de que realmentc é dotado. Irrelevante é também, por si só, a
reserva mental.

7. Simulação

O vício da simulação opera-se quando os nubentes estabelecem entre si um pacto simulatório


que os leva a celebrar o casamento como um verdadeiro simulacro de cerimónia, tendo ambos
acordado entre si que não querem estabelecer reciprocamente uma verdadeira vida conjugal.
Desta sorte, externamente mostram querer casar, mas a vontade oculta de ambos coincide em
não quererem viver nem considerar-se como verdadeiros cônjuges.

O fim em vista pode ser o de obter algum benefício através do casamento, como a mudança
de nacionalidade, o da evasão fiscal, o direito a uma pensão da segurança social, o direito à
transmissão do direito ao arrendamento. Mas estes objetivos não cabem na finalidade do
casamento, imposta imperativamente na lei (art. 20.°): a de estabelecer uma plena comunhão
de vida. No casamento simulado há absoluta ausência da convivência conjugal.
No Código de Família os vícios de vontade não vêm especificados, sendo que o art. 68.°
explicita, a propósito da legitimidade para a propositura da ação de anulação, que ela pode ser
proposta pelo cônjuge cuja vontade faltou, ou que foi vítima de erro ou coação.

O vício da simulação vem referido na alínea b) do art. 65.°, na sua parte final, quando se refere
ao casamento celebrado com «finalidade diversa da prevista na presente lei» e ainda no art.
68.°, quando menciona quem tem legitimidade para a propositura da ação de anulação no
caso de simulação.

8. Casamento celebrado sem testemunhas

Vem inserido na previsão da alínea c) do art. 34.° do Código de Família. Como vimos, a falta de
testemunhas, embora não possa ser causa de inexistência jurídica do casamento, pode ser
causa de nulidade. Já mencionámos o importante papel que as testemunhas desempenham na
celebração do casamento, mormente para atestarem que o ato se efetivou em determinado
local e em determinada data. O casamento sem testemunhas pode ser equiparado a um
casamento clandestino.

Trata-se de um vício de forma a que a lei dá relevância como potencial gerador da nulidade do
casamento. Diferentemente, outras irregularidades verificadas no processo do casamento,
quer no processo preliminar, quer na cerimónia da celebração do ato em si, embora possam
ser objeto de procedimento disciplinar contra o funcionário do Registo Civil que as praticou,
não põem em causa a validade do ato.

[73] Legitimidade e prazos para a propositura da ação de anulação

A — Legitimidade

A legitimidade para a propositura da ação de anulação do casamento é circunscrita na lei a


certa pessoa a quem é reconhecido um interesse juridicamente relevante para lhe ser
permitido ir obter o efeito legal da anulação do casamento.

Nos casos em que se entende que houve violação de um princípio considerado de ordem
pública, permite-se sempre que o próprio Estado, através do seu representante, o Ministério
Público, venha propor a ação de anulação. De resto, as restrições à legitimidade para a
propositura da ação são baseadas no princípio de que se deve defender a estabilidade do
casamento. Daí que as normas que atribuem legitimidade para vir a juízo sejam de natureza
expressa e restrita e não suscetíveis de interpretação por analogia. Trata-se duma faculdade
legal renunciável e de um direito indisponível.

1. Ação de anulação por incapacidade matrimonial

a) Legitimidade nos casos da alínea a) do art. 65.°, quando a ação seja baseada na falta de
idade núbil e em demência, de acordo com o disposto no art. 67.°, alíneas

a) , b),d)ee):

— Qualquer dos cônjuges;


— Os pais, adotantes, ou a pessoa que, no caso concreto, devia ter dado a autorização
para o casamento prevista no art. 24.°, n.° 3;

— O Ministério Público;

— Outra pessoa cujo interesse na anulação seja juridicamente protegido, como um


herdeiro legítimo de um dos cônjuges.

A legitimidade por quem não seja cônjuge cessa quando o menor atinge a maioridade ou
quando cessa a interdição por demência — art. 70.°, n.° 1, alínea a).

b) Legitimidade no caso da alínea a) do art. 65.°, quando a ação seja baseada na


existência de incesto, de acordo com o disposto no art. 67.°, alíneas a), b) e c):

— Qualquer dos cônjuges, mesmo o cônjuge conhecedor do vício;

— O Ministério Público;

— Outra pessoa cujo interesse na ação seja juridicamente protegido. O interesse pode ser
de ordem moral, com o objetivo de pôr fim a uma situação escandalosa, de ordem
patrimonial, quando se trate de defender

interesses sucessórios ou outros.

c) Legitimidade no caso de bigamia ou conjugicídio, em que vigoram os mesmos


princípios previstos na ação anterior, alíneas a), b), c) e e) do art. 65.°:

— Qualquer dos cônjuges, mesmo o cônjuge culpado;

— O Ministério Público;

— O cônjuge do anterior casamento no caso de bigamia e no de conjugicídio não


consumado e, quando consumado, os herdeiros do cônjuge falecido;

— Outra pessoa cujo interesse seja juridicamente protegido.

2. Ação de anulação por falta ou vício da vontade

No caso de ação de anulação por falta ou vício da vontade só o cônjuge cuja vontade faltou ou
que foi vítima de erro ou coação tem legitimidade para intentar a ação, segundo o estatuído
no art. 68.°, n.° 1, dado que tratando-se de questão do foro próprio e subjetivo do titular do
direito este não é suscetível de ser exercido por terceiros.

Mas a lei faculta que uma vez intentada a ação se o autor falecer na pendência da causa,
possam prosseguir nela os seus parentes na linha reta e os seus herdeiros, última parte do
citado art. 68.°, n.° 1.

3. Ação de anulação por falta de testemunhas

No caso de anulação por falta de testemunhas que devam estar presentes à celebração do
casamento, como vem referido na alínea c) do art. 34.°, a ação só pode ser intentada pelo
Ministério Público, em conformidade com o que preceitua o art. 69.°, e que se refere à falta de
requisitos formais do ato do casamento.

Relativamente a todas as ações atrás mencionadas, há sempre que ter em atenção que, muito
embora eles indiquem de forma expressa quem pode, por sua iniciativa, pôr a ação para obter
a anulação do casamento, no caso de a ação já ter sido proposta, a lei atribui sempre aos
herdeiros do autor legitimidade para prosseguir na ação, a qual não se extingue com a morte
do respetivo interessado. Isto é aplicável quer a ação tenha sido proposta pelo cônjuge quer
por terceiro a quem a lei permita a propositura da ação.

É o que dispõe o corpo do art. 67.°, que menciona quem pode prosseguir na ação e bem assim
o art. 68.°, n.° 1, que permite aos parentes em linha reta e aos seus herdeiros prosseguir na
ação se o autor falecer na pendência da causa.

B — Prazos da propositura da ação

A ação de anulação está sujeita a prazo, o que é também revelador de que a lei procura
salvaguardar, tanto quanto possível, a estabilidade do casamento, mesmo quando ferido de
nulidade. Na verdade, uma vez precludido o prazo legal, já a ação não pode ser proposta e o
casamento, embora tenha sido suscetível de ser

anulado, a partir de então deixou de o ser.

Os prazos, como já vimos, são mais dilatados ou mais diminutos consoante a própria natureza
e gravidade do vício de que enferma o ato do casamento. Por outras palavras, conforme é
maior ou menor o interesse do Estado em que o casamento possa ou não vir a ser anulado.

A matéria relativa aos prazos para a propositura da ação de anulação vem regulada no art. 70.°
do Código de Família, que estatui o seguinte:

a) Nos casos de incapacidade por falta de idade núbil, demência ou interdição por
anomalia psíquica:

1. Quando for proposta pelo próprio incapaz, até um ano após ter atingido a maioridade
ou ter sido levantada a interdição;

2. Quando for proposta pelo Ministério Público ou por terceira pessoa, até dois anos
após a celebração do casamento, mas nunca depois de o nubente ter atingido a maioridade,
ser levantada a interdição ou inabilitação ou ter cessado a demência.

b) Nos casos de falta ou vício de vontade, de simulação, de condenação por homicídio


doloso na pessoa do cônjuge do outro, ou de formalidades essenciais, até dois anos após a
celebração do casamento.

c) Nos casos de incesto ou de bigamia, em qualquer tempo, mas nunca depois de dois
anos após a dissolução do casamento. No caso de bigamia a ação de anulação não pode ser
instaurada nem pode prosseguir enquanto estiver pendente a ação de anulação do casamento
anterior.

[74] Validação do casamento


Tendo sempre em vista a salvaguarda da estabilidade da família assente no casamento, a lei
permite que um casamento, apesar de eivado de vício que afeta a sua validade e existente à
data da sua celebração, possa ser sanado por facto confirmativo posterior ou pela anulação de
um ato anterior que obstaculizava a que ele fosse válido. Estamos perante mais uma
derrogação ao regime geral que rege a nulidade absoluta dos atos jurídicos.

Nos casos em que é permitida a validação do casamento (os indicados no art. 73.° do Código
de Família), quando a validação se verifica o casamento ressurge na sua plenitude e passa a ser
considerado válido desde a data da sua celebração.

O ato confirmativo de que vai decorrer a validação do casamento tem, porém, que ocorrer
antes do trânsito em julgado da sentença que venha a decretar a anulação do casamento.

A lei considera sanada a nulidade quando, antes do trânsito em julgado da sentença de


anulação, ocorrer algum dos seguintes factos:

a) ser o casamento do menor não núbil ou do demente, interdito ou inabilitado,


confirmado pelo próprio interessado perante o funcionário do Registo Civil e duas
testemunhas, depois de ter atingido a maioridade, de ter sido levantada a interdição ou de ter
sido judicialmente verificada a sua sanidade mental;

b) ser anulado o primeiro casamento do bígamo;

c) ser a falta de requisitos formais devida a circunstâncias atendíveis, reconhecidas pelo


Ministro da Justiça, desde que não haja dúvidas sobre a celebração do ato.

Em todos estes casos prevê-se que, por virtude de um facto posterior, possa vir a ser sanada a
nulidade do ato do casamento e, por conseguinte, eliminado o vício que se verificava no
momento da sua celebração. Já no caso de impuberdade o facto de ter havido autorização
posterior não convalida o casamento. Também no caso de bigamia o facto de ocorrer
entretanto a morte do cônjuge do anterior casamento não convalida o segundo casamento do
bígamo.

Além do mais, devem ser considerados como validados todos os casamentos que, muito
embora celebrados com vício que os invalide, não venham a ser anulados por quem tenha
legitimidade para o fazer, desde que precludidos os prazos legais para a propositura da
respetiva ação de anulação.

[75] Efeitos da anulação do casamento — O casamento putativo

À anulação do casamento deveriam ser aplicados os efeitos que constam das regras gerais de
nulidade dos negócios jurídicos em geral, ou seja, a sentença de anulação deveria destruir
retroativamente todos os efeitos produzidos desde a data da celebração até à data do trânsito
em julgado da sentença que declare a anulação.

Mas, porque estamos no campo das relações de natureza pessoal e não patrimonial, os efeitos
não são aqueles que produz a anulação dos negócios jurídicos em geral.
Na verdade, o ato do casamento é de tal relevância na vida das pessoas que o celebraram que
a lei, uma vez verificadas determinadas condições, vai proteger o casamento, preservando os
efeitos produzidos durante a sua vigência.

É verdade que, uma vez declarada a anulação do casamento, independentemente da causa


que tenha sido invocada, seja ela mais grave ou menos grave, a produção dos efeitos já não vai
depender da causa que levou à declaração da nulidade mas da questão de ter havido ou não
boa fé por parte de um ou de ambos os cônjuges. Isto quanto ao período anterior à sentença,
pois que, a partir da data do seu trânsito em julgado, o efeito é o mesmo, deixando o
casamento de produzir efeitos a partir de então. A anulação envolve sempre o fim da
produção de efeitos do ato anulado a partir do respetivo trânsito em julgado.

A lei vai atender ao facto de os cônjuges terem agido de boa fé, ou seja, ao facto de, no
momento da celebração, estarem na plena convição de que estavam a celebrar um ato da
maior importância para as suas vidas e de que esse ato era plenamente válido.

Quando se verifique a boa fé de um ou de ambos os cônjuges, a anulação do casamento só vai


produzir efeitos sem eficácia retroativa, isto é, a partir do trânsito em julgado da sentença que
o anulou, salvaguardando, porém, os efeitos anteriormente produzidos entre o período que
tiver decorrido desde a data da celebração até à data da sentença que o anulou.

A lei considera de boa fé o cônjuge que contraiu o casamento no desconhecimento do vício


causador da nulidade — art. 72.°, n.° 1. É necessário que essa ignorância seja desculpável, pois
a negligência no esclarecimento da verdade não é protegida por lei. Também a lei protege o
cônjuge cuja vontade tenha sido extorquida por coação física ou moral.

Ao analisar o que deve entender-se por boa fé em matéria de casamento putativo, Pires de
Lima adianta o seguinte: « a violência e o erro em nada diferem ainda sob este ponto de vista,
pois o que interessa para justificar os efeitos do casamento putativo é a situação material
criada pelo suposto casamento, que em ambos os casos é contrária à vontade dos contraentes
(...)». «O erro, para merecer proteção, deve ser desculpável. Não pode ser protegido aquele
que ignorou culposamente por não ter usado da diligência normal e usual. »(2)

O erro tanto pode ser erro de facto como de direito, que se pode traduzir na ignorância de
uma disposição legal que proibia o casamento.

Tal ignorância não pode ser invocada se o Conservador do Registo Civil tiver cumprido
rigorosamente o disposto no art. 29.°, n.° 1 do Código de Família, que manda que os nubentes
sejam previamente esclarecidos de quais os impedimentos matrimoniais, logo após a
instauração do processo preliminar.

Está de boa fé o cônjuge que ignorava a causa de invalidade ou que foi vítima de violência ou
de temor relevante.

Entretanto, por via do alargamento da proteção dos cônjuges, n.° 3 do art. 72.° consagra a
presunção da boa fé dos cônjuges, devolvendo o ónus da prova a quem vier alegar a má fé na
ação de anulação. Mais: a boa fé tem que verificar-se apenas
Pires de Lima, ob. cit.y p. 180.

no momento da celebração do ato e não carece de prolongar-se até ao período da convivência


matrimonial.

A figura jurídica que permite que o casamento anulado produza efeitos é designada como
casamento putativo.

O casamento putativo foi introduzido desde há séculos nos ordenamentos jurídicos ligados ao
direito canónico, por se entender proteger os cônjuges convictos de que celebraram um ato
válido e da maior importância na sua vida pessoal. As consequências da anulação seriam de tal
maneira graves e injustas que se optou por derrogar as regras do efeito da anulação e se criou
o instituto do casamento putativo.

O termo putativo vem do termo latinoputare que significa «julgar» e que é usado para invocar
a convição dos cônjuges de estarem a celebrar um casamento válido quando, de boa fé, o
celebraram.

No fundo, a boa fé unilateral ou bilateral é a trave mestra do casamento putativo e as razões


em que a lei se fundamenta para o invocar podem considerar-se baseadas no princípio da
equidade, no da proteção da prole inocente, etc..

Discute-se qual a natureza jurídica do casamento putativo. Há quem o considere uma fição e
há quem o considere uma instituição autónoma que produz efeitos pelo facto material da
aparência de um casamento. Reconhece a doutrina que a diversidade de efeitos do casamento
putativo gera uma situação complexa que procura atenuar os efeitos da nulidade do
casamento.

Entendemos que é a teoria da aparência a que melhor se coaduna com a figura do casamento
putativo. Na verdade, o comportamento pessoal e social dos cônjuges, procedendo como se
casados fossem, a despeito do vício do ato, leva a que se lhe não possam aplicar na íntegra os
efeitos que derivariam da anulação do casamento. No fundo, reconhece-se que havia um
matrimónio « aparentemente» válido. Mas é preciso ter em conta que o instituto do
casamento putativo só é aplicável se se verificar, como pressuposto indispensável, a existência
de um matrimónio aparente, que formalmente o distinga de outra qualquer união e desde que
tenha existido também a intenção de facto de contrair casamento.(3)

Entende-se que o instituto do casamento putativo só é aplicável desde que se verifiquem os


seguintes pressupostos:

— que exista um casamento;

— que o casamento venha a ser declarado nulo;

— que exista o elemento subjetivo da boa fé por parte de ambos ou de um dos nubentes.

(J) Juan Jordano Barea, «Matrimonio Putativo como Aparência Jurídica Matrimonial»,

em Anuário deDerecho Civil, tomo XIV, fase. II, p. 248.


1. Efeitos em relação aos cônjuges

a) Efeitos em relação ao cônjuge ou cônjuges de boa fé

Se ambos os cônjuges estavam de boa fé o casamento produz efeitos até ao trânsito em


julgado da sentença que declara a sua anulação, ou seja, ex-nunc, e os efeitos produzidos
antes são salvaguardados quer em relação aos próprios cônjuges quer em relação a terceiros
— art. 71.°, n.° 1.

O mesmo ocorre quando um só dos cônjuges estava de boa fé, pois ele pode arrogar-se a
produção dos benefícios do casamento perante o outro pseudo ex-cônjuge e perante terceiros
— art. 71.°, n.° 2.

Desta sorte, o instituto do casamento putativo significa que o casamento anulado vai produzir,
até ao momento da sua anulação, ou seja, em relação ao passado, os mesmos efeitos que teria
produzido um casamento válido, cessando os seus efeitos a partir da anulação.

Assim, os pseudo-cônjuges passam ao estado civil anterior, que pode ser o estado de solteiro,
se esse fosse o estado civil que tinham à data da celebração do casamento, ou ao estado de
viúvo ou divorciado.

Cessa o direito ao uso do nome e cessa igualmente o vínculo da afinidade. Mantém-se o direito
à nacionalidade angolana adquirida pelo casamento, nos termos do art. 12.°, n.° 3 da Lei da
Nacionalidade (Lei n.° 1/2005). Mantém-se também o direito à prestação de alimentos.

Já no que diz respeito aos efeitos patrimoniais que tenham decorrido durante a vigência do
casamento, como sejam as doações entre cônjuges ou feitas por terceiros, elas mantêm-se,
não se operando a caducidade. O mesmo sucede se, durante a vigência do casamento anulado,
o cônjuge tiver sido chamado à sucessão do outro cônjuge, pois o efeito sucessório
permanece. Se a sucessão ocorrer após ter sido proferida a sentença de anulação, o direito
sucessório desaparece. Procede-se à liquidação dos interesses patrimoniais de acordo com o
regime de bens que tiver sido adotado.

Se o cônjuge tiver sido emancipado pelo casamento, a emancipação permanece.

b) Efeitos em relação ao cônjuge ou cônjuges de má fé

Em relação ao cônjuge ou cônjuges de má fé o casamento anulado não produz efeitos, pois


não pode ser invocada a figura jurídica do casamento putativo. Consequentemente, não
adquirem o direito a qualquer benefício que lhes tenha advindo da celebração do casamento.
Não se origina a afinidade, perde-se o direito à nacionalidade que tenha sido adquirida, o
direito ao uso do nome, o direito a alimentos e o direito à emancipação.

Nas relações patrimoniais, desaparece retroativamente o regime económico que tiver


vigorado e opera-se a liquidação do património como se de uma sociedade de facto se
tratasse.

O(s) cônjuge(s) de má fé perde(m) o direito às doações que se tenham verificado em razão do


casamento ou durante ele, as quais devem ser consideradas caducas, o mesmo acontecendo a
eventuais direitos sucessórios de que tenham beneficiado, devendo restituir tudo quanto
houverem recebido.

2. Efeitos em relação aos filhos

À luz da legislação anterior à proclamação da República em Portugal, entendia-se que os


efeitos do casamento anulado se repercutiam na situação dos filhos e que, cessando estes
retroativamente, os filhos passavam a ser considerados como «filhos naturais» e não
legítimos, podendo ainda, consoante os casos, ser tidos como filhos adulterinos ou
incestuosos.

Foi a Lei de Família de 25 de dezembro de 1910 que alterou essa situação, declarando sempre
legítimos os filhos nascidos de casamento anulado.

Esta posição foi depois introduzida no Código Civil e veio a ser confirmada de pleno no Código
de Família, ao dispor que a anulação do casamento não prejudica por qualquer forma «os
direitos dos filhos nascidos e concebidos na constância do casamento» (art. 71.°, n.° 3). Daí
que, em relação aos filhos, a declaração de nulidade do casamento seja juridicamente
irrelevante.

Isto vem confirmado pela regra geral contida no art. 163.° do Código de Família, segundo o
qual o estabelecimento da filiação do filho concebido e nascido na constância do casamento
resulta para ambos os pais do facto do nascimento, mesmo que o casamento venha a ser
anulado. dívidas comunicáveis por força da lei, situação em que os bens de ambos os
cônjuges podem ser chamados à responsabilidade pelo pagamento da dívida.

Em relação ao cônjuge de má fé, este já não pode arrogar-se os benefícios do casamento em


relação a terceiros, devendo antes ser considerado responsável pelos prejuízos que possam ter
resultado para terceiros da anulação do casamento.

Convém sublinhar que o instituto da anulação do casamento revestia-se de grande relevância


e fez correr rios de tinta na doutrina que sobre ele se debruçou, nos sistemas jurídicos em que
vigorava a indissolubilidade do casamento canónico.

Hoje em dia, por se terem alargado os fundamentos da dissolução do casa¬mento por


divórcio, as ações de anulação de casamento são em número cada vez menor. Além de que a
experiência mostra que as ações de anulação por falta ou vício de vontade são em regra de
difícil prova, dada a natureza subjetiva subjacente aos factos invocados. Daí que, na prática,
elas sejam substituídas por ações de divórcio em que se invocam factos posteriores ao
casamento de natureza externa e objetiva, cuja prova se toma mais fácil.

Os efeitos da anulação do casamento no caso do casamento putativo, são, aliás, como iremos
ver, idênticos, em muitos aspetos, aos da dissolução do casamento por divórcio.
CAPÍTULO 13.0

EFEITOS PESSOAIS DO CASAMENTO

[76] Princípios reguladores das relações conjugais

A — Igualdade de direitos e deveres

Do casamento como ato jurídico decorre a situação jurídica familiar de caráter duradouro pela
qual os cônjuges adquirem o estatuto jurídico do estado de

casados.

Longa tem sido a evolução do instituto do casamento quanto à questão das relações pessoais
entre marido e mulher, mas neste momento só nos interessa analisar os princípios
consagrados no Código de Família, que são aqueles que representam as novas tendências das
legislações progressistas que começam a preponderar em muitos países do mundo e que
foram consagrados em convenções internacionais e na Constituição angolana.

Postergado que foi o Código Civil e os princípios retrógrados e discriminatórios que consagrava
em relação à mulher, o Código de Família veio proclamar a igualdade do homem e da mulher
em todas as relações jurídicas familiares, mormente nas relações matrimoniais.

A Constituição de 5 de fevereiro de 2010 consagra expressamente esse princípio no seu art.


35.°, n.° 3: « O homem e a mulher são iguais no seio da família da sociedade e do Estadoy
gozando dos mesmos direitos e cabendo-lhe os mesmos deveres.»

Hoje, o princípio da igualdade dos cônjuges na celebração do casamento, durante a sua


vigência e aquando da sua dissolução, constitui a linha mestra em que assenta toda a estrutura
das relações pessoais dos cônjuges.

Já tivemos a ocasião de mencionar este princípio fundamental de matriz constitucional


(consagrado no art. 3.°, n.° 1 do Código de Família e expresso no art. 21.° do Título III) segundo
o qual o casamento se funda na igualdade recíproca dos direitos e deveres dos cônjuges.

Ao Falar em deveres e não em obrigações quis a lei focalizar o aspeto moral subjacente às
condutas estabelecidas na lei.

As relações conjugais são, pois, baseadas em direitos e deveres recíprocos de tal forma que a
cada direito corresponde a assunção de um dever. Tal como as demais relações familiares, são
de natureza solidária e intercorrente. Nas suas relações matrimoniais devem os cônjuges
também obediência ao princípio consagrado no n.° 2 do art. 2.° do Código de Família, nos
termos do qual os membros da família devem contribuir entre si para o seu desenvolvimento
harmonioso, por forma a que cada um possa realizar plenamente a sua personalidade e as
suas aptidões no interesse de toda a sociedade.

O vínculo matrimonial é por sua natureza estável e duradouro: através do casamento, marido
e mulher criam uma nova família, à qual devem dar o melhor de si mesmos.
B — Plena comunhão de vida

O que a relação matrimonial tem de específico é o estabelecimento de uma plena comunhão


de vida entre um homem e uma mulher.

A plena comunhão de vida, embora a lei o não diga expressamente, envolve relações de
caráter físico, afetivo e inteletual entre marido e mulher, o que corresponde à expressão latina
more uxorio.

A palavra cônjuge deriva da palavra latina conjunx ou conjugis, que significa «ligar por meio de
jugo» ou «emparelhar». Quer dizer: em virtude do casamento, marido e mulher passa a estar
«juntos com», ou seja, unidos entre si. No direito antigo considerava-se que vir et uxor
censentur in lege una persona, querendo com isto dizer-se que marido e mulher eram, à face
da lei, considerados como uma só pessoa.

Se, por um lado, é certo que o casamento tem relevância na liberdade dos cônjuges, impondo
restrições que são voluntariamente aceites por eles, e que a família matrimonial, o casal,
constitui sob muitos aspetos uma unidade, também não é menos verdade que os direitos
fundamentais de cada cônjuge são salvaguardados.

Do casamento advêm para os cônjuges efeitos pessoais diretos, em primeiro lugar o do


relacionamento físico, que abrange a convivência sexual comum. Esta obrigação conjugal é
comummente designada como débito conjugal (da expressão latina debitum conjugale).
Considera-se como consumado o casamento em que os cônjuges mantêm relacionamento
sexual após a celebração do casamento.

A recusa injustificada às relações sexuais por parte de um dos cônjuges ou a impotência para a
sua consumação constituem factos que podem ser considerados

como violação dos deveres conjugais ou causa de nulidade do casamento, consoante os casos.

No entanto, a recusa à prática de relações sexuais pode ser fundamentada, com base em
razões de saúde (v.g;, ser um dos cônjuges portador de doenças transmissíveis), ou com base
em razões de ordem moral (v.g., se um dos cônjuges tiver um comportamento culposo em
relação ao outro).

A plena comunhão de vida, que constitui a finalidade legal do casamento, tem como substrato
o facto material de os cônjuges viverem em coabitação, isto é, terem uma residência comum.
A comunhão de vida implicará a comunhão de cama, mesa e habitação, ainda que não seja
forçoso que se verifiquem expressamente estes três elementos, pois o que é essencial é que
permaneça o facto de os cônjuges poderem e quererem comunicar entre si.

Por questões meramente conjunturais (de índole profissional, de saúde, etc.), os cônjuges
podem, durante algum tempo, deixar de viver juntos, desde que mantenham entre si todos os
outros laços que evidenciam a comunhão de vida.

A escolha da residência comum é um dos passos mais importantes da vida de um casal. Na


legislação anterior, a mulher casada tinha obrigatoriamente o domicílio do marido. Era o que
dispunha o art. 86.° do Código Civil, revogado pela alínea a) do art. 10.° da Lei n.° 1/88. O
Código Civil de 1867 obrigava a mulher casada a seguir o domicílio do marido onde quer que
ele se encontrasse, só ressalvando tal obrigação quando o marido residisse no estrangeiro ou
nas colónias. O marido gozava do direito de requerer a «entrega judicial» da mulher quando
esta saísse do domicílio conjugal. No Código Civil de 1966 modificou-se em parte esta situação,
discriminando-se em que condições podia a mulher não ter a mesma residência do marido, e
mantendo-se o direito da mulher de exigir ser recebida na residência comum.

No art. 44.° do Código de Família dispõe-se que os cônjuges devem viver juntos eainda que
devem de comum acordo escolhera residência dafamília.

Ao fazerem essa escolha, e segundo o mesmo art. 44.°, devem ponderar as exigências da vida
profissional de ambos e os interesses dos filhos.

É assim concedido aos cônjuges direito igual de intervir na decisão, afastando a situação
anterior, em que era só o marido a decidir.

A escolha do local de residência comum é de decisiva importância na vida dos cônjuges e será
pouco admissível que os cônjuges não cheguem a acordo sobre tal questão, que é pressuposto
material da vida em comum.

C — Decisão comum

Outro princípio fundamental pelo qual se passam a reger as relações entre os cônjuges, e que
é resultante do princípio da igualdade entre marido e mulher, é o da decisão comum das
questões da vida familiar. Segundo a conceção anterior- mente aceite, a família era um corpo
hierarquizado sujeito à autoridade de um chefe, o marido.

Substituindo este conceito de hierarquia dentro das relações familiares, surge, como corolário
lógico do princípio da igualdade entre os cônjuges, o princípio da diarquia, que atribui aos dois
iguais direitos e deveres, quer nas relações entre si quer nas relações dos cônjuges com os
filhos comuns.

Também no exercício da autoridade paternal sobre os filhos menores o pai e a mãe são
titulares de direitos e deveres iguais, não se sobrepondo a vontade de um à do outro — art.
127.°, n.° 1 do Código de Família, já citado.

O princípio da decisão comum vem expresso no art. 48.° do Código de Família: «Os cônjuges
decidem em comum os assuntosfundamentais da família (...).»

Ao tomarem as suas decisões comuns, os cônjuges deverão procurar obter o consenso entre si,
não predominando a vontade ou o capricho de um deles.

Questões relevantes como a conceção dos filhos, número e espaçamento de gravidez, uso de
contracetivos, devem ser decididos por ambos, não impondo a vontade de um à do outro.

Eles têm o dever de agir de acordo com o interesse da própria família, tendo em vista o
benefício desta e não o seu próprio interesse pessoal e egoísta.
Ao tomarem as deliberações comuns da vida da família, cada um dos cônjuges deve respeitar a
personalidade do outro e o interesse dos filhos do casal, agindo numa base de mútua
transigência.

A plena comunhão de vida exige a partilha entre os cônjuges de uma vida em comum que tem
de assentar numa convivência matrimonial harmónica e mutuamente frutuosa.

[77] Poderes e deveres matrimoniais

Do estado de casado deriva um conjunto de poderes a que correspondem os correlativos


deveres e que são específicos das relações matrimoniais. Estes direitos e deveres consagram
princípios de ordem pública, de natureza indisponível e inderrogável, insuscetíveis de ser
afastados pela vontade das partes.

Os poderes-deveres matrimoniais de conteúdo predominantemente ético- -jurídico vêm sem


dúvida limitar a liberdade pessoal de cada cônjuge, refletindo- -se na sua vida individual, que
passará a ser decidida a dois.

Essas restrições são, porém, compensadas pelo enriquecimento que advém da vida comum,
baseada no espírito de solidariedade e entreajuda.

Ao mencionar os deveres recíprocos dos cônjuges, o art. 43.° estabelece que ambos estão
vinculados pelos deveres de respeito,fidelidade, coabitação, cooperação e assistência. A
ordem pela qual são enunciados estes deveres também evidencia que o legislador quis dar
particular realce aos que se referem à posição moral de um cônjuge perante o outro,
entendendo ser essa postura muito importante no relacionamento comum.

A — Poder-dever de respeito

Normalmente não vem enunciado nas diversas legislações, embora tenha um alcance
fundamental, por ser o substractum das relações conjugais e permitir a sua estabilidade e
continuidade. Ele envolve o dever de prestar ao (e o direito de exigir do) outro consorte o
respeito pela personalidade moral e física, abstendo-se de qualquer conduta ofensiva ou
atentatória da integridade física ou moral do outro cônjuge. Cada um dos cônjuges deve ter
em conta que o outro é uma pessoa humana dotada de personalidade e de dignidade próprias.

A violação do dever de respeito em relação ao outro cônjuge pode consistir em diversas


condutas, tais como as agressões físicas, as ofensas morais, as humilhações, o uso direto de
expressões ofensivas, a difamação perante terceiros, a falsa atribuição ao outro cônjuge de
condutas desonestas ou ainda a propagação não justificada perante terceiros de aspetos
íntimos da vida do casal.

B — Poder-dever defidelidade

Em virtude do casamento, os cônjuges obrigam-se à convivência sexual comum, ficando


simultaneamente inibidos de manter relações sexuais com terceira pessoa. O dever de
fidelidade envolve, pois, a obrigação de vida sexual exclusiva entre os cônjuges.
No conceito estrito do dever de fidelidade está a obrigação do cônjuge de não manter relações
carnais fora do casamento, o que consubstancia o conceito de adultério.

O ato sexual praticado pelo cônjuge com terceira pessoa tem que conter o elemento subjetivo,
ou seja tem que ser um ato voluntário no sentido de que tem que ser consciente e livre. Se for
um ato obtido por violência ou fraude, o adultério não se consubstancia.

No sentido objetivo o adultério abrange a prática com terceira pessoa de qualquer atividade
que vise satisfação sexual^. No Anteprojeto do Código Penal (1) Jorge Duarte Pinheiro, obra
citada, p. 449.

vêm no Capítulo relativo aos Crimes Sexuais contidas definições de atos puníveis e que
integram atividade sexual. ^

Há, porém, quem entenda que a infidelidade pode traduzir-se numa mera relação amorosa
com terceira pessoa ou numa conduta de que possa resultar presunção de adultério, fazendo a
distinção entre a infidelidade material, que é o adultério consumado, e a infidelidade moral,
que pode consistir numa relação amorosa de simples namoro. Esta última conduta é na
opinião de alguns como uma violação do dever de respeito, acima mencionado.

Também se discute se deve entender-se como violação do dever de fidelidade a prática de


relações de natureza homossexual de um cônjuge com outra pessoa do mesmo sexo, ponto de
vista que perfilhamos dado que existe aqui a prática de ato sexual, mesmo que seja
considerado como de contra natura.

A relação matrimonial é, na essência, uma relação de confiança. Nenhum dos cônjuges pode
coercivamente obrigar o outro ao dever de fidelidade, sendo-lhe, porém, permitido reagir em
relação ao outro se houver quebra desse dever, pois tal pode constituir uma causa de divórcio.

O adultério foi e continua a ser considerado em muitas legislações como um ilícito penal. O
Código Penal vigente em Angola consagra esta infração penal no seu art. 401.°,
consubstanciando uma conceção retrógrada do casamento. Essa norma altamente
discriminatória contra a mulher (pois através dos tempos foi sempre contra quem ela se
dirigiu) foi revogada pela Lei do Divórcio de 1910, que incrimina igualmente o adultério do
marido e o da mulher.

Hoje em dia o adultério é considerado em geral como um ilícito civil. O Ante- -Projeto do
Código Penal já não prevê o adultério como ilícito penal.

Em muitas legislações estabelece-se o direito do cônjuge ofendido a uma indemnização pelos


danos morais infligidos.

O dever de fidelidade a que a mulher casada está adstrita é um dos pontos essenciais em que
assenta o princípio legal de que os filhos que ela tiver na constância do casamento, são filhos
do marido.

C — Poder-dever de coabitação
Como já vimos, o dever de coabitação consiste na convivência material de marido e mulher em
comunhão de cama, mesa e habitação, segundo o modelo social de convivência conjugal.

A coabitação pressupõe, pois, a residência familiar comum, um teto sob o qual os cônjuges
devem manter o seu relacionamento recíproco. O local onde coabitam os cônjuges, ou seja, a
residência familiar, é, pela sua importância para a estrutura familiar, especialmente protegida
por lei. Os cônjuges têm o dever de viver juntos, diz o art. 44.° do Código de Família.

O poder-dever de coabitação aparece, no seu aspeto externo, representado pelo facto de os


cônjuges viverem numa residência, o que leva a presumir que dentro dela os cônjuges
mantenham o demais relacionamento normal próprio da vida matrimonial. Como vimos, os
cônjuges podem suspender transitoriamente a obrigação da vida em comum por razões de
diversa índole (razões de saúde, de formação profissional, o interesse dos filhos etc.), sem que
com tal pensem pôr fim ao seu relacionamento conjugal.

Já o facto de um dos cônjuges resolver pôr fim à coabitação com o outro ou o facto de ambos,
de comum acordo, resolverem fazer vida em separado, é um ato de toda a relevância e
evidenciador da ruína das relações conjugais a que o Código de Família vai atender para
diversos efeitos quando não haja reatamento da vida em comum e se vier a operar a
dissolução do casamento por divórcio.

Ele produz desde logo, efeitos em relação ao exercício da autoridade paternal sobre os filhos
menores do casal.

O conceito jurídico de coabitação entre homem e mulher radica sempre numa situação
objetiva da vida comum e releva não só nas relações familiares matrimoniais mas também nas
de simples união de facto.

O direito-dever de coabitação dos cônjuges na residência comum do casal é o suporte do


direito ao arrendamento, no caso de dissolução do casamento, e do direito de cada um dos
cônjuges a manter-se no domicílio conjugal independentemente da vontade do outro cônjuge,
durante a permanência do vínculo conjugal.

cônjuges não auferir salário ou rendimento próprio, essa prestação pode ser consubstanciada
na prestação de serviços ou na produção de bens.

A participação dos cônjuges nos encargos da vida familiar deve estar de acordo com os
rendimentos por eles auferidos, permitindo ao agregado familiar um nível de vida
consentâneo com as suas disponibilidades económicas.

O dever de assistência material durante a vida em comum traduz-se em prestações de


natureza económica que, em princípio, são feitas de comum acordo entre os cônjuges.
Qualquer dos cônjuges está obrigado a ajudar a sustentar o outro quando este
involuntariamente esteja privado de meios de subsistência, por razões de saúde ou por
qualquer outra razão que o impossibilite de os angariar.

O art. 46.°, n.° 1, do Código de Família dispõe: «Os cônjuges devem con¬tribuir conjuntamente
para os encargos da vida familiar, de harmonia com as possibilidades de cada um», devendo
entender-se como encargos da vida fami¬liar os que abrangem os custos com o sustento,
vestuário, habitação e todos os necessários à vida normal da família, tais como despesas de
manutenção de viatura, combustível, de água e eletricidade, de empregada doméstica, compra
de mobiliário, eletrodomésticos, etc.

Mas podem também abarcar os encargos de natureza excecional, como os decorrentes de


necessidades de tratamento médico, de um óbito, etc..

O n.° 2 do art. 46.° permite que qualquer dos cônjuges possa recorrer a tribunal para exigir que
lhe seja entregue diretamente a parte dos rendimentos ou proventos do outro: «Não sendo
prestada a contribuição devida, qualquer dos cônjuges pode exigir que lhe seja diretamente
entregue a parte dos rendimentos do outro que o tribunalfixar». Tal pode ocorrer quando o
outro, dispondo de recursos, deixar de os prestar voluntariamente.

Esta disposição permite a intervenção direta do tribunal na vida fami caso de violação do dever
de assistência material, quando um dos cônjuges deixar de contribuir para os encargos da vida
familiar.

O facto de um dos cônjuges violar o dever de assistência e deixar eco para os encargos da vida
familiar pode colocar a sua família numa sir Ç económica desesperada. Trata-se de uma ação
de jurisdição voluntar q í prevista no art. Í416, do Código do Processo Civil, o qual vir pedir a
tribunal a entrega direta dos rendimentos o man o, despesas domésticas, devendo entender-
se, agora, que este e um l^p|

a ambos os cônjuges. conduta anómala por

o recurso a tal ação especial é em regra fru ^ responsabilidades

Parte de um dos cônjuges, que, tendo perdido a noç Q |Qgo de azar, ctc..

matrimoniais, se deixa dominar por um vicio com

O poder de assistência reveste-se ainda de um aspeto moral, impondo aos cônjuges um dever
de ajuda espiritual, participando nos momentos difíceis da vida do outro, como no caso de
doença, desgostos familiares, reveses da vida profissional, etc.. Ele abrange, igualmente, o
dever de ajudar o outro no progresso da sua vida profissional e social.

O dever de assistência como veremos pode prolongar-se mesmo quando cesse a coabitação
dos cônjuges em virtude de separação de facto ou da dissolução do vínculo matrimonial por
morte ou divórcio, e concretiza-se por via da prestação de alimentos.

F —- Direitos pessoais dos cônjuges

Este conjunto de poderes e deveres reflete-se sem dúvida na vida pessoal dos cônjuges e
impõe, como se vê, restrições à liberdade individual de ambos. Mas é preciso ter sempre em
conta que eles não os atingem na sua personalidade própria e nos seus direitos pessoais, que
se mantêm intactos, tal como o direito à sua inte¬gridade moral e física, e em geral, os direitos
próprios de toda a pessoa humana.
O direito à integridade física e moral obsta a que qualquer dos cônjuges exerça violência
corporal ou ameaças sobre o outro. O marido, pelo facto de o ser, não pode agredir corporal e
voluntariamente a mulher, porque esse comportamento ilícito, penalmente relevante (crime
de ofensas corporais voluntárias) não é «justificado» pelo facto de existência do vínculo
matrimonial.

Aliás, hoje vem tipificado nos modernos sistemas penais o crime de violência doméstica
exercida entre pessoas que coabitam no mesmo lar, cujo âmbito vem definido na Lei n.° 25/11
de 14 de julho, no art.° 2.°.

A anterior tese sustentada com base no Código Penal, de que o crime de violação não pode ser
praticado pelo marido sobre a mulher, pelo facto de não se tratar de cópula ilícita, também
não tem já acolhimento na lei penal moderna.

O Anteprojeto do Código Penal prevê o crime de agressão sexual com penetração que é
punido mesmo que praticado por cônjuge do agente^

O direito a dispor do seu próprio corpo pertence em exclusivo ao próprio cônjuge,


entendendo-se que a mulher casada pode livremente decidir sobre a interrupção voluntária da
gravidez e sobre o uso de métodos de planeamento familiar. Igualmente, o marido pode
decidir sobre os métodos contracetivos de que entenda fazer uso.

Tais questões, pelo seu melindre e importância na vida do casal, devem, tanto quanto possível,
ser decididas por consenso dos cônjuges, mas em nenhum caso poderá um dos cônjuges
coagir o outro a um determinado comportamento contra a sua vontade.

A integridade moral do cônjuge tem que ser respeitada pelo outro, preservando o direito de
cada um à honra, à vida íntima, à imagem, à correspondência própria, aos contatos telefónicos
próprios, enfim, o direito ao relacionamento no seu meio familiar e social.

Cada cônjuge tem o direito às liberdades fundamentais de natureza política, cívica, sindical,
cultural ou religiosa, podendo os cônjuges ter as suas próprias convições, o que não impede
que, em caso de falta de espírito de tolerância, isso não possa redundar em litígio entre o
casal.

Os direitos pessoais do marido ou da mulher devem ser exercidos pelo próprio cônjuge lesado
por ação de terceiro, em ação de natureza criminal ou civil.

Deve considerar-se revogada a legislação penal que permitia ao marido constituir-se assistente
em ação penal em que seja ofendida a mulher (art. 4.°, n.° 3 do Decreto-Lei n.° 35 007),(6) não
só por ser uma norma discriminatória, mas porque o direito à ação penal ser de natureza
pessoal e não transmissível.

O mesmo sucede com a permissão de poder o marido ter acesso à correspon¬dência da


mulher (art. 461.°, §1.° do Código Penal, já revogado na legislação portuguesa pela reforma de
1977).
Entre nós, esta disposição deve considerar-se tacitamente revogada pela legislação
constitucional e pelo Código de Família, que constituem a base da legislação angolana
posterior à Independência nacional.

Sabido que o relacionamento entre marido e mulher é estabelecido numa base de confiança
recíproca e permite o acesso à intimidade do outro, é a própria lei a proteger os segredos do
casal: um cônjuge não pode testemunhar contra o outro

a constranger a sofrer penetração sexual por terceiro é punido com pena de prisão de

2 a 10 anos de prisão.

ARTIGO 4.°

(Assistentes)

Podem intervir no processo como assistentes:

(...)

4.° — O marido nos processos por infração contra a mulher, salvo oposição desta.

(art. 216.°, n.° 3 do Código de Processo Penal), nem pode ser perguntado por atos puníveis ou
desonrosos que o outro cônjuge haja praticado (art. 218.° do mesmo Código).(7)

O direito ao exercício de profissão ou atividades vem consignado no art. 47.° do Código de


Família e é uma emanação da preservação dos direitos fundamentais que cada cônjuge
mantém para além do casamento.

Cada cônjuge conserva o direito à imagem, à intimidade, à honra, às suas relações familiares e
sociais. Há, no entanto, que ter em conta que a plena comunhão de vida dos cônjuges implica
que, em regra, os dois atuem em conjunto na vida social e no seio da família, família esta que
vem alargada para cada um deles pelo novo vínculo da afinidade derivado do vínculo do
casamento.

A compatibilidade e o equilíbrio entre os direitos e os deveres de natureza profissional e as


atividades dos cônjuges e os seus deveres dentro do matrimónio têm que ser encontrados de
forma a que não haja prejuízo de uns em relação aos outros.

[78] Representação comum

A família conjugal constitui um grupo social que mantém relações jurídicas de diversa natureza
com terceiros. Nessas relações a família matrimonial é representada indistintamente por
qualquer dos cônjuges, tratando-se de um poder de representação tácito, pois assenta no
princípio de que, quando um dos cônjuges atua perante terceiros, está a atuar em resultado da
vontade de ambos. Assim, se um deles celebra um negócio jurídico, ou toma uma resolução
pertinente à vida dos cônjuges e dos filhos, presume-se que representa a vontade comum.

É o que dispõe a parte final do art. 48.° do Código de Família: «(...) podendo cada um deles
representá-la perante terceiros». Trata-se de mera presunção que pode ser afastada perante
terceiros, mesmo que de boa fé, por simples declaração do outro cônjuge que não tenha
intervindo no ato em causa, devendo, porém, fazê-lo em tempo útil para não prejudicar
terceiros de boa fé.

(7) ARTIGO 216.°

(Incapacidade para ser testemunha)

Não podem ser testemunhas:

(...)

3.° — (...) o marido ou mulher do ofendido da parte acusadora ou do

ARTIGO 218.°

(Factos que não podem ser perguntados às testemunhas e aos déclarantes)

As testemunhas não serão perguntadas por factos puníveis ou desonrosos por elas praticados
ou por (...) marido ou mulher.

No Código Civil anterior (art. 1674.°), o marido, dentro do seu poder marital, tinha, por força
direta da lei, o de poder de representação da família.

Hoje, porque tanto o marido como a mulher têm plena capacidade civil, o Código de família
permite que qualquer dos cônjuges, indistintamente, represente a família perante terceiros,
por mera presunção de agir segundo o consenso de ambos.

O poder de representação dos cônjuges vem consignado em diversas normas da nova Lei das
Sociedades Comerciais, Lei n.° 1/04 de 13 de fevereiro, que permite a representação dum
cônjuge sócio de sociedade pelo outro, designadamente em assembleias gerais (artigos 191.°,
n.° 4,277.°, n.° 3 e 400.°, n.° 1), bem como no caso de contitularidade de quotas (art. 245.°, n.°
1).(8)

Isto não impede, como veremos, que qualquer dos cônjuges possa, através de mandato,
constituir um terceiro como administrador dos seus bens (art. 54.°, n.° 2, alínea b) do Código
de Família).

[79] Direito ao nome, emancipação, nacionalidade

A — Direito ao nome

Quando se atribuía ao casamento o privilégio de ser a única forma de constituição legítima da


família, dava-se ênfase à unidade de nome pelo qual ia ser designada a nova família
constituída pelo matrimónio. Havia a preocupação de definir o

(8) ARTIGO 191.°

(Deliberações dos sócios)

(...)
4. Nas Assembleias Gerais o sócio só poderá fazer-se representar pelo cônjuge (...).

ARTIGO 277.°

(Representação dos sócios nas Assembleias Gerais)

Salvo disposição do contrato de sociedade em contrário, o sócio só pode conferir poderes


representativos ao seu cônjuge (...).

ARTIGO 400.°

(Representação de acionistas)

1. O contrato de sociedade não pode proibir que qualquer acionista se faça representar na
Assembleia Geral, desde que o representante seja o seu cônjuge (...).

ARTIGO 245.°

(Representação comum)

1. Quando não for designado por lei ou disposição testamentária ou representante comum é
nomeado e pode ser destituído pelos contitulares podendo ser nomeado representante
comum qualquer contitular ou o cônjuge de qualquer deles.

nome de família pelo qual esta passava a ser conhecida no meio social em que vivia. A unidade
de nome refere-se neste caso ao apelido ou nome de família ou patronímico e não ao nome
próprio. Na generalidade dos países europeus predo¬minava o costume de a mulher adotar o
apelido de família do marido, sobretudo na burguesia.

Nalguns países a mulher perdia mesmo o direito de usar o seu apelido de solteira, para usar
somente o apelido de família do marido. Noutros casos conservava o seu apelido e a este
juntava o apelido do marido.

Segundo o Código Civil português, o uso do apelido do marido por parte da mulher casada era
uma faculdade legal de que a mulher podia ou não usar, consoante quisesse.

Esta praxis tradicional foi transformada a partir do novo direito de família soviético, que veio
permitir que qualquer dos cônjuges adotasse o apelido do outro. Dentro desta nova linha de
orientação, que é comum à generalidade das modernas legislações, qualquer dos cônjuges é
livre de adotar os apelidos do outro. Esta é também a regra adotada pelo art. 1677.° do atual
Código Civil português, que, após a reforma de 1977, permite que os cônjuges conservem os
seus apelidos ou acrescentem apelidos do outro, até ao máximo de dois.

Esta matéria vem regulada no art. 36.°, n.° 1 do Código de Família, que dispõe: «No ato do
casamento pode um dos nubentes declarar que adota o apelido do outro ou podem ambos
optar pela adoção de um apelido comum, a partir do apelido dos dois».

Esta declaração tem que ser efetuada logo após a celebração do ato do casamento. Consagra-
se assim o princípio de que os cônjuges podem optar pela constituição de um apelido de
família comum formado pelos apelidos de ambos e usado em conjunto por marido e mulher. A
declaração feita pelos nubentes pode consistir num ato unilateral de vontade, se consistir na
adoção do apelido do outro, o qual tem que dimanar de um só dos cônjuges.

Ou pode consistir num ato bilateral, resultante do acordo de vontades, se consistir na


formação de um apelido comum de família.

Trata-se dumafaculdade legal de que cada cônjuge pode ou não usar, mantendo o seu nome
anterior ou acrescentando o nome do outro ou formando um nome comum.

Em qualquer dos casos, a declaração é voluntária e de natureza irrevogável, só podendo ser


alterada em circunstancias previstas na lei.

O nome de família é atribuído aos filhos comuns.

Como veremos, o direito ao uso do nome perdura durante a vigência do matrimónio e após a
sua dissolução por morte, cessando no caso de dissolução por divórcio, como prevêem os n.°s
2 e 3 do citado art. 36.°.

B — Emancipação

O casamento de menor de 18 anos celebrado em obediência ao disposto no art. 24.°, n.°s 2 e 3


do Código de Família leva à emancipação do menor (art. 132.°, alínea a) do Código Civil), o qual
adquire a plena regência da sua pessoa e bens.

C — Nacionalidade

A primeira lei da nacionalidade angolana, aprovada em novembro de 1975, não atribuía a


nacionalidade angolana ao cidadão estrangeiro que casasse com cidadão angolano, pelo
simples facto do casamento. Também a mulher angolana não perdia a nacionalidade pelo
facto do casamento com cidadão estrangeiro, ao contrário do que acontecia com outras
legislações de natureza discriminatória. Este princípio foi salvaguardado pela Lei n.° 8/84 e
manteve-se tanto na Lei n.° 13/91, de 11 de maio, como na atual Lei n.° 1/05 de 1 de julho.

Já o art. 12.°, n.° 1 da Lei n.° 13/91 foi alterado pelo art. 12.°, n.° 1 da Lei n° 1/05 que passou
adispor o seguinte: «O estrangeiro casado com nacional, por mais de cinco anos, pode na
constância do casamento e ouvido o cônjuge adquirir a nacionalidade angolana, desde que o
requeira».

Se o cidadão estrangeiro perder a sua cidadania pelo facto do casamento, adquire ipso facto a
nacionalidade angolana. Acrescenta este art. 12.°, n.° 3 que: «A declaração de nulidade ou
anulação do casamento não prejudica a nacionalidade adquirida pelo cônjuge que o contraiu
de boa fé.»

O art. 15.°, n.° 2 desta Lei «Determina a perda da nacionalidade, obtida por naturalização: c)
quando obtida por falsificação ou outro meio fraudulento, ou induzindo em eiro as
autoridades competentes.»

No campo das relações de direito internacional privado deve considerar-se como


inconstitucional o disposto no art. 52.° do Código Civil, que manda aplicar às relações
matrimoniais a lei nacional do marido, dado o seu con¬teúdo discriminatório em relação à
mulher. Essa é a posição adotada na nossa jurisprudência*^.

Em princípio a lei aplicável às relações matrimoniais em caso de nacionalidades distintas dos


cônjuges, será a da última residência comum.

D — Outros efeitos

A lei n.° 17/12, de 19 de julho (in D.R. n.° 92) que aprovou o Estatuto do Deputado, permite no
seu art. 7.°, n.° 2, alínea a) a ausência do País no caso de doença do próprio ou do cônjuge,
ascendente ou descendente. O art.° 18.° desta lei concede ao cônjuge, ascendentes e filhos
menores do deputado determinados direito e regalias.

(9) Cfr. Maria do Carmo Medina, Código de Família Anotado, p. 9.

[80] Tutela dos direitos matrimoniais

Os poderes-deveres que integram a vida matrimonial são, pois, de natureza ético- -jurídica e
correspondem a prestações de natureza eminentemente pessoal, pelo que o seu cumprimento
é normalmentc de natureza espontânea e resultante da vontade de cada um dos cônjuges de
fortalecer e salvaguardar o vínculo conjugal.

A violação dos deveres conjugais não está em regra expressamente protegida por lei, embora
em certos casos extremos possa haver responsabilidade criminal, como no caso de ser punível
o adultério como crime, bem como quando haja a violação do dever de assistência material e a
correspondente falta de prestação de alimentos.

A Lei n.° 2053 (Lei do Abandono de Família), de que já falámos, tipifica certas condutas
relativas à falta de prestação de alimentos ao cônjuge e ao abandono do domicílio conjugal.

A violação grave ou reiterada dos deveres matrimoniais, quando não for causada pela conduta
do outro cônjuge, confere ao cônjuge ofendido a faculdade de pedir o divórcio, obtendo por
esta forma a dissolução do vínculo conjugal.

Muitas vezes existem problemas de comportamentos psíquicos anormais por parte de um dos
cônjuges que são menos detetáveis para a vida social externa do casal mas que tomam grande
relevância na vida íntima do casal e que devem ser objeto de terapia psíquica adequada.

As diferenças e clivagens culturais tornam também difícil a vida conjugal, criando obstáculos
quase intransponíveis. Os conflitos de mentalidade na nossa sociedade em transição, são
causas de grande número de conflitos, por partirem de diferentes conceções acerca da relação
homem-mulher no âmbito do casamento.

Muitas vezes ocorre também a intromissão de terceiros, designadamente dos familiares de um


ou de outro cônjuge, na vida do casal.

Os conflitos que surgem na vida conjugal podem ter uma procura de solução na fase pré-
judicial ou quando já há recurso ao tribunal pela relevância dada à fase de reconciliação dos
cônjuges.
Nos diversos sistemas jurídicos procura-se cada vez mais o recurso às medidas de conciliação,
evitando a rutura dos laços matrimoniais ou o menor desgaste sob o ponto de vista psicológico
e emocional entre os cônjuges, o que, na maior parte das vezes, se vai refletir na sua atividade
laborai e no meio social a que pertencem.

O combate à violência doméstica, por meios legais envolvendo entidades judiciais, policiais,
médicas, terapeutas e outros, é hoje considerado essencial a uma convivência mais sã e
equilibrada entre marido e mulher.

Legislação específica sobre a violência doméstica no campo do Direito Penal e do Direito de


Família tem vindo a ser adotada em muitos países dos diversos Continentes , incluindo Angola.

A questão da violência doméstica, pela sua importância e repercussão no meio social, deixou
de ser considerada do « foro privado» para ser por inteiro atribuída à responsabilidade do
Estado, que deve obrigatoriamente intervir, não deixando as vítimas da violência entregues à
sua sorte e desamparadas.

Medidas são tomadas contra os cônjuges que têm comportamentos censuráveis sob o ponto
de vista familiar ou até criminal, tais como a proibição de certas condutas: molestar o outro
por palavras ou por gestos, proibição de entrar em áreas específicas da residência familiar ou
mesmo proibição de entrada em toda a residência, etc..

Podem ser dadas ordens de proteção pessoal em relação a membros da família, em regra a
mulher e os filhos, no caso de ameaça de uso da violência ou quando esta já tenha sido usada.
É o que acontece na presente legislação inglesa, que, de acordo com a lei da Violência
Doméstica e Procedimento Matrimonial, prevê que o tribunal possa proferir injunções que
proíbam a um dos cônjuges determinados comportamentos censuráveis. O não acatamento de
uma ordem do tribunal é punido com prisão como crime de desobediência.

Na esfera das relações íntimas e pessoais dos cônjuges reconhece-se a dificul¬dade da


ingerência de terceiros, designadamente do tribunal, para o apazigua¬mento dos conflitos.
Cada vez mais se procura ajudar a resolver esses litígios pela mediação ou conciliação, que,
como vimos, pode existir numa fase pré-judicial ou ser já atribuída aos órgãos judiciais.

Os organismos de mediação são neutros por natureza e procuram encontrar as causas do


desentendimento entre os cônjuges de forma a alcançar a sua concilia¬ção. Quando tal não for
possível e houver irredutibilidade de parte a parte, procura-se então obter a negociação
amigável da separação ou do divórcio. Na primeira fase têm tido grande relevo os terapeutas
especializados, os consultórios de diagnóstico matrimoniai entregues a psicólogos ou a juristas,
bem como orga¬nismos de natureza social.

Quaisquer destes órgãos devem poder analisar com imparcialidade os dissídios na vida do
casal, investigando as diversas causas que lhes dão origem e que, como vimos, podem ser de
múltipla natureza e carecerem de tratamento médico ou de recuperação, como no caso do
vício inveterado de alcoolismo.

Podem ter também natureza psicológica ou mesmo cultural.


Na fase judicial dos conflitos também se dá relevância à conciliação, que pode ser levada a
cabo pelo tribunal.

Na legislação italiana prevê-se a intervenção do juiz num âmbito bastante restrito, mais de
natureza arbitrai do que jurisdicional.

Tanto no processo de divórcio por mútuo acordo como no processo de divórcio litigioso, a
nossa legislação de família só prevê a conciliação dos cônjuges na fase judicial, fase durante a
qual ela se mostra pouco profícua.

De igual modo, a legislação processual não foi objeto de revisão depois da publicação do
Código de Família, pelo que se mostra cheia de lacunas em matéria das providências
cautelares e das providências específicas que protejam efetivamente os direitos dos cônjuges,
tais como o direito à integridade física, o direito à permanência na residência familiar, etc..

CAPÍTULO 14.0

EFEITOS PATRIMONIAIS DO CASAMENTO

[81 ] Sistemas do regime económico do casamento

O casamento, além dos efeitos pessoais que produz na vida dos cônjuges e que já foram
especificados, produz ainda efeitos de grande relevância na sua vida patrimonial. A
regulamentação jurídica da situação patrimonial dos cônjuges constitui o regime económico
do casamento, que define e regula os poderes dos cônjuges quanto à aquisição, disposição e
gestão dos bens durante a vigência do vínculo matrimonial. Define também o regime de
responsabilidade pelas dívidas tanto em relação a terceiros como em relação aos cônjuges
entre si.

