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A dimensão sonora da linguagem audiovisual

ser reproduzido por um aparelho (um toca-discos ou um receptor de rádio)


que nada tem que ver com a fonte que o produziu; a fonte sonora inicial
deixa de ter o valor físico substancial, e esse valor passa para o próprio som,
que se torna independente de sua origem natural.
A ctcusmatização Essa independência física que a tecnologia do áudio confere ao som
tornou-se também independência semiótica. Atualmente, escutar, por
Desenvolvimento de um novo conceito exemplo, o som de uma melodia de violino não é nenhum indicativo de que
em nosso ambiente mais próximo haja alguém tocando um instrumento
0 conceito de acusmatização tem sua origem em uma técnica
musical. Esse som pode estar expressando que perto de nós uma pessoa
pedagógica utilizada por Pitágoras para tornar mais efetivos os ensinamentos
está escutando seu equipamento de som; que nesse momento, em algum
que ministrava a seus discípulos. 0 ilustre sábio grego fez com que seus
lugar do mundo, um violinista dá um concerto que chega até nós transmitido
alunos o escutassem atrás de uma cortina enquanto falava, para que assim o
ao vivo pelo rádio; que o casal de protagonistas de uma novela finalmente
conteúdo de seus discursos adquirisse toda a força possível ao ser
conseguiu se entender, etc.
desvinculado de sua própria imagem. Os discípulos que durante cinco anos
A acusmatização isola os objetos sonoros e os transforma em portadores
escutaram as lições do m estre nessa situação foram denom inados
de conceitos. Porém freqüentemente o som dispensa sua fonte e se conecta
acusmáticos. Possivelmente o sábio descobriu que, muitas vezes, seus
a um sentido novo que já não tem nada que ver com sua origem direta, mas
ouvintes prestavam mais atenção em sua aparência e em sua gesticulação do
sim com sua forma sonora e com sua situação no contexto audiovisual. Tudo
que naquilo que ele tentava contar. Assim, decidiu cortar o mal pela raiz,
isso nos leva a incluir também no conceito atual de acusmatização essa nova
desvinculando a narração da fonte física que a narrava.
vertente de independência física entre o som e o ente que o produziu
Devido a sua origem, o termo acusmático passou a ser utilizado para
originalmente. Pierre Shaeffer2 e Michel Chion5utilizaram abundantemente
denominar aquilo que é ouvido sem que se veja a fonte de onde provém.
o conceito com esse novo sentido para pesquisar os mecanismos expressivos
Até o desenvolvimento dos sistemas de gravação e radiotransmissâo do universo sonoro.
dos sons, para que um som fosse acusmático o objeto físico que o produzia
podia estar escondido da visão do ouvinte, mas nunca longe dele. Só era
A acusmatização na comunicação de massa
possível ouvir aquilo que estava suficientemente perto do receptor. Mas a
partir do momento em que Thomas Edison inventou o primeiro gramofone, Sem dúvida, um dos fenôm enos mais im p o rtan tes e de m aior
(mu 1877, e que o físico canadense Reginald A. Fessenden conseguiu, ern transcendência social na evolução da moderna comunicação de massa foi a
%

I!)()(), realizar a primeira transmissão da voz humana pelo rádio,1o fenômeno acusmatização. A possibilidade que a tecnologia de áudio proporciona de
acusmático adquiriu uma dimensão radicalmente nova. Com a evolução da separar o som da fonte sonora original e colocá-lo à disposição do narrador
tecnologia do áudio, o objeto original que produz o som já não precisa e s ta r em qualquer outro tempo e lugar no espaço abriu uma longa série de novas
escondido da visão do ouvinte, mas desaparece realmente; já não precisa possibilidades. Pensemos, por exemplo, na radiodifusão; no cinema sonoro;
coincidir com o receptor nem no espaço nem no tempo. O som agora p o d e na indústria fonográfica e em sua indústria complementar - a do áudio

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A acústica e a comunicação audiovisual A dimensão sonora da linguagem audiovisua

doméstico de alta fidelidade; na erroneamente chamada televisão (que para falantes, em mulheres possuídas diabolicamente que falam com voz
fazer justiça deveria se chamar tele-áudio-visão); na indústria de música masculina fortíssima e rouca, etc.
ambiente; nas reconstruções cenográfico-audiovisuais dos museus modernos; • A ambientação musical no cinema, na televisão ou no teatro
na sonorização eletrônica das danceterias, dos auditórios, dos teatros... Todas permitiu associar melodias e ritmos instrumentais a situações em
essas formas de comunicação coletiva se apóiam de um modo absolutamente que, do ponto de vista realista, seria absurdo que fossem escutados
fundamental na desvinculação entre o ente físico que atuou como o primeiro ali. Imagine o leitor, por exemplo, a seqüência de um filme em que
gerador do som e o som propriamente dito, que passou a ser gravado, filtrado, se vê um cavaleiro solitário que cavalga sobre um camelo pelo deserto,
reorganizado, empacotado, transportado, vendido, comprado, amplificado e enquanto uma ambientação orquestral constrói uma intensa música
reescutado, uma ou mil vezes, como algo completamente independente de épica. Em nenhum momento vamos interpretar essa associação
sua produção inicial. audiovisual pensando que há uma orquestra escondida por trás das
Paralela e diretam ente vinculada a todas essas novas formas de dunas, tocando entusiasticamente sob o sol abrasador do deserto. O
comunicação de massa, a possibilidade de trabalhar com o som isolado permite que essa “incoerente” associação entre imagem e som nos indica de
aos narradores audiovisuais estabelecer novas associações virtuais entre sons forma inequívoca é que nosso cavaleiro está prestes a realizar um
e imagens que não existem no universo referencial. Esse novo modo de grande ato heróico. Esse tipo de uso não-naturalista, ou não-realista,
trabalhar vinculado ao tratamento tecnológico da acusmatização abriu um da música é empregado também para narrar os estados emocionais
universo expressivo revolucionário na comunicação audiovisual. dos personagens, para criar efeito de previsibilidade (algo que vai
Vamos rever algumas das opções narrativas desencadeadas pela acontecer), para dar sensação de tensão em determinado momento
possibilidade de acusmatizar o som: da história, etc.

