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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

A pedagogia : teorias e práticas da Antiguidade


aos nossos dias / Clermont Gauthier, Maurice
Tardif (organizadores) ; tradução de Lucy
Magalhães; atualização da 3a edição canadense:
Guilherme João de Freitas Teixeira. - 3. ed. -
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
Título original : La pédagogie : théories et
pratiques de PAntiquité à nos jours, 3. ed.
Vários autores.
Bibliografia
ISBN 978-85-326-2426-0
1. Ciência da Educação - História 2. Educação -
Estudo e ensino - História 3. Educação - Filosofia -
História 4. Educação - História 5. Educadores
6. Pedagogia - História 7. Psicologia Educacional
8. Psicopedagogia I. Gauthier, Clermont. II. Tardif, Maurice.

10-07797 CDD-370

índices para catálogo sistemático:


1. Pedagogia : Educação 370
6
Da pedagogia tradicional à pedagogia nova
Clermont Gautbier

Objetivos de aprendizagem

Após a leitura deste capítulo, você deveria ser capaz:

• de explicar em que sentido o ensino mútuo pode ser


considerado como o prolongamento da tradição peda­
gógica;

• de comparar a pedagogia nova à pedagogia tradicio­


nal;

• de explicar a maneira como se constituiu o debate


pedagogia nova / pedagogia tradicional.
154 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

Introdução

N este capítulo, decidim os enfatizar um aspecto que


nos parece relevante, m esm o correndo o risco de deixar na
som bra alguns acontecim entos que, talvez, tenham sido im ­
portantes, ou ideias que tiveram algum sucesso. Escolhemos
concentrar os nossos esforços na análise da transição entre
duas m aneiras de fazer a escola: a pedagogia tradicional e a
pedagogia nova. Insistirem os no significado dessa transfor­
m ação profunda do discurso e das práticas pedagógicos.
Duas razões m otivaram a nossa escolha. Em prim eiro
lugar, é preciso reconhecer que, em bora o século XVIII nos
tenha levado a conhecer um p en sad o r genial com o Rous-
seau, não houve m udança im portante e d uradoura nas prá­
ticas pedagógicas entre os séculos XVIII e XIX. Pensamos
im ediatam ente em Pestalozzi, fiel continuador da obra de
Rousseau, mas parece-nos que as suas tentativas, corajosas
e engenhosas, são praticam ente insignificantes em com pa­
ração com a m aré que subm ergiu o m undo escolar a partir
do século XVII. N a verdade, a pedagogia, cujo nascim ento
teria ocorrido no século XVII, se m anteve de um a m aneira
relativam ente estável até o século X IX , tan to no seu espíri­
to quanto nas suas práticas, para constituir um a espécie de
tradição pedagógica na Europa. N a França, notadam ente,
os esforços não se dirigiram para a pedagogia, mas para os
debates legislativos referentes às grandes reform as da edu­
cação, m ediante as quais a instrução laica irá tornar-se obri­
gatória e pública. Sem querer dim inuir a im portância dessas
m udanças do século XIX, pensam os que elas só se referem
indiretam ente ao nosso tem a de estudo - a evolução das
ideias e das práticas pedagógicas - e não parecem influen­
ciar diretam ente a pedagogia, isto é, a m aneira de ensinar
nas classes.
D epois, e esta é a nossa segunda razão, vemos surgir,
no fim do século XIX e no início do X X , um m ovim ento
im ponente que visa derrubar essa tradição pedagógica. Sob
a influência da incipiente ciência da educação e da ideia de
reform a pela educação da sociedade destruída pela guerra,
um m ovim ento novo se im põe gradualm ente, provocando
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova

transform ações relevantes nas ideias e nas práticas pedagó­


gicas. Tendo m arcado o século X IX , esse m ovim ento é o da
pedagogia nova.
Para que o leitor apreenda bem as ideias elaboradas pe­
los autores representativos desse m ovim ento, dividim os o
presente capítulo em três partes. Em prim eiro lugar, exam i­
narem os a tradição pedagógica que se perpetuou no século
XIX. Depois, analisarem os a transform ação que se operou
no fim do século X IX e verem os com o a ciência com eçou
a criticar a tradição pedagógica. Finalm ente, explicarem os
que a pedagogia nova se define de m odo polêm ico, isto é,
pela negação da pedagogia tradicional.

6.1 O século XIX e a tradição problem as diários. Esse saber-fazer codificado


pedagógica atinge não só os conteúdos a ensinar, mas tam ­
bém todos os aspectos da vida da classe (ensi­
Precedentem ente, form ulam os a hipótese de
no sim ultâneo, códigos orientando a postura,
que a pedagogia apareceu no século XVII. Uma
os deslocam entos, as punições, o lugar de cada
nova m aneira de fazer a escola se im pôs, dife­ aluno na sala etc.). Os docentes transm item es­
rindo consideravelm ente das práticas anteriores. sas habilidades a seus sucessores que, po r sua
Realmente, seria mais justo dizer que, antes do vez, as legam àqueles que os substituem . Assim
século XVII, havia um a tradição de ensino: p rá ­ se constitui, pouco a pouco, um código de en­
ticas diversas da arte de ensinar na A ntiguida­ sino uniform e, um a tradição pedagógica que se
de, na Idade M édia e no Renascim ento, práticas perpetua durante séculos. E ntretanto, para que
transm itidas de um a geração de docentes a outra. haja um a tradição pedagógica, era preciso que,
Apesar dessa tradição de ensino, ainda não havia previam ente, a pedagogia se revele com o obje­
tradição pedagógica. As abordagens, m esm o em to de um a preocupação particular. Isso não foi
classes com efetivos restritos, ainda eram rotinei­ possível antes do século XVII. Além disso, eram
ras, pouco elaboradas e reduzidas principalm en­ necessárias condições propícias para perpetuar
te a considerações de conteúdos, que deveriam esse código de ensino uniform e.
ser organizados de acordo com a lógica.
O século XVII preocupa-se mais com a p e­
6.1.1 As características da tradição
dagogia. C om o vimos no capítulo 4, nesse sé­ pedagógica
culo assiste-se a m udanças no contexto escolar
e nos hábitos de ensino em vigor. Cresce, então, Para as necessidades da presente análise, en­
o núm ero de escolas que acolhem mais crianças, fatizam os quatro características de um a tradição
cuja presença é um pouco mais assídua. Os m es­ pedagógica, a fim de dem onstrar o m elhor pos­
tres criam um novo saber-fazer para resolver os sível seu a partir do século XVII. Prim eiram ente,
156 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

