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Lucas C. Lisboa
Belo Horizonte
2023
Lucas C. Lisboa
Belo Horizonte
2023
ao meu pai
Agradecimentos
Agradeço a nós porque sem nós, nós não chegaríamos até aqui.
Um livro de poesia na gaveta não adianta nada
Lugar de poesia é na calçada
Sérgio Sampaio
Resumo
Analysis of the Iconoclastic and Podorastic phases of the poet Glauco Mattoso based on the
works " JORNAL DOBRABIL " and "Melopéia," and the influence of blindness on his heteronyms,
poetic composition, and artistic expressions stemming from the means, media, and resources
available to him in each phase and condition between blindness and sight. Using the Sonnet
"Ensaístico" as the guiding thread of this study, we analyze selected poems by the author in their
different phases from a formal perspective and explore how they relate to the specificities of each
moment.
Keywords: Marginal Poetry, Concretism, Sonnet, Versification, Form, Pastiche, Glauco Mattoso
Sumário
Introdução .......................................................................................................................... 8
Anexo 1 ...........................................................................................................................34
Introdução
Pedro José Ferreira da Silva. Mais conhecido como Glauco Mattoso é, em seus próprios
termos, poeta, ensaísta, ficcionista, pós-maldito, pornosiano, barrockista, deshumanista,
anarchomasochista, pós-maldito. Figura fácil nos espaços de contracultura da cidade de São Paulo
e também presente na letra da canção "Língua" de Caetano Veloso, tem uma extensa e profícua
produção literária em formas e estilos diversos. Com romances-pastiche, como a Planta da
Donzela, com o JORNAL DOBRABIL, com seus milhares, sim milhares, de sonetos, Glauco é uma
figura emblemática da poesia contemporânea brasileira, desde os anos 70 até os dias atuais. A obra
de Glauco Mattoso é um verdadeiro desafio para os estudiosos dos campos literários e artísticos,
uma vez que abrange uma pluralidade estilística curiosa, indo da poesia concreta à produção
musical. Além disso, seus discursos transgressores, que abordam temáticas constrangedoras e
linguagem obscena, tornam a análise de sua obra ainda mais complexa.
As produções de Mattoso, JORNAL DOBRABIL e Melopeia, são díspares no tempo e
estilo, tendo, em comum, a cidade de São Paulo como seu espaço de criação. Em comum também
há a variedade de temáticas e inspirações, indo da filosofia ao fescenino, do poema-piada ao
poema-protesto, passando por ironias, galhofas, toda sorte de provocações que tornam sua poesia
de sabor intenso e, às vezes, deliberadamente indigesta. Como recorte, podemos analisar sua
transição de pseudônimos que, nas primeiras edições do JORNAL DOBRABIL, se apresenta como
o assonante Pedro, o Podre, e caminha para a autoironia de Glauco Mattoso, em alusão ao
glaucoma que lhe tirou a possibilidade da poesia concreta e lhe enviou aos braços de Gregório de
Matos e seus sonetos cuja temática Glauco sempre louvou em suas próprias obras.
Os jornais DOBRABIL são um conjunto de obras lançadas pelo autor nos anos 70 do século
XX. Nestes trabalhos, que emulam o formato de um jornal tradicional, o autor insere sua poética
concretista usando os caracteres de uma máquina de datilografia para formar seus versos, sua prosa,
seus poemas concretos e também toda a diagramação dos seus jornais, ou seja, margem, fontes,
tipografia e tamanho de letra, tudo é composto apenas pelos caracteres de uma máquina de escrever.
Cabe destacar que a inserção da poética concretista, nos jornais DOBRABIL, representa uma
importante contribuição do autor para a renovação da poesia brasileira nos anos 70, conforme
assegura Haroldo de Campos ao dar a Glauco o epíteto de Poeta do Asfalto em seu livro Poesia
Urbana.
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A abordagem do Concretismo em relação à obra de Glauco Mattoso, especialmente
refletida no "prefácil" de Augusto de Campos resgatada para edição reunida do "Jornal Dobrabil",
publicado pela editora Iluminuras em 2001, destaca uma percepção astuta e apreciativa. O
comentário de Augusto de Campos, uma figura-chave do movimento concretista, realça o caráter
inusitado e inovador do trabalho de Mattoso. Sua observação sobre todas as edições do "Jornal
Dobrabil" serem ironicamente numeradas como "número hum" sublinha um senso de humor e
irreverência que é congruente com o espírito de experimentação do Concretismo. Além disso, a
menção de Décio Pignatari, outro poeta concretista influente, reforça a conexão e o reconhecimento
entre os concretistas e Mattoso. Campos expressa que o "Jornal Dobrabil" o diverte, delicia, choca
e às vezes aterroriza, sugerindo que a obra de Mattoso consegue evocar uma gama ampla de
respostas emocionais e intelectuais, algo valorizado dentro do Concretismo por seu desafio às
normas convencionais e pela exploração de novas possibilidades expressivas.
O álbum Melopéia é uma obra de Glauco Mattoso lançada no início da primeira década do
século XIX, obra em que Glauco convida diversos artistas para interpretarem seus sonetos através
da música. São escolhidos músicos das mais diversas vertentes, como o punk rock da banda
Inocentes, o funk de DJ Krâneo, o escárnio de Falcão, o concreto de Arnaldo Antunes, o
existencialismo de Humberto Gessinger, o punk brega de Wander Wildner e até mesmo o soprano
de Edson Cordeiro, entre outros que caracterizam esse álbum como "Uma antropofagia, até sadia,
/ tornou a nossa música salada / de fruta, nacional ou importada" como canta Tato Fischer,
tecladista dos secos e molhados, na faixa inaugural do álbum.