• A dublagem , por exemplo, perm itiu a construção de novos • A criação de efeitos sonoros. Associando-se sons pré-gravados em
p erso n ag en s, com um a recom posição do p ar voz-im agem , diferentes lugares a situações visuais filmadas em cenários televisivos
possibilitando misturar os traços físicos e de expressão gestual de ou cinematográficos, foi possível conferir sensação de realismo às
um ator com a capacidade de expressão oral e sonora de outro. Um imagens resultantes. Um exemplo clássico é o das seqüências
caso paradigmático desse tipo de uso de dublagem em espanhol é a ambientadas em pântanos enevoados ou em densas florestas tropicais,
associação das imagens do ator americano Clint Eastwood, que tem no cinema dos anos 1950 e 1960, normalmente filmadas em cenários e
uma voz consideravelmente aguda, com a voz do ator espanhol depois sonorizadas com os ruídos dos animais naturais desse tipo de
Constantino Romero, cuja voz é extrem am ente densa e grave, região geográfica. Quando as imagens eram vinculadas aos efeitos
construindo-se assim um novo personagem que só existe no universo sonoros de selva, e o som era tratado com diferentes intensidades,
audiovisual, muito mais “durão” que o do original norte-americano. obtinha-se a sensação de espaço aberto e profundo, cheio de animais
Aqui, os diretores de dublagem espanhóis não optaram por imitar o misteriosos situados a diferentes distâncias dos protagonistas. Outro
modelo original escolhendo uma voz semelhante à de Eastwood; recurso clássico é associar ecos artificiais a determinadas imagens,
preferiram criar um ente dramático completamente novo, utilizando para criar a sensação de um grande espaço fechado. Ou, ao contrário,
os materiais audiovisuais disponíveis. Esse tipo de recurso permite no momento da sonorização, eliminar as ressonâncias do cenário para
também a criação de personagens mágicos ou m onstruosos, obter uma sensação sonora de espaço aberto.
manipulando se tecnicamente a voz dos atores ou subsl;Ruindo a poi Quando se tornou possível trabalhar a vontade* com uma nova
delerininndoN eleitos sonoros Pensemos, por exemplo, e m animam reeomposicOo en tre som e Imagem e, conNe*<|i|e|i!emeulc( m m uma
A acústica e a comunicação audiovisual
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recom posição virtual en tre som e fonte sonora, am pliaram -se


Em suma, quando nos aproximamos do universo da produção sonora
extraordinariamente as possibilidades expressivas do universo audiovisual.
audiovisual, o domínio desse universo parece d ep en d er quase que
Assim, o que já poderíamos denominar acusmatização tecnológica, para exclusivamente de um amplo saber sobre aparelhos eletrônicos e de uma
diferenciar da acusmatização pitagórica, representou uma autêntica longa experiência em seu uso. Curiosamente, costuma-se pensar muito menos
revolução tanto no âmbito estrito da linguagem audiovisual como no universo na percepção e interpretação das formas acústicas por parte do ser humano,
da comunicação de massa no sentido mais amplo e genérico do termo, incluída ou seja, na psicologia da percepção. No entanto, paradoxalmente, apesar de
sua vertente industrial. a tecnologia ser o que atualmente parece deslumbrar de forma exclusiva os
estudiosos da narração e os próprios narradores audiovisuais, a base da
tecnologia do áudio é a acústica, e a base da experiência produtiva do cineasta
Os conhecimentos necessários para dominar o ou do diretor são seus próprios mecanismos de percepção.
áudio Mas vejamos de forma mais detalhada em que se fundamentam as
afirmações que acabamos de fazer.
Todo esse complexo universo audiovisual que vimos anteriormente está
repleto de possibilidades expressivas vinculadas ao som acusmatizado. Mas A acústica
quais são os fundamentos do saber que podem nos ajudar a dominar
eficientemente a narração pelo áudio? No ato de contar coisas a partir do A base fundamental da engenharia de alta-fidelidade sonora (h i-fi)
som nas produções audiovisuais, várias bases de conhecimento atuam ao consiste em garantir que, depois de qualquer manipulação eletrônica, gravação,
mesmo tempo, estando estreitam ente vinculadas umas às outras. Mas, transmissão, reorganização, etc., o áudio conserve exatamente seu espectro
curiosamente, em algumas delas se pensa sempre, e em outras, quase nunca. sonoro original. Ou, dito de outra forma, consiste em garantir que o som continue
exatamente igual antes e depois do tratamento.4 A única forma de verificar se
isso ocorre é utilizar a acústica como disciplina de apoio. Sem saber como os
A tecnologia e a experiência de produção
equipamentos eletrônicos que fazem o tratamento do áudio agem sobre o som,
Sem dúvida, a disciplina mais conhecida entre as que dão suporte a a eletrônica não tem nenhum sentido. E esse saber só é possível com base na
lodo esse universo expressivo é a tecnologia. Todo narrador ou aspirante' a análise acústica do áudio antes e depois de seu tratamento tecnológico.
narrador audiovisual já se deparou com a necessidade de saber com quo Claro que contra isso se poderia argumentar que basta considerar os
sistemas, instrumentos, aparelhos, técnicas ou truques é possível produzir equipamentos de som como uma caixa-preta, sobre a qual temos garantia
este ou aquele som. de que o que nela entra é exatamente igual ao que sai, e que, portanto,
É freqüente também pensar na experiência de produção como geradora podemos nos despreocupar com relação ao que ocorre dentro dela. Isso nunca
de conhecimento acústico-narrativo. O diretor se pergunta sobre a sensação é objetivamente certo. Todo amante da música sabe perfeitamente que a
que reconhece em si mesmo, ou sobre a sensação que seu público teve ao mesma interpretação musical soa de forma muito diferente no teatro ou em
<vseutar este 0 1 1 aquele efeito sonoro em cada situação narrativa, contexto seu equipamento de alta-fidelidade. Igualmente, todo amante do cinema
visual, etc. em que trabalha. A partir daí ocorre a acumulação progressiva de percebeu mais de uma vez que um filme não tem o mesmo som na sala do
um saber produzido com base na experiência de produção desenvolvida poi
si mesmo ou por outros narradores. Obviamente, a experiência produt iva
1 .Jnin .Iac(|U('B Mninis, L'<H'<)usti<riw ( VcinlAnir IYchnph I JnlviMNlhilinw ih I niiu < , ID77;
I a rd. wii fraiicên t)iM IWM),
v 45^
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cinema e na televisão de sua casa. E não entraremos aqui no juízo de valor, humano para perceber e entender as formas sonoras, o estudo dos aspectos
I >ara avaliar em qual dos dois lugares o som é melhor; simplesmente, podeim>s sonoros da linguagem audiovisual não tem nenhum sentido. Mas vamos
constatar que existe uma diferença claramente perceptível. Isso supõe, também a uma situação concreta. Uma pergunta paradigmática em um
conseqüentemente, que os aparelhos de áudio, por mais garantias que momento como o atual, em que o suporte analógico das gravações comerciais
<)lereçam e por mais sofisticados que sejam, sempre alteram o som, e somente de áudio está sendo substituído rapidamente pelo suporte digital, poderia
a acústica nos permite saber de que modo. ser a seguinte: o consumidor médio é ou não capaz de avaliar a diferença
de qualidade de som existente entre ambos os sistemas?
Não se trata, também, de uma questão de sutilezas auditivas. O objeto
<lc estudo desta obra é o papel do som no contexto da narração audiovisual; A rápida implantação do disco óptico na indústria discográfica (compact
e, na produção audiovisual, uma das funções fundamentais dos tratamentos disc) parece indicar uma resposta afirmativa, mas o tremendo fracasso
do som é sua alteração, a mudança de suas formas. Refiro-me a tratamentos comercial do cassete digital (DAT)5mostra justamente o contrário. A melhoria
como a filtragem, (eliminação de uma parte das freqüências), a compressão na qualidade sonora que o novo sistema oferecia não foi suficiente para levar
(diminuição da duração em determinadas partes do som), a aceleração, a o consumidor médio a abandonar o cassete analógico de alta-fidelidade. Se
desaceleração, a adição de ressonâncias, etc. Provavelmente, a dublagem 6 pensarmos nas significativas melhorias funcionais trazidas pelo disco óptico,
0 exemplo mais claro a esse respeito. em comparação com o antigo sistema de discos de vinil - estraga muito menos,
Atualmente, toda dublagem é feita em estúdios acusticamente bem ocupa um espaço muito menor e seu manuseio é muito mais prático e versátil
• *