Como vimos, o casamento implica uma plena «comunhão de vida» entre os cônjuges
(consortium omnis vitae). Daí vai forçosamente derivar uma comunhão de interesses
patrimoniais, que, pela sua natureza específica e particular, fica em regra sujeita a um regime
jurídico patrimonial de natureza especial.

Em razão desta natureza especial é que os interesses patrimoniais do casal aparecem em todos
os ordenamentos jurídicos regulados de forma diferente dos princípios gerais que regem as
relações dos direitos patrimoniais abrangidos pelo direito das obrigações e pelos direitos reais.

O regime económico do casamento ou regime matrimonial regula não só as relações


patrimoniais dos cônjuges entre si mas também as relações dos cônjuges com terceiros.
A própria constituição do lar leva os cônjuges a necessitarem de uma base económica para
fazer face às despesas comuns, como a subsistência dos pró¬prios cônjuges e de seus filhos e
de outros elementos que compõem o respetivo agregado familiar.

O dever de contribuir para as despesas do lar é um dos aspetos de que se reveste o dever de
assistência material dos cônjuges entre si. Hoje consagrado o princípio da igualdade entre o
cônjuges, esse dever de contribuição económica cabe tanto ao marido como à mulher, seja
qual for o regime de bens do casal, e está em correlação com a condição económica de cada
cônjuge. Essa contribuição pode ser dada com o produto do rendimento do trabalho, provir de
rendimentos pessoais ou consistir na prestação de serviços a favor do agregado familiar. Tudo
isto está em correlação com o próprio nível de desenvolvimento económico e profissional do
casal.

No meio familiar em que a mulher não possui recursos nem exerce atividade profissional fora
do lar, todo o trabalho dito «doméstico» que ela desenvolve com vista à subsistência do
agregado familiar é subestimado, não lhe sendo atribuído valor económico. Porque gratuito,
ele não é valorizado, entendendo-se, por razões ancestrais, como um dever que incumbe à
mulher e que deverá ser acumulado com o trabalho fora do lar, se for o caso.

No pretérito, incumbia ao marido o dever de manter a mulher.

E quando a mulher não exercia uma atividade produtiva estava instituído o dote, que consistia
em determinado valor económico que a mulher levava consigo para o casamento.

No atual regime matrimonial, além da contribuição dos cônjuges nas despesas do lar, com
valores ou serviços, prevê-se ainda a situação jurídica dos bens cuja titularidade na pessoa dos
cônjuges é anterior ou posterior ao casamento, define-se o poder de administração desses
bens por parte do cônjuge, o poder para contrair dívidas durante o casamento, a
responsabilidade pelo seu pagamento, etc..

Os regimes económicos do casamento têm evoluído através dos tempos e de acordo com a
evolução da própria estrutura da família. Nas sociedades de tipo feudal e capitalista, dentro da
classe detentora do poder económico era dada muito maior relevância aos efeitos
patrimoniais do casamento do que aos efeitos pessoais, pois o casamento era uma das formas
de acumulação de património.

Já no direito romano se distinguia, quanto ao regime económico, o casamento cum manu, em


que vigorava o regime de absorção dos bens da mulher por parte do marido, do casamento
sine manu, em que os bens da mulher permaneciam na família de que provinha.

No sistema jurídico inglês e naqueles que nele se baseiam, vigora a regra da separação de
bens. Cada cônjuge conserva a propriedade individual de todos os bens, quer anteriores quer
posteriores à celebração do casamento.

Também no direito tradicional africano predomina o regime patrimonial de separação de bens


e isto resulta do facto de a mulher não se integrar na família do marido e permanecer ligada à
sua família de origem. Aliás, a existência do casamento poligâmico não se coaduna com o
regime de comunhão de bens.
Noutros sistemas jurídicos predomina o regime de comunhão de bens, que se carateriza pela
existência de uma massa de bens que é pertença comum dos dois cônjuges e que está adstrita
a uma afetação especial, como veremos.

O regime de comunhão de bens pode ter maior ou menor extensão, ser total ou parcial,
apresentando diversas formas:

— o regime de comunhão geral ou universal de bens, que abrange a quase totalidade dos
bens dos cônjuges;

— o regime de comunhão de móveis e de adquiridos, que abrange todos os móveis


anteriores ou posteriores ao casamento e os imóveis adquiridos a títulos oneroso depois do
casamento;

— o regime de comunhão de adquiridos, que abrange os bens adquiridos a título oneroso


depois do casamento, sejam eles direitos, bens móveis ou imóveis.

Existem ainda outros sistemas em que funcionam o regime de separação e de comunhão


combinados, como por exemplo o regime de comunhão de bens futuros ou de participação
nos adquiridos. Segundo este regime, que vigora no direito alemão, os cônjuges conservam o
direito à fruição e à disposição de todos os seus bens, mas, aquando da dissolução do
casamento, cada cônjuge tem direito a uma parte dos bens adquiridos durante o casamento. A
participação nos adquiridos traduz-se numa avaliação do património inicial dos cônjuges no
momento em que contraíram o casamento e o património final no momento da sua
dissolução/

Por vezes a lei impõe o regime único: só é permitido aos cônjuges adotarem o regime legal de
bens obrigatoriamente estatuído na lei. Outras vezes a lei impõe o regime convencional de
bens, segundo o qual os cônjuges podem estatuir previamente as normas que regularão no
futuro o regime económico do seu casamento. Há ainda os sistemas típicos, que oferecem
vários sistemas pre¬estabelecidos na lei.

Em alguns casos a opção feita é imutável, tem que perdurar durante todo o casamento; em
outros casos o regime é mutável durante a vigência do casamento.

O regime de bens adotado no casamento é oponível a terceiros e por isso deve ser objeto de
registo.

[82] O regime económico do casamento no Código Civil

No Código Civil anterior vigorava o sistema da autonomia da vontade das partes, pois, em
regra, era dada aos cônjuges a possibilidade de optar pelo regime de bens

(1) Esperança Pereira Mealha — Acordos Conjugais para Partilha de Bens Comuns, p. 29: «O
regime da participação nos adquiridos é uma das soluções encontradas noutros ordenamentos
que procura combinar as principais vantagens do regime separatista com a grande vantagem
da comunhão.» Ed. Almedina, 2009.
que lhes aprouvesse. Este sistema, afirmado como princípio no art. 1698.° do Código Civil,
sofria, no entanto, importantes restrições legais.

O regime da liberdade de convenção antenupcial estava sujeito às limitações enunciadas no


art. 1699.° e seguinte, que salvaguardava na sua alínea c) os princípios considerados de ordem
pública, que consagravam a situação privilegiada do marido como chefe de família e como tal,
com o direito à administração dos bens do casal.

Outras restrições à liberdade de convenção antenupcial vinham previstas neste art. 1699.° e
referiam-se à regulamentação da sucessão hereditária dos cônjuges ou de terceiros, à
alteração dos direitos e deveres paternais ou conjugais e à estipulação da comunicabilidade de
certos bens.

Em certos casos específicos, era a lei que impunha imperativamente o regime de separação de
bens. Era o que vinha mencionado no art. 1720.°, que impunha obrigatoriamente o regime de
separação de bens quando:

a) o casamento tivesse sido celebrado sem precedência do processo de publicações,


como no caso do casamento urgente;

b) quando os nubentes tivessem atingido já determinada idade, norma em que mais uma
vez a mulher era discriminada;

c) quando houvesse filhos legítimos do casamento anterior por parte de um ou de ambos


os cônjuges.

Com estas regras procurava-se impedir que o casamento fosse celebrado na mira da obtenção
de vantagens económicas. No entanto, o n.° 2 deste art. 1720.°, permitia que os nubentes
fizessem doações entre si e que o futuro marido constituísse um dote em benefício da mulher.

A regra no sistema vigente no Código Civil era a de o regime de bens ser convencional e
imutável, pois nem o regime supletivo nem as convenções antenupciais podiam vir a ser
alteradas durante o casamento.

O Código Civil admitia um único caso de alteração do regime económico do casamento, no


âmbito do instituto de separação de pessoas e bens (art. 1776.°, n.° 2 deste Código).

Quando ocorresse a reconciliação dos cônjuges que se tivessem separado judicialmente de


pessoas e bens, passaria a vigorar, após a reconciliação, o regime de separação de bens,
ficando os bens dotais a ser administrados pela mulher.

O princípio da imutabilidade do regime de bens vinha consagrado no art. 1714.° do Código


Civil, segundo o qual as convenções antenupciais não podiam ser alteradas. Para garantir que
este princípio não seria desrespeitado, a lei proibia as vendas entre os cônjuges e as
sociedades entre marido e mulher (antenupcial. 1714.°, n.° 2), salvo nas sociedades de capitais
(n.° 3 desse art. 1714.°).

A — As convenções antenupciais
As convenções antenupciais, também designadas convenções matrimoniais ou pactos nupciais
(«contraí de mariage» no direito francês, «capitulaciones matrimoniales» no direito espanhol)
constituem o acordo celebrado entre os nubentes no qual é fixado o regime aplicável às
relações patrimoniais recíprocas dentro do casamento e às relações dos cônjuges com
terceiros.

É um verdadeiro contrato que precede o casamento e que tem natureza acessória em relaçáo
a este. A sua eficácia está, porém, dependente do facto de se vir a celebrar o casamento e do
facto de o próprio casamento ser válido.

Nas convenções antenupciais podem os nubentes fixar livremente, com as restrições previstas
na lei, o regime de bens, ou adotando um dos diversos regimes previstos no Código, ou
aplicando parte desses regimes, combinando as diversas regras neles previstas ou instituindo
outras.

Como contrato que é, a convenção antenupcial tem como requisito de fundo a capacidade das
partes e o consentimento dos nubentes. E, mesmo que estes sejam menores, o consentimento
é prestado pelo próprio e não pelo respetivo representante legal, devendo este prestar a
autorização para a celebração do contrato. A capacidade para celebrar a convenção
antenupcial é a mesma que é exigida para a celebração do casamento.

As convenções antenupciais surgem nos sistemas jurídicos em que os aspetos patrimoniais do


casamento assumem grande relevância, por estarem em jogo elevados valores económicos
detidos pelos nubentes ou suas famílias.

Elas estão previstas no direito de família nos diversos sistemas jurídicos europeus e
designadamente no Código Civil português. O Código de Família, como adiante veremos,
eliminou todas as disposições respeitantes às convenções antenupciais.

Interessa, porém, ver como o Código Civil ora revogado dispunha sobre a matéria (no
essencial, o que prevêem as demais legislações).

Os artigos 1708.° e 1709.° do Código Civil mencionavam os requisitos de fundo necessários à


celebração das convenções antenupciais.

Ao contrário do que acontecia na celebração do casamento, as convenções antenupciais


podiam estar sujeitas a condição ou a termo, de acordo com o prescrito no art. 1713.°.

O art. 1719.° do Código Civil permitia expressamente aos cônjuges con¬vencionar que, no caso
de existirem descendentes comuns, a partilha de bens, aquando da dissolução do casamento,
se fizesse segundo o regime de comunhão geral de bens, qualquer que fosse o regime de bens
que tivesse sido adotado.

Quanto ao requisito de forma, e segundo o art. 1710.°, as convenções antenupciais só eram


válidas quando fossem celebradas por escritura pública.

As convenções antenupciais estavam obrigatoriamente sujeitas a registo para poderem


produzir efeitos em relação a terceiros — art. 1711.°, n.° 1 do Código Civil e art. 233.° do
Código do Registo Civil. Elas produziam, porém, efeitos plenos entre as partes e herdeiros,
independentemente de registo (art. 1711.°, n.° 2 do Código Civil).

As convenções antenupciais estavam sujeitas às mesmas causas gerais de nulidade e


anulabilidade prescritas nos artigos 285.° e seguintes do Código Civil para os atos jurídicos em
geral, podendo designadamente ser anuladas por erro, dolo ou coação.

O art. 1709.° do Código Civil continha uma exceção às causas gerais da anulabilidade, pois
permitia considerar sanada a anulabilidade derivada da falta de autorização por parte do
representante do incapaz, quando o casamento viesse a ser celebrado depois de findar a
incapacidade.

A convenção antenupcial estava também sujeita a caducidade nos dois casos previstos no art.
1716.°. A sua eficácia estava subordinada ao facto de o casamento entre os nubentes vir a ser
celebrado dentro do prazo de um ano. A caducidade operava-se também se o casamento
celebrado viesse a ser considerado nulo, pois, sendo a convenção antenupcial um contrato
acessório do ato do casamento, se este viesse a ser anulado ela perdia a sua finalidade legal.

Ressalvava-se, no entanto, a produção de efeitos da convenção dentro das normas aplicáveis


ao casamento putativo, ou seja, as que aproveitavam ao cônjuge que tivesse celebrado o
casamento de boa fé.

B — As doações para casamento e entre casados

O Código Civil previa que fossem feitas doações para casamento a um ou a ambos os
nubentes, e que essas doações podiam ser feitas por um dos nubentes ou por terceiros — art.
1753.°. As doações para casamento deviam constar da convenção antenupcial, de acordo com
o art. 1756.°, n.° 1.

As doações para casamento estavam sujeitas às causas de caducidade mencionadas no art.


1760.°. Elas caducavam pelas mesmas causas que levavam à caducidade da convenção
antenupcial ou quando ocorresse o divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa
do donatário.

As doações entre casados, ou seja, as posteriores ao casamento, eram livremente consentidas


pelo art. 1761.° do Código Civil, só não sendo permitidas quando vigorasse imperativamente o
regime de separação de bens.

As doações só podiam ter como objeto os bens próprios do doador (art. 1764.°, n.° 1) e os
bens doados não eram comunicáveis fosse qual fosse o regime de bens (n.° 2 do mesmo art.
1764.°).

As doações entre casados eram livremente revogáveis e não estavam, portanto, sujeitas ao
regime geral de revogação das doações, pelo que a revogação não carecia de ser
fundamentada — art. 1765.°.

Estavam ainda sujeitas ao regime das doações em geral prescrito nos artigos 940.° e seguintes
do Código Civil e podiam ser reduzidas por inoficiosidade. A revogação da doação tinha efeitos
retroativos, o que conferia um caráter muito precário a este tipo de doações.
As causas da caducidade destas vinham mencionadas no art. 1766.° e eram: o falecimento do
donatário, sem ter havido confirmação por parte do doador; a anulação do casamento; a
existência de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa do donatário.

Às doações mortis causa era aplicável o regime geral dos testamentos.

C — Regimes de bens no Código Civil

Eram quatro os tipos legais de regimes de bens adotados pelo Código Civil:

a) o da comunhão de bens adquiridos;

b) o da comunhão geral de bens;

c) o da separação geral de bens;

d) o regime dotal.

Eles caraterizavam-se pela extensão, em cada caso, das categorias de bens comuns e de bens
próprios.

2. Comunhão geral

O regime de comunhão geral de bens (também chamado de comunhão absoluta ou universal)


vinha regulado no art. 1732.° e seguintes. Este regime de bens já foi historicamente muito
importante, pois era o regime-regra previsto no Código Civil de 1867, conhecido por Código de
Seabra.

Era ainda o regime-regra adotado na legislação brasileira e holandesa. Depois da aprovação da


lei do divórcio, no Brasil passou a ser adotado como regime supletivo o regime de comunhão
parcial.

O atual Código Civil brasileiro, aprovado pela Lei n.° 10 406/02, mantêm o regime de
comunhão parcial como o regime supletivo geral — art. 1640.°.

Segundo o regime de comunhão geral de bens existe um único património no casamento, que
é o património comum, constituído por todos os bens presentes e futuros, salvo os excetuados
por lei — art. 1732.° do Código Civil. Só são excetuados da comunhão os bens indicados no art.
1733.° e no n.° 2 deste artigo, que mesmo assim prescreve que a incomunicabilidade dos bens
não abrange os respetivos frutos nem o valor das benfeitorias úteis.

Há, pois, uma comunhão total de bens não só quanto ao domínio mas também quanto à sua
posse e fruição.

Este regime, que era o regime tradicional português e vigorava mesmo antes do primeiro
Código Civil — que o adotou por ser segundo «os usos e costumes do Reyno» —, está
intrinsecamente ligado ao conceito da indissolubilidade do casamento.

Foi aplicado como regime supletivo geral até à entrada em vigor do Código Civil atual.
Portanto, os casamentos celebrados em Angola até 1 de janeiro de 1968 devem considerar-se
celebrados segundo este regime de bens, se outro não tiver sido adotado por convenção
antenupcial ou imposição legal.

Pelo contrário, hoje ele só vigorará se tal vier a ser estipulado em convenção antenupcial.

3. Regime de separação de bens

Este regime caraterizava-se pela existência de separação absoluta entre os bens dos cônjuges.
Não existiam bens comuns e, mesmo que algum bem pertencesse a ambos os cônjuges,
vigorava entre eles o regime da compropriedade e não o da comunhão. Este regime, segundo
o art. 1735.°, podia vigorar entre os cônjuges quando fosse obrigatoriamente imposto por lei
ou quando fosse adotado em convenção antenupcial.

Por este regime era assegurado aos cônjuges não só a separação de bens, ou a existência
unicamente de bens próprios de cada cônjuge, mas ainda os poderes de livre administração e
de disposição dos bens e dos frutos ou rendimentos percebidos.

O art. 1736.° estipulava a presunção da propriedade dos bens móveis e o art. 1737.° dispunha
sobre as regras da administração de bens do outro cônjuge que não fosse o titular do respetivo
direito de propriedade.

4. Regime dotal

Este regime de bens caraterizava-se pela existência de um dote atribuído à mulher, que,
segundo o disposto no art. 1740.°, só podia ser constituído por bens imóveis ou por títulos
nominativos. O dote era um conjunto de bens próprios que a mulher levava para o casamento
e que se procurava ficassem a coberto da má administração por parte do marido. Os restantes
bens que não constituíssem dote ficavam a reger-se pelas normas do regime de comunhão de
adquiridos (art. 1738.°, n.° 1), sendo um regime misto de separação de bens na parte relativa
aos bens dotais, com um regime de comunhão parcial quanto aos demais.

Os bens dotais ficavam em regime especial quanto aos poderes de disposição (art. 1747.°) e de
responsabilidade pelas dívidas (art. 1750.°).

Este regime de bens, que evidenciava a situação de discriminação da mulher na vida


matrimonial, já tinha caído em desuso, tendo sido suprimido em Portugal pelas reformas
trazidas pelo Decreto-Lei n.° 496/77, que veio abolir a discriminação de direitos e deveres
entre marido e mulher.

[83] Os regimes de bens no Código de Família

O Código de Família afastou-se do sistema de diversidade de regimes patrimoniais acolhidos


no Código Civil e preferiu orientar-se pelo sistema da tipicidade: os regimes aceites no Código
vêm nele regulados. No entanto, o Código não institui nenhum caso de imposição imperativa
de determinado regime de bens, o que significa que os nubentes são sempre livres de escolher
entre os dois tipos de regime de bens estatuídos por lei, não havendo regimes obrigatórios de
bens em certos casos específicos.

O art. 49.° permite no seu n.° 1 que os nubentes escolham entre:


— o regime de comunhão de adquiridos e

— o regime de separação de bens.

Essa opção é feita na declaração inicial para casamento — art. 49.°- n.° 2. Aliás, essa
declaração só se torna necessária quando os nubentes queiram optar pelo regime de
separação de bens — art. 29.H, n.° 3.

A declaração sobre o regime de bens deverá ser confirmada pelos nubentes no

ato de casamento — art. 49.° n.° 2.

Na falta de declaração dos nubentes, o casamentos considera-se contraído segundo o regime


de comunhão de adquiridos — art. 49.°, n.° 3.

Vê-se, pois, que o regime supletivo geral é, tal como no Código Civil, o regime de comunhão de
adquiridos. É este o regime-regra.

A adoção de outro regime de bens, o de separação de bens, passa a fazer-se por declaração
perante o funcionário do Registo Civil e não necessita de constar de convenção antenupcial,
que é uma figura jurídica de larga tradição nas sociedades em que predomina o regime da
propriedade privada de bens.

À data da elaboração do Projeto do Código de Família não se mostrava necessário, numa


sociedade que se propunha em transição para o socialismo, uma grande diversidade de
regimes de bens. Preferiu-se a simplicidade na forma de declaração perante o funcionário do
Registo Civil que constitui o processo de casamento e prescindiu-se da necessidade da
celebração de escritura pública autónoma em relação a esse mesmo processo de casamento. É
a lei que estipula os efeitos da declaração dos nubentes, regulando os sistemas legais nela
previstos.

O Código de Família também nada diz especificamente quando às doações para casamento e
às doações entre casados, sendo que as normas que lhes diziam respeito foram revogadas. No
silêncio da lei, deve entender-se que esse tipo de doações passará a reger-se pelas normas
aplicáveis às doações em geral, previstas no art. 940.° do Código Civil.

Poder-se-á questionar a razão por que o Código de Família permite a existência simultânea de
dois regimes de bens no casamento e não apenas o regime único de comunhão de adquiridos.

Nos sistemas jurídicos dos ex-países socialistas adotava-se a regra do regime de comunhão de
adquiridos, embora se admitisse, com certas limitações, a fixação de outro regime de bens, por
via contratual. Da mesma forma as primeiras Leis de Família de Cabo Verde e de S. Tomé e o
Projeto da Lei de Família de Moçambique admitiam como regime único o da comunhão de
adquiridos.

Podem ver-se no relatório que antecedeu o Projeto do Código de Família as razões que
levaram o legislador a consentir na dualidade do regime de bens.

Em certos casos, como ali se diz, os nubentes podem achar mais adequado celebrar o
casamento com separação de bens, atendendo a factos como a pouca estabilidade do
casamento, a existência de filhos de uniões maritais ou de simples uniões de facto anteriores
de um ou de ambos os nubentes, a desigualdade económica dos nubentes, etc.. Deve ter-se
em conta também o peso do direito tradicional angolano, que estatui como regime-regra o
regime de separação de bens, em razão da existência do casamento poligâmico.

Escolhido um dos regimes previstos, ele é imutável durante a vigência do casamento, o que
leva a que a declaração feita, quer na declaração inicial quer no momento da celebração do
casamento, seja bilateral, pois deve ser feita em concordância por ambos os nubentes, e de
forma expressa e irrevogável, não podendo ser alterada posteriormente.

Adota-se assim o sistema da imutabilidade do regime de bens. É este o sistema que ainda
vigora no Código Civil português — art. 1714.° n.° 1, ainda que com algumas exceções não
previstas no Código de Família, designadamente a separação judicial de bens e a separação
judicial de pessoas e bens.

O art. 50° do Código de Família estabelece que o regime económico do casamento considera-
se existente desde o momento da sua celebração e perdura até à extinção do vínculo
matrimonial, salvo os casos previstos na lei, exceção esta que pode surgir na dissolução do
casamento por divórcio.

Tal não obsta a que, em certos casos de execução por dívidas exclusivas de um só cônjuge,
possa ser pedida a divisão dos bens comuns e a sua separação em duas meações, como
veremos mais adiante.

O princípio da imutabilidade do regime de bens é defendido por se entender que constitui


uma segurança não só para os cônjuges mas também para terceiros. Esta posição legal tem
como fundamento no essencial, por um lado o receio de que depois do casamento um dos
cônjuges possa desfrutar de grande influência sobre o outro e levá-lo a alterar o regime
económico do casamento em seu desfavor. E por outro, a proteção de interesses de terceiros
que podem defrontar-se com novas situações de regime económico que lhes sejam
desfavoráveis.

Há, no entanto, sistemas jurídicos que permitem a mutabilidade dos regimes patrimoniais,
como o direito brasileiro , espanhol, alemão e sueco.

Podemos adiantar que a tendência é no sentido de permitir a alteração do regime económico


do casamento tendo em conta que a vida conjugal pode trazer situações que impliquem a
alteração do regime económico aceite antes do casamento e por ser de respeitar o princípio
da liberdade contratual.

Quando estudarmos os efeitos da dissolução do casamento por divórcio teremos ocasião de


ver os casos em que a lei considera como antecipado o fim da vigência do regime económico
do casamento.

A atual Lei das Sociedades Comerciais, Lei n.° 1/04 de 13 de fevereiro, permite a constituição
de sociedades entre cônjuges, bem como a participação de ambos na mesma sociedade, desde
que só um deles seja sócio de responsabilidade ilimitada — art. 9.°, n.° 1: «Épermitida a
constituição de sociedade entre cônjuges, bem como a sua participação na mesma sociedade,
desde que só um deles seja sócio de responsabilidade ilimitadz.» Desta forma passou a ser
permitida a participação dos cônjuges em qualquer tipo de sociedade comercial, com a
ressalva de que só um deles pode nela assumir responsabilidade ilimitada.

No Código de Família, quando provada a data do fim da coabitação dos cônjuges na sentença
que declara o divórcio, dá-se por finda, retroativamente, a vigência do regime económico do
casamento.

[84] O regime de comunhão de adquiridos

Este é o regime-regra ou regime supletivo geral de bens no casamento, ele aplica- -se ipso iure
na falta de opção pelo regime alternativo. Trata-se duma comunhão de bens parcial que vai
abranger os bens especificados na lei. O legislador entendeu que é ele que melhor assegura à
família matrimonial a base patrimonial que lhe é indispensável. E isto dada a permanência de
interesses patrimoniais que se iniciam com o casamento e se desenvolvem no decorrer da vida
em comum, através dos bens obtidos pelo trabalho de ambos os cônjuges.

Conforme a designação indica, este regime prevê que durante o decurso da união conjugal vão
sendo adquiridos bens, seja pela atividade exercida pelos cônjuges seja de rendimentos
havidos não só de bens comuns como ainda de bens próprios. Por outras palavras, prevê-se
um incremento do património.

Discute-se na doutrina sobre qual a natureza do regime de bens supletivo, havendo quem
sustente que ele assenta na vontade presumida dos nubentes. Se os nubentes nada
declararem quanto aos regime de bens, presume-se que a sua vontade tácita é a de adotar o
regime supletivo.

Predomina, porém, a posição segundo a qual a lei aproveita o silêncio dos nubentes para fixar
ela própria, fazendo abstração da vontade dos cônjuges, o regime de bens que lhe parece mais
vantajoso sob o ponto de vista social.

Neste regime distingue-se fundamentalmente, a natureza dos seguintes patrimónios:

Pelo lado ativo abrange os bens adquiridos por um ou ambos os cônjuges de forma conjuntiva
ou disjuntiva, a título oneroso.

Como caraterística temporal refere-se aos bens adquiridos depois dc celebrado o casamento e
em princípio, durante a vigência do casamento. Ou seja, «ingressam no património comum de
forma automática, os efeitos da sua aquisição por um cônjuge comunicam-se de imediato ao
outro cônjuge.»w

Abrange os salários e rendimentos do trabalho de cada um dos cônjuges, bem como os


rendimentos e frutos produzidos tanto pelos bens próprios de cada cônjuge como pelos bens
comuns.

Pelo lado passivo abrange as dívidas comuns.

No regime de comunhão de adquiridos coexistem pois, três patrimónios distintos:


— O património próprio do marido, que engloba os bens e dívidas que tinha antes da
data do casamento e as próprias posteriores a este e os demais bens excetuados pela lei da
comunhão, entre os quais os recebidos a título gratuito depois do casamento;

— O património próprio da mulher, que abrange, da mesma forma que o do marido, os


bens e dívidas anteriores ao casamento, os bens recebidos depois do casamento a título
gratuito e os excetuados por lei da comunhão, e as dívidas anteriores e próprias posteriores;

— O património comum, que engloba os bens adquiridos depoisdo casamento a título


oneroso, os rendimentos regulares e os frutos produzidos pelos bens próprios e comuns dos
cônjuges, os salários e as dívidas comuns que podem ser anteriores ou posteriores ao
casamento.

A — Natureza jurídica da comunhão matrimonial de bens Não é pacífica a questão de saber


qual a natureza jurídica do direito dos cônjuges sobre o património comum. O Código Civil
falava em bens comuns, enquanto o Código de Família fala em património comum. Há quem
sustente que esse património é um património autónomo, dotado de personalidade jurídica.

Outros pretendem que se trata de uma sociedade civil e que, através da prestação de bens ou
serviços, se desenvolve uma atividade económica específica. Mas é manifesto que o regime
legal das sociedades é incompatível com o da comunhão matrimonial de bens.

O que interessa é definir, no âmbito das relações internas dos cônjuges, como se caraterizam
os seus direitos sobre o quinhão comum.

Entende-se que este direito tem caráter de comunhão de propriedade do tipo germânico, ou
propriedade coletiva, a «comunhão de mão comum»(5). Segundo

(4) Esperança Pereira Mealha, ob. cit., p. 41. s) Em alemão: «gesamte hand».

esta doutrina, os titulares não têm qualquer direito à divisão dos bens, idêntico ao que existe
normalmente no direito de propriedade. Eles teriam um único direito a incidir sobre todos os
bens.

É este o entendimento do Prof. Pereira Coelho, que sustenta que os bens comuns constituem
uma massa patrimonial, à qual, tendo em vista a sua especial afetação, a lei concede certo
grau de autonomia, massa que pertence aos dois cônjuges em bloco, sendo eles titulares de
um único direito sobre a sua totalidade.

Haveria, pois, uma propriedade coletiva, pertença dos dois cônjuges, mas sem se repartir em
quotas ideais, pois o património coletivo, diferentemente da comunhão, não permite a divisão
do direito, mesmo ideal.

O Prof. Eduardo Santos perfilha a doutrina segundo a qual se trata de uma comunhão especial
do direito de família, que não encontra paralelo em qualquer outro ramo de direito .
O Prof. Antunes Varela define com clareza que, na constância de sociedade conjugal, marido e
mulher são simultaneamente titulares de um único direito sobre todos e cada um dos bens.
Cada um dos cônjuges tem direito em abstrato a metade do património comum.

O Código Civil dizia expressamente que «os cônjuges participam por metade no ativo e passivo
da comunhão» (art. 1730.°, n.° 1).

O Código de Família não tem disposição equivalente, mas o art. 75.°, n.° 2 menciona que a
partilha de bens, após a dissolução do casamento, se opera com a meação dos bens comuns.
Esta disposição é aplicável à dissolução do casamento por divórcio, por força do art. 80.° do
mesmo Código.

Este direito à metade virtual de todos os bens comuns permanece enquanto não for dissolvido
o vínculo conjugal.

Ao património comum é aplicável um regime específico tendo em conta o fim legal que lhe é
atribuído, o da afetação às necessidades materiais da vida conjugal.

Esse património comum a que os cônjuges estão ligados por vínculo pessoal subsiste, pois,
enquanto esse vínculo perdurar, porque, enquanto o casamento se mantiver, as razões para a
afetação especial desses bens permanece. É, segundo a opinião prevalecente, um direito de
propriedade coletiva ou de mão comum.

Os cônjuges são contitulares de um único direito sobre a totalidade de todo o património.

Assim, enquanto não for dissolvido o casamento, os cônjuges não podem dispor, por venda ou
por doação, da sua meação nos bens comuns, tal como lhes não é permitido pedir a partilha
desses bens.

Era este o princípio adotado nos artigos 1688.° e 1689.° do Código Civil, mantendo-se no
Código de Família (artigos. 75.°, n.° 1 e 80.°, n.° 1), traduzindo- -se na impossibilidade de
divisão do património comum durante a vigência do casamento.

A indivisibilidade traduz-se na impossibilidade de, em regra, se proceder à divisão do


património enquanto durar a sociedade conjugal. Daí que nenhum dos cônjuges possa
considerar como sua propriedade qualquer bem durante a sua vigência.

Cada um dos cônjuges participa, assim, no património comum, na proporção de metade. Mas
esse direito ideal à metade dos bens só se concretiza no momento em que se vier operar a
partilha. A partilha é impossível durante o casamento e é sempre posterior à sua dissolução.
Até lá, os cônjuges são titulares do único direito que incide sobre todos e cada um dos bens
comuns, indistintamente.

Cada cônjuge tem pois direito à meação ou seja tem direito a uma quota ideal com o valor de
metade da totalidade dos bens. « 0 direito a metade é assim o direito ao valor de metade. »

O património comum está em regra legalmente protegido pela moratória legal, que não
permite a partilha desses bens antes da dissolução do casamento, por serem eles o principal
sustentáculo da sociedade conjugal. Era o que dispunha o art. 1696.°, n.°s 1 e 2 do Código Civil,
e é o que dispõe atualmente o art. 64.° do Código de Família.

No entanto deve assinalar-se que a proteção da moratória legal em beneficio do património


dos cônjuges e em prejuízo da cobrança da dívida pelo credor, não encontra acolhimento na
maior parte dos sistemas legais. E já não subsiste no atual Código Civil português por alteração
do citado art. 1696.°, n.° 1.

Neste mesmo sentido, o direito angolano com a alteração ao Código Comercial pela Lei n.°
6/03, de 3 de março, no seu art. 10.° veio dispor: «Não há lugar à moratória estabelecida no
n.° 1 do art. 64.0 do Código de Família quando for exigido de qualquer dos cônjuges o
cumprimento de uma obrigação emergente de ato de comércio, ainda que o seja apenas em
relação a uma das partes.»

B — Os bens comuns

O art. 51.° do Código de Família diz quais os bens que integram o património comum dos
cônjuges:

a) os bens e direitos adquiridos a título oneroso durante a constância do casamento;

b) os salários, pensões ou quaisquer outros frutos ou rendimentos regulares, recebidos


pelos cônjuges durante o casamento.

O n.° 2 deste art. 51.° dispõe: « Presumem-se comuns os bens dos cônjuges que não se prove
que são próprios de cada um dele.» A regra é pois segundo a presunção legal, de que os bens
dos cônjuges são comuns, o que constitui um preceito decisivo, e que faz incidir o ónus da
prova da natureza de bens próprios sobre o cônjuge nisso interessado.

Por conseguinte, a regra geral é a de que os bens são comuns, sendo exceção os bens próprios
de cada cônjuge.

Os bens comuns abrangem todos os bens que tenham sido adquiridos a título oneroso, depois
da celebração do casamento, o que envolve uma comunhão parcial, uma vez que todos os
bens que os cônjuges tiverem antes dessa data são considerados como bens próprios, e só os
que forem adquiridos a título oneroso posteriormente passam a estar integrados no
património comum. A aquisição pode ser feita de forma conjunta por ambos os cônjuges, ou
por forma disjuntiva, por um só cônjuge.

Entre os bens adquiridos estão os salários auferidos como produto do trabalho dos cônjuges,
as pensões (v.g; pensões de reforma), os frutos e os rendimentos produzidos por todos os bens
próprios e comuns, imóveis e móveis (por ex.: rendas de prédios urbanos, dividendos de
dinheiro depositado a prazo em instituições bancárias, as colheitas anuais das propriedades
agrícolas, etc.).

Passam a ser bens comuns os bens adquiridos com o produto desses frutos ou rendimentos.
Temos assim como bens comuns, todos os bens adquiridos por um ou por ambos os cônjuges,
desde que tenham sido adquiridos durante a vigência do casamento e não estejam excluídos
por lei da comunhão, por serem bens próprios.

A presunção da natureza comum dos bens do casal contida no n.° 2 do art. 51.° visa sobretudo
a proteção do interesse de terceiros. O cônjuge interessado ou os seus herdeiros é que terão
de fazer a prova de que determinado bem é próprio e não comum. Em regra, basta a confissão
do outro cônjuge de que o bem é próprio para o não integrar na comunhão.

Mas ela é por si só insuficiente, perante os credores, sejam eles de dívida comum ou exclusiva.
No caso de aquisição a título oneroso com o dinheiro ou valores que sejam bem próprio de um
dos cônjuges, o outro cônjuge deve ser chamado a intervir e a fazer a declaração no ato da
aquisição.

C — Os bens próprios

O elenco dos bens próprios tem caráter taxativo, só sendo bens próprios os que forem
expressamente referidos na lei.

O art. 52.° define os bens próprios de cada cônjuge:

a) Os bens móveis e imóveis e os direitos que cada cônjuge tiver antes do casamento.

Interessa para a caraterização da natureza de bens próprios que o título de

aquisição seja anterior à celebração do casamento. É indiferente que tenham sido adquiridos a
título gratuito ou a título oneroso; o que interessa é que a data da aquisição seja anterior ao
casamento e que o bem tenha sido levado pelo cônjuge para o casamento.

Se o bem for adquirido durante o matrimónio mas por direito próprio anterior, o bem tem a
natureza de bem próprio.

O art. 1722.° do Código Civil português indica, a título exemplificativo, que constituem bens
próprios dos cônjuges os que vierem de direitos a patrimónios ilíquidos partilhados depois
deles (ex.: liquidação de bens de uma sociedade comercial), os adquiridos por usucapião
fundada em posse anterior ao início do casamento, os comprados antes do casamento com
reserva de propriedade, os adquiridos no exercício anterior de um direito de preferência.

b) Os bens e direitos adquiridos por cada um dos cônjuges durante o casamento a título
gratuito e os sub-rogados no lugar dos próprios.

São os bens que advêm aos cônjuges em razão de sucessão ou doação. Pode acontecer que os
bens sejam deixados por testamento, ou sejam doados aos dois cônjuges simultaneamente.
Mas, ainda que tal aconteça, a quota-parte de cada cônjuge nesse bem não deve ser
considerada como bem comum.

O Código de Família não contém nenhuma disposição com teor idêntico ao art. 1729.° do
Código Civil, que previa que os bens havidos por sucessão ou doados podiam ser integrados na
comunhão, se tal fosse a vontade expressa do autor da liberalidade e que ressalvava os bens
ou deixas que integrassem a legítima do donatário. Daí que, em nosso entender, deve aplicar-
se a regra geral de que são bens próprios todos aqueles que sejam adquiridos a título gratuito
durante o casamento.

São considerados como próprios os bens que tomam, por substituição, o lugar dos próprios. É
o caso da sub-rogação real, que leva a que uma coisa vá ocupar o lugar de outra, devendo
haver conexão entre a perda de uma e a aquisição da outra. Há uma substituição de um bem
por outro, como nos casos da troca de um prédio por outro, da indemnização recebida por via
de um contrato de seguro relativo a bens próprios, das benfeitorias feitas com valores próprios
do cônjuge, etc..

Seria injusto que, pelo facto de o novo bem ser adquirido a título oneroso, a lei o considerasse
comum, uma vez que ele foi obtido na constância do matrimónio, mas à custa de bens
próprios. Isso iria prejudicar os interesses do cônjuge titular do direito e os interesses de
terceiros, eventuais credores.

Por conseguinte, como vimos, se no título de aquisição for declarado que o bem adquirido a
título oneroso provem de anteriores bens próprios do cônjuge adquirente, esse bem continua
a manter a qualidade de bem próprio.

Procura-se que o património próprio de cada cônjuge se mantenha e que a saída de


determinado bem ou valor seja compensada pela entrada de outro de valor equivalente.

c) Os direitos de autor, os prémios e as recompensas recebidas resultantes da atividade


pessoal de cada um dos cônjuges.

Os direitos de autor, tanto quanto ao seu conteúdo estritamente pessoal, como quanto ao seu
conteúdo patrimonial, são considerados como bem próprio. Eles abrangem os direitos sobre a
propriedade literária, científica e artística, os direitos sobre a propriedade industrial, etc..

Igualmente são considerados bens próprios, os prémios atribuídos aos trabalhadores


destacados nas empresas, os prémios das competições desportivas, a recompensa por uma
ação benemérita ou altruísta, etc., desde que resultem de atividade pessoal de um dos
cônjuges, etc..

d) Os bens adquiridos em virtude de direito pessoal de cada cônjuge.

O direito inerente à pessoa humana é estritamente pessoal e os direitos patrimoniais que dele
possam derivar em relação aos cônjuges mantêm a natureza de bem próprio. As quantias
havidas a título de indemnização por danos causados à sua integridade física ou moral e as
pensões por invalidez, derivadas de acidente de trabalho ou outras, são bens próprios do
cônjuge.

e) Os bens de uso pessoal e os objetos de trabalho exclusivo de cada um dos cônjuges.

Incluem-se aqui os bens de uso pessoal, como o vestuário, adornos e outros

objetivos privativos, desde que não tenham valor económico considerável.

E ainda os instrumentos usados no exercício da profissão ou ofício, desde que usados em


exclusivo por um dos cônjuges e que não tenham elevado valor económico. Pode ser o caso do
estetoscópio usado pelo médico, os códigos dos juristas, a máquina fotográfica do fotógrafo,
etc., que sejam unicamente usados pelo cônjuge no exercício da sua atividade profissional ou
no seu mister.

Se os objetos de trabalho estiverem integrados em estabelecimento ou exploração


desenvolvida como empresa ou profissão liberal ou outra, deixam de ter natureza de bem
próprio.

D — Os bens em parte comuns e em parte próprios

Os bens podem ser em parte comuns e em parte próprios. Aliás, no desenvolver da vida
patrimonial dos cônjuges, os bens vão sendo substituídos por outros ou vão sendo adquiridos
em parte com bens próprios e em parte com bens comuns e nem sempre é fácil fazer a
respetiva destrinça.

Tem que se atender ao maior valor que foi integrado no novo bem: o valor da prestação mais
valiosa é que irá definir a natureza própria ou comum do bem. Poderá haver lugar a
compensação entre o património comum e o património próprio de cada cônjuge quanto à
parte que exceda a prestação menor. O reembolso da prestação deverá ser feito aquando da
partilha dos bens.

Tal pode acontecer, por exemplo, quando se efetuam, com dinheiro comum, benfeitorias úteis
em bem imóvel que seja próprio de um dos cônjuges, ou quando um instrumento exclusivo de
trabalho, que é bem próprio, for adquirido com um bem comum.

Nestes casos o cônjuge titular do bem próprio ficará devedor da respetiva prestação ao
património comum. Pode dar-se o inverso, e ser o novo bem adquirido a título oneroso
durante o casamento com uma prestação maior de bens comuns e uma prestação menor de
bens próprios, ficando, neste caso, credor do património comum o cônjuge que era titular do
bem próprio.

A reintegração da prestação do cônjuge deve ser feita pelo valor que tiver à data da liquidação.
Se houver aumento de valor em consequência da prestação investida, esse fator dever ser tido
em conta aquando da restituição.

[85] O regime da separação de bens

O art. 53.° do Código de Família prevê que, se o regime adotado pelos nubentes for o da
separação de bens, cada um deles conserva o domínio, fruição egestão dos seus bens
presentes e futuros, podendo deles dispor livremente, com as restrições previstas na lei.

Os rendimentos desses bens, tal como os frutos e dividendos regulares que eles produzam, os
salários e retribuição por trabalho são património exclusivo de cada cônjuge. Segundo este
regime, existem duas massas patrimoniais absolutamente separadas, uma de cada cônjuge, ou
seja, os bens próprios do marido e os bens próprios da mulher.

Neste regime predomina, pois, como ideia central, a absoluta separação entre os património
dos cônjuges. Aqui só há bens próprios, que englobam tanto os bens de que o cônjuge seja
titular antes do casamento, como aqueles que for adquirindo durante a sua vigência. Neles se
integram pois, os respetivos frutos, rendimentos ou quaisquer benefícios patrimoniais.

E a separação é completa, não só no domínio e fruição de bens, mas também — como


consequência daquelas premissas — no que toca em geral, ao poder de disposição e de
oneração de bens, tendo os cônjuges a livre administração dos bens, que podem gerir de
forma autónoma.

Esta circunstância não exonera os cônjuges do dever de contribuir para os encargos da vida
familiar, essa contribuição como dever essencial à vida conjugal, permanece seja qual for o
regime de bens adotado e é proporcional à capacidade económica de cada cônjuge.

No regime da separação de bens não há património comum. Há, por um lado, os bens da
mulher e, por outro, os bens do marido. Apesar de não haver bens comuns, pode suceder que
haja alguns bens que sejam pertença de ambos os cônjuges em regime de compropriedade.

Essa compropriedade está sujeita às regras gerais dos direitos reais, e não ao regime específico
da comunhão matrimonial de bens, razão pela qual qualquer dos cônjuges pode pedir, a todo
o tempo, divisão do bem de que é coproprietário, através do processo de divisão da coisa
comum.

O cônjuge pode também dispor livremente da sua quota-parte desses bens.

O n.° 2 do art. 53.° prevê que, em caso de dúvida, se presume a compropriedade dos bens
móveis. Essa presunção pode ser ilidida através de prova em contrário. No Código Civil previa-
se que os cônjuges podiam fazer constar da convenção antenupcial cláusulas sobre a
propriedade de certos bens móveis (art. 1736.°).

Tal previsão não consta do Código de Família, mas nada impede que os nubentes assinem,
antes da celebração do casamento, se assim o quiserem, documento de que conste a natureza
própria de certos bens móveis. A eficácia de tal declaração em relação a terceiros será
certamente limitada e não impedirá que estes usem quaisquer meios de prova para afastar o
valor de tal declaração.

O Código de Família impõe algumas exceções quanto ao poder de livre disposição e


administração de bens. Essas restrições à regra da liberdade e autonomia dos cônjuges quanto
ao seu património próprio são impostas pela lei em razão do fim específico a que tais bens
estão afetos, e que tem a ver com a estabilidade do lar conjugal.

Essas exceções, que restringem o poder de disposição de bens mesmo existindo o regime de
separação de bens, são as que vêm consignadas:

a) no art. 56.° n.° 2, alíneas a) e b) — que se refere «a bens móveis utilizados pelo outro
cônjuge como instrumentos próprios ou comuns de trabalho ou

utilizados na vida do lar»;

b) no art. 57.°, que se refere «à disposição do direito ao arrendamento da

residência defamília».
Na alínea a) procura-se proteger não só os bens usados pelo outro cônjuge na sua atividade
profissional, mas ainda os móveis que constituem o recheio da casa e são usados pelo
agregado familiar. Eles englobam ao mobiliário, eletrodomésticos, roupas, objetos de adorno,
etc.

Na alínea b) protege-se o direito à residência familiar, que é atribuído aos dois cônjuges
simultaneamente. O Código de Família não prevê essa proteção legal no caso de a residência
familiar estar estabelecida em bem imóvel que seja propriedade de um só cônjuge.

No regime de separação de bens entendeu-se que, para se determinar a titularidade dos bens
como propriedade de um dos cônjuges, basta a confissão do outro. Mas tal confissão não
poderá prejudicar direitos de herdeiros ou credores do cônjuge em causa. No caso de dúvida
sobre a titularidade dos bens móveis, pertencerá metade a cada cônjuge, não em regime de
comunhão, mas em regime de compropriedade.

No património próprio de cada cônjuge incluem-se ainda as dívidas próprias e as dívidas


comuns de ambos como adiante veremos.

[86] Os poderes de administração dos bens; responsabilidade do cônjuge administrador;


poderes de oneraçáo e de disposição de bens

A vida matrimonial implica, na sua prática diária, a celebração de atos jurídicos correntes que
se revestem de caráter patrimonial, sendo necessária uma certa organização interna que
regule os efeitos e implicações jurídicas de tais atos.

A família constitui um núcleo ou célula social, que é uma unidade em relação a terceiros,
unidade que possui em regra um património comum, que pode ser variável mas que em
princípio deve existir. Toma-se necessário, por isso, que os atos jurídicos que interessam à vida
da família estejam devidamente vinculados.

Essa vinculação pode ser definida através das consequências que tais atos vão ter em relação
ao património comum, ainda que praticados unicamente por um cônjuge, ou através do
concurso dos cônjuges que a lei exige no momento da própria celebração do ato.

Os poderes de administração de bens conferidos aos cônjuges variam, obviamente, de acordo


com as conceções ideológicas subjacentes aos diferentes ordenamentos jurídicos, pois reside
aí uma das pedras de toque para aferir a existência (ou não) de igualdade dos cônjuges no
casamento.

Os poderes de administração, oneração e alienação de bens dos cônjuges dependem


igualmente do regime económico do casamento.

Em qualquer desses regimes, os cônjuges podem individualmente abrir contas de depósito em


instituições bancárias e movimentá-las livremente. Podem ainda gerir títulos de crédito, em
seu nome ou ao portador, estando todas as operações bancárias salvaguardadas pelo sigilo
bancário, mesmo relativamente ao outro cônjuge.

A — No regime de comunhão de adquiridos


1. Administração ordinária e administração extraordinária

No regime de comunhão de adquiridos existem os bens próprios de cada cônjuge e os bens


comuns de ambos, e a regra geral é a de que cada cônjuge administra os seus bens próprios
(art. 54.°, n.° 1 do Código de Família),dispondo dos respetivos frutos e rendimentos. No
entanto, e como exceção, um cônjuge pode administrar os bens próprios do outro ou os bens
comuns quando sejam por si usados exclusivamente como instrumento de trabalho.

O cônjuge tem ainda a administração dos bens comuns, designadamente dos que constituem o
produto do seu trabalho e a administração ordinária dos bens comuns do casal (art. 54.°, n.°
3).Pode assim dispor de bens móveis cuja titularidade ou posse lhe pertença, tal como viaturas
automóveis, títulos de crédito, numerário, etc.

Como exceção, o cônjuge pode ter a administração dos bens próprios do outro cônjuge
quando ele se encontrar ausente, ou de qualquer forma impedido de os administrar (art. 54.°,
n.° 2, alínea b)). Estes poderes derivam ope legis sem necessidade de constituição de mandato.

Porem qualquer cônjuge, em relação aos seus bens próprios ou comuns, pode sempre
escolher mandatário para os administrar, outorgando procuração a terceiro ou ao outro
cônjuge se assim o quiser.

A impossibilidade de administração pelo próprio pode decorrer do facto da ausência do


cônjuge ou de qualquer impedimento do exercício da administração (por exemplo, doença,
prisão, etc.).

Esta disposição veio afastar expressamente largas discussões na doutrina sobre se o cônjuge
proprietário podia ou não conferir procuração a terceiro para administrar os seus bens. Se o
fizer, o outro cônjuge já não pode ser chamado à administração dos bens próprios dele, mas
caso o não faça, o cônjuge pode, por força do poder legal, exercer a administração sem
necessidade da outorga de qualquer procuração.

Na mesma linha de orientação, o citado art. 9.°, n.° 3 da Lei n.° 1/04 permite que o sócio que
esteja impossibilitado de exercer os respetivos direitos possa ser representado pelo cônjuge.

Quanto aos demais bens comuns, importa fazer a distinção entre:

— atos de administração ordinária e

— atos de administração extraordinária.

Para os primeiros, qualquer dos cônjuges tem legitimidade para os praticar separadamente
(fala-se de administração disjuntiva). Para os atos de administração extraordinária, a regra é a
da administração conjunta. O que significa que a administração é exercida em comum por
ambos os cônjuges, que têm legitimidade ativa conjunta.

A distinção entre atos de administração ordinária e atos de administração extraordinária


radica no facto de se tratar de ato normal dentro dos atos que representam a gestão dos bens,
ou de um ato fora do normal ou extraordinário.
A gestão de qualquer património concretiza-se mediante atos que podem qualificar-se como
atos de administração ordinária e atos de administração extraordinária.

São atos de administração ordinária os que dizem respeito:

a) à conservação dos bens administrados;

b) à promoção da sua frutificação normal.

Neles se englobam o cultivo de uma quinta, a colheita de café numa roça, a venda de crias de
um rebanho. Ou atos que se destinem à conservação de imóveis, como a substituição de um
telhado, de um tubo de canalização, ou de móveis, como a reparação de uma viatura
automóvel, etc.

Como atos de conservação podem indicar-se as capinas e limpeza de prédio rústico. Como atos
que se destinam à frutificação normal de um bem, os que se referem à compra de sementes,
às vacinas para gado, etc.

Os atos de administração extraordinária envolvem a transformação da própria natureza do


bem, como seja a destruição de um pomar para o substituir por um aviário, a construção de
benfeitorias num prédio rústico ou a destruição das já existentes, como a feitura de um
armazém, a demolição de um estábulo, a construção de um açude.

Os atos de administração extraordinária envolvem a alteração da substânciada própria coisa


ou a substituição de um bem por outro, e podem envolver poderes de disposição sobre os
bens.

2. Responsabilidade do cônjuge administrador

O art. 55.°, que regula o exercício da administração, dispensa o cônjuge administrador da


obrigação de prestar contas da sua administração relativa a bens comuns ou próprios do outro
cônjuge. Goza, pois, de um estatuto especial, diferente daquele que é instituído por lei para os
administradores de bens alheios.

O legislador reconhece, neste caso, como no caso da administração dos bens de filhos
menores atribuída aos pais, que se torna muito difícil exigir prestação de contas entre pessoas
que vivem em economia comum. Além de que, se impusesse a obrigação periódica de
prestação de contas entre os cônjuges, esse regime iria causar perturbação na sua vida
pessoal.

Embora não haja a obrigação de prestar contas, o outro cônjuge tem o direito à informação e
deve manter-se informado sobre os negócios da família, tendo acesso à documentação que
esteja na posse do outro.

Não obstante, a parte final do art. 55.° prevê que o cônjuge administrador possa ser
responsabilizado pelos atos que pratique em prejuízo do outro cônjuge ou do casal,
intencionalmente ou com grave negligência. Tal pode acontecer quando a aplicação dos bens
tenha sido feita para fins distintos dos encargos da vida familiar ou de forma a lesarem os
interesses da família.
A lei exige que os atos sejam intencionais, visando o prejuízo do outro cônjuge ou do casal,
considerando-se abrangida nesta disposição não só a conduta dolosa, com fraude, violando os
interesses da família, mas também a conduta gravemente negligente, envolvendo a
negligência consciente.

Se um dos cônjuges lesar ou tentar lesar gravemente os interesses da família, o outro pode
recorrer a tribunal e pedir que sejam tomadas providências de caráter urgente na defesa dos
seus interesses.

O Código Civil português prevê até que o cônjuge prejudicado pela admi¬nistração lesiva do
outro, possa requerer a simples separação judicial de bens. Esta disposição, como vimos, não
tem equivalente no Código de Família, pelo que, perante tal situação, o cônjuge só poderá
reagir pedindo a anulação do ato ou atos lesivos dos seus interesses e prejudiciais ao interesse
de família, ou propondo contra o outro cônjuge ação de indemnização pelos danos sofridos.

Em síntese: a regra é que a administração ordinária dos bens comuns é atribuída a qualquer
dos cônjuges (art. 54.°, n.° 3 do Código de Família) já que a administração extraordinária é
atribuída em conjunto a ambos os cônjuges.

3. Os poderes de disposição e oneração de bens

Vimos já que a gestão de um património implica, por um lado, atos de administração e, por
outro, atos de disposição ou de oneração.

Interessa fixar quais os poderes de disposição e de oneração que os cônjuges detêm e que vêm
expressos no art. 56.° do Código de Família.

A regra vem no n.° 1, que diz: «Qualquer cônjuge tem legitimidade para alienar ou onerar por
ato entre vivos os bens próprios ou comuns de que tenha a administração, salvo o disposto no
n.°2.»

Daí que o cônjuge possa, em regra, dispor livremente de qualquer bem móvel próprio (ex.: dos
direitos de autor auferidos), ou comum (ex.: salários auferidos, rendas de imóveis, etc.). Já em
relação aos bens próprios do outro cônjuge o administrador só pode praticar atos que
envolvam administração ordinária.

Incluídos no poder de disposição de bens móveis estão os valores monetários, títulos de


crédito, depósitos bancários, estes protegidos pelo sigilo bancário, etc..

As exceções aos poderes de livre disposição de bens móveis vêm consignadas no n.° 2 do art.
56.° e aplicam-se qualquer que seja o regime de bens (comunhão de adquiridos ou separação
de bens). São normas específicas que foram inseridas no direito de família de diversos países e
que têm por finalidade proteger em especial certos bens considerados essenciais à vida do lar
ou à atividade profissional do outro cônjuge. São elas as referentes:

a) aos bens móveis próprios de um cônjuge exclusivamente utilizados pelo outro como
instrumento de trabalho — alínea a) do n.° 2 do art. 56.°;
b) aos bens móveis próprios ou comuns utilizados conjuntamente pelos cônjuges na vida
do lar ou como instrumento comum de trabalho — alínea b) do n.° 2 do art. 56.°.

Os instrumentos de trabalho englobam os móveis usados na atividade profissional do cônjuge,


sozinho, ou em comum com o outro. Os bens utilizados na vida do lar são aqueles que
constituem o recheio da casa e são usados pela família.

Isto significa que o cônjuge que tenha como bem próprio uma viatura automóvel que o outro
cônjuge use como motorista profissional não a pode alienar sem o consentimento deste. Da
mesma forma, os bens que constituem o recheio da casa (mobílias, fogões, louças, etc.), quer
sejam próprios de cada cônjuge quer sejam comuns, só podem ser alienados com o
consentimento de ambos.

Relativamente aos bens imóveis e ao estabelecimento comercial, considerados de especial


relevância para a economia familiar, dispõe a regra contida no n.° 3 do art. 56.°. Os imóveis
próprios ou comuns e o estabelecimento comercial só podem ser alienados ou onerados por
ato entre vivos, com o acordo de ambos os cônjuges, salvo se vigorar entre eles o regime de
separação de bens.

É compreensível que a lei exija o consentimento de ambos os cônjuges para atos de disposição
que tenham por objeto bens imóveis ou estabelecimento comercial. É que, mesmo que se
trate de bens próprios de um dos cônjuges, os rendimentos ou frutos por eles produzidos são
considerados bens comuns, por força do n.° 2 do art. 51.°. Daí o interesse de ambos os
cônjuges quanto ao destino desses bens.

Considera-se porém que hoje em dia os valores mobiliários podem traduzir-se numa maior
relevância económica do que os imobiliários, pelo que a proteção que a lei dá a estes últimos
não tem muita razão de ser.

Pela sua especial relevância na vida do lar, o Código de Família impõe que todo o ato de
disposição relativo ao arrendamento da residência de família seja deliberado por acordo de
ambos os cônjuges. Segundo a regra do art. 57.°, o acordo de ambos os cônjuges é exigido
para:

a) a alteração, resolução e denúncia do contrato de arrendamento, por parte do


arrendatário;

b) a cessão da posição jurídica do arrendatário;

c) o subarrendamento ou o empréstimo total ou parcial.

Mesmo que o direito ao arrendamento pertença a um só dos cônjuges, por ter sido adquirido
anteriormente ao casamento, o titular do direito não poderá praticar nenhum ato de
modificação ou de alienação desse direito sem o consentimento do outro cônjuge.

É evidente que o que tem de existir é um direito ao arrendamento da residência onde vive o
casal. Se nenhum dos cônjuges for o arrendatário da casa de habitação onde residem, a
questão da alienação não se pode pôr.
Como atrás apontámos, o Código de Família não prevê o direito à atribuição de residência
familiar se ela se situar em imóvel que for bem próprio de um dos cônjuges. Se tal acontecer,
são de aplicar as regras gerais do direito da propriedade de cada um, com as restrições já
apontadas quanto aos poderes de alienação e de oneração dos bens imóveis contidas no já
citado art. 56.° n.° 3, aplicáveis ao regime de comunhão de bens adquiridos.

O consentimento do cônjuge pode ser expresso ou tácito. Mas, se o ato estiver sujeito a forma
prevista na lei, o consentimento tem de revestir essa mesma forma ou deve ser dado no
próprio ato.