reconhecem os na tradição a sedim entação dos infância e que fazem com que, geralm ente, cada
gestos que precederam , a conservação e a perpe­ m estre ensine, em parte, com o foi ensinado.
tuação dos usos anteriores. Uma tradição encerra M as o uso não é tudo, pois um a tradição
certos com portam entos vindos do passado, p ro ­ transform a igualmente as m aneiras de fazer. Com
move m odelos de conduta. Em segundo lugar, efeito, B atencour (1669) fala tam bém da ex­
toda tradição deve adaptar progressivam ente as
periência ou, po r outras palavras, daquilo que
suas m aneiras de fazer aos novos contextos. Uma
ele acrescentou pessoalm ente com o adaptação
tradição não se lim ita a reproduzir sim plesm ente
e m odificação dos usos, considerando as novas
os com portam entos, mas vai transformá-los pouco
condicionantes ligadas ao contexto da sua épo­
a pouco. Em terceiro lugar, é preciso sublinhar
ca, condicionantes que não existiam antes dele
o aspecto prescritivo da tradição, no sentido em
ou estavam pouco presentes: um ensino prim á­
que ela é mais um reservatório de respostas do
rio m inistrado a grupos de crianças oriundas do
que um conjunto de perguntas que necessitam
povo. Escreveu a sua obra para m ostrar bem a
de explicações. Efetivam ente, um a tradição diz
natureza das m udanças que ele próp rio havia in­
o que fazer; ela não tem com o função questionar
troduzido na m aneira de fazer a escola no seu
as coisas. Enfim , em quarto lugar, os com porta­
tem po. Do m esm o m odo, observa-se que a pe­
m entos se tornam gradualm ente rituais e adqui­
dagogia dos Irm ãos das Escolas Cristãs, tal como
rem um status quase sagrado.
está registrada na C onduta das escolas cristãs,
A pliquem os, agora, à pedagogia essas carac­ é o resultado das contribuições respectivas dos
terísticas da tradição. Supom os que a pedagogia
usos e das experiências. João Batista de La Salle
apareceu no século XVII, no m undo ocidental
(1951) assinala esse aspecto no seu prefácio:
cristão, porque pensam os, evidentem ente, que
Esta Conduta só foi redigida em forma
houve conservação de certos usos ancestrais
de regulamento depois de um grande
q u an to ao que convinha fazer para ensinar nas número de conferências com os Irmãos
escolas. A creditam os tam bém que esses costu­ deste Instituto, os mais antigos e mais
mes foram m odificados, a fim de responder às capazes de bem fazer a escola; e depois
exigências dos novos contextos. Batencour, po r de uma experiência de vários anos; nada
exem plo, no prefácio da sua Instrução metódica foi escrito sem uma apurada negocia­
ção e experimentação, além de terem
para a escola paroquial, redigida para as escoli-
sido previstos, tanto quanto foi possí­
nbas (1669), ilustra de m aneira interessante estas vel, os erros ou as más conseqüências
duas características da tradição, a conservação e desse texto.
a adaptação: “Eu estava convencido de que não
Os caracteres prescritivos e sagrados da tra ­
seria inútil dar parte ao Público daquilo que o uso
dição encontram a sua ilustração, mais um a vez,
e a experiência me ensinaram neste Exercício”.
no prefácio da Conduta das escolas cristãs-.
Por “uso”, Batencour entende a tradição à sua
Os superiores das casas deste Instituto e
volta, que o habitava e lhe ditava as m aneiras de
os inspetores das escolas se dedicarão a
fazer para ensinar pela im itação, mais ou m enos aprendê-lo bem (o livro da Conduta) e
consciente, dos m estres que ele conhecera. Ele a dominar perfeitamente tudo o que ali
retom a pois as m aneiras de fazer a escola que viu está encerrado, e procederão de modo
no seu am biente, que ele viveu provavelm ente na que os mestres não falhem e observem
6 Da pedagogia tradicional á pedagogia nova T~

exatamente todas as práticas que ali es­ cham ar de extrem idade de um continuum de
tão descritas, até as menos importantes, ideias e de práticas pedagógicas. Se situássem os
a fim de proporcionar, por esse meio,
o ensino m útuo sobre um eixo tendo em um dos
uma grande ordem nas escolas, uma
conduta bem regulamentada e uniforme seus polos “a o rd em ” e no o u tro “o acaso”, ele
nos Irmãos que serão encarregados de estaria no extrem o lim ite, do lado da “o rd em ”,
aplicá-las, e um fruto considerável para enquanto, por exem plo, Neill e sua pedagogia
as crianças que ali serão instruídas (LA libertária (cf. cap. 9) estaria no lado oposto. N a
SALLE, 1951: 6). verdade, o ensino m útuo em prega um discurso
O saber-fazer dos Irm ãos, registrado na C on­ e um a prática de controle mais ou m enos ini-
duta das escolas cristãs, verdadeiro código de gualados na história da educação. Nesse ponto,
conduta no sentido estrito da palavra, foi pois ele constitui um controle pedagógico verdadei­
iplicado às suas escolas. Além disso, o código foi ram ente excessivo. A ordem pedagógica inci­
'eproduzido em seus m enores detalhes, sem ser piente, que esquadrinhava to d a a vida escolar no
questionado, com o se contivesse a resposta defi­ século XVII, parece quase m oderada quando a
nitiva para todas as am bigüidades. Em resum o, a com param os com a ordem que se instala com o
Conduta das escolas cristãs cristaliza as respostas ensino m útuo no século XIX.
.ladas pelos Irm ãos no seu ensino e acaba por Quais são a natureza, os princípios, as m oda­
transform á-las em um a tradição. Assim, todos os lidades de organização dessa nova abordagem ?
estabelecim entos de ensino dos Irm ãos das Es­ O sistema de ensino m útuo surge nas escolas p ri­
colas Cristãs são sem elhantes, com o ocorre com m árias no fim do século XVIII, na Inglaterra. É
todos os colégios jesuítas, estejam situados na destinado a alfabetizar o m aior núm ero possível
América, na E uropa ou em qualquer outro lugar. de alunos ao m elhor custo e nos m elhores prazos
Graças ao trabalho das com unidades religio­ (LESAGE, 1981: 241). Esse m étodo foi sistem a­
sas docentes, um a tradição pedagógica se insta­ tizado por Bell e Lancaster. Posteriorm ente, teve
la, um a espécie de dispositivo de repetição da um sucesso im portante na França, p o r volta de
m aneira de fazer a escola que se perpetua, sem 1820. O ensino m útuo esteve em uso, em quase
muitas m odificações, até o início do século XX. todo o m undo, no C anadá inglês e até m esm o no
Por exem plo, é preciso esperar até 1837 para Q uebec; Joseph-François Perrault, em particular,
ver na C onduta um a justificação relativam ente o utilizou e estim ulou a sua im plantação. Entre
à aprendizagem da leitura, da escrita e do cálcu­ 1815 e 1820, na França, contavam -se 1.000
lo de m aneira sucessiva e não sim ultânea; essa escolas m útuas, que reuniam cerca de 150.000
prática ancestral não fora, pois, contestada até alunos, enquanto as escolas dos Irm ãos das Es­
então (PROST, 1968: 118). Essa tradição peda­ colas Cristãs instruíam apenas 5 0 .0 0 0 crianças
gógica atinge o seu apogeu com o ensino m útuo. (LÉON, 1971: 342). Ao contrário do m odo si­
m ultâneo, em que o m estre é o agente do ensi­
no, o princípio básico do ensino m útuo é que a
6.1.2 O ensino mútuo
própria criança se encarrega de ensinar aos seus
Vale a pena exam inar o sistema de ensino colegas. C om o indica a palavra “m ú tu o ” (“m o-
m útuo, porque ele constitui o que poderíam os nitorial system ”, em inglês), as crianças ensinam
158 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

um as às outras. M ais precisam ente, algumas, se ensino querem aplicar à escola os m étodos de
mais talentosas, se tornam m onitoras dos seus divisão do trabalho em vigor na indústria nas­
colegas mais fracos. cente, a fim de reduzir os custos da instrução
N esse p rim e iro p rin cíp io enxerta-se um (LEON, 1971: 368). C oncretam ente, nas esco­
segundo: a econom ia. E fetivam ente, é preciso las regidas pelo sistema de ensino m útuo, encon-
in stru ir um a m u ltid ão de crianças ao m esm o tra-se um único m estre para ensinar a um grupo
custo que um pequeno núm ero (BALLY, 1819: que pode ir até mil alunos, e até acima desse nú­
277). Devem os dizer que na França, assim com o m ero nas grandes cidades; entretanto, a m édia
na Inglaterra, alguns autores com eçam a tom ar se situa em to rn o de 250 alunos. Tal sistema só
consciência do valor econôm ico da educação p o ­ pode existir e funcionar eficazm ente se estiver
pular: baseado sobre a aplicação de um a ordem abso­
luta. E por isso que afirm am os que ele participa
A moralidade do povo e a manutenção
da ordem social não são os únicos moti­ de um a preocupação com a ordem sem elhante
vos que exigem uma educação popular. àquela que estava em vigor 200 anos antes, além
A agricultura, as artes mecânicas, as fá­ de ser o prolongam ento da tradição pedagógica
bricas e todos os tipos de indústria te­ do século XVII.
rão vantagens com ela, e não contribui­
rão menos para o bem-estar e a fortuna Exam inem os essa hipótese e vejamos em que
dos indivíduos do que para a força e a sentido esse sistema é o aperfeiçoam ento dos
prosperidade do Estado (LASTEYRIE, procedim entos de controle já estabelecidos dois
1819: 47). séculos antes. Prim eiro, de um ponto de vista ge­
H á um a vontade de educar o povo, mas ral, notam os que um discurso de ordem em ana
sabe-se perfeitam ente que essa educação custa dessa concepção.
caro e, com o a escolaridade não é gratuita, tem- O mestre deve, pois, dar a sua atenção
se to d o o interesse em estim ular o ensino m útuo, especial a todos os objetos de detalhe
fórm ula m uito mais econôm ica do que qualquer e estabelecer um regulamento fixo de
tal modo que a sua execução caminhe
outra. Por exem plo, decide-se que, já que os li­
sozinha, e, por assim dizer, sem que se
vros se deterioram rapidam ente e custam caro
perceba. Aqui, a ordem reina por toda
sobretudo para os alunos pobres, é preferível a parte, mesmo nos menores objetos:
utilizar quadros em que se afixam os textos. Da a cesta, as penas, os livros, os quadros;
m esm a form a, papel e penas são trocados por tudo tem o seu lugar, tudo foi classifi­
ardósias e lápis de xisto, m uito mais econôm i­ cado, situado na sua posição; nada é
arbitrário. É nesse sentido que se inter­
cos. Nesse espírito, o C onde de Lasteyrie (p. 26)
preta o quadro que se vê nas nossas ins­
elogia a escola de Lancaster (1811) que utiliza tituições, com estas palavras: “Um lugar
apenas um livro para mil crianças! para cada coisa e cada coisa em seu lu­
Enfim , adota-se um princípio de eficiência gar” (BALLY, 1819: 195).
que decorre das necessidades de econom ia e visa M ais ainda, o conde de Lasteyrie (1819: 6),
“taylorizar” a instrução. C ertam ente não é por no seu m anual de ensino m útuo, chega mesmo
acaso que o ensino m útuo surge na Inglaterra, a utilizar a m etáfora do exército para descrever
país da revolução industrial. Os prom otores des­ o sistema: “Cada classe é com andada, ensinada,
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova

inspecionada e m antida na ordem p o r um co­ gundo as suas responsabilidades e as suas tarefas.


m andante e po r um inspetor de classe, que são Os mais elevados na hierarquia, os m onitores ge­
ajudados p o r subcom andantes”. Todos estão sob nerais, verificam a disciplina dos alunos no m o­
a jurisdição de um com andante geral, que verifi­ m ento das m udanças de atividade, assim com o
ca se as ordens dadas são executadas nos níveis das entradas e saídas da escola; eles dirigem as
inferiores. preces e intervém igualm ente junto aos m oni­
tores com uns. Estes, escolhidos entre os mais
Assim, não só o ensino m útuo retom a p ro ­
avançados das diferentes disciplinas a ensinar,
cedim entos de controle já vistos no século XVII,
são responsáveis por um grupo de um a dezena
mas os aperfeiçoa. Por exem plo, depois de um
de crianças do m esm o nível. O utras responsabi­
cálculo p reciso do espaço da classe, e sta b e le ­
lidades são dadas tam bém a diferentes alunos:
ce-se que um a sala de 45 m etros po r 9 deve con­
p o r exem plo, um é porteiro, outro é m onitor de
ter 1.000 alunos, enquanto um a sala de 9 m etros
bairro com a função de acom panhar os colegas
por 5 deve acolher 70, o que dá 0,4m p o r alu­
em boa ordem , de m anhã, para a escola e, no fim
no. O m anual de Bally (1819) contém m últiplas
do dia, levá-los para as respectivas casas.
instruções a propósito do espaço necessário para
O conteúdo de cada m atéria é cuidadosa­
o m estre, da altura do teto, das dim ensões do
m ente especificado e hierarquizado em um p ro ­
estrado etc. Assim tam bém , o m aterial e o m o­
gram a com portando oito níveis; cada um deles é
biliário são descritos de form a detalhada (em 40
dirigido po r um m onitor. M udança im portante
páginas): a m esa do professor, a caixa para os
em relação ao século XVII: daí em diante, o en­
bilhetes de recom pensa, as ardósias, os bancos
sino das m atérias se faz sim ultaneam ente e não
áos alunos (com prim ento e altura) etc. Tudo é
sucessivam ente. Assim, aprendem -se ao m esm o
radicado com precisão.
tem po a leitura, a escrita, o cálculo, o desenho
O em prego do tem po tam bém é objeto de e a religião. Além disso, com o os program as
planejam ento m inucioso. A jornada de seis horas são avaliados de m odo m uito preciso, um aluno
de classe é dividida em m últiplos m om entos de pode estar ligado, por exem plo, a um subgrupo
o n c o m inutos, aproxim adam ente. C o m p reen ­ para a leitura e a um o u tro para a escrita ou para
de-se então a necessidade de im plantar um sis-
o cálculo. Por m otivo de econom ia, utilizam-se -
cema codificado de transm issão das ordens por
para a leitura, a escrita, o desenho e o cálculo -
crversos meios (voz, cam painha, apito, sinal) e
quadros (148 no total) im pressos de um só lado,
«áe zelar pela sua execução. Umas sessenta ins­
m ontados sobre papelão e m inuciosam ente gra­
truções são assim descritas com to d a a m inúcia
duados. Esses quadros substituem os livros. Bally
fBALLY, 1819: 236).
(1819) critica o m étodo sim ultâneo, m uito one­
Estima-se que um a classe de 200 a 250 alu- roso, que necessitaria de 1.000 livros para 1.000
necessita de 40 m onitores a escolher entre alunos, e isso para um a única m atéria. Os livros
m elhores alunos e com a m elhor conduta; eles não só custam m uito caro, mas são danificados
o elem ento essencial do m étodo (LESAGE, e conspurcados pelos alunos; além disso, em ge­
1: 243). Uma ordem hierárquica determ ina ral, utiliza-se apenas um a parte deles, e as outras
nível dos m onitores, que são classificados se­ tornam -se inúteis (BALLY, 1819: 278).
160 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

A disciplina é baseada, com o antes, num sis­ m antinham a tradição do ensino “em sucessão”,
tem a de recom pensas e de sanções. C om o tudo no qual era preciso saber ler antes de escrever.
é hierarquizado em oito níveis p o r m atéria, cada Essa organização envelhecida a carretav a um a
criança sabe onde está situada e conhece o ní­ perda de tem po considerável, além de suscitar
vel superior que pode atingir. A em ulação se tédio e rejeição no aluno (PROST, 1968: 118).
m antém , pois, facilm ente. As recom pensas são O ensino m útuo era, segundo os seus partid á­
m uitas vezes bilhetes, trocados po r dinheiro ou rios, mais eficaz e mais econôm ico. Supunha-se
p o r um prêm io no fim da semana. Escreve-se que a aprendizagem era mais rápida porque as
aos pais para inform á-los sobre os progressos do crianças eram agrupadas segundo o seu nível,
seu filho; este pode tam bém levar para casa um a porque aprendiam todas as m atérias ao mesmo
m edalha de m érito. As presenças, as ausências, o tem po e porque, com os m onitores, não havia
progresso escolar e o com portam ento são m inu­ perda de tem po (BALLY, 1819: 281). E ainda,
ciosam ente registrados em livros que perm item substituindo os livros p o r quadros, o ensino m ú­
anotar a evolução da conduta dos alunos. As p u ­ tuo perm itia econom ias apreciáveis.
nições, por sua vez, são cuidadosam ente descri­
Por que essa abordagem declinou? N a Fran­
tas em 18 categorias. Essas escolas m útuas ins­
ça, o clero católico, apoiado pelos m onarquistas
tauram um júri por interm édio do qual os alunos
(os “ultras”), tem ia a propagação de um m étodo
infligem a si mesm os sanções po r seus delitos.
inglês e protestante. Preferia o m étodo de ensino
A hum ilhação ainda está presente, mas os p ro ­
cedim entos são mais sofisticados. Por exem plo, dos Irm ãos das Escolas Cristãs. D epois de m ui­
encontram os em prim eiro lugar: “A criança que tos conflitos entre partidários dos dois clãs, os
lê pior dá o seu lugar àquela que lê m elh o r”. E m onarquistas levaram a m elhor (1820-1828) e
no décim o quinto lugar: “São am arrados em um favoreceram as escolas das congregações, o que
poste quando são excessivam ente indóceis, ou acarretou um a dim inuição de m etade das esco­
desobedecem form alm ente ao m estre” (BALLY, las m útuas (GON TA RD, 1981: 256). Depois, a
1819: 189). Assinala-se que na Inglaterra pen ­ partir do m om ento em que a Lei G uizot (1833)
dura-se no pescoço do aluno recalcitrante um entrou em vigor, o ensino m útuo se extinguiu
pedaço de m adeira de dois ou três quilos. O cor­ progressivam ente (LÉON, 1971: 343). Tal lei
re tam bém que se pode am arrar um pedaço de obrigava cada m unicípio a instalar escolas; essa
m adeira entre as suas pernas e obrigá-lo a dar foi um a das causas do declínio das escolas m ú­
a volta da sala de aula. Às vezes os delinqüen­ tuas. O utras acusações contra essas escolas eram
tes são colocados em um a grande cesta ou saco, feitas pelos pais, que não gostavam de ver os
suspenso ao teto da escola, à vista de todos, en­ filhos perderem tem po servindo de m onitores,
quanto as crianças preguiçosas são postas num ao invés de eles próprios aprenderem ; elas eram
berço e balançadas po r um colega (p. 193). acusadas tam bém de form ar autôm atos ou mili­
tares (p. 342). M as não há nenhum equívoco em
Por que se apreciava tan to esse m étodo de
afirm ar que as verdadeiras causas do declínio das
ensino? O fato de ensinar as m atérias básicas
sim ultaneam ente foi um a das causas do suces­ escolas m útuas são, em prim eiro lugar, políticas.
so im portante do ensino m útuo. Sabemos que Em conclusão, devem os assinalar que, em bo­
os Irm ãos das Escolas Cristãs, ainda em 1837, ra o ensino m útuo constitua um a inovação peda­
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova

gógica m uito interessante, principalm ente com o segundo ele, p o r trás da longa querela ideológi­
uso dos quadros e o ensino de todas as m atérias ca a propósito do controle da escola pela cor­
sim ultaneam ente, não é m enos verdade que ele rente laica ou pelos religiosos, há um a espécie
se inscreve no prolongam ento da pedagogia do de concordância geral sobre os fins e os meios.
século XVII. Efetivam ente, o grande m érito do Segundo parece, seja p o r parte dos republicanos
ensino m útuo foi talvez sublinhar a im portância ou dos conservadores, não são questionados os
da função econôm ica da escola, da qual não se princípios de ordem e de autoridade da escola;
estava consciente anteriorm ente. “O ra, recusar a ainda se desconfia da espontaneidade da criança
instrução é sufocar o gênio e privar a sociedade (p. 8). As querelas quanto aos m étodos pedagó­
dos talentos que form am o seu mais belo b rilh o ” gicos ocorrem no final do século. Evidentem en­
(LASTEYRIE, 1819: 51). C onsiderava-se daí te, há grandes nom es no seio desses antagonis­
em diante que podia ser lucrativo para um Es­ tas: Froebel, H erbart, Itard, Pestalozzi, Tolstoi,
tado instruir o povo; não só os custos da educa­ K ergom ard etc. M as, segundo Prost (1968: 9),
ção deixavam de ser proibitivos, mas tam bém o a audiência real desses autores continua sendo
Estado podia prosperar graças a cidadãos mais lim itada e sua influência se fará sentir algumas
instruídos. Essa função econôm ica da escola foi décadas depois, no fim do século, quando suas
levada ao seu apogeu no século XX. ideias e práticas forem retom adas pelos p arti­
dários da pedagogia nova. Assim tam bém , há
6.1.3 A legislação e a organização m udanças notáveis no ensino de algumas m até­
escolares no século XIX rias: p o r exem plo, aprende-se a leitura a partir
de m étodos fonéticos; escreve-se com pena de
Parece que vários historiadores da educação aço, que substitui a pena de ganso; e utiliza-se
consideram o século X IX com o um período de mais frequentem ente a ardósia, em vez do papel.
im portância secundária (LÉON, 1971: 333). A M as estam os longe de um a revolução pedagógi­
contribuição principal deste século se situa mais ca profunda; trata-se, antes, da evolução gradual
ao plano da organização da educação popular de determ inadas práticas.
Jo que no plano da inovação dos m étodos p e­ A contribuição fundam ental do século XIX
dagógicos. Efetivam ente, ainda no início do sé­ para a educação encontra-se alhures. É nessa
culo X IX , só um terço ou um q uarto das crian­ época que se percebe mais claram ente a ligação
ças francesas vão à escola, e esta continua sendo estreita que une a educação à evolução política e
tributária das iniciativas locais (GONTARD, econôm ica (LÉON, 1971: 376); isso terá conse­
1981: 255). M as, no fim do século, quase todas qüências im portantes na organização escolar. Em
crianças estão escolarizadas; tal constatação prim eiro lugar, no plano político, são incontes­
m ostra a eficiência das m edidas legislativas a d o ­ táveis os efeitos da Revolução Francesa: o m un­
tadas e a im portância dos esforços despendidos do se dirige progressivam ente para a dem ocra­
□esta área (p. 261). cia. Esta é inconcebível sem a instrução do povo,
C om o diz Prost (1968: 8), no século XIX, que deve dispor do conhecim ento indispensável
ire s a r dos num erosos debates sobre a questão para o exercício do poder. Assiste-se assim à ins­
escolar, “não se discute pedagogia”. N a verdade, tauração de várias legislações para que o ensino
162 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

prim ário se torne obrigatório e gratuito. É evi­ Em conclusão, poderíam os dizer que, à se­
dente, considerando-se as diferenças econôm icas m elhança do que ocorre no século XVII, u n u
na população, que a obrigação escolar exige a vez que as crianças estavam na escola, sentiu-íe
gratuidade. O fam oso Projeto-Lei de C ondorcet, a necessidade de reform ar as práticas pedagóg:-
em 1792, ilustra perfeitam ente a natureza dos cas. Em fins do século XIX, depois de descobnr
debates escolares que ocorrem ao longo do sé­ que a instrução p opular era necessária à prospe­
culo XIX. Seu plano de educação propõe, por ridade do Estado, e de instaurar um verdadeir;
um lado, um a escola única para os dois sexos, a sistema legislativo para garantir a sua perenida­
instrução popular obrigatória, laica e gratuita; e, de, percebeu-se que era necessário reform ar o*
p o r outro, um ensino secundário aberto a todos m étodos pedagógicos. Tendo passado po r rara>
e centrado nas ciências. O plano de C ondorcet m udanças no decorrer dos três séculos anterio­
está constantem ente presente na m ente dos re­ res, a pedagogia será objeto de grandes transfor­
form adores do fim do século XIX e irá inspirar m ações no futuro.
mais de um a dezena de m edidas legislativas.
N o plano econôm ico, com o desenvolvim en­ 6.2 A ciência critica a tradição
to industrial, comercial e agrícola da Europa, a pedagógica
sociedade precisa, para o seu funcionam ento, de
outros docentes além dos hum anistas instruídos à É m uito im portante insistir no fato de qut
m aneira clássica. De agora em diante, procura-se poderíam os qualificar com o tradicional o saber
associar a escola ao sistema de produção econô­ pedagógico reproduzido de geração em geração
mica e form ar um pessoal experiente nas ciências pelos Irm ãos das Escolas Cristãs, pelos jesuítas
e nas técnicas. A revolução industrial tem com o e pelos m estres da escola m útua. É um saber
efeito não apenas aum entar as exigências quanto que se adquire principalm ente p o r im itação,
ao ensino prim ário, mas torna necessária a cria­ no c o n tato com pedagogos experientes (ISANl-
ção de “salas de asilo” (espécie de creches criadas BERT-JAMATI, 1990: 89). Vimos que a tradi­
a partir de 1826) para cuidar das crianças cujas ção im plica um conjunto de ações ritualizadas.
mães trabalham nas fábricas (LÉON, 1971: 353). executadas m aquinalm ente e que fazem com que
Enfim , no plano social, disputa-se com a o jesuíta noviço, p o r exem plo, ensine com o foi
Igreja o m o nopólio escolar, o que tem com o ensinado, “sem m esm o pensar nisso”. Ainda no
efeito secularizar mais ainda a escola. A distin­ século X IX , os Irm ãos das Escolas Cristãs ensi­
ção entre os sexos vai tam bém se atenuando. nam mais ou m enos da m esm a m aneira que no
A b arreira entre as escolas prim ária e secundá­ século XVII; o m étodo de ensino m útuo, além
ria é igualm ente derrubada. A escola prim ária de algumas adaptações exigidas pelo grande nú­
é cada vez m enos reservada ao povo e a escola m ero de alunos, participa em m uitos aspectos da
secundária não é m ais exclusivam ente acessível m esm a ideologia de ordem e de controle em vi­
à burguesia. Discute-se sobre a passagem h ar­ gor dois séculos antes. Com o vimos, a sem elhan­
m oniosa entre as duas escolas, para g arantir a ça é im pressionante.
igualdade de todos qu an to à instrução (G O N - É essa tradição pedagógica que denunciam ,
TARD, 1981: 253). na prim eira m etade do século X IX , os p a rtid á ­
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 163