Isolados e com paredes interiores muito absorventes, para evitar que os -, possivelmente não estaremos enganados ao pensar que a melhoria na
reflexos do som possam revelar o tamanho e a forma da cabine. No entanto, qualidade do som que a tecnologia digital re p re sen ta não é o fator
os personagens a serem dublados freqüentemente aparecem nas imagens determinante para seu consumo. De fato, a nova alternativa digital ao cassete,
Calando em cavernas, grandes salões, criptas, catedrais... Logicamente, esse o minidisc (MD), já concentra sua oferta técnica e publicitária muito mais
lipo de espaço altera o som das vozes que são emitidas em seu interior, nas possibilidades de edição doméstica do som do que na melhoria de sua
acrescentando ressonâncias ou, inclusive, ecos. A única forma, então, de qualidade acústica. A fidelidade da gravação de áudio não deixou de melhorar
1ornar a qualidade do som da voz do dublador, que está em uma sala em que desde que Edison inventou seu gramofone em 1877, mas esse processo parece
haver chegado ao seu limite, que é o limite da própria percepção humana.
nao Itá nenhuma ressonância, coerente com o espaço fortemente ressonante
mostrado nas imagens, é manipular eletronicamente o som — ou seja, Mas vejamos como alguns conhecimentos da psicologia da percepção
l.rnnsformá-lo, alterando-o acusticamente de modo significativo. A única podem contribuir para a solução da pergunta que formulamos.
maneira, portanto, de saber o que está acontecendo com cada som, de saber Do ponto de vista da percepção, a diferença entre uma gravação digital
como se deve trabalhar, que tipo e que nível de ressonância se deve e uma analógica com equipamentos de alta-fidelidade que tenham o sistema
acrescentar, de saber como vai atuar cada um dos aparelhos de que dispomos dolby de redução de ruído não vai muito além da eliminação de uma sutil
quantidade de ruído de fundo. Especificamente, o ruído de fundo de um
ijiie estuda o som objetivando-o como um ente físico: a acústica. tape deck analógico está em torno de 18 decibéis a 20 decibéis, e o ruído de
fundo de um sistema digital está entre 9 decibéis e 10 decibéis - ou seja,
A psicoacústica aproximadamente a metade. Essa vantagem se torna pouco significativa se
consideramos que não existe nenhum ambiente sonoro absoluluinrnlo
A Imse do toda comunicação humana é a percepção, o no caso que iiün
dl/ rcHpeito, a p e r c e p ç ã o do som. Sem conhecer os mecanismos <!<> mim I )lp,il;il Audio Tnpp
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silencioso. O nível de ruído habitual em qualquer contexto de audição que ciências físicas e nos instrumentos de medição precisa, considerando-os como
normalmente qualificaríamos como “silencioso” é de aproximadamente «‘10 algo não aplicável à criação de produtos audiovisuais. As razões para isso
decibéis ou 40 decibéis. Assim, nas condições domésticas normais, o ruído costumam estar fundamentadas em uma série de argumentos, mais ou menos
ambiente é duas ou três vezes mais intenso que o ruído de fundo de urna mutantes, que convergem sempre para a idéia de “criação” como algo baseado
gravação analógica de boa qualidade, que como afirmamos é de 18 decibéis a em um tipo de mística impossível de ser objetivada e medida.
20 decibéis. Se acrescentarmos a esses dados que os dois tipos de ruído Como resposta puramente pragmática a essa corrente, neste item
normalmente são coincidentes no tempo, chegaremos sem dúvida à conclusa« > faremos uma ampla revisão das possibilidades que pode representar, ou que
de que o normal é que o ruído ambiente mascare a percepção do levíssimo já está representando em muitos casos, a aplicação sistem ática dos
ruído de fundo do áudio analógico - ou seja, que o esconda atrás de si, instrumentos conceituais da acústica e da psicologia da percepção na
tornando-o inaudível. produção audiovisual.
V