Protege-se, no art. 57.°, o direito ao arrendamento feito a terceiros de imóvel destinado à


residência do agregado familiar, procurando-se salvaguardar o direito à habitação de todos os
membros da família, essencial à sobrevivência da pessoa humana.

Quanto ao regime de aceitação de doações, heranças ou legados, a regra constante do art.


58.°, n.° 1 é a de que cada um dos cônjuges não necessita do consentimento do outro para o
fazer. Em princípio, tais atos irão enriquecer o património familiar. Pode acontecer que a
aceitação de tais bens acarrete encargos, mas, se assim for, são de aplicar as regras gerais
previstas no Código Civil, que limitam a responsabilidade do donatário ou herdeiro.

Em contrapartida, o repúdio de herança ou legado só pode ser feito por ambos os cônjuges.
Neste caso, o cônjuge que não seja o beneficiário do direito de herança ou legado tem que dar
o seu acordo — art. 58.°, n.° 2. E isto porque o repúdio pode implicar a perda de um valor
patrimonial.

As ações de que possa resultar a perda de um direito que só possa ser alienado com o
consentimento de ambos os cônjuges devem ser propostas contra o marido e a mulher
verificando-se nesse caso um litisconsórcio necessário, de acordo com o estipulado nos artigos
18.° e 19.° do Código do Processo Civil.

B — No regime de separação de bens

A cada um dos cônjuges é atribuído o poder de livre fruição e domínio dos seus bens, uma vez
que cada um dos cônjuges conserva a titularidade dos bens anteriores ou posteriores ao
casamento. Cada cônjuge pode administrar livremente os seus bens e dispor deles a título
individual, e sem o consentimento do outro, qualquer que seja a natureza do bem, móvel ou
imóvel.

Não são assim aplicáveis as restrições constantes do n.° 3 do art. 56.°, referentes a bens
imóveis e ao estabelecimento comercial, nem a referente ao repúdio de herança ou legado,
mencionada no art. 58.°, n.° 2.

As restrições aos poderes de alienação ou de oneração de bens quando vigora o regime de


separação de bens são as já mencionadas e que se referem:

a) aos bens móveis usados como instrumento de trabalho pelo outro cônjuge ou por
ambos conjuntamente — art. 56.°, n.° 2, alínea a);

b) aos bens móveis utilizados na vida do lar — art. 56.°, n.° 2, alínea b);
c) ao direito ao arrendamento à residência de família — art. 57.°.

[87] Suprimento judicial do acordo e impugnação judicial

O art. 59.° permite que o acordo do outro cônjuge seja suprido: a) no caso de recusa
injustificada;

b) no caso de impossibilidade de obtenção.

Pode ocorrer que o cônjuge que deva dar a autorização para a prática de determinados atos se
recuse, sem fundamento, a dar esse consentimento, ou que esteja em situação que o
impossibilite de dar esse consentimento (por estar ausente, por estar doente ou por qualquer
outro motivo).

Nestes casos, o tribunal é chamado a intervir e a ponderar se é ou não de autorizar a prática


do ato. Este processo de suprimento vem regulado como processo de jurisdição voluntária nos
artigos 1425.° e 1426.° do Código de Processo Civil. Ao ponderar se deve ou não suprir o
consentimento, o tribunal deve ter em conta o interesse da família.

A prática de qualquer dos atos mencionados na lei por um só cônjuge sem o consentimento do
outro leva, consoante os casos, à sua anulabilidade ou nulidade.

O cônjuge pode pedir judicialmente que o mesmo seja anulado nos termos do art. 60.° do
Código de Família.

São atos anuláveis os que envolverem alienação ou oneração dos bens descritos no art. 56.°,
n.° 2: os bens próprios usados pelo outro como instrumento próprio ou comum de trabalho e
os usados na vida do lar; os imóveis, próprios ou comuns, e o estabelecimento comercial, salvo
se vigorar o regime de separação de bens; o direito ao arrendamento da residência familiar; o
repúdio de herança ou legado.

O direito à impugnação judicial dos atos lesivos do património de um dos cônjuges é


transmissível aos seus herdeiros, como permite a última parte do art. 60.°, n.° 1.

Os atos praticados por um só cônjuge que devessem ser praticados com o acordo dos dois
estão feridos de anulabilidade.

Embora nada se diga quanto à confirmação posterior do ato nulo, ela é possível, nos termos
gerais de direito (art. 288.° do Código Civil), tomando a forma tácita ou expressa, o que fará
cessar a anulabilidade. Se a autorização for posterior, ela toma a forma de ratificação.

Quando o cônjuge pretender impugnar o ato deve fazê-lo dentro do prazo de um ano a partir
da data em que o requerente dele teve conhecimento, mas nunca depois de decorridos três
anos sobre a sua celebração — art. 60.°, n.° 2.

O prazo concedido conta-se assim da data em que o cônjuge interessado teve conhecimento
da prática do ato pelo outro cônjuge e não da data da sua celebração, beneficiando-se o
cônjuge em relação ao interesse de terceiros. É posto o limite de tempo de três anos, dentro
do qual a anulação pode ser pedida, para também desta forma se proteger o interesse do
adquirente do bem em causa.
O n.° 3 do art. 60.° ressalva os direitos do adquirente de boa fé relativos a coisa móvel não
sujeita a registo, que fica a salvo do pedido de anulabilidade.

Os interesses do cônjuge que não interveio no ato são assim postergados cm relação ao
terceiro adquirente. O cônjuge que praticou o ato sem consentimento do outro cônjuge, com
intenção de o prejudicar ou com grave negligência, poderá ser responsabilizado caso se
verifique o condicionalismo do já citado art. 55.° do Código de Família.

Situação distinta é a referida no n.° 4 do art. 60.°, que manda aplicar à alienação ou oneração
de bens próprios do outro cônjuge as regras relativas à alienação de coisa alheia. Estamos
perante um ato nulo, ferido de nulidade substancial.

Esta disposição refere-se a uma situação ainda mais grave, aquela em que um dos cônjuges
aliena um bem que lhe não pertence, por ser próprio do outro cônjuge. E, embora exista um
vínculo matrimonial entre os cônjuges, isso não impede que o bem seja alheio em relação ao
outro cônjuge.

Os artigos. 892.° e seguintes do Código Civil contêm as normas gerais aplicáveis à venda de
bens alheios, dizendo que ela é nula. As regras quanto aos prazos de impugnação são as da
nulidade e não as da mera anulabilidade, podendo ela ser arguida a todo tempo. Isto significa
que as normas aplicáveis são as normas gerais dos negócios jurídicos contidas na lei civil e não
as normas especiais do direito de família.

[88] As dívidas dos cônjuges

A legitimidade para cada cônjuge contrair dívidas sem o consentimento do outro cônjuge vinha
assegurada pelo n.° 1 do art. 1690.° do Código Civil. Este princípio não vem contido no Código
de Família, mas devemos dar como assente que é um princípio também aceite por este
Código, que não vem expresso por desnecessário.

Está implícito no princípio da igualdade dos cônjuges, consagrado no art. 21.°, que é extensivo
a todos os direitos e deveres conjugais, quer respeitem à esfera pessoal quer à esfera
patrimonial.

Pode dizer-se que tanto o marido como a mulher mantêm, mesmo depois de casados, os
mesmos poderes patrimoniais para contrair dívidas, sem necessidade do consentimento do
outro.

As dívidas podem ser contraídas pelos cônjuges em relação a terceiros ou pelos os cônjuges
entre si.

O que varia consoante o regime de bens é a natureza da dívida, é o caráter solidário ou


conjunto da obrigação, e ainda o complexo de bens que respetivamente respondem pelas
dívidas contraídas pelos cônjuges.

Consoante os casos, podem ser chamados ao pagamento das dívidas os bens próprios, os bens
comuns ou o direito à meação nos bens comuns.

No Código de Família as dívidas são classificadas, qualquer que seja o regime


de bens, em:

a) dívidas comuns;

b) dívidas exclusivas.

A — As dívidas comuns

No regime de comunhão de adquiridos, a responsabilidade dos cônjuges pelas dívidas comuns


é solidária — art. 61.°, n.° 2; no regime de separação de bens, a responsabilidade é meramente
conjunta — art. 63.°, n.° 2 do Código de Família.

As dívidas comuns vêm contidas no art. 61.° do Código de Família e podem ser contraídas por
ambos ou por um só cônjuge, mas são comunicáveis ao outro. Na verdade desviando-se das
regras comuns do direito de obrigações segundo as quais só o próprio pode contrair dívidas
que o vinculem, no âmbito das relações matrimoniais pode um só cônjuge vir a contrair dívidas
que o obriguem a ele e ao outro cônjuge que não interveio no negócio jurídico.

Tal acontece em relação aos gastos decorrentes da vida familiar normal que têm que ser feitas
para acorrer às necessidades do agregado familiar e devem corresponder ao padrão
económico-social de vida do casal.

Estas dívidas são dívidas comunicáveis pois vão responsabilizar o outro cônjuge que não
interveio no contrato de que a dívida deriva.

São elas:

a) As dívidas contraídas por ambos ou por um deles para ocorrer aos encargos da vida
familiar — art. 61.°, n.° 1.

Embora o Código o não diga expressamente, pode admitir-se que a dívida seja anterior ao
casamento, como por exemplo as despesas com a viagem de núpcias, com a aquisição de
mobiliário para a residência familiar, etc..

É importante precisar o conceito de encargos da vida familiar, porque eles englobam o maior
caudal de despesas do agregado familiar. Algumas legislações, como a francesa e a espanhola,
discriminam na lei o que deve entender-se por «cbargesdu mariage» ou «cargos dei
matrimónio».

Eles abrangem os gastos necessários à subvenção das necessidades da família (o casal, os


filhos e outros integrantes do agregado familiar), necessidades que englobam o sustento,
alimentação, educação dos filhos, as despesas de habitação, de instalação, de férias e
descanso, os gastos com assistência médica, as despesas judiciais, sejam elas feitas no
interesse de um ou de ambos os cônjuges, etc..

Essas despesas devem pois estar em consonância com os usos e a situação económica dos
cônjuges ou seja com o respetivo trem de vida e não devem ser excessivas, sendo em regra de
natureza periódica, sem embargo de por vezes surgirem esporadicamente por contingências
da vida familiar.
Se algum dos cônjuges tiver filhos de união anterior que façam parte do agregado familiar, os
encargos respeitantes ao sustento, habitação e educação desses filhos estão incluídos nos
encargos normais da vida familiar.

A contribuição de ambos os cônjuges para os encargos normais da vida familiar é, como já


tivemos ocasião de ver, a concretização de um dos deveres conjugais, o dever de assistência
material recíproco, entre marido e mulher.

Os alimentos devidos aos descendentes comuns, bem como aos de cada um dos cônjuges
anteriores ao casamento, são considerados como encargos normais da vida familiar.

Na verdade, por força do disposto no n.° 4 do art. 61.° foi tornado mais amplo o conceito de
encargos normais da vida familiar, pois agora abrange os alimentos devidos aos descendentes
comuns e aos descendentes de cada um dos cônjuges, havidos antes do casamento.

Nesta disposição equiparam-se todas as despesas havidas com os alimentos dos descendentes
comuns e dos descendentes que qualquer dos cônjuges tenha tido antes do casamento, quer o
alimentado viva em economia comum com os cônjuges, quer viva em economia separada. Por
exemplo, os filhos nascidos de uma união de facto anterior que vivam com o outro progenitor,
mas que recebam pensão de alimentos de um dos cônjuges.

Esta obrigação, que é solidária para ambos os cônjuges, revela a importância da declaração
inicial para o casamento, que obriga a que se indiquem os filhos havidos antes da sua
celebração e que vem expressa no art. 3.°, n.° 2, alínea e) do R.A.C. Procura-se desta forma
proteger os interesses dos filhos, pois a obrigação de alimentos vai ser extensiva ao outro
cônjuge, mesmo não sendo ascendente do alimentado.

A comunicabilidade da dívida deriva por conseguinte da finalidade que se teve em vista,


independentemente do facto de terem sido contraídas por um só cônjuge.

b) As dívidas contraídas em proveito comum do casal — art. él.°, n.° 1.

As dívidas abrangidas por esta previsão têm que ser constituídas depois da celebração do
casamento e dentro dos poderes normais da administração atribuídos ao cônjuge. O proveito
comum do casal afere-se pelo fim visado ao ter sido contraída a dívida, e não pelo resultado
efêtivamente obtido com a transação.

O proveito comum do casal é um conceito jurídico distinto do dos encargos normais da vida
familiar. Ele pressupõe, por parte do cônjuge, que ele contraiu

a dívida no exercício dos seus poderes de administração de bens e que haja uma situação
objetiva da qual possa inferir-se que a intenção era obter um determinado proveito ou
beneficio para o casal.

A atividade exercida deve ter em vista um determinado beneficio para o casal Por outras
palavras, deve ser uma atividade lucrativa, da qual, segundo as regras da experiência comum,
deverá resultar uma vantagem material para o casal. Ora, segundo os princípios do risco ou da
probabilidade, os dois cônjuges, que podem auferir o lucro, também serão responsáveis pelo
prejuízo, se tal ocorrer.
Por exemplo: um dos cônjuges contrai uma dívida para a instalação de um aviário, com a mira
de obter lucro de tal exploração; se essa exploração vier a cessar por ocorrer uma epidemia
que dizime as aves, a dívida deve considerar-se contraída em proveito comum do casal, muito
embora a empresa não tenha dado lucro, mas sim prejuízo.

O proveito comum do casal engloba não só interesses de ordem material mas também
interesses de ordem inteletual. Como exemplo destes últimos pode indicar-se o da formação
profissional superior de um dos cônjuges. É o fim visado pelo devedor que deve ser tido em
conta, mas esta intenção deve ser apreciada dentro das regras normais da experiência comum
e corresponder a uma atividade da qual se possa legitimamente esperar beneficio para o casal.

O Código de Família nada diz sobre as dívidas contraídas pelo cônjuge no exercício do
comércio, ao contrário do que dispunha o art. 1691.°, alínea d) do Código Civil.

A Lei n.° 6/03 veio alterar e revogar diversos artigos do Código Comercial, ainda vigente,
designadamente dando a seguinte redação ao art. 15.°: «As dívidas comerciais do cônjuge
comerciante presumem-se contraídas no exercício do seu comércio».

Esta nova redação segue a que foi adotada pela lei portuguesa, o Decreto-Lei n.° 363/77, de 2
de setembro, e fez desaparecer a presunção que havia na redação anterior do mesmo artigo
de que as dívidas do cônjuge comerciante se presumiam contraídas em proveito comum do
casal.

O anterior art. 1691.°, n.° 1, alínea d), do Código Civil que responsabilizava ambos os cônjuges
peias dívidas contraídas por qualquer deles no exercício do comércio, foi revogado por ter sido
revogado todo o seu Livro IV e o art. 61.° do Código de Família não tem disposição equivalente.

Nesta conformidade, entendemos que desaparecida a presunção legal, incumbirá sempre ao


credor do comerciante o ónus de alegar e de provar que a dívida contraída no exercício do
comércio, entendendo-se o exercício do comércio como prática reiterada e habitual, resultou
em proveito comum do casal.

Este regime não se aplica, porém, se entre os cônjuges vigorar o regime de separação de bens.

A Lei n.° 6/03 veio ainda no seu art. 3.° revogar os artigos 9.° e 16.° do Código Comercial de
conteúdo abertamente discriminatório em relação à mulher, consagrando agora no art. 7.° que
«tem capacidade para praticar atos de comércio toda a pessoa com capacidade civil».

O proveito comum do casal não se presume, salvo quando a lei o declarar, como era o caso da
lei especial que regulava e protegia as relações comerciais.

Mesmo neste caso, deve entender-se que a lei se refere ao cônjuge comerciante e não a atos
isolados de comércio. São também de excluir os atos de mero favor, mesmo se praticados no
exercício de atividade comercial.

O ónus da prova do proveito comum, quando a lei não fizer presumir a sua existência por força
de disposição especial, recai sobre o credor. Cabe ao cônjuge interessado fazer a prova do
afastamento da presunção legal, quando ela existir, e cabe ao credor a sua prova, no caso de
falta de presunção — art. 61.°, n.° 3.A regra é a de que o credor deverá fazer a prova da
existência do proveito comum do casal, cabendo ao cônjuge ou cônjuges interessados fazer a
prova do afastamento da presunção, quando existir lei especial a presumir esse proveito
comum.

c) Dívidas que onerem bens próprios ou bens comuns.

As dívidas que recaiam sobre bens próprios de um dos cônjuges mas que produzam
rendimentos comuns que vão beneficiar ambos são também consideradas como dívidas
comuns. É porém necessário que vigore o regime de comunhão de bens entre o casal.

Devem ser incluídas nas dívidas contraídas em proveito comum do casal as que onerem
doações, heranças ou legados, que vinham mencionadas no art. 1693.°, n.° 2 do Código Civil, e
ainda as que recaiam sobre bens próprios ou bens comuns, desde que esteja em causa a
perceção dos rendimentos ou frutos desses bens.

Compreende-se que os encargos que recaiam sobre bens comuns (quando a doação, herança
ou legado venha a ingressar nos bens comuns) ou sobre os bens próprios (quando esteja em
causa a perceção de rendimentos) sejam encarados pela lei como uma dívida comunicável. Há,
porém, que restringir este caráter de dívida comum no caso de doação, legado ou herança,
pois a dívida só poderia ir até ao valor do bem ou direito em causa e não para além desse
valor.

No caso de encargos sobre bem próprio de um cônjuge, só há comunicabilidade da dívida se


este produzir fruto ou rendimento, pois se assim não for a dívida não é comunicável.

d) São ainda consideradas como dívidas comuns as queforam contraídas por ambos os
cônjuges ou por um deles com o acordo do outro — art. 61.°, n.° 2 do Código de Família.

Neste caso não é relevante saber-se qual a natureza da dívida nem qual a sua finalidade,
porque existe a vontade de ambos os cônjuges no negócio jurídico de que resultou a dívida, e,
como tal, nos termos gerais de direito, a dívida é de ambos, como sujeitos da relação jurídica
em causa.

Os factos imputáveis ao cônjuge podem ser ilícitos ou lícitos, sejam factos culposos ou não
culposos.

As dívidas que derivem de atos ilícitos praticados por um dos cônjuges são sempre
incomunicáveis.

e) Dívidas que derivem da responsabilidade objetiva de um dos cônjuges.

No caso da responsabilidade meramente civil, dispõe a segunda parte da alínea b) do art. 62.°
que, se eles estiverem abrangidos pelo disposto no art. 61.°, n.°s 1 e 2, podem obrigar ambos
os cônjuges, desde que entre eles vigore o regime de comunhão de bens.

Por exemplo: a responsabilidade por acidente de viação na qualidade de proprietário da


viatura que o ocasionou, quando a viatura circulasse em benefício comum do casal. Quando a
responsabilidade civil não derivar de dolo ou culpa do cônjuge devedor, mas de
responsabilidade pelo risco em razão de atividade lucrativa por ele desenvolvida, a dívida é
comunicável.

B — As dívidas exclusivas

As dívidas exclusivas podem também designar-se por dívidas singulares, próprias ou dívidas
pessoais.

São as dívidas incomunicáveis e contraídas por um só dos cônjuges.

Vêm expressas no art. 62.° as dívidas que são de exclusiva responsabilidade do cônjuge que as
contraiu:

a) Dívidas contraídas por cada um dos cônjuges, sem o acordo do outro.

Desde que a dívida tenha sido contraída apenas por um dos cônjuges, sem o consentimento do
outro, e não tenha sido contraída para atender aos encargos da vida familiar ou em proveito
comum do casal (n.°s 1 e 2 do art. 61.°), ela só obriga o cônjuge que assumiu individualmente a
obrigação.

b) Dívidas provenientes de condenações por crimes, indemnizações, restituições, custas


judiciais ou multas por factos imputados a cada um dos cônjuges.

São todas as dívidas provenientes da responsabilidade criminal e civil conexa com a


responsabilidade criminal, bem como as provenientes da responsabilidade civil
extracontratual, quando resultantes da atividade pessoal do cônjuge.

c) As dívidas por alimentos não incluídas no n.° 4 do art. 61. °.

São as dívidas que se referem a qualquer das obrigações alimentares genericamente previstas
nos artigos. 249.° e 261.° do Código de Família.

Abrangem a prestação de alimentos a descendentes havidos depois do casamento, a outros


parentes (ascendentes, irmãos, etc.), a ex-cônjuge ou ex-companheiro de união de facto.

Esta obrigação alimentar recai unicamente sobre o cônjuge que tenha o dever de a prestar e é
incomunicável ao outro cônjuge.

A última parte desta alínea c) do art. 62.° ressalva o caso de o alimentado viver em comunhão
de mesa e habitação com os cônjuges.

Neste caso estamos dentro da previsão geral contida no n.° 1 do art. 61.°, que atribui à
responsabilidade solidária dos cônjuges as dívidas contraídas para ocorrer aos encargos
normais da vida familiar. Como vimos, esses encargos abrangem todo o dispêndio feito com os
membros que constituem o agregado familiar.

d) São também dívidas exclusivas, como já mencionámos, as que recaem sobre bens
próprios de um dos cônjuges, desde que não esteja em causa a perceção de rendimentos que
sejam comuns e as dívidas que recaiam sobre liberalidade que tenha sido atribuída a um dos
cônjuges. Pelo disposto no art. 58.°, n.° 1 do Código de Família, o cônjuge pode aceitar
doações, heranças ou legados sem o consentimento do outro, justificando-se que os encargos
sobre a liberalidade recebida recaiam sobre o cônjuge que a aceitou.

[89] Responsabilidade e garantia das dívidas

Como já assinalámos, a responsabilidade do casal pelas dívidas comuns é de natureza solidária


quando estiverem casados segundo o regime de comunhão de adquiridos, e é meramente
conjunta caso estejam casados no regime de separação de bens.

O art. 63.° do Código de Família faz responder pelas dívidas comuns:

a) os bens comuns do casal;

b) os bens próprios de cada um.

Respondem em primeiro lugar os bens comuns. No caso de estes serem insuficientes, cada
conjunto de bens próprios do outro cônjuge é chamado para o pagamento da dívida. A
obrigação de satisfazer a dívida é extensiva solidariamente a cada um dos cônjuges.

O art. 64.° do Código de Família refere-se aos bens que respondem pelas dívidas que sejam da
exclusiva responsabilidade de cada cônjuge.

Pelas dívidas exclusivas respondem:

a) os bens próprios do cônjuge devedor;

b) (ao mesmo tempo) o produto do seu trabalho;

c) a sua meação nos bens comuns.

Os bens próprios de cada cônjuge — tal como o produto do seu trabalho, que é um bem
comum (art. 51.°, n.° 1, alínea b)) — são chamados imediatamente para satisfazer o
pagamento das dívidas exclusivas. Entendeu-se retirar da proteção da moratória legal o
produto do trabalho, para não prejudicar os credores de forma tão onerosa.

De resto, vigora quanto às dívidas exclusivas o princípio de que a meação nos bens comuns só
é determinável quando se operar a dissolução ou anulação do casamento. Até lá, permanece a
moratória legal que impõe que o cumprimento da obrigação exclusiva de um dos cônjuges só é
exigível quando o casamento for dissolvido ou anulado — última parte do n.° 1 do art. 64.°.

Como já vimos quando estudámos a natureza jurídica da comunhão matrimo¬nial de bens no


casamento, esta moratória é instituída tendo em vista a afetação dos bens comuns à satisfação
das necessidades da vida da família.

É cada vez mais controverso saber se é de dar prevalência ou não aos interesses da família
sobre o interesse dos credores. Daí a determinação de restrições ao princípio da moratória
legal.

Além do facto já mencionado de a moratória não abranger o produto do trabalho do cônjuge


devedor, há ainda a ressalva do n.° 3 do art. 64.°, que fez arredar a moratória quando se tratar
de dívida que for uma das enunciadas na alínea b) do art. 62.°, que engloba as provenientes de
crimes, indemnizações ou outras dívidas por factos imputáveis a cada um dos cônjuges.

Não há também lugar à moratória legal prevista no art. 64.° do Código da Família quando for
exigida ao cônjuge, o cumprimento de uma obrigação emergente de ato de comércio, ainda
que esta seja apenas em relação a um dos cônjuges, conforme já vimos, conforme o que
dispõe o art. 10.° da Lei n.° 6/03. Assim as dívidas contraídas no exercício do comércio passam
a ser imediatamente exigíveis, demonstrando a tendência para o afastamento da moratória
legal que favorece os cônjuges, mas prejudica os legítimos interesses do credor.

Nestes casos, ponderou-se que o interesse das vítimas, dos credores do direito à indemnização
e do Estado como credor de multa ou custas judiciais e os de atividade comercial, devia
prevalecer sobre os interesses da família.

[90] Fim da comunhão de bens por execução judicial

Quando não haja lugar à moratória legal, e o credor não tiver que aguardar a dissolução do
casamento para obter a cobrança da dívida, pode este no processo de execução movido contra
um só dos cônjuges, pedir a citação do cônjuge do executado para requerer, querendo, a
separação de bens ou provar que ela já foi pedida noutro processo, para que se opere a
partilha de bens e se determine qual a meação de cada cônjuge.

Ou seja, quando há lugar à moratória legal, a execução movida contra um só cônjuge fica
suspensa depois de penhorado o direito do devedor à meação nos bens comuns (art. 825.°, n.°
1 do Código de Processo Civil), esperando que se opere a dissolução do casamento.

Esta disposição deixou de estar em vigor no direito português tendo sido alterado pelo
Decreto-Lei n.° 38/2003, de 8 de março, que veio permitir que a questão da comunicabilidade
ou não comunicabilidade da dívida ao outro cônjuge seja aceite ou não por este no próprio
processo executivo.

O cônjuge devedor pode igualmente estar interessado em chamar à ação o outro cônjuge e
responsabilizá-lo pelo pagamento parcial da dívida alegando o fim para o qual ela tenha sido
contraída.(9)

Mas pode acontecer, de acordo com a lei do processo civil, que prossiga a execução quando
não haja lugar à moratória legal, devendo o credor pedir a citação do cônjuge do devedor para
requerer a separação de bens — art. 825.°, n.° 2 do Código do Processo Civil/ ^

De igual modo se prevê, tanto no instituto da falência como no da insolvência, que se proceda
à separação de bens dos cônjuges. No art. 1237.°, n.° 1, alínea b) do Código Processo Civil(11)
prevê-se que o cônjuge do falido venha reclamar o seu direito a separar da massa falida os
seus bens próprios ou a sua meação nos bens comuns.

No caso de declaração de insolvência de devedor não comerciante, o art. 1319.° do Código do


Processo Civil(12) prevê a separação das meações dos cônjuges.
Como se vê, nestes casos específicos, e de acordo com a parte final do art. 50.° do Código de
Família, «(...) salvo os casos previstos nesta lei» pode ocorrer o fim da comunhão de bens no
casamento, mesmo durante a sua vigência.

Mais adiante, a propósito da dissolução do casamento, veremos que esses efeitos podem
deixar de se produzir quando se verificar o fim da coabitação dos cônjuges e esse facto constar
da sentença que declarar o divórcio.

2. Não havendo lugar à moratória podem ser imediatamente penhorados bens comuns
do casal, conquanto que o exequente, ao nomeá-los à penhora, peça a citação do executado
para requerer a separação de bens.

(11) ARTIGO 1237.°

(Restituição e separação de bens)

1. O processo e prazos para a reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis:

(...)

b) À reclamação e verificação do direito que tenha o cônjuge a separar da massa os seus bens
próprios ou dotais ou a sua meação nos bens comuns.

(12) ARTIGO 1319.°

(Efeitos da declaração de insolvência do devedor casado)

1. A declaração de insolvência tem como consequência a separação das meações, se o


insolvente for casado em regime de comunhão.

2. Finda a apreensão, cita-se o cônjuge do insolvente para a separação de bens e esta é


processada por apenso, servindo de descrição de bens os autos de apreensão.

3. A falta de citação do cônjuge importa a anulação dos atos que se praticarem


posteriores à apreensão.

CAPÍTULO 15.0

A DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO

[91 ] Extinção do vínculo

O vínculo matrimonial, como fenómeno humano que é, está sujeito a diversas vicissitudes. Por
vezes as próprias relações entre os cônjuges chegam a deteriorar-se de tal maneira que não é
possível manter o casamento para os fins para que foi constituído. Entre marido e mulher
surgem situações de antagonismo e de desinteligência tais, que tornam impossível a
manutenção da vida em comum.

Outras vezes são factos naturais (como a morte), fenómenos sociais (como a guerra) ou
condutas produto da vontade humana (como o afastamento pessoal) que sujeitam o
casamento a contingências que vão atingi-lo na sua substância fundamental.
Todas estas questões põem em causa o casamento. A que mais debate tem suscitado é a
questão de saber se, em vida dos cônjuges, deve ou não ser mantido o vínculo conjugal, ou,
noutra perspetiva, a questão de saber como deve ser aceite na ordem jurídica essa realidade
de facto que é a cessação da vida em comum dos cônjuges.

As causas de dissolução do casamento são, em síntese, duas: a morte de um ou de ambos os


cônjuges simultaneamente, e o divórcio.

A morte dissolve ipsofacto o casamento; a data de morte é a data da dissolução do casamento.

O Código de Família (artigo 74.°) prevê como causas de dissolução do casamento a morte ou a
declaração judicial de presunção de morte (que se equipara à morte) e o divórcio.

Em certos Códigos de Família é considerada ainda como causa de extinção do vínculo


matrimonial a declaração da nulidade do matrimónio pela via judicial.

Na nossa conceção, o casamento ferido de invalidade é um ato que deixa de existir na ordem
jurídica após a sentença que declara a nulidade, muito embora se lhe atribuam determinados
efeitos jurídicos familiares no caso do «casamento putativo» invocável pelo nubente que
tenha contraído o casamento de boa fé.

Se é certo que se pode falar em extinção do vínculo matrimonial, quer ele se opere por
dissolução quer por invalidade, a verdade é que, no caso da anulação, o vício do casamento vai
reportar-se ao próprio ato que lhe deu origem, ou seja, defere-se ao momento da sua
celebração.

Na extinção por dissolução estamos perante um casamento que é válido e que como tal é
reconhecido na ordem jurídica.

Neste caso, o casamento válido vai ser extinto ou dissolvido em razão de factos
supervenientes, a morte ou uma causa legal de divórcio, a que a lei dá relevância para operar a
dissolução.

A dissolução do casamento por morte, que hoje surge como efeito óbvio do fim do vínculo
matrimonial, nem sempre o foi em tempos recuados. A morte do marido nem sempre permitia
à mulher contrair novo casamento. Em algumas sociedades, como na índia, a viúva lançava-se
viva para a pira onde ardia o corpo do marido defunto, para o acompanhar na morte.

Na África, inclusivamente em certas zonas de Angola, ainda em tempos recentes, quando


morria um chefe importante, uma ou mais das suas mulheres eram imoladas em sacrifício para
o «servirem » para além da morte.

Também o sistema do levirato mantinha a mulher vinculada à família do marido, mesmo


depois da morte deste.

A viuvez é o estado civil do cônjuge que decorre da morte do outro cônjuge, sendo a morte a
causa da dissolução da maioria dos casamentos. É uma forma de dissolução que decorre da
ocorrência de facto natural, e que não suscita em regra dificuldades de ordem jurídica.
O casamento dissolve-se no momento do falecimento do outro cônjuge, o qual marca o início
do estado de viuvez para o cônjuge sobrevivo.

[92] Separação judicial de pessoas e bens

A dissolução do casamento pode operar-se fundamentalmente por morte ou pelo divórcio.


Mas é importante também a figura jurídica da separação de pessoas e bens, instituto
específico do direito de família reconhecido em diversos países e que tinha acolhimento no
Código Civil anterior.

A aceitação de que o casamento se pode dissolver pelo divórcio não foi sempre uma questão
pacífica, sobretudo em países onde mais fortemente se fazem sentir as convições de índole
religiosa, predominantemente a católica.

Foi precisamente a conceção canónica do casamento que influenciou o sistema jurídico


português, segundo o qual o casamento tem a natureza perpétua de um sacramento, sendo,
portanto, indissolúvel.

O princípio da indissolubilidade do casamento canónico vinha expresso no art. 1790.° do


Código Civil.

Não sendo o casamento dissolúvel, a lei só permitia aos cônjuges a sua separação legal, a qual
só era em regra concedida quando se verificasse que se tinha tornado «impossível a
manutenção de vida comum dos cônjuges», ou que se «tomara intolerável o vínculo conjugal»,
conforme expressões usadas respetivamente pelos legisladores português e italiano.

A separação judicial mantém o vínculo matrimonial entre os cônjuges, sendo uma forma de
suspensão da vida conjugal, que não dissolve o casamento.

Pela separação, os cônjuges deixam de ter a obrigação de vida em comum quanto a cama,
mesa e habitação (quod thorum, mensam et habitationem), mas mantêm os outros deveres
conjugais, como o dever de fidelidade, estando os cônjuges impedidos de contrair novo
matrimónio.

O instituto da separação judicial de pessoas e bens já não é reconhecido na maior parte dos
ordenamentos jurídicos, designadamente dos países de expressão portuguesa, como Cabo
Verde e S. Tomé e Príncipe.

No direito angolano, a Lei n.° 9/78, que veio regular o divórcio, não permitia a separação
judicial de pessoas e bens por mútuo consentimento, mas tão somente o divórcio. O art. 15.°
desta Lei revogou expressamente os arts. 1786.° a 1788.° do Código Civil, onde a separação
judicial por mútuo consentimento vinha prevista. O Código de Família não acolheu também o
instituto da separação judicial de pessoas e bens.

No entanto, em países onde mais se faz sentir a influência católica, como Portugal, Espanha,
Itália e Brasil, o instituto da separação de bens, designado como o «divórcio dos católicos»,
ainda persiste na legislação vigente.
O Código Civil do Brasil reconhece no seu art. 1571.°—III como pondo fim à sociedade
conjugal, a separação judicial.

A separação judicial segundo o art. 1575.° do mesmo Código «importa a separação de corpos e
a partilha de bens». Em traços breves importa analisar este instituto tal como vinha estatuído
no Código Civil.

A separação judicial de pessoas e bens, como o nome indica, traduz-se numa alteração legal da
vida dos cônjuges, que pressupõe sempre a existência do procedimento contencioso e que
tem de ser declarada por sentença judicial.

Como tal, reporta-se ao exercício de um direito estritamente pessoal, que tem de ser exercido
pelo próprio cônjuge.

Só em caso de interdição este poderia ser representado pelo respetivo repre¬sentante legal,
necessitando este de estar autorizado pelo conselho de família, como dispunha o art. 1781.°
do Código Civil.

Os efeitos legais da separação litigiosa de pessoas e bens são muito diferentes dos do divórcio.
Enquanto este dissolve o vínculo conjugal, a separação limita-se a suspender alguns dos
deveres recíprocos dos cônjuges.

O artigo 1774.° do Código Civil definia os efeitos da separação dizendo que ela não dissolvia o
vínculo conjugal.

Os cônjuges deixavam de estar sujeitos aos deveres de coabitação e assistência, sem prejuízo
do direito a alimentos que poderiam ter.

A mulher continuava a ter direito ao uso do apelido do marido (art. 1675.° do Código Civil),
mas podia ser privada dele no caso de comportamento indigno e por decisão judicial.

Já no campo patrimonial, os efeitos da separação judicial de pessoas e bens eram


precisamente os mesmos da dissolução do casamento por morte ou por divórcio (arts. 1688.° e
1774.°).

Findas as relações patrimoniais entre os cônjuges, operava-se então a partilha dos bens
comuns, conferindo cada um o que devia a este património e liquidando-se previamente o
passivo — art. 1689.° do Código Civil.

A separação litigiosa de pessoas e bens tinha entre os cônjuges ainda os mesmos efeitos que o
divórcio, quer em relação aos filhos, quer relativamente ao direito sucessório.

Como situação familiar de caráter estável, a separação de pessoas e bens constituía um estado
civil e estava sujeita a registo, devendo o tribunal que a declarasse, comunicar oficiosamente a
sentença à Conservatória do Registo Civil competente, para ser oficiosamente averbada tanto
ao assento do casamento dos cônjuges, como ao respetivo assento do nascimento (art. 101.°,
art. 87.° n.° 1, alínea a) e art. 88.° n.° 1, alínea e), do Código do Registo Civil).

A separação de pessoas e bens era uma situação de natureza transitória.


Ela podia terminar pela morte de um ou dos dois cônjuges, pela reconciliação dos cônjuges, e
pela conversão da separação em divórcio.

O art. 1793.° do Código Civil, que regulava a conversão da sentença de separação judicial em
divórcio, foi revogado pela Lei n.° 53/76, de 2 de julho.

O art. 4.° desta Lei permitia a conversão da separação de pessoas e bens em divórcio por
simples requerimento de um dos cônjuges.

Embora esta disposição tivesse em vista a conversão em divórcio das sentenças de separação
proferidas antes da sua entrada em vigor, nada impedia que ela fosse aplicada num sentido
mais amplo, permitindo a sua aplicação extensiva às senten¬ças de separação que viessem a
ser pronunciadas após a entrada em vigor da lei.

Como já se acentuou, a separação judicial de pessoas e bens não é um instituto jurídico que se
coadune com uma conceção laica do casamento, por criar uma situação entre os cônjuges que,
em regra, proporciona ambiguidades e gera muitas vezes situações de facto à margem da lei.

Decretada a separação judicial de pessoas e bens e uma vez transitada a sentença, qualquer
dos cônjuges, independentemente da sua situação processual na respetiva ação, e
independentemente mesmo de ter sido considerado como cônjuge culpado, podia vir pedir a
conversão da separação judicial em divórcio, e isto sem ter que aguardar o decurso de
qualquer prazo, após o trânsito da sentença. Só podia obstar à conversão, o facto de se ter
operado a reconciliação dos cônjuges.

O artigo 5.° da Lei 53/76 explicitava a forma processual do pedido de conversão, que era de
extrema simplicidade.

Se não se tivesse operado a reconciliação dos cônjuges, a conversão da separação em divórcio


era de natureza obrigatória, não podendo o juiz denegá-la.

O art. 8.° da Lei n.° 1/88, de 20 de fevereiro, que aprovou o Código de Família contém
disposições de natureza transitória que consagram os mesmos princípios da Lei n.° 53/76.

Nas ações de separação de pessoas e bens pendentes à data da entrada em vigor do Código de
Família, podia o A. ou o R. vir pedir a conversão do pedido de separação em divórcio (n.° 1 do
art. 8.°).

Nas ações em que a sentença já tenha transitado em julgado, qualquer das partes pode vir
pedir a conversão, bastando para tanto um simples requerimento (n.°s 2 e 3 do mesmo art.
8.°).

A conversão da separação judicial de pessoas e bens em divórcio é permitida no atual Código


Civil português a qualquer tempo mediante requerimento de ambos os cônjuges e decorrido 1
ano sobre a sua decretação a requerimento de um só cônjuge, se não tiver havido
reconciliação e se for requerida por ambos os cônjuges não é necessário o decurso do referido
prazo — redação do art. 1795.° pela Lei n.° 61/2008, de 31 de outubro.
No direito brasileiro qualquer dos cônjuges pode pedir a conversão da separação em divórcio
desde que tenha decorrido 1 ano sobre a sua decretação — art. 1580.° do Código Civil.

[93] Declaração judicial de presunção de morte

Na grande maioria dos casos, a morte de um dos cônjuges pode ser provada através do ato do
registo civil comprovativo do óbito, pelo que pareceria desnecessário prever a lei, como
segunda causa da dissolução do casamento, a declaração judicial de presunção de morte.

Às vezes tal não acontece, pois a morte do cônjuge não surge provada com clareza pelo facto
de o falecimento não poder ser diretamente verificado.

São os casos em que o outro cônjuge se ausenta em sentido lato e em que se verifica o seu
desaparecimento.

Quando alguém desaparece sem se saber do seu paradeiro, e há, simultanea¬mente, fortes
indícios de que não se trata de uma simples ausência, mas sim de um caso de morte, a lei
socorre-se do instituto da morte presumida.

A diferença entre a simples ausência e a presunção de morte reside em que, neste caso, as
circunstâncias em que ocorreu o desaparecimento da pessoa em causa são de natureza tal que
levam a presumir a sua morte.

Quando a morte é presumida, como o termo indica, é porque não há uma certeza absoluta de
que a morte tenha ocorrido. Não houve a verificação direta do facto, mas presume-se a
ocorrência da morte, fazendo derivar de tal presunção os mesmos efeitos jurídicos que
resultam do facto da morte. A data da dissolução do casamento é a data que na sentença for
fixada como a data provável em que ocorreu a morte.

O instituto da morte presumida interessa não só ao direito da personalidade como ao direito


de família, mas também ao direito sucessório.

O Código Civil regula o instituto da morte presumida no seu Livro l.° — Parte Geral (art. 114.° e
ss.). A morte presumida tem que ser objeto de decisão judicial e só poderá ser declarada se se
verificarem os pressupostos fixados na lei.

São eles: o decurso de dez anos sobre a data das últimas notícias; o ter completado o ausente,
se fosse vivo, 80 anos de idade; o decurso de cinco anos, caso o ausente, se fosse vivo, tivesse
atingido a maioridade.

No Código de Família a declaração judicial da presunção de morte vem regulada nos artigos
76.° e 77.°. Ela poderá ser requerida pelo cônjuge interessado, desde que verificados os
seguintes pressupostos de facto:

a) O decurso do prazo de três anos sobre as últimas notícias;

b) A existência de fortes indícios de que ocorreu a morte.

A questão terá obrigatoriamente que ser decidida pelo tribunal em processo próprio, e este
terá que proferir decisão que declare a presunção de morte. Importa assinalar a distinção a
fazer entre o facto de alguém estar ausente sem dele haver notícias pelo período de três anos
e a declaração de morte presumida, que exige cumulativamente que se apurem factos que
levem a convencer, por fortes indícios, de que a morte se produziu.

O que fundamenta a presunção de morte por parte do tribunal é o desapareci¬mento de um


dos cônjuges operado em circunstâncias tais que delas se possa inferir com razoabilidade que
a morte ocorreu.

É este segundo pressuposto que estabelece a diferença entre a ausência e a presunção de


morte. Trata-se, como a expressão indica, de uma presunção judi¬cialmente declarada de que
certo facto se produziu.

O artigo 76.° do Código de Família define os efeitos legais que derivam da declaração de
presunção de morte relativamente ao casamento anteriormente contraído.

O n.° 1 do artigo 76.° diz que a declaração judicial de presunção de morte de um dos cônjuges
dissolve o casamento a partir do trânsito em julgado da decisão.

Daí que a decisão a proferir pelo tribunal que julgue provados os factos que integrem a
presunção de morte deva declarar dissolvido o casamento.

Perante tal decisão judicial, várias situações podem ocorrer: ou vir a provar-se diretamente
que a morte ocorreu, ou, pelo contrário, haver notícias de que o ausente está vivo, ou
verificar-se o regresso do ausente.

O n.° 2 do artigo 76.° ressalva a hipótese de, após o trânsito da decisão de declaração judicial
de presunção de morte, o cônjuge ausente reaparecer, ou porque o ausente regressa in
personnae, ou porque foram conhecidas notícias do seu paradeiro.

O reaparecimento do cônjuge não implica só por si que o casamento que haja sido dissolvido
com base na presunção de morte retome ipso facto a sua validade legal. Em princípio, os
efeitos da sentença que declarou a dissolução do casamento mantêm-se.

No entanto, prevê-se o caso de os ex-cônjuges quererem retomar a situação anterior pela


revalidação do casamento. Este só pode ser revalidado nas condições previstas no n.° 2 do
artigo 76.°, ou seja, desde que:

a) Nenhum dos cônjuges, nem o que pediu a declaração da presunção de morte, nem o
ausente, tenha contraído novo casamento;

b) ambos requeiram judicialmente a continuidade do seu casamento.

É necessário, por conseguinte, que se verifique a situação matrimonial imediatamente


posterior à declaração de dissolução por morte, e que ambos expressem a sua vontade na
revalidação do vínculo. Segundo se infere desta disposição, o pedido deve ser deduzido junto
do tribunal que tenha declarado a dissolução do casamento com base na presunção de morte.

Declarada judicialmente a continuidade da validade do casamento, este é considerado para


todos os efeitos como não tendo sido dissolvido, c a decisão de validação tem efeitos
retroativos, operando ex tunc.
Mas pode dar-se o caso de, antes ou depois do regresso do cônjuge ausente, um deles ter
contraído novo casamento, ou de, em qualquer caso, ambos quererem manter a dissolução do
casamento.

No primeiro caso, diz o n.° 3 do art. 76.° que, se algum dos cônjuges tiver contraído novo
casamento, este será considerado válido.

Esta disposição mais não é que a aplicação direta dos efeitos produzidos pela declaração
judicial de presunção de morte, que constitui uma das formas de dissolução do casamento.

Convém, no entanto, vincar a distinção entre este processo judicial de disso¬lução de


casamento e um processo administrativo, que é da competência das conservatórias do registo
civil, e que é o processo de justificação de óbito.

Não há, pois, que confundir o processo da morte presumida que corre perante o tribunal, e o
de justificação de óbito, que é de natureza administrativa.

O processo de justificação de óbito, como os demais processos administrativos de justificação,


é um processo que é usado quando há a certeza de que determinado facto ocorreu, mas ele
não pode ser provado pela forma legalmente prevista no Código do Registo Civil ou em outras
disposições legais.

No caso da justificação de óbito, há a certeza de que a morte se verificou, mas falta a


verificação do cadáver, atestada pelo respetivo certificado médico.

O processo de justificação de óbito vem regulado pelo Decreto 91/81, de 25 de novembro


(D.R., L* Série, n.° 277), o qual, nos seus artigos 10.° e seguintes, regula o respetivo
procedimento.

O despacho final cabe ao Departamento Nacional dos Registos e Notariado do Ministério da


Justiça. Se a pretensão do requerente merecer deferimento, é lavrado o respetivo assento de
óbito — artigo 18.°.

Neste caso o casamento será dissolvido por morte, nos termos gerais de direito.

Ao passo que, para o caso que agora nos interessa, o da dissolução do casamento por
presunção de morte, este considera-se dissolvido por ser de presumir a morte do cônjuge e
por esta presunção ter sido declarada por sentença judicial seguindo- -se os termos
específicos, já citados, do art. 77.° do Código de Família.

[94] Evolução histórica do conceito de divórcio

O conceito de divórcio pode exprimir-se como a dissolução do vínculo conjugal, declarada pela
via legal, operada em vida dos cônjuges. Geralmente, a doutrina define o divórcio como a
dissolução do vínculo conjugal, declarada por via judicial e operada em vida dos cônjuges.
Como veremos, entre nós o divórcio pode ser declarado em certos casos sem a intervenção do
tribunal.

O divórcio surge quando a vida matrimonial se deteriorou de tal forma que se tornou
impossível manter a comunhão de vida material e espiritual entre marido e mulher.
O divórcio opera para o futuro a dissolução do vínculo e faz cessar as relações pessoais e
patrimoniais entre os cônjuges, as quais só mantêm relevância em casos específicos, como no
da obrigação de prestação de alimentos. Deixa, porém, intactos todos os efeitos legais
produzidos durante a sua vigência.

Dissolvido dejure o vínculo matrimonial, os cônjuges deixam de estar casados, podendo,


consequentemente, contrair novo matrimónio.

A aceitação da dissolução do casamento por divórcio não tem sido pacífica, e contra ela se têm
levantado todos os que propugnam pela perpetuidade do vínculo matrimonial.

No entanto, se nos debruçarmos para efetuar uma análise histórica sobre a persistência da
aceitação ou não aceitação do divórcio pelos diversos meios sociais, uma vez mais verificamos
como o conjunto de determinantes socioeconómicas se reflete nas relações familiares.

Em termos simples, podemos dizer que o divórcio, como dissolução de facto do casamento, é
tão antigo como este, e existiu desde os tempos mais remotos.

No direito romano, o casamento era instituído, como vimos, com base na affectio maritalis, ou
seja, no propósito comum dos cônjuges de quererem manter laços duradouros de vida em
comum como marido e mulher.

A cessação do casamento podia operar-se quando deixasse de existir a vontade de manter o


vínculo conjugal. O divórcio operava-se, pois, pelo ato unilateral, o repúdio, que era o produto
da vontade de um só cônjuge. Tanto o marido como a mulher podiam pôr termo ao casamento
por meio de repúdio, o qual não necessitava da intervenção de um tribunal para ser válido.

O divórcio já era também admitido no antigo direito germânico. No Antigo Testamento o


repúdio da mulher era possível no caso de infidelidade desta.

O direito muçulmano admite, em regra, o repúdio feito pelo marido em relação à mulher com
grande amplitude. O marido pode operar, assim, arbitrariamente e sem recurso ao tribunal, a
dissolução do casamento. O divórcio é também reconhecido no direito muçulmano, como ato
de natureza judiciária, sendo a via facultada à mulher para, em certos casos de inexecução das
obrigações do casamento, obter a dissolução do casamento.

Nos países de influência protestante, começou a afastar-se a conceção de que o casamento


tinha a natureza perpétua de um sacramento e a encarar-se o casamento como assunto da
competência do Estado e não da Igreja.

Daí que a introdução das ideias da reforma protestante tenha sido acompa¬nhada, desde o
início, pela aceitação da dissolução do casamento pelo divórcio.

Nos países predominantemente católicos, a França foi o primeiro a reconhecer o divórcio,


como consequência da conceção contratual e laica do casamento.

A Revolução Francesa instituiu o divórcio no final do século XVIII, em lei que permaneceu em
vigor até 1816, data em que ele deixa de ser aplicado, para só ser reintroduzido de novo na
legislação francesa perto do fim do século XIX.
Em Portugal, onde o casamento civil só foi introduzido pelo Código Civil de 1867, o divórcio é
uma das primeiras medidas legislativas tomadas após a implantação da República, pela Lei do
Divórcio, de 3 de novembro de 1910.

Esta lei, com aspetos bastante progressistas e inovadores para a sua época, veio introduzir o
divórcio por mútuo consentimento simultaneamente com o divórcio litigioso.

Com a queda da República e a implantação do fascismo, as leis da família foram todas


reformuladas, e a Concordata de agosto de 1940, veio ditar a regra da renúncia do direito ao
divórcio pelos cônjuges casados catolicamente após essa data.

Esta Concordata foi, porém, alterada por protocolo adicional entre Portugal e a Santa Sé, em
1975, passando a ser permitida a dissolução por divórcio dos casamentos católicos, a partir da
publicação do Decreto-Lei n.° 261/75.

Em Angola estava então instaurado o denominado governo de transição, instituído pelos


Acordos de Alvor, razão por que tal medida se não repercutiu na legislação interna angolana.

Após a proclamação da Independência, foi publicada a Lei n.° 53/76 de 2 de julho, em cujo
preâmbulo se explicita bem claramente que, sendo a República Popular de Angola um estado
laico e não confessional, nenhuma razão subsistia para que continuasse a vigorar no direito
interno uma norma que impedia os cônjuges casados canonicamente de obter o divórcio.

Como se reconheceu, dessa norma resultaram situações de natureza discriminatória entre


cidadãos do mesmo país, e criaram-se situações à margem da lei civil para cônjuges separados
e para os filhos nascidos de novas uniões de facto (ver o Preâmbulo de Lei n.° 53/76).

Em países predominantemente católicos, como a Itália, foi necessário proceder-se a um


referendo a nível nacional, e foi a Lei de 1 de dezembro de 1970 que aprovou a introdução do
divórcio no direito italiano.

O direito brasileiro só veio a reconhecer o divórcio pela Emenda Constitucional n.° 9 (Junho de
1977), e mesmo assim este só passou a ser concedido judicialmente no caso de separação de
facto anterior dos cônjuges.

O Código Civil brasileiro no seu art. 1571.°-IV prevê expressamente o divórcio com causa de
dissolução do casamento, o qual pode ser pedido por forma direta ou por conversão da
separação judicial.

Todos os estados laicos, em contrapartida, admitem uniformemente o divórcio.

A maior ou menor liberalização do divórcio está muitas vezes ligada a fenóme¬nos sociais
como as revoluções, tal como a Revolução Francesa, que instituiu o divórcio nos países do tipo
do direito romano, e a Revolução de outubro de 1917, na Rússia, que abriu a possibilidade de
o divórcio ser declarado por órgãos de natureza não judicial, facilitando grandemente os seus
termos.

A legislação dos países da comunidade socialista foi, nos primeiros anos, muito liberal na
dissolução do casamento por divórcio. Mas, após a 2.a Guerra Mundial, a então União
Soviética sentiu a necessidade de contrabalançar a sangria humana sofrida, através de uma
maior consolidação do casamento, tendo-se retomado a necessidade de intervenção dos
tribunais na generalidade dos processos de divórcio.

Entre os extremos que vão da proibição legal do divórcio à sua declaração por órgãos
administrativos, podemos situar os diversos sistemas jurídicos consoante são maiores o
alargamento ou as restrições às causas legais de dissolução do casamento, o que, em suma, vai
acompanhando a própria evolução do instituto do casamento.

[95] O atual conceito de divórcio

Em Portugal pelo Decreto-Lei n.° 163/95, de 13 de julho, foi introduzido o divórcio por mútuo
consentimento, por via administrativa e pela Lei n.° 47/98, de 10 de agosto, permitiu-se que
ele fosse pedido a todo o tempo, sem necessidade de decurso de prazo obrigatório.

O sentido de liberalização do divórcio em Portugal veio consubstanciar-se com a publicação da


Lei n.° 61/2008, de 31 de outubro, que introduziu alterações radicais em todo o instituto do
divórcio.

Alterou-se a designação de divórcio litigioso para divórcio sem consentimento do outro


cônjuge; afastou-se o conceito de culpa na decretação do divórcio. O pedido de divórcio
passou a ser fundamentado em causas objetivas, tais como a separação de facto, a ausência, a
doença mental, cujo prazo ficou reduzido a 1 ano consecutivo e ainda quaisquer outros factos
que independentemente da culpa dos cônjuges mostrem a rutura definitiva do casamento
(atual redação do art. 1781.° do Código Civil).

Eliminaram-se «(...) as causas subjetivas, dependentes da culpa, exclusiva ou predominante de


um dos cônjuges (...). Não quer dizer que os deveres conjugais não

continuem a merecera tutela do direito (...)• A violação culposa dos deveres conjugais deixa
pois de constituir um dos fundamentos para a ação de divórcio, para passar a constituir apenas
fundamento de ação de responsabilidade civil, destinada ao

ressarcimento do cônjuge lesado.»(1)

No direito português foram ainda introduzidas importantes alterações nos processos de


divórcio, introduzindo-se a mediação familiar antes da propositura da ação, ainda que sem
caráter obrigatório.

Alteraram-se as disposições relativas ao divórcio por mútuo consentimento, ampliando-se os


poderes de decisão das Conservatórias do registo civil. Ampliaram-se os poderes de decisão e
intervenção do Juiz sobre os acordos firmados pelos cônjuges.

Se apreciarmos os diversos sistemas jurídicos comparativamente, vemos que o divórcio é hoje


uma realidade da quase totalidade deles, mas que existem diferenças na forma como ele é
encarado. Uns sistemas legais são mais liberais, abrindo o leque dos fundamentos legais do
divórcio e as formas processuais de o obter, outros menos liberalizantes, restringindo-o a
casos típicos previstos na lei.
É unanimemente aceite por todos os Estados que deve ser favorecida a estabilidade da família,
porque isso favorece a própria contextura da sociedade e por isso se entende que o divórcio é
um mal, ainda que muitas vezes se reconheça que é um «malnecessário».

Genericamente, podemos distinguir dois sistemas distintos quanto às causas invocáveis como
fundamento de divórcio: os que aceitam o sistema da causa genérica e os que aceitam o
sistema das causas taxativas.

O posicionamento da própria lei relativamente ao divórcio pode, em termos gerais, ser


classificado em dois tipos diferentes.

Por um lado, aquele que encara o divórcio como «sanção » imposta à conduta culposa de um
dos cônjuges, violadora dos deveres conjugais. Esta conceção vem normalmente ligada àquela
que encara o casamento como instituição.

Mais recentemente vem predominando a conceção que encara o divórcio como o «remédio»
ou «solução final» para uma situação em que o casamento deixou de preencher os fins sociais
e pessoais para que foi instituído. Neste caso, a rutura da vida matrimonial entre os cônjuges
pode ter sido causada pelo comportamento culposo de um deles, ou de ambos, ou seja, por
motivo proveniente da vontade subjetiva dos cônjuges, ou resultar do prolongamento da
separação de facto por determinado período de tempo relevante. Mas pode advir de uma
simples causa objetiva, independente da vontade dos cônjuges, como a demência incurável de
um deles.

Na conceção do divórcio como remédio, que também é designado como divórcio «falência» ou
«constatação de rutura», estão abrangidas todas as causas de dissolução do casamento que
fazem com que este se não possa manter, quer por culpa de um dos cônjuges ou de ambos,
quer mesmo sem culpa de qualquer deles.

O que interessa verificar é se houve rutura do vínculo conjugal e falência do casamento. Neste
caso, a dissolução do divórcio limita-se a certificar que a união conjugal deixou de existir como
realidade pessoal e social.

No sistema de divórcio «remédio, falência ou constatação de rutura», o que interessa é que o


tribunal que declara o divórcio tenha chegado à conclusão de que, por culpa de um dos
cônjuges ou por causas objetivas (como a ausência sem notícias, a demência, a separação de
facto), se criou uma situação que impede o prosseguimento da vida conjugal.

Pode haver culpa, como pode não haver culpa do cônjuge contra quem se pede o divórcio,
mas na base do pedido de divórcio está o desiderato de remediar a situação objetivamente
criada, que destruiu os alicerces do vínculo conjugal.

O divórcio é, assim, o corolário do facto de o matrimónio ter deixado de funcionar como tal,
deixando de servir o fim social para que foi instituído. Há mesmo quem diga que o divórcio
mais não é do que a «certidão de óbito» de um casamento que deixou de o ser.

O Código Civil anteriormente vigente privilegiava o conceito do divórcio sanção, pois este
aparecia como castigo para o cônjuge que violara algum dos deveres conjugais. Tanto assim
era que o artigo 1783.° do Código Civil impunha que a sentença que declarasse o divórcio ou a
separação estabelecesse qual era o cônjuge «culpado» e, se concluísse que havia culpa de
ambos os cônjuges, definisse qual o cônjuge que era o «principal culpado».

Como vimos, no direito português operou-se uma viragem radical e deixou de ser aceite o
critério da culpa na decretação do divórcio.

Na verdade esta forma de encarar o direito ao divórcio corresponde a uma nova visão das
relações matrimoniais cada vez mais preponderante em muitos sistemas jurídicos.

No direito inglês o divórcio é permitido quando baseado na verificação pelo tribunal do «


breakdown »(falência, colapso) do casamento, designando depois, a título exemplificativo,
certos factos como o adultério, mau comportamento do outro cônjuge, abandono, e a
separação de facto, que podem justificar o pedido.