Importante explicitar como a obra de Mattoso é afetada pelo desenvolvimento do glaucoma,
como, ao abraçar sua cegueira, o poeta se aferra aos sonetos isométricos, retorna a uma poesia
calcada na sonoridade, no ritmo e na eufonia ds versos. É este evento que, ao tornar-se crônico,
volta toda a genialidade do autor, antes posta na concretude dos seus versos, para os elementos do
som. É interessante ainda perceber que a forma conecta esses elementos da poética do Pedro, o
Podre até o Glauco Mattoso. Em seu Soneto 241 Ensaístico, cantado na Melopéia por Wander
Wildner, o poeta demonstra seu reconhecimento por sua fase inicial “Chamemo-la de fase
iconoclasta, / à minha poesia antes de cego. / Pintei, bordei. Porém não a renego.” para então
dizer o motivo de sua guinada: “Forçou-me a invalidez a dar um basta.” e apresentar sua nova
fase “A nova não é casta, nem contrasta / com velhas anarquias. Só me entrego / ao pé, onde em
soneto a língua esfrego. / Chamemo-la de fase podorasta.” em que conta como, apesar da aparente
distância, ainda há conexão entre suas fases à primeira Iconoclasta e a segunda Podorasta. Esta
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segunda ele concilia com a primeira ao dizer “Mas nem por isso é menos transgressiva. / Impõe-
se um paradoxo na medida / da forma e da temática obsessiva” e, como chave-de-ouro, seu último
verso é “Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida.” em que o contraditório entra em harmonia através
de sua poesia. O paradoxo de sua produção poética é parte de sua conciliação e une, nos seus
próprios termos, a forma do poema concreto com a forma do soneto. E demonstra que é possível
expressar-se dentro do crivo da forma em objetos poéticos que podem ser visuais como uma
estrutura de concreto ou sonoras como aquelas de um cego aedo grego.
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Capítulo 1: Fase Iconoclasta
JORNAL DOBRABIL
A fase iconoclasta do autor, tem na profusão das edições do JORNAL DOBRABIL 1 o seu
ponto de inflexão, ilustrando ali suas principais manifestações poéticas, políticas e estéticas.
Posteriormente, o autor rememora essa fase no Soneto 241 Ensaístico. 2 Em seu quarteto inicial o
soneto revela a autodefinição do autor como iconoclasta, alguém que desafia e destrói os padrões
estabelecidos pela sociedade. Os versos Chamemo-la de fase iconoclasta, / à minha poesia antes
de cego. / Pintei, bordei. Porém não a renego. / Forçou-me a invalidez a dar um basta expressam
a atitude rebelde e transgressora do autor em relação à sua própria poesia. Mesmo na iminência de
perder a visão devido ao glaucoma, ele não renega seu estilo e suas experimentações.
“Chamemo-la de fase iconoclasta”, o próprio autor assim a chama e é bem propícia tal
afirmação, afinal, em sua produção dessa época percebe-se que o auto publicado JORNAL
DOBRABIL se marca pelos heterônimos diversos atuando em diálogo, conflito, crítica e em registro
marcante do momento, histórico, que o autor vive sua poesia antes de cego. Seus heterônimos
poderiam muito bem cantar “Pintei, bordei. Porém não a renego.”, pois, durante os anos de
chumbo da Ditadura, as edições do jornal são, em suma, sua forma de protesto, sua militância
artística, poética, estética e política. Neste período, as edições do jornal se tornam, em essência,
uma forma de protesto e uma expressão de sua militância política frente à Ditadura. A Ditadura
Civil-Militar brasileira, iniciada com o golpe de 1964, representou um período de intensa repressão
e controle autoritário, especialmente após a implementação do Ato Institucional Nº 5 em 1968.
Este ato restringiu severamente as liberdades individuais e coletivas, com a censura abrangendo a
mídia, a cultura e a expressão pública. Direitos fundamentais, como igualdade, segurança,
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quais sejam, redator, editor, colunista, leitor, anunciante etc.
Glauco Mattoso e Pedro, o Podre, representam dois heterônimos distintos na obra
multifacetada de Pedro José Ferreira da Silva, cada um com suas características e contribuições
únicas. Glauco Mattoso, autor do "Manifesto Escatológico", apresenta-se como um poeta
profissional liberal, versátil o suficiente para aceitar encomendas para ocasiões especiais, como
batizados e festas. Este aspecto de sua persona indica uma abordagem mais convencional e
adaptável à poesia, capaz de transitar entre diferentes estilos e temas, refletindo uma sensibilidade
mais ampla e uma disposição para engajar-se com uma variedade de audiências. Por outro lado,
Pedro, o Podre, conhecido como autor do "Manifesto Coprofágico", é retratado como um letrista
de composições dactilográficas, sugerindo uma predileção por um estilo mais direto, crítico e
possivelmente provocativo. Esta persona se concentra em uma abordagem mais irreverente e
desafiadora, explorando temas tabus e utilizando uma linguagem que desafia as normas sociais e
literárias. Enquanto Glauco Mattoso parece abraçar uma versatilidade poética e uma certa
sofisticação, Pedro, o Podre, mergulha em uma arte mais crua e confrontadora. Já o heterônimo
Pedro Ulysses Campos representa uma faceta intrigante e irônica de sua obra literária. Este
personagem fictício, desempenhando o papel de um crítico literário conservador, foi habilmente
concebido para aludir à Pontifícia Universidade Católica (PUC), uma instituição conhecida por sua
orientação conservadora. Através de Pedro Ulysses Campos, Mattoso explorou o diálogo crítico
com as correntes conservadoras da sociedade e da literatura, criando um contraponto satírico às
suas próprias visões transgressoras e progressistas. As críticas e observações de Campos,
permeadas de um conservadorismo deliberado, não apenas serviam como um meio de autoanálise
e reflexão sobre sua própria arte, mas também como uma ferramenta para questionar e desafiar o
cenário cultural e acadêmico brasileiro. Esse heterônimo, com sua abordagem crítica e seu
posicionamento ideológico distinto, exemplifica a complexidade e a profundidade da obra de
Mattoso, demonstrando sua habilidade em abordar diferentes perspectivas e dialogar com uma
variedade de vozes dentro do espectro cultural e social.