A luz da psicologia da percepção, a resposta à pergunta formulada A realização de estudos prévios sobre as formas visuais para produzir
anteriormente é que os sistemas digitais de áudio representam um avanço filmes de ficção científica ou desenhos animados é algo muito freqüente.
pouco útil para o ouvido humano, uma vez que a capacidade de resolução Seguramente o leitor se lembrará de divulgações de filmes da produtora
auditiva, em condições que não sejam as de um laboratório, não permite Disney nas quais se explicava o trabalho de pesquisa visual realizado para a
desfrutar da m elhora acústica que o tratam ento numérico do áudio seqüência do baile em Branca de Neve, para desenhar a chuva em Bambi,
representa. Naturalmente, as possibilidades de tratamento do sinal, e portant( > para criar os espaços virtuais de Tron , para dar expressividade ao rosto de
de comodidade na manipulação profissional do som (edição, filtragem, Aladim, etc. Esses estudos envolvem um trabalho prévio de análise sobre
armazenamento, etc.) que essa nova tecnologia traz, representam um avançc> formas visuais aparentemente não perceptíveis, mas que definitivamente
indiscutível, mas isso já uma questão muito diferente. influem no efeito global de verossimilhança. É o caso, por exemplo, do barulho
Em suma, a única forma de saber que relação existe entre os efeitos das gotas de água, com as quais não se obteve um efeito realista até que se
sonoros produzidos pelas m áquinas de tra ta m e n to de áudio e sua observou, com macroampliações e em câmera lenta, o efeito físico objetivo
interpretação pelo ser humano, é nos apoiar na acústica. Temos de estudar da fragmentação das gotas de água ao pingarem. Apesar de esse efeito só ser
eotn precisão como são os sons, para conseguir saber com exatidão que tipos visível no laboratório, quando foi reconstruído nos desenhos animados foi
de sensação p ercep tiv a cada tipo de variação acústica produz. possível comprovar que dava uma verossimilhança definitiva ao efeito visual
(Conseqüentemente, a acústica é um instrumento que nos permitirá estudar do gotejar.
com precisão as formas sonoras, descobrindo como o ser humano dá sentido O instrumental teórico e técnico que a psicoacústica desenvolve põe ao
a cada som que escuta e interpreta. Essa perspectiva de conhecimento alcance do narrador audiovisual a possibilidade de aplicar esse tipo de
desemboca na psicoacústica, ou seja, na integração sistemática da acústica pesquisa prévia também à produção criativa do áudio.
e da psicologia da percepção, como uma disciplina de apoio essencial para
Vejamos alguns exemplos.
todo trabalho sonoro vinculado à produção audiovisual.
Na voz, por exemplo. No momento em que um diretor se depara com a
necessidade de construir dramaticamente um personagem, de lhe dar forma
O sentido de aplicar a acústica à linguagem audiovisual
sonora e visual, surge o problema da escolha e da adaptação da voz do ator,
(loin m u ita f r e q ü ê n c i a , t a n t o o s n a r r a d o r e s a u d i o v i s u a i s c o m o o s ou sua substituição por outra voz (dublagem). Na licça o audiovisual, <• um
CMtildioHoH da lin g u a g e m audiovisual d e s p r e z a m os m o d e l o s h asead oa iiiim f e n ô m e n o a b so lu ta m e n t o colidia.no o falo d e q u e c e r l a s vnzeN ii.uiNinllem
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determinadas sensações e outras, não. E freqüentem ente o efeito que tipo de problema, estudar acusticamente a voz dos personagens históricos,
procuramos não aparece completo em nenhuma das vozes de que dispomos. da mesma forma que se faz com sua imagem, com o objetivo de encontrar
Por que isso acontece? Profissionalm ente, quase não são utilizados um dublador ou*dubladora que tenha exatamente suas características ou
instrumentos conceituais para a descrição, e muito menos a análise e seja capaz de reproduzi-las com a ajuda de determinados tratam entos
manipulação desse fenômeno. técnicos.
Pede-se então a um dos locutores que faça o papel de criança, mas sua O reconhecimento sonoro do espaço representa um problema muito
voz não consegue esse efeito. Por quê? O que falta o ou que sobra a essa voz semelhante ao da voz. A identificação sonora do espaço consiste em
para conseguir o que queremos? reconhecer as ressonâncias que foram acrescentadas a sons que já
O conhecimento de que a acústica dispõe sobre o espectro da voz pode conhecemos e que foram colocados em outros contextos espaciais: passos,
nos fornecer toda essa informação de modo muito preciso. É perfeitamente voz, tosses, barulho de papéis, de objetos de madeira, etc. Mas qual a
possível saber como atua, por exemplo, o valor expressivo do tom, ou seja, característica acústica que torna certas ressonâncias diferentes de outras?
da freqüência fundamental do espectro da voz. De modo geral, qualquer Que ressonâncias são associadas a que espaços? Por quê?
diretor de dublagem sabe que uma “voz grave” sugere credibilidade, A análise prévia do tempo que o som levará para ser refletido em cada
m aturidade e segurança. E que um a “voz ag u d a” tran sm ite pouca um dos espaços sobre os quais vamos trabalhar nos fornece informação
credibilidade, imaturidade e insegurança. Mas quais são os verdadeiros limites acústica valiosíssima para definir a reverberação de cada espaço visual de
disso? Onde termina o grave da voz e começa o agudo? O que ocorre com as acordo com a experiência auditiva natural de qualquer ouvinte. Esse tipo de
vozes intermediárias? O que acontece com as vozes femininas? Que efeito é estudo prévio permite diferenciar uns espaços de outros de forma verossímil
produzido se um locutor de registro normalmente grave forçar sua voz para e realista, utilizando-se inclusive sistemas eletrônicos de reverberação
os agudos? artificial.
As respostas a todas essas perguntas são sempre absolutam ente Outro dos problemas clássicos da narração audiovisual é resolver qual é
intuitivas. Porém, o tom concreto de uma voz e sua margem específica de o tipo de som que vai chegar ao espectador em cada momento. Pensemos,
variação são acusticamente quantificáveis e diferenciáveis dos de qualquer por exemplo, nas situações em que, no mesmo espaço e contemplando a
outra. E seus efeitos na co n stru ção dos personagens são tam bém mesma fonte sonora, o ponto de vista da câmera muda, e a paisagem sonora
rigorosamente analisáveis, a ponto de ser possível elaborar uma lista fechada não se altera em nada. Esse problema tem duas dimensões: a reconstrução
de categorias sobre esse tipo de efeito narrativo.6 auditiva realista e a localização do espectador no espaço da narração. A análise
Seria perfeitamente possível, por exemplo, estabelecer uma tipologia acústica prévia dos espaços que serão recriados em uma narração abre,
acústica dos personagens que poderia facilitar enormemente a tarefa de também, um amplo universo de possibilidades expressivas na localização do
escolher os atores ou os apresentadores em função do que sua voz sugere. espectador nesses espaços.
Bastaria fazer uma lista dos traços de personalidade que o diretor deseja que Se o leitor procurar em sua memória o som de uma sala de aula, por
a voz sugira, e então procurar em um banco de dados o ator ou apresentador exemplo, se lembrará de que, enquanto o professor está em sua mesa falando,
com uma voz adequada a essa necessidade. Também é viável, sem nenhum sua voz não é escutada da mesma forma na primeira e na última fila.
Conseqüentemente, reconstruir em um filme o som da voz concreta de modo
que todos os espectadores do cinema se sentissem na primeira 111a nàn seria
11 A liodrí^uoss Bravo, La ('o rislru cciá n dv m m v o z n id iq fó td a i, teso de doutorado (Bareolona
I )o|iai!amonto do ( Jomiinlcueión Am llovlsual y I ’uMioidad do la I Inivcrsidad Autónoma do haroolnna, o mesmo quo na última fila. Pela análise de alguns dos pura melros aeustieos
IDHD)
A acústica e a comunicação audiovisua
A dimensão sonora da linguagem audiovisual