A jurisprudência italiana vai no sentido da liberalização do divórcio. Entende-se que o


casamento é celebrado com consenso dos nubentes e deve perdurar e tão só, enquanto
subsistir esse consenso. O direito de separar-se é considerado como direito de nível
constitucional. O fator subjetivo concede legitimidade «vontade de separar-se de um só
cônjuge bem podendo a fratura depender de condição de desafetaçáo e de distanciamento
espiritual de uma das partes.» Reconhcce-se ao Juiz um poder discricionário na valoração dos
factos suscetível de um exame assético e objetivo do «Modo de sentir comum (tese
objetivista) ou por outro lado, no reflexo desse comportamento sobre um só cônjuge (tese
subjetivista) (...) a sociedade (conjugal) vive e opera só enquanto o sentimento comum Ibe dá
corpo (...) >>.

No direito francês reconhecia-se o divórcio por rutura prolongada da vida em comum, ou seja,
pela separação de facto por seis anos, ou pela alteração das faculdades mentais de um
cônjuge, podendo o tribunal rejeitar o pedido se houver

0 risco de o divórcio ter graves consequências na doença do cônjuge — arts. 237.° e


238.° do Código Civil francês.

Entretanto foi aprovada a Lei de maio de 2004 que entrou em vigor em

1 de janeiro de 2005. Esta Lei simplificou o processo de divórcio por mútuo


consentimento e no divórcio contencioso prevê três tipos de ação de divórcio: fundamentado
na culpa, na deterioração definitiva do vínculo conjugal e na aceitação do pedido do outro
cônjuge. Procura-se que os cônjuges consigam harmonizar o conflito pós conjugal encontrando
acordos para a resolução das questões dos seus direitos pessoais e patrimoniais. Nesta lei o
divórcio por culpa deixou quase de ter expressão pois destacaram-se as causas do divórcio das
consequências na vida conjugal. A separação de facto por 2 anos é fundamento neutral para o
pedido e no divórcio por aceitação, o cônjuge demandado vem aceitar o pedido do outro
reconhecendo a falência do casamento, o que torna esta espécie de ação, num divórcio por
semi-mútuo consentimento. -3
No Código Civil brasileiro passou a considerar-se como fundamento de pedido de divórcio o
decurso de 1 ano sobre a conversão da sentença de separação judicial de separação de facto
ou do decurso de 2 anos de separação de facto — art. 1580.°.

Atualmente passou-se a reconhecer o direito dos cônjuges porem fim à relação matrimonial
quando se tornou intolerável a convivência comum. A razão subjetiva da intolerabilidade da
convivência pode provir de ambos os cônjuges ou de só de um deles e pode derivar de factos
exteriores visíveis ou ser produto de afastamento afetivo e espiritual entre ambos.

Entende-se que mais importante do que os factos que ocorreram na vida do casal, são as
consequências que esses mesmos factos tiveram no seu relacionamento tornando intolerável
a convivência comum.

[96] Conceito de divórcio no direito angolano

No direito angolano veio desde o início, a encarar-se o direito ao divórcio como o resultado
duma situação em que o vínculo matrimonial se mostrava destruído na sua essência.

Aliás a Lei n.° 53/76 publicada logo a seguir à Independência, introduziu novos fundamentos
de divórcio, previstos no seu artigo 6.°: a separação de facto por cinco anos consecutivos e o
abandono do país por parte do outro cônjuge. Estes fundamentos apontam para a nova
conceção do divórcio como remédio, ou constatação de rutura.

O divórcio é outorgado no caso de se ter produzido o rompimento da união matrimonial,


independentemente da determinação ou mesmo da existência da culpa a atribuir a um
cônjuge.

Corroborando esta orientação, a Resolução n.° 2/82 da Assembleia do Povo se direcionava


muito claramente no sentido da nova conceção do divórcio, ao mandar elaborar nova
legislação sobre o divórcio, de forma a que este fosse concedido quando o casamento tivesse
perdido o seu sentido.

Interessa agora definir como é encarado o divórcio no Código de Família.

Os fundamentos gerais que estruturam o direito de qualquer dos cônjuges de pedir o divórcio,
em conjunto ou separadamente, vêm previstos no artigo 78.° do Código de Família.

Estabelece-se como conceção básica que o divórcio dos cônjuges só pode surgir quando tenha
havido entre ambos a deterioração completa e definitiva das relações conjugais,
independentemente das causas que tenham concorrido para tal deterioração.

Impõe a lei que se apure com firmeza que as relações entre ambos os cônjuges se encontram
atingidas no âmago da sua estrutura, tendo deixado de subsistir o essencial e específico das
relações conjugais.

Em conformidade, o artigo 78.° exige que se verifiquem simultaneamente as seguintes


condições:
a) deterioração completa e irremediável dos princípios em que se baseia a união conjugal,
compreendendo todas as causas que levam à destruição das relações matrimoniais que devem
ser baseadas no respeito, fidelidade, cooperação e assistência material e moral recíprocas;

b) que o casamento «tenha perdido o seu sentido», o que significa que o casamento foi
esvaziado do seu conteúdo pessoal e social, passando a constituir um mero vínculo formal sem
o conteúdo substancial de uma verdadeira «plena comunhão de vida», como prescreve o art.
20.° do Código de Família.

Esta expressão «terperdido o seu sentido» deve, pois, ser entendida no sentido de que o
casamento ficou desprovido da sua finalidade legal, que é a constituição da célula familiar. Era
a expressão que vinha já consignada na Resolução n.° 2/82 da Assembleia do Povo a que já nos
referimos, e que ordenou que se procedesse à revisão da legislação vigente em matéria de
direito da família, apontando esta situação, na parte especificamente respeitante ao divórcio,
como a essência da sua fundamentação.

Essa perda de sentido refere-se às relações inter-conjugais, mas também aos reflexos desse
relacionamento em relação aos filhos e às suas repercussões no meio social.

Vemos que o conceito de divórcio acolhido no Código de Família é o que corresponde ao do


divórcio «remédio, falência ou constatação de rutura», pois a tónica fundamental em que
assenta a declaração do divórcio e a consequente dissolução do casamento, é o ter-se apurado
que cessou a plena união de vida entre os cônjuges e que as relações entre marido e mulher se
deterioraram de uma forma que se afigura irreversível.

Dentro deste sistema jurídico de conceção de divórcio, este pode resultar de facto ou factos
imputáveis a um só cônjuge, ou de factos imputáveis a ambos, ou ainda ter surgido com o
concurso ou sem o concurso da vontade dos cônjuges.

A noção de culpa como elemento de valoração da ação violadora dos deveres matrimoniais e
geradora do direito ao pedido de divórcio, que é inerente ao conceito de divórcio sanção, foi
afastada do Código de Família.

[97] Fundamento de divórcio — causa genérica

Como adiante veremos, o Código de Família, para decisão de certas questões específicas,
manteve a menção de causa de divórcio que serve para o aferimento de direitos a quando da
dissolução do vínculo conjugal, como seja o direito a alimentos do casal e a atribuição do
direito à residência familiar.

O papel do juiz neste sistema legal de causa genérica de divórcio é bastante mais amplo,
dispondo de maior poder discricionário. Incumbe-lhe apurar não só a causa ou as causas que
em concreto são invocados como pedido do divórcio, mas também as consequências que dela
ou delas derivarem para a vida dos cônjuges, de forma a poder concluir estar destruído o
vínculo conjugal.

Já quando vigora o sistema das causas peremtórias, em que são apontados na lei os
fundamentos taxativos do divórcio (como, por exemplo, o adultério, a condenação pela prática
de crime doloso em pena de prisão maior, ou outra), uma vez verificada a causa, o juiz tinha
em regra, que conceder o divórcio, sem embargo de se apurar se elas tornaram impossível a
manutenção do vínculo conjugal.

No sistema da causa genérica, o fundamento do divórcio baseia no facto de se reconhecer a


deterioração definitiva do vínculo.

Predomina a conceção do divórcio remédio, falência ou constatação de rutura, pois a causa


genérica detonadora do direito ao divórcio é fundamentalmente o reconhecimento da
desunião irremediável dos cônjuges. Por outras palavras, não há neste sistema uma
enumeração, descriminada e taxativa, dos fundamentos em que se pode basear o pedido do
divórcio, pois a única causa genérica consiste no fracasso definitivo e na rutura irremediável do
vínculo.

No sistema adotado no Código de Família podemos dar como assente que predomina o
sistema de causa genérica, que pode ser invocada por iniciativa comum dos cônjuges na
modalidade que adiante veremos do divórcio por mútuo acordo, ou que pode ser invocada por
um dos cônjuges contra o outro, no caso do divórcio litigioso.

Esta conceção impediu que o Código de Família indicasse fundamentos taxativos do divórcio.
Estes vêm enunciados na lei a título meramente exemplifica- tivo, indicando em princípio
situações que podem servir de base à declaração do divórcio e que não são mais que a
tipificação de certas situações de caráter duradouro que podem levar à dissolução do
casamento por divórcio. Como já referimos, estamos perante normas em branco que o juiz,
intérprete da lei, irá aplicar em concreto ao caso sub iudice.

A lei angolana foi assim percussora da conceção de divórcio baseado em causa genérica e no
fracasso do vínculo conjugal pois invoca tão somente a existência de uma causa que
deteriorou as relações conjugais, omitindo a atribuição de «culpas» ao decidir o fim do
casamento entre os cônjuges.

Forçoso é porém reconhecer, que ao serem invocadas as causas do divórcio nas ações de
divorcio litigioso o Código de Família se encontra ainda num patamar intermédio de aceitação
do divórcio face às atuais tendências de liberalização do direito ao divórcio que atrás se
mencionaram.

Podem também classificar-se as causas do divórcio aceites no Código de Família, em causas de


natureza subjetiva e causas de natureza objetiva. As primeiras são as que derivam de uma
determinada conduta pessoal, consciente e voluntária de um dos cônjuges; as segundas são as
que se reportam a factos concretos verificáveis de per si, com realidade própria.

[98] Natureza jurídica do direito ao divórcio

O direito ao divórcio carateriza-se em primeiro lugar por se tratar de uma simples faculdade
legal. Como faculdade que é, a lei deixa ao titular do direito ao divórcio a decisão de querer ou
não usar desse direito , e por esta razão se pode concluir que ninguém é obrigado a exercê-lo.
As faculdades refletem um interesse do titular, não têm um objeto específico e têm diante de
si sujeitos meramente passivos com obrigações sem direitos. Mesmo que se verifiquem num
determinado casal factos que podem constituir fundamento legal para declarar o divórcio, não
se torna obrigatório que ele se venha a operar.

Pelo contrário, a experiência da vida familiar mostra que, dos inúmeros conflitos conjugais que
ocorrem, só alguns deles vão produzir o efeito extremo da dissolução do vínculo por divórcio.

O direito ao divórcio carateriza-se ainda por ser um direito potestativo, o que implica que ele
pode ser exercido independentemente da vontade do outro cônjuge.

O cônjuge titular do direito ao divórcio, se quiser obtê-lo, deve expressar essa vontade na
competente ação judicial. Obtida a confirmação judicial de que os fundamentos invocados
existem, é proferida a sentença judicial que declara, com base neles, a dissolução do
casamento por divórcio.

O outro cônjuge, contrariamente a um entendimento erróneo muito difundido, não tem que
conceder ou não conceder o divórcio, mas sim suportar os efeitos jurídicos que vão advir do
exercício do direito ao divórcio pelo outro cônjuge.

O direito ao divórcio não é um direito subjetivo no seu sentido estrito, pois não vai exigir do
outro cônjuge determinada conduta positiva, mas sim produzir efeitos na esfera jurídica de
ambos os cônjuges e independentemente da vontade de um deles.

Define-se assim o direito potestativo como aquele que assegura um determinado efeito
jurídico, que no caso do divórcio é o da alteração da situação jurídica familiar, ou seja, a
extinção do vínculo. É, pois, um direito que vai resultar não em prestação negativa ou positiva
por parte do cônjuge contra quem a ação é proposta, mas na obtenção da declaração judicial
da dissolução do casamento.

Como direito inserto nas relações jurídicas familiares, é um direito de natureza pessoal, pois o
seu exercício reporta-se à pessoa ou pessoas do(s) cônjuge(s). Há até quem o designe como
direito «pessoalíssimo», o que inclusivamente impede que qualquer dos cônjuges possa estar
representado na ação de divórcio através de um terceiro, representante voluntário. É um
direito de natureza irrenunciável, não podendo os cônjuges fazer antecipadamente qualquer
declaração de renúncia ao direito ao divórcio, seja essa renúncia feita de forma genérica, seja
por forma específica, renunciando previamente ao direito ao divórcio, por este ou aquele
fundamento legal.

O caráter irrenunciável do direito em si não impede que, em concreto, o cônjuge que podia
exercer o seu direito ao divórcio opte por não o exercer ou por desistir, nos termos da lei do
processo, da ação de divórcio que tenha intentado.

As ações de divórcio, como as demais ações de estado, porque se repercutem no estado civil
das pessoas, não podem ser objeto de confissão ou transação judicial, mas tão somente de
desistência — art. 299.°, n.°s 1 e 2 do Código de Processo Civil.
É, porém, de salientar que em alguns sistemas jurídicos é permitida a confissão como meio de
prova. No direito francês desde 1975, passou a ser possível a aceitação dos factos tal como o
outro cônjuge os descrevia na sua «mémoire»(relatório), tendo a Lei de 2004 simplificado esse
procedimento pois circunscreveu o pedido ao facto de ambos concordarem que o casamento
«fracassou».

O direito ao divórcio não pode ser transmissível a terceiros, quer inter vivos quer mortis causa.

Tal significa que ele só pode ser exercido pelo próprio cônjuge e que não se transmite por
morte. De facto, o direito ao divórcio extingue-se com a morte do seu titular.

Também no nosso direito a ação de divórcio não pode ser exercida por meio de mandato
outorgado a terceiro, e só no caso de interdição ela pode ser exercida pelo representante legal
do interdito, nos termos aliás previstos para os poderes de acionar contidos no art. 238.°,
alínea c) do Código de Família.

No Código Civil já revogado, o representante legal do interdito necessitava da autorização do


Conselho de Família para poder propor a ação de divórcio — art. 1781.° do citado Código.

No Código de Família não existe regra específica relativa à ação de divórcio, pelo que se
aplicam as regras gerais respeitantes à tutela de maiores. Segundo o que dispõe o art. 238.°,
alínea c) do Código de Família, o tutor só pode propor ações em tribunal com autorização
deste.

No direito português atual a ação de divórcio não se extingue com a morte do cônjuge, pois
nela podem prosseguir os seus herdeiros, quer ele tenha sido autor ou réu. Tal posição tem
plena justificação, porquanto, tendo o cônjuge a qualidade de sucessível em relação ao outro
cônjuge, a declaração do divórcio tem efeitos patrimoniais, designadamente porque pode
envolver a perda da qualidade de sucessível.

[99] Modalidades de divórcio — o divórcio por mútuo acordo

A conceção do direito ao divórcio vai refletir-se também no facto de o legislador aceitar no


ordenamento jurídico uma só forma de divórcio (o divórcio litigioso) ou aceitar duas formas (o
divórcio litigioso e o divórcio por mútuo consentimento ou por mútuo acordo). Esta última
forma de divórcio é mais liberalizante e permite a escolha em liberdade de vontade da decisão
da dissolução do casamento.

O Código de Família, na esteira do que já foi introduzido no sistema jurídico angolano com a
publicação da Lei n.° 9/78, de 26 de maio, permite as duas modalidades de divórcio. Nos
termos do art. 79.° do Código de Família, o divórcio pode ser pedido:

a) por ambos os cônjuges na base do mútuo acordo;

b) por apenas um dos cônjuges com base nos fundamentos previstos nesta lei.

No primeiro caso, estamos perante uma resolução bilateral tomada concerta¬damente por
ambos os cônjuges, que é invocada como fundamento de divórcio.
No caso do divórcio litigioso, a ação é proposta por um dos cônjuges com base na causa
genérica, mas invocando em concreto a causa ou causas que levam a pedir a dissolução do
vínculo. O cônjuge que propõe a ação litigiosa tem o ónus da prova dos factos que alegar e
ainda das consequências que eles tiveram na vida conjugal.

No divórcio por mútuo acordo, já a lei permite que os cônjuges deliberem em comum e
decidam pedir em conjunto que seja declarado o divórcio. Nem o legislador nem
consequentemente o tribunal exigem que os cônjuges justifiquem a sua deliberação comum
invocando esta ou aquela causa. Não são reveladas as razões subjacentes que levaram os
cônjuges à tomada de tão importante resolução sobre a vida comum.

Esta forma de divórcio por mútuo acordo é chamada na doutrina divórcio por mutuus
dissensus, pois o acordo que é exigido é o de que já não querem continuar casados.

A lei parte da presunção de que, se os cônjuges pedem a dissolução do casamento por mútuo
acordo, é porque reciprocamente reconhecem que a sua união conjugal se encontra
irremediavelmente comprometida, e, assim sendo, a melhor solução terapêutica será
reconhecer a falência do casamento e promover a declaração da sua dissolução.

No fundo, a aceitação do divórcio por mútuo acordo envolve, no entender de alguns, uma
conceção contratualista do casamento, pois, em última análise, o que se permite é que o
casamento seja resolvido por comum acordo das partes, tal como pode acontecer com
qualquer outro contrato.

Há também quem veja no divórcio por mútuo acordo uma forma de divórcio por repúdio
recíproco entre marido e mulher.

A verdade é que, também no divórcio por mútuo acordo, existem sempre causas justificativas
que são determinantes na deliberação tomada pelos cônjuges. Só que a lei não impõe que
essas causas sejam invocadas para alicerçar a deliberação tomada. A lei entende que é melhor
não as averiguar, por reconhecer aos cônjuges maturidade para tomarem ou não tomarem
essa resolução.

Na verdade, o divórcio por mútuo acordo é uma via para desdramatizar o divórcio, tornando-o
menos traumatizante para os cônjuges e também, indiretamente, para os filhos e demais
membros da família.

Esta forma de divórcio revela-se mais benéfica no relacionamento dos cônjuges posterior ao
divórcio, por impedir que sejam feitas acusações degradantes de um para o outro, dificilmente
recuperáveis.

O Código de Família regula a modalidade do divórcio por mútuo acordo nos seus artigos 83.° a
96.°. O fundamento do divórcio por mútuo acordo assenta «na deliberação comum e pessoal
dos cônjuges de porem fim à vida conjugal» — art. 84.° do Código de Família.

O exercício do direito ao divórcio por mútuo acordo está condicionado na lei. Para impedir
resoluções de natureza precipitada ou imatura, são impostos condicionalismos na lei relativos
à duração do casamento e à idade dos cônjuges.
Os pressupostos legais para o pedido de divórcio por mútuo acordo vêm expressos no art. 83.°
do Código de Família, e são:

a) que o casamento tenha sido celebrado há mais de três anos;

b) que ambos os cônjuges tenham completado 21 anos de idade.

Na Lei n.° 9/78, de 26 de maio, a idade mínima exigida aos cônjuges era de 22 anos (art. 19.°).
Foi a Lei n.° 9/78 que introduziu a importante alteração ao direito anterior, permitindo que,
em certos casos, o divórcio por mútuo acordo fosse declarado pelas Conservatórias do Registo
Civil (art. 4.°).

O Código de Família retomou esta posição, permitindo que, além da via judicial, o divórcio por
mútuo acordo possa ser declarado pelo órgão do registo civil da área de residência de
qualquer dos cônjuges (art. 86.°).

O art. 87.° do Código restringe a competência das Conservatórias do Registo Civil aos casos em
que:

a) o casal não tenha filhos menores;

b) havendo filhos menores, haja decisão com trânsito em julgado sobre a regulação da
autoridade paternal proferida pelo tribunal competente.

Deste modo, é possível usar a via administrativa para a declaração do divórcio, quando não
estiver em disputa o direito ao exercício da autoridade paternal sobre os filhos menores do
casal. Pelo melindre e delicadeza da questão, havia que acautelar o seu conhecimento pelo
tribunal competente, que é hoje a Sala de Família do Tribunal Provincial.

Já a simples apreciação de verificação dos pressupostos legais relativos à idade dos cônjuges e
à duração do casamento — que permitem a declaração do divórcio por mútuo acordo — está
manifestamente ao alcance do conservador do registo civil.

Há que ter em conta, pois, que, segundo a lei, o divórcio por mútuo acordo pode ser sempre
pedido pela via judicial e que a via administrativa só é possível nos casos especificados na lei.

Quanto ao procedimento processual, o Código exige não só que os cônjuges expressem o seu
acordo no requerimento inicial quanto ao pedido de declaração de divórcio, mas que
apresentem ainda os acordos complementares — art. 85.° do Código de Família.

É que, como adiante veremos, a dissolução do casamento vai produzir diversos efeitos na
esfera pessoal e patrimonial dos cônjuges. Não basta, por isso, que os cônjuges estejam de
acordo em relação ao divórcio; é necessário também que eles dirimam amigavelmente as
questões que derivam do divórcio, as questões de natureza pessoal e patrimonial resultantes
da dissolução do casamento.

Nestes termos, o art. 85.° do Código de Família impõe que os cônjuges apresentem os acordos
respeitantes a:
a) Exercício da autoridade paternal sobre os filhos menores do casal, se os houver, e se
tal não estiver decidido pelo tribunal;

b) Prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça;

c) Atribuição da residência familiar.

Além de que, em obediência ao art. 89.°, alínea a), os cônjuges têm ainda a obrigação de
apresentar a relação especificada de todos os seus bens próprios e comuns, o que implica a
existência de prévio acordo sobre a descrição e atribuição dos bens, ou ao casal em comum,
ou próprios de cada um dos cônjuges.

Quanto ao procedimento processual descrito nos arts. 90.° e seguintes, há que realçar a
imposição da presença obrigatória dos cônjuges na conferência — art. 91.°.

O tribunal procurará obter a conciliação dos cônjuges, devendo diligenciar no sentido de eles
desistirem do propósito de se divorciarem — art. 93.°. Se o não conseguir, deverá proceder à
apreciação dos acordos complementares apresentados.

Quanto à homologação ou não do acordo sobre o exercício da autoridade paternal, há que


aplicar o regime geral do art. 109.°, n.° 1, por força do n.° 3 do citado art. 93.°.

Antes de homologar o acordo, o tribunal deverá dar cumprimento ao disposto no art. 158.° e
recolher o parecer do Ministério Público e promover a audição do menor que tenha
completado 10 anos de idade.

É declarado então o divórcio provisório, que será convertido em divórcio definitivo se, no
prazo de 90 dias, nenhuma das partes vier a desistir do pedido.

Declarado o divórcio, a decisão judicial é oficiosamente comunicada aos órgãos do registo civil
que tenham celebrado o casamento e àqueles onde tenham sido lavrados os assentos de
nascimento dos cônjuges.

O procedimento perante a Conservatória do Registo Civil é idêntico dado que os arts. 93.° e
seguintes são aplicáveis tanto ao processo judicial como ao processo administrativo que corre
perante o órgão do registo civil

O Conservador deverá promover a conciliação dos cônjuges tal como o juiz, e, se não o
conseguir, deve dar andamento ao processo, homologar os acordos se for caso disso, e
declarar o divórcio provisório. A declaração do divórcio definitivo e as comunicações aos
demais órgãos do registo civil seguem igualmente o que consta dos arts. 95.° e 96.° do Código
de Família.

[100] O divórcio litigioso; fundamentos a título exemplificativo

O divórcio litigioso, conforme o que vem previsto no art. 79.° do Código de Família, é aquele
que épedido por apenas um dos cônjuges, com base nos fundamentos previstos nesta lei. A
ação de divórcio litigioso é proposta unicamente por um cônjuge contra a pessoa do outro,
devendo aquele que põe a ação invocar a existência de uma causa.
Os fundamentos previstos na lei vêm inseridos na disposição de caráter geral do art. 78.°, que
abrange a causa genérica que vai produzir a dissolução do vínculo, ou seja, a da deterioração
completa e irremediável da sua união, e a perda do sentido ou finalidade do casamento.

Esta disposição genérica é integrada, quanto ao divórcio litigioso, pelo art. 97.°, que a
transcreve, especificando que esta forma de divórcio é legalmente possível quando «esteja
comprometida a comunhão de vida dos dois cônjuges e impossibilitada a realização dosfins
sociais do casamento».

Os factos invocados como fundamento do divórcio têm que ser posteriores à celebração do
casamento, pois os factos anteriores, quando previstos na lei, só poderão ser invocados como
causa do pedido de anulação do casamento.

No divórcio litigioso, os fundamentos são os que vêm contidos nos arts. 97.° e 98.°, que mais
não são do que duas disposições complementares.

O artigo 97.° expressa como fundamento do pedido de divórcio litigioso que exista uma causa
grave ou duradoura que veio atingir e atentar contra a comunhão de vida dos cônjuges e
tomar impossível a realização dos fins sociais do casamento. Essa causa pode ser, em
alternativa, ou grave ou duradoura.

De acordo com esta disposição, a causa genérica tem uma grande amplitude, pois o legislador
preferiu não enumerar, caso a caso, os fundamentos legais do pedido de divórcio litigioso. A
causa, como é dito na linguagem da lei, pode existir tanto em razão da produção de um único
facto que deva ser considerado grave, como em razão de uma situação repetida que, pela sua
continuidade e reiteração, venha a destruir a contextura do vínculo matrimonial.

Umfacto grave pode ser o adultério, o atentado contra a vida do outro cônjuge, etc..

Um facto duradouro pode consistir no facto de os cônjuges deixarem de se dirigir a palavra ou


deixarem de manter as relações normais de cônjuges durante largo período de tempo, por
exemplo.

Pode, por conseguinte, haver um único facto que seja tão grave que torne impossível a
continuação da vida em comum, mas pode também verificar-se uma acumulação de factos
que conduza ao mesmo resultado.

A reiteração de pequenos atos de violência física ou verbal, a recusa injustificada de manter


relações sexuais, a frieza no relacionamento afetivo, podem tornar intolerável a convivência
conjugal e ser causa de pedido de divórcio.

Segundo a conceção do Código, deve verificar-se, por parte do cônjuge contra quem é
proposta a ação de divórcio litigioso, a violação de forma grave ou duradoura dos deveres
impostos pelo casamento, violação que pode traduzir-se, por exemplo, na recusa por parte de
um dos cônjuges em consumar o casamento, na violação dos deveres enunciados na lei de
fidelidade, de respeito, de coabitação, de cooperação e de assistência moral ou material.

A natureza grave ou duradoura do facto invocado deverá ser apreciada e dada como verificada
pelo juiz da causa, sempre tendo em conta o condicionalismo a que se refere o artigo 99.° do
Código de Família. Isto é, ao aferir da gravidade e importância do facto para a vida dos
cônjuges, o juiz deve ponderar qual a formação cultural deles, pois determinada expressão
entre pessoas de cultura rudimentar pode não se traduzir em ofensa, e ser altamente injuriosa
entre pessoas com outro nível cultural.

Na mesma linha de pensamento se manda atender «à formação dos cônjuges, ao grau de


educação e à sensibilidade moral dos cônjuges». A relevância do fundamento invocado não é,
pois, uniforme para todos os casos. Têm que ser apreciadas em globo todas as circunstâncias
da vida conjugal e da pessoa dos cônjuges, que interessem para a decisão a proferir pelo
tribunal.

Dentro das circunstâncias a que o tribunal deve atender para declarar ou não o divórcio são
também incluídas questões como a duração do casamento, a idade dos cônjuges, o seu estado
de saúde, etc.

O art. 97.° exige ainda para a declaração do divórcio litigioso que a causa grave ou duradoura
tenha produzido os efeitos negativos sobre a união conjugal enunciados na parte final deste
artigo e que são, em última análise, os mesmos que vêm contidos no já citado art. 78.°.

O art. 98.°, que contém uma enunciação meramente exemplificativa, limita-se a indicar
situações fatuais que, a verificarem-se, permitem a conclusão de que se encontra
comprometida a comunhão de vida dos cônjuges e impossibilitada a realização dos fins sociais
do casamento.

Por outras palavras, as previsões do art. 98.° são todas elas referentes a causas de natureza
duradoura que se refletem sobre a estrutura matrimonial e que levam a que possa ser pedido
o divórcio litigioso.

A causa grave ou duradoura invocada como fundamento do pedido de divórcio pressupõe,


como a expressão indica, a existência de jactos materiais que um cônjuge pode invocar contra
o outro. Esses factos materiais constituem, pois, a causa de pedir na ação de divórcio litigioso.

Os factos invocados podem ser de natureza subjetiva ou objetiva.

Se se trata de facto subjetivo, tem que consistir num jacto ilícito violador de algum dos deveres
conjugais.

O facto tem que ser juridicamente imputável ao cônjuge contra quem a ação é proposta. É o
cônjuge que põe a ação que tem o ónus de provar os factos que integram a causa ou causas e
ainda as consequências dos factos invocados.

A conduta ilícita, porque violadora dos direitos do outro cônjuge, tem que se concretizar na
forma de dolo ou de negligência, o que significa que tem que reportar-se a factos perpetrados
com consciência e vontade.

São aplicáveis aqui os conceitos aceites na doutrina do direito penal sobre a tipificação da
conduta do agente como elemento integrador da infração criminal.
Os factos integradores da causa grave ou duradoura têm que ser praticados pelo cônjuge
contra quem a ação é proposta, de forma consciente e voluntária, o que implica que o
conceito de imputabilidade do cônjuge prevaricador é aqui também necessário.

Deve entender-se, porém, que nem sempre é necessário que o cônjuge que pratica o ato
esteja em pleno uso das suas faculdades mentais, pois pode praticá-lo em estado de
embriaguez, em estado de drogado, etc.. Mas se o cônjuge contribuiu voluntariamente para se
pôr em tal situação, é igualmente responsável por ter criado o estado psíquico determinador
da sua conduta.

O cônjuge que propõe a ação de divórcio litigioso tem também de provar que entre as causas
que invoca para fundamentar o seu pedido de divórcio e a destruição do vínculo conjugal
existe um nexo de causalidade, ou seja, que foram elas que desencadearam a causa genérica
que consiste na destruição ou rutura irremediável do vínculo conjugal.

O que a realidade nos mostra é que a deterioração da vida conjugal não se produz em regra de
forma abrupta, e que ela é produzida por um somatório de factos, em estilo de respostas
sísmicas que, de forma recíproca, se vão avolumando num crescendo que, quando não é
atempadamente controlado e dominado, vai fazer ruir os alicerces da união conjugal.

Como já fizemos referência, o Código de Família não adotou o sistema das causas taxativas de
divórcio tal como fazia o Código Civil. Este, no seu art. 1778.°, indicava que, como fundamento
de separação litigiosa, eram aplicáveis ao divórcio, por força do art. 1792.°, os factos seguintes:

a) adultério do outro cônjuge;

b) práticas anticoncecionais ou de aberração sexual exercidas contra a vontade do


requerente;

c) condenação definitiva do outro cônjuge, por crime doloso, em pena de prisão superior
a dois anos, seja qual for a natureza deste;

d) condenação definitiva pelo crime de lenocínio ou por homicídio doloso, em certas


condições;

e) vida e costumes desonrosos do outro cônjuge;

f) abandono completo do lar conjugal por parte do outro cônjuge por tempo superior a
três anos;

g) qualquer facto que ofendesse gravemente a integridade física ou moral do requerente.

Alguns destes factos são, na realidade, os que são mais frequentemente invocados como
fundamento do pedido de divórcio litigioso, e daí que haja interesse em definir alguns dos
respetivos contornos. Vejamos, a título exemplificativo, quais os factos que podem integrar
estes fundamentos invocáveis em juízo. Usando a classificação de causas previstas no art. 97.°
do Código de Família, mencionemos algumas que podem ser apontadas como graves.

A — Adultério
Consiste na consumação de relação sexual de um cônjuge com terceira pessoa, praticada por
ato voluntário. Daí que para a configuração do adultério seja necessário que se verifiquem
simultaneamente os dois elementos, o objetivo e o subjetivo. É necessário, por um lado, que
se verifique a prática do ato carnal, não bastando práticas libidinosas, ou simples namoro.
Estas condutas poderão integrar, como veremos, uma injúria grave contra o outro cônjuge. É
necessário que o ato sexual seja cometido voluntariamente pelo cônjuge faltoso, pois, se
resultar de coação física, como no caso de violação, ou se for mantido em estado de
inconsciência ou por erro, não se prefigura o adultério.

O adultério constitui um facto ilícito civil, e dele pode derivar para o cônjuge ofendido o direito
de indemnização por danos não patrimoniais. No caso de o adultério ocorrer durante a vida
em comum dos cônjuges, o Código Penal em vigor considerava-o crime. Como já vimos, tal
disposição foi alterada pela Lei de 3 de novembro de 1910, no seu art. 61.°. Hoje em dia a
maioria das leis dos diversos países deixou de considerar o adultério como um crime.

Discute-se ainda se no conceito de adultério se deve unicamente prever a prática de relações


sexuais entre pessoas de sexos diferentes ou se ele deve abranger igualmente, relações
sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Tendo em vista que o relacionamento sexual mantido
quer com pessoas de sexo diferente quer do mesmo sexo envolve práticas libidinosas de
caráter íntimo, a tendência é no sentido de englobar estas últimas na prática de adultério.

B — Vida e costumes desonrosos Considera-se que estamos perante uma injúria indireta feita
por um cônjuge ao outro. É um comportamento que deve traduzir-se em hábitos de vida que
sejam arreigados e envolvam a degradação moral e social do cônjuge que os pratique e que vai
refletir-se sobre a pessoa do outro cônjuge. Pode indicar-se como exemplo o facto de o
cônjuge ser um viciado no consumo da droga ou de álcool, viver de mendicidade, dedicar-se
habitualmente à prática de jogo de azar, etc..

Não basta uma prática isolada censurável, pois é necessário um teor de vida que envolva a
desqualificação moral do cônjuge que tem uma conduta desonrosa. O cônjuge ofendido em
consequência do comportamento do outro cônjuge sente-se atingido na sua própria
dignidade, pelo facto de o meio social em que os cônjuges vivem desprezar e desconceituar o
outro cônjuge, em virtude do comportamento vergonhoso ou imoral do prevaricador.

C — Abandono completo do lar conjugal

Este fundamento era invocado com grande frequência na vigência do Código Civil, que não
permitia o divórcio pela simples separação de facto, tendo hoje muito menos relevância. É
uma figura jurídica complexa, que comporta diversos elementos de natureza objetiva e
subjetiva. Para a sua verificação importa que se verifiquem os seguintes elementos:

— saída livre e espontânea do lar conjugal;

— feita sem o consentimento do outro cônjuge;

— feita com o propósito de romper a comunhão de vida;


— o decurso ininterrupto do prazo legal, que, segundo a alínea f) do art. 1778.° do Código
Civil, era de três anos.

O lar conjugal é a residência comum e própria dos cônjuges. Se os cônjuges vivem em casa de
parentes, entende-se que não chegou a ser constituído o lar conjugal. A saída do lar tem que
ser da iniciativa de quem sai e é preciso que nessa saída não haja qualquer culpa por parte do
outro cônjuge. Se o cônjuge provoca essa saída, expulsando do lar o outro cônjuge, ou
tornando a vida em comum insustentável, já se não configura o abandono por parte do
cônjuge que deserta do lar conjugal. O abandono também não se verifica quando a saída do lar
resultou de acordo estabelecido entre ambos os cônjuges, acordo que pode ser de natureza
expressa ou tácita.

Quando um dos cônjuges sai de casa com o propósito de voltar, tomando posteriormente a
resolução de não voltar à vida comum, o abandono inicia-se a partir da data em que o cônjuge
expressa o propósito de não reatar a vida em comum.

De igual forma acontece quando a saída do lar conjugal for efetuada pelo cônjuge com a
intenção de pôr fim à comunhão de vida e de não voltar a reatar a vida conjugal, pois este
propósito, como elemento integrador do conceito de abandono, deve ser concomitante com o
facto da saída do lar para o efeito de se contar, a partir de então, o prazo previsto na lei para a
separação de facto.

Há ainda que distinguir entre o abandono do lar e a ausência do outro cônjuge sem dele haver
notícias. O abandono do lar é caraterizado, desde o seu início, pelos elementos que indicamos,
ao passo que a ausência se define como o desconhecimento do paradeiro do outro cônjuge,
acompanhado da falta de notícias.

D — Ofensas graves à integridadefísica ou moral

Esta disposição da lei é de caráter genérico e abrange uma larga gama de atos ofensivos, que
podem ser de natureza física (na anterior lei do divórcio denominavam-se sevícias), ou de
natureza moral (na mesma lei eram denominadas injúrias). As ofensas à integridade moral
constituem injúrias, tomado este conceito em sentido lato, devendo as ofensas, de acordo
com a lei, ser consideradas graves.

As ofensas praticadas antes do casamento, mesmo que o cônjuge só delas venha a ter
conhecimento depois da sua celebração, não têm relevância, já que não visaram alguém que
tivesse a situação jurídica de cônjuge.

Têm ainda que visar diretamente a pessoa do cônjuge, embora não seja necessário que sejam
proferidas na presença do outro cônjuge.

Estas práticas, designadamente a violênciafísica, violência psicológica e violência sexual estão


hoje tipificadas como crime e integram o crime de violência doméstica, alterando a situação
anterior que silenciava estas condutas que decorriam no interior da vida conjugal, atribuindo-
lhe tão somente relevância como fundamento no pedido de dissolução do vínculo conjugal. A
ofensa dirigida a parentes próximos do outro cônjuge pode, segundo alguns, constituir ofensa
indireta. 2. Ofensas à integridade moral
Podem ser constituídas por violência psicológica como ameaças e coação, ou por injúrias
dirigidas contra o outro cônjuge, podendo ser proferidas na presença deste ou de terceira
pessoa que leve o seu teor ao conhecimento do cônjuge ofendido.

Têm também que ser proferidas com o propósito de ofender o outro cônjuge,

ou seja com animus injuriandi.

Fundamentalmente, podem apresentar-se sob três tipos diferentes:

— Injúrias verbais, que consistem em expressões proferidas ou escritas pelo outro


cônjuge;

— imputação caluniosa, que consiste em atribuir ao outro cônjuge um procedimento


indigno;

— injúrias reais, que consistem num comportamento do outro cônjuge em si mesmo


ofensivo da integridade moral do cônjuge ofendido.

Neste tipo legal de fundamento de divórcio é muito importante considerar atentamente as


circunstâncias concretas de cada caso, a gravidade objetiva da ofensa, o comportamento do
cônjuge ofendido, o grau de preparação, os hábitos de linguagem e outros elementos que vão
condicionar a maior ou menor gravidade a atribuir à ofensa. Ela tem que ir repercutir-se
profundamente nas relações pessoais dos cônjuges, de forma a que a vida em comum fique
efetivamente comprometida.

O Código de Família, na esteira do que já tinha sido iniciado pela Lei n.° 53/76, veio indicar
certas causas objetivas de divórcio (art. 89.°, alíneas a), b),

c) e d)), que se reportam, como vimos, a factos que se prolongam no tempo e são de
natureza duradoura.

E — A separação de facto por três anos

Neste fundamento previsto no art. 98.°, alínea a), não há que atender às circunstâncias ou
motivos que levaram os cônjuges à separação. Nem sequer interessa saber se ela foi ou não
iniciada por acordo de ambos os cônjuges. Daí que não haja que ter em conta a intenção de
pôr fim à vida em comum, como era exigida para o abandono do lar.

A separação de facto traduz-se na violação, por ambos os cônjuges, do dever de coabitação, e


a sua continuidade no tempo demonstra a vontade dos cônjuges no corte das relações
conjugais. Não basta uma suspensão temporária da convivência conjugal em que se mantêm
relações e interesses comuns, e que como vimos pode ser motivada por razões atendíveis,
como seja a atividade profissional de um dos cônjuges, a necessidade da sua formação
profissional, motivos de saúde, etc. Para se configurar este fundamento a lei exige:

— a separação dos cônjuges durante um mínimo de três anos, com suspensão total e
completa de todas as relações pessoais entre os cônjuges como tal;

— que o tempo de separação tenha decorrido de forma contínua e ininterrupta.


O facto de os cônjuges manterem contatos em razão do interesse dos filhos ou de interesses
comuns, ou por razões de relações patrimoniais, não suspende o decurso do prazo. Mas ele é
interrompido pelo reatamento de relações de natureza pessoal, mesmo que não tenha sido
reatada a coabitação. A simples separação de facto é em si uma situação anómala no
casamento, perante a qual a lei não fica indiferente, vendo nela um fundamento do pedido de
divórcio.

F—Abandono do pais por parte do outro cônjuge

Este fundamento foi introduzido pela Lei n.° 53/76, e consta hoje do art. 98.°, alínea b) do
Código de Família. Ele surgiu em virtude do êxodo que se verificou no País, aquando da saída
de centenas de milhares de pessoas no fim da colonização. De tal fenómeno resultou a
separação de inúmeros casais, porquanto acontecia um dos cônjuges resolver ausentar-se do
país e o outro optar por permanecer, tornando impossível o prosseguimento da vida conjugal.

Os elementos constitutivos deste fundamento são:

— que um dos cônjuges tenha abandonado o país;

— que o tenha feito com o propósito de não regressar;

— que a saída tenha sido feita sem o consentimento do outro cônjuge.

G — A ausência do cônjuge

Este fundamento do divórcio constava já da Lei do Divórcio de 1910, ainda que prevendo um
prazo de ausência mais longo, e está mencionado no art. 98.°, alínea c) do Código de Família. A
ausência distingue-se da presunção de morte. Como já dissemos, neste caso há fortes indícios
de que a morte se verificou, enquanto que na ausência o que sucede é que o outro cônjuge
está em paradeiro incerto e não se sabem notícias dele. O que carateriza a ausência é que o
ausente não só está em lugar afastado (que é desconhecido), mas também dele não há
notícias, seja por ele as não querer dar, seja por não as poder dar.

O cônjuge que invocar a ausência tem que alegar e provar que não tem quaisquer notícias do
outro cônjuge e que não sabe de ninguém que lhe dê notícias

dele. Esse estado de ausência tem que se prolongar pelo tempo mínimo de três anos, pelo
que, se entretanto o ausente voltar ou se simplesmente der notícias, o prazo decorrido fica
sem efeito.

A ausência distingue-se da separação de facto, porquanto neste caso os cônjuges têm


paradeiro certo.

H — Demência do cônjuge

0 art. 98.°, alínea d) prevê como fundamento do divórcio a alteração das faculdades
mentais do outro cônjuge, desde que clinicamente verificada. A lei impõe que:

a) a alteração psíquica seja profunda;


b) que dure há mais de três anos;

c) que pela sua gravidade comprometa a possibilidade de vida em comum.

Exige a lei que a doença seja de tal forma grave que impossibilite o cônjuge de uma vida
normal, tomando-o na verdade, uma pessoa incapaz para a convivência matrimonial. Embora
haja quem censure que se possibilite a obtenção do divórcio em razão de uma doença psíquica
de que o cônjuge dela portador não tem culpa, a verdade é que se considerou injusto que o
cônjuge são tivesse, contra sua vontade, de manter de pé um vínculo com alguém que já não
podia continuar a exercer os direitos e os deveres conjugais.

No caso de se obter o divórcio com este fundamento, deve, em princípio, manter-se o dever
de assistência ao cônjuge doente, a quem o outro cônjugeficará obrigado a prestar alimentos.

1 — Relevância dos fundamentos

O cônjuge que propõe a ação de divórcio litigioso, tem ainda o ónus de provar a relevância dos
fundamentos invocados na vida conjugal, tendo em conta os parâmetros do art. 99.° do Código
de Família (a formação dos cônjuges, o seu grau de educação, sensibilidade moral e todas as
demais circunstâncias inerentes ao caso concreto).

[101] Legitimidade na ação de divórcio litigioso e suspensão do direito de ação

Ao mencionarmos que o direito ao divórcio é de natureza pessoal, quisemos desde logo frisar
que ele só pode ser exercido pelo próprio cônjuge titular do direito, ou no caso de ser ele
interdito, pelo seu representante legal, devidamente autorizado pelo tribunal, e depois de
ouvido o Conselho de Família.

A legitimidade para a propositura da ação de divórcio está em correlação com a causa que for
invocada como fundamento.

Se se tratar de causas subjetivas (aquelas que se traduzem na violação dos deveres conjugais
por parte do outro cônjuge), só tem legitimidade para propor a ação o cônjuge ofendido por
essas violações. Isto significa que é o cônjuge lesado nos seus direitos conjugais que pode
propor a ação contra o cônjuge que infringiu os seus deveres.

Já se o divórcio tiver por fundamento uma causa objetiva, como seja a da separação de facto,
qualquer dos cônjuges indistintamente tem legitimidade para a propositura da ação. Trata-se
de um direito de natureza bilateral, do exercício de um direito potestativo que não tem origem
em qualquer facto ilícito praticado pelo outro cônjuge.

Se o cônjuge contra quem a ação for proposta não contestar, o cônjuge que propôs a ação
deverá suportar o encargo das custas judiciais — art. 449.°, n.°s 1 e 2, alínea a), do Código do
Processo Civil.

Já se for invocado o abandono do país por parte do outro cônjuge deve entender-se que o
divórcio só pode ser pedido pelo cônjuge que não saiu do País e que está sob jurisdição dos
tribunais angolanos.
O mesmo, obviamente, no caso de ausência. No caso de demência é o cônjuge não doente que
pode invocar a doença, pois trata-se de causa objetiva não imputável a qualquer dos cônjuges.

A legitimidade tem a ver com a determinação de qual foi a ação ou omissão voluntária que
originou a situação de crise nas relações conjugais, e quem teve a conduta lesiva não pode
invocá-la para com ela obter a dissolução do vínculo. Será o cônjuge vítima dessa conduta que
a pode invocar como causa de pedir no processo de divórcio.

Como já mencionámos a propósito da natureza pessoal do direito ao divórcio, ele não é


transmissível aos herdeiros do cônjuge, pelo que a morte de um deles, seja Autor ou Réu, leva
a que a ação termine ipso facto, uma vez que a morte produz, por si só, a dissolução do
casamento.

O direito ao exercício de ação de divórcio litigioso por parte do marido pode ser suspenso no
caso de gravidez da mulher.

O Código de Família introduziu esta inovação legislativa quanto ao exercício do direito ao


divórcio no seu art. 103.°. Esta disposição impede que o marido proponha ação de divórcio
contra a mulher durante todo o período de gravidez da mulher, e até que tenha decorrido um
ano após o parto.

Esta norma visa proteger a mulher em estado de gravidez ou de parto recente e que, com os
encargos próprios da maternidade, se veja ainda a braços com a situação difícil que o divórcio
sempre acarreta para ambos os cônjuges.

Procura-se poupar à mulher em estado de gestação ou em período de amamentação, o ter que


enfrentar uma ação de divórcio litigioso com as inerentes consequências de perturbação de
índole psicológica e familiar que ela acarreta.

A experiência mostra como eram frequentes as ações de divórcio propostas pelo marido a
despeito do estado de gravidez da mulher.

A disposição legal ressalva, porém, dois casos em que o marido pode, mesmo nestas
circunstâncias, exercer o seu direito ao divórcio.

O primeiro caso é o de a mulher dar o seu consentimento à ação, ou de forma expressa, antes
da suapropositura, ou de forma tácita, não suscitando o seu direito a pedir a suspensão da
instância.

O segundo caso refere-se ao facto de vir o marido impugnar a paternidade do filho. Quer
numa situação quer noutra, a ação pode ser proposta e prosseguir, pois a lei previu, por um
lado, que pode ser a mulher a estar interessada na dissolução do seu casamento por divórcio,
sem embargo do seu estado de gravidez ou pós- parto, e admitiu, por outro lado, que devia
defender-se o interesse do marido quando este pretendesse afastar a presunção legal da sua
paternidade.

Trata-se, no entanto, como se vê, de mera suspensão legal do exercício de um direito, que não
afeta a sua subsistência.
O n.° 2 do art. 103.° esclarece a forma de contagem do prazo de caducidade do direito ao
divórcio previsto no art. 102.°, no caso de ser suspenso o exercício do direito ao divórcio por
pane do marido, de acordo com o n.° 1 desse artigo.

Havendo causa de suspensão legal, o prazo de caducidade também se interrompe pelo exato
período que durar a suspensão.

[102] Causas de extinção do direito ao divórcio

A — Instigação

A instigação verifica-se quando a conduta faltosa do cônjuge deriva do comporta¬mento


deliberado do outro. Deste modo, muito embora se verifiquem factos que podiam constituir
causas legais de divórcio por infração de deveres conjugais, sucede que eles decorreram de
instigação ou provocação por parte do outro. Estamos perante causas de justificação, ou
causas de exclusão da ilicitude, pelo que o comportamento do cônjuge deixa de ser ilícito, em
razão do comportamento que, em relação a essa falta, teve o outro cônjuge.

Nas ofensas cometidas por um cônjuge contra o outro, dada a natureza estrita da sociedade
conjugal, que possui uma unidade própria, é por vezes muito difícil dissociar a conduta de um
cônjuge da conduta do outro, e ainda determinar em cada caso quando a conduta de um dos
cônjuges teve a influência determinante na conduta do outro.

Se, por exemplo, um dos cônjuges tem um comportamento indigno para o outro, o cônjuge
ofendido pode, debaixo de transtorno emocional, proferir expressões ofensivas contra o que
prevaricou.

Se um dos cônjuges cometer adultério, por a isso ter sido levado por conselho ou pedido do
outro, o cônjuge que instigou o outro ao cometimento da falta, não pode vir invocá-lo contra o
faltoso.

O art. 100.° do Código de Família exclui o direito à obtenção do divórcio por parte do cônjuge
que tiver instigado o outro a praticar o facto invocado como fundamento do pedido, ou que
tenha criado intencionalmente condições propícias à sua verificação.

Prevê esta disposição não só a instigação direta à prática de um facto, mas também a criação
voluntária, dolosa, de circunstâncias que, em condições normais, conduziriam,
previsivelmente, ao ilícito. Esta disposição deriva da que já constava do art. 1780.°, alínea a) do
Código Civil revogado.

Em virtude dela, deixa de haver o direito ao divórcio, quer quando um dos cônjuges possa ser
considerado moralmente cúmplice do outro, ou quando o cônjuge, pela sua conduta, tenha
criado condições para a reação do outro cônjuge, ou tenha propiciado a sua conduta ilícita.

Constituindo matéria de exceção, em ação de divórcio a prova dos factos invocados tem que
ser feita pelo Réu que os invocar ou pelo Autor em caso de resposta à reconvenção — art.
342.°, n.° 2 do Código Civil

B — O perdão e reconciliação
O Código de Família (art. 101.°) refere como causa da perda do direito ao divórcio, ou seja,
como causa extintiva desse direito, o perdão do cônjuge ofendido.

Igual previsão existia na alínea b) do art. 1780.° do Código Civil

O perdão é um ato jurídico unilateral, que se insere no âmbito da vontade do titular do direito
ao divórcio. O cônjuge pode livremente considerar que prefere esquecer a ofensa e manter a
vida conjugal com o outro cônjuge.

O perdão do cônjuge ofendido revela-se pelo seu comportamento posterior ao conhecimento


que teve da falta cometida pelo outro cônjuge, e pode revestir a forma expressa ou tácita.

O perdão tem que ser o produto de uma expressão de vontade clara e incontro¬versa, e não
pode constituir um facto puro e simples emanado da vontade de um dos cônjuges
independente do comportamento do outro.

Na verdade, em regra, o cônjuge que concede o perdão relativamente a determinado facto


toma essa atitude na expetativa de mudança do compor¬tamento do outro cônjuge, e não
constitui de forma nenhuma a «carta de alforria » para que o cônjuge que prevaricou, venha a
cometer novas faltas.

O perdão pode ser concedido sob condição de o cônjuge culpado não reincidir. O cônjuge que
concede o perdão deve exigir garantia e segurança de que o outro não volta a prevaricar.

O perdão tem que ser provado por factos concludentes e a sua existência não se presume.
Assim, o facto de os cônjuges continuarem a manter a vida em comum na mesma habitação ou
de ter decorrido determinado tempo sobre a prática da falta não significa que esta tenha sido
perdoada.

Cabe ao réu, em princípio, fazer a prova da existência do perdão, por ser facto extintivo do
direito do autor. Mas há quem entenda que a matéria em causa cabe no âmbito da apreciação
oficiosa pelo tribunal, quando este entender que o facto não comprometeu o prosseguimento
da vida comum dos cônjuges.

Além do perdão, existe ainda a reconciliação dos cônjuges como causa extintiva do direito ao
divórcio. A reconciliação é já um acordo da vontade de ambos os cônjuges e consiste
simultaneamente na verificação de dois elementos: o elemento moral e o elemento material.

O primeiro elemento traduz-se na concordância dos cônjuges em esquecer a ofensa ou


ofensas recíprocas, reconhecendo as próprias culpas quando as houver de ambos. O segundo
elemento, o material, consubstancia-se no facto de a vida em comum dos cônjuges ser
retomada em toda a sua plenitude.

Tanto o perdão como a reconciliação excluem o direito ao divórcio, mas só relevam quanto a
factos anteriores, traduzindo-se numa renúncia tácita de requerer o divórcio perante uma
situação concreta. Não tem relevância quanto a factos supervenientes ou quanto a factos cujo
conhecimento seja posterior ao perdão ou conciliação.
O perdão e a reconciliação, como atos jurídicos, estão sujeitos a ser anulados no caso de se
apurar que a sua concessão ou produção se verificaram em virtude de erro, dolo ou coação.

O cônjuge que na ação de divórcio invocar factos que integrem o perdão por parte do outro ou
a reconciliação dos cônjuges terá sobre si o encargo do ónus da prova desses factos, de acordo
com a regra geral do art. 342.°, n.° 2 do Código Civil já citado.

C — A caducidade do direito ao divórcio

O exercício do direito ao divórcio está ainda sujeito a caducidade se não for exercido no prazo
legal. O legislador entendeu que o cônjuge que se sinta atingido pela conduta do outro
cônjuge deve ter um período dentro do qual tem de reagir. Também a estabilidade da família
não aconselha a que se venham invocar contra o outro cônjuge factos antigos, pelo que não se
permite que, por razões de mero oportunismo, se venha mais tarde a invocá-los como
fundamento de um pedido de divórcio.

O Código Civil fixava o período de um ano para a propositura da ação (art. 1782.°). Este artigo
foi revogado pelo artigo 7.° da Lei n.° 53/76, que dizia o seguinte: «O direito à separação de
pessoas e bens ou divórcio litigioso caduca no prazo de dois anos a contar da data em que o
cônjuge ofendido ou o seu representante legal, teve conhecimento do facto suscetível de
fundamentar o pedido».

Hoje, o art. 102.° do Código de Família mantém o prazo de dois anos para o exercício do direito
ao divórcio. A contagem do prazo inicia-se com o conhe¬cimento do facto que serve de
fundamento ao pedido por parte do cônjuge que o formula, e não da data do seu
cometimento por parte do outro cônjuge.

A contagem do prazo pode apresentar-se, por vezes, difícil, quando se trata de factos
continuados e que se prolonguem por um determinado decurso de tempo.

Se se tratar de um facto continuado, o direito ao divórcio mantém-se desde que o facto se


continue a produzir, independentemente da data do conhecimento por parte do outro
cônjuge. O prazo de caducidade só começa a contar a partir do momento em que o facto
cessou.

É o que dispõe o n.° 2 do art. 102.° do Código de Família.

Por exemplo, no caso da prática do adultério continuado por parte de um dos cônjuges que
seja do conhecimento do outro cônjuge, enquanto o adultério se mantiver persiste o direito ao
divórcio, que só caduca quando se perfizerem dois anos sobre a data da cessação do adultério.

A regra geral para a contagem do prazo de caducidade vem contida no artigo 329.° do Código
Civil. Em princípio, cabe ao réu fazer a prova do decurso do prazo como facto extintivo do
direito do autor (art. 343.°, n.° 2 do Código Civil).

Mas se houver no processo elementos dos quais se possa concluir que se verificou a
caducidade, ela deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal (n.° 1 do artigo 333.° do
Código Civil), uma vez que estamos perante matéria legalmente excluída da disponibilidade
das partes. É esta a posição legal acolhida no Código de Família, cujo art. 102.°, n.° 2 determina
que, tratando-se de facto continuado, o prazo só corre a partir da data em que houver
cessado.

[103] Formalismo processual do divórcio litigioso

1. Processo especial

O Código de Família, tendo em vista uma aplicação mais eficaz do direito, bem como uma
maior efetivação dos fins por ele prosseguidos, viu-se na necessidade de introduzir no seu
texto determinadas normas de natureza processual.

Elas visam fundamentalmente obter uma intervenção mais dinâmica e ativa do tribunal,
permitindo um melhor apuramento da verdade material, e ainda uma justiça mais pronta,
afastando o excessivo formalismo dos processos declarativos ordinários que eram os aplicáveis
a todas as ações de estado de pessoa, passando a ser aplicadas às ações de natureza familiar
normas de processo especial.

De acordo com esta orientação, a Lei n.° 1/88, que aprova o Código de Família, determina que,
enquanto não for revista a legislação em vigor, as ações previstas no Código seguirão o
formalismo dos processos de jurisdição voluntária previsto no artigo 1409.° do Código de
Processo Civil — art. 6.°, n.° 1.

Embora o processo de divórcio litigioso seja de natureza contenciosa e não graciosa, o


processo aplicável é o deste art. 1409.°, que, por sua vez, remete para os arts. 302.° e 304.°,
todos do Código Civil.

As normas de processo de jurisdição voluntária aplicam-se, porém, subsidiariamente, pois em


primeiro lugar são aplicadas as normas de processo civil constantes do próprio Código de
Família, como dispõe o n.° 1 do citado art. 6.° da Lei n.° 1/88.

Ora, em matéria de divórcio, o Código de Família consigna também normas de natureza


processual e especificamente algumas que dizem respeito ao divórcio litigioso.

2. Cumulação de pedidos

Em primeiro lugar, o artigo 104.°, n.° 1 vem permitir cumular o pedido de divórcio com
qualquer dos seguintes pedidos:

a) o pedido de alimentos;

b) o de regulação do exercício da autoridade paternal e prestação de alimentos aos filhos


menores do casal;

c) o da atribuição de residência familiar.

O n.° 2 deste artigo 104.° vem ainda permitir que, contrariamente ao que dispõe o art. 274° do
Código de Processo Civil quanto à natureza do pedido reconvencional, o cônjuge contra quem
for posta a ação possa deduzir ou não novo pedido de divórcio, e, mesmo não o fazendo,
deduzir qualquer dos pedidos expressos no n.° 1, pela via de reconvenção.
Ao atribuir-se a um único tribunal o conhecimento das questões relativas às relações
conjugais, como o divórcio, e o das questões referentes às relações entre pais e filhos, como as
de regulação da autoridade paternal, está-se já em consonância com a Lei do Sistema
Unificado de Justiça, que prevê a existência de Salas de Família nos Tribunais Provinciais com
competência para decidir todas as questões de natureza familiar, de acordo como o art. 32.°,
n.° 1 da Lei n.° 1/88, de 31 de dezembro, já citada.

Através dos contatos com as partes, com os membros do Conselho de Família se tal for o caso,
da prova produzida nos autos e dos inquéritos sociais que mande realizar, o Juiz da Sala de
Família terá de obter um mais profundo conhecimento da realidade fatual que abrange a
globalidade das questões postas à sua consideração e assim encontrar para cada uma delas
uma decisão que se espera seja a mais adequada.