O que se pode chamar de seu projeto estético reside na meticulosa construção da persona
literária de Glauco Mattoso, que confunde o leitor ao misturar aspectos de sua vida privada com
seu universo ficcional. Isso permite uma leitura interpretativa que considera a figura autoral como
um heterônimo, semelhante às instâncias literárias criadas no JORNAL DOBRABIL e em outras
publicações que marcaram seus primeiros passos na carreira literária. Segundo Ana Paula
Aparecida Caixeta (2018), nós podemos recorrer a Fernando Pessoa (2012), que descreve a
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heteronímia como a criação de um "autor fora da pessoa", uma individualidade completa fabricada
pelo próprio autor. Mattoso, por sua vez, apresenta uma notável proliferação de heterônimos, como
"Pedro, o Podre" e "Pedro, o Glande", que desempenham diferentes papéis no JORNAL
DOBRABIL. A repetição desse gesto criativo sugere uma possível revisão da ideia de que Glauco
Mattoso seja apenas um pseudônimo. Seu apego aos discursos auto escarnecedores e à brincadeira
com nomes próprios por meio de trocadilhos e personificações reforça a construção ficcional de
sua identidade literária, indo além de um mero espaço para confissões pessoais.
Entretanto há um jogo com as distintas consciências literárias de seus heterônimos é uma
constante ao longo da produção literária de Mattoso, sendo especialmente evidente em "Pedro, o
Podre", satírico e fescenino, no JORNAL DOBRABIL. Em uma de suas publicações, Pedro, o Podre
deixa claro que cagar é um ato político6 colocando assim a escolha manifesta pela coprofagia como
tema central dentro da obra de Mattoso. O Podre é responsável pela parte mais chula e iconoclasta
do jornal, enquanto Glauco Mattoso desenvolve poemas mais elaborados e de temáticas diversas.
Embora haja essa distinção, não existe uma divisão clara entre os versos concretos, experimentais
e humorísticos, pois ambos os estilos coexistem no JORNAL DOBRABIL.
Segundo João Maria Freire Alves (2015), em sua tese, seu principal heterônimo artístico,
Glauco Mattoso, alude à sua cegueira e marca sua própria literatura, Mattoso, atravessa suas obras
literárias com tantos outros heterônimos, especialmente na fase de escrita no JORNAL DOBRABIL.
Dentro da estética mattosiana, cada heterônimo possui identidade própria que, porém, não deixam
de ser versões do próprio autor. Os limites distintivos entre os heterônimos e o autor são ambíguos
e permeáveis. Convém notar que, dentro dessas miscelâneas de alcunhas, nomes e heterônimos o
próprio Pedro José Ferreira da Silva, inexiste enquanto signatário dos textos literários. São esses
heterônimos que ocupam todo o espaço autoral, não sobrando ao Pedro original qualquer espaço
para assumir um papel autoral dentre os tantos que assinam suas obras.
A coprofagia, elemento central do JORNAL DOBRABIL e da maioria de seus escritos, é
definida por Glauco, como uma releitura escatológica da antropofagia. Segundo Glauco Mattoso,
ela representa a linguagem vulgar, inspirada em suas leituras, parodiada e transportada para o papel
por meio de sua máquina de escrever, com a datilografia definindo o formato tipológico do
JORNAL DOBRRABIL.
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(MATTOSO, JORNAL DOBRABIL, 2001, p. 11).
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Glauco Mattoso publica o Manifesto Coprofágico, um pastiche do Manifesto Antropófago
em seu suplemento jornal dadarte que ocupava o verso de seu JORNAL DOBRABIL. Pastiche é
um termo utilizado na literatura e nas artes para descrever uma obra ou estilo que imita ou faz
homenagem a outros estilos, obras ou autores. Em um pastiche, o criador emprega técnicas, temas
e elementos característicos de outras obras, misturando-os para criar algo novo, mantendo, no
entanto, uma reverência ao material fonte. Essa técnica permite uma intertextualidade, dialogando
com diferentes tradições e estilos literários ou artísticos. O pastiche pode ser usado para explorar
ou questionar gêneros e convenções estabelecidas, oferecendo uma maneira de conectar diferentes
períodos, estilos e abordagens em uma única obra.
Neste manifesto, Mattoso realiza um jogo de palavras com os versos iniciais do poema
"Romance Sonâmbulo" de Federico García Lorca, dedicado a Gloria Giner e Fernando de los Ríos,
que começa com "verde que te quero verde". Esse jogo de palavras é utilizado para desenvolver
ícones comportamentais e transgressores que permeiam sua poesia. A palavra "merda" é recorrente
ao longo de todo o "manifesto" e sugere a decomposição da tradição sem, no entanto, desprezá-la
completamente. Os versos finais refletem a intenção e a atitude do poeta: "Merda (...) és meu
continente terra fecunda onde germina, minha independência, minha indisciplina". A Coprofagia,
dialogando com a Antropofagia e a tradição, torna-se um ponto de referência fundamental na
poética de Mattoso. Enquanto os modernistas tinham a Antropofagia como seu princípio criativo,
Mattoso adota a Coprofagia como uma forma de "degustar" preceitos anteriores para criar novas
perspectivas. No entanto, ele adverte que o resultado dessa deglutição pode não ser agradável aos
olhos da sociedade tradicional, patriarcal, censuradora e excessivamente conformista. Assim, ele
desafia, rebela-se, confronta e choca com uma poética que está longe de ser convencional e
moldada.
Escrever sobre Glauco Mattoso é uma tarefa que também possui suas facilidades ao deixar
explícitas suas intencionalidades e metodologias. Seus escritos em prosa e verso frequentemente
têm caráter autobiográfico e, além disso, apresentam uma dimensão autoanalítica, por meio da qual
investiga sua própria psique, motivações, técnica e estilística. Em seu prefácio do livro JORNAL
DOBRABIL, o autor discorre sobre o momento histórico de sua produção marginal, explicando sua
técnica e os meios disponíveis nesse período.