no tempo é possível dominar minuciosamente a situação espacial em que Finalmente, a edição e o controle informatizado do som constituem
queremos que o espectador se sinta enquanto escuta. O método de trabalho o âmbito em que a acústica é já um conhecimento imprescindível para a
partiria do estudo do som do espaço em pontos concretos de audição. obtenção de rendimentos profissionais minimamente aceitáveis.
A construção de atmosferas emocionais é outro exemplo clássico da Atualmente, já existem no mercado sistemas que permitem a edição
narração audiovisual em que o papel do áudio tem uma grande importância informatizada do som por meio da digitalização e tratam ento de seu
e em que a aplicação adequada da acústica traria um incremento fundamental. oscilograma, dividindo-o em pacotes de tempo e manipulando-o em arquivos
Os estados emocionais estão associados aos sons com a mesma força que aos que possibilitam sua montagem sobre o eixo da temporalidade, seguindo o
odores, e dispor do instrumental adequado para reconhecer a forma desses modelo visual dos tratamentos de texto. Permitem, assim, cortar e reorganizar
sons é ter a nosso alcance a chave das emoções e sensações a eles associadas. os sons como se fossem figurinhas auto-adesivas.
Um dos problemas comuns na narração de estados emocionais é Perm item tam bém o tratam en to linear do tim bre do som pela
encontrar o som capaz de transmitir com força, por exemplo, uma grande manipulação do espectro de freqüências em tempo real; e a aplicação de
sensação de solidão. Todos vivemos situações semelhantes, e essas situações algoritmos de compressão ou de dilatação do som pelo tratamento das regiões
estão associadas a sons concretos que não são nada fáceis de encontrar. Se estacionárias do oscilograma. Essa última função se aplica sobretudo à
conseguirmos encontrá-los e reconstruí-los, essas paisagens sonoras serão montagem sincrônica som-imagem. Resumindo: quando o som não se encaixa
fortes indutores de estados emocionais. Pensemos no que nos sugerem: o com a imagem, o sistema recorta-o de forma a distribuir proporcionalmente
I ique-taque de um relógio em um quarto em silêncio; o barulho de uma gota os fragmentos eliminados ao longo de todo o pacote sonoro nas regiões em
(IVigua pingando em um espaço amplo e ressonante; o som dos grilos; o rumor que é menos percebido. O resultado é que o som diminui sem que se perceba
da água circulando com ressonância de túnel ou de superfície abobadada; o onde está o corte da tesoura. Outra possibilidade é a manipulação do ataque
som do vento em um espaço aberto; o som do vento através de uma janela ou da queda ao início e ao final de cada som. Essa função se aplica
l('chada; o som da chuva na rua, na montanha, na janela. Todas essas paisagens especialmente aos efeitos sonoros e às composições de música eletrônica e
sonoras levam fortemente a sensações como solidão, frio, vazio, saudade, permite mudar radicalmente a sensação perceptiva dos sons, possibilitando,
etc. Mas essas idéias não são suficientes; com muita freqüência os diretores por exemplo, a transformação artificial de um som de piano em um som de
percebem que, por alguma estranha razão, determinado efeito não sugere o violino.
que se esperava dele, não tem o som daquilo que procuramos, apesar de Logicamente, a utilização correta desses tipos de sistema, que nesse
malmente sê-lo. Por que isso acontece? Por que um som que identificamos momento começam a se tornar corriqueiros nos estúdios de áudio de alto
perfeitamente deixa de agir como deveria? nível, implica necessariamente que se domine, no mínimo, os instrumentos
() som /grilo/ é muito mais que esse conceito simples de “inseto que conceituais básicos da acústica.
( . 1 1 it.a durante a noite”. É uma duração, é uma composição de freqüências