rios da pedagogia nova. Esse saber pedagógico Segundo ele, deve-se superar o em pirism o pela
sedim entado há três séculos é adquirido por experim entação controlada. Bernard dá o exem ­
im itação; é um banco de preceitos a aplicar, plo da crença tradicional dos m édicos na eficácia
proveniente do uso e m odificado pela ex p e ri­ do tratam ento da pneum onia pela sangria. Essa
ência. Esse conjunto de respostas prontas, esse prática, am plam ente difundida, era um erro bem
rep ertó rio de ações pedagógicas a serem rep e­ consolidado na tradição m édica, e só um a ex­
tidas c o m p o rta erros, evidentem ente. A gora, é perim entação científica controlada perm itiu que
preciso q uestionar esse saber, passar pelo pente isso fosse constatado.
fino da crítica essas afirm ações que datam de N ão é pois surpreendente ver surgir, em fins
três séculos e, possivelm ente, tran sfo rm ar a do século XIX e início do X X , vários autores
tradição em um a pedagogia mais adequada ao que preconizam a necessidade de superar a trad i­
novo contexto. ção e de fundar a pedagogia sobre a ciência. Por
exem plo, C harbonnel (1988) situa por volta de
Uma das funções fundam entais da ciência é
1880, na França, o m ovim ento que visa transfor­
precisam ente verificar hipóteses, garantir a ve­
m ar a pedagogia na ciência da educação:
racidade de certas afirm ações, corrigir erros. A
ciência, que tivera um forte im pulso durante o Nasce uma disciplina, intelectual e insti-
tucionalmente, a Ciência da Educação.
Século das Luzes, com eça a tom ar um a im por­
Pela primeira vez, na França, seja na
tância decisiva em fins do século XIX. C onhece­ Sorbonne, em Lyon, ou em Bordeaux, al­
mos a influência que terá a d o utrina positivista guns homens sobem às cátedras das facul­
de Augusto C om te (1798-1857). Este afirm ava dades para ministrar cursos de Pedagogia1
que a hum anidade passa p o r certo núm ero de (CHARBONNEL, 1988: 18).
estágios na sua evolução. Primeiro, um estágio teo­ N o Dicionário de Pedagogia e de Instrução
lógico, caracterizado pela explicação sobrenatu­ Primária, publicado sob a direção de F. Buisson,
ral dos fenôm enos; depois, um estágio m etafí­ em 1888, H. M arion assina o artigo “Pedago­
sico, em que as entidades sobrenaturais, com o gia” e define-a com o ciência da educação. Essa
Deus, são substituídas p o r conceitos abstratos precaução lingüística não é sim plesm ente um
da mesm a natureza; finalm ente, um estágio p o ­ jogo de palavras superficial; ela assinala um a
sitivo, em que os hum anos, renunciando às an­ m udança fundam ental na m aneira de conceber
tigas explicações, descobrem pela observação a pedagogia e sua evolução futura. Pela pesquisa
e pelo raciocínio científico as leis que regem o de novos fundam entos mais sólidos, aquilo que
real. A ciência, segundo C om te, é pois o estágio se cham a m odernidade consagra precisam ente
mais avançado da evolução da hum anidade. N o essa ru p tu ra com um a tradição form ada de com ­
mesmo espírito, conhecem os tam bém a enorm e portam entos sacralizados que eram baseados no
influência da obra do m édico C laude Bernard, uso, na experiência, nas tentativas. O artigo de
intitulada Introdução ao estudo da medicina ex­ M arion (1888: 2.240) tem esse sentido:
perim ental, publicada em 1865. Em substância,
esse au to r defende que, se toda ciência com eça
1. É interessante notar que, pouco a pouco, na mesma época, a
pela observação e pela experiência fortuita, essa
Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, instaurava uma
é apenas a prim eira etapa da sua elaboração. cátedra de Science and Art of Teaching (HAZLETT, 1989: 11).
164 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

[É importante fundamentar a pedagogia Alfred Binet, o fundador da pedagogia expe­


como ciência] ou pelo menos como cor­ rim ental, expressava-se no m esm o sentido, em
po de doutrina tão sólido, tão coerente,
1898:
tão satisfatório para o espírito que toda
boa vontade encontre nele um apoio se­ A antiga pedagogia, apesar de boas par­
guro e uma direção, todo sofisma a sua tes de detalhe, deve ser completamente
refutação, todo erro de boa-fé o seu re­ eliminada, pois está afetada por um ví­
médio. cio radical; ela foi feita teoricamente, é o
resultado de ideias preconcebidas, pro­
Em outro trecho, no m esm o texto, ele insiste: cede de afirmações gratuitas, confunde
A diferença entre o educador preocupa­ as afirmações rigorosas com citações
do em obedecer a uma doutrina pedagó­ literárias; resolve os mais graves proble­
gica e aquele que acredita ser capaz de mas invocando o pensamento de autori­
dispensá-la é que em todos esses pontos dades como Quintiliano e Bossuet, subs­
o primeiro tenta formar, pela reflexão titui os fatos por exortações e sermões
e pelo estudo, uma convicção racional, (BINET, apud COUSINET, 1965: 64).
enquanto o outro se abandona a opiniões E concluía que a pedagogia deveria fundar-se
preconcebidas, a preferências irrefletidas, sobre a observação e a experiência, que ela deve­
cujo alcance até mesmo talvez lhe escape
ria ser antes de tudo experim ental.
(MARION, 1888: 2.240).
Um pouco mais tarde, C laparède (1958),
Em 1879, o historiador G. Com payré, no
no seu célebre texto intitulado Por que as ciên­
prefácio do seu célebre livro H istória crítica das
cias da educação?, publicado pela prim eira vez
doutrinas da educação na França a partir do sé­
em 1912, expressa tam bém o duplo objetivo de
culo XVI (1883: 8), form ula tam bém um a críti­
elim inar o que existia antes em pedagogia e ela­
ca da tradição, que ilustra perfeitam ente a nova
preocupação científica dessa época: borar um novo espírito pedagógico científico:
“O ra, era preciso arrasar [o edifício pedagógi­
Por outro lado, a prática da educação
co anterior] e reconstruí-lo, pois o seu próprio
está ainda menos avançada do que as
teorias dos filósofos: nela, obedece-se plano era ruim . Esta será a tarefa de am anhã”
em geral a uma rotina irrefletida; hesi­ (CLAPARÈDE, 1958: 93). D estruir o edifício pe­
ta-se entre várias inspirações contrárias. dagógico antigo é dem olir tudo o que, na peda­
Os métodos em uso, recomendados por gogia, se fundam enta sobre o bom-senso (a tradi­
uma longa experiência, contêm partes
ção); reconstruir um novo edifício é transform ar
excelentes, mas elas têm o grave defei­
a pedagogia em um a disciplina experim ental (p.
to de não serem coordenadas, de não
tender para o mesmo objetivo. Elas ofe­ 118). “É apenas na observação controlada e na
recem uma mistura singular de velhas observação provocada que jaz a salvação da pe­
tradições e de sobrecargas modernas. dagogia” (p. 115) e isso perm itirá fazer “mais,
Mostram, enfim, por sua incoerência, mais depressa e m elh o r” (p. 112).
que são o produto compósito de longas
hesitações, não a obra simples e forte de Em suma, não se quer mais que a pedagogia
uma razão refletida, seriamente esclare­ seja sim plesm ente a expressão ingênua da trad i­
cida sobre os meios a empregar e o fim ção educativa, com o tinha sido o caso durante
a perseguir. três séculos; deseja-se que ela corresponda a um
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 165

conjunto de saberes positivos e a um saber-fa- Em todo caso, é aos progressos dessa