O processo criativo de Mattoso desenrola-se como um intrigante jogo no qual o autor e o
leitor se envolvem em múltiplas percepções, explorando o terreno entre o real e o fictício, o
cotidiano e, principalmente, o humano. De maneira contrária às convenções e aos preciosismos
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associados à criação e à genialidade, Glauco Mattoso constantemente faz referência a essas normas,
demonstrando sua compreensão perspicaz do processo criativo e autoral.
O poeta paulistano traça uma linha condutora que persiste em seu vasto conjunto de obras,
guiada por elementos estéticos que se repetem com frequência, portanto, propositais e integrantes
de um projeto estético deliberadamente construído. Entre esses elementos, a figura autoral com
inclinações fetichistas – o sujeito que existe para além do domínio literário – é explorada com
minúcia, da mesma forma que seus textos poéticos e narrativos. A preocupação do autor com a
representação pública do escritor denota um gesto que vai além do aspecto estético, abrangendo
discursos que outras instâncias hesitariam em assumir como autorais. Estes discursos, marcados
por uma ironia em relação à própria poesia, à criação e à autoria, manifestam-se através de uma
linguagem escatológica, dando forma à peculiar coprofagia glaucomattosiana.
Escolher uma figura autoral que dê conta da sua condição confessada – no caso, a maldição
da cegueira e o fetiche por pés – e que assuma discursos complexos e delicados no que tange aos
corpos, aos valores morais, éticos e religiosos é uma possibilidade válida quando se trata de um
personagem. O autor chama a cegueira de maldição e alia-se a ela provocando uma espécie de
personificação da cegueira e do glaucoma. O glaucomatoso Glauco Mattoso é bem mais do que um
sujeito comum fora do espaço ficcional, é uma instância literária que ocupa o espaço da legitimação
de discursos:
Quando Pedro José Ferreira da Silva assinava seu JORNAL DOBRABIL com sua profusão
de heterônimos , o mesmo já tinha em seu horizonte a perda da visão para o glaucoma e sua poesia
marcada pela visualidade do concretismo era uma de suas tantas auto ironias, pois, obsessivo com
a perda futura da visão trabalhava com as formas mais intrincadas da poesia concreta:
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O ovo de Colombo foi a descoberta do meio espaço, isto é, a possibilidade
de teclar uma letra na posição intermediária entre dois caracteres
normalmente digitados, o que era obtido pressionando-se o espaçador
simultaneamente à tecla desejada. Aqui surgiu fundamental diferença entre
uma Remington e uma Olivetti. A primeira não posicionava a letra
exatamente na metade da distância entre os dois dígitos, enquanto a segunda
tinha total precisão (Mattoso, G. Uma odisséia do meio espaço JORNAL
DOBRABIL, 2001, p. 2).
O autor descreve, detalhadamente, os aspectos técnicos que o fizeram optar pela Olivetti
no lugar da Remington. Conta como o meio ponto preciso oferecido pela máquina escolhida foi
fundamental para a realização das suas pretensões poéticas concretistas e satírico-fesceninas.
Através dessa técnica de formatação do texto em uma página A4 o autor desenvolve uma
capacidade de desenhar e emular um jornal de maneira autônoma e independente do maquinário
necessário para imprimir um jornal tradicional. O JORNAL DOBRABIL é uma paródia poética e
política dos jornais de sua época reiteradamente censurados e vigiados pelo aparato repressivo da
Ditadura Militar vigente à sua época:
Feita a escolha, pude compor linhas "pontilhadas" onde cada ponto era
representado pela letra "o" minúscula, que por seu formato circular permitia
direcionar a linha tanto na horizontal quanto na vertical ou diagonal.(...) A
partir daí, a criatividade e o mimetismo não teriam limites na pesquisa de
famílias tipográficas assemelhadas às mais diversas fontes empregadas pela
grande imprensa nos cabeçalhos e manchetes, bem como pelos artistas
gráficos em seus projetos semióticos (Mattoso, G. Uma odisséia do meio
espaço JORNAL DOBRABIL, 2001, p. 2).
Em suas páginas emulam-se colunas, reclames, propagandas, correio opinativo tal e qual
um jornal tradicional, mas dessa vez com um conteúdo lírico que desconcerta o leitor e provoca a
reflexão sobre os temas abordados.
Meu fanzine passou a fazer parte disso porque era uma folha só. Frente e
verso, eu datilografava, xerocava e misturava nisso tudo. Nessa datilografia,
misturava um pouco de poesia de banheiro não é um pouco de poesia
concreta? E um pouco de classicismo, aquela coisa de mexer com os com
os autores clássicos. Só que de uma forma desrespeitosa. (00:04:54 -
Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa 2019 - Biblioteca Pública
de São Paulo).
JORNAL DOBRABIL pode ser dividido entre suas edições cariocas do ano de 1977
correspondentes às folhas de 1 a 21 da edição em livro e as paulistanas das folhas 22 a 25 de 1978,
das folhas 26 a 33 de 1979, das folhas 34 a 49 de 1980 e das folhas 50 a 53 de 1981. No verso da
folha 1 temos a assinatura de Pedro, o Podre nos versos:
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(Mattoso, Glauco, JORNAL DOBRABIL, numero hum!!!, anno xiii!!!)
Nos versos seguintes, o poeta continua misturando o chulo com reivindicações de sua
época, aproximando palavras como "peidar" com "liberdade democrática", "mijar" com "direito
humano" e ao mencionar "esporrar", o autor destrói a expectativa de uma sequência convencional.
Além disso, ele insere sua assinatura "o Podre", evocando, através da estilização das letras, a
presença sutil do nome "Pedro" que compartilha do mesmo “p" de “peidar" em mais uma
demonstração de sua auto ironia ao aproximar seu nome próprio de um ato censurado aos “afeitos
às normas de etiqueta” como futuramente irá cantar no soneto Flatulento que também está presente
no álbum Melopéia.