I (>eando em um espaço concreto, é um ritmo, é uma evolução da intensidade


que varia no tempo, é o resultado de uma atenuação (filtragem) de uma Do fenômeno acústico ao sentido audiovisual
pnrte do espectro pela umidade do ar e pela distância que o separa de nós.
K, em suma, um fenômeno tão preciso e matizado quanto a luz e o ponto de Depois de expostas as razões que nos levam a considerar a acústica
vImI.it e o instrumental acústico é imprescindível para defini-lo se nào como um campo de conhecimento fundamental na pesquisa sobre a expressão
q u e r e m o s uos limitar exclusivamente a usar ;i mesma decoraçào s o n o r a audiovisual, passaremos a apresentar ;i definição dos coneolloM essenciais
%

itdeflnidnmcnfe. '•••'* ' “ »»'An \ li II III; II unll( I.IMKI || | . 1 acusticil I IM| l 1 *1 Mili I •|i I Ii||| COlllO
I
A acústica e a comunicação audiovisual A dimensão sonora da linguagem audiovisual

signo. Dessa forma, o primeiro passo para desenvolver um modelo coerente I)rovocando, por sua vez, vibrações nessas moléculas. Quando essas vibrações
que tente explicar de modo eficaz a acústica do som no contexto da linguagem chegam a nosso ouvido, normalmente através do ar, são percebidas como
audiovisual será sistematizar quatro conceitos básicos nos quais se apoiará um som. Em suma, o fenômeno sonoro é a percepção das oscilações rítmicas,
l odo o nosso desenvolvimento teórico posterior. Concretamente, os conceitos normalmente da pressão do ar, que foram estimuladas por outro objeto físico
são: som, fonte sonora, objeto sonoro e ente acústico. vibrante que atua como fonte de emissão.
Portanto, definimos o som como:
O som il gfI
O resultado da percepção auditiva de variações oscilantes de algum
f/ • I i i * \
A lingüística já demonstrou com bastante detalhamento que o som como corpo tísico, normalmente através do ar.
tal, como fenômeno físico, não tem nada que ver com as formas sígnicas que
Para compreender essa definição em todo o seu sentido, é importante
podem ser construídas com ele como substância modelável.7 Ensinou-nos
considerar que a percepção do som não se dá exclusivamente através do ar.
também que uma coisa é o falante como um ser capaz de produzir som e
O som pode chegar até nós, por exemplo, pela vibração de nosso próprio
outra muito diferente é a fala como som estruturado.
corpo. É o caso da percepção que todo locutor tem de sua própria voz.
A aplicação desse tipo de lógica estrutural ao sistema sonoro da
Todo falante percebe sua voz com uma qualidade sonora muito diferente
comunicação audiovisual, de modo que cada nível de complexidade funcional
da que tem para os demais. Uma experiência reveladora, que seguramente o
do som fique perfeitamente delimitado e definido, é muito fértil, como o
leitor já deverá ter vivido, é a de todo aquele que escuta pela primeira vez
leitor poderá comprovar.
sua voz gravada em um gravador. De repente, temos a desagradável surpresa
Começaremos com a definição do nível mais elementar do ponto de
de não reconhecer nossa própria voz; de não nos reconhecermos a nós
vista estrutural: o som. Uma vez que a análise que estamos fazendo do áudio
mesmos. E isso se torna ainda mais desorientador quando outras pessoas
e essencialmente fenomenológica, tentaremos localizar os mecanismos que
que também escutaram essa gravação nos confirmam que o aparelho está
estruturam a sensação sonora, mas para tanto não podemos ignorar em
reproduzindo o som com total fidelidade e que, de fato, nossa voz é esquisita
nenhum momento que todas as nossas propostas estruturais devem ser
assim mesmo para todos os outros. A explicação para essa diferença de
rigorosamente coerentes com o próprio fenômeno. Assim, partindo dessa
percepção é que, enquanto as vibrações da voz de um locutor chegam ao seu
proposta, interessa-nos o conceito de som como primeira etapa de um
próprio ouvido, fundamentalmente, através de sua estrutura óssea, tanto no
I>rocesso expressivo, como material físico perceptível em estado bruto sobre
gravador como para todos os demais ouvintes o som da voz chega através do
0 qual será realizad a uma série de m anipulações p ara m odelá-lo,
ar; com isso, as vibrações da fonte original (a laringe do locutor) são
transformando-o em material expressivo.
profundamente alteradas pelo meio que as transmite.
O som é em sua própria essência uma ponte entre a acústica e a
Outra forma relativamente habitual de perceber a influência do meio
percepção. Resulta da percepção auditiva de variações oscilantes de algum
que transmite as vibrações sonoras na percepção do som é comparar como
rorpo físico, normalmente através do ar. A origem de um som é sempre a
escutamos o som de alguma coisa com os ouvidos dentro e fora da água. Por
vibração de um objeto físico, dentro da gama de freqüências e amplitudes
exemplo, o som do motor de um barco enquanto nadamos no mar. É muito
que o ouvido hum ano é capaz de perceber. Essa vibração em purra
fácil comprovar como o ruído do motor muda radicalmente se o escutamos
1li madamente as moléculas dos outros corpos físicos que o rodeiam,
com os ouvidos submersos ou não. Novamente aqui a d iferen ça s e d e v e à
influência d o m e i o q u e transmiti' a vibração,
I. IIJHiiiNltw, PmltipóHitnHiM a mm looriu <lrl U^ipunití (Mudei (ItimIon, li>H0)
A acústica e a comunicação audiovisual A dimensão sonora da linguagem audiovisual

Fonte sonora Dessa necessidade se origina o conceito de objeto sonoro.