3. Conciliação dos cônjuges

De particular relevância é a intervenção do tribunal na conciliação dos cônjuges. O artigo 105.°


torna obrigatório que o juiz proceda sempre à tentativa de conciliação, desde que ambos os
cônjuges vivam no país. Daí que, uma vez proposta a ação de divórcio e finda a fase dos
articulados, o juiz deva designar essa audiência de conciliação a que os cônjuges devem
comparecer ou fazer-se representar, mesmo que não residam na área da Província onde o
tribunal se situa.

Essa tentativa de conciliação é muito importante, por permitir a um órgão do Estado procurar
salvar a estabilidade da família.

A tentativa de conciliação pode ser efetuada pela forma que o juiz entender mais eficaz, como
seja ouvindo cada um dos cônjuges separadamente e depois em conjunto, e explicando quais
as consequências pessoais e económicas do fim de vida conjugal e os seus efeitos em relação
aos filhos.

A experiência evidencia, porém, que, na grande maioria das vezes, a conciliação por via judicial
é ineficaz. Noutros sistemas legais a tentativa de conciliação antecede a fase dos articulados da
ação, ou do despacho de citação para contestação da petição inicial.

O juiz pode mesmo sustar o andamento do processo por tempo não superior a três meses,
quando assim considerar justificado — artigo 105.°, n.° 2. E, quando o julgue útil à conciliação
dos cônjuges, pode o tribunal, oficiosamente ou a pedido das partes, convocar o Conselho de
Família para o ouvir — art. 105.°, n.° 3.

Hoje em dia, defende-se cada vez mais, o processo de mediação familiar que tem especial
relevância nas ações de divórcio. A mediação é dirigida não só no sentido de obter a
conciliação dos cônjuges mas sobretudo para atenuar os efeitos do divórcio e obter acordos
nas diversas questões que se suscitam com a dissolução do vínculo conjugal.

4. Conversão da ação
Se o tribunal chegar à conclusão de que os cônjuges não querem conciliar-se e se mantêm
irredutíveis nas suas posições, deverá tomar a iniciativa de obter o acordo de ambos para
converter a ação de divórcio litigioso em ação de divórcio por mútuo acordo — art. 106.°, n.° 1.

Considera-se preferível a opção por esta forma de divórcio, obtido o consenso das partes, sem
recurso ao conhecimento dos factos litigiosos.

Tal só será possível, porém, se se verificarem os respetivos pressupostos legais, isto é, se


estiverem preenchidos os requisitos respeitantes à idade dos cônjuges, à duração do
casamento e aos acordos complementares, como vem previsto nos arts. 83.° e 85.° do Código
de Família.

Se os cônjuges acordarem em prosseguir o divórcio por mútuo acordo e estiverem verificados


os pressupostos legais, o processo segue os termos desta modalidade de divórcio.

Isto é, o juiz pode fixar um prazo para os cônjuge trazerem a tribunal os acordos
complementares previstos no art. 85.° e designar dia para nova conferência de cônjuges, se for
caso disso.

Se o processo for convertido em divórcio por mútuo acordo e algum deles vier a não cumprir o
prazo que for fixado ou vier depois a desistir após a declaração do divórcio provisório, deve
entender-se que o outro cônjuge tem o direito de vir prosseguir com o pedido de divórcio
litigioso, que tenha anteriormente formulado, salvaguardadas as regras processuais.

5. Medidas provisórias

Se os cônjuges não chegarem a acordo, o processo de divórcio prossegue, tornando-se


necessário tomar medidas que regulem a vida dos cônjuges nesta nova fase durante a
pendência da ação. Se tal tiver sido pedido ao tribunal, pode este decidir provisoriamente
sobre os pedidos mencionados no art. 104.°, ou seja, sobre o pedido de alimentos ao cônjuge,
sobre a regulação da autoridade paterna e alimentos aos filhos menores e sobre a atribuição
da residência familiar, como permite o art. 107.° do Código de Família.

A fixação dos alimentos ao cônjuge e aos filhos menores terá caráter provisório, como vem
previsto no art. 256.° do Código de Família.

Antes de decidir provisoriamente, o juiz pode proceder às diligências que repute necessárias
ao esclarecimento dos factos, como seja mandar proceder a inquéritos sociais, requerer
informações junto de organismos públicos ou entidades privadas, etc..

Embora este art. 107.° não o diga expressamente, o Juiz pode tomar outras medidas
provisórias de caráter urgente que para cada caso se mostrarem necessárias, tais como a
entrega dos bens de uso pessoal do cônjuge, a proibição de certas condutas ofensivas, etc.

Aliás nas leis que em diversos sistemas jurídicos têm vindo a ser adotadas, estas medidas de
caráter provisório são desencadeadas logo de início dos processos derivados de queixas pelo
crime de violência doméstica.

6. Efeitos e registo da sentença


A sentença que decretar o divórcio deve, sempre que possível, declarar qual a data em que
ocorreu o fim da coabitação dos cônjuges, pois a separação de facto é juridicamente relevante,
quer quanto aos efeitos pessoais quer quanto aos efeitos patrimoniais da dissolução por
divórcio — arts. 81.°, n.° 1, e 82.°, n.° 1 do Código de Família.

A sentença proferida na ação de divórcio litigioso, tal como a do processo de divórcio por
mútuo acordo, está obrigatoriamente sujeita a registo, por envolver modificação no estado
civil das pessoas — artigo 2.°, n.° 1 do Código Registo Civil.

Assim, logo após o trânsito em julgado da sentença, deverá ser enviada certidão à
conservatória competente (artigo 101.°), para o efeito do averbamento previsto no artigo 88.°,
n.° 1, alínea b), ambos do citado Código.

Se o casamento tiver sido efetuado no estrangeiro e não tiver sido transcrito ou só disser
respeito a cidadãos estrangeiros, não há lugar à comunicação a que se refere artigo 101.° do
Código do Registo Civil.

Em relação a terceiros, os efeitos de natureza patrimonial só se produzem a partir do registo


da sentença, como prevê o art. 82.°, n.° 2 do Código de Família.

CAPÍTULO l6.°

EFEITOS DA DISSOLUÇÃO

DO CASAMENTO

[104] Efeitos genéricos

O vínculo conjugal desaparece com a dissolução do casamento, seja ela operada por morte ou
por divórcio. O estado civil do cônjuge sobrevivo altera-se para o estado de viúvo, no caso de
morte do outro cônjuge; ambos os cônjuges passam ao estado de divorciado no caso de
dissolução do casamento por divórcio.

Os efeitos da dissolução do casamento só se operam em relação ao futuro, ou seja, a partir da


data da morte como facto material ou a partir da data que a sentença fixou como a da morte
presumida, ou do trânsito em julgado de sentença de divórcio, se não for dado como
verificado antes o fim da coabitação.
Os efeitos da dissolução do casamento podem ser de natureza pessoal, que se refletem nas
relações entre os cônjuges e entre eles e os filhos, e de natureza patrimonial, pois a dissolução
do casamento marca o fim do seu regime económico. Cessam os poderes e deveres entre os
cônjuges, sendo que, para além da dissolução, a única obrigação que pode subsistir é a
obrigação de alimentos, que se pode manter por assentar no princípio da solidariedade pós-
conjugal.

O Código de Família confere à dissolução do casamento por morte um tratamento mais


favorável do que à dissolução do casamento por divórcio.

[105] Efeitos da dissolução do casamento por morte

1. Efeitos de natureza pessoal

O estado de viuvez inicia-se com a morte do outro cônjuge, verificada diretamente pela data
constante do assento de óbito ou indiretamente pela data presumível da sua verificação
declarada pelo tribunal. A partir desse momento cessam em relação ao cônjuge supérstiste os
direitos e deveres que decorriam do casamento.

No entanto, o viúvo conserva na sua titularidade vínculos pessoais próprios do

casamento anteriormente contraído.

a) Direito ao nome

O cônjuge viúvo conserva o direito ao uso do nome. Esse direito já vinha consagrado no Código
Civil, na vigência do qual a mulher conservava o direito de usar os apelidos do marido em caso
de viuvez e até passar a segundas núpcias (art. 1675.°).

O art. 36.°, n.° 1 do Código de Família prevê indistintamente que o marido ou a mulher adotem
o apelido do outro ou optem por um apelido comum de família. Por isso mesmo,
coerentemente, o n.° 3 do art. 36.° dispõe que, no caso de dissolução do casamento por morte
de um dos cônjuges, o cônjuge sobrevivo mantém o direito ao uso do nome, enquanto não
contrair novo casamento.

b) Vínculo da afinidade

O vínculo da afinidade, que liga o cônjuge aos parentes do outro, não cessa com a dissolução
do casamento por morte. É esta, como já vimos, a regra do art. 15.°, n.° 2 do Código de
Família. Este vínculo mantém-se mesmo que o cônjuge sobrevivo venha a contrair novas
núpcias.

c) Direito de voltara casar

Como vimos, há legislações que prevêem o prazo internupcial como impedimento impediente
e impõem um período durante o qual o cônjuge viúvo ou divorciado não pode voltar a casar
por razões de decoro social ou para evitar a sobreposição de presunções de paternidade em
relação à mulher casada.
Esse prazo não existe no Código de Família, pelo que nada obsta a que o cônjuge sobrevivo,
homem ou mulher, contraia novo casamento logo que dissolvido o anterior. Se tal acontecer,
deverá funcionar a regra citada no art. 165.° do Código de Família, que atribui a presunção de
paternidade ao marido do casamento celebrado em segundo lugar.

Também a lei não impõe qualquer limite quanto ao número de vezes que uma pessoa pode
contrair casamento, pelo que cada um pode voltar a casar quantas vezes quiser, desde que se
não verifiquem impedimentos legais.

Na jurisprudência europeia, designadamente a francesa e a portuguesa, têm sido julgadas


nulas as disposições testamentárias que impõem ao cônjuge sobrevivo a obrigação de não
voltar a casar.

d) Direitos em relação aosfilhos Quando estudamos as relações entre pais e filhos vimos
que a autoridade paternal é exercida em igualdade de direitos, deveres e responsabilidade
pelo pai e pela mãe.

E no caso de falecer um dos progenitores, o progenitor sobrevivo passa a exercer em exclusivo


a autoridade paternal.

Isto significa pois, que, no caso da morte do pai ou da mãe, cabem ao progenitor sobrevivo
todos os direitos e deveres que integram a autoridade paternal e que os pais detêm
relativamente aos seus filhos menores, quer quanto à pessoa destes quer quanto à
administração dos bens.

A morte dum dos progenitores vai assim levar a que ela recaia na totalidade sobre o outro
progenitor, mas no entanto, deve sempre ter-se em conta a natureza funcional da autoridade
paternal, que como vimos, impõe no art. 127.°, n.° 2 do Código de Família, que: «Os deveres e
direitos paternais devem ser exercidos no interesse dosfilhos e da sociedade.»

e) Obrigação de alimentos

Pode acontecer que o cônjuge sobrevivo não disponha de recursos para se manter pelo facto
de os bens do de cujus terem sido atribuídos post mortem a outros herdeiros ou legatários,
nem tenha direito a pensões de segurança social ou outros meios que lhe permitam sobreviver
com um nível de vida idêntico ao que mantinha durante a vigência do casamento.

Eventualmente, se o cônjuge viúvo carecer de alimentos estes podem vir a ser retirados dos
rendimentos dos bens deixados pelo falecido. Quando tal ocorre, estamos perante o
prolongamento do dever de assistência entre os cônjuges para além da dissolução por morte,
pois entendeu-se que o defunto se preocuparia com as condições de vida do cônjuge viúvo
depois da sua morte.

Este princípio vem expresso no art. 261.°, n.° 1 do Código de Família, nos termos do qual, em
caso de morte de um dos cônjuges ou do companheiro de união de facto judicialmente
reconhecida, o viúvo ou companheiro sobrevivo têm direito a ser alimentados pelos
rendimentos dos bens deixados pelofalecido.
Este princípio já vinha consignado no art. 2018.° do Código Civil. Este encargo recai sobre todo
o património que foi objeto da sucessão, deverá ser suportado pelos herdeiros na proporção
das respetivas quotas hereditárias e não pode exceder os limites destas. Este direito a
alimentos do cônjuge sobrevivo é designado como «apanágio do cônjuge viuvo».

2. Efeitos de natureza patrimonial

O art. 75.° do Código de Família contém as regras aplicáveis à dissolução do casamento por
morte no seu aspeto patrimonial. Do confronto deste preceito com o do art. 80.°, que
estabelece os efeitos patrimoniais da dissolução por divórcio, fica claro o tratamento mais
favorável que a lei dá ao cônjuge viúvo.

a) Direitos e benefícios

O cônjuge sobrevivo mantém os direitos e benefícios que haja recebido em razão do


casamento, como refere o art. 75.°, n.° 1 do Código de Família. Entre esses direitos podemos
mencionar as regalias de natureza social do defunto que sejam transmissíveis ao seu cônjuge e
que não se extingam com o casamento, o direito a pensões de segurança social que se
transmitem para o cônjuge viúvo pela morte do titular do direito. Os benefícios havidos em
razão do casamento podem ser de diversa natureza, tal como as doações feitas pelo outro
cônjuge ou por terceiro, antes ou durante o casamento, os valores dos prémios de seguros ou
prestações de natureza assistencial e feitas pelo cônjuge falecido.

Dentro dos objetivos da Proteção Social do trabalhador encontra-se a necessidade de


«garantir a sobrevivência dos seus familiares em caso de morte». — Lei de Bases da Proteção
Social, Lei n.° 7/04, de 15 de outubro {Diário da República, n.° 83), art. l.°, alínea a).

O regime jurídico desta lei foi, como vimos, definido pelo Decreto n.° 38/08 de 19 de junho
(Diário da República, n.° 112) que estabelece no seu art. 6.° «Estão vinculados à Proteção
Social Obrigatória na condição de dependentes do segurado: a) o cônjuge ou pessoa em união
de facto.»

Garante-se desta forma o direito à pensão de sobrevivência ao cônjuge do trabalhador


falecido. O companheiro da união de facto tal como o cônjuge, tem direito à pensão de
sobrevivência, no caso de falecimento do trabalhador — art.° 6-° alínea a) do Decreto n.°
38/08 de 19 de junho.

O Decreto Presidencial n.° 8/11 de 7 de janeiro, atribui o subsídio de funeral ao cônjuge do


segurado — art. 3.°, já atrás citado.

Em certos casos é atribuído ao cônjuge viúvo o direito de representação a título póstumo,


designadamente na defesa dos direitos pessoais relativos ao respeito pela memória do
falecido.

b) Direito sucessório

O cônjuge viúvo tem a qualidade de sucessível do de cujus em relação à sua herança, surgindo
na 4.a classe dos sucessíveis, conforme vem disposto no art. 2133.°, alínea d), do Código Civil.
Na legislação portuguesa atual tal situação está alterada, porquanto o cônjuge viúvo surge
como herdeiro sucessível, tanto na l.a como na 2.a classe dos sucessíveis, conjuntamente com
os descendentes e os ascendentes.

Pelo que dispõe o Código Civil ainda vigente, o cônjuge sobrevivo, no caso de não haver
descendentes ou ascendentes do de cujus, tem direito ao usufruto vitalício dos bens da
herança como legatário legítimo (art. 2146.°).

Além de que o cônjuge viúvo mantém o pleno direito a todas as deixas testamentárias
outorgadas pelo cônjuge pré-defúnto. As liberalidades não sofrem qualquer restrição, salvo as
que respeitem às reservas dos herdeiros legitimários.

c) Liquidação do património

O fim do regime económico do casamento tem particular importância quando o regime de


bens do casamento for o de qualquer tipo de comunhão de bens, seja ele o de comunhão geral
de bens (que era o regime-regra antes da entrada em vigor do anterior Código) ou o da
comunhão de adquiridos, que, a partir de então, é o regime supletivo geral.

No regime de separação de bens os patrimónios de cada cônjuge estão separados, mas pode
haver igualmente a necessidade de liquidação do passivo ou de divisão de bens adquiridos em
comum. A cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges opera-se em regra em duas
fases:

— liquidação do passivo;

— partilha dos bens comuns.

A liquidação do passivo é feita procedendo-se em primeiro lugar ao pagamento das dívidas


contraídas perante terceiros. A dissolução do casamento fàz cessar a moratória legal sobre as
dívidas exclusivas de cada cônjuge, as quais passam logo a ser exequíveis — art. 64.°, n.° 1 do
Código de Família.

Todas as dívidas a terceiros, comuns ou exclusivas, devem ser liquidadas. Em segundo lugar
são liquidadas as dívidas contraídas pelos cônjuges entre si.

Estes encargos são satisfeitos sucessivamente pela meação do devedor no património comum
e depois pelos bens próprios do devedor — art. 75.°, n.° 3 do Código de Família.

Uma vez liquidado o passivo, passa-se à partilha dos bens comuns e à determinação do
património pessoal de cada cônjuge, o qual é integrado pelos respetivos bens próprios e pelos
bens que passam a integrara sua meação. Como a palavra indica, a meação consiste no direito
a metade dos bens comuns do casal.

Importa distinguir entre a liquidação e partilha dos bens do casal e a liquidação e partilha
sucessória do património do de cujus. Esta liquidação e partilha pode ser realizada
conjuntamente no mesmo ato, mas uma coisa é a titularidade do direito do cônjuge sobrevivo
sobre os bens do dissolvido casal e outra é a titularidade dos direitos dos herdeiros ou
legatários aos bens do falecido.
Neste caso são aplicadas as regras da devolução sucessória e são chamados os herdeiros ou
legatários, entre os quais pode estar ou não incluído o cônjuge viúvo, e então estes são
chamados a receber os bens próprios e os bens que passem a integrar a meação do defunto.

Ao operar-se a partilha dos bens comuns, o cônjuge sobrevivo goza do direito de preferência
que lhe é concedido pelo art. 75.°, n.° 2 do Código de Família.

Esse direito de preferência consiste em poder integrar a sua meação sobre os bens
especificados na lei e que são:

a) os bens que tenham sido usados na vida do lar;

b) os bens que tenham sido usados como instrumentos próprios ou comuns de trabalho.

Mais uma vez se entendeu que, dado o fim especial a que estão adstritos tais bens, e em
beneficio dos fins para que foi constituído o matrimónio e a sua correlação íntima com a
estabilidade da família, se deveria dar uma proteção especial na afetação desses bens,
beneficiando o cônjuge sobrevivo, que poderá preferencialmente querer que eles passem a
fazer parte da sua meação.

O direito de propriedade e de fruição de tais bens deve estar afeto a este cônjuge e, para que
ele não seja privado deles, concede-lhe a lei o direito de preferência sobre os demais herdeiros
do falecido.

d) Transmissão do direito ao arrendamento da residência familiar O direito à residência


familiar constitui um dos direitos mais relevantes que deriva do casamento e que tem o seu
prolongamento legal aquando da sua dissolução.

Em todas as legislações se atende cada vez com maior atenção ao destino da residência
familiar depois de extinto o vínculo matrimonial.

O direito ao arrendamento da casa destinada à habitação transmite-se ao cônjuge viúvo,


desde que não separado de facto, de acordo com o que vem consi¬gnado no Decreto n.° 43
525, de 7 de março de 1961 (Lei do Inquilinato), ainda em vigor. O Decreto n.° 43 525 dispõe
que a transmissão da posição jurídica do inquilino se defere, em primeiro lugar, ao cônjuge
sobrevivo (alínea a), n.° 2 do art. 76.°).

Este princípio foi inserto no n.° 4 do art. 75.° do Código de Família, que atribui a transmissão
do direito ao arrendamento da residência familiar ao cônjuge sobrevivo, mas ressalvando que
essa transmissão se opera nos termos que foram fixados na lei. Esta, como é óbvio, é a lei civil
sobre o direito de arrendamento, onde se determinam os pressupostos legais de tal
transmissão do direito, como a efetiva convivência conjugal à data da morte do cônjuge titular
do arrendamento, ou outras que a lei entenda fixar.

[106] Efeitos da dissolução do casamento por divórcio

Os efeitos da dissolução do casamento por divórcio são no geral idênticos aos da dissolução
por morte. Mas o art. 80.° exceciona alguns aspetos de natureza patrimonial que aplicam um
regime de desfavor à dissolução do casamento por divórcio.
Ao afastar a conceção do divórcio sanção e a declaração na sentença de divórcio de qual o
cônjuge culpado ou principal culpado, procurou-se desdramatizar o divórcio e impedir que se
exacerbassem os antagonismos entre os cônjuges, que muitas vezes faziam das ações de
divórcio litigioso uma verdadeira arena onde eram expostas as misérias físicas e morais de um
e de outro, produzindo sequelas de ódio recíproco irreversíveis.

Daí que o divórcio por mútuo acordo se revele uma forma menos desgastante das relações
pós-conjugais e torne possível que sejam os cônjuges a regular, por acordo, diversos efeitos
decorrentes da declaração do divórcio.

No divórcio litigioso também é possível serem os cônjuges a estabelecer por acordo as


questões relativas aos direitos sobre os filhos menores, ainda que sob homologação do
tribunal, e a direitos patrimoniais como a partilha de bens, atribuição da residência familiar,
etc., minimizando os efeitos do litígio. Há que ter em conta que, se for proposta ação de
divórcio e se os cônjuges se reconciliarem e desistirem da ação, ou se o cônjuge que a propôs
vier a decair na ação, se restabelece de pleno toda a situação pessoal e patrimonial anterior.

a) Data de produção dos efeitos em relação aos cônjuges

Os eleitos da dissolução do casamento por divórcio produzem-se, regra geral, a partir do


trânsito em julgado da sentença, quanto aos efeitos nas relações pessoais dos cônjuges (art.
81.°, n.° 1 do Código de Família) e no que diz respeito às relações patrimoniais (art. 82.°, n.° 1
do mesmo Código).

Mas estes artigos permitem que certos efeitos pessoais e patrimoniais deixem de processar-se
no caso de a sentença de divórcio fixar a data do fim da coabitação dos cônjuges em data
anterior à sentença. O fim da produção desses efeitos pode retrotrair-se à data em que cessou
a coabitação, quando tal for fixado na decisão que declarar o divórcio (arts. 81.°, n.° 2 e 82.°,
n.° 1).

Aliás, na modalidade do divórcio por mútuo acordo a declaração do divórcio provisório


suspende o dever de coabitação dos cônjuges (art. 94.°) que se presume termina a partir de
então.

A cessação da produção dos efeitos pessoais do casamento tem particular rele¬vância quanto
à presunção da paternidade dos filhos nascidos da mulher casada.

A cessação da produção dos efeitos patrimoniais faz-se sentir tanto quanto aos bens
adquiridos a título oneroso a partir da data do fim da coabitação, como quanto às dívidas
comuns que tenham como causa jurídica a satisfação dos encargos da vida familiar ou o
proveito comum do casal. Cessando a coabitação dos cônjuges e passando estes a viver numa
situação de separação de facto, já não pode proceder qualquer dessas causas que tornam
comunicáveis as dívidas. Entendemos que a data de propositura da ação de divórcio deve ser
tida em conta para efeitos patrimoniais, designadamente quanto à natureza das dívidas
contraídas por um só cônjuge.

Em alguns sistemas jurídicos os efeitos patrimoniais da dissolução do casa¬mento por divórcio


produzem-se entre os cônjuges a partir da data da propositura da ação, permitindo que eles
cessem a partir da data do fim da coabitação dos cônjuges, Mas essa ressalva não podia ser
invocada pelo cônjuge a quem fosse atri¬buída a culpa exclusiva e principal responsabilidade
na declaração do divórcio(,).

Tendo em conta que a ação de divórcio pode vir a ser proposta meses ou anos após se ter
verificado a separação de facto entre os cônjuges e que o processo judicial se pode prolongar
por longo período, seria injusto que um dos cônjuges se viesse a aproveitar da atividade
desenvolvida pelo outro cônjuge sem a sua contribuição, ou que, ao invés, viesse a ser
prejudicado por dívidas de que não beneficiou.

A sentença que vier a declarar o divórcio e que fixar a data do fim da coabitação como a data
em que cessaram as relações de ordem pessoal e patrimonial entre os cônjuges, vai assim
produzir efeitos retroativos a essa data.

b) Data de produção dos efeitos em relação a terceiros

Os efeitos da dissolução do casamento por divórcio só se produzem muito mais tarde em


relação a terceiros, ou seja, após o registo de sentença que, como vimos, é de natureza
obrigatória, devendo o tribunal comunicá-la oficiosamente à Conservatória competente.

É o que vem disposto no n.° 2 do art. 82.° do Código Família e que está de acordo com a
natureza secreta do processo de divórcio, a que, em princípio, só os cônjuges têm acesso. Esta
disposição pode não ser aplicada em relação a terceiros que se prove terem conhecido a
existência do divórcio e que tenham agido intencionalmente em prejuízo de um dos cônjuges,
ou quando tenha havido concertação fraudulenta entre um dos cônjuges e terceiros, para
prejudicar o outro cônjuge.

1. Efeitos de natureza pessoal

a) Em relação ao nome

O direito ao uso do nome adquirido em razão do casamento, seja quanto ao apelido do outro
cônjuge, seja quanto ao nome comum da família, cessa totalmente quando se dá a dissolução
do casamento por divórcio — art. 36.°, n.° 2 do Código de Família.

No Código Civil (art. 1675.°) era a mulher que perdia o direito ao uso do nome do marido, pois
só esta podia optar pelo uso do apelido deste. Mas hoje a situação é recíproca quer quanto à
aquisição do direito ao uso do nome por parte de ambos os cônjuges quer quanto à perda
desse direito em razão da dissolução do casamento por divórcio.

A nossa lei não prevê que um dos cônjuges, geralmente a mulher divorciada, continue a usar o
apelido adotado em razão do casamento, como acontece noutros sistemas jurídicos.

b) Vínculo da afinidade

Depois da discussão popular de que foi objeto o projeto de Código de Família, ficou a constar
do art. 15.°, n.° 2, como já referimos, que o vínculo da afinidade se mantém mesmo para além
da dissolução do casamento.
Aliás, o impedimento matrimonial fundado no vínculo da afinidade em linha reta irá sempre
perdurar, mesmo que dissolvido o casamento, como constava do texto do projeto.
Permanecem assim todos os efeitos já referidos e que derivam da existência deste vínculo.

c) Direito de voltar a casar

Como já dissemos, é o principal efeito que deriva da dissolução do casamento por divórcio e
ele pode ser exercido após o trânsito em julgado da sentença do divórcio. Operado o trânsito
da sentença, qualquer dos cônjuges pode voltar a casar sem ter que aguardar por qualquer
prazo intemupcial, que o nosso Código de Família não estabelece. A nossa lei também não
estabelece limites no número de vezes em que se pode obter o divórcio, nem proíbe os
cônjuges que se divorciaram de se voltarem a casar.

O facto dc existir adultério de um cônjuge com terceira pessoa praticado na vigência do


casamento também não impede que o cônjuge, depois do divórcio, venha precisamente a
contrair casamento com essa pessoa.

d) Presunção da paternidade do marido

Caso a mulher que obteve o divórcio venha a contrair casamento logo após a dissolução do
anterior e venha a haver conflito de presunções de paternidade quanto a filho que venha a
nascer nos 300 dias após a dissolução do casamento, é chamada a regra contida no art. 165.°
do Código de Família, que atribui a presunção de paternidade ao marido do casamento
celebrado em segundo lugar.

No caso de divórcio, importa ainda reter o facto de que o prazo de 300 dias de presunção de
paternidade do marido do casamento anterior se conta, não do trânsito em julgado da
sentença, mas da data do fim da coabitação do casal, caso esta conste da sentença.

e) Efeitos em relação aosfilhos

Os direitos e os deveres dos pais em relação aos filhos não se alteram pelo facto do divórcio,
pois o direito-dever de velar, manter e educar os filhos menores mantém-se em relação aos
progenitores, seja qual for o estado civil destes.

Como já referimos, para as relações entre pais e filhos não releva, segundo o Código de
Família, o facto de os pais serem ou não casados entre si, mas sim o de coabitarem ou não.

Sem embargo de se manterem os direitos dos pais sobre os filhos, quer após o divórcio quer
após o fim da coabitação, a verdade é que, na generalidade dos casos, é sobre os filhos que
mais negativamente se refletem os seus efeitos.

Cessando a coabitação dos cônjuges, a autoridade paternal deixa de poder ser exercida em
comum pelo pai e pela mãe, passando a ser exercida em separado (art. 148.°, n.° 1 do Código
de Família).

Como já foi referido, os pais podem chegar a acordo sobre o exercício em separado da
autoridade paternal, mas esse acordo deve sempre ter em conta os interesses do menor e a
melhor garantia da sua educação e desenvolvimento. Se os pais estabelecerem o acordo sobre
o exercício da autoridade paternal, definindo os direitos de cada um deles ao convívio pessoal
com os filhos, a obrigação de cada um referente aos alimentos do menor, a forma de
intervenção e decisão sobre as questões mais importantes da vida dos filhos, etc., o tribunal
deverá examinar esse acordo e homologá-lo quando entenda que ele satisfaz os interesses do
menor — art. 109.°, n.° 1 do Código de Família. Esse acordo pode ser obtido quer durante a
ação de divórcio quer dentro de 30 dias após o trânsito em julgado da sentença que declara o
divórcio — art. 109.°, n.° 2.

Se os pais não tiverem chegado a acordo, e se o pedido sobre o exercício da autoridade


paternal tiver sido formulado conjuntamente com o pedido de divórcio, o juiz decidirá de
acordo com o que vem previsto no art. 108.°, n.°s 1 e 2, em conjugação com as disposições dos
arts. 148.° a 151.° do Código de Família. O tribunal só decidirá sobre o exercício da autoridade
paternal no processo de divórcio se tal lhe for pedido por qualquer das partes. De salientar
que, ao proferir a sua decisão, o tribunal não tem que ter em conta as causas de divórcio,
como acontece relativamente às questões do direito a alimentos e do direito à atribuição da
residência familiar.

Quis-se, deste modo, fazer a distinção entre o comportamento dos cônjuges entre si, e nessa
recíproca qualidade, e a conduta de cada um deles para com os filhos, na sua qualidade de pai
ou mãe.

O efeito mais importante que deriva do exercício em separado da autoridade paternal é, na


generalidade dos caso, o da entrega do filho a um dos progenitores, pois será este que
manterá com o menor o convívio quotidiano. A ele caberá em especial a sua guarda e
vigilância, bem como a sua formação e educação.

Estas decisões judiciais são suscetíveis de ser alteradas sempre que se modi¬ficarem as
circunstâncias em que se fundamentaram (art. 161.° do Código de Família), pois são decisões
proferidas em processo de jurisdição voluntária e mais no espírito de uma decisão graciosa
que obtenha, para o caso concreto em análise, a melhor solução.

Se as circunstâncias que determinaram os cônjuges ou o tribunal a decidir ser de certa forma


se alterarem substancialmente, a decisão pode também ser alterada, para melhor atender à
nova situação.

f) Direito a alimentos

O direito-dever de assistência material entre os cônjuges pode não se extinguir com a


dissolução do casamento e perdurar para além dele a obrigação recíproca de alimentos.

A atribuição do direito a alimentos entre cônjuges divorciados vem prevista no art. 111.° do
Código Família, e é recíproca em relação ao marido e à mulher. O art. 262.° do Código de
Família vem reconhecer o direito a alimentos entre ex-cônjuges, dizendo que esse direito será
exercido nos termos do art. 111.°. Procura-se por esta forma que, após a dissolução do
casamento, o cônjuge menos favorecido economicamente mantenha um nível de vida
equivalente àquele que tinha.
Os critérios de atribuição do direito a alimentos são, de acordo com este art. 111.°, os que
dizem respeito à situação social e económica dos cônjuges, à necessidade de educação dos
filhos e às causas do divórcio.

O que sopesará na decisão a tomar pelo tribunal é a questão de saber se o cônjuge divorciado
que vai receber alimentos está ou não a carecer deles para manter a sua sobrevivência em
condições económico-sociais idênticas às que tinha durante a vigência do casamento, por não
ter recursos próprios nem capacidade profissional para os angariar.

Em regra é a mulher que ocupando-se do trabalho doméstico e da criação dos filhos e dos
cuidados a ter com outros membros do agregado familiar, deixa de ter uma carreira
profissional em que possa progredir, e que fica em situação desvantajosa aquando da rutura
da relação conjugal.

E haverá ainda que ponderar o interesse pela educação dos filhos a impor que um dos ex-
cônjuges, em geral a mãe, se mantenha a cuidar deles provendo às suas necessidades diretas
de cuidados com a alimentação, vestuário, habitação e outras.

A duração do casamento é igualmente um fator importante a ter em conta na decisão a


proferir.

A causa ou causas de divórcio, que ainda melhor explicitaremos, também devem ser atendidas
na atribuição do direito a alimentos.

O direito a alimentos por parte do cônjuge divorciado garante-lhe o direito à pensão de


sobrevivência, nos termos da alínea d), n.° 1 do art. 46.° da Lei do Sistema de Segurança Social
(Lei n.° 18/90, de 27 de outubro).

As decisões sobre alimentos a ex-cônjuges estão sujeitas a alteração, como aliás todas as
decisões sobre obrigações alimentícias, como prescreve não só o art. 111.°, n.° 2 mas também
o art. 257.°, n.° 1 do Código de Família.

A cessação da obrigação de alimentos entre ex-cônjuges, que veremos adiante, vem prevista
no art. 263.° do Código de Família, e opera-se quando o ex-cônjuge contraia novo casamento
ou constitua nova união de facto, e bem assim quando se verifique grave atentado contra a
vida ou contra a honra do obrigado.

2. Efeitos de natureza patrimonial

A dissolução do casamento por divórcio produz os efeitos patrimoniais mencionados nas


alíneas a), b) e c) do art. 80.° do Código de Família e dá lugar ainda, quando tal for o caso, ao
direito ao arrendamento da residência familiar,

a) Liquidação do passivo e partilha de bens

Os efeitos quanto à partilha de bens comuns e liquidação do passivo são no geral inteiramente
idênticos aos da dissolução do casamento por morte.

Tal como neste caso, deixa de haver património comum e cada cônjuge passa a ter a
titularidade dos seus bens próprios.
A partilha de bens ocorre quando o casamento tenha sido celebrado segundo o regime de
comunhão geral de bens ou o regime de comunhão de adquiridos. Se o regime económico
adotado no casamento for o da separação de bens, não há que proceder à partilha de
quaisquer bens, salvo se se tratar da divisão de bens havidos em regime de compropriedade.

Antes de receber a sua meação, cada cônjuge deverá conferir o que deve ao património
comum ou ao outro cônjuge.

São liquidadas em primeiro lugar as dívidas para com terceiros e depois as dívidas dos
cônjuges entre si, cessando a moratória legal.

Satisfeito o passivo, é então dividido em duas partes iguais o que restar dos bens comuns,
como estabelece o n.° 3 do art. 75.°, aplicável por força do art. 80.°, ambos do Código de
Família.

A cada cônjuge é igualmente atribuída a titularidade dos seus bens próprios que
eventualmente tenham estado sob administração ou usufruição do outro cônjuge.

A diferença que a lei estabelece entre a dissolução por morte e por divórcio, reside em que,
neste último caso, nenhum dos cônjuges tem direito de preferência sobre certos bens comuns,
como vem mencionado no n.° 2 do art. 75.° quanto aos bens usados na vida do lar ou como
instrumento próprio ou comum de trabalho.

b) Perda do direito sucessório

No direito civil anteriormente vigente dava-se particular relevância à declaração de culpa


atribuída a um dos cônjuges, para dela fazer derivar efeitos patrimoniais, que eram como que
uma sanção legal para o cônjuge considerado culpado ou principal culpado do divórcio.

c) Perda de benefícios

Hoje, o Código de Família, ao dar preferência à conceção de uma causa genérica única como
fundamento do divórcio, já não procura culpabilizar os cônjuges para daí tirar consequências
patrimoniais. No entanto, o art. 80.°, alínea c) menciona que a dissolução do casamento por
divórcio faz perder os benefícios recebidos em razão do casamento.

Importa fixar o alcance desta disposição e o seu âmbito de aplicação, tendo em conta que o
conceito de divórcio sanção foi afastado enquanto fonte geradora de consequências de
natureza patrimonial.

Podem considerar-se benefícios todas as formas de enriquecimento material e até mesmo de


estatuto social que qualquer dos cônjuges obtém em conexão direta com a sua situação
jurídica derivada do estado de casado.

Em primeiro lugar, podem mencionar-se as doações efetuadas ao cônjuge pelo outro cônjuge
ou por terceiros, antes ou depois da vigência do casamento, mas em razão do matrimónio.

Igualmente se devem englobar as deixas testamentárias feitas com a mesma finalidade pelo de
cujus.
No conceito de benefícios podem ainda incluir-se os prémios de seguros ou outra forma de
prémios, pensões ou subsídios atribuídos a um dos cônjuges, ou por designação do outro
cônjuge ou por via de disposição legal.

Como benefício social podemos indicar, a título de exemplo, o direito a uso de passaporte
diplomático, o direito de usufruir de direitos associativos ou institucionais de pessoas coletivas
públicas ou privadas de que o outro cônjuge fosse membro, etc..

Interessa agora definir como se opera a perda de benefícios que vem prevista na lei. Aqui
haverá que distinguir duas situações distintas. Se o benefício patri¬monial adveio de ato de
vontade do outro cônjuge ou de terceiros, entendemos que a perda dessa liberalidade não se
opera ex oficio pela simples declaração do divórcio.

Será necessário que o cônjuge ou o terceiro que fez atribuição de liberalidade venha revogá-la
por ato expresso, pois a declaração do divórcio não leva desde logo a entender que a vontade
anterior que levou à prática do ato de liberalidade tenha deixado de existir.

O ex-cônjuge ou o terceiro que a outorgou pode até estar interessado em manter o benefício
concedido ao ex-cônjuge. A perda do benefício deve, pois, resultar de um ato de vontade do
autor da liberalidade.

Já quando o benefício ou o direito resulte de disposição legal ou estatutária que seja atribuída
ao outro cônjuge como tal, é manifesto que, perdida a qualidade de cônjuge, desaparecerá
ipsofacto, obrigatoriamente, o direito a esses benefícios.

d) Atribuição da residência familiar

Extinto o matrimónio, cessa o direito-dever de coabitação dos cônjuges, que passam a viver
em habitações separadas. O direito à habitação da residência familiar é hoje um valor
económico e social de acentuado realce, que é protegido na maioria dos sistemas jurídicos.

Durante a vigência do casamento, é especialmente protegido o direito ao arrendamento


familiar e, aquando da dissolução do casamento, a atribuição de residência familiar é um bem
que, pela sua importância, tem um estatuto especial, dada a sua afetação material à
convivência do agregado familiar, o que justifica que ele seja protegido não só durante a
permanência do casamento mas também para além da sua dissolução.

Em alguns destes sistemas o direito à habitação da residência familiar c protegido não só


quando ele se baseia num contrato de arrendamento celebrado por qualquer dos cônjuges,
mas também quando o casal reside em habitação que seja propriedade de um só dos cônjuges
ou bem comum do casal.

Nestes últimos casos, o tribunal pode atribuir o direito ao arrendamento ao cônjuge que não
seja proprietário e mandar constituir um contrato de locação forçada entre o ex-cônjuge
proprietário e o ex-cônjuge que passa a ocupar a posição de locatário.

No Código de Família só vem prevista a atribuição da residência familiar a residência seja


propriedade comum dos cônjuges ou o direito de habitação resulte de contrato de
arrendamento celebrado entre qualquer dos cônjuges e um terceiro.
O direito à atribuição de residência familiar vem mencionado no art. 85.°, alínea c), no art.
104.°, alínea c), e no art. 110.°, todos do Código de Família.

É um direito que, inter-partesy tem de ser discutido no âmbito das relações patrimoniais dos
cônjuges e que, nas relações com terceiros, requer a intervenção obrigatória do marido e da
mulher conjuntamente, dado ser um bem que só por ambos pode ser alienado. Da mesma
sorte, em todas as ações em que se discuta o direito ao arrendamento ambos os cônjuges têm
que ser chamados a juízo, sob pena de ilegitimidade, quer os cônjuges sejam autores quer
sejam réus, como atrás referimos.

Os cônjuges podem dirimir entre si esta questão por via de acordo, dada a sua natureza
patrimonial, solução que é obrigatória nas ações de divórcio por mútuo acordo (art. 85.°,
alínea c) do Código de Família) e facultativa nas ações de divórcio litigioso. Podem ainda deixar
que o tribunal decida a questão quando esta lhe for posta — art. 104.°, n.° 1, alínea c), dentro
dos parâmetros do art. 110.° do Código de Família.

De acordo com os parâmetros previstos neste art. 110.°, o tribunal, ao operar uma atribuição
preferencial do direito à residência familiar a um dos cônjuges, deve ter em conta:

a) as condições de vida dos cônjuges;

b) o interesse dos filhos do casal;

c) as causas do divórcio.

Nas condições de vida dos cônjuges estão incluídas as de natureza profissional, económica e
até social.

Nas condições de natureza profissional podem incluir-se o local de trabalho, ou o facto de ser
exercida atividade profissional na residência familiar.

Nas condições económicas, inclui-se, por exemplo, na maior ou menor solvabilidade de um dos
cônjuges; nas condições sociais poderá atender-se ao facto de o cônjuge ter no local outros
membros da sua família, de desenvolver atividade relevante na área de residência, etc..

Em segundo lugar, há que atender ao interesse dos filhos do casal, o que representa, em
última análise, determinar a qual dos progenitores deve ser feita a entrega da guarda dos
filhos, para, em razão disso, atribuir a esse progenitor o direito de permanecer na residência
familiar.

Em terceiro lugar, a lei refere que o tribunal, ao fazer a escolha sobre qual dos dois cônjuges
justifica a atribuição da residência, deverá ponderar sobre as causas do divórcio. De novo a lei
faz menção às causas do divórcio, como já o fez em relação ao direito de alimentos.

[107] Efeitos das causas específicas do divórcio

Vimos já que as causas do divórcio são, em concreto, os factos apurados no caso subjudice e
que foram considerados como fundamento da declaração do divórcio, por serem os factos que
estão na origem da causa genérica que se consubstanciou na deterioração completa e
irreversível do vínculo conjugal. O fundamento para a decretação da dissolução do casamento
é efetivamente este ter deixado de cumprir o fim pessoal e social para que ele foi constituído,
ou seja, como diz a lei «terperdido o seu sentido».

Mas para certos efeitos esses factos têm que ser apurados tendo em conta cada caso
concreto, para se decidirem questões com consequências na vida pós-conjugal de cada um dos
ex-cônjuges, e tiver cessado a vivência comum, designadamente quanto aos encargos gerais
da vida familiar e a coabitação.

O julgador terá que sopesar as condutas de cada cônjuge relativamente aos seus deveres
conjugais e a sua contribuição para a dissolução do vínculo, em questões que se vão colocar,
tais como o direito a alimentos e o direito à residência familiar.

Massimo Bianca define com clareza e profundidade o conceito de causas do divórcio :

«Na questão do divórcio a lei também atribui relevo, mesmo que seja para fins meramente
patrimoniais, à responsabilidade pelafalência do matrimónio e a indagação respetiva deve ter
em vista sobretudo as causas de irreversabilidade da desagregação da comunhão material e
espiritual da família, que constitui a destruição de uma relação inter-pessoal de caráter tão
absoluto como é o vínculo matrimonial, o ordenamento não pode ficar inerte no que diz
respeito à valoração das causas que levaram à sua destruição, apreciando-o não como um
simples fenómeno, mas ainda no que diz respeito à sua imputabilidade. Muito embora a
responsabilidade dos cônjuges pela falência do matrimónio não possa ser reconduzida ao
paradigma da culpa em sentido técnico, porque a lei prescinde dela, é, por outro lado, inegável
que as relações conjugais, pelo seu caráter eminentemente pessoal, se estruturam em regras
morais de comportamento. Por isso mesmo, quando a transgressão a tais regras for verificada,
ela deve ser levada a débito do cônjuge e, consumada a rutura, é inevitável que se proceda a
um balanço das respetivas responsabilidades imputáveis a cada um dos cônjuges».

Ao indicar os critérios que deverão nortear o tribunal na sua decisão, o art. 110.° do Código de
Família não dá prioridade a um em relação aos outros, e todos devem ser tidos em conta na
sua globalidade.

A atribuição do direito ao arrendamento da residência familiar vinha já regulada no Decreto n.°


43 525 (Lei do Inquilinato), que permanece em vigor.

O art. 75.° deste Decreto refere-se à situação patrimonial dos cônjuges, às circunstâncias de
facto relativas à ocupação da casa, aos interesse dos filhos, à culpa do arrendatário e ao facto
de o arrendamento ser anterior ou posterior ao casamento, como critérios que o juiz, ao
decidir, deve tomar em conta.

Na sua essência, estes indicativos não diferem substancialmente dos que vêm contidos no art.
110.° do Código de Família.

O tribunal deverá ter em conta todas as questões pertinentes e tomar uma decisão segundo
um juízo de equidade.
Existe já jurisprudência dos nossos tribunais sobre esta questão, a qual, dados os prementes
problemas de habitação que se põem nos nossos centros urbanos, se vai revestindo de uma
cada vez maior acuidade.

Quanto ao pedido de atribuição da residência familiar, já se decidiu que ele deve ser
formulado na pendência da ação de divórcio e não em ação proposta perante o extinto
Tribunal de Menores (Acórdão do Tribunal Supremo de 26 de julho de 1990); que o pedido
pode ser feito na pendência de ação de divórcio, e que, se nada tiver sido decidido ou
acordado pelos cônjuges, deverá ser operado em processo de inventário e partilha dos bens
do dissolvido casal (Acórdãos do Tribunal Supremo de 19 de outubro de 1990 e de 6 de
setembro de 1991, respetivamente).

A nossa legislação sobre o direito de habitação encontra-se muito desajustada relativamente


às atuais exigências de atribuição do direito à residência no caso de divórcio, porquanto é
omissa quanto à forma de salvaguarda deste direito económico-matrimonial.

Não está previsto na lei como se deve proceder, caso a residência familiar seja bem comum do
casal, compensando o cônjuge que fique sem o uso e fruição do direito à habitação.

No caso de atribuição do direito ao arrendamento também se devia sempre salvaguardar o


direito de preferência a atribuir ao ex-cônjuge no caso de o outro pretender vir a rescindir o
contrato, ou ceder a terceiros o seu direito.

Na partilha dos bens do casal há sempre que ter em conta que o cônjuge que ficou sem direito
à residência familiar deve ser compensado no seu património por um valor equivalente,
sempre que a capacidade patrimonial dos cônjuges tal permita.

e) Indemnizações por perdas e danos e prestações compensatórias O Código de Família,


dentro da já apontada linha do conceito da causa genérica do divórcio, e afastando o conceito
de divórcio sanção, não penaliza o cônjuge culpado no sentido de ter o dever de indemnizar o
cônjuge dito «inocente» dos prejuízos de ordem moral ou material que lhe advieram da
declaração do divórcio.

Aliás, dentro da conceção socialista do direito, eram geralmente afastados os conceitos de


atribuição de um valor pecuniário aos danos morais, por se entender que o sofrimento
humano não é valorizável em quantitativos materiais.

Mas esse entendimento não é seguido em muitos sistemas jurídicos que defendem o direito
da vítima do divórcio a ser indemnizada pelos danos morais sofridos. Já a subsistência material
de um dos cônjuges no período pós-divórcio é questão que vem prevista em diversas leis, que
procuram permitir ao cônjuge divorciado que ficar em situação económica desvantajosa
manter o nível de vida que tinha durante a vigência do casamento.

Em regra consagra-se a entrega de um determinado valor patrimonial pelo cônjuge cuja


situação económica é mais favorecida, em benefício do cônjuge economicamente mais débil.
O direito italiano fala de «assegno post-matri- moniale», podendo a entrega ser feita de uma
só vez, ou através de prestações compensatórias, como são designadas no direito francês.
Através deste sistema, procura-se precaver o futuro do cônjuge divorciado, dando-lhe um
capital que, à partida, o proteja do desamparo em que pode ficar em razão do divórcio, e que,
melhor do que as prestações de alimentos pagas mês a mês, poderão dar-lhe uma garantia de
subsistência.

A prestação compensatória tem como fundamento material o facto de os cônjuges terem


conseguido, durante a vigência do matrimónio, melhorar a sua situação económica e social,
ajudando-se reciprocamente, o que nem sempre vem traduzido na partilha dos bens.
Normalmente, é a mulher que se vê prejudicada por se ter dedicado aos interesses do lar e à
educação dos filhos, sacrificando a sua vida profissional, o que, depois do divórcio, se traduz
em menor potencialidade para obter rendimentos. A prestação compensatória entregue por
um cônjuge ao outro consiste em valores que permitam a este último iniciar uma nova
atividade.

Com uma nova visão de que o divórcio se não baseia na pesquisa da culpa e na atribuição de
«penas espiatórias» para o cônjuge dado como culpado, procura-se encontrar formas de
garantir que, após a dissolução do casamento, cada ex-cônjuge possa continuar a sua vida sem
grandes ruturas no aspeto económico.

Daí a tendência para a atribuição de determinadas «prestações compensa¬tórias», que o


direito inglês designa como «lump sum» no facto de o cônjuge mais favorecido sob o ponto de
vista económico entregar ao outro capital ou outros bens, de uma só vez, para início duma
atividade económica.

Quanto à forma como se opera a partilha dos bens do casal, ela depende de haver ou não
acordo entre os cônjuges.

Ela pode efetivar-se por via extra-judicial e constar de escritura pública, caso existam bens
imobiliários, cotas sociais, etc. quando a transmissão desses direitos ou bens dependa dessa
forma legal, ou por via de inventário judicial, que correrá por apenso ao processo de divórcio,
depois do trânsito em julgado da respetiva sentença quando não haja acordo.

Nas ações de divórcio por mútuo acordo, o art. 89.°, alínea c) prevê que no requerimento
inicial os cônjuges juntem «a relação especificada dos bens próprios e dos bens comuns».
Desta forma, ao fazer essa relação, os cônjuges devem indicar todos os bens, definindo qual a
sua natureza, não podendo com credibilidade vir, a posteriori, alegar pretensas omissões nessa
relação.

Discutiu-se se são ou não válidos os contratos-promessa entre os cônjuges feitos durante a


pendência da ação de divórcio, tendo sido defendido que eles eram desprovidos de qualquer
valor vinculativo entre as partes.

O entendimento hoje predominante é o de que, se não são interditos tais contratos-promessa


e se eles obrigam os respetivos signatários nas mesmas condições de forma e de fundo a que
estão sujeitos os demais contratos-promessa, então eles estão sujeitos à condição de o
divórcio vir a ser declarado e de a sentença transitar em julgado.
Neste sentido, vem a ser considerado que o contrato de promessa representa: «uma partilha
sob condição suspensiva válida a partir do património comum,

feita na pendência do processo de divórcio litigioso ou consensual que opera de facto no


momento do trânsito em julgado da sentença.»

CAPÍTULO 17.0

A UNIÃO DE FACTO

[108] Natureza do instituto

A união de facto consiste na convivência sexual comum entre um homem e uma mulher como
se de marido e mulher se tratasse, sem a existência de um casamento formalizado. Na sua
essência, a união de facto encerra uma vivência de caráter duradouro entre um homem e uma
mulher segundo 0 figurino marital, o que significa que entre eles se estabelece comunhão de
cama, mesa e habitação {quod thorum, mensam et habitationem), sem que, todavia, tenham
entre si celebrado casamento.

Como situação de facto que é, pressupõe uma continuidade no tempo que a torna relevante
no meio social e que, consequentemente, não pode ser ignorada pelo direito.

Se é certo que a união de facto, a união não formalizada, foi desde os pri¬mórdios da
humanidade a forma de constituição da família natural, como vimos a propósito da evolução
histórica do instituto do casamento, também é verdade que, nos séculos mais recentes, e
graças à influência do cristianismo, se procurou favorecer o casamento como forma
privilegiada e até única de constituição da família.

Assim, a convivência marital entre o homem e a mulher fora do sacramento do casamento


passou a ser considerada como pecaminosa e objeto direto de sanção religiosa e até
pecuniária.

A situação de mancebia ou de concubinato era estigmatizada. O termo concubina vem da


expressão latina cum cubare, que significa «deitar-se com», o que desde logo indica o
elemento material de união entre homem e mulher.

Nos países desenvolvidos, o casamento legalmente celebrado perante os órgãos estatais


competentes é prioritariamente a forma de constituir família. O mesmo acontece em todos os
países cujo direito de família está subordinado à religião do próprio estado, pois nestes é o
casamento religioso que vai produzir efeitos civis.

Ao invés, acontece em alguns países que o casamento religioso não produz efeitos civis, sendo,
por isso, irrelevante.

O Código Civil anteriormente vigente só reconhecia a família estruturada no casamento.


Incidentalmente, fazia menção, a propósito das então designadas ações de investigação de
paternidade ilegítima e como um dos pressupostos destas ações, às situações de «concubinato
duradouro» e de «convivência marital notória», cujos conceitos vinham definidos no art.
1862.°.
É, porém, importante realçar que, nos nossos dias, esta posição radical se alterou e, mesmo
nos países que não reconhecem o instituto da união de facto como gerador de relações
jurídicas familiares, já se afastou a noção de que tal união à margem do matrimónio tenha um
caráter de ilicitude e deva ser considerada como pecaminosa.

Costuma-se, no entanto, ter em conta a circunstância de o homem ou a mulher que vivem em


união de facto não serem casados com terceira pessoa, pois, quando tal acontece, surge o
adultério como elemento que vai inquinar a união.

A união de facto, como fenómeno juridicamente relevante, já ganhou expressão na legislação


de diversos países. Em Portugal, após a reforma de 1977, veio definir-se a união de facto como
a comunhão duradoura de vida entre duas pessoas de sexo diferente em condições análogas à
dos cônjuges, atribuindo-lhe a lei alguns efeitos, designadamente quanto à presunção de
paternidade, quando tenha havido essa comunhão duradoura de vida durante o período legal
de conceção — art. 1871.°, alínea c), do Código Civil. O art. 2020.° do atual Código Civil
português já menciona a união de facto ao prever o direito de alimentos a ser exercido sobre a
herança deixada pelo companheiro.

No direito francês, onde a união é designada como «união livre», o princípio de liberdade
sexual permitida entre cidadãos de maior idade leva à sua admissão como um fenómeno à
margem do casamento, caraterizado pelo facto de existir uma certa estabilidade de vida em
comum que subsiste enquanto tal for da vontade livre dos companheiros e que, portanto,
pode ser livremente interrompida. Quando um casal vive perante a sociedade como sendo
casado sem o ser, é designado como «faux ménage». A união livre pode produzir efeitos
patrimoniais, designadamente quando foi desenvolvida atividade económica comum, no
direito à partilha de bens e no direito à residência comum, e é reconhecida como produtora de
efeitos na legislação social, tornando os benefícios extensíveis ao companheiro do respetivo
titular.

No direito inglês, o casamento meramente consensual, designado como o casamento segundo


a «common law», também pode, excecionalmente, vir a produzir efeitos.

No direito brasileiro também se vem acentuando o interesse do legislador em dar certa


proteção jurídica às uniões estáveis, constituídas à margem do casamento

— art. 226.°, § 3 da Constituição da República Federativa do Brasil, aprovada cm 1988.


Hoje o atual Código Civil brasileiro consagra a «união estável» nos seus artigos 1723.° a 1727.°
Ela é definida como: «A convivência pública, contínua e duradoura estabelecida entre homem
e mulher, com o objetivo de constituir família »

— art. 1723.°. Prevê-se o regime económico de comunhão parcial de bens, salvo se


houver contrato escrito entre os companheiros — art. 1725.° e a possibilidade de conversão
em casamento a pedido dos companheiros — art. 1726.°.

De igual modo, nos Estados Unidos da América alguns Estados adotaram, recentemente, leis
que regulam a designada «Domestic Partnership» (companhei¬rismo doméstico), as relações
entre companheiros da união de facto, e que permitem a celebração de «contratos de
coabitação», que regulem as relações de convivência marital entre duas pessoas adultas e
disponham sobre os direitos e obrigações recíprocas, estabelecendo normas de caráter
patrimonial para o caso do fim da relação, no que diz respeito à compensação indemnizatória,
partilha de bens, etc..

No direito de países africanos como Cabo Verde está previsto o reconhecimento da união de
facto dentro de determinadas condições legais. Permite o art.01712.° do Código Civil, de Cabo
Verde, que a a união de facto seja reconhecida registralmente quando o homem e a mulher
tenham vivido em comunhão de cama, mesa e pelo período mínimo de três anos, e que ambos
os requerentes sejam maiores de 19 anos, não existam impedimentos matrimoniais e que a
vida comum garanta a estabilidade, unicidade e seriedade próprias do casamento. Quando
haja um ou mais descendentes comuns do casal não é exigido o período mínimo de
convivência.

Na legislação vigente em Macau os art.° 1471.° e 1472.° do Código Civil releva a adoção da
união de facto como convivência voluntária de duas pessoas, maiores de 18 anos, que
convivam depois da maior idade, pelo prazo de dois anos. Este prazo só contado no caso de
algum dos conviventes ser casado apartir da sua separação de facto e desde que não haja
outros impedimentos matrimóniais.

No Código de Família de Cuba também está previsto o reconhecimento judicial do matrimónio


não formalizado, o que requer a existência da capacidade matrimonial do homem e da mulher
e ainda a singularidade e estabilidade.

Uma vez reconhecida a união matrimonial, a sentença produz efeitos retro¬ativamente desde
a data do seu início.

[109] Enquadramento do direito angolano; relevância do casamento segundo o direito


costumeiro

A primeira menção à união de facto no direito angolano foi feita na Lei n.° 7/80, de 27 de
agosto, a Lei da Adoção e Colocação de Menores. No art. 5.° desta Lei dá-se à união de facto
estabelecida entre homem e mulher com caráter permanente e exclusivo relevância jurídica
idêntica à do casamento. O casal que vivesse em união de facto nas condições previstas nessa
Lei tinha a capacidade de operar a adoção dupla de um menor, situação que se mantém no
Código de Família atual.

Depois, como já tivemos ocasião de mencionar a propósito dos antecedentes históricos do


Código de Família, a Resolução n.° 2/82 da Assembleia do Povo deu prioridade, na revisão
legislativa a operar na lei de família, à legislação do instituto da união de facto.

No Relatório que antecedeu o projeto do Código de Família dizia-se a propósito (fls. 11): «A
união defacto é a união entre um homem e uma mulher com o fim de fazerem vida comum,
distinguindo-se do casamento apenas por não haver formalização ou legalização da união.»

Os fundamentos da existência de uniões de facto no nosso país diferem substancialmente dos


fundamentos da sua existência nos países europeus e nos países desenvolvidos. No nosso país,
a maioria da população vive em união de facto não por questões ideológicas ou de princípios,
mas por razões de cultura e de tradição e de inexistência dos órgãos do registo civil
necessários à legalização da sua união ou ainda por razões económicas (nas zonas urbanas).

O objetivo do Estado é, evidentemente, «o de legalizar o maior número possível de uniões pela


junção social que o casamento desempenha na sociedade».(1)

Foi de acordo com esta diretriz legislativa que o instituto da união de facto veio a ser
consagrado no Código de Família e mencionado nos princípios fundamentais como uma das
formas de constituição da família, sendo-lhe consagrado todo o título IV do Código.

Posteriormente, foi publicada a Lei do Sistema de Segurança Social (Lei 18/90, de 27 de


outubro e Decreto n.° 49/91, de 16 de agosto, que a regulamentava), a qual, como já
mencionámos a propósito dos efeitos da dissolução do casamento por divórcio, atribuía o
direito à pensão de sobrevivência ao companheiro sobrevivo da união de facto, desde que esta
estivesse registada.