O uso de expressões como "Cagar é um ato político" exemplifica a provocação e a
transgressão presentes no JORNAL DOBRABIL. Essa frase, escrita com um tamanho de fonte
maior, ocupa duas e linha, destaca-se visualmente e desafia a perspectiva poética tradicional, que
muitas vezes valoriza a poesia como algo belo e límpido. Ao trazer elementos obscenos e prosaicos
em um contexto de repressão da ditadura militar, o autor utiliza o humor e a troça como formas de
enfrentar esse momento perigoso da época.
Dessa forma, a fase iconoclasta de Glauco Mattoso, marcada pela poesia concreta e pela
mistura de elementos chulos e transgressores, revela sua postura desafiadora em relação aos
padrões estabelecidos e sua busca por uma forma de expressão autônoma e criativa, mesmo diante
das limitações impostas pela sociedade e pela perda iminente da visão. O JORNAL DOBRABIL é
a obra fundamental na bibliografia de Mattoso, onde seu discurso poético se entrelaça com seu
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discurso político e sua proposta estética. Seus manifestos, poemas concretos, poemas livres e
sonetos convivem com seus temas chocantes e obscenos. É o espaço primordial no qual Mattoso
exprime sua iconoclastia, com todas as suas contradições, transgressões e prazeres obscenos.
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Capítulo 2: Fase Podorasta
Fase Podorasta
Glauco Mattoso revela uma fascinante jornada de adaptação à perda da visão e suas implicações
profundas em sua produção poética. A transição para a cegueira total, no contexto de um mundo
que estava experimentando avanços tecnológicos, representa um desafio significativo para
qualquer pessoa. No entanto, a maneira como Mattoso enfrentou essa situação é inspiradora e
revela a resiliência humana e a capacidade de adaptação. Primeiramente, a citação destaca a
O segundo quarteto do Soneto 241 Ensaístico evidencia sua fase Podorasta. Tal fase é
marcada pela adoção dos sonetos como forma preferencial em sua produção poética após 1995. Os
versos deste quarteto trabalham com a ambiguidade entre o pé métrico, que o poeta trabalha com
rigor para compor seus versos isométricos e o pé objeto de fetiche do autor. O mesmo ocorre com
a expressão língua que em soneto esfrega, mas que também poderia esfregar ao objeto do fetiche.
Podorasta é o termo escolhido pelo poeta para traçar o paralelo entre a prática de submeter sua
poesia ao crivo da métrica e prática do próprio autor com seu fetiche por pés. Tal momento do
autor será analisado a partir do álbum Melopéia: Sonetos Musicados, seus sonetos construídos com
o auxílio do computador falante são musicados e ganham mais um forte elemento de oralidade,
rítmica e sonoridade. A fase podorasta de Mattoso é, de certo modo, um retorno à poesia antiga
que era indissociável da própria música. A figura grega do aedo cego ganha em Glauco uma nova
versão se apartando da necessidade da visão como elemento crucial à poesia e o binômio
preenchimento e vazio deixa de ser o elemento fundamental para o retorno da conjugação entre o
som e o silêncio:
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Você tecla no teclado comum, e eu já tinha experiência, datilografia do
teclado, e esse teclado vai te falando, vai te devolvendo a cada tecla você
teclar no minúsculo, é uma voz feminina se teclar, com maiúscula, é uma
voz masculina, então, você sabe se você está teclando minúscula ou
maiúscula e todos os assentos toda, toda a pontuação é falada também. Isso
permite escrever e depois ele lê para você. Você tem uma série de comandos
que permitem editar o texto (00:50:28 Mattoso em entrevista a Pinto,
Manuel da Costa 2019 - Biblioteca Pública de São Paulo).
E mais, rebela-se contra o próprio glaucoma e se lança como um poeta concreto, mas um concreto
sujo, marginal: “Eu misturei as coisas porque o concretismo, era muito clean, era muito limpo, era muito
asséptico, não contaminado pela poesia de banheiro, pela poesia de bordel e não de cordel, né?” E quando
cego cultiva o soneto, forma clássica, de estrutura fixa, mas com sua temática fescenina, chula,
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transgride duplamente os possíveis paradigmas poéticos que poderia se inserir na
contemporaneidade. Glauco Mattoso recusa o caminho do verso livre e abraça o metro
desagradando, a poesia que se arroga de antissistema, mas repete em 2022 o que era feito como
novidade em 1922. E, por outro lado, não se insere como saudosista do passado ao trazer em seu
sonetário o que há de mais ofensivo aos cultores da poesia tradicional.
O álbum intitulado Melopéia representa uma contribuição significativa da obra do poeta
Glauco Mattoso, lançado em 2001, Melopéia se coloca à margem das expectativas quando mostra-
se parte do projeto poético do autor e não uma deliberação musical de um compositor. Aqui, a
poesia não surge como uma forma de fixar um arranjo de um instrumentista, ou uma homenagem
de um músico à poesia de outrem que lhe encanta. Neste projeto, Glauco Mattoso estendeu um
convite a uma diversificada gama de artistas musicais para a interpretação de seus sonetos por meio
da música. A seleção de músicos abarcou uma ampla variedade de vertentes musicais, abrangendo
desde o punk rock, representado pela banda Inocentes, até o funk, representado por DJ Krâneo.
A diversidade musical desse álbum pode ser caracterizada como uma manifestação
artística que evoca o espírito da antropofagia, ressoando a afirmação de Tato Ficher, tecladista da
banda Secos e Molhados, na faixa de abertura do álbum, que proclama: "Uma antropofagia, até
tardia,/ tornou a nossa música salada/ de fruta, nacional ou importada". Tal assertiva ressalta a
natureza eclética e sincretista da obra, na qual a música brasileira se alimenta e absorve influências
tanto de sua própria tradição quanto de elementos musicais estrangeiros, resultando em uma
composição multifacetada que transcende fronteiras e rótulos estilísticos.
Glauco é, portanto, profundamente paradoxal em sua criação poética. Rejeita, com prazer,
as normas de etiqueta como Ayrton Muganaini Jr canta na faixa Flatulento do álbum Melopéia8.