zer proveniente de verificações científicas. As­ ciência [a psicologia] que está suspenso
sim, mais do que fundar-se sobre a tradição e o futuro da educação. Pedagogia e psi­
cologia são agora dois termos insepará­
arriscar-se a perp etu ar erros graves, a pedagogia
veis, como a conseqüência e o princípio.
ie baseia agora na ciência, para ilum inar a sua Acabaremos por compreender que, sem
prática. N ão será, pois, surpreendente constatar um conhecimento preciso das leis da or­
que, entre os prim eiros grandes nom es da peda­ ganização mental, é impossível regular
gogia nova, encontrem -se M ontessori e Decroly, a ordem dos estudos, apreciar o valor
assim com o seus predecessores Itard e Séguin, pedagógico dos diversos objetos do en­
sino, fazer uma escolha entre as ciências
que são m édicos e x p erien tes nos m éto d o s de
e as letras, estabelecer, ano a ano, adap­
observação científica.
tando-os à idade e às disposições na­
Se a tradição não constitui mais a base da turais, os exercícios mais convenientes
atividade do educador, e a ciência pode agora para educar os homens (COMPAYRE,
1883, t. 1: 9).
>ubstituí-la, haverá um a ciência em particular
i qual seja possível recorrer? Para C laparède, A pedagogia se torna, pois, para esses au­
a psicologia é a ciência talhada para sustentar a tores do fim do século XIX e com eço do XX,
pedagogia. N o seu texto de 1912, ele se p ergun­ não só um a ciência, mas um a ciência aplicada,
ta por que a pedagogia - ao contrário de outras cujo destino está ligado ao estado do progresso
disciplinas aplicadas, tais com o a m edicina, a so­ dos conhecim entos fundam entais em psicologia.
ciologia, a política e o direito - ainda não sofreu C om preende-se facilm ente a forte influência da
alterações que teriam com o efeito renovar com ­ psicologia sobre as novas abordagens pedagógi­
pletam ente a sua m aneira de ver e de com preen­ cas que surgirão posteriorm ente.
der (CLAPARÈDE, 1958: 92). É porque, segun­
do ele, a pedagogia está mal fundam entada. Ela
não tem base científica, julga C laparède (p. 102),
6.3 A pedagogia nova versus a
e é a psicologia que deveria lhe fornecer tal su­
pedagogia tradicional
porte. “Só um fundam ento rigorosam ente cientí­ 6.3.1 Os primórdios da pedagogia nova
fico e psicológico dará à pedagogia a autoridade
que lhe é indispensável para conquistar a o pi­ C laparède faz de Rousseau o grande inspi­
nião e forçar a adesão às reform as desejáveis” (p. rad o r da pedagogia nova. N a verdade, é difícil
104). Para C laparède, à imagem do horticultor negar a m udança im portante e fundam ental da
que deve ter certo conhecim ento de botânica, o concepção sobre a infância e a educação inspi­
pedagogo deve conhecer a criança. Essa analogia rada na obra de Rousseau. Ele abriu um enorm e
não é banal, mas ilustra a ideia de que a pedago­ cam po de reflexão sobre a educação. E ntretanto,
gia, no espírito desses autores do início do século só em fins do século X IX , poderem os ver nas
XX, é um a psicologia aplicada. As verdades re­ classes a aplicação de algumas das suas intuições.
conhecidas na psicologia são, pois, transpostas À parte Rousseau com o longínquo inspirador,
com o m áxim as pedagógicas (COMPAYRE, apud não se pode atribuir à educação nova um fun­
BERTHELOT et al., 1898: 216). dador específico. E ncontram os, antes, dispersos
166 Parte A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

entre o fim do século X IX e a prim eira m etade toda confiança em si mesmos, nascia a
do X X , um a série de autores, cujas iniciativas di­ grande esperança de que uma educação
versas, mas de espírito aparentado, contribuíram bem compreendida formaria indivíduos
capazes de pôr fim às guerras e organi­
para a em ergência desse m ovim ento2.
zar, pela compreensão mútua, um mun­
Uma prim eira onda chega ao fim do sécu­ do melhor (SKIDELSKY, 1972: 83).
lo XIX. Segundo Ferrière, a expressão “escola Assiste-se, portanto, à im plantação de um a sé­
nova” (new school) parece ter surgido na Ingla­ rie de tentativas pedagógicas. Por exem plo, inau­
terra po r volta de 1889, no m om ento em que gura-se a Fundação das Com unidades Livres de
Cecil Reddie cria um a escola nova em Abbot- H am burgo, onde as crianças organizam sozinhas
sholm e. Em 1894, Jo h n Dewey (cf. cap. 7) é a sua vida escolar, escolhem seus responsáveis e
nom eado professor de psicologia e de pedago­ redigem seus regulam entos (M ÉDICI, 1969: 33).
gia na Universidade de Chicago e funda a sua A criação da Associação para a Educação Nova,
fam osa escola prim ária ligada à universidade. em 1921, e a organização do Prim eiro Congres­
K erschensteiner com eça no m esm o ano as suas so Internacional de Educação N ova, no mesmo
prim eiras experiências nas escolas de M unique, ano, são outros exemplos. Neill (cf. cap. 9) funda
na A lem anha (arbeitsschule: escola ativa). Em a sua célebre escola de Summerhill, na Inglater­
1898, A. Binet publica a sua obra A fadiga in­ ra, em 1921. A pedagoga norte-am ericana, H.
telectual, na qual “declara guerra” à pedagogia Parkhurst divulga, em 1922, o plano D alton, que
tradicional. O Bureau Internacional das Escolas preconiza o m étodo do trabalho individualizado
N ovas é fundado em 1899 por Ferrière. M ontes- e, no m esm o ano, C. W ashburne dirige a Escola
sori (cf. cap. 8) cria em Rom a a prim eira Casa dei de W innetka, que concebe um m étodo particular
Bam bini (Casa das Crianças) em 1900. Decroly de educação nova em ciências e em aritm ética. A
funda em 1907, em Bruxelas, a Escola de Her- revista Pour l’Ere nouvelle é fundada em 1923.
m itage e apresenta um novo m étodo de leitura Piaget (cf. cap. 14) começa a publicar, no mes­
global, dito natural. m o ano, um a série de obras sobre a psicologia
Uma segunda onda im portante se segue ao da criança, obras que exercerão um a influência
fim da Prim eira G uerra M undial. Segundo Cou- considerável no rápido desenvolvim ento da edu­
sinet (1965), vários europeus sentem então a ne­ cação nova. C ousinet publica o seu m étodo de
cessidade de reform ar a educação para garantir a trabalho livre por grupo em 1925, e Freinet (cf.
salvação da hum anidade. Desejam, por m eio da cap. 10) inventa a im prensa na escola durante o
educação, criar um novo tipo de hum ano, a fim m esm o período. Dezenas de outras obras são pu­
de suprim ir definitivam ente as causas da guerra blicadas durante esses anos de intensa atividade
(SKIDELSKY, 1972: 147). de pesquisa pedagógica. Os exem plos preceden­
Depois de uma terrível revolução que tes bastam para m ostrar que o período entre o
desestimulara os homens e lhes tirara fim do século XIX e o com eço do X X é um m o­
m ento forte na história da pedagogia.
2. Pode-se consultar proveitosamente a obra de F. Chatelain e As décadas subsequentes são, de certa for­
R. Cousinet (1966) para obter uma cronologia detalhada dos
acontecimentos e os títulos das obras dos autores mais impor­
ma, o prolongam ento desse m ovim ento, cujos
tantes associados à pedagogia nova, entre 1870 e 1966. efeitos ainda percebem os em nossos dias. À se­
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova

m elhança de seus prim órdios, encontra-se ao E ntretanto, os adeptos da pedagogia nova