A Lei Constitucional cuja revisão foi completada pela Lei n.° 23/92, dc 16 de setembro,
consagra no seu art. 29.°, n.° 1 o princípio de que a família tem direito à proteção do Estado,
quer se funde em casamento quer em união dc facto, dando assim pela primeira vez
consagração constitucional a esta forma de constituir família.

A consagração legal da união de facto vem sendo acentuada em todo o sistema jurídico
angolano. A recente Lei das Sociedades Comerciais, Lei n.° 1/04, de 13 de fevereiro, nas suas
Disposições Finais e Transitórias, art. 525.° dispõe: «Sempre que nesta lei, se faça referência a
cônjuge deve entender-se que a expressão é extensiva aos companheiros da união de facto,
ainda que não reconhecida». Ora os poderes de representação conferidos aos cônjuges do
sócio são múltiplos, como já referimos.

Podemos questionar-nos sobre se o casamento segundo os usos e costumes, ou seja,


celebrado segundo o direito costumeiro que permanece em diversas regiões do país, deve ser
equiparado à união de facto e ser como tal reconhecido, desde logo para produzir efeitos civis.

Em muitos países africanos é usado tal procedimento, designadamente naqueles em que ainda
prevalecem vários estatutos de direito pessoal, coexistindo o direito costumeiro a par do
direito escrito positivo.

O reconhecimento do casamento celebrado segundo o direito costumeiro foi tornado possível


através da declaração conjunta de marido e mulher feita perante a autoridade competente.
Mas, para o reconhecimento ou verificação da existência do casamento costumeiro, o
legislador exige que sejam respeitadas as condições de fundo do casamento segundo a lei
escrita, com especial relevância quanto à idade núbil e quanto à não existência de outros
vínculos conjugais não dissolvidos.

Em países como o Senegal e a Côte d’Yvoire a lei veio permitir que os cônjuges viessem
registar a sua união de facto ou união livre, declarando a data em que ela tinha sido iniciada e,
por via desse registo, foram regularizadas grande número dessas uniões.
A República da África do Sul aprovou a Lei n.° 120/1988 do Reconhecimento do Direito
Costumeiro que entrou em vigor em 15 de novembro de 2000. O direito costumeiro é definido
como os usos e costumes dos povos indígenas africanos. Esta lei especifica os requisitos de
validade do casamento segundo o direito costumeiro, o respetivo registo, determina a
igualdade de estatuto e capacidade dos esposos, o regime económico, a dissolução do
casamento e alteração do regime do casamento do direito costumeiro para o regime do direito
escrito, prevendo disposições regulamentares complementares à lei.

Na verdade, não há inteira sobreposição entre o conceito de união de facto, tal como vem
recortado no Código de Família, e o casamento segundo o direito costumeiro. A caraterística
fundamental da união de facto é a voluntariedade, o que significa que a união de facto se
constitui pela vontade comum de ambos e pode terminar pela vontade de um só,
unilateralmente.

Já no casamento tradicional há regras estritas que devem ser cumpridas por parte dos
familiares e pelo próprio casal e que se referem à celebração do acordo de casamento, à sua
manutenção e dissolução. Em regra, a mulher não é chamada a expressar o seu consentimento
quando é constituído o compromisso do casamento.

Em termos gerais, pode dizer-se que, quando tal for a vontade de ambos os companheiros,
homem e mulher, e uma vez preenchidos os pressupostos legais, nada impede, no nosso país,
que a grande maioria das uniões de facto sejam reconhecidas e formalizadas ao abrigo da nova
lei.

[110] Conceito de união de facto e pressupostos legais

O artigo 112.° do Código de Família define a união de facto como o estabeleci¬mento


voluntário de vida em comum entre um homem e uma mulher.

Neste conceito estabelece-se, por um lado, o elemento subjetivo da volunta¬riedade, que é


essencial, e, por outro lado, o elemento objetivo, que é representado pela situação material de
convivência, segundo o modelo matrimonial.

Há, pois, que distinguir entre a união de facto e a convivência dentro do mesmo agregado
familiar de diversas pessoas que vivem sob o mesmo teto. É a convivência como marido e
mulher que define a união de facto como tal.

Perante uma determinada união de facto, duas situações distintas podem ocorrer: ou ela
preenche os pressupostos previstos na lei, e nesse caso a união de facto é suscetível de ser
reconhecida, ou não os preenche e então ela não poderá ser reconhecida, sem embargo de
poder produzir determinados efeitos legais, e como tal ser atendida pela lei.

Importa ainda realçar que, enquanto perdura a união de facto, ela só é suscetível de ser
reconhecida quando tal for a vontade dos dois companheiros. E isto pela razão evidente de
que ninguém, contra a sua vontade, pode ver transformada a sua união de facto não
formalizada num ato equiparado ao casamento e produzindo

os mesmos efeitos que este.


Já quando cessa a união de facto a lei veio permitir que, uma vez verificada judicialmente a
posteriori a existência dos pressupostos legais, esse reconhecimento venha a produzir os
vastos efeitos que a lei confere à dissolução do casamento.

E este é, sem dúvida, o efeito mais relevante que o novo instituto passou a ter no meio social,
permitindo que, aquando da rutura, a vivência anterior, querida por ambos, venha a produzir
efeitos e não seja ignorada pela ordem jurídica.

É verdade que a voluntariedade da união de facto se manifesta no momento em que ela se


inicia, permanece durante toda a sua duração e termina quando tal for querido por um só ou
por ambos os companheiros. Mas a lei também não descura a proteção dos companheiros que
criarem entre si interesses familiares comuns, entrelaçando relações pessoais e patrimoniais e
tendo muitas vezes filhos comuns.

Os companheiros de união de facto podem, em qualquer momento, fazer cessar a vida em


comum sem necessidade de recorrer a qualquer decisão judicial, dado tratar-se de uma
relação familiar consensual que também não necessitou de qualquer formalismo no seu início.

O fim da convivência mútua marca, no entanto, a definição dos direitos adquiridos durante ela
pelos companheiros, os quais advêm para cada um deles a partir do momento da rutura por
via do reconhecimento de que essa união existiu e, embora extinta, se considera juridicamente
relevante para produzir os efeitos previstos na lei.

Os pressupostos legais impostos na lei para o reconhecimento da união de facto são os que
vêm expressos no art. 113.°, n.° 1 do Código de Família:

— a coabitação marital do homem e da mulher pelo período consecutivo de pelo menos


três anos;

— a capacidade matrimonial de ambos os membros do casal;

— a singularidade da união.

A coabitação marital, cujo conteúdo jurídico já foi definido, pressupõe a comunhão de cama,
mesa e habitação, com a criação de laços de interdependência afetiva, social e económica
entre companheiros.

A união de facto revela-se como tal e ainda perante terceiros, pois consiste numa realidade
percetível no meio social onde se insere.

Se houver uma relação de amantismo sem coabitação comum não se configura a união de
facto.

O tempo mínimo de coabitação comum é de três anos consecutivos, ou seja sem soluções de
continuidade. É a natureza estável da união e a sua perduraçáo no tempo, que é tomada em
conta para ser operado o reconhecimento.

É exigida ainda a capacidade matrimonial do homem e da mulher, o que implica que ambos
tenham capacidade para contrair casamento em geral e também que entre eles não existam
impedimentos dirimentes relativos.
Compreende-se que se trate de uma condição sinequa non do reconhecimento, dados os
efeitos que a lei atribui à união de facto e que correspondem aos do próprio casamento. Seria
incompatível com matéria imperativa da lei fazer produzir efeitos próprios do casamentos à
união em que se verificassem causas de incapacidade matrimonial.

Exige ainda a lei que a união de facto seja exclusiva, o que implica que ela seja singular, de um
único homem com uma única mulher. Tal reflete a aceitação do princípio da monogamia, que
é fundamental ao instituto do casamento e, consequentemente, ao instituto da união de facto
reconhecida.

O que é importante ter em conta é que, para que se opere o reconhecimento da união de
facto, não é imprescindível que durante toda a sua vigência se configurem os pressupostos
legais do reconhecimento relativos à capacidade matrimonial, ao mútuo consenso e à
singularidade.

Designadamente, ela pode ser iniciada não tendo a mulher idade púbere, ou sendo um dos
companheiros casado com outrem, sem ter havido consentimento inicial, etc.. Mas se, a partir
de determinado momento, tanto o homem como a mulher passaram a ter capacidade
matrimonial ou passaram a aceitar voluntaria¬mente a união, contar-se-á a partir de então o
prazo de três anos necessário para que se produza o reconhecimento.

O mesmo pode acontecer em relação à singularidade, pois a união de facto pode ser de início
não singular (como, por exemplo, quando há poligamia) e passar, a certa altura, a ser singular,
o que permitirá o seu reconhecimento em tempo oportuno.

O reconhecimento é feito a pedido de ambos os interessados (art. 115.° do Código de Família)


e é da competência dos órgãos do registo civil da área de residência respetiva.

O formalismo a usar neste caso vem descrito no art. 116.° do Código de Família. Trata-se de
um processo administrativo em que será necessário provar primeiramente, tal como no
processo de casamento, a capacidade matrimonial dos companheiros de união de facto, além
de ter de se provar cumulativamente a singularidade da união e sua duração ao longo de três
anos.

Para a prova destes pressupostos legais estabelece o art. 116.°, n.° 2 que poderão ser
oferecidas testemunhas ou documento emitido pelo órgão da administração local. O que
interessa é que, ou junto da conservatória onde corre o processo, ou junto do órgão da
administração local da área de residência do casal, seja feita a prova de que os interessados
conviveram em exclusividade, como marido e mulher, durante pelo menos três anos, sem
interrupção.

O n.° 3 do art. 116.° prevê que os interessados venham declarar o regime de bens por que
optam. À semelhança do que vem previsto no n.° 3 do art. 29.° sobre a declaração inicial para
casamento, esta declaração não é de caráter obrigatório, mas facultativa, pois se os
interessados nada disserem deve aplicar-se a regra supletiva geral do art. 49.°, n.° 3, ficando a
união de facto reconhecida sujeita ao regime económico da comunhão de bens adquiridos.
Ao processo de reconhecimento da união de facto por mútuo acordo são aplicáveis
subsidiariamente as disposições respeitantes ao processo de casamento, isto quanto à fase
preliminar de iniciação do processo: juramento por parte dos companheiros da união de facto
sobre a não existência de impedimentos, possibilidades de ser deduzida oposição, etc..

A diferença mais saliente entre um e outro processo reside em que no processo de


reconhecimento da união de facto não se dá a celebração, ou seja, não existe a parte ritual e
solene da cerimónia do casamento. Isto porque se entende que a prévia existência de vida em
comum torna supérflua a declaração solene de aceitação do outro como cônjuge, tanto mais
que o facto de se requerer o reconhecimento vem confirmar esta mesma vontade.

Concluída a instrução, o conservador, se considerar verificados os pressupostos legais


constantes do art. 113.°, n.° 1 do Código de Família, reconhece, por despacho, a união de
facto, tal como vem consignado no art. 118.° do Código de Família. Trata-se, portanto, de um
ato administrativo. Se se der o caso de o conservador entender que não estão preenchidos os
pressupostos legais, deverá indeferir o pedido, seguindo-se, se for caso disso, os demais
trâmites previstos na lei, que permitem recorrer dos atos dos conservadores.

Uma vez reconhecida a união de facto, ela produz todos os efeitos próprios do casamento,
mas com retroatividade à data do início da união. Mas tão só a partir do momento em que se
tenham dado como verificados os três pressupostos legais.

Estes efeitos retroativos vão ser especialmente relevantes para os filhos nascidos da união de
facto, cuja filiação em relação a ambos os progenitores fica desde logo estabelecida (art. 163.°
do Código de Família), mas ainda quanto aos efeitos patrimoniais, designadamente quanto ao
direito sobre bens comuns.

Poderá questionar-se se, não havendo celebração, ao contrário do que acontece com o
casamento, será de aplicar-se o que consta do art. 36.°, n.° 1 do Código de Família quanto à
adoção de apelidos ou de nome de família.

Cremos que, formalmente, tal não vem previsto na lei, mas não repugna aceitar que esta
declaração seja feita no requerimento que inicia o processo de reconhecimento, o que poderá
vir a constar do diploma que vier regulamentar a matéria no quadro das normas do registo
civil.

Uma vez lavrado o reconhecimento da união de facto, ficam os interessados em situação


jurídica equivalente à de casados e o ato está sujeito a registo a efetuar em livro próprio, pois
houve alteração do estado familiar — art. 120.° do Código de Família. O seu registo é
obrigatório e é através dele que a união de facto se toma oponível a terceiros.

Por fim, dispõe o art. 121.° que o reconhecimento da união de facto está sujeito a anulação,
nos termos gerais previstos para a anulação do casamento.

Os termos em que pode ser operada a anulação do casamento são os que constam do art. 65.°
e seguintes do mesmo Código.
A aplicação das regras relativas à anulação do casamento tem que ser feita com as necessárias
adaptações, pois, havendo um período de coabitação mínima de três anos, não poderá ser
invocado o erro, quando é certo que a existência deste vício tem que ser alegada dentro do
prazo de dois anos após a celebração do casamento — art. 70.°, alínea b) do Código de Família.

Também não poderá ser invocada a falta de requisitos formais, que não tem cabimento no
reconhecimento da união de facto feito por via administrativa. A falta ou vício de vontade,
para ser fundamento da anulação do reconhecimento da união de facto, tem que respeitar ao
momento da formulação do requerimento.

No relatório feito para a apresentação do projeto do Código de Família reconheceu-se que o


facto de ser exigido todo o formalismo que se descreveu para o reconhecimento da união de
facto por mútuo acordo iria levar a que a maioria dos interessados viesse a optar pela
celebração do casamento.

Não se quis, porém, deixar de prever na lei esta forma de reconhecimento por mútuo acordo,
deixando ao critério dos interessados optarem por esta via

quando entenderem que ela acautela melhor os seus interesses, designadamente pela
produção de efeitos retroativos nos termos previstos na lei.

[112] Reconhecimento por via judicial

O aspeto de maior relevância trazido pelo Código de Família relativamente a este instituto é
precisamente o de a união de facto poder vir a ser reconhecida depois de ter cessado.

A cessação da união de facto pode dar-se, tal como a dissolução do casamento, pela morte de
um ou de ambos os companheiros, e ainda pelo facto da rutura da união. A rutura é um ato
voluntário que será um ato unilateral se partir de um só dos companheiros, e será um ato
bilateral se resultar da vontade de ambos. Como apontámos, o traço dominante da união de
facto é o de ela assentar na voluntariedade, e ser o resultado da vontade dos dois de
permanecerem no quadro da união não formalizada. Quando qualquer deles quiser pôr termo
à união de facto, esta terá o seu termo igualmente de forma desprovida de formalismos.

A grande diferença trazida pelo Código de Família é a de que, como já vimos, após o fím da
união de facto é possível ela vir a ser reconhecida para vir a produzir efeitos a posteriori, quer
em relação aos filhos, quer de natureza patrimonial.

Pelo largo número de efeitos que advêm do reconhecimento da união de facto, o Código de
Família impõe que ele se opere por via judicial. Exige-se que seja o tribunal, através de uma
ação própria, proposta para o efeito, a proferir uma sentença por via da qual se declare ter
existido entre A e B, determinado homem e determinada mulher, uma situação jurídica de
união de facto.

O reconhecimento por via judicial é aplicável, quer no caso de morte em que falta a vontade
do companheiro que faleceu para manifestar o seu acordo ao reconhecimento, quer no caso
de rutura quando se tenha gerado uma situação de dissídio entre ambos os companheiros.
Tem que ser feito em processo específico que determine e reconheça que a união de facto
existiu durante determinado lapso de tempo e que cessou, além de se pronunciar sobre a
verificação dos pressupostos legais mencionados no art. 113.°, n.° 1 do Código de Família.

a) Legitimidade para a ação

A legitimidade para a propositura da ação vem expressa no art. 123.° do Código de Família e é
atribuída unicamente aos respetivos interessados ou aos seus herdeiros no caso de morte
destes.

1. Em caso de morte — tem legitimidade para a propositura da ação o companheiro


sobrevivo ou seu representante legal quando ele for incapaz ou os herdeiros do companheiro
falecido — art. 123.°, alíneas a) e b) do Código de Família;

2. Em caso de rutura — a ação pode ser proposta por qualquer dos companheiros da
união de facto, ou pelo respetivo representante legal, no caso de incapacidade — art. 123.°,
alínea a) do Código de Família.

No caso de morte transmite-se aos herdeiros do companheiro falecido o direito de ação, que
irá permitir que se opere o reconhecimento posterior da união havida. Embora o direito de
família seja, no fundamental, como se disse, um direito de natureza pessoal, a lei reconhece
em certos casos excecionais a transmissão não do exercício do direito em si, mas a do direito
de ação que se irá repercutir na esfera jurídica dos herdeiros do titular desse direito.

A lei salvaguarda não só o direito da propositura da ação por parte dos herdeiros do
interessado mas também o direito de estes prosseguirem na ação no caso de vir a falecer o
companheiro que propôs a ação ou contra quem a ação for proposta.

Ao contrário do que ocorre na ação de divórcio, a ação de reconhecimento da união de facto


não se extingue com a morte de qualquer das partes, pois em ambos os casos os herdeiros do
falecido podem prosseguir na ação.

b) Prazo de propositura da ação e formalismo processual

O art. 124.° do Código de Família prevê que a ação de reconhecimento da união de facto deve
ser proposta dentro do prazo de dois anos, sob pena de caducidade, prazo este que é do
conhecimento oficioso do tribunal — art. 333.°, n.° 1 do Código Civil.

Pode verificar-se que no Código de Família se consagra, em regra, o prazo de dois anos para o
exercício de determinados direitos de ação, embora noutros casos seja até fixado o prazo de 1
ano, quando se entende que há que preservar com prevalência a situação jurídica anterior.

No caso do reconhecimento da união de facto, entendeu-se que se devia balizar o tempo


dentro do qual os interessados deveriam exercer a faculdade legal de propor ou não propor a
ação. Na verdade, a circunstância de a lei atribuir ao reconhecimento da união de facto amplos
e importantes efeitos impõe que os interessados venham a juízo com certa presteza
reivindicar os seus direitos para se poder definir os direitos do outro companheiro e ainda os
eventuais direitos de outros interessados.
É novamente o princípio da segurança das relações jurídicas que faz com que seja indicado um
prazo para o exercício deste direito, findo o qual cessa o direito ao seu exercício.

O prazo de dois anos é contado a partir do fim da união, pelo que, se ela findou por morte de
um dos companheiros, é essa a data relevante. Se findou por rutura, o prazo conta-se a partir
da data em que definitivamente cessou a coabitação.

O processo judicial para o reconhecimento ou mero atendimento da união de facto segue os


trâmites do processo especial, já mencionados em termos gerais para o processo de divórcio,
ou seja, os que vêm previstos nos arts. 6.° e 7.® da Lei n.° 1/88. Como norma específica, temos
o art. 125.® do Código de Família.

Na averiguação judicial de existência da união de facto é obrigatória a intervenção do Conselho


de Família, como já mencionámos, pelo que a falta de constituição e audição do Conselho de
Família constitui uma nulidade processual insanável. Esta nulidade é do conhecimento oficioso
do tribunal e, uma vez verificada, leva à anulação do processo a partir do momento em que ele
devia intervir, nos termos dos arts. 201.® e 202.® do Código do Processo Civil O Conselho de
Família deverá ser constituído por dois membros escolhidos entre os familiares do homem, e
dois escolhidos entre os familiares da mulher — art. 17.°, n.° 2 do Código de Família.

Compreende-se que a lei considere imprescindível ouvir o parecer do Conselho de Família, pois
melhor que ninguém serão os familiares do casal que poderão ou não confirmar a existência e
a permanência da união de facto, caraterizada pela sua natureza de facto público no respetivo
meio social dos companheiros.

Ao analisar a prova produzida, o tribunal deverá apurar se estão verificados todos os


pressupostos legais para que a união de facto possa ser reconhecida quanto à capacidade
matrimonial dos companheiros, o início e o término da união de facto, para o preenchimento
do período legal, e ainda o da singularidade da união.

Mesmo que a união de facto tenha sido iniciada sem o preenchimento dos pressupostos legais,
ela pode vir a ser reconhecida, como já vimos, se, a partir de determinado momento e pelo
menos durante o período mínimo de três anos consecutivos, eles se verificarem.

Também se pode dar o inverso, ou seja, preencher a união os requisitos legais, e, a partir de
determinado momento, tal deixar de acontecer (por exemplo, se deixar de ser singular em
relação ao homem que inicia simultaneamente outra união de facto com outra mulher).

Neste caso, se se der a rutura da primeira união, o companheiro ou compa¬nheira da união


que foi válida para produzir efeitos, pode vir, dentro do prazo de

dois anos, pedir o respetivo reconhecimento.

c) Efeitos do reconhecimento

Uma vez provada a existência da união de facto que preencheu os pressupostos do art. 113.°,
n.° 1, o juiz deve reconhecer essa união, indicando, tanto quanto possível, quando ela se
iniciou e quando veio a terminar para, assim, determinar o período em que ela produziu
efeitos, designadamente quanto à aquisição de bens comuns, responsabilidade por dívidas,
presunção legal de paternidade por parte do companheiro dos filhos nascidos da união, etc.

A data do fim da união marca a cessação das relações pessoais e patrimoniais dos
companheiros, uma vez que esta termina por simples ato de vontade de um ou de ambos.

Não obstante, não é demais realçar o largo alcance da sentença que vier a reconhecer a união
de facto que tenha preenchido os pressupostos legais, uma vez que os efeitos dessa união são
equiparados por lei aos do casamento dissolvido.

Assim, se a união de facto terminou por morte de um dos companheiros, os efeitos do


reconhecimento são os mesmos da dissolução do casamento por morte — art. 126.° do Código
de Família.

Como vimos, a Lei de Bases da Proteção Social, Lei n.° 7/04 de 15 de outubro cujo regime
jurídico foi definido pelo Decreto n.° 38/08 de 19 de junho (Diário da República, n.° 112)
estabelece no seu art. 6.° «Estão vinculados à Proteção Social Obrigatória na condição de
dependentes do segurado: a) o cônjuge ou pessoa em união defacto.»

Garante-se desta forma o direito à pensão de sobrevivência ao companheiro da união de facto


tal como ao cônjuge, no caso de falecimento do trabalhador — art. 6.° alínea a) do Decreto n.°
38/08 de 19 de junho.

Se a união de facto terminou por rutura, os efeitos que o reconhecimento produz são os
mesmos da dissolução do casamento por divórcio, como indica o citado art. 126.°.

Os efeitos pertinentes da dissolução do casamento são aqui de aplicar, salvo quanto aos
efeitos de natureza pessoal do casamento que se não chegam a produzir na união de facto e
que estão intrinsecamente ligados ao casamento como ato, como sejam o nome de família, a
afinidade e a aquisição de nacionalidade. Em relação aos filhos, dado o fim da coabitação, são
de aplicar, por inteiro, as regras já mencionadas contidas nos art. 147.° e seguintes do Código
de Família.

No campo das relações patrimoniais os efeitos são praticamente os mesmos. Haverá o direito
a partilha dos bens comuns adquiridos a título oneroso durante a união, pois é de aplicar
supletivamente o regime de bens da comunhão de adquiridos.

A responsabilidade pelo passivo segue igualmente as mesmas regras da dissolução do


casamento, devendo em primeiro lugar proceder-se à liquidação do passivo.

O direito à atribuição da residência familiar verifica-se também nas mesmas condições dos
artigos. 75.°, n.° 4 e 110.° do Código de Família.

As regras aplicáveis do direito a alimentos são igualmente as previstas para o caso de


dissolução do casamento por morte. O art. 261.°, n.°s 1 e 2 atribui ao companheiro sobrevivo
de união de facto reconhecida o direito de ser alimentado pelos rendimentos deixados pelo
falecido.
No caso de rutura da união de facto que reuna os pressupostos legais, o companheiro que não
tenha dado causa exclusiva à rutura tem direito a alimentos, como prescrevem as disposições
dos artigos. 260.° e 262.°, n.° 2 ambos do Código de Família.

Por outro lado, a constituição de nova união de facto por pane do companheiro que tinha
direito a alimentos, faz cessar esse direito, como prescreve o an. 263.° do Código de Família.

A decisão que reconhecer a união de facto dissolvida por mone ou por rutura está sujeita a
registo, pois é constitutiva de relações jurídicas familiares, como expressamente estipula a
parte final do art. 126.° do Código de Família.

Ela deverá ser comunicada oficiosamente pelo tribunal à conservatória do registo civil da área
da última residência comum dos companheiros da união de facto, aplicando por remissão o
disposto no an. 120.° do Código de Família e o art. 101.° do Código do Registo Civil.

[113] Atendimento da união de facto que não preencha os pressupostos legais

O art. 113.°, n.° 2 refere-se à união de facto que não possa ser reconhecida por falta de
pressupostos legais, o que nos põe perante todas as situações que podem ocorrer em que
existe efetivamente a vida marital comum entre homem e mulher, mas ela não pode ser
subsumida à previsão legal do n.° 1 do mesmo artigo, por falta de qualquer dos requisitos
legais (tempo de duração, incapacidade matrimonial, singularidade).

Nesta situação estão todas as uniões de facto poligâmicas, ainda muito frequentes no país.

Fala-se aqui da « união defacto que não pode ser reconhecida » para a distinguir da união de
facto que pode ser reconhecida. Mas é preciso ter em conta que ela, em rigor, pode ser
reconhecida, não para produzir efeitos que na sua plenitude produz a união de facto (n.° 1 do
art. 113.°), mas apenas para produzir os efeitos restritos previstos na segunda parte do art.
113.°, n.° 2, e ainda o efeito presunção de paternidade do companheiro relativamente aos
filhos nascidos da união de facto (art. 168.°, alínea b) do Código de Família).

Com o propósito da proteção dos filhos nascidos ou concebidos na vigência da união de facto,
este art. 168.° estabelece a presunção legal de que os filhos nascidos da companheira são
filhos do homem com quem ela convive nessa união, mesmo que a união não esteja
reconhecida. Aos filhos nascidos destas uniões de facto estabelecidas entre os respetivos pais
atribui a lei esta presunção legal de paternidade, estando nesta situação a maior parte da
população no nosso país.

Interessa agora destrinçar as previsões especificadas no citado n.° 2 do art. 113.°, que devem
ser atendidas mesmo que a união de facto não preencha os pressupostos legais.

O enriquecimento ilícito, nos termos gerais da lei civil, corresponde ao enriquecimento sem
causa previsto nos artigos 479.° a 482.° do Código Civil.

A sua verificação depende das seguintes condições:

— condições de ordem económica:

1 — o enriquecimento do réu,
2 — o empobrecimento do autor;

— condições de ordem jurídica:

1 — nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento,

2 — ausência de causa,

3 — ausência de ação apropriada.

Na vigência da união de facto podem ocorrer circunstâncias em que se produza o


enriquecimento sem causa de um dos companheiros à custa do património ou das prestações
de serviços por parte do outro, feitos com propósito de vida em comum. Pode concretizar-se
em factos tais como liberalidades, consumo de bens ou mercadorias, prestação de serviços
domésticos ou de assistência, prestação de trabalho por conta do outro sem remuneração,
etc.

Há que averiguar se houve um enriquecimento não legitimado pelo direito por uma das partes
e um empobrecimento direto ou indireto pela outra parte.

Esse reconhecimento, para produzir efeitos inter-partes ou em relação aos herdeiros de um


dos companheiros, deverá ser sempre feito por via judicial e pode acontecer que só na fase de
julgamento o tribunal possa apreciar e decidir que os pressupostos de união de facto estão
preenchidos, para se pronunciar sobre qual a natureza da união de facto que se verificou no
caso concreto e daí retirar a conclusão sobre quais os efeitos legais que ela produz.

Na verdade, se faltar um dos pressupostos, a união de facto já não produz os efeitos da


dissolução do casamento por morte ou por divórcio, pois a situação vivida, dada a falta de
qualquer dos requisitos legais referidos (a estabilidade da união, a capacidade matrimonial de
qualquer dos companheiros ou a singularidade), impede que, mesmo a posteriori, ela seja
equiparada ao casamento.

No entanto, esses efeitos são sem dúvida relevantes na esfera de relações de natureza
patrimonial dos ex-companheiros da união de facto, pois reportam-se a três situações que são
em si distintas:

— ao enriquecimento sem causa;

— à partilha dos bens comuns;

— à atribuição do direito à residência comum.

Neste aspeto, os efeitos patrimoniais do atendimento da união de facto que não reúne os
pressupostos legais, podem, em essência, ser comparados aos que, nas demais legislações, são
hoje atribuídos às uniões de facto tidas como união livre ou concubinato.

Quem fez a prestação teve em vista a situação de convivência marital, pelo que o fim desta
retira à prestação feita o seu objeto mediato, devendo quem recebeu a prestação proceder à
sua restituição em espécie ou em valor equivalente.
Ao referir-se à partilha de bens comuns, a lei não está a equiparar os bens adquiridos durante
a união de facto aos bens comuns dos cônjuges casados sob o regime da comunhão de
adquiridos.

Neste tipo de união de facto o que existe entre os companheiros não é um regime matrimonial
de bens, mas antes uma sociedade de facto, como se entende predominantemente na
doutrina. Ao desenvolverem uma vida em comum sob o ponto de vista social, os
companheiros da união de facto desenvolvem também, na maioria dos casos, uma série de
relações de natureza patrimonial entre si e relativamente a terceiros.

São adquiridos bens com valores de ambos, são desenvolvidas atividades económicas com a
contribuição de ambos (em serviços ou em prestações pecuniá¬rias), e esta atuação pressupõe
o propósito de participar nos lucros respetivos.

Os patrimónios são na verdade dois, pois, neste caso, é como se entre os companheiros da
união de facto vigorasse o regime da separação de bens. Mas, dado o decurso da vida em
comum, esses patrimónios estão imbricados um no outro, pelo que, no momento em que a
união de facto vier a terminar, torna-se necessário operar a partilha dos bens.

Estamos, porém, perante uma partilha de cada um dos bens tidos em compropriedade e não
perante a partilha por meação dos bens comuns, como acontece aquando da dissolução do
casamento ou da união de facto reconhecida e que preenche os pressupostos legais.

Na falta de prova por documento escrito da titularidade dos bens a dividir, terá que ser feita
prova, por outra via legal, de que o bem em causa foi adquirido com a participação de ambos
os companheiros.

O ónus da prova recai sobre o autor do pedido.

Quanto à atribuição da residência familiar, também mencionada no citado artigo 113.°, n.° 2,
são de aplicar as mesmas regras que vêm previstas no art. 110.° do Código de Família e as
respeitantes à dissolução do casamento por divórcio. A finalidade da lei é a mesma:
salvaguardar o direito do cônjuge ou companheiro a quem deve ser atribuída a preferência
legal de continuar a residir na mesma casa onde o casal coabitou.

Relativamente a terceiros, a união de facto também produz efeitos patrimo¬niais, pois devem
entender-se de responsabilidade solidária as dívidas contraídas por qualquer dos
companheiros para satisfazer os encargos normais da vida familiar ou em proveito comum do
casal. Tem sido entendido que, com base na denominada teoria da aparência, o casal que, não
sendo casado, se comporta perante a sociedade como o se fosse, deve suportar os riscos de tal
comportamento e constituir-se devedor de forma solidária perante terceiros, como se se
tratasse de um casamento válido.

CAPÍTULO l8.°

A ADOÇÃO

[114] Evolução do instituto da adoção


O vínculo da adoção carateriza-se pela constituição de um vínculo idêntico ao da filiação entre
duas pessoas que não estão ligadas entre si por laços de filiação de sangue.

Há quem entenda que a adoção deve ser vista e definida tanto como o vínculo que estabelece
a filiação entre adotante e adotado como, simultaneamente, o instituto que opera a rutura do
vínculo da filiação biológica existente entre o adotado e a sua família natural.

A adoção visa, em essência, a substituição da família natural pela família adotiva.

O vínculo da adoção foi evoluindo através dos tempos quer quanto à forma como pode ser
constituída, quer quanto aos fins visados pela sua constituição. No direito romano, foi
largamente usada e podia ser constituída por contrato e por testamento ou por decreto da
cúria. Tinha como fim principal assegurar a sucessão do adotante pelo adotado.

Tal como os demais institutos jurídicos, a sua aceitação foi dependendo das conceções
religiosas e das opções políticas de determinado momento histórico. O predomínio do
cristianismo fez praticamente desaparecer a adoção durante a época medieval e até à
Revolução Francesa. Também o direito muçulmano a rejeita, por entender que ela contraria a
primazia que deve ser dada aos laços de sangue, embora aceite a instituição da «Kafala », que
lhe é afim e que consiste em colocar as crianças em lugares de guarda.

O Código Civil Napoleónico do princípio do século XIX reintroduziu a adoção, ainda que de
forma muito restrita. Entretanto, o primeiro Código Civil Português não permitiu a adoção,
pois se entendeu que ela estava «muitofora dos costumes do Reyno ».

Só com a entrada em vigor do atual Código Civil reapareceu o instituto da adoção, mas mesmo
assim com todo um apertado condicionalismo legal quanto

ao estado civil de casado dos adotantes, da duração do casamento, da não existência de filhos,
etc.. O Código Civil consagrava ainda a distinção entre adoção plena e adoção restrita, que é
uma forma de limitados efeitos legais.

Nas últimas décadas tem sido notória a evolução da adoção no sentido de ser ela usada tanto
no interesse dos adotantes de verem, por via dela, realizado o seu desejo de criar laços
idênticos aos da filiação em relação a um menor que biologicamente não é seu filho, como no
interesse do adotado, por lhe permitir encontrar uma família substituta que melhor assuma a
função própria da progenitura.

A adoção que integra em plenitude o adotado na família do adotante, é designada pela


doutrina como adoção legitimante.

No entanto, o princípio norteador de todo o instituto da adoção, quer nas convenções


internacionais quer nos sistemas jurídicos dos diversos países, é o de que o fim primordial da
adoção é o de proteger o «superior interesse da criança ».

A evolução vai no sentido não só de ter em conta o bem- estar da criança mas ainda a garantia
da defesa dos direitos da criança enquanto individualidade, princípio da dignidade da pessoa
humana®
Diferem as soluções consagradas quanto à autoridade competente para autorizar a adoção:
alguns estados permitem que seja tratada por autoridades administrativas, enquanto outros
estados, como o Estado angolano, conferem exclusiva competência à autoridade judicial.

Nos sistemas legais dos países socialistas foi dada grande amplitude à adoção, procurando-se
com ela obviar a situações dramáticas criadas pela guerra e pelas perturbações sociais vividas,
que resultaram na perda de inúmeras vidas humanas e no desagregar de grande número de
famílias.

Também nos países economicamente mais desenvolvidos a adoção foi objeto de nova
regulamentação legal que veio ampliar os seus efeitos jurídicos e simplificar os seus
condicionalismos.

Em regra, o processo de adoção é iniciado com um procedimento adminis¬trativo por parte


dos serviços de assistência social que preliminarmente fazem

uma entrega da criança aos futuros adotantes, denominado como procedimento pré-adotivo,
para ser avaliado o grau de adequabilidade destes à constituição do futuro vínculo de adoção.

O menor é confiado à pessoa ou ao casal selecionado para a adoção por um determinado


período, o que serve de teste ao êxito da adoção. Este sistema vem previsto no direito
português, espanhol e italiano.

No atual Código civil português a identidade do adotante em princípio, não pode ser revelada
aos pais biológicos do adotado, para impedir que estes venham posteriormente a intervir nas
relações entre adotante e adotado. Noutras legislações é a mãe biológica que proíbe que seja
revelada a sua identidade ocultando perante a sociedade o facto da sua maternidade.

O instituto da adoção, como os demais de direito de família, tem sido objeto de controvérsia,
dado o próprio desenvolvimento de questões trazidas da evolução da própria sociedade.

Assim, para dar solução jurídica à situação da «mãe portadora» ou «mãe de aluguer» de óvulo
fecundado originário de outra mulher e fecundado pelo marido desta, obrigando-se a mãe
substituta a desenvolver em si todo o processo de gestação do embrião e do feto até ao
momento do parto e consequente nascimento da criança, tem se vindo a entender que a
criança que nascer deverá ficar ligada à mulher dadora do óvulo mas que a não gerou, pelo
vínculo da adoção, renunciando a mãe portadora que suportou o período de gestação e o
parto, a quaisquer direitos como mãe biológica.

Tem sido objeto de acesa controvérsia a pretensão de casais de homossexuais de lhes ser
permitida a adoção de criança. Mesmo em países onde são reconhecidos já alguns direitos a
casais de homossexuais, designadamente o de contraírem casamento, é recusado o direito à
adoção pelos dois membros da união, por se entender ser tal adoção prejudicial ao equilíbrio
natural da criança que se confrontaria com a existência simultânea de dois pais ou duas mães.

[115] A realidade sociojurídica angolana


Angola é um exemplo significativo da repercussão de efeitos negativos das perdas sofridas
pelas lutas de libertação, pelo fenómeno da descolonização e pela contínua situação de guerra
que se lhe seguiu, sobre a situação familiar de milhares de crianças.

ao estado civil de casado dos adotantes, da duração do casamento, da não existência de filhos,
etc.. O Código Civil consagrava ainda a distinção entre adoção plena e adoção restrita, que é
uma forma de limitados efeitos legais.

Nas últimas décadas tem sido notória a evolução da adoção no sentido de ser ela usada tanto
no interesse dos adotantes de verem, por via dela, realizado o seu desejo de criar laços
idênticos aos da filiação em relação a um menor que biologicamente não é seu filho, como no
interesse do adotado, por lhe permitir encontrar uma família substituta que melhor assuma a
função própria da progenitura.

A adoção que integra em plenitude o adotado na família do adotante, é designada pela


doutrina como adoção legitimante.

No entanto, o princípio norteador de todo o instituto da adoção, quer nas convenções


internacionais quer nos sistemas jurídicos dos diversos países, é o de que o fim primordial da
adoção é o de proteger o «superior interesse da criança ».(1)

A evolução vai no sentido não só de ter em conta o bem- estar da criança mas ainda a garantia
da defesa dos direitos da criança enquanto individualidade, princípio da dignidade da pessoa
humana.®

Diferem as soluções consagradas quanto à autoridade competente para autorizar a adoção:


alguns estados permitem que seja tratada por autoridades administrativas, enquanto outros
estados, como o Estado angolano, conferem exclusiva competência à autoridade judicial.

Nos sistemas legais dos países socialistas foi dada grande amplitude à adoção, procurando-se
com ela obviar a situações dramáticas criadas pela guerra e pelas perturbações sociais vividas,
que resultaram na perda de inúmeras vidas humanas e no desagregar de grande número de
famílias.

Também nos países economicamente mais desenvolvidos a adoção foi objeto de nova
regulamentação legal que veio ampliar os seus efeitos jurídicos e simplificar os seus
condicionalismos.

Em regra, o processo de adoção é iniciado com um procedimento adminis¬trativo por parte


dos serviços de assistência social que preliminarmente fazem

Cláudia Lima Marques — «A Convenção da Haia de 1993 c o ECA representam uma nova visão
da adoção internacional, concentrada agora nos direitos humanos da criança, no seu bem
estar e no seu interesse superior. Supera-se, assim, a visão anterior, concentrada nos
interesses patrimoniais da família, no eventual direito de procriação dos pais adotivos e seus
interesses na continuação da família. A interpretação pós- -moderna do princípio do interesse
superior da criança hoje deve incluir a realização dos seus direitos fundamentais de identidade
cultural.» Estudos em homenagem à Prof.a Magalhães Colaço Vol. I, p. 281.
(2) Cláudia Lima Marques — idem, p. 281.

uma entrega da criança aos futuros adotantes, denominado como procedimento pré-adotivo,
para ser avaliado o grau de adequabilidade destes à constituição do futuro vínculo de adoção.

O menor é confiado à pessoa ou ao casal selecionado para a adoção por um determinado


período, o que serve de teste ao êxito da adoção. Este sistema vem previsto no direito
português, espanhol e italiano.

No atual Código civil português a identidade do adotante em princípio, não pode ser revelada
aos pais biológicos do adotado, para impedir que estes venham posteriormente a intervir nas
relações entre adotante e adotado. Noutras legislações é a mãe biológica que proíbe que seja
revelada a sua identidade ocultando perante a sociedade o facto da sua maternidade.

O instituto da adoção, como os demais de direito de família, tem sido objeto de controvérsia,
dado o próprio desenvolvimento de questões trazidas da evolução da própria sociedade.

Assim, para dar solução jurídica à situação da «mãe portadora» ou «mãe de aluguer» de óvulo
fecundado originário de outra mulher e fecundado pelo marido desta, obrigando-se a mãe
substituta a desenvolver em si todo o processo de gestação do embrião e do feto até ao
momento do pano e consequente nascimento da criança, tem se vindo a entender que a
criança que nascer deverá ficar ligada à mulher dadora do óvulo mas que a não gerou, pelo
vínculo da adoção, renunciando a mãe ponadora que suportou o período de gestação e o
parto, a quaisquer direitos como mãe biológica.

Tem sido objeto de acesa controvérsia a pretensão de casais de homossexuais de lhes ser
permitida a adoção de criança. Mesmo em países onde são reconhecidos já alguns direitos a
casais de homossexuais, designadamente o de contraírem casamento, é recusado o direito à
adoção pelos dois membros da união, por se entender ser tal adoção prejudicial ao equilíbrio
natural da criança que se confrontaria com a existência simultânea de dois pais ou duas mães.

[115] A realidade sociojurídica angolana

Angola é um exemplo significativo da repercussão de efeitos negativos das perdas sofridas


pelas lutas de libertação, pelo fenómeno da descolonização e pela contínua situação de guerra
que se lhe seguiu, sobre a situação familiar de milhares de crianças.

O número de menores cujos pais faleceram ou desaparecerem, ou que foram abandonados


pelos pais é, como todos sabemos, tremendamente elevado.

Tanto assim que já em 1980 se sentiu a urgente necessidade de alterar a lei e revogar o Código
Civil, que, em matéria de adoção, se não coadunava com as necessidades então vividas. Foi
portanto publicada a Lei n.° 7/80, de 27 de agosto (Lei da Adoção e Colocação de Menores),
que veio revogar os artigos 1973.° a 2002.° do Código Civil.

Tal como consta do respetivo preâmbulo, ela «procurou minorar os efeitos que, sobre a vida
de milhares de crianças do nosso País, tiveram as duas guerras de Libertação Nacional,
lançando-as à orfandade e ao abandono (...)». Ela visou ampliar o instituto da adoção por
forma a que este viesse a corresponder às novas condições sócio-familiares existentes,
simplificando o mecanismo processual, sem no entanto minimizar a importância da
intervenção judicial.

A Lei n.° 7/80 foi revogada pelo art. 10.°, alínea g) da Lei n.° 1/88 na parte respeitante à adoção
(que constava dos seus Capítulos I e II ), embora, no fundamental, esta lei passasse a estar
integrada no novo Código de Família. E a Lei n.° 19/96 de 19 de abril, no seu art. 28.° revogou o
Capítulo III da Lei n.° 7/80, pelo que esta lei se encontra totalmente revogada.

Importa realçar que o vínculo da adoção veio a aprofundar-se grandemente na lei atual, pois
logo no art. 8.° do Código de Família se equiparou o parentesco por laços de sangue ao
parentesco por adoção.

Ora, conhecida a extrema relevância que o parentesco por laços de sangue assume na família
tradicional angolana, pode aferir-se por aí o que significou esta equiparação.

Não tem sido grande, no nosso país, a expansão do instituto da adoção.

A sociedade tradicional angolana não desconhece o instituto da adoção, ainda que ele seja
pouco praticado. A adoção está condicionada à aprovação pela família do adotante ao ato da
adoção. Mas, uma vez obtido o consentimento e efetuada a adoção, o adotado passa a ficar
integrado como membro da família para todos os efeitos. A escassez de casos de adoção
levados às instâncias judiciais pode, a nosso ver, ter diversas justificações.

Em primeiro lugar, o facto de o próprio conceito de «filho» ter, na família tradicional, um


âmbito mais alargado do que no direito positivo. É chamado e considerado como filho, o filho
do irmão ou irmã inserido na família biológica,

como se fosse o herdeiro direto.

Ocorre com frequência que, quando morre o verdadeiro pai ou a verdadeira mãe, é o tio ou o
irmão mais velho ou a tia ou a irmã mais velha, respetivamente, que assumem o papel do
progenitor. De toda a sorte, é a própria estrutura da

família extensa que se encarrega de preencher o vazio criado e de trazer para o lugar de
«filho» quem necessita de proteção, sem necessidade de se ir para além do círculo familiar
buscar um menor para ser adotado.

Prevalece também a «adoção de facto» operada à margem de intervenção dos tribunais, tal
como em outras instituições do direito de família, o que é o produto de vivência do próprio
meio social, onde é escasso o acesso à documentação formal e à assistência jurídica, seja por
razões de índole cultural, seja por razões económicas.

Sem embargo deste circunstancialismo, a adoção tem, do ponto de vista sociológico, um


grande alcance na ordem jurídica angolana, pois ela pode ser usada como a via mais adequada
para integrar em novas famílias as crianças vítimas de situação de guerra cujos pais
desapareceram, assimilando-as aos filhos naturais e permitindo aos adotantes estabelecer
vínculo de filiação voluntariamente escolhido, seja por falta de descendência, por especial
afeição por uma criança, ou para estabelecer nova relação com filho do outro cônjuge, ou
outra razão válida.
As formas mais comuns usadas para de forma fraudulenta substituir o instituto da adoção são:

— o envio de crianças para o exterior do País, subtraindo-as à proteção do Estado de


origem;

— o agenciamento criminoso de crianças para a adoção, através de compensação


financeira;

— o falso registo de nascimento com declaração de filiação feita pelo adotante.

A adoção está consagrada, pela primeira vez, em diploma constitucional, no âmbito das
normas protetoras da criança, pois a recente Constituição dispõe no seu art. 80.° (Infância), n.°
4: «O Estado regula a adoção de crianças, promovendo a sua integração em ambiente familiar
sadio e velando pelo seu desenvolvimento integral.»

[116] Conteúdo legal da adoção

O art. 197.° do Código de Família define a adoção dizendo que ela constitui entre adotado e
adotante vínculo de parentesco igual ao que liga osfilhos aos pais naturais.

Afastou-se assim o conceito de adoção plena e adoção restrita que é aceite noutros
ordenamentos jurídicos. Uma vez constituída a adoção, os respetivos efeitos produzem-se na
sua totalidade entre adotante e adotado.

O vínculo da adoção, pela importância dos efeitos que dele derivam, está dependente da
observância de apertados requisitos legais e tem que ser

obrigatoriamente constituído por via da intervenção do tribunal, através do ato

jurídico solene de uma sentença.

O art. 212.°, n.° 1 estatui que a adoção é constituída por sentença judicial proferida em
processo de jurisdição voluntária. A sentença tem pois efeito constitutivo A constituição da
adoção só produz efeitos a partir do trânsito em julgado da sentença e não produz efeitos
retroativos, ou seja, só produz efeitos ex nunc.

Para proteger os interesses em jogo (em primeiro lugar, o interesse da criança, mas também o
dos próprios adotantes, bem como os da família natural), é através da via judicial firmada na
lei que a adoção pode validamente surgir. Entende-se assim que é um ato de concessão
judicial. Não é possível, pois, a constituição da adoção por via contratual ou por testamento.

Uma vez constituído o status do adotado e integrado este na nova família adotiva, a adoção
tão pouco pode ser revogada por vontade das partes, conforme preceitua o art. 211.° do
Código de Família. A irrevogabilidade da adoção permanece mesmo que se alterem as
condições familiares do adotante, como seja a da superveniência de filhos.

a) Requisitos legais do adotante

É exigido na lei com rigor que, em relação ao adotante ou adotantes, se verifiquem


determinados requisitos subjetivos que demonstrem a sua idoneidade para exercer as
atribuições legais que a lei lhes confere, substituindo o progenitor natural. Ao adotado, como é
óbvio, nenhuma condição é exigida para lhe serem atribuidos todos os direitos e deveres
paternais por parte dos adotantes.

Mas a criação artificial de um vínculo tão importante como o da filiação faz exigir toda a
cautela na verificação das condições legais na pessoa do adotante.

Sob o aspeto da pessoa do adotante em si, a capacidade para o investimento na nova situação
jurídica vem definida no art. 199.°, n.° 1 do Código de Família, exigindo a lei que o adotante
tenha mais de 25 anos e esteja no pleno gozo dos direitos civis, tenha idoneidade moral e bom
comportamento social, especialmente nas relações familiares, e capacidade económica para
prover o sustento e educação do adotado.

Exige ainda a lei que o adotante tenha saúde mental e física, procurando desta forma que o
adotante possa vir a cumprir o elevado encargo da criação c educação do filho adotivo e que
seja pessoa mentalmente sã, no pleno gozo das suas faculdades mentais.

A diferença de idade entre adotante e adotado tem que ser, pelo menos, de 16 anos, o que
implica que entre os dois tem que haver o espaço considerado mínimo para uma geração. Ao
contrário de alguns sistemas jurídicos, não há limites de idade a partir dos quais seja vedada a
adoção.

Permite a lei que sejam afastados os requisitos das alíneas c) e e) do art. 199.°, que respeitam
à capacidade económica e à diferença de idade, quando a adoção disser respeito ao filho do
cônjuge ou do companheiro de união de facto.

Em relação aos adotantes, a lei impõe ainda condições legais que respeitam ao seu estado civil
e à sua efetiva situação matrimonial e de união de facto reconhecível.

Desta forma, para a adoção dupla, que é obrigatoriamente constituída, simultaneamente,


pelos dois cônjuges ou pelos dois companheiros de união de facto, o art. 205.°, alínea a) do
Código de Família impõe que:

— os cônjuges não podem estar separados de facto;

— os companheiros da união de facto têm de viver em situação que preencha os


pressupostos legais para o reconhecimento.

A razão de ser destas condições está no facto de o legislador querer que o adotado possa ser
recebido na nova família por um casal nas condições de facto e de direito que permitam a
ambos assumir o papel de verdadeiros pais, convergindo as vontades de adotantes e adotado
para a constituição do novo vínculo. Pretende-se seguir o modelo da família biológica e que o
casal dos adotantes dê garantias de estabilidade, representando um lar acolhedor, com
comunhão material e espiritual.

A lei permite também a adoção unipessoal, que como a expressão indica, é feita por uma só
pessoa em duas situações distintas — art. 205.°, alíneas b) e c):

— quando se trate de filho do cônjuge ou do companheiro da união de facto;


— quando for feita por pessoa não casada.

No primeiro caso, a adoção é feita no interesse do estreitamento da família nuclear,


permitindo que se estabeleça o vínculo de filiação entre o cônjuge ou companheiro de união
de facto e aquele menor que é filho do outro membro do casal. No segundo caso, tem que se
tratar de pessoa só, solteira, viúva ou divorciada, que não viva em união de facto, e que, para
constituir com o adotado uma família monoparental, demonstre vontade e disposição afetiva,
além dos demais requisitos legais, de vir a substituir a progenitura do menor.

Embora a nossa lei não o proíba, omitindo a referência a essa questão, entendemos que não
deve ser permitida a adoção entre parentes por laços de sangue, pelo menos nos casos em
que a proximidade de parentesco é, por força da lei, impedimento matrimonial.(5) De outra
forma, ir-se-ia constituir um vínculo de filiação adotiva onde a lei quer afastar a possibilidade
de um vínculo de filiação natural.

b) Requisitos legais do adotado

Por parte do adotado, a lei exige apenas que o adotado seja menor, de acordo com o art.
200.°, o adotado deve ter menos de 18 anos de idade. O estado de adoptabilidade refere-se
obrigatoriamente a uma idade inferior a 18 anos.

No entanto entendemos que esse requisito de adoptabilidade tem que se referir à data da
propositura da ação e não da prolação da sentença constitutiva do vínculo.

Não prevê a lei qualquer condição de ordem física, psíquica, económica ou outra, em relação
ao adotando.

A lei tão-pouco exige que se verifique qualquer período obrigatório de convivência entre
adotante e adotado antes do estabelecimento do vínculo, muito embora, na realidade, quase
sempre tal ocorra, pois em regra a entrega da criança é feita por entidade da assistência social
ou foi processada sem formalismo decorrendo de circunstâncias factuais.

[117] Consentimento à adoção

A vontade de adotar por parte do adotante manifesta-se pela própria propositura da ação
respetiva mas ela tem que ser complementada pela manifestação de vontade dos
representantes legais do adotado, ou na sua falta pelos parentes próximos e por ele próprio se
já tiver completado 10 anos de idade.

Uma vez que, como veremos, a constituição do vínculo da adoção vai pôr fim às relações
familiares entre o adotado e os seus pais e parentes naturais, não é necessário enfatizar a
relevância que advém para a situação do menor em relação

à sua família natural. Daí a necessidade da prestação do consentimento livre e consciente por
parte de quem por lei, o deve outorgar.

Quando a lei impõe a existência do consentimento à adoção, este é um requisito indispensável


à validade do ato jurídico.

a) Dispensa de consentimento
A lei prescinde do consentimento por parte dos progenitores e outros parentes, nos seguintes
casos taxativos: «Do menor em situação de abandono, tal como vem definido no n.° 2 do art.
200.0 do Código de Família, isto é, aquele em relação ao qual os pais e outros parentes se
tenham manifestamente desinteressado do exercício dos seus deveres por período superior a
um ano.»

O abandono pode ocorrer por os pais não terem estabelecido, desde o nascimento do filho, o
vínculo de filiação, nem tão-pouco a posse de estado de filho. É necessário que o complexo de
deveres dos pais, como a guarda, a vigilância, e a criação e educação do filho, não esteja a ser
exercido. Pode também ocorrer que, embora de início os pais tenham exercido os seus
deveres, cessem de o fazer a partir de determinado momento, deixando de prestar assistência
material e moral ao filho.

O conceito de abandono envolve a falta de assistência moral e material tanto por parte dos
progenitores do menor como dos demais parentes que integram a denominada «família
parental».

O abandono concretiza-se quando todos os deveres que englobam o conceito de autoridade


paternal deixam de ser, ou nunca foram exercidos, pelo respetivo titular, evidenciando um
corte no relacionamento familiar. Pelas consequências legais de tal comportamento, que vêm
expressas tanto no instituto da adoção como no da tutela, o abandono tem que ser declarado
por decisão judicial.

Ele é diferente do conceito de negligência que envolve um comportamento insuficiente,


nocivo ou errado do progenitor em relação aos seus deveres para com o filho.

A situação de abandono ocorre por omissão dos responsáveis no exercício da autoridade


paternal em assumirem os seus deveres paternais em relação ao menor, omissão que se
verifica também por parte dos demais parentes.í6)

Não se pode considerar como verificada a situação de abandono se ela derivar de


circunstâncias de força maior, como a situação de guerra que se viveu no País. O abandono
tem que resultar de conduta voluntária dolosa ou meramente negligente, por parte daqueles a
quem a lei incumbe dos deveres de guarda,

(6) Paola Accuosto L’ adozine — Na legislação italiana esse dever vai até aos parentes no

4.° grau, p. 395 — Diritto de Famiglia. IPSOA, 1996.

vigilância e assistência ao menor, e que são os pais e outros familiares próximos do menor. Os
casos de força maior impeditivos do exercício da autoridade paternal têm que se revestir de
natureza temporária e devidamente sanados quando as condições de vida regressem à
normalidade.

O abandono há de resultar objetivamente de não haver quem preste ao menor o tratamento


previsto na lei.

O abandono é uma situação de facto cuja verificação tem que ser declarada pelo tribunal de
acordo com o caso concreto sob apreciação.
Declarado o menor em situação de abandono, a lei prescinde do consentimento por parte
quer dos progenitores quer de outros parentes do menor — art. 200.°, n.° 1, alínea b) do
Código de Família.

Quando o menor está em situação de abandono, a lei prevê que sobre ele seja instituída a
tutela. Se não for possível a nomeação de tutor, como adiante veremos, o menor será
declarado abandonado e deverá ser entregue a um estabelecimento de assistência.

2. Do menor filho de pais desconhecidos

Se ambos os pais forem desconhecidos por não estar estabelecida a filiação, também não há
que obter o consentimento à adoção.

a) Adoção por consentimento dos pais

A lei permite que se proceda à adoção de menor cujos pais deem o seu consentimento à
adoção. O consentimento tem que ser dado pelo progenitor de forma pessoal e direta, com
consciência e vontade livre de coação e esclarecida — art. 201.° do Código de Família.

O consentimento pode ser prestado pelo progenitor perante o tribunal ou por meio de
documento autêntico em que se identifique a pessoa do adotante, como prescreve o art. 213.°
do citado Código.

O consentimento do progenitor é condição sine cjua non da viabilidade do pedido de adoção e


o tribunal não pode prescindir dele.

É que o consentimento significa a renúncia à situação legal relativa ao estado civil de pai ou de
mãe, pelo que tal declaração de vontade tem que ser recebida com as devidas garantias pelo
tribunal.

O consentimento dos pais não pode ser, pois, dispensado nem suprido pelo tribunal.

b) Consentimento do menor

A lei exige que o menor que tenha completado 10 anos de idade, mesmo que tal ocorra depois
de ter sido proposta a ação, preste o seu consentimento à adoção — art. 203.° do Código de
Família. Este consentimento é igualmente imprescindível à validade do ato e deve ser prestado
pessoalmente pelo menor, depois de devidamente elucidado pelo tribunal do alcance do ato
jurídico da adoção e suas consequências na sua vida familiar.

c) Consentimento por outros parentes

Se faltarem ambos os pais, por falecimento, ausência ou incapacidade, prevê o art. 214.° do
Código de Família que o consentimento à adoção seja dado perante o tribunal por outros
parentes do menor, indicando, por ordem de preferência, os avós, os irmãos maiores e os tios.

Em igualdade de circunstâncias, indica a lei que terá preferência o parente que tiver o menor a
seu cargo. Se estiver instituída a tutela deverá ser o tutor a prestar o consentimento. No caso
do menor estar a cargo de pessoa que não seja parente, entendemos que embora a lei não o
preveja expressamente, deverá ela ser igualmente ouvida.
Nestes casos poderá, porém, o Juiz prescindir da prestação de consentimento dos parentes do
menor quando se verifique a previsão estabelecida no n.° 2 do art. 214.°.

a) quando o considerar conveniente para o menor;

b) quando se verifique grande dificuldade na sua obtenção.

No primeiro caso, o Juiz deve decidir segundo o seu prudente arbítrio, justificando
devidamente os fundamentos de facto que o levam a prescindir do consentimento dos
parentes do menor a adotar.

No segundo caso, a decisão tomada deve igualmente estar radicada nas circunstâncias
concretas que impossibilitem o chamamento a juízo dos parentes do menor, seja por se
desconhecer o seu paradeiro, seja por se encontrarem fora do país, etc. Quando tal ocorrer,
incumbe ao tribunal explicitar por que razão foi dispensado o consentimento dos parentes do
menor.

[118] Autorização da adoção internacional

O Código de Família veio acrescentar um importante condicionalismo legal à adoção, impondo


a intervenção do órgão político máximo, a Assembleia do

Povo, hoje Assembleia Nacional, no processo de adoção quando o adotante seja cidadão
estrangeiro.