Já o poema Ensaístico é cantado9 por Wander Wildner, glaucomattosiano que traz para o “do it
yourself” do punk e seus três acordes toda a complexidade de um soneto, não de um soneto
qualquer, mas sim um cuja estrutura contrasta virtuosidade quando posto em harmonia com os
arranjos propostos pela voz de Wander Wildner. A música punk é conhecida por sua simplicidade
e rebeldia, enquanto o soneto é uma forma poética altamente estruturada e tradicional. A
combinação desses elementos opostos ressalta a natureza provocativa e desafiadora do poema. A
poesia de Glauco Mattoso nos lembra que a literatura não deve ser uma prisão de regras e
convenções, mas sim um campo fértil para a experimentação e a expressão individual. Seu poema
8
9 https://www.youtube.com/watch?v=LgXi24kQMxM
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"Ensaístico" nos convida a considerar a relação complexa entre forma e conteúdo na poesia,
destacando como a quebra de expectativas e a exploração de contrastes podem ser poderosos meios
de comunicação artística. Além disso, a escolha de Wander Wildner, um músico associado ao
punk-brega, para interpretar o poema em uma canção, demonstra a versatilidade da obra de Mattoso
e sua capacidade de transcender fronteiras artísticas. A música, como a poesia, é uma forma de
expressão artística que também pode ser desafiadora e subversiva. A colaboração entre Mattoso e
Wildner ressalta a ideia de que a arte não deve ser confinada a categorias estanques, mas pode fluir
livremente entre diferentes formas e estilos.
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Capítulo 3: Dos Olhos ao Ouvido
Tomando o segundo terceto do Soneto 241 Ensaístico como fio condutor da análise aqui
serão abordados os aspectos formais da produção Mattosiana em suas duas fases: Iconoclasta e
Podorasta. Analisaremos como o estilo do autor se adequou aos modos de produção poética tão
distintos quanto a poesia concreta e os sonetos. Glauco, em seu JORNAL DOBRABIL, sua maior
expressão poética antes de cego faz troça reiterada com as normas, com as regras presentes em
cada estrutura a que recorreu para ensaiar sua obra poética:
Para Glauco ter enxergado durante anos foi fundamental, pois isso lhe permitiu trabalhar
com quadrinhos e experimentar com a diagramação, especialmente com a utilização de letras em
um espaço de papel de maneira vanguardista. Ele destaca a importância de brincar com as letras e
criar jogos gráfico-visuais. Após tal vivência, tudo ficou gravado em sua memória, sugerindo que
a visualidade teve um impacto significativo em sua criatividade e forma de abordar o design
gráfico.
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(Mattoso, Glauco, JORNAL DOBRABIL, numero hum!!!, anno xiii!!!)
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Aqui temos um exemplo de como o poeta percebia a própria tipografia, elemento base de
seu pastiche em forma de jornal. Cada palavra deste poema concreto contradiz a recomendação
expressa em seu conteúdo semântico. Glauco emula em sua máquina de escrever diferentes fontes
tipográficas, diferentes estilos de fonte, caixa alta, caixa baixa, letras em itálico. Constrói assim um
anti-axioma do dito em contradição ao visto. A visão contradiz aqui o que se lê, mas ambos
coexistem enquanto obra poética. O poema concreto “AXIOMA” começa com a palavra
"APENAS" em letras maiúsculas, enfatizando a ideia de que apenas um tipo de letra deveria ser
usado em um jornal. No entanto, conforme o poema avança, cada linha introduz um tipo de letra
diferente, uma mistura de maiúsculas e minúsculas, e até mesmo letras em itálico. Isso cria um
efeito visual de caos tipográfico, no qual as palavras são distorcidas e se sobrepõem, tornando o
texto praticamente ilegível. A ironia e a provocação do poema residem no fato de que a forma
como o texto é apresentado contradiz completamente o conteúdo. O poema se apresenta como um
"axioma" que prega a simplicidade tipográfica, mas na realidade, ele faz o oposto, bagunçando
deliberadamente a tipografia.
O paradoxo de forma e conteúdo é uma das marcas mais fortes da obra de Glauco
Mattoso, desde quando assinava proficuamente como Pedro, o podre. Essa contradição entre a
forma e o conteúdo é uma característica marcante da obra de Glauco Mattoso, que muitas vezes
desafia as normas literárias e culturais. Ele usa a tipografia como um meio de expressão artística,
explorando como a forma visual das palavras pode afetar a interpretação do texto. Em AXIOMA
questiona a autoridade das normas e regras linguísticas, ao mesmo tempo em que nos faz refletir
sobre como nossa percepção da linguagem pode ser moldada pela apresentação visual:
Glauco menciona que sua memória visual guardou tudo o que ele havia experimentado
anteriormente, e depois de se tornar cego, iniciou uma nova fase em sua vida. Nessa nova fase, a
memória se tornou uma parte crucial e importante de seu processo criativo, substituindo a
percepção visual que ele não tinha mais. Isso destaca a adaptabilidade e a resiliência de Glauco
Mattoso em sua jornada criativa, mesmo após enfrentar desafios significativos relacionados à perda
de visão. É interessante notar como os princípios norteadores de sua poética permanecem em suas
diferentes fases. Como a perda da visão o manteve ferrenho em seu apresso não só pela forma, mas
também pelo paradoxo.