Imagino que o leitor já terá deduzido há muitas linhas que uma primeira Seguindo Murray Shafer,8 que, por sua vez, toma esse conceito de Pierre
distinção básica e imprescindível do ponto de vista audiovisual é entre som e Shaeffer,9 entendem os que um objeto sonoro é um som concreto que
lonte sonora. tornamos objeto de nossa percepção e de nosso estudo; um som do qual
definimos os limites físicos, o princípio e o final, para que seja possível estudá-
A tecnologia do áudio permite-nos tratar o som como um fenômeno
lo de modo sistemático.
I>assível de ser empacotado, separado e reproduzido de forma completamente
independente do objeto físico que o gerou. Conseqüentemente, parece muito Assim, podemos definir objeto sonoro como:
claro que, apesar de som efonte sonora terem entre si uma relação evidente, ,

Q ualquer som que isolamos fisicamente ou com instrumentos


6 necessário tratá-los como conceitos distintos. conceituais, delimitando-o de forma precisa para que seja possível
Definiremos fonte sonora como: estudá-lo.

Qualquer objeto físico enquanto está emitindo um som. Essa definição se inspira muito claramente no conceito metodológico
de objeto de estudo. Poderíamos dizer também, por exemplo, que objeto
Essa definição introduz no conceito de fonte sonora a dimensão temporal, sonoro é todo som que transform am os em nosso objeto de estudo.
na medida em que, normalmente, existe a possibilidade de que os objetos Logicamente, para transformar um som em objeto de estudo é imprescindível
físicos que são capazes de emitir sons (a laringe humana, por exemplo) isolá-lo fisicamente ou delimitá-lo conceitualmente com a exatidão necessária.
I>roduzam som ou não, de forma totalmente arbitrária no tempo. Assim, quando
Como conceitos vinculados ao de objeto sonoro, ainda que de menor
I I ma laringe não está emitindo som, não deve ser considerada uma fonte sonora.
nível, na medida em que esse os englobaria, podemos falar de evento sonoro
Ampliar o conceito para todos os objetos capazes de produzir sons, e deforma sonora:
estejam ou não a produzi-los, nos levaria a grandes confusões, na medida em
que praticamente todos os objetos físicos que existem podem emitir som se Um evento sonoro é qualquer som delimitado no tempo .10
f i I r i
Definiremos formo sonora como qualquer som identificável e
orem estimulados da maneira adequada.
reconhecível por meio de alguma de suas características acústicas.
I V/

Como já comentamos, e veremos detalhadamente mais adiante, a


distinção conceituai entre som e fonte sonora é essencial do ponto de vista Como o leitor terá deduzido sem dificuldade, qualquer um desses dois
narrativo, já que a acusmatização audiovisual abre a possibilidade de sons e conceitos pode ser utilizado para definir um objeto sonoro.
bntes sonoras serem completamente intercambiáveis.
Ente acústico
Objeto sonoro
Quando escutamos um som por um meio de comunicação audiovisual,
Estamos trabalhando com o som como objeto de estudo em um sentido o ouvinte pode ou não reconhecer a fonte sonora que o produziu. Cada uma
tfenrtrieo e amplo. As formas acústicas contêm estruturas muito complexas <l<\ssas (11 ias possibilidades gera uma fenomenologia completamente diferente,
que nos interessa estudar em todas as suas dimensões, o que nos leva h do ponto de vista cognitivo.
neeessidade de encontrar métodos para delimitar o som de forma objetivfi,
«tu unidades coneretas que permitam estudá-lo sabendo quais sáo os li mil eu U M iim ty NiinhT, h<> s t i u m v (P o itlriN /L ln iW Aiililn, IMÍ»
" IMtMTt' N rlm rH n , I 'm i a d o <l<* hw ul\iot<hV niustt'iil<>s, Hl , |i 11K'
daquilo que estamos p e sq u is a n d o , 1,1 W l 1/ MllllllV 'tlm l'T, / * MI/M/r», <il
A acústica e a comunicação audiovisual A dimensão sonora da linguagem audiovisual