longo do século X X um a preocupação com um não deixam de criticar a pedagogia tradicional.
relativam ente à criança, mas tam bém um grande N a verdade, eles a denunciam com o se fosse um a
núm ero de propostas diversas e heteróclitas. Vá­ doutrina viva, com portando argum entos preci­
rias correntes se encontram : algum as têm um a sos, pertencendo a um autor específico, situada
tendência um tan to mística ou são mais científi­ em um a época e um lugar determ inados. M as,
cas, outras são centradas sobre os problem as de na realidade, trata-se de um objeto mais sutil, de
poder e de cooperação, ou têm um a orientação contornos pouco nítidos e com ponentes m últi­
experiencial. E ntretanto, todas têm em com um plos. E com o se, não podendo (ou sabendo) des­
a oposição à educação tradicional e a concentra­ cobrir precisam ente, na história, a origem da p e­
ção sobre a criança. dagogia tradicional nem os argum entos dos seus
rep resen tan tes, eles se lim itassem a co m b ater
um a tradição de que haviam tido a experiência
6.3.2 A oposição à pedagogia tradicional
enquanto alunos; com o se essa tradição fosse a
A oposição sistem ática à pedagogia tradicio­ encarnação de um a vontade ainda ativa de rep re­
nal é verdadeiram ente um elem ento im p o rtan ­ sentantes sem pre reais e engajados na luta. O ra,
te nos discursos da época. E ntretanto, Kessler com o vimos, a tradição acaba por insinuar-se nas
!1964) observa criteriosam ente, depois de um a nossas vidas sem que percebam os. A tradição é
m álise aprofundada dos discursos dos pioneiros feita de fórm ulas estereotipadas [“prêt-à-pen-
i a pedagogia nova, que a denúncia da pedago­ ser”] e repousa sobre o fato de que cada um age
gia tradicional assume um a form a curiosa. Efe­ po r im itação, sem refletir. A tradição condenada
tivam ente, não só a pedagogia tradicional tem pelos partidários da pedagogia nova teve, com o
origens históricas diferentes, segundo os autores vimos, um a origem real e partidários declarados,
ilguns a fazem rem ontar à Idade M édia, outros mas, três séculos depois, a locom otiva continua
i Aristóteles), mas suas características podem va­ avançando sobre os seus trilhos, sem condutor,
riar (alguns a definem de m odo parcial, outros propulsada unicam ente pela força do hábito. Os
descrevem vários aspectos). Além disso, apesar partidários da pedagogia nova viram um perso­
da presença constante de críticas à pedagogia nagem onde havia apenas um espectro; assumi­
tradicional nas obras dos partidários da pedago-
ram os efeitos da tradição com o um a doutrina.
ç a nova, não se encontra nenhum estudo histó­
rico e sistem ático sobre a pedagogia tradicional C om o criticavam um a tradição cujos au to ­
j| üKESSLER, 1964: 32). Parece que todos se en- res estavam por definição ausentes, era fácil para
eles com por-lhe a face que desejassem. Assim,
iKnderam para denunciá-la, mas ninguém sentiu
criaram um a caricatura à qual deram o nom e de
i necessidade de subm eter a sua análise à prova
pedagogia tradicional.
n fe s fatos e da verificação rigorosa. Assim, Kessler
■arou a seguinte conclusão: “Logo, não há mais E uma grita geral contra os princípios
| aozão de falar de um a escola tradicional, no sen- atribuídos à escola tradicional. Nesse
tribunal, não se admitem testemunhas e
|co>) de um a pedagogia transm itida e fundada
elas são até ignoradas. Ou antes, os pró­
[ m b re princípios escolásticos, m edievais, filosófi- prios juizes são testemunhas, já que, ten­
p s . dogm áticos ou em píricos” (p. 176). do sido eles próprios alunos da escola
168 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

tradicional, estimam ter sido lesados em que a m ente das crianças é com o um a pequena
seu desenvolvimento natural. São, pois, jarra de boca estreita, que devolve o líquido que
ao mesmo tempo, a parte queixosa,
ali se despeja em grandes quantidades e recebe
as testemunhas e os juizes (KESSLER,
1964: 31). aquele que se introduz gota a gota”. H avia, en­
tre os jesuítas, um a preocupação com a infância
E com o a tradição pedagógica com porta
que os partidários da pedagogia nova ocultaram
dim ensões que atingem a totalidade da vida da
com pletam ente, utilizando a m etáfora de m odo
classe, é denunciada da m esm a m aneira, isto é, caricatural, com finalidade polêm ica.
opondo-se sistem aticam ente a um a organiza­
M as é preciso observar que as críticas con ­
ção pedagógica com posta de elem entos julga­
tra a pedagogia tradicional não eram sem fun­
dos maus. A pedagogia tradicional abom inada,
dam ento. A tradição não evolui suficientem ente
proscrita, carrega todos os pecados do m undo:
rápido para enfrentar os novos contextos, e a
verbalism o, desconhecim ento da psicologia da
escola tradicional m erece a sua parte de acusa­
criança, confusão entre fins e meios. Essa posi­
ção. E ntretanto, “p retender que to d a inovação
ção m aniqueísta leva Kessler (1964: 30) a defen­ da Escola N ova corresponde a um defeito da es­
der a hipótese de que os partidários da escola cola tradicional, é levar a sistem atização longe
nova criaram , para servir à sua causa, um a espé­ dem ais” (KESSLER, 1964: 33). C riando assim
cie de caricatura da pedagogia tradicional, que um a espécie de inim igo que tem todos os defei­
utilizaram para definir a sua p rópria pedagogia. tos, os partidários da pedagogia nova podiam
A tradição pedagógica que descrevem os acim a se valorizar, em um a oposição quase term o a ter­
to rn a, pois, progressivam ente, na boca dos seus m o, as características da sua p rópria pedagogia e
detratores, a “pedagogia tradicional”, expressão prom ovê-la. E um jogo sedutor, de acordo com
negativam ente carregada e extrem am ente pejo­ Snyders (1975: 13), o por todos os defeitos do
rativa, ainda em nossos dias. m undo aos encantos daquilo que se quer criar;
Em outras palavras, os adversários da peda­ ora, os partidários da pedagogia nova não se pri­
gogia tradicional criticam não um objeto real, varam desse prazer.
mas um a caricatura, e isso, com um a intenção
polêm ica. Essa pedagogia tradicional denuncia­ 6.3.3 As características da oposição entre
da é, na realidade, um a coisa útil, inventada com pedagogia tradicional e pedagogia nova
fins erísticos para facilitar a orientação da ação
pedagógica em um a o utra direção. C om o exem ­ Vamos exam inar, através dessa oposição, o
plo, vamos pensar na velha m etáfora da jarra. retrato de um a e da outra, tal com o foi dese­
Todos nós já não ouvim os dizer que, na pedago­ nhado pelos partidários da pedagogia nova. Para
gia tradicional, concebia-se a m ente da criança facilitar a leitura desta subseção, retom am os os
com o um a simples jarra a encher? O ra, se con­ principais elem entos de descrição, que apresen­
fiarmos no exem plo relatado po r Isambert-Jamati tam os no Q uadro 6.1.
(1990: 88), a m etáfora original, tirada dos textos Parece-nos, em prim eiro lugar, que Bloch
do Padre Jouvency no século XVIII é na verdade (1973: 34) tem razão de sublinhar que a peda­
bem mais sutil: “O m estre não se esquecerá de gogia nova é prim eiram ente e antes de tudo um
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 169

Quadro 6.1 A opo siçã o entre a pedagogia tradicional e a pedagogia nova (segundo o s partidários da pedagogia nova)
Características Pedagogia tradicional Pedagogia nova
"Terminologia • Pedagogia fechada e formal. • Escola ativa.
• Abordagem mecânica. • Educação funcional.
• Pedagogia enciclopédica. • Escola renovada.
• Ensino dogmático. • Abordagem orgânica.
• Pedagogia centrada na escola. • Pedagogia aberta e informal.
• Escola nova (new school)2.
• Educação puerocêntrica (pedagogia centrada na criança).
-naKdade da • Transmitir uma cultura “objetiva” às novas • “Transmitir” a cultura a partir das forças vivas da criança.
•riMcação gerações. • Permitir o desenvolvimento das forças imanentes da
• Formar a criança, modelá-la. criança.
• Valores objetivos (o verdadeiro, o belo, o bem). • Valores subjetivos, pessoais.
■Modo • Educar de “fora” para “dentro”. • Educar de “dentro” para “fora".
• Ponto de partida: o sistema objetivo da cultura • Ponto de partida: o lado subjetivo, pessoal da criança.
que se recorta em partes que devem ser • Pedagogia do interesse.
assimiladas pela criança.
• Escola ativa (learning by doing).
• Pedagogia do esforço.
• Educação funcional.
• Escola passiva (a criança segue um modelo).
• Enciclopedismo.
Concepção da • A criança é como cera mole. •A criança tem necessidades, interesses, uma energia
criança • A infância tem pouco valor em relação à idade criadora.
adulta. • A infância tem um valor em si mesma.
• É preciso agir sobre a criança. • A criança age.
• Visa-se principalmente a inteligência. • Preconiza-se o desenvolvimento integral da criança.
• A criança gira em torno de um programa • 0 programa gira em torno da criança.
definido fora dela.
Concepção do • 0 conteúdo a ensinar às crianças não leva • Os campos de interesse das crianças determinam o
arograma em conta os seus campos de interesse (cultura programa (estrutura e conteúdo).
objetiva). • Realismo do programa (conteúdo ligado ao ambiente em
• Idealismo do programa (conteúdo que vive a criança).
desencarnado).
Autores • É uma tradição sem que seja possível • Dewey, Kerschensteiner, Claparède, Decroly, Cousinet,
“ oresentativos identificar suas origens. Freinet, Montessori, Ferrière.