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Então o metro, a rima como no caso do cordel ou do rap, passaram a ser
fundamentais porque eu compunha, e já ia retendo de memória tudo
medinho, tudo rimado para facilitar as coisas e isso me reaproximou do
classicismo, porque eu era, na fase visual, eu era muito moleque, muito
iconoclasta. Eu gostava de desrespeitar as normas, fazer uma coisa bem anti
convencional. À medida que eu fui recuperando a memória depois da visão
eu fui revalorizando aquilo que era clássico na literatura, como por exemplo,
o soneto. É o tipo de poema mais clássico que existe mais tradicional, com
séculos de existência. (00:08:17 Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da
Costa 2019 - Biblioteca Pública de São Paulo)
Mattoso menciona como, após ficar cego, ele passou a valorizar elementos métricos, como
o metro e a rima, ao compor seus poemas. Ele descreve sua fase anterior à cegueira total como
"moleque" e "iconoclasta", caracterizada por uma abordagem anticonvencional e desrespeito às
normas literárias. No entanto, à medida que recuperava a memória após a cegueira, ele começou a
revalorizar aspectos clássicos da literatura, como o soneto. Essa mudança é refletida no soneto
"Ensaístico", que possui uma estrutura formal, com métrica e rima rigorosas. A comparação entre
o trecho da entrevista e o soneto destaca como a perda da visão influenciou a transformação da
poesia de Mattoso, levando-o de uma abordagem iconoclasta para uma valorização do classicismo
literário. Isso ilustra como as experiências pessoais podem moldar a expressão artística de um poeta
ao longo de sua trajetória. Essa evolução na abordagem de Glauco Mattoso em relação à sua poesia,
conforme mencionada na entrevista, também é evidente ao analisar o soneto "Ensaístico". O
poema, que segue uma estrutura formal clássica de soneto com métrica e rima rígidas, demonstra
o retorno do poeta à apreciação de elementos tradicionais da literatura, como o uso do soneto. No
entanto, apesar dessa adesão ao formalismo, o conteúdo do poema permanece ousado e
provocativo, abordando temas relacionados à sexualidade e à transgressão, como é característico
da obra de Mattoso. Isso cria um interessante contraste entre a forma e o conteúdo, evidenciando o
paradoxo que permeia sua poesia, como mencionado anteriormente.
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(MATTOSO, JORNAL DOBRABIL, 2001, p. 52).
Entretanto é importante notar que os sonetos não são uma estrutura ignorada por Glauco
em seu JORNAL DOBRABIL ou em sua poesia antes de cego, como exemplo disso podemos
observar o Manifesto Obsoneto que aparece no jornal e também no álbum Melopéia. Cuja temática
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demonstra que o apreço de Glauco pelo coprofágico e pelo escatológico não se limita às restrições
de sua visão, afinal é um soneto resgatado das paginas de seu jornal-pastiche que encontra lugar
em sua Melopéia esta que indica uma apreciação da poesia por sua musicalidade e eufonia. E
provoca assim leitores e crítica ao trazer os termos mais abjetos e chulos para a apreciação de sua
sonoridade através do talento do multi-instrumentista Alexandre Nero. O contraste e o paradoxo,
novamente, se fazem presentes em uma jocosa autocensura ainda mais escatológica do que a crítica
que recebe.
Iremos, pois, analisar a estrutura formal do soneto Ensaístico, concluindo-se que o rigor
poético do autor influencia a própria semântica, sonoridade e rítmica da obra Mattosiana.
Ensaístico é um soneto de estrutura clássica, composto por dois quartetos e dois tercetos. Como
recomenda Bilac em seu Tratado de versificação de 1905, Glauco Mattoso segue a estrutura
temática e estrutural e, portanto, o Soneto em sua primeira estrofe obedece ao pressuposto de ser
uma introdução ao tema a ser tratado pelo poema em questão, sua segunda estrofe trata do
desenvolvimento, o primeiro terceto é aquele destinado ao ponto de virada temática e a chave de
ouro (ou clímax) é o objeto da quarta e última estrofe.
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por sua contagem silábica terminar em uma décima tônica e possuir uma sexta sílaba como tônica
forte. Entretanto, este primeiro verso possui a singularidade da sua quarta e sua oitava sílaba serem,
também, sílabas tônicas e por tal além de heroico o verso também é classificado como sáfico.
O verso heroico é assim nomeado por ter se consagrado pela poesia épica como, por
exemplo, a Epopeia Os Lusíadas de Luís de Camões. Já o verso sáfico é de origem grega, uma
referência à estrutura que a poeta Safo, da ilha de Lesbos, usava para compor suas odes e líricas
que louvam o amor, e posteriormente muito utilizado pelo romano Catulo em seus poemas de
mesmo tema. Mattoso, entretanto, não se limita aos preceitos de Bilac ao construir o verso desse
soneto. Ao construir um verso que é ascendente, grave, heroico e sáfico ao mesmo tempo, o poeta
também satisfaz os critérios de um pentâmetro iâmbico, metro esse consagrado pela tragédia grega
de Sófocles e que possui um caráter fortemente musical. Não por coincidência tal pentâmetro é
aquele eleito por Shakespeare para seus próprios versos. Tal metro, de origem grega, é assim
nomeado pelo uso de cinco pés iâmbicos cujo ritmo é consagrado pela sequência de uma sílaba
breve seguida por uma sílaba longa por cinco vezes consecutivas.
Um verso que ao mesmo tempo é heroico, sáfico e também um pentâmetro iâmbico é uma
construção incomum dentro da tradição poética, extremamente complexa e de difícil execução. E
através de seu engenho poético Mattoso constrói um percurso rítmico que presta tributo a toda
poesia ocidental, desde os gregos e romanos, passando por Camões e Shakespeare, até chegarmos
a Olavo Bilac. Tal percurso poético de inegável apuro estético e de domínio métrico o elencaria ao
ponto mais elevado do Parnaso. Ainda mais quando durante a escansão dos demais versos do
poema percebemos que tal rigor métrico não se resumiu ao primeiro verso, mas que o poeta
continuou escrevendo versos que são heroicos, sáficos e pentâmetro iâmbicos ao longo de todos os
seus quatorze versos. Mas é justamente aqui que descobrimos o porquê dos versos dizerem em sua
terceira estrofe: “Mas nem por isso é menos transgressiva. / Impõe-se um paradoxo na medida /
da forma e da temática obsessiva” temos aqui um poeta cuja temática ofenderia sobremaneira os
classicistas com suas enciclopédias e manuais, mas que também desconcerta, com seu absoluto
rigor formal, a poética contemporânea que se põe contrafeita por qualquer resquício do uso da
métrica.
O paradoxo presente em Ensaístico vai além da mera combinação entre forma e conteúdo.