O art. 204.° impõe que exista prévia autorização da Assembleia do Povo antes da constituição
do vínculo de adoção de um menor de nacionalidade angolana por parte de um cidadão de
outro país.

Esta norma tem uma dupla finalidade.

Em primeiro lugar, procura proteger o menor que por via da adoção, pode vir a perder a sua
nacionalidade de origem, por passar a ter a nacionalidade do adotante.

A Lei n.° 1/05 de 1 de julho (Lei da Nacionalidade) no seu art. 15.°, n.° 1, alínea d), prevê a
perda da nacionalidade angolana, estabelecendo: «os adotados por cidadãos estrangeiros se,
ao atingirem a maioridade, manifestarem a pretensão de não ser angolanos.»

O objetivo desta disposição legal era ainda o de proteger o menor na medida em que
constituiria um entrave ao tráfico internacional de crianças dos países menos desenvolvidos
para os países mais ricos através de processos menos escrupulosos.

Como se sabe, as taxas demográficas evidenciam que os países mais desenvolvi¬dos


apresentam um fraco (nulo ou mesmo negativo) crescimento da população, havendo portanto
menos crianças em condições de serem adotadas.

Estamos convitos de que em Angola a saída ilegal de menores (sem adequada proteção
familiar e social) para fora do País constitui uma ameaça maior do que a possibilidade de eles
virem a ser adotados por cidadãos estrangeiros, por via de um procedimento legal.
Dado o acréscimo de responsabilidades atribuídas à Assembleia Nacional e o facto de Angola
ter aderido a importantes instrumentos internacionais, entendemos ser injustificada esta
imposição legal que tem vindo a redundar no retardamento do processo de adoção.

No direito brasileiro, no ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) são estabelecidas normas


específicas para a adoção de criança brasileira por adotante estrangeiro ou domiciliado fora do
país, que envolvem a certificação de que está habilitado à adoção e de que tem condições
psicossociais para a efetuar.

Aliás, é de ter em conta que Angola por Resolução n.° 22/02 de 13 de agosto, da Assembleia
Nacional, aderiu ao Protocolo Facultativo à Convenção dos Direitos da Criança relativo à Venda
de Crianças, Prostituição e Pornografia Infantis, que no seu art. 3.° manda punir criminalmente
«ii — a indução do consentimento de forma indevida, como intermediário para a adoção duma
criança (...)» e que impõe o seguinte: «5 — Devendo os Estados Partes garantir que todas as
pessoas

envolvidas na adoção duma criança atuam em conformidade com os instrumentos jurídicos


internacionais aplicáveis.»

Na definição de tráfico deve entender-se: «tratar-se uma criança como se um objeto fosse,
objeto para ganhar dinheiro, para obterfavores, viagens, presentes, doações, status e não ver
a criança e o seu bem-estar como o fim da adoção mas como um meio para alguma vantagem
individual, do grupo ou do país.»

Como a Convenção da Haia, relativa à Proteção e a Cooperação em Matéria de Adoção


Internacional, de maio de 1993, faz parte do direito interno angolano pela Resolução n.° 54/12
da Assembleia Nacional, como referimos, e será necessário proceder à adaptação das normas
legais a esta importante Convenção Internacional.

Ela permite à criança nacional de um estado encontrar noutro estado estrangeiro uma nova
família em que se integre plenamente, tendo em conta o interesse superior da criança e a
defesa dos seus direitos fundamentais, obstando a que seja objeto de rapto, venda ou tráfico
ilícito.

Na fase preliminar do processo de adoção, terá que se averiguar que não há possibilidade de
colocação da criança no Estado de origem.

É indispensável que haja consentimento livre e devidamente aconselhado por parte das
pessoas que o devam prestar e que não houve pagamentos indevidos.

Deve ainda ser certificado que os pais adotivos estrangeiros estão nas condições legais para
proceder a adoção e que a criança adotada terá autorização para rescidir com permanência
nesse Estado.

O art. 4.° Impõe regras para a prestação do consentimento à adoção por parte das pessoas e
instituições que devem prestá-lo, bem como do consentimento da criança, enfatizando na
alínea d) a necessidade de que «o consentimento não tenha sido obtido mediante pagamento
ou compensação de qualquer espécie».
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, no seu art. 21.° dispõe que a
adoção deve ser «a) (...) autorizada pelas autoridades competentes (...) e que as pessoas
interessadas tenham dado, com conhecimento de causa, o seu consentimento; d) (...) garantir
que em caso de adoção em outro país a colocação não permita benefíciosfinanceiros indevidos
a terceiros que nela intervenham.»

É fundamental em todo o tipo de consentimento à adoção, obviar que ele seja prestado sob
coação ou com contrapartidas financeiras para os intermediários,ou para aquele que presta o
consentimento.

[119] Tipos legais de adoção

Tomando como referência a forma simultânea ou individual como é operada a adoção, a lei
prevê dois tipos de adoção:

— adoção dupla

— adoção unipessoal

O primeiro tipo de adoção surge quando são dois os adotantes que, de forma simultânea e
concertada, vão adotar o mesmo menor.

A adoção dupla exige, como já atrás referimos, que os adotantes estejam no estado civil de
casados e que não estejam separados de facto, ou que vivam em união de facto e que esta
reuna os pressupostos legais de reconhecimento.

Neste tipo de adoção, exige a lei que o pedido de adoção seja feito em conjunto e que os dois
adotantes preencham; cada um deles, os requisitos subjetivos que são impostos no art. 199.°
do Código de Família.

A adoção unipessoal é efetuado por um único adotante, mas pode configurar duas situações
inteiramente distintas.

No primeiro caso a adoção unipessoal é efetuada por um só cônjuge ou um só companheiro da


união de facto e terá que incidir obrigatoriamente sobre menor que seja filho do outro cônjuge
ou companheiro da união de facto.

Neste sub-tipo da adoção unipessoal, a lei só exige que o adotante reuna os requisitos das
alíneas a), b) e d) do n.° 1 do art. 199.°, prescindindo das alíneas c) e e) que se referem à
capacidade económica e à diferença de idade entre adotante e adotado, como adianta o n.° 2
desse artigo. Manteve-se tão só a exigência da idade mínima de 25 anos e da capacidade civil,
as condições de idoneidade moral e saúde mental e física.

Este tipo de adoção procura harmonizar a situação do agregado familiar, colocando no lugar
do progenitor natural ausente, o cônjuge ou companheiro do progenitor com quem o menor
coabite.

No outro sub-tipo de adoção unipessoal, o adotante é uma pessoa só que esteja na condição
de não casada, segundo o modelo da família monoparental e pode incidir sobre qualquer
menor que esteja em condições legais de ser adotado.
[120] Efeitos legais da adoção

Como inicialmente mencionámos, a constituição da adoção assimila o menor adotado ao filho


natural e biológico e dela decorre a plenitude de efeitos da própria filiação natural. O art.
198.°, n.° 1 do Código de Família estatui claramente que os

direitos e deveres recíprocos entre adotante e adotado são os mesmos que existem entre pais
e filhos.

Por via da constituição do vínculo de adoção é estabelecida entre adotante e adotado uma
situação inteiramente similar à que une um progenitor ao seu filho natural, sem qualquer tipo
de discriminação em relação ao filho natural.

O adotado passa a estar integrado na família do adotante na qualidade de filho e são cortados
os laços de filiação e parentesco com a família natural.

De sublinhar, como vimos, que à luz do Código de Família os efeitos são sempre plenos em
relação quer ao adotante quer ao adotado, só variando, no caso da adoção do filho do cônjuge
ou do companheiro de união de facto. Em que são preservados os direitos do outro progenitor
que não for substituído.

Consequentemente, podem-se estabelecer os seguintes efeitos da adoção:

a) Em relação ao adotante

No caso da adoção dupla, os adotantes exercem a autoridade paternal de pleno, como se


fossem os pais naturais.

Quando se tratar de adoção unipessoal de filho do cônjuge ou do companheiro de união de


facto, a autoridade paternal é exercida em conjunto com este.

Quando se trate de adoção unipessoal feita por pessoa não casada, a autoridade paternal será
exercida em exclusivo pelo adotante. É o que dispõe o art. 207.°, n.° 1 do Código de Família.

Os adotantes têm o direito de transmitir o seu apelido ao adotado e, embora a lei o não diga
expressamente, o direito de escolher o nome próprio do adotado, caso o tribunal tal venha a
autorizar, se considerar que é do interesse do menor.

Existe obrigação de alimentos por parte dos adotantes, como estabelece o art. 249.°, n.° 1 do
Código de Família. Sob o ponto de vista do direito sucessório, o adotante é sucessível do
adotado como seu ascendente.

Os vínculos do parentesco e afinidade por adoção constituem impedimento matrimonial tal


como o de filiação natural.

O vínculo da adoção é extensivo à família do adotante, que integra o adotado como seu novo
membro, passando a ter com ele os mesmos laços de parentesco c afinidade que teria com um
filho natural do adotante — art. 198.°, n.°2.

b) Em relação ao adotado
Os direitos e deveres paterno-filiais são de natureza recíproca: o que se disse quanto aos
efeitos que se produzem ao relação aos adotantes, aplica-se, em sentido inverso, ao adotado.

Este é assimilado ao filho natural, usufruindo dos mesmos direitos e deveres, e tem obrigação
de alimentos em relação ao adotante como os demais descendentes — art. 249.°, n.° 2, alínea
b). Por outro lado, passa a ser herdeiro sucessível do adotante e demais parentes deste, na
classe dos descendentes.

Por sua vez, os descendentes do adotado passam a estar integrados na família do adotante,
como estabelece o art. 198.° n.° 2 do Código de Família.

O adotado passa a usar, por direito próprio, o apelido do adotante ou adotantes, consoante se
trata de adoção unipessoal ou de adoção dupla (art. 208.° do Código de Família).

Da constituição do vínculo da adoção pode ainda derivar o facto constante do art. 209.° do
Código de Família, que prevê seja lavrado um novo assento de nascimento do adotado,
permitindo que esse novo assento substitua o anterior por completo, passando o adotante ou
adotantes a figurar como pai ou mãe do adotado.

É desta forma tornado oculto o anterior registo referente à filiação biológica do adotado.

O tribunal deve ter em conta as circunstâncias específicas do caso concreto e, se entender ser
assim mais benéfico para o menor e desde que os interessados o venham pedir, pode autorizar
a substituição do assento de nascimento.

Se tal acontecer, o registo anterior passará a ser considerado secreto para os efeitos da lei. Isto
significa que dele não poderá ser dado conhecimento público, tal como acontece com os
demais atos do registo civil, sem autorização expressa da autoridade pública que superintende
no registo ou por ordem judicial.

A violação deste dever acarreta responsabilidade criminal e civil para o autor da conduta ilícita.

c) Direito do adotado à identidade

Tem sido discutido se é ou não de permitir ao adotado ter conhecimento da sua situação de
filho adotivo, tendo predominado a posição dos que defendem que será melhor para o menor,
desconhecer que não é filho natural do adotante ou adotantes.

A questão só se põe se o menor for adotado pouco depois do seu nascimento ou ainda de
tenra idade, de forma a que não possa manter a recordação dos seus progenitores ou parentes
naturais.

Receia-se que o conhecimento do facto da falta do vínculo de sangue, possa criar ao adotado
problemas de identidade e prejudicar o seu relacionamento afetivo com os seus pais adotivos,
procurando deste modo protegê-los contra essas eventualidades.

Mas em certos sistemas jurídicos procede-se diferentemente e permite-se ao adotado, depois


de atingir a maioridade, o acesso pleno ao seu registo civil e a ter conhecimento de todos os
factos deste constantes. Hoje surge a posição de que o direito ao conhecimento da própria
origem e identidade deve prevalecer.
Aliás, é garantido à criança, no art. 8.° da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da
Criança, «o direito a preservar a sua identidade, incluindo a nacionalidade, o nome e as
relaçõesfamiliares».

O direito à identidade é atualmente considerado como um direito fundamental da pessoa


humana. Operada a adoção, embora se extingam os vínculos legais com a família natural, o
adotado, se o desejar, deverá ter acesso a esses elementos identificadores da sua pessoa e
origem familiar e nacional.

d) Em relação à família natural

Em relação à família natural, a adoção vai produzir a extinção do vínculo.

O art. 206.° do Código de Família menciona que adoção dupla faz extinguir os laços de
parentesco entre o adotado e os seus parentes naturais. Os efeitos da extinção do vínculo que
liga o adotado à família natural também se produzem na adoção unipessoal, mas essa extinção
só se verifica em relação ao progenitor que for substituído e respetiva família natural — art.
207.°, n.° 1 do Código de Família.

O n.° 2 deste art. 207.° teve o cuidado de ressalvar que se mantêm as relações de parentesco
entre o adotado e o pai ou mãe natural que não for substituído pelo adotante.

O único efeito que se mantém relativamente à família natural é o de o paren¬tesco continuar a


constituir impedimento matrimonial.

Outro importante efeito decorrente da adoção é o de impedir que o progenitor natural possa
vir venha a fazer declaração de filiação em relação ao adotado.

Uma vez constituído o vínculo de filiação adotiva entre adotante e adotado, filho de pai ou pais
desconhecidos, estes não podem depois vir reivindicar os seus direitos paternais,
estabelecendo por meio de declaração a paternidade ou a maternidade — art. 202.°.

Embora a lei não o diga expressamente, e por maioria de razão, não é permitida a propositura
da ação para o estabelecimento judicial da filiação.

O processo de adoção segue as formalidades e a tramitação descritas nos art. 212.° e ss. do
Código de Família que, nesta parte, veio completar o disposto nos art. 84.° e ss. do Decreto n.°
417/71. Visa-se acautelar a observância da lei, para assim proteger os importantes interesses
familiares que estão em jogo.

O art. 212.° mantém, nos seus n.°s 1,2, e 3, o que já constava do art. 84.° e ss. do Decreto n.°
417/71, pois o processo a usar é o de jurisdição voluntária, na medida em que ao juiz são
dados poderes para orientar o processo no sentido da obtenção de toda a verdade material.

Consoante os casos, o processo da adoção tem de ser proposto simultaneamente pelos dois
adotantes, no caso de adoção dupla, ou por um só adotante, no caso da adoção unipessoal.

No caso da adoção dupla estamos perante um caso de litisconsórcio necessário ativo em que a
legitimidade para a ação tem que ser assegurada pela intervenção conjunta de ambos os
adotantes — art. 28.°, n.° 1 do Código do Processo Civil.
O inquérito judicial é um elemento indispensável à decisão a proferir pelo juiz, tanto mais que
a lei não prevê que haja um período de experiência de vivência anterior.

O inquérito deve incidir sobre:

— os pressupostos de facto que integram os requisitos previstos nas alíneas b), c) e d) do


art. 199.° do Código de Família e que dizem respeito aos adotantes;

— os pressupostos de facto relativos à situação pessoal e familiar do adotado, incluindo,


se possível, informação sobre o seu estado de saúde, desenvolvimento físico e psíquico,
eventuais inabilitações, caraterísticas familiares quanto à identidade e número de irmãos,
terra de origem, integração religiosa, etc..

No entanto, a sentença que for proferida é de natureza contenciosa e não graciosa, pois é
constitutiva de um novo direito e só poderá ser alterada nos casos específicos previstos na lei.

Duas importantes alterações contém o art. 212.°. Uma é a do n.° 4, que manda que a sentença
descreva pormenorizadamente os factos e circunstâncias em que se fundamenta e que
especifique os motivos que determinam a constituição da adoção.

Deve ter-se em atenção o n.° 5 deste art. 212.°, que torna obrigatório que, no caso de adoção
de menor abandonado, a sentença declare verificada a situação de abandono.

A declaração dc abandono torna dispensável o consentimento dos pais ou outros parentes do


menor, mas, pelas consequências que daí advêm na decisão, há que precisar com maior rigor,
sob pena de nulidade, que o menor se encontra abandonado.

Em muitos sistemas jurídicos existe um procedimento prévio à adoção, que se destina


precisamente à obtenção da declaração judicial do abandono, em que são chamados a intervir
os progenitores e parentes do menor, se forem conhecidos e se for conhecido o seu paradeiro.

O Código de Família optou por uma solução mais simplificada, permitindo que a questão do
abandono do menor seja suscitada na própria ação da adoção, devendo o juiz da causa
averiguá-la cuidadosamente. Só havendo tal declaração nos próprios autos, o tribunal pode
prescindir do consentimento.

Quando o menor não for declarado abandonado, o processo terá que prosseguir com a
intervenção dos progenitores, e, na falta destes, dos demais parentes, para virem aos autos
prestar, ou não, o seu consentimento.

O consentimento, como referimos, deve ser prestado pessoalmente perante o tribunal ou por
meio de documento autêntico em que se identifique a pessoa do adotante (art. 213.° do
Código de Família), só sendo permitido o consentimento prestado por meio de documento, no
caso do interessado não residir na área jurisdição do tribunal para aí prestar o consentimento.

Terá que ser uma declaração de vontade livre e consciente prestada por quem tenha
legitimidade para tal, e que deverá ser emitida depois de o declarante ter sido devidamente
esclarecido pelo Juiz dos efeitos legais da sua declaração.
O Conselho de Família poderá ser chamado a intervir, de forma facultativa, quando o tribunal
considere tal conveniente, tendo em vista a salvaguarda do interesse do menor — art. 215.° do
Código de Família.

Transitada em julgado a sentença constitutiva da adoção, ela está obrigatoriamente sujeita a


registo, pois envolve a alteração do estado familiar do adotante e do adotado — art. l.°, alínea
c) do Código do Registo Civil.

[122] Revisão da sentença de adoção

Como já vimos, uma vez constituída a adoção, ela não pode ser revogada por vontade das
partes, ou seja: por mero acordo entre adotante e adotado não pode ser anulado o vínculo de
filiação adotiva.

Não obstante, a lei permite que, por duas vias, possa vir a ser declarado sem efeito esse
vínculo: ou pela revisão da sentença da adoção, nos casos em que o vício tenha ocorrido no
próprio ato de constituição de adoção, ou pela sua revogação,

quando factos posteriores justifiquem, pela sua gravidade, que o vínculo, válido na sua
constituição, deve deixar de subsistir.

Tanto a revisão como a revogação da adoção têm que ser operadas por meio de sentença
judicial, proferida em processo próprio. Têm legitimidade para propor a ação de revisão de
sentença de adoção o adotante, no caso de haver erro essencial quanto à pessoa do adotado,
bem como quando aquele que devia ter prestado o consentimento o não prestou, ou tenha
sido coagido a prestá-lo.

A revisão de sentença de adoção é, pois, permitida em razão de factos que invalidem a


vontade expressa para a constituição do vínculo por parte do adotante, em razão de erro
essencial em relação à pessoa do adotado viciando a declaração prestada pelo adotante de
que pretendia proceder à adoção de determinado menor. O erro considera-se essencial
quando recaia sobre as qualidades de natureza física, psíquica e moral do menor que sejam
consideradas fundamentais; por outro lado, é preciso que o erro seja também desculpável por
parte do adotante, como estabelece o art. 216.° do Código de Família.

É também de admitir que possa haver revisão de sentença de adoção no caso de simulação, ou
seja quando o vínculo tenha sido constituído para um fim diferente do previsto na lei, que é o
de criar entre adotante e adotado um verdadeiro vínculo de filiação.

Quando a lei exige o consentimento, seja por parte dos pais, seja por parte de outros parentes
ou do próprio adotado, a sua falta ou a prestação de consentimento com o vício de vontade
resultante da coação podem levar à revisão de sentença, tendo legitimidade para a ação a
pessoa cujo consentimento faltou ou cuja vontade foi viciada ou, no caso de incapacidade, o
respetivo representante legal.

O prazo para a ação de revisão de sentença é de um ano, nos termos do art. 217.° do Código
de Família, o qual se conta a partir da data de cessação do vício da vontade por erro ou coação
ou da data do conhecimento da adoção no caso da falta de consentimento, como prevê o n.°
1, ou quando houver falta de consentimento do menor, até um ano após ter este atingido a
maioridade, como dispõe o n.° 2.0 tribunal deve sempre ponderar os interesses do menor e
avaliar se é ou não aconselhável que se proceda à revisão da sentença que declarou a adoção,
mesmo que se verifique o fundamento legal para o pedido de revisão.

O n.° 3 do art. 217.° dá um poder amplo de decisão ao Juiz da causa para optar ou não pela
dissolução do vínculo, devendo sempre justificar a decisão tomada, de acordo com os
superiores interesses do menor que estejam em jogo.

Anulada a adoção, a sentença produz efeitos retroativos, ou seja ex tunc, anulando-se todos os
efeitos que ela tenha produzido anteriormente.

[123] Revogação da sentença de adoção

A revogação da sentença de adoção pode ser operada quando se verifique qualquer dos
pressupostos de facto que vêm expressos no art. 218.° do Código de Família e que se reportam
a factos supervenientes à constituição do vínculo.

É de notar que, tal como ocorre quanto à revisão, a revogação não é imposta como resultado
obrigatório, pois o corpo do art. 218.° menciona que ela pode resultar dos factos que
menciona.

Os factos que permitem a revogação da adoção são os seguintes:

a) o abandono voluntário do menor, ou a submissão deste, por parte do adotante ou


adotantes, a um tratamento incompatível com a situação de filho;

b) atentado contra a vida ou grave atentado contra a honra, quer por pane do adotante
quer por parte do adotado;

c) absoluta incompatibilidade entre adotante e adotado, após este ter atingido a


maioridade.

A alínea a) do art. 218.°, ao mencionar o abandono do menor, tem o mesmo alcance jurídico
do art. 200.°, n.° 2, que se refere ao abandono do menor por parte dos progenitores naturais.

A última parte da alínea a) foi acrescentada após a consulta popular a que se procedeu antes
de aprovação do Código de Família, e refere-se ao facto de o adotado não ser objeto, por parte
do adotante, de um tratamento compatível, nos seus diversos aspetos, com aquele que deve
ser prestado a um filho.

Pretendeu-se deste modo obviar a situações em que o menor adotado possa vir a ser usado
como mão-de-obra não remunerada, sobretudo em trabalhos domésticos ou outros.

Tal disposição poderá ainda ser aplicada quando o adotante estabelecer com o adotado um
relacionamento sexual incompatível com as relações paterno-filiais.

A alínea b) prevê casos de extrema gravidade, como o de atentado contra a vida ou grave
atentado contra a honra, quer por parte do adotante quer por parte do adotado.
A alínea c) refere-se ao caso de surgir entre adotante e adotado incompatibili¬dade irredutível
de tal forma profunda e irremediável que deixe de ter razão de ser a manutenção do vínculo
da adoção. A lei exige que tal aconteça depois de o adotado ter atingido a maioridade.

Têm legitimidade para pedir ao tribunal a revogação da sentença de adoção o adotante ou o


adotado (por si ou, sendo menor, por intermédio do seu representante legal, do Ministério
Público ou de qualquer herdeiro legitimário),

quando sc verifique atentado contra a vida ou grave atentado contra a honra do

adotante ou do adotado.

Como já se apontou para o caso de revisão de sentença, a revogação pode operar-se quando o
tribunal o julgue conveniente, de acordo com as circunstâncias específicas do caso e tendo em
conta o interesse das partes.

A revogação da sentença de adoção só produz efeitos ex nunc, ou seja, a partir do respetivo


trânsito em julgado permanecendo válidos os efeitos anteriormente produzidos.

Uma vez decretada a revisão ou a revogação da adoção, o art. 219.° do Código de Família
prevê que sejam tomadas medidas de proteção ao adotado menor.

Deverão ser ouvidos os progenitores naturais sobre o restabelecimento do vínculo da filiação


natural, nos termos da alínea a) deste art. 219.°.

Quando não for possível tal restabelecimento, deverá o tribunal enviar certidão da sentença
ao representante do Ministério Público junto do tribunal competente para a instituição da
tutela do menor — alínea b) do mesmo artigo.

Sem embargo destas medidas, o tribunal deverá sempre decidir provisoriamente sobre a
guarda e destino do menor, enquanto não houver quem assuma o exercício da autoridade
paternal.

[124] Normas de conflitos

O Código Civil no seu art. 60.° manda em regra, aplicar à constituição da filiação adotiva a lei
pessoal do adotante.

No entanto tendo em vista a proteção dos direitos da criança, será a lei nacional do adotado
aplicável às condições legais para a constituição do vínculo de adoção por parte do adotado.
Será a lex fori aplicável ao processo de adoção que é, em regra, o do domicílio do adotado no
caso da adoção internacional.

São normas de ordem pública de cumprimento obrigatório.

Neste caso, em regra a sentença de adoção deve ser revista no país do adotante, para aí
produzir os efeitos legais.

CAPÍTULO 19/

A TUTELA
[125] Evolução do instituto da tutela e seu conteúdo

A tutela é uma instituição de guarda que vem do direito romano. A tutela incide sobre
menores e outros incapazes, dando proteção à sua pessoa e aos seus bens. Por direito natural
é atribuída ao pai e à mãe a autoridade paternal para suprir a incapacidade dos filhos
menores. Mas circunstâncias há em que nenhum dos progenitores está em condições de
exercer essa autoridade. Daí que, através dos tempos, se tenha recorrido ao instituto da
tutela.

No direito feudal era o senhor da terra que exercia o poder de tutela sobre os menores
nascidos dos seus vassalos.

No século XIX, com o advento da burguesia, a tutela aparece como um meio indispensável à
conservação dos bens dentro da família, impedindo que, com a alienação dos bens
imobiliários, fosse enfraquecido o poder económico da família. Então o conselho de família era
chamado a intervir para salvaguardar os interesses económicos das respetivas linhagens.

A partir daí e na mesma senda da proteção do interesse do menor, detentor de património


integrado na família, são criados institutos como 0 da administração legal de bens sob controlo
judiciário e o da curatela.

Este instituto visava em primeiro lugar a preservação do património familiar e tinha uma
finalidade em que predominava o interesse privado.

A curatela era um instituto que se aplicava quando era a mulher a detentora dos bens, ou se
tratava de menor púbere ou interdito por prodigalidade. Era também o caso da mãe viúva e da
mãe do filho nascido fora do casamento, que não tinham a administração legal dos bens dos
filhos, sem serem coadjuvadaspor um órgão de controlo.

O Código Civil previa o instituto da administração de bens nos seus artigos 1967.° e seguintes,
decalcado no instituto da tutela, atribuindo ao administrador dos bens os mesmos direitos e
deveres do tutor.

O direito tutelar é, em termos gerais, um direito de incapacidade.

Em alguns sistemas jurídicos o instituto da tutela, tal como o da curatela, é alargado para
situações em que um dos pais poderia exercer a autoridade paternal, fazendo intervir o
conselho de família e o tribunal no acompanhamento do

exercício dessa autoridade.

O Código de Família arredou por completo o instituto da tutela sempre que um dos
progenitores esteja em condições de exercer a autoridade paternal. Na verdade, ao
estudarmos este instituto, vimos que, em conformidade com o art. 147.° do Código de Família,
em caso de morte, ausência, incapacidade, ou impossibilidade de um dos pais, cabe ao outro
progenitor o exercício único da autoridade paternal.
O Código de Família, ao regular o direito tutelar — que, repetimos, é um direito de
incapacidade —, refere-se não só à tutela do menor mas também à do maior interdito — art.
220.°, alíneas a) e b).

Restringiremos, porém, o nosso estudo à tutela do menor no âmbito das relações familiares.

A tutela do menor surge quando falta o progenitor que exerça a autoridade paternal, seja pela
morte, seja por não estar estabelecida a paternidade e a materni¬dade do menor, seja porque
os progenitores estão ausentes ou impossibilitados de facto de a exercer.

Ao mencionar a finalidade legal do instituto da tutela, o art. 221.° do Código de Família sobre a
epígrafe Fins da Tutela, dispõe: «A tutela visa o suprimento da autoridade paternal e a guarda,
educação, desenvolvimento e proteção de interesses pessoais e patrimoniais dos menores.»

A designação do tutor vai suprir a falta do representante natural do menor, o progenitor,


encarregando alguém de exercer essas funções. O termo tutela deriva da palavra latina tueri,
que significa «defender» e «proteger». O menor tutelado, em algumas legislações, é designado
como pupilo.

[126] A tutela e o direito público

O instituto da tutela inserto no Direito de Família é, na sua essência, um instituto de direito


público. A proteção dos menores é uma função do próprio Estado, que vem expressamente
consignada na Constituição.

O art. 35.° (Família, casamento e filiação ), n.° 6, consigna: «A proteção dos direitos da criança,
nomeadamente a sua educação integral e harmoniosa, a proteção da sua saúde, condições de
vida e ensino constituem absoluta prioridade da família, do Estado e da sociedade.»

Acrescendo a esta diretriz constitucional, o art. 80.° (Infância), n.° 1 dispõe: «A criança tem
direito à atenção especial da família, da sociedade e do Estado, os quais em estreita
colaboração, devem assegurar a sua ampla proteção contra todas as formas de abandono,
discriminação, opressão, exploração e exercício abusivo de autoridade na família e nas demais
instituições.»

Daí que, para a proteção do menor desamparado, o Estado tem o dever de intervir na
constituição da tutela e durante todo o percurso do seu funcionamento e até à sua conclusão.
O tutor exerce um verdadeiro cargo público sob vigilância de um órgão de soberania (o
tribunal) e de um órgão de natureza familiar (o Conselho de Família).

Está subjacente à tutela o princípio de que cuidar, criar e educar um menor é um munus
eminentemente social que incumbe ao Estado supervisionar ou exercer, por intermédio do
tutor ou pelos seus órgãos de assistência e de educação, no caso de falta dos pais ou de quem
exerça o cargo de tutor.

Hoje o princípio constitucional que obriga o Estado a guardar e proteger toda a criança exige
que, em consequência, sejam criados e postos em funcionamento os órgãos que tal
assegurem, e que são, em primeiro lugar, os tribunais e, quando necessário, os órgãos de
assistência que substituam os pais ou tutores. No entanto, o tutor deve ser escolhido, de
preferência, no seio da família do menor, e agir sob fiscalização do Estado.

É a solução de longe preferível, porque não vai retirar ao menor o direito a ter uma família. A
maior ou menor intervenção do Estado nas instituições de tutela dos menores depende, assim,
da própria conceção política adotada, mas neste instituto predominam as normas imperativas
do direito público, pois a proteção e defesa do menor incapaz e carecido de alguém que supra
o exercício normal da autoridade paternal sobrelevam os demais interesses em jogo.

O art. 236.° do Código de Família dispõe no seu n.° 1 que «A tutela deve ser exercida no
interesse do tutelado e da sociedade.» A finalidade legal do instituto da tutela é, pois, a defesa
dos interesses do menor e do meio social em que ele se insere.

Consoante os sistemas jurídicos, o instituto da tutela aproxima-se mais de um instituto de


natureza privada, em que o tribunal se limita a exercer a vontade dos parentes ou familiares
ou de um instituto de natureza pública, em que prevalece a autoridade do tribunal. Este
intervém nas diversas fases da tutela, designando a pessoa do tutor, prosseguindo no
acompanhamento da tutela, na remoção do tutor e na extinção da tutela.

Esta foi a orientação prevalecente no Código de Família, que atribui ao tribunal toda a
relevância no instituto da tutela.

[127] Classificação da tutela quanto à forma de escolha do tutor

A doutrina costuma classificar a tutela, quanto à forma de designação do tutor, em três


categorias:

a) tutela testamentária;

b) tutela legítima;

c) tutela dativa.

A tutela testamentária é aquela que é instituída por testamento ou outro documento


autêntico ou autenticado, lavrado como ato de última vontade pelo pai ou pela máe do menor,
no qual é designado um futuro tutor para quando sobrevier a sua morte ou incapacidade.
Como documento emanado da vontade unilateral do seu autor, ele pode ser revogado e
alterado sucessivamente.

Em princípio, será o último progenitor sobrevivo do menor que poderá fazer tal declaração, ou
pelo menos ela só produzirá efeito depois da morte ou incapacidade de ambos os
progenitores.

Aliás, a designação do tutor estava intrinsecamente ligada ao direito sucessório e às


disposições post-mortem.

A tutela legítima é aquela que deriva da própria lei, ou seja, do vínculo de parentesco ou de
afinidade entre o tutor e o tutelado. Em regra, a tutela legítima é deferida segundo uma
determinada ordem, conforme a proximidade do grau de parentesco, vindo em primeiro lugar
os avós, paternos e maternos, sem distinção, depois os irmãos mais velhos, os tios e outros
parentes, etc.

A tutela dativa é aquela que é atribuída por decisão do tribunal, de acordo com as
circunstâncias de cada caso que for levado à sua apreciação.

Foi este o critério seguido pelo Código de Família, que atribui ao tribunal competência para a
nomeação do tutor — art. 224.°, n.° 1: « Compete ao Tribunal a nomeação do tutor».

O n.° 2 deste art. 224.° permite que: «Os pais podem indicar tutor ao filho menor ou incapaz
para o caso de virem a falecer ou de se tomarem incapazes, estando a indicação sujeita à
homologação do Tribunal», como aliás acontece sempre que está em jogo a apreciação do
superior interesse do menor.

[128] Tutela obrigatória e ação pública de tutela

Como instituto de direito público, a tutela do menor é de natureza obrigatória sempre que
ocorra qualquer das circunstâncias de facto mencionadas no art. 222.° do Código de Família.

Diz este art. 222.°: «Está obrigatoriamente sujeito à tutela o menor:

a) cujos pais sejam desconhecidos, estejam ausentes ou tenham falecido;

h) cujos pais estejam inibidos da autoridade paternal;

c) cujos pais estejam há mais de um ano sem exercer de facto a autoridade paternal;

d) cuja adoção tenha sido revogada.»

Em qualquer destas circunstâncias o menor não tem quem exerça a autoridade paternal, pelo
que, para suprir essa falta, tem de ser obrigatoriamente instituída a tutela.

A instituição da tutela é um dever que incumbe ao Estado e que é efetivado através dos seus
órgãos judiciais. O tribunal competente é o tribunal da residência do menor à data em que o
processo é instaurado.

É o que consta do já citado art. 6.°, n.° 1 do Código de Processo do Julgado de Menores
aprovado pelo Decreto n.° 6/03 de 28 de janeiro relativamente à competência para aplicação
de medidas a menores.

Pela Lei n.° 18/88, que aprovou o Sistema Unificado de Justiça, a competência para conhecer
das ações que julguem todas as relações familiares está atribuída à Sala de Família do Tribunal
Provincial.

Para que seja instaurado o respetivo processo, sempre que se verifique qualquer caso de
tutela obrigatória, a lei impõe o dever de participar o facto ao representante do Ministério
Público por parte das pessoas e entidades mencionadas no n.° 2.

Segundo o disposto no art. 229.°, n.° 2 do Código de Família esse dever de participação
incumbe:
a) a qualquer parente ou afim do menor;

b) à pessoa que tenha o menor a seu cargo;

c) ao membro da organização social ou de massas ou trabalhador de organismo estatal


que, em razão da sua atividade ou função tenha conhecimento da situação do menor.

Quem tem a legitimidade para propor a ação é o Ministério Público, desde que, por qualquer
interessado ou participante, lhe seja dado conhecimento da situação do menor, como
imperativamente prescreve o art. 230.° do Código: «Sempre que, por qualquer forma, tenha
conhecimento de situações em que a tutela seja obrigatória, o representante do Ministério
Público promoverá a sua instituição.»

O Ministério Público tem nestas ações a mesma posição jurídica que tem quanto ao dever de
proceder na ação penal. É uma ação proposta em nome do interesse público que se concretiza
na defesa da criança desprotegida.

Por seu lado, uma vez instaurado o processo de tutela, como vem previsto no art. 231.° « 0
Tribunal tem o dever de promover oficiosamente o prosseguimento dos autos (...)» com
poderes de iniciativa processual que permitam que o processo prossiga os seus termos legais,
independentemente de intervenção do Ministério Público como autor da ação.

É, pois, atribuído um verdadeiro poder de guarda do interesse do menor, que se traduz no


dever de impulsionar ex-ojficio o procedimento da ação tutelar. Como dispõe o citado art.
231.° do Código de Família, o tribunal pode requisitar aos organismos competentes os
documentos necessários, pode convocar o Conselho de Família, pode mandar proceder a
inquérito social e a outras diligências que considere necessárias.

Estes latos poderes concedidos ao tribunal evidenciam claramente o caráter público da tutela.

Reconheceu-se que, no quadro da legislação anterior, os processos de tutela se arrastavam por


falta de iniciativa dos terceiros interessados, tornando-se ineficazes e deixando milhares de
menores em situação de desproteção jurídica.

Aos tribunais são atribuídos poderes inquisitórios específicos, que lhes permitem após a
instituição da tutela, prosseguir com a ação intentada, e depois dela instituída fazer, também o
acompanhamento do seu exercício até que ela seja finda nos casos previstos na lei.

Ao Ministério Público cabe representar os menores, de acordo com o art. 36.°, alínea a) da Lei
Orgânica da PGR (aprovada pela Lei n.° 22/12).

Esse dever vem hoje consagrado no art. 186° da Constituição alínea b) que dispõe «exercer o
patrocínio judiciário de incapazes, de menores e de ausentes».

A ação da tutela inscreve-se no quadro de uma ação pública em que a iniciativa processual
incumbe a um órgão do Estado, o representante da Procuradoria Geral da República, e em que
o interesse prosseguido com a ação é o da proteção do menor tutelado.

A proteção jurídica do menor através da criação dos meios tutelares, é o fim de todo o
processo que visa uma intervenção mais eficaz dos órgãos do Estado em relação aos menores
que se encontrem em situação de orfandade ou de abandono familiar, mercê de todas as
circunstâncias adversas que foram vividas nas últimas décadas no nosso País e que não
estejam completamente sanadas.

Aliás, o Código do Processo do Julgado de Menores — Decreto n.° 6/03 de 28 de janeiro, veio
estabelecer no seu art.0 40.° o acolhimento do menor em família substituta o que de facto
permite o exercício da tutela de menores pelo representante do agregado familiar.

[129] Tutela constituída voluntariamente

Como realidade na sociedade angolana surge a tutela de facto que tanto pode resultar da
perda, desconhecimento ou ausência dos progenitores, como de ato voluntário da parte deles,
que entregam o filho menor a um terceiro, normalmente pessoa de família irmão/irmã mais
velho, tio/tia ou pessoa considerada idónea, (designada como padrinho/ madrinha) a qual
passa a exercer de pleno a autoridade paternal em relação ao menor.

Essa realidade geralmente tem como causa razões de ordem económica que determinam tal
entrega ou ainda a perspetiva de uma melhor condição de educação e formação profissional
nesse agregado familiar.

Podemos integrar esta realidade na previsão legal da alínea c) do art. 222.° que prevê a
instituição da tutela quando os «pais estejam, há mais de um ano, sem exercer defacto a
autoridade paternal».

Quando por esta situação de facto se pretende integrar e receber proteção jurídica, temos o
que podemos designar como «tutela facultativa» ou «tutela constituída voluntariamente» pois
o pedido de instauração do processo de tutela parte ou do próprio progenitor ou da pessoa
que tem o menor a seu cargo. No entanto a maior parte das vezes, esta realidade é
estabelecida à margem do direito e deparamos-nos com a tutela de facto, de que adiante nos
ocuparemos.

Em princípio a autoridade paternal não é renunciável nem pode ser objeto de cessão, mas
pode ser considerada como uma delegação de poderes que importa apreciar sob o ponto de
vista legal.

Convém distinguir entre a delegação temporária de poderes, ou seja a da pessoa que tem o
menor a seu cargo, e a constituição do que podemos designar como tutela facultativa ou
tutela voluntariamente constituída e que foi devidamente formalizada judicialmente.

A primeira é feita de íbrma informal e tem caráter meramente transitório.

Já a segunda requer a intervenção do tribunal e não depende da simples vontade do titular


mas da apreciação que for feita pelo juiz.

No entanto uma vez instituída a tutela que na verdade passa a ser integrada no regime da
tutela obrigatória, ela fica subordinada às demais regra do instituto da tutela e só poderá
terminar nos termos legais que veremos adiante, constam do art. 243.° e por decisão judicial.

[130] Escolha, requisitos e nomeação do tutor


O sistema adotado pelo Código de Família é o da tutela dativa, pois é ao tribunal que compete
nomear o tutor — art. 224.°, n.° 1.

Os critérios a seguir para a escolha do tutor veem previstos no art. 233.°, que permite que o
tribunal nomeie o tutor de acordo com o seu prudente arbítrio e tendo em conta o superior
interesse do menor e da sociedade.

O tribunal, ao escolher o tutor, poderá ter em conta, como vimos, a vontade dos pais,
homologando-a (art. 224.°, n.° 2), ou «conforme as circunstâncias poderá optar por um
parente ou afim do menor, ou por pessoa que tenha o menor a seu cargo ou que por ele
revele particular afeição» — art. 233.°, n.° 2.

A pessoa do tutor tem que satisfazer os requisitos que a lei prevê no art. 226.° e que,
similarmente com o que acontece em relação ao adotante, devem assegurar que a pessoa a
designar seja idónea sob todos os pontos de vista: que seja um cidadão ou uma cidadã com
bom comportamento moral, profissional e social, capaz de educar o tutelado e de defender os
seus interesses.

Deverá ser maior de idade e estar no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos. No
Anteprojeto do Código Penal está prevista como pena acessória no art. 62.° no caso de
condenação em pena superior a 3 anos a proibição do exercício de função por período de 2 a 5
anos que dependam de «homologação da autoridade pública ».

Assim pela futura lei penal como pela lei de família, não poderá ser nomeado tutor quem tiver
sido condenado na referida pena de prisão.

A situação económica do tutor deverá permitir-lhe prover ao sustento do tutelado quando


este não disponha de recursos próprios.

É ainda necessário que não existam, da parte do tutor, nem direta nem indiretamente,
interesses antagónicos aos do tutelado.

Os interesses antagónicos entre o tutelado e a pessoa indigitada para tutor podem ser de
diversa natureza e devem ser devidamente acautelados pelo tribunal que tiver de fazer a
nomeação. Assim, uma pessoa não deve ser escolhida como tutor quando essa pessoa vá
concorrer com o tutelado a uma herança indivisa, quando ela for litigiosa; quando houver
qualquer litígio entre essa pessoa, o seu cônjuge ou os seus parentes e o tutelado, ou parentes
próximos deste; quando

essa pessoa for devedor ou credor do menor ou de seus parentes próximos; quando houver
inimizade entre essa pessoa e os familiares do tutelado ou com o próprio tutelado.

Consequentemente, o cargo de tutor não pode ser entregue a quem não tenha plena
capacidade para reger a sua pessoa e os seus bens nem a quem tenha qualquer conflito de
natureza judicial ou extra-judicial com o menor ou que o tenha tido com os seus pais ou
parentes mais próximos.
Sob o ponto de vista económico a situação é diferente da que se verifica com a adoção, pois o
tutor pode não ter o encargo de prover aos alimentos do tutelado, sempre que este tenha
bens que lhe permitam ser economicamente auto-suficiente.

A nomeação do tutor incumbe ao Juiz, observados os trâmites legais e as circunstâncias do


caso sub-iudice, como prescreve o citado art. 224.°.

Recomenda o art. 225.° do Código de Família que: «A tutela respeitante a dois ou mais irmãos
caberá sempre que possível a um só tutor», obstando à separação dos irmãos e preservando a
estrutura familiar.

«Para a nomeação do tutor o tribunal tem que ouvir obrigatoriamente o parecer do Conselho
de Família » (art. 232.° do Código de Família), dado que, em princípio, deverá ser este órgão
dimanado do próprio meio familiar, que melhor conhece a pessoa dotada de idoneidade para
o exercício do cargo.

A não audição do Conselho de Família constitui uma nulidade processual de caráter absoluto e
insanável. O Conselho de Família tem intervenção primordial no processo de instauração e
funcionamento da tutela.

De igual modo, o tribunal «deve ouvira opinião do próprio tutelado que tenha completado 10
anos de idade» — art. 232.°. Mais uma vez a lei reconhece ao menor o direito de ser ouvido
em questão de tanta relevância na sua vida como seja a designação da pessoa que irá exercer
as funções de tutor.

Uma vez instituída a tutela, ela está obrigatoriamente sujeita a registo — art. l.°, alínea i) do
Código do Registo Civil.

[131] Natureza jurídica do cargo de tutor

O cargo de tutor é um cargo de natureza pessoal, não transmissível a terceiros, por contrato
ou por morte.

É um cargo de natureza voluntária e não de natureza obrigatória, diferente¬mente aliás do


que acontece na quase totalidade dos demais sistemas jurídicos. Considera-se que a tutela é
um munus publicum que incumbe aos membros da família em razão dos vínculos familiares.

O art. 227.° do Código de Família diz expressamente que: «A aceitação do cargo de tutor é
voluntária», pelo que os direitos e deveres que advêm do cargo não devem ser atribuídos a
alguém especificadamente.

O caráter voluntário da tutela vem consagrado na lei por se entender que ele é mais benéfico
para o menor: — é sem dúvida preferível que a pessoa que venha a ser designada como tutor
esteja disposta a aceitar espontaneamente o cargo, tendo em conta a responsabilidade afetiva
e patrimonial que dele advém.

O Código Civil que foi revogado, entendia o cargo de tutor de caráter obrigatório, por se
entender que ele constituía um dever dos membros da família, um dever familiar inerente à
qualidade de parente ou afim do menor.
Essa obrigatoriedade já não existiria em relação às pessoas que não fizessem parte da família
do menor.

As funções do tutor são em regra gratuitas, não recebendo o tutor qualquer retribuição por
exercer a administração dos bens do tutelado. Mas, em certas circunstâncias, poderá ser
fixada remuneração ao tutor — art. 228.°, n.° 1.

Como veremos adiante, o tribunal e o Conselho de Família podem atribuir ao tutor, a título de
retribuição da sua atividade de gestor dos bens do tutelado, uma certa percentagem do
rendimento destes bens. Tal poderá acontecer quando o volume de bens herdados pelo
tutelado vá exigir ao tutor uma especial dedicação de tempo e empenho empresarial. O art.
228.°, n.° 2 prevê ainda: «O tutor tem direito a ser indemnizado pelas despesas que
justificadamente, tenha feito no exercício das suas funções».

O cargo de tutor é também, por natureza, provisório, pois destina-se a suprir a falta de
representante legal do menor.

A tutela extingue-se, pois, nos casos em que houver «A cessação das circunstâncias que
motivaram a instituição da tutela» e «quando o tutelado atingir a maioridade» — art. 243.°,
alíneas c) e b).

[132] Poderes do tutor

As funções do tutor têm como objetivo o exercício da autoridade paternal sobre o menor, o
que engloba a representação pessoal do tutelado por parte do tutor e a administração dos
seus bens.

O exercício da autoridade paternal abrange, como vimos, os direitos e os deveres descritos nos
artigos. 130.° e 131.°, e no seu âmbito inserem-se os direitos e deveres descritos nos artigos.
135.°, 136.° e 137.°, todos do Código de Família (ou seja, o dever de guarda, de vigilância, de
prestação de cuidados de saúde e educação).

1. Poderes de natureza pessoal

Em atos de natureza estritamente pessoal, o tutor intervém, tal como os pais naturais, para
autorizar o menor a praticar o ato. É o que acontece, por exemplo, no caso do casamento (art.
24.°, n.° 3) ou no caso de declaração de filiação — art. 174.°, alínea b). Mas, como já
acentuámos, a vontade que tem de ser expressa é a do menor titular do direito e não a do
tutor.

Entende-se em geral que os poderes do tutor em relação à educação e formação do tutelado


não são tão amplos como os dos pais naturais, devendo o tutor respeitar as opiniões que
tiverem sido expressas por eles sobre o futuro profissional dos filhos, crenças religiosas, etc.

Também aqui, e por maioria de razão, deve ser tido em conta o interesse do tutelado, o que
leva a ponderar sobre quais são as suas aptidões naturais, a atender ao respeito da sua
personalidade e vontade, tal como se exige aos próprios pais nas suas relações com os filhos —
art. 137.°, n.° 2.
O Código Civil previa a existência de um impedimento meramente impediente no casamento
entre o tutor e o incapaz (art. 1604.°, alínea c)), em virtude dos laços familiares que se
estabeleciam e da influência que o tutor podia ter sobre a personalidade do pupilo. Este tipo
de impedimentos não teve acolhimento no Código de Família.

2. Poderes de natureza patrimonial

O exercício da tutela no aspeto patrimonial sofre mais restrições relativamente aos poderes
que a lei confere aos pais naturais e que vêm mencionados nos artigos 236.° e seguintes do
Código de Família.

Assim, o art. 237.° impõe ao tutor deveres de natureza patrimonial de que estão isentos os
pais naturais. No que toca à administração dos bens do tutelado.

« O tutor como administrador dos bens do tutelado, deverá:

— adminishar os bens do tutelado diligentemente, zelando pelo seu património e


prestando contas da sua administração;

— utilizar os rendimentos do tutelado apenas em beneficio deste;

—fazer o inventário dos bens do tutelado quando o tribunal que o nomeou o não tiver Jeito.»

Verifica-se, como vimos, que a instituição da tutela está muitas vezes ligada ao direito
sucessório, e, por isso, quando é nomeado o tutor, já se procedeu ao inventário dos bens do
menor.

O tutor não tem o dever de prestar sustento ao menor quando este possuir bens próprios. Mas
tem o dever de administrar esses bens com a diligência de

um bonus pater familiae e de aplicar os rendimentos do tutelado em beneficio exclusivo deste.


Diferentemente dos pais naturais, o tutor não tem direito ao usufruto dos bens do tutelado.
Dentro desta linha de orientação, o tutor deve prestar contas da sua administração.

Nas despesas comuns da administração podemos incluir as seguintes:

— despesas contraídas em beneficio dos alimentos do tutelado;

— despesas contraídas para a administração do património do tutelado.

O Código de Família não estabelece qual a periodicidade a que deve obedecer a prestação de
contas. Essa obrigação deverá ser cumprida quando o tribunal e o Conselho de Família o
julguem necessário e conveniente, tudo dependendo do volume dos valores patrimoniais em
jogo.

O tribunal pode fixar a periodicidade da obrigação de prestação de contas em 1,2,3, ou 5 anos,


desde que o lapso de tempo que for determinado não seja prejudicial aos interesses
patrimoniais do tutelado.

O art. 242.° do Código de Família atribui ao tribunal o encargo de velar pela prestação de
contas do tutor.
As contas do tutor têm que ser aprovadas pelo tribunal, ouvido o parecer do Ministério Público
e em conferência em que esteja presente o Conselho de Família. As contas podem vir a
apresentar um saldo credor ou devedor, consoante o volume de receitas ou a necessidade de
efetuação de despesas. Esses saldos deverão vencer juros fixados à taxa legal.

A lei impõe também ao tutor a obrigação de proceder ao inventário dos bens do tutelado,
quando, no momento da nomeação do tutor, o cabeça de casal não tiver iniciado o processo
de inventário. O art. 2053.° do Código Civil dispõe que, sempre que haja menores com direito a
serem chamados à sucessão, deverá ser aberto processo de inventário obrigatório.

Pode assim ocorrer que a nomeação do tutor seja feita após ter sido iniciado o processo de
inventário e então o tutor não terá a obrigação de o efetuar; mas pode acontecer que a
nomeação do tutor preceda a inventariação dos bens do tutelado, caso em que o tutor é
obrigado a fazer o inventário dos bens do tutelado, em processo que deve ser apensado ao
processo de tutela.

Neste caso, o tribunal deve fixar um prazo ao tutor para proceder ao referido inventário, de
forma a serem acautelados os bens do menor. O inventário deverá incluir a relação do passivo
e do ativo do património hereditário.

O tutor tem poderes de administração dos bens do tutelado que englobam a prática de todos
os atos de conservação do seu património, a cobrança de dívidas, a aquisição e a alienação de
bens mobiliários de caráter não duradouro.

O tutor carece, porém, de autorização do tribunal para praticar todos os atos discriminados no
art. 238.° do Código de Família. Na alínea a) deste art. 238.° prevêem-se as mesmas restrições
que são impostas aos pais (art. 141.°) e que se referem à alienação de bens imóveis e móveis
de caráter duradouro, ao repúdio de herança, e a contrair obrigações que vinculem o filho
depois deste ter atingido a maioridade.

A alínea b) veda ao tutor a possibilidade de contrair, em nome do tutelado, obrigações de


qualquer natureza sem autorização do tribunal. Defendemos que o termo «obrigações» deve
ser entendido stricto sensu, abrangendo somente qualquer situação jurídica que possa colocar
o tutelado na qualidade de sujeito passivo de obrigações pecuniárias ou outras, contraindo
empréstimos em seu nome ou como prestador de garantia de obrigações de terceiros,
excluindo pois as obrigações contraídas e solvidas no âmbito já atrás descrito dos poderes de
administração do tutor.

Em sentido amplo, o tutor poderá assim contrair obrigações em nome do tutelado que
decorram dos atos normais destinados às despesas feitas em beneficio do tutelado e à
conservação do seu património, ou seja, em contrapartida de despesas necessárias à sua
atividade.

Já a aquisição de bens móveis e imóveis carece de autorização do tribunal. 0 tutor não pode
exercer comércio em nome do tutelado, dada a natureza pessoal da qualidade de comerciante,
sendo que poderá com autorização do tribunal, continuar a exploração de estabelecimento
comercial ou industrial que o tutelado tenha recebido por doação ou sucessão.
O tutor carece também de autorização do tribunal para intervir na partilha amigável em
processo sucessório de que o menor seja parte, ou para aceitar herança ou legado em seu
nome.

Por maioria de razão, o tutor não poderá praticar atos de liberalidade em nome do tutelado.

A propositura de ações também deve ser autorizada pelo tribunal (alínea c) do art. 238.°), o
que abrange ações de qualquer natureza (pessoal ou patrimonial). Intentada a ação sem a
devida autorização, a instância deve ser suspensa até ser decidido se a ação deve ou não
prosseguir. Se for negada autorização deverá o tutor arcar com as despesas judiciais e extra
judiciais.

Mas não carece de autorização do tribunal o chamamento do tutor à demanda como


representante do menor sob sua tutela.

Os atos praticados sem autorização do tribunal são anuláveis, como prevê o art. 239.° do
Código de Família, que remete para o art. 145.°. A anulação pode ser declarada pelo tribunal
oficiosamente, ou por iniciativa do Ministério Público ou

de qualquer membro do Conselho de Família, ou por iniciativa de quem mostre legítimo


interesse na proteção do menor. O menor tutelado pode também pedir a anulação do ato até
um ano após ter atingido a maioridade.

Em contrapartida, os atos anuláveis podem ser objeto de validação, como também dispõe o
art. 239.° que, por sua vez, remete para o art. 146.°.

Essa validação pode obter-se por iniciativa oficiosa do tribunal ou dos órgãos acima
mencionados durante a menoridade do tutelado, ou por iniciativa deste depois de atingir a
maioridade, não impondo a lei, neste caso, qualquer limite de tempo. O tutor deve cumprir
com boa fé e diligentemente os deveres do seu cargo. Ele é responsável pelos atos que
pratique culposamente ou intencionalmente em prejuízo do tutelado — art. 240.°.

[133] Órgãos de acompanhamento da tutela

Durante todo o exercício da tutela o tutor é acompanhado pelo Conselho de Família, que neste
instituto assume a sua maior relevância (artigos. 16.° a 19.° do Código de Família). Na escolha
dos 4 membros que o compõem, devem ser observadas as normas do art. 17.°, n.° 2 e devem
ser escolhidos 2 membros da linha paterna e 2 membros da linha materna, relativamente aos
ascendentes do tutelado.

No caso de não serem conhecidos os progenitores ou um dos progenitores do tutelado, então


terá de recorrer-se às pessoas que convivam com o menor, como vizinhos, pessoas das suas
relações sociais, etc.

Trata-se sempre de um órgão colegial, que deve tomar as deliberações que serão
homologadas pelo tribunal. O Conselho de Família, depois de ter sido ouvido sobre a
nomeação do tutor, permanece desde o início até ao termo da tutela como órgão de
acompanhamento. As intervenções do Conselho de Família no processo de tutela são
primordialmente, as seguintes:
— Na nomeação do tutor e possível remuneração.

— Aprovação do ativo e passivo constante do inventário.

— Dar parecer sobre qualquer pedido de autorização judicial pedido pelo tutor.

— Dar parecer sobre as contas apresentadas pelo tutor.

— Vigiar o desempenho do tutor no exercício da sua função desde o seu início até ao seu
término.

Além do Conselho de Família, o próprio tribunal também é órgão de acompanha¬mento da


tutela, representando o Estado no seu dever de proteção ao menor — art. 242.° do Código de
Família.

Ao tribunal, através da Sala de Família, incumbe o dever de velar pelo bom funcionamento da
tutela, de forma que os interesses de natureza pessoal e patrimonial do tutelado sejam
devidamente salvaguardados.

São aplicáveis ao comportamento abusivo do tutor as disposições de proteção social do menor


prescritas para progenitores naturais e que constam do art. 14.° da Lei n.° 6/96 (Lei do Julgado
de Menores).®

Tanto o Conselho de Família como o próprio tribunal podem ser responsabilizados se


descurarem os seus deveres de órgãos de acompanhamento da tutela. Embora o art. 240.° do
Código de Família se limite a mencionar a responsabilidade do tutor, tal não significa que o
Estado não possa também ser responsabilizado, se, como órgão judicial, não exercer
diligentemente as funções que lhe são atribuídas no acompanhamento da tutela e
evidenciadas no citado art. 242.°.

[134] Remoção e renúncia do tutor

O exercício do cargo de tutor pode cessar antes de terem terminado as causas que levaram à
necessidade da existência legal da nomeação do tutor.

O tutor pode ser removido das suas funções, por iniciativa do tribunal, nos casos previstos no
art. 244.° do Código de Família.

As causas de remoção são de dois tipos:

a) sempre que se verifique que o tutor não está a zelar devidamente pelos interesses
pessoais e patrimoniais do pupilo;

b) Quando se revele inidóneo, quer por revelar inaptidão para o exercício do cargo quer
por deixar de reunir os requisitos legais que são impostos para a sua nomeação e vêm
previstos no art. 226°.

® Lei n.° 19/96 de 19 de abril:

ARTIGO 14.°
(Aplicabilidade de medidas de proteção social)

As medidas de proteção social são decretadas, quando esteja em perigo o bem-estar físico ou
moral do menor, designadamente, quando ocorram qualquer das seguintes situações:

a) sejam vítimas de maus-tratos físicos, morais ou de negligência por parte de quem os tenha à
sua guarda.

A remoção do cargo de tutor ou de membro do Conselho de Família pode ainda derivar da sua
condenação definitiva em pena maior, como prevê o art. 76.° do Código Penal,® o que aliás
seria sempre de integrar na previsão do citado art. 244.°, alínea b). Quando, pelo seu
comportamento, o tutor se revele inidó- neo para o cumprimento das funções inerentes ao
cargo ou quando o seu com¬portamento negligente se revele prejudicial aos interesses do
tutelado ou quando seja inapto para o seu exercício, ele deve ser removido.

A alínea b) prevê igualmente a remoção do tutor quando ele deixar de reunir os requisitos
legais, o que em parte se sobrepõe ao que atrás se referiu. Pois os requisitos legais obrigam a
que este esteja no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos e que tenha um
comportamento moral, profissional e social idóneo, que demonstre ser suscetível de ser um
bom educador para o tutelado.