Quando o ouvinte reconhece a fonte geradora do som, o som deixa de lugar que os locutores ocupam no espaço do estúdio, à distância existente
ser um objeto sonoro e passa a atuar como se fosse a própria fonte sonora. entre eles, ou a como estavam colocados os instrumentistas que gravaram as
No entanto, a fonte sonora já não existe, só existe o som como uma entidade vinhetas musicais utilizadas como separação entre as diferentes seções do
independente que adquiriu para o receptor um valor sígnico aparentemente informativo. Portanto, como ouvintes, podemos perfeitamente optar por não
“substitutivo” da fonte sonora. Na realidade, o fenômeno comunicativo que nos preocuparmos em nenhum momento em reconhecer um locutor ou uma
isso comporta é muito mais complexo que uma simples substituição do som música como um ente acústico.
I >ela fonte. Ou, em todo caso, esse valor substitutivo é de uma natureza muito Mas também podemos fazer o contrário.
semelhante à de um signo lingüístico. No momento em que um ouvinte substitui intelectualmente o som da
Vamos tentar ilustrar isso com um exemplo. voz de um locutor pelo próprio locutor, automaticamente está criando um
Com a forma sonora /canto de pássaros/ podemos evocar na mente do espaço para ele e em torno dele. Nesse momento, o som da voz atua como
(>iivinte a sensação de presença de um grupo de pequenas aves, sem nenhuma um ente acústico, ou seja, como uma forma acústica que substitui
necessidade de que elas estejam realmente presentes, sem necessidade de signicamente uma fonte sonora, e que pode ser tratada dentro do espaço
que elas sequer existam. É exatamente o mesmo que fazemos com a língua sonoro exatamente da mesma forma como poderia ser tratada a fonte sonora
ao dizer, por exemplo, “ali atrás há uns passarinhos”. A única diferença objetiva evocada no espaço real.
e que o signo /canto de pássaros/ não é arbitrário, mas sim indexativo. O Para compreender a lógica narrativa que organiza o espaço sonoro, é
(•; 1 1 1 to dos pássaros é reconhecido como uma forma acústica que está associada importante considerar que os entes acústicos são sempre acusmáticos.
de forma física ao referente que evoca, e isso lhe confere um grau de Falando de uma forma menos cifrada, são absolutamente independentes de
verossimilhança muito maior que o que tem uma seqüência lingüística. sua fonte sonora objetiva original. Trata-se de sons isolados que só estão
Antes de continuar avançando no estudo detalhado do conceito de ente vinculados a um objeto ,físico no cérebro do receptor. O som /canto de
acústico, tentaremos defini-lo com certa precisão: pássaros/ pode perfeitamente ter sido criado por síntese sonora em um
computador. O valor expressivo de um ente acústico não depende de sua
Denominaremos ente acústico qualquer forma sonora que, tendo sido
origem em termos de produção, mas sim de ser reconhecido ou não pelo
separada de sua fonte original, é reconhecida pelo receptor como
uma fonte sonora concreta situada em algum lugar de um espaço receptor como diretamente dependente de uma fonte sonora. Assim, o ente
sonoro. acústico não só não depende de sua fonte original, como também pode ser
construído articulando-se sons com fontes sonoras que nunca tiveram nada
() fato de o ouvinte identificar uma forma sonora com um objeto físico que ver entre si. Podemos encontrar exemplos muito claros disso nas
<<>iicreto que emite som implica necessariamente que esse objeto físico esteja radionovelas. Lembro-me neste momento de um brilhante exercício de
.il nado em algum espaço volumétrico. Assim, o próprio ato da construção de narração sonora realizado por um grupo de alunos meus no qual se associava
i
uin ente sonoro desencadeia, também, a construção do espaço sonoro em um som sin té tic o aos saltos de um a p lan ta que havia adquirido
que está contido. No entanto, devemos considerar ainda que, apesar de misteriosamente a capacidade de se mover. A planta saltava fazendo um /
h •m icamente todo som provir sempre de uma fonte física real, o ouvinte pooooiiing/ metálico extraordinariamente sugestivo que aterrorizava uma
nem sempre se preocupa em identificá-la. (loce senhora cinqiientona. O /pooooiiing/, uma vez associado à exótica planta
Vnsemos novamente na fenomenologia da escuta radiofônica.
d o m muita f r e q ü ê n c i a o u v i m o s o d i s c u r s o in fo r m a tiv o c o m a única p la n ta . A p a r tir d e s s e m o m e n t o , q u a l q u e r m a n i p u l a ç à o a c u s i i c a d o /
pi eocupa<;tio d e interpretar o c o n t e ú d o , s e m prestar n e n h u m a a l e n c a o no p u o o o i t i u p / (! i*i 11!111km 11 o da i n t e n s i d a d r , retfei b e i a ç im , e l e , ) |;i era
A acústica e a comunicação audiovisual A dimensão sonora da linguagem audiovisua

interpretada pelos ouvintes como um movimento espacial da planta. Em suma, um caráter fundamentalmente naturalista e se baseia em sua identificação
o /pooooiiing/ se havia transformado no ente acústico /planta saltadora/. com formas sonoras e visuais que originariamente foram índices naturais de
Naturalmente, a origem do efeito sonoro não tinha nada que ver com fenômenos físicos concretos. Esse caráter de fragmentos de cópia quase exata
nenhuma planta. Os alunos construíram-no utilizando o som de uma mola da realidade, criados e reorganizados para narrar, é o que confere aos signos
gravado previamente em um disco editado pela BBC,11 que eles manipularam audiovisuais sua grande capacidade de realismo.
copiando-o em uma fita e diminuindo sua velocidade de reprodução.
Evidentemente, um ente acústico é um signo, na medida em que é uma
Ibrma de expressão que, ao ser reconhecida pelo receptor, desencadeia em
sua mente um estímulo específico ao qual está associada. E, ao mesmo tempo,
essa forma sonora tem um referente concreto na realidade referencial.
Até aqui, um ente acústico atua do mesmo modo que um signo
lingüístico. No entanto, o ente acústico está justamente a meio caminho entre
as concepções peirceana e saussuriana do signo. As formas sonoras que
configuram um ente acústico não têm uma origem arbitrária, como ocorre
com o signo lingüístico. Na realidade, a forma sonora que atua como
significante foi gerada originariamente de modo natural, e estava vinculada
dc forma objetiva ao ente físico que a produziu com suas vibrações.
No entanto, a partir do momento em que retiramos o som de sua fonte
física e o tratamos de modo independente em uma narração, ele também
não está atuando como um índice vinculado rigidamente a sua origem física.
Ao nos defrontarmos com o conceito de ente acústico, encontramos um
exemplo muito claro de uma fenomenologia sígnica radicalmente nova, que
(cm sua origem específica na linguagem audiovisual e cujas características
fundamentais são as seguintes:
1. Partimos da vontade prévia de transmitir uma informação de caráter
naturalista.
2. Criamos artificialmente uma mensagem totalmente nova que estimula
no sistema sensorial do homem percepções muito semelhantes às
, produzidas pelas informações de origem natural.
() ente acústico é um signo especificamente audiovisual, que tem como
característica essencial, como todos os signos especificamente audiovisuais,
uma enorme capacidade de verossimilhança. Como signo audiovisual, fem

11 l l i i l l - . l i l l m i i t l c i l f i l lliM ( '<>! p n i i i l I n n

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