Ele está enraizado na própria identidade do poeta, Glauco Mattoso, que desafia as normas da
sociedade e da literatura de diversas maneiras. Mattoso é conhecido por sua poesia que explora
temas ligados à sexualidade, ao corpo e à diversidade de gênero de uma forma franca e muitas
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vezes provocativa. Dentro do contexto literário brasileiro, onde a tradição poética frequentemente
se alinha com a seriedade e a formalidade, a poesia de Mattoso se destaca como um desafio aberto
às convenções. Ele não apenas aborda questões tabu, mas também o faz com um domínio técnico
impressionante, como evidenciado no soneto Ensaístico.
No entanto, a análise da obra de Glauco Mattoso não se limita apenas à apreciação de seu
caráter transgressor. Também é importante reconhecer como sua experiência pessoal, incluindo sua
perda de visão, influenciou sua poesia e sua adaptação criativa a novas circunstâncias. Sua transição
de uma fase "iconoclasta" para uma fase "podorasta" revela sua capacidade de se reinventar e
encontrar novas formas de expressão artística após a perda de sua visão. A memória visual, como
ele menciona, tornou-se uma parte fundamental de seu processo criativo. O poeta também nos
convida a refletir sobre a própria natureza da linguagem e da comunicação artística. Seus jogos de
palavras, experimentações tipográficas e desafios métricos não apenas desafiam as convenções
literárias, mas também questionam como a linguagem pode ser usada para transmitir significado e
emoção. Ao criar um anti-axioma com seu poema concreto, ele não apenas contradiz as normas
tipográficas convencionais, mas também nos faz questionar a própria autoridade das regras e
convenções linguísticas.
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Conclusão: Pedro, o Podre e Glauco Mattoso
Pedro José Ferreira da Silva termina seu soneto Ensaístico universalizando seu lugar
enquanto poeta, um poeta que se iguala ao seu cânone pessoal como Bocage, poeta português da
segunda metade do século XVIII, conhecido por seus poemas fesceninos como o Soneto da dama
cagando que se inicia com: Cagando estava a dama mais formosa, /E nunca se viu cu de tanta
alvura; /Porém o ver cagar a formosura /Mete nojo à vontade mais gulosa! com um efeito de
admiração e repulsa, de elogio e escarnecimento que vemos recorrentemente nos versos de
Mattoso. O segundo nome desse cânone é Antônio Botto, poeta da segunda fase do modernismo
português, escandalizou a elite conservadora da Portugal da primeira metade do século XX, porém,
diferente de Glauco, seus poemas eram mais sutis ao cantar do seu amor homoerótico. Já Piva é
seu contemporâneo e um dos 26 poetas hoje de Heloisa Buarque de Holanda, lançado em 1976.
Roberto Piva compartilha com Glauco do erotismo, pornográfico, escatológico e político em seus
versos nessa segunda metade do século XX e lança poemas como os Anjos de Sodoma e Porno-
samba para o Marquês de Sade.
É mister notar que o movimento de construção poética do autor ao longo das estrofes
subverte a lógica de reverenciar primeiro seus gigantes (como diria Camões) e então contar sua
história, seus gigantes, seu cânone pessoal, surge aqui, logo antes da chave de ouro do Soneto Ao
cego, o feio é belo, e a dor é vida. E com essa chave sintetiza-se a obra de Glauco, a beleza está no
feio, no contraditório, vida e dor não são opostos, mas sim os mesmos. Glauco Mattoso não diz
que o feio é como belo para ele, mas sim que o feio é belo, não há uma comparação não há uma
visão sutil ou metafísica aqui. Há em sua obra uma assunção do que gosto hegemônico nega, há
uma atração pelo que gosto hegemônico rejeita. Há o auto escárnio, a autoironia que chama aqueles
que o admiram para compartilhar com ele de sua visão marginal e paradoxal da poesia e da nossa
própria sociedade. E seu cânone literário é personalíssimo, composto por autores que como ele são
os rejeitados, os presos e degredados de todas as épocas como Sade, Gregório e Bocage. São a
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esses nomes que Glauco presta seu tributo e é neles que se inspira para erguer seus próprios
edifícios de rima.
Com o último terceto de Ensaístico concluímos o percurso poético do soneto que também
é o percurso da vida poética do autor, inaugurado em suas edições do JORNALDOBRABIL cujo
experimentalismo e profusão heteronômica vimos no primeiro capítulo, seu desenvolvimento e
vaticínio que o conduziu da visão à cegueira no segundo capítulo, sua virada formal e sonetista
levando seu formalismo à máxima potência no estudo métrico e estilístico feito no terceiro capítulo
para chegarmos aqui nesta conclusão.
Ao longo deste trabalho percorremos a obra de Glauco sob a perspectiva da visibilidade
atravessada por sua cegueira que evidenciou uma poesia que permaneceu fiel à forma e transitou
dos olhos aos ouvidos, encontrou na construção formal da poesia elementos para manter sua própria
produção poética a despeito das próprias limitações que o seu glaucoma lhe impôs. O poeta
glaucomatoso não se intimidou com a imposição dessa doença que lhe retirou a visão como também
não se intimidou com os abusos e traumas que sofreu em sua infância ou aos abusos perseguições
que vivenciou nos anos de chumbo. O poeta Pedro abraçou a tortura que sofreu, abraçou a
perseguição que viveu e por fim abraçou a sua própria doença para fazer-se Glauco Mattoso. Para
ser um concretista, para ser um sonetista, um músico e assim compor uma obra poética respeitada
e louvada por sua força e capacidade de fazer das palavras o seu maior e melhor instrumento para
lidar com sua realidade ária e retornar a ela com humor e escarnio, demonstrando assim a coragem
de um covarde. que se esconde além de toda métrica e de toda rima.
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Referências Bibliográficas
MATTOSO, G. Soneto 241 Ensaístico. In: Pornô Chic. São Paulo: Editora 34, 1998.
MATTOSO, G. SONETO 150 TROPICALISTA In. Paulicéia ilhada: sonetos tópicos. São Paulo:
Ciência do Acidente, 1999.
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