Quando ocorrer a interdição legal do tutor, é óbvio que ele terá de ser removido. Bem assim
quando, no decorrer da tutela, surjam interesses antagónicos entre tutor e tutelado que
incompatibilizem o normal relacionamento entre ambos, que deve ser muito próximo do
relacionamento entre pai e filho.

Factos supervenientes podem vir a tomar necessária a remoção do tutor e a sua substituição
por outro que preencha as condições legais.

O tribunal goza de grande amplitude nos poderes de remoção do tutor, remoção que pode ser
pedida pelo Ministério Público, pelos membros do Conselho de Família ou por pessoa que
mostre interesse legítimo na proteção do menor.

Para a remoção deverá o tribunal ouvir os órgãos de tutela, o Ministério Público e o próprio
menor, desde que tenha a idade mínima legal.

Mas a remoção do tutor não é obrigatória, pois, de acordo com as circunstâncias, o tribunal
pode ponderar qual a forma de melhor proteger o interesse do menor e pode ordenar ou não
a sua remoção.

É o que se infere do corpo do art. 244.°, segundo o qual o tribunal «poderá» determinar a
remoção do tutor, o que indica que será o tribunal a decidir se, naquele caso concreto, há ou
não conveniência em se proceder à remoção do tutor.

O tutor pode, por seu lado, renunciar voluntariamente ao cargo.

{3) Código Penal:

ARTIGO 76.°
(Efeitos da condenação em pena maior)

O réu definitivamente condenado a qualquer pena maior, incorre: (...)

3. ° — Na (perda) de ser tutor, curador, procurador em negócios de justiça, ou membro


do conselho de família.

O art. 245.° do Código de Família é omisso quanto às causas que podem ser invocadas para
alicerçar o pedido de escusa.

O Código Civil português prevê uma série de fundamentos legais para a justificação do pedido,
que vão do exercício de certos cargos políticos e religiosos, à idade, local de residência, estado
de saúde, não ter a qualidade de parente ou de afim, etc.. No nosso direito, como a aceitação
do cargo é de natureza voluntária, entendeu-se deixar em branco as possíveis causas a invocar
pelo tutor, confiando-se ao arbítrio do tribunal a decisão sobre se elas são ou náo justificativas
do deferimento do pedido.

Sempre que ocorra a remoção ou renúncia do tutor, este é obrigado a prestar contas da gestão
do património do tutelado.

Na prestação de contas, que pode ser efetuada de forma simplificada, o tutor deverá
discriminar, por um lado, todas as receitas obtidas em representação do menor, devendo
indicar, no que se refere às despesas, os gastos feitos por conta da administração dos bens e
aqueles que respeitem aos alimentos do tutelado. Nas despesas com os alimentos estão
abrangidos os custos da habitação, alimentação, instrução, cuidados de saúde, etc.. As
despesas devem, em regra, ser justificadas com documentos escritos, com exceção daquelas
cujos usos tal dispensem.

O tribunal e o Conselho de Família, como órgãos de acompanhamento da tutela, são


responsáveis perante o tutelado pela exigência de rigorosa prestação de contas por parte do
tutor.

Quando cessar as suas funções de tutor, e designadamente, quando o tute¬lado atingir a


maioridade, tal como os progenitores devem fazer em relação aos filhos, está adstrito a fazer a
entrega material do bens móveis e imóveis por si administrados.

[135] Tutela vacante, administrativa e de facto

A situação atroz que se viveu durante anos no nosso País devastado pela guerra e pelo êxodo
maciço das populações, tornou realidade a situação de desamparo de milhares e milhares de
crianças.

Perante tal conjuntura, já não era possível designar o tutor de uma forma normal dentro da
família. E isto porque a família se desagregou ou porque o menor foi rechaçado, desde o
nascimento, pela própria família que o não acolheu.

O Código de Família prevê esta situação no seu art. 233.°, n.° 3, dispondo que, «verificada a
impossibilidade de constituição da tutela voluntária., será o menor declarado abandonado ».
Já vimos qual o conceito jurídico de um menor em situação de abandono, definida no art.
200.°, n.° 2 do Código de Família. Os fundamentos de facto que levam à declaração de
abandono são os mesmos, quer na tutela quer na adoção: a verificação pelo tribunal de que o
menor não tem quem efetivamente exerça em relação a ele os deveres que integram o
exercício da autoridade paternal.

Só que a declaração de abandono que se opera no processo de adoção é normalmente


desencadeada porque o adotante ou adotantes pretendem obter dela o efeito jurídico da
dispensa do consentimento.

No processo de tutela, a declaração de abandono surge no prosseguimento da instauração da


tutela e põe-lhe fim, porque, verificada a impossibilidade da nomeação do tutor, há que aplicar
a previsão do art. 234.° do Código de Família.

Será o Tribunal de Família a declarar a tutela vacante por impossibilidade de nomeação de


tutor, e comunicar o facto aos órgãos competentes de assistência social.

2. Tutela administrativa

O menor declarado abandonado deverá ser internado em estabelecimento de assistência ou


de educação, cabendo o cargo de tutor ao respetivo diretor.

Por outras palavras, é o próprio Estado, através das suas instituições vocaciona¬das para o
efeito, que vai assumir o encargo de criar e educar aquele menor abandonado pela sua família.
Esta tutela é de natureza administrativa e sai do âmbito das previsões do Código de Família,
sendo a tutela exercida pelo diretor do estabelecimento sem órgãos coadjuvantes.

O tribunal pode ser chamado a intervir quando haja que decidir questão relevante na vida do
menor ou quando surja um terceiro que mostre interesse legítimo na proteção do menor.

O que entre nós se passa é que, dado o elevado número de crianças a carecer de tutela, são os
próprios órgãos do Estado que não dão cumprimento às disposições legais que obrigam à
instituição obrigatória da tuteia pelos tribunais, que não

são chamados a intervir, como deviam, em tão relevante processo na proteção do menor.

O Código de Família (art. 229.°, n.° 2) impõe, como vimos, a determinadas pessoas e entidades
o dever de participar ao Ministério Público junto da Sala de Família do respetivo Tribunal
Provincial a existência de um menor em situação que exige a instauração obrigatória de um
processo de tutela, nos termos do art. 222.° do referido Código.

Muitas vezes este dever não é cumprido, o que significa que, com frequência, funcionários dos
organismos estatais e organizações humanitárias tomam conta do destino do menor de forma
administrativa, colocando-os em instituições de assistência ou em famílias substitutas, à
margem dos procedimentos legais. Fica omisso todo o acompanhamento judicial que devia ser
feito, e ficando o menor entregue à sua sorte e desprotegido.

3. Tutela de facto
A tutela de facto ocorre quando alguém se auto-investe na função de tutor, exercendo essas
funções sem para elas ter sido nomeado pelo tribunal, ou seja quando a tutela não está
institucionalizada como tutela facultativa ou obrigatória.

Na verdade, a tutela junto do tribunal, surge quando o menor tem um património a proteger e
o parente ou afim do menor ou a pessoa que o tem a seu cargo não cumprem o dever de
participação que lhes é atribuído pelo já citado art. 229.°, n.° 2. Assim, e mais uma vez, vemos
que em Angola muitas situações familiares são resolvidas à margem dos órgãos judiciais e do
Registo Civil. A tutela de facto tem na verdade uma ampla implementação no País e mantém-
se como tal, enquanto não surgir razão determinante para legalização da situação de facto.

E isto pela evidente razão de que, na quase totalidade dos casos, o menor que carece seja
instituída a tutela, não tem qualquer património, muito pelo contrário, precisa de quem cuide
dele, tomando sobre si os encargos de assistência material e outros que incumbiriam aos pais.

Vemos que, em muitos casos, aparece por livre vontade quem queira tomar conta do menor,
prestando-lhe cuidados de assistência em substituição dos pais, sendo a tutela exercida dentro
da família pelos avós, pelos tios, no mais comum dos casos, pelos irmãos mais velhos quando
os menores ficam órfãos.

Noutros casos a tutela é mesmo exercida por pessoas que não têm vínculo familiar com o
menor como aliás se verificou no conturbado período de guerra.

Nestas situações, a tutela constitui um encargo familiar, já que o tutelado não é possuidor de
qualquer bem. É, porém, importante ter em linha de conta que, nos casos em que houver bens
do menor a acautelar, tem que se proteger o seu

direito de sucessível, cabendo ao Ministério Público propor a competente ação de inventário


obrigatório e exigir a prestação de contas, quando for caso disso.

Os atos de administração porventura praticados pelo tutor «de facto» não vinculam o tutelado
e devem ser considerados como os de um gestor de negó¬cios, podendo ser ratificados pelo
tribunal ou pelo tutelado depois de atingir a maioridade.

O Código de Família dá relevância à tutela de facto, designando quem exerce essas funções
como «apessoa que tem o menor a seu cargo» e a mesma referência é feita no art. 233.°, n.° 2
quando se refere à nomeação do tutor dizendo que ele deve ser escolhido entre «os parentes
e afins do menor ou a pessoa que tiver o menor a seu cargo».

De igual modo, tanto na Lei n.° 19/96 de 19 de abril, Lei do Julgado de Menores, como no
Decreto n.° 6/03 de 28 de janeiro, Código de Processo do Julgado de Menores existem diversas
referências à «pessoa que tem o menor a seu cargo».

[136] Termo da tutela

Como já dissemos, a tutela é de natureza provisória, pois visa tão somente o suprimento da
autoridade paternal e tem o seu termo pelas mesmas causas jurídicas que levam à cessação
desta, ou seja, a morte do tutelado ou o facto de este ter atingido a maioridade. A regra é que
ela termina quando o menor atinge a maioridade por ter atingido os 18 anos ou por ter sido
emancipado pelo casamento (art. 132.°, n.° 2, alínea a) do Código Civil) ou quando tiver sido
constituído o vínculo da adoção.

Mas a tutela pode ainda cessar quando deixem de verificar-se as circunstâncias específicas
que, naquele caso concreto, levaram à constituição da tutela. O art. 243.° diz que:«
Constituem causas de cessação da tutela:

a) a remoção e a renúncia do tutor;

b) a maioridade ou o levantamento da interdição do tutelado;

c) a cessação das circunstâncias que levaram à instituição da tutela.»

No caso da alínea a) estamos perante um caso de cessação relativa, porque a tutela cessa em
relação ao tutor mas não em relação ao tutelado, a quem deve ser nomeado outro tutor.

Deve proceder-se à nomeação de novo tutor, como prevê o art. 246.°.

Os outro casos são casos de cessação absoluta da tutela em relação à pessoa do tutelado.

Especificadamente, as circunstâncias que podem alterar a constituição da tutela serão:

a) estabelecimento do vínculo da paternidade ou da maternidade quando o tutelado seja


filho de pais desconhecidos;

b) regresso do pai ou da mãe ausente ou impossibilitado de exercer o cargo;

c) termo da inibição da autoridade paternal;

d) cessação do impedimento de facto por parte dos pais de exercerem a sua autoridade
paternal.

A cessação da tutela por qualquer das causas aqui apontadas obriga sempre o tutor à
prestação de contas, tal como no caso da remoção e da renúncia, e à entrega do património
do tutelado.

O tribunal deverá sempre lavrar decisão em que se fundamente o que levou à cessação do
processo de tutela.
CAPÍTULO ZO.°

os ALIMENTOS

[137] Conceito, função social e fonte da obrigação de alimentos

A relações jurídicas familiares caraterizam-se por serem de natureza recíproca, solidária e


intercorrente. O grupo familiar tem entre si vínculos de diversa natureza, como o parentesco
(natural ou por adoção), o casamento, a afinidade, a união de facto ou a tutela. Os membros
do grupo familiar têm também a obrigação dc prestar entre si, assistência moral e material.

A obrigação de prestar alimentos é uma forma de prestação de assistência material entre os


membros da família.

No conceito de alimentos está abrangido tudo quanto o alimentado necessita para a sua
sobrevivência e manutenção como ser social.

Há quem classifique os alimentos em naturais e civis, englobando os alimentos naturais as


necessidades naturais do alimentado (como alimentação e vestuário) e integrando os
alimentos civis outro tipo de necessidades (como habitação, instrução, e saúde, etc.).

O art. 247.° do Código de Família dá-nos o conceito de alimentos, dizendo no n.° 1 que eles
compreendem tudo aquilo que for necessário ao sustento, saúde, habitação e vestuário. O n.°
2 deste artigo acrescenta que nos alimentos devidos a menores se compreende ainda a
educação e instrução.

A obrigação de alimentos emana do dever de cooperação e solidane c instituído com a


finalidade de proteger os interesses do próprio organ.smo

constituído pelo grupo familiar.

Os alimentos abrangem assim tudo quanto é necessário para a vida, incluindo os gastos com a
saúde, as despesas da demanda se o credor de alimentos tiver de recorrer a juízo para exercer
o seu direito, e até as despesas fúnebres que se têm

com a morte de familiares.

A obrigação de alimentos tem uma função social muito relevante, pois, recaindo sobre os
membros da família, leva a que sejam estes a satisfazer as neces-

Se tal não acontecer, e se esse dever não for cumprido, a obrigação de alimentos vai recair
sobre (e vai onerar) a própria sociedade e o Estado onde esses membros carentes e
desprotegidos se encontram.

O Estado é, pois, diretamente interessado em que seja devidamente cumprida a obrigação de


alimentos por aqueles que a isto estão obrigados por lei.
Em Angola, fruto da agudizaçáo da situação de guerra, deu-se em larga medida a rutura do
próprio tecido social e grande número de famílias vivem desprovidas de bens, deslocadas das
suas áreas de residência e produção, ficando impossibilitadas de cumprir os seus deveres
familiares.

Viveu-se uma situação social de tal gravidade que não só as famílias como o próprio Estado se
viram impossibilitados de atender às necessidades alimentares de toda a população. Neste
período de crise aguda, foi necessário recorrer à comunidade internacional para prestação de
ajuda alimentar.

Nota-se uma deterioração do que se passava na sociedade tradicional angolana em que a


prestação de alimentos dentro da família extensa, era muito preponderante.

Anteriormente, acontecia que a prestação de alimentos entre os membros da família persistia


para lá da obrigação legal e era feita de forma voluntária, por vezes entre parentes e afins em
grau afastado.

Nos países economicamente desenvolvidos a obrigação de alimentos é cada vez mais restrita e
póe-se em regra entre parentes em linha reta, cônjuge e pouco mais.

O desenvolvimento do sistema de segurança social leva a que seja o Estado, através das suas
instituições de previdência e segurança social, ou as empresas seguradoras que concedem
pensões ou subsídios por incapacidade ou reforma, que permitem a subsistência das pessoas
maiores impossibilitadas de angariar recursos, sem terem de recorrer a prestações de
alimentos dentro do círculo familiar.

[138] Natureza jurídica dos alimentos

A obrigação de alimentos existe opelegis, pois em regra é a lei que estabelece quem

a ela está obrigado.

Mas podem existir outras fontes desta obrigação, como o contrato e o testa- mento, o
instituto da falência, etc.. Nestes casos a obrigação de alimentos estará regulada pelas normas
do Direito das Obrigações, do Direito Sucessório, etc..

Dentro do âmbito do nosso estudo, vamos circunscrever-nos ao direito a alimentos que nasce
dentro das relações jurídicas familiares e que resulta diretamente da lei.

A obrigação de alimentos é uma obrigação de natureza estritamente pessoal, como as demais


obrigações e direitos que se inserem no Direito de Família.

Embora ela se possa resolver mediante uma prestação de valor pecuniário, ela não é de forma
alguma uma obrigação de natureza patrimonial. Trata-se, aqui, de um direito de natureza
pessoal.

Esta natureza pessoal deriva do objeto e da causa da obrigação de alimentos. Ela tem como
objeto a proteção do direito à vida do próprio titular do direito de alimentos, pois visa prover à
sua subsistência e ao seu interesse imediato como pessoa humana. Destina-se exclusivamente,
a satisfazer as necessidades e o sustento do alimentando Como tal, o direito a alimentos dever
ser considerado como um direito fundamental da pessoa humana, integrado no direito mais
amplo que é o direito à vida.

O art. 259.° (Caráter pessoal) prescreve: «0 direito de alimentos é imprescri¬tível,


irrenunciável intransmissívela terceiros e impenhorável».

Como um direito estritamente pessoal, não pode ser exercido senão pelo próprio titular ou
pelo seu representante legal.

Concomitantemente, a obrigação de alimentos tem como causa a existência de um vínculo


familiar, é uma obrigação específica imposta em razão desse vínculo existente entre
alimentante e alimentado.

É uma obrigação de natureza recíproca, porque, em princípio, ela estabelece-se entre os


membros da família em reciprocidade: os pais têm obrigação de alimentar os filhos e estes,
por sua vez, quando maiores, terão obrigação de alimentar os pais; os cônjuges, marido ou
mulher, têm obrigação de prestar entre si alimentos, etc..

É uma obrigação de ordem pública, porque eia não se limita a satisfazer os interesses de cada
credor de alimentos, mas também o interesse geral da sociedade. Precisamente por isso, o
Estado toma uma série de medidas para que a obrigação de alimentos seja satisfeita, de forma
a que ela não venha a recair sobre a coletividade em geral.

A obrigação de alimentos e o crédito alimentar têm uma natureza estritamente pessoal e em


razão da sua própria natureza jurídica, não estão sujeitos ao regime geral das demais
obrigações.

Do caráter pessoal do direito a alimentos reconhecido no art. 259.° do Código de Família,


decorre que ele só pode ser exercido pelo próprio titular e não por via

sub-rogatória.

Ele é imprescritível porque pode ser exercido em qualquer ocasião, desde que se verifiquem as
condições legais para tanto.

O titular do direito pode não o exercer e deixar de pedir os alimentos. Quando tal acontecer, a
lei presume que o facto de os alimentos não terem sido pedidos significa que eles não eram
necessários. Existe até o princípio aceite de que os alimentos não têm natureza retroativa.

Eles só são devidos depois da data da propositura da ação ou da sua fixação por acordo (art.
254.° do Código de Família), não podendo ser pedidas prestações pretéritas. Não seria
aceitável para a estabilidade das situações jurídicas que alguém fosse de uma só vez pedir
vários anos de pensões alimentares anteriores.

É certo que a lei civil dispõe que as prestações alimentícias já vencidas prescrevem no prazo de
5 anos, como prevê o art. 310.°, alínea f) do Código Civil. Mas isso não significa que o direito
em si, seja prescritível.
A eventual inércia do alimentado pode deixar prescrever pensões já vencidas, mas isso não
impede que se formule novo pedido de prestação alimentar. O pedido de alimentos, desde
que fundamentado na lei, pode ser pedido a qualquer tempo.

É ainda um direito indisponível, que não pode ser cedido a outrem, nem transacionado,
porque tutela um interesse essencial de determinada pessoa.

E é também um direito irrenunciável, porque, pela mesma razão, a renúncia iria pôr em causa
esse mesmo interesse essencial.

Ele é atribuído a uma pessoa em concreto, mercê do vínculo familiar que o liga ao devedor,
por conseguinte ele não pode ser cedido inter vivos nem transmitido mortis causa.

É um bem fora do comércio, que não pode ser usufruído por alguém que não seja o respetivo
titular. É também um direito impenhorável, mesmo que parcial¬mente, e isto porque a lei, ao
prever que seja fixada a prestação alimentar, tem em vista estabelecer o quantum
indispensável à pessoa que com ela é beneficiada, não podendo esse quantitativo ser
reduzido.

Não pode haver compensação de dívida do credor da prestação de alimentos para com o
devedor dessa prestação. Quer dizer: mesmo que o beneficiário da pensão de alimentos tenha
uma dívida para com quem lhos presta, o devedor da obrigação de alimentos não pode fazer
valer essa dívida para operar a compensação do seu crédito com o seu débito respeitante às
prestações alimentares.

[ 139] Garantia da obrigação de alimentos

O crédito alimentício goza de especial garantia, pois o Código Civil dispõe no seu art. 705.°
(Credores com hipoteca legal): «Os credores com hipoteca legal são: (...) a) O credor por
alimentos.»

Como tem vindo a ser entendido, «A justificação da atribuição duma hipoteca legal radica na
necessidade de garantir determinados credores que não poderiam obter o consentimento do
devedor para uma hipoteca convencional, ou só o poderiam obter com dificuldade ou
sacrificando a natural delicadeza existente entre credor e devedor. >> Elas traduzem-se numa
especial garantia dada por lei ao crédito alimentício em razão do direito protegido.

«Cumpre salientar — como aliás decorre da letra do art. 704.° — estas hipo¬tecas, ao invés do
que acontece com as hipotecas voluntárias, não resultam da vontade das partes, mas antes da
determinação da lei, podendo constituir desde que exista a obrigação a que servem de
segurança ». «No caso particular da obri¬gação de alimentos, o instrumento que pode servir
de base ao registo da hipoteca poderá (...) ser a certidão da decisão judicial que haja
condenado o devedor».

O crédito de alimentos está pois sujeito a registo, como prevê o art. 2.°, n.° 1, alinea h), do
Código do Registo Civil.
A hipoteca poderá ser registada logo que esteja constituída a obrigação e sem embargo de ela
se referir a obrigações futuras ainda não vencidas, dado o caráter periódico das obrigações
alimentícias. A hipoteca pode incidir sobre bens imóveis e sobre bens móveis sujeitos a registo.

Alem desta garantia, gozam ainda de privilégio mobiliário geral sobre os bens móveis, nos
termos estabelecidos no art. 737.° do Código Civil: «0 crédito por despesas indispensáveis para
o sustento do devedor e das pessoas a quem este tenha a obrigação de prestar alimentos,
relativo aos últimos seis meses.» [140] Sujeitos ativos e sujeitos passivos da obrigação de
alimentos

A obrigação legal de alimentos vem genericamente estatuída no art. 249.°, n.°s 1 e 2. Mas
dentro do Título VIII do Código de Família essa obrigação vem ainda mencionada no art. 260.°,
que se refere aos cônjuges e companheiros de união de facto, e no art. 262.°, que estabelece o
mesmo direito entre ex-cônjuges e ex-companheiros de união de facto.

Aliás, nas relações entre cônjuges está previsto na lei o dever recíproco de assistência material
(art. 43.°) e de contribuição para os encargos da vida familiar (art. 46.°).

Após a dissolução do casamento, pode persistir a obrigação de alimentos, quer no caso de


divórcio por mútuo acordo (art. 85.°, alínea b) quer no caso de divórcio litigioso (art. 104.°, n.°
1, alínea a) e art. 111.°).

Nas relações paterno-filiais vem estabelecida, por um lado, a obrigação dos pais de prestarem
assistência (art. 131.°) e de se responsabilizarem pelos alimentos dos filhos (art. 135.°) e, por
outro lado, a obrigação dos filhos de prestarem assistência aos pais (art. 132.°).

Do lado do sujeito ativo da obrigação alimentar, devem distinguir-se duas situações, de acordo
com o que dispõe o art. 248.° «Só poderão pedir alimentos: a) Os menores; b) As pessoas que
não possam pelo seu trabalho garantir o seu sustento e não disponham de recursos.»

Há portanto que distinguir entre a obrigação de alimentos a menor e a maior de idade, sendo a
primeira de caráter incondicional, ou seja o menor tem sempre direito a receber alimentos. Já
em relação a maiores o direito a alimentos está sujeito ao condicionalismo expresso na lei.

Aliás da redação do corpo art. 248.° que usa o termo «Só», se pode retirar a norma
orientadora sobre quais os maiores que têm direito a alimentos no nosso ordenamento
jurídico: os que não tenham capacidade para o trabalho e simultaneamente não disponham de
recursos.

Este posicionamento legal correspondia a uma conceção de sociedade dirigida para o


socialismo, em que cada cidadão tinha o direito-dever de estar inserido no mercado de
trabalho e de autonomia dos jovens a partir dos 18 anos. Com o ensino superior gratuito e o
acesso garantido ao mercado de trabalho não se colocava a questão da prestação de alimentos
a filho maior na fase de concluir a sua formação profissional.

A transformação dessa realidade leva a que se deva alterar a lei para uma melhor proteção dos
filhos maiores de 18 anos, mas que necessitem de apoio dos pais para a sua formação de
ensino superior, no condicionalismo que for estatuído por lei.
A obrigação de alimentos a menor, é mais extensa, e incumbe em primeiro lugar aos pais e
adotantes e depois aos demais ascendentes em linha reta, sem qualquer limite (avós, bisavós,
etc.). Faltando os ascendentes, a obrigação recai sobre os irmãos maiores, sejam eles
germanos, uterinos ou consanguíneos, não distinguindo a lei nenhuma prioridade entre eles.
Os tios são ainda obrigados a prestar alimentos aos sobrinhos, no caso da falta dos parentes
atrás mencionados,

pelo que a obrigação de alimentos entre parentes existe até ao 3.° grau da linha colateral. Em
último lugar aparece o padastro ou a madrasta, mas só no caso da morte do cônjuge, o que
significa que a obrigação de alimentos existe só no l.° grau da linha reta da afinidade.

A Convenção sobre os Direitos da Criança no seu art. 27.° n.° 2 atribui primacialmente aos pais
«assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, as condições de vida
necessárias ao desenvolvimento da criança».

A obrigação de alimentos entre maiores cabe, em primeiro lugar, ao cônjuge ou ex-cônjuge e,


por extensão, ao ex-companheiro de união de facto que reuna os pressupostos legais para o
reconhecimento.

Seguem-se por esta ordem: os descendentes (e dentre eles os de grau mais próximo) e os
adotados, os ascendentes (dentre eles os de grau mais próximo) e os irmãos, também sem
distinção entre irmãos bilaterais ou unilaterais.

A obrigação de alimentos entre maiores vai só até ao 2.° grau na linha colateral. A ordem
presente na lei é de natureza taxativa e cada obrigado na respetiva escala deve cumprir a
obrigação de alimentos em sucessivo e não em simultâneo.

Como a obrigação é de natureza recíproca, aquele que é hoje sujeito ativo (credor da
obrigação) pode mais tarde passar a ser sujeito passivo (devedor da obrigação).

A obrigação de alimentos pode recair sobre mais de um sujeito passivo: pai e mãe, avós
maternos e paternos, diversos irmãos maiores, etc..

Havendo concurso de obrigados à prestação de alimentos cía resolve-se de forma


diferenciada.

A obrigação de alimentos dos pais em favor de filhos menores é obrigação de natureza


solidária (art. 135.° do Código de Família), o que significa que o filho a pode pedir por inteiro a
um dos pais, tendo aquele que a prestar, direito de regresso em relação ao outro.

Havendo mais do que um obrigado (por exemplo os avós em relação a um neto, os filhos
maiores em relação ao pai ou à mãe, etc.) o credor de alimentos pode optar entre pedir a
prestação de alimentos a um só devedor ou a um conjunto de devedores. A lei não determina,
dentro de cada classe de obrigados, qual a prioridade a dar à linha materna ou à linha paterna
de parentesco, a este ou àquele parente quando forem mais do que um dentro da mesma
classe.

Se o credor propuser a ação contra um só parente de um determinado grau de parentesco,


este poderá ou chamar à ação os demais co-obrigâdos ou usar contra eles o direito de regresso
para pagamento da sua quota-parte se apurar que eles também estavam em condições de
contribuir para os alimentos.

O art. 253.° do Código de Família refere-se à pluralidade de obrigados, dizendo que, quando a
obrigação recair sobre mais de uma pessoa, a prestação de cada uma será proporcional à sua
capacidade económica.

Dentro de cada classe de obrigados, a obrigação de alimentos não é solidária mas proporcional
à capacidade económica de cada um (art. 253.° do Código de Família).

O n.° 3 do art. 249.° diz que a obrigação pode ser repartida por vários obrigados. Se algum dos
obrigados não puder satisfazer a prestação, a parte que lhe cabe acresce aos demais (art.
253.°, n.° 2). A cada co-obrigado caberá uma cota proporcional à sua capacidade económica o
que desde logo não envolve uma responsabilidade solidária.

No entender da doutrina, a ordem e a hierarquia entre os obrigados só é aplicável quando


estes podem prestar integralmente os alimentos: se o obrigado mais próximo não pode prestá-
los, deve fazê-lo o obrigado seguinte; se aquele só pode prestar parte, deve o seguinte prestar
o resto .

A ordem de prioridade deve ser seguida: só quando se verificar a impossibilidade dos


primeiros obrigados poderão ser demandados os que se seguem. Como a prestação de
alimentos está sujeita ao condicionalismo da capacidade económica de quem a presta, nem
sempre é possível determinarapriori qual dos co-obrigados está em melhores condições
materiais de a satisfazer.

Estamos, porém, perante uma forma especial de concurso de devedores, a qual não se rege
stricto sensu pelas regras da obrigação conjunta. O alimentado pode requerer a prestação de
alimentos a um só dos obrigados, aquele que entende estar em situação de maior desafogo
económico para a poder prestar.

Neste caso, como vimos, cabe ao demandado fazer intervir na ação os demais co-obrigados
para estes virem a assumir a obrigação da prestação da sua quota- parte, ou vir a posteriori
exercer a ação de regresso contra eles. No caso de dentro duma classe de obrigados um ou
mais, não estiverem em condições de prestar alimentos, a obrigação recai sobre os demais que
integrem essa mesma classe.

O alimentando é que, a nosso ver, não deve ver dificultado o direito à obtenção da pensão de
alimentos, sem embargo de que, se o devedor escolhido não for o mais indicado sob o ponto
de vista da capacidade económica, este pode só vir a ser condenado a uma prestação de
acordo com a sua capacidade.

Já atrás vimos como se concretiza a obrigação de alimentos entre cônjuges, pois quando existe
coabitação essa obrigação efetua-se na participação comum nos encargos gerais da vida
familiar que visam prover às necessidades da vida material e inteletual dos membros da
família.
Essa obrigação prolonga-se havendo simples separação de facto c depois da dissolução do
casamento por divórcio — artigos 260.° e 262.°, n.° 1 do Código de Família.

A obrigação de alimentos entre os companheiros de união de facto produz-se desde que esta
reuna os pressupostos legais para o reconhecimento por comum acordo ou por via judicial —
art. 260.°. No primeiro caso, os efeitos são os mesmos que os do casamento, e os
companheiros passam a ter reciprocamente os mesmos direitos e deveres dos cônjuges, entre
os quais se inclui o de prestar alimentos. No segundo caso, o pedido pode ser formulado
conjuntamente com o do reconhecimento da união de facto por via judicial.

No caso de reconhecimento de união de facto judicial por rutura, ele produz os mesmos
efeitos que a dissolução do casamento por divórcio (art. 126.° do Código de Família).

Mas o regime aplicável não é o mesmo que ocorre no caso de divórcio.

Neste caso, o art. 111.° do Código de Família manda atender à situação social e económica, à
necessidade de educação dos filhos e às causas do divórcio.

No caso da união de facto que terminou por rutura, o art. 262.°, n.° 2 impóe que o
companheiro não tenha dado causa exclusiva à rutura.

Compreende-se a razão de ser desta disposição, uma vez que a união de facto é de natureza
eminentemente voluntária, e, portanto, se um dos companheiros é o responsável exclusivo do
fim da união, não seria curial que pudesse ainda vir pedir alimentos ao ex-companheiro.

A disposição nova introduzida no art. 264.° do Código de Família prevê que o pai de uma
criança já concebida, mesmo que não coabite com a respetiva mãe, esteja obrigado a prestar
alimentos durante o período de gravidez e até seis meses após o parto, pois, em regra,
durante este período, a mulher não tem condições para exercer uma atividade profissional
plena.

Neste caso, a obrigação de alimentos tem a sua raiz no vínculo de paternidade em relação ao
nascituro e ao recém-nascido, sendo necessário que se verifiquem os demais requisitos legais.

[ 141 ] Modo, vencimento e lugar de cumprimento da obrigação de alimentos

A obrigação de alimentos pode ser prestada por duas formas:

a) em prestação pecuniária;

b) em espécie.

A forma de prestação em espécie é aquela que normalmente é prestada quando o alimentado


vive em economia comum com quem está obrigado a prestar-lhe os alimentos e dele recebe a
habitação, o sustento, o vestuário, etc..

A prestação pecuniária ou pensão de alimentos, traduz-se numa determinada quantia em


dinheiro que é entregue ao alimentado ou ao seu representante legal. Esta prestação tem
caráter periódico e prolonga-se enquanto vigorar a obrigação de prestar alimentos.
O art. 252.° do Código de Família estabelece que, em princípio, os alimentos devem ser fixados
em prestações pecuniárias mensais.

Permite, porém, que seja adotada solução diversa quando tal se justifique.

A lei prevê que se possa acumular a prestação pecuniária com a prestação em espécie, como
por exemplo quando o pai pode dar a um filho, além de uma pensão mensal, o direito ao
levantamento de bens de comércio para consumo, a assistência médica, ou permitir a entrega
de produtos agrícolas ou pecuários para alimentação, etc..

Em cada caso, e de acordo com as circunstâncias concretas, será fixado o modo como deve ser
cumprida a prestação.

Os alimentos podem ser fixados por acordo das partes ou por decisão judicial. Se os alimentos
disserem respeito a menores, o acordo terá de ser homologado pelo tribunal.

Quando os alimentos tiverem sido fixados de forma amigável entre o alimen¬tado e o devedor
da obrigação, os alimentos são devidos a partir da data do acordo.

No caso de terem sido fixados por decisão judicial, os alimentos são devidos desde a data da
propositura da ação (art. 254.° do Código de Família), pois entende-se que foi a partir dessa
data que o alimentado começou a necessitar de que lhe fossem atribuídos os alimentos.

Como vimos, os alimentos não retroagem. Há duas formas de fixação de alimentos: os


alimentos provisórios e os alimentos definitivos.

Atendendo à premência que o alimentado pode ter em que lhe sejam prestados os alimentos,
por poder estar em causa a sua sobrevivência, está previsto que eles sejam fixados a título
provisório. Na verdade, a situação de urgência em que se encontra a pessoa que vem pedir os
alimentos pode não ser compatível com o decurso até final de uma ação judicial.

A finalidade da lei é assegurar o cumprimento da obrigação alimentar o mais rapidamente


possível.

O art. 256.°, n.° 1 do Código de Família permite que, não estando ainda reunidas as condições
para uma decisão definitiva, o juiz possa, segundo o seu prudente critério, conceder alimentos
provisórios, devendo indicar como provisoriamente responsável pelo seu pagamento um único
obrigado.

O alimentado em caso algum terá de restituir os alimentos provisórios que recebeu — art.
256.°, n.° 3. Isto compreende-se porque, destinando-se os alimentos, sob as suas diversas
formas, a ser consumidos, torna-se impossível a sua devolução.

Mas se quem prestou alimentos não foi a pessoa que estava obrigada a fazê-lo, ou se só uma
pessoa prestou alimentos sendo vários os obrigados a prestá-los, essa pessoa terá direito a ser
reembolsada do que tiver prestado, total ou parcialmente, por aquele(s) sobre quem recaia a
obrigação de alimentos ou por aquele(s) que também era(m) legalmente devedor(es) da
prestação (art. 256.°, n.° 2, do Código de Família).
Quanto ao lugar do cumprimento da obrigação de alimentos, o Código de Família nada estatui,
pelo que é de aplicar a regra geral das obrigações segundo a qual o lugar do cumprimento da
prestação é no domicílio do credor (art. 774.° do Código Civil). Deverão ficar a cargo do
devedor todos os custos que derivarem do cumprimento da obrigação no domicílio do
alimentado.

[142] Medida e natureza variável dos alimentos

Como foi mencionado, a medida dos alimentos é fixada consoante as possibilidades


económicas de quem os presta e a necessidade de quem os recebe. E se quem pede os
alimentos é alguém que devesse fazer parte do agregado familiar do obrigado, como o cônjuge
ou o filho, aí a obrigação é mais ampla.

Deverá atender-se ao nível social e económico de quem está obrigado a prestar alimentos, de
forma a que quem os recebe possa manter um nível de vida idêntico àquele de que
beneficiaria se vivesse no seio do agregado familiar do obrigado a prestar os alimentos.

Quando a prestação de alimentos for devida a filho menor deverão ser tidas em conta as suas
necessidades de instrução e educação e de manutenção do nível de vida idêntico ao do pai ou
da mãe que lhe presta os alimentos.

O art. 251.° do Código de Família contém uma disposição inovadora, pois, quando os alimentos
forem devidos a filhos menores, o seu montante deve ser fixado entre o mínimo de 1/4 e o
máximo de 1/2 do valor auferido pelo progenitor em causa. No cômputo desse montante
serão englobados todos os valores auferidos (vencimentos, rendimentos e outras formas de
ganhos).

Ao fixar a prestação de alimentos, o tribunal, de acordo com o seu prudente arbítrio, deverá
determinar qual o quantitativo justo, de forma a não prejudicar o demais agregado familiar do
obrigado, nem tampouco permitir que a prestação fixada não seja adequada à satisfação das
necessidades do obrigado.

Quanto maiores forem os recursos económicos do obrigado, maior será, obviamente, a pensão
alimentar, procurando-se obstar a que os tribunais sigam a tendência que tem vindo a
predominar, de fixarem pensões diminutas.

Na sociedade angolana, com a permanência das relações de poligamia de um homem


convivendo maritalmente com mais de uma mulher e tendo delas em simultâneo vários filhos,
põe-se com acuidade a questão de saber qual o quantum a fixar. E isto porque, na maioria dos
casos, o obrigado não tem na verdade capacidade económica para arcar com a
responsabilidade de prestar alimentos, instrução e educação a todos os filhos que procriou. Se
o obrigado tiver vencimento certo, não será possível ir além de metade do seu valor.

Pode até verificar-se a impossibilidade de prestação de alimentos por de tal resultarem graves
prejuízos para o cônjuge, para outros filhos menores e para o próprio obrigado.
A solução legal, no caso de o obrigado não ter disponibilidade para satisfazer uma prestação
pecuniária, é a de este se oferecer para receber em sua casa o alimentado, como vem previsto
no art. 252.°, n.° 2 do Código de Família.

Esta via de solução tem que partir da iniciativa do obrigado, que deve requerer isso mesmo à
entidade que tiver o pedido entre mãos, o tribunal, mas tem que ser aceite voluntariamente
pelo alimentando, ou pelo seu representante legal, pois não se pode impor uma convivência
familiar indesejável.

Como em regra, o pedido de alimentos é formulado pela mãe relativamente ao pai, esta forma
de cumprimento da obrigação levaria a que o filho deixasse de estar entregue à mãe para
passar a conviver com o pai e uma madrasta, o que em regra não é bem aceite.

Na maior parte dos casos, esta solução também não é satisfatória, pois, se os recursos já são
insuficientes, o acréscimo de mais uma pessoa dentro do lar só virá a piorar a situação
daqueles que lá se encontram e não vai satisfazer devidamente as necessidades do
alimentado.

A lei trata de forma diferente a obrigação de alimentos quando forem prestados a maiores,
pois neste caso, como vimos, o credor do pedido tem que justificar que não possui recursos e
que não tem possibilidade de os angariar pelos seus próprios meios. Cada cidadão tem o dever
de trabalhar para prover à sua própria subsistência, devendo em cada caso ser avaliada a
situação de quem pede os alimentos.

Uma vez fixada a prestação alimentar, ela será variável desde que se alterem as circunstâncias
em que se baseou a decisão.

Ela visou uma situação concreta e será alterada de acordo com as circunstâncias que lhe
serviram de premissa, quer em relação ao sujeito ativo quer em relação ao sujeito passivo da
obrigação.

O art. 257.° do Código de Família prevê a natureza variável da medida dos alimentos, dizendo
no seu n.° 1 que ela pode ser alterada de acordo com as circunstâncias de quem recebe e de
quem presta os alimentos. Trata-se de um princípio de ordem pública, pelo que não pode ser
objeto de renúncia.

O n.° 2 do art. 257.° acrescenta que, por essa razão, poderão ser chamadas outras pessoas a
prestar os alimentos. Pode ocorrer que, depois de terem sido atribuídos os alimentos, a pessoa
que esteja obrigada a prestá-los se venha a encontrar na impossibilidade de continuar a fazê-
lo, podendo transferir-se a obrigação para outro parente de grau mais afastado.

Ao invés, pode o alimentando deixar de carecer de pensão de alimentos, em virtude de passar


a dispor de recursos próprios, etc..

Quando a prestação de alimentos estiver desajustada em razão da alteração do custo de vida,


os interessados podem pedir a sua atualização.
Certas legislações prevêem expressamente que sejam fixadas cláusulas de indexação que
permitam uma atualização permanente das pensões alimentares, mantendo assim o valor real
da pensão e o poder de compra do alimentado relativamente aos bens de que necessita para a
sua subsistência.

Dada a situação inflacionista que atualmente se vive, consideramos mesmo indispensável que
nas decisões judiciais se prevejam índices de atualização permanente das pensões alimentares,
poupando aos alimentados a necessidade de recorrer periodicamente a juízo para obter a
atualização do valor da pensão.

[143] Execução da obrigação de alimentos

Porque a prestação de alimentos visa prover à subsistência de uma pessoa, esta finalidade
confere-lhe especial importância de natureza social. Não é só o interesse do beneficiário que
está em jogo mas o da sociedade, e, por conseguinte, o do próprio Estado. Está instituído o
princípio de que a falta de cumprimento da obrigação de alimentos se presume, e, salvo prova
em contrário, recai sobre o próprio obrigado.

Daí que nos diversos sistemas jurídicos estejam previstas medidas específicas para obter
coercivamente o cumprimento da obrigação, enveredando por vias expeditas de execução e
prevendo sanções de natureza penal para os relapsos.

No geral, a falta de cumprimento da obrigação alimentar é punida criminalmente e é


considerada como violação de obrigação de assistência familiar. Os pressupostos do delito são
por um lado um sujeito em estado de necessidade e por outro um sujeito obrigado a prestar
alimento, sendo em regra previsto que o incumprimento se verifique por determinado período
de tempo.

No aspeto criminal, é certo que existia, como ainda existe, a Lei n.° 2053, de 22 de agosto de
1952 (Lei do Abandono de Família), que pune a falta de cumprimento voluntário dos deveres
conjugais e paternais, designadamente o não cumprimento da obrigação alimentar.

O conceito de abandono abrange uma conduta que consiste na ausência da prestação de ajuda
material e moral que a lei impõe a um membro da família, seja na qualidade de cônjuge seja
na qualidade de progenitor e que se traduz na assistência material e moral, inererentes à
«patria potestas, à tutela ou ao estado matrimonial».

«Abandono quer dizer omissão, desamparo, renúncia, ou abstenção de algo que se é obrigado
relativamente à família, imposto pela natureza ou pela lei« O delito de abandono de família
castiga a omissão dos deveres de assistência de solidariedade conjugal e paternofilial» .

O Anteprojeto do Código Penal integra como «Crimes Contra Outros Bens Jurídicos Familiares»
o crime de Abandono material no art. 230.°: «1 — Quem sem justa causa, deixar de prover à
(...). Cônjuge ou de pessoa em situação análoga, de filho menor de 18 anos ou incapaz para o
trabalho, ou de ascendente incapacitado não lhe proporcionando os recursos necessários ou
faltando ao pagamento de pensão alimentícia a que estejajudicialmente obrigado (...) épunido
com pena de prisão até 2 anos ou com multa até 120 dias.» A omissão tem que ter caráter
voluntário e ser imotivada, sem causa que a justifique.
A Lei Contra a Violência Doméstica, Lei n.° 25/11 de 14 de junho, integra o abandono familiar
como infração criminal definindo como «qualquer conduta que desrespeite, de forma grave e
reiterada, a prestação de assistência nos termos da lei», art.° 3.°, n.° 2 al. f). No seu art.° 25.°,
al. b) define como crime público entre outros «afalta reiterada de prestação de alimentos a
criança » que é punido com a pena de prisão de 2 anos, se outra mais grave lhe couber nos
termos da legislação.

Para satisfazer as necessidades de sobrevivência do alimentado, certos sistemas legais


prevêem que seja o Estado a substituir-se ao devedor, adiantando o pagamento da pensão em
falta

Em França, por exemplo, prevê-se até que, em certas condições, se use o pro¬cesso de
cobrança pública em que é exequente o Procurador da República e que segue as normas de
cobrança das contribuições diretas devidas aos Estado.

O Estado, por sua vez, toma sobre si o encargo de pagar previamente a pensão de alimentos
ao seu beneficiário, executando depois o devedor com o acréscimo de uma taxa legal.

Em Portugal a Lei n.° 75/98 de 19 de novembro estatui que seja pago pelo Estado ao menor
residente em território português, desde que o alimentado não possua rendimentos
superiores ao salário mínimo nacional, a pensão de alimentos que devia ser paga pelo
obrigado.

O sistema previsto antes da entrada em vigor do Código de Família, ou seja no Código Civil e
no Estatuto da Assistência Jurisdicional aos Menores, era de débil garantia quanto à efetiva
cobrança da pensão de alimentos, verificando-se inúmeros casos em que os obrigados ficavam
impunes, apesar de não cumprirem as suas obrigações legais, mesmo quando reconhecidas
por decisão judicial.

Há que reconhecer, porém, que a Lei do Abandono de Família, ao longo da sua longa
existência, não tem sido objeto de aplicação prática e tem deixado sem sanção a generalidade
dos casos de violação dos deveres de assistência familiar, quer sob o ponto de vista moral quer
material. Mormente o dever de prestar alimentos, que é sem dúvida um dos mais importantes.

Com a publicação do Código de Família, a situação sofreu alterações e simplificaram-se os


mecanismos da respetiva cobrança.

O Preâmbulo da Lei n.° 1/88, que aprovou o Código de Família, menciona precisamente as
alterações feitas quanto à medida de alimentos devidos a menores, acrescentando que se
atribui ao tribunal a possibilidade de ordenar à entidade patronal do obrigado que pague os
alimentos diretamente ao alimentando.

No geral, podemos dizer que a execução da obrigação de alimentos pode efetuar-se por duas
vias:

a) Por via civil, em ação executiva especial;


b) Por via criminal, funcionando o pagamento das prestações como condição de ser
dispensada ou extinta a pena, como acontece na legislação portuguesa e está previsto na
projetada lei penal angolana.

Já mencionámos que a obrigação de alimentos é uma obrigação «dever» de interesse e ordem


pública, pelo que o seu incumprimento está sujeito a sanções especiais, diferentes das demais
obrigações em geral.

O art. 255.° do Código de Família prevê o que poderá ser feito pela via judicial civil, no caso de
execução de alimentos.

Contrariamente ao que acontecia na legislação anterior, o Código de Família atribui ao tribunal


que proferir a decisão, em regra a Sala de Família, competência para a execução da respetiva
sentença.

O n.° 1 do art. 255.° diz expressamente que o tribunal deve promover oficiosamente todas as
diligências que se mostrem necessárias.

O alcance desta disposição é muito lato. Permite que, por iniciativa do próprio juiz, que pode
para tal mandatar o escrivão do tribunal, se investigue a existência de bens do devedor,
pedindo informações a entidades públicas e privadas para saber da sua situação económica, e,
em consequência, proceder à penhora dos bens que forem encontrados.

Neste caso o interesse público de satisfazer as necessidades do alimentado prevalece sobre o


dever de sigilo profissional a que as entidades bancárias estão adstritas, devendo estas prestar
as informações que lhes forem solicitadas para efeito de execução coerciva da dívida.

O Ministério Público e o credor de alimentos podem também vir aos autos indicar os bens a
apreender para satisfação da quantia exequenda.

Como muitas vezes acontece que o devedor dos alimentos procura subtrair-se à sua obrigação
ocultando os seus bens em nome de terceiros, o tribunal deverá, investigar e se em concreto
se convencer de tal, ordenar a penhora sobre bens que estejam na efetiva posse do obrigado,
como recheio de residência, viaturas automóveis, etc..

No caso de se tratar de trabalhador por conta de outrem, o n.° 2 do art. 255.° permite que se
efetue o pagamento direto entre o centro de trabalho (seja ele entidade patronal pública ou
privada) e o beneficiário da pensão de alimentos.

Dispensa-se assim a intervenção do obrigado nesse pagamento, o que simulta¬neamente


encurta o prazo de recebimento e obsta a que haja desvio por parte do obrigado. Opera-se a
sub-rogação do crédito do devedor sobre o terceiro que é seu devedor, diretamente a favor do
credor da obrigação alimentícia.

Basta para tal que o tribunal mande proceder à notificação judicial de ter¬ceiro que é devedor
do salário ou vencimento, ficando esse terceiro obrigado a

satisfazer o cumprimento da obrigação enquanto perdurar a decisão e sc mantiver a obrigação


jurídico-laboral ou de emprego.
O devedor da prestação, que pode consistir em salários, participações em lucros, comissões,
prémios ou outros rendimentos, fica obrigado a operar o pagamento que lhe foi notificado ao
alimentando, sob pena de incorrer nas sanções previstas para o depositário infiel.

Na grande maioria dos sistemas jurídicos, a tendência é, como vimos, considerar hoje a falta
injustificada de pagamento da pensão de alimentos como uma infração penal, prevista entre
os delitos cometidos contra a família.

A legislação penal angolana carece de urgente atualização, de forma a punir os infratores que
voluntariamente se furtem ao cumprimento da obrigação de alimentos.

A execução da obrigação de alimentos pode seguir em simultâneo a via civil e a via criminal, de
forma a que seja alcançado o cumprimento efetivo da obrigação, sempre tendo em conta o
interesse do beneficiário e o da sociedade em geral, em que ela seja devidamente satisfeita.

O citado art. 27.° da Convenção dos Direitos da Criança, prevê no seu n.° 4 que sejam tomadas
medidas para a cobrança da pensão alimentar mesmo entre Estados diferentes.

Entre Angola e Portugal foi celebrado o mencionado Acordo de Cooperação Jurídica e


Judiciária aprovado pela resolução n.° 60/04 e publicado em 7 de novembro de 2005 que no
seu Capítulo II sobre Reconhecimento e Execução de Decisões Relativas a Obrigações
Alimentares — nos artigos 14.° e seguintesprevê as condições que permitem que sejam
executadas as decisões judiciais proferidas sobre alimentos entre nacionais dos referidos
Estados.

Este acordo celebrado em 30 de agosto de 1995, e aprovado pela Assembleia Nacional em


sessão de 10 de agosto de 2004, foi só publicado na data acima indicada. Com um total de 145
artigos é extensivo a diversas áreas de direito sendo que em matéria de direito de família ele
incide sobre «Reconhecimento e Execução de Decisões Relativas a Obrigações Alimentares».

ARTIGO 14.°

(Decisões abrangidas)

1. Opresente capítulo é aplicável às decisões em matéria de obrigações alimentares


provenientes de relações de parentesco, casamento e afinidade proferidas por tribunal de
Estado Contratante.

2. O presente capítulo é também aplicável às transações celebradas sobre essa matéria


perante essas entidades e sobre essa matéria.

X As decisões e transações referidas nos números antecedentes tanto podem ser as que fixem
alimentos como as que modifiquem decisões ou transações antecedentes.

4. 0 presente capítulo é ainda aplicável às decisões e transações em matéria de união de


facto nos precisos termos em que o direito respetivo tenha correspondência no Estado de
execução.

5. Para efeitos do presente capítulo o Estado referido no n.° 1 designa-se Estado de


origem.
Desconhecemos qual tem vindo a ser o âmbito de aplicação deste Acordo e como tem vindo a
processar se na prática o seu desempenho.

[144] Extinção do direito e da obrigação de alimentos

A extinção do direito e da obrigação de alimentos pode resultar de duas ordens de fatores:

a) a verificação de um facto;

b) a decisão judicial.

Os casos de extinção da obrigação de alimentos vêm expressamente previstos no art. 258.° do


Código de Família, regulando o art. 263.° a obrigação entre ex-cônjuges ou companheiros de
união de facto.

O art. 258.°, n.° 1, alínea a), diz que a obrigação de alimentos cessa pela morte do obrigado ou
do alimentado. No seu n.° 2 prevê este artigo que o alimentado exerça o seu direito em
relação a outros, igual ou sucessivamente obrigados.

É a consequência legal da caraterística pessoal do direito a alimentos, que não é transmissível


post mortem. Essa intransmissibilidade verifica-se quer em relação ao credor dos alimentos
(pois o seu direito não se transmite para os seus herdeiros) quer em relação ao devedor dos
alimentos (pois os herdeiros deste não ficam obrigados ao cumprimento da obrigação).

Isto não significa que, se houver prestações já vencidas e não pagas, o credor da obrigação (o
alimentando), não possa vir exigi-las sobre os valores existentes da herança do devedor da
obrigação. Por ter cessado o vínculo familiar que unia o obrigado e o alimentado, deixou de
existir um dos pressupostos legais.

Na obrigação de alimentos entre ex-cônjuges ou companheiros de união de facto, a que já nos


referimos, ela extingue-se ainda pela verificação dos factos mencionados no art. 263.° do
Código de Família (ter sido contraído novo casamento ou ter sido constituída nova união de
facto).

A extinção da obrigação por via de decisão judicial é aplicável a todos os demais casos. O art.
258.° do Código de Família menciona como casos de extinção da obrigação os seguintes:

a) quando o alimentado maior de idade viole gravemente os seus deveres para com o
obrigado;

b) quando aquele que presta os alimentos não possa continuar a prestá-los ou aquele
que os recebe deixe de ter necessidade deles.

Por sua vez o art. 263.°, no caso específico de ex-cônjuges e companheiros, acrescenta ainda o
caso de atentado grave contra a honra do obrigado.

No caso da alínea b) do art. 258.° estamos perante pessoas ligadas por vínculo familiar que
estão adstritas a determinados direitos e deveres específicos. Havendo violação grave desses
deveres, pode julgar-se extinto também o dever de alimentos.
Em regra, dado o caráter de reciprocidade da obrigação alimentar, se aquele que era obrigado
a prestá-la não a prestou, como por exemplo no caso do pai em relação ao filho menor que
deixe desamparado, tem de se entender que, mais tarde, o pai não pode vir pedir alimentos ao
filho.

Igualmente é de aplicar tal disposição quando, durante a existência do vínculo conjugal, um


dos cônjuges viole gravemente os seus deveres para com a família matrimonial.

A violação grave do dever pode ser apreciada pelos tribunais, sopesando as circunstâncias de
cada caso concreto e avaliando se os factos são em si graves, se revestem de natureza dolosa
ou meramente culposa.

Por fim, cessa a obrigação de alimentos quando o obrigado deixe de poder continuar a prestá-
los ou ainda quando quem os receber deixe de ter necessidade de os receber. Num caso e
noutro, estaremos perante pressupostos legais da obrigação de alimentos que, se deixarem de
existir, vão fazer extinguir a própria obrigação.

Na verdade, a obrigação de alimentos, que é de natureza variável, pode ser reduzida ou até
extinta consoante se alterem as circunstâncias económicas do obrigado e do beneficiário.

As disposições do art. 258.° do Código de Família são de natureza geral e são aplicáveis a todos
os casos da obrigação de alimentos.

Já quando a obrigação de alimentos se verifica entre ex-cônjuges ou com¬panheiros de união


de facto, o vínculo familiar deixou de existir, havendo tão somente um prolongamento do
dever de assistência material que vinha do vínculo anterior. Daí que não se possa mencionar a
violação de um dever recíproco.

O Código Civil tinha um conceito mais restrito da obrigação de alimentos neste caso, pois
mencionava que era causa de extinção o facto de o alimentado se tornar indigno pelo seu
comportamento moral.

O Código de Família não aceitou este critério, pois entendeu-se que o facto da indignidade
moral do alimentado não lhe retirava a carência dos alimentos.

O art. 263.° do Código de Família impõe que o alimentado cometa algum ato dirigido
diretamente contra a pessoa do obrigado.

E tem que ser um ato grave: um atentado contra a vida ou um grave atentado contra a honra
do obrigado. Os factos previstos no art. 263.° devem ser posteriores à dissolução do
casamento ou à rutura da união de facto.

A propósito da dissolução do casamento por morte, já foi mencionado que o cônjuge


sobrevivo tem direito a ser alimentado pelos rendimentos do cônjuge falecido, como
estabelece o art. 261.° do Código de Família.

Os herdeiros ou legatários a quem tenham sido transmitidos os bens são chamados a


responder pelos alimentos na proporção do respetivo quinhão. Trata-se de um encargo da
herança a ser visto também no âmbito do direito sucessório. Se o encargo recair sobre bens
imóveis, ele está sujeito a registo, de acordo como o n.° 3 deste art. 261.°.

O art. 264.° prevê que: «0 pai que não coabite com a mãe do filho é obrigado a prestar-lhe
alimentos, quando ela deles careça, relativamente ao período de gravidez e até 6 meses após
o parto».O vínculo que liga o progenitor ao nascituro é o fundamento da obrigação de
alimentos que se prolonga pelos seus primeiros 6 meses de vida, em relação à mãe do filho,
tendo em conta que ela no período pós-natal estará impossibilitada de trabalhar.

BIBLIOGRAFIA

Introdução

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CARBONNIER, Jean — Sociologia Jurídica.

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Fox, Robin — Parentesco e Casamento: Uma Perspectiva Antropológica.

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KOUSSIG AN, Guy — Quelle est ma loi?

M’BAYE, Keba — Le Droit de Famille en Afrique Noire et Madagascar.

NOYALLES, Carlos Valiente — Les bosquimanes, peuples oubliés de lAfrique Australe.

1.° Encontro sobre a Autoridade Tradicional em Angola.

Compêndios

ALBADALEJO, Manuel — Curso de Derecho de Familia.

BENABENT, Alain — Droit civil: La Famille.

BIANCA, Massimo — Diritto Civile: La Famiglia, le Sucessioni.

BROMLEY — Family Law.

CARBONNIER, Jean — Droit Civil: La Famille, Les Incapacités.

COELHO, F. Pereira — Curso de Direito de Família.

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CZACHORSKI, Witold — Droit Civil de Famille (Introdution aux Droits Socialistes). DINIZ, Ma
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OLIVEIRA, Guilherme de — Estabelecimento da Filiação.

PINHEIRO, Jorge Duarte — O Direito de Família Contemporâneo.

SANTOS, Eduardo dos — Direito de Família.

SILVA, Tomás Oliveira e — Filiação: Constituição e Extinção do Respectivo Vínculo. UCCELLA,


Fulvio — Diritto di Famiglia.

VARELA, J. Antunes — Direito de Família.

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Revistas

Annual Survey of Family Law

InternationalJournal of Law, Policy and the Family

(A demais bibliografia é citada no locai respectivo)

OBRAS PUBLICADAS POR

MARIA DO CARMO MEDINA

Ficheiro de Legislação da República Popular de

Angola — Fascículos L°, 2. °, 3.0

Acórdãos do Tribunal da Relação — 1976a 19 ,9

Código de Família (divulgação)

Participação no livro «Femme em Angola»

Estudo «A mulher e a criminalidade» inserido na

Tese «27anos na luta pela Paz»

Acórdãos do Tribunal Supremo — 1990

Código de Família (Anotado) — 1998

Código de Família (Anotado) — 2a edição revista

e actualizada — 2005

Direito de Família — Lições — 2001

Direito de Família — 2.aedição revista

e actualizada — 2005

Lei de Bases do Ambiente (colaboração) — 2001


Angola: Processos Políticos da Luta pela

Independência — 2003

Lei do Julgado de Menores e Código de Processo do

Julgado de Menores ( Anotados) — 2004

CEDANT ARMA TOGAE

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