Concepção da • A escola é um meio artificial. • A escola é um meio natural e social, no qual decorre a vida
cscola • Repressão das emoções (distanciamento). da criança (a escola como ambiente de vida).
• Lá longe, outrora. • Espontaneidade infantil.
• A criança resolve problemas artificiais. • Aqui e agora.
• A escola prepara para o futuro. • A criança resolve problemas reais.
• A escola ajuda a criança a resolver os seus problemas do
momento.
=*apel do • 0 mestre dirige. • 0 professor orienta, aconselha, desperta a criança para o
arofessor • O mestre está no centro da ação: ele dá o seu saber. É uma pessoa-recurso.
saber. • A criança está no centro da ação.
• 0 mestre é ativo: faz o exercício diante da • A criança se exercita.
criança, é o modelo a imitar.
-•sciplina • Disciplina autoritária (motivação extrínseca: • Disciplina pessoal (motivação intrínseca).
recompensas e punições). • Disciplina que vem do interior.
• Disciplina exterior que visa coagir.
I p o de • Pedagogia do objeto: a cultura a transmitir. • Pedagogia do sujeito: a criança a desenvolver.
sedagogia • Pedagogia de ordem mecânica. • Pedagogia da ordem espontânea (natural).
_____________ i________________________
' Vários desses termos aparecem entre 1917 e 1920.
~ Esse termo aparece em 1889 na Inglaterra e, em 1899, na França.
170 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

espírito, mais do que um m étodo particular. N a O objetivo da educação nova é, pois, fazer
verdade, com o já vimos, esse m ovim ento agrupa frutificar todos os dons que a criança traz con­
vários atores que, em diversos contextos nacio­ sigo ao nascer (DEWEY, apud BLOCH , 1973:
nais (França, Bélgica, A lem anha, Inglaterra, Es­ 31). A escola já não se lim ita, daí em diante, às
tados Unidos etc.), elaboraram m aneiras de fazer dim ensões intelectuais: ocupa-se da totalidade
a escola bem diferenciadas um as das outras. Ve­ dos aspectos do ser h u m a n o . Por e x e m p lo ,
rem os, p o r exem plo, a que p o n to é diferente a K ersch en stein er pensava que a arbeitsschule (es­
abordagem de M ontessori em relação à de Neill, cola ativa) deveria concentrar os seus esforços
e com o estas diferem dos m étodos de Freinet ou no desenvolvim ento das capacidades m anuais,
de Freire (cf. cap. 12). M as apesar dessas dife­ artísticas, m orais e intelectuais das crianças (p.
renças, todos com partilham a ideia de centrar a 49 e 62). Ainda mais, desenvolver a criança sig­
educação sobre a criança e não sobre os conheci­ nifica que se enfatiza não mais a transm issão de
m entos a transm itir. certos conteúdos culturais po r um m estre, mas
aquilo que perm ite o desabrochar das forças es­
Essa ideia fundam ental, que tem conseqüên­
pirituais da criança (p. 32).
cias concretas em todas as dim ensões da pedago­
gia, constitui um a espécie de revolução coper- Para atingir esse fim, era preciso m odificar
nicana do ensino, assim com o o livro Em ílio de consideravelm ente a concepção da criança. Na
Rousseau (cf. cap. 5). M as, nesse m o m en to da perspectiva da pedagogia nova, a criança não
história, opera-se um a reviravolta no que se re­ é mais um hom unculus, um hum ano reduzido,
fere não só às concepções, mas tam bém às p rá ­ mas um ser integral, distinto do adulto, que tem
ticas. Bloch, retom ando a célebre expressão de as suas m aneiras de pensar e de agir (COUSI-
C laparède, escreve: NET, 1965: 67).
Mas pedir assim ao educador que si­ A criança não é uma cera mole que pos­
tue o centro de gravidade na própria samos modelar à vontade; a criança tem
criança, é pedir-lhe nada menos do que dons, necessidades, apetites intelectuais,
realizar uma verdadeira revolução, se é curiosidades, “uma energia criativa e as-
verdade que, até agora, como vimos, o similadora” (BLOCH, 1973: 31).
centro de gravidade foi situado sempre Nesse valor positivo da criança é que irá
fora dela. É essa revolução - exigência
fundam entar-se toda a educação nova. Assim,
fundamental do movimento de edu­
cação nova - que Claparède compara C ousinet (1965) retom a a m ensagem de Rous­
àquela que Copérnico realizou na astro­ seau, que queria ensinar o ofício da vida ao seu
nomia, e que ele define com tanta felici­ personagem , Emílio. Para C ousinet, a educação
dade nas seguintes linhas: “Os métodos é obra da criança (e não do m estre), pois a crian­
e os programas que gravitam em torno
ça nada tem para fazer além de viver: “ [...] A
da criança, e não mais a criança giran­
do mais ou menos bem em torno de vida é para a criança - sim plesm ente pelo fato de
um programa decidido fora dela, essa é ser um a criança - com preensão e aprendizagem .
a revolução ‘copernicana’ à qual a psi­ Para aprender e com preender, ela só precisa vi­
cologia convida o educador” (BLOCH, ver. Para ela, a vida po r si só é educação” (COU-
1973: 33). SINET, 1965: 89).
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 171

Por que se deve deixar a criança viver com o Antes de tudo, ele cria o ambiente, o
lhe aprouver? meio favorável. E começa pelo cenário.
Há uma organização do local escolar, a
[Porque] a sua natureza a leva a fazer o
disposição das carteiras, das mesas, um
que é necessário para o seu crescimento.
cuidado, a preocupação com a beleza e
Esses impulsos vitais - designados pelos
psicólogos como os “interesses profun­ com a renovação que já são um convi­
dos” da criança - são, como se vê, alavan­ te ao trabalho ativo (CHATELAIN &
cas naturais da sua atividade, a cada etapa COUSINET, 1966: 33).
do seu desenvolvimento (CHATELAIN Depois, o professor adota um a atitude que
& COUSINET, 1966: 21).
inspira calm a, com preensão e confiança; os alu­
Nessa perspectiva, a criança sabe n atural­ nos têm vontade de estar p erto dele. Estamos
m ente o que é bom para ela. Ela tem um a indivi­ longe da atitude rígida e distante da pedago­
dualidade p rópria que orienta o seu desenvolvi­ gia tradicional. N as atividades que ele propõe,
m ento, de certa form a, com o m ostra a reflexão o m estre é, p rin cip alm en te, um estim ulador,
de Ferrière (apud MIALARET, 1969: 13):
um guia; está presente mas m antém -se discre­
A criança cresce como uma pequena to. Além disso, e esta é sem dúvida a dim ensão
planta. Cada criança segundo a sua es­
mais im portante do seu papel, ele procura basear
pécie, à semelhança de cada planta se­
gundo a sua espécie, à semelhança de to d a atividade escolar nos cam pos de interesse
cada pequeno animal segundo a sua reais da criança e perm itir-lhe desabrochar. Para
espécie. [...] Assim, cada criança cresce C laparède (1958), a educação funcional é aquela
segundo a sua espécie, segundo a sua va­ que responde às necessidades da criança. A ati­
riedade, segundo o matiz particular da vidade de todo indivíduo é suscitada p o r um a
sua mente.
necessidade. N ão se trata mais de im por neces­
Essa insistência relativam ente à natureza da sidades de adultos às crianças, com o se fazia na
criança tem repercussões im portantes no papel pedagogia tradicional, na qual tudo era decidi­
do professor. N a verdade, se a criança deve se do previam ente e fora da criança: os program as,
desenvolver de dentro para fora, “é preciso que as atividades, as lições etc. É preciso, de prefe­
o adulto evite m ultiplicar as intervenções intem ­ rência, que o m estre esteja à escuta daquilo que
pestivas que se exercem de fora para d e n tro ” vivem e sentem os alunos. Ele é o observador
ífER RIÈRE, apud BLOCH , 1973: 31). Essa é
atento daquilo que eles fazem e pode assim dife­
a escolha decisiva efetuada pelos partidários da
renciar um capricho passageiro de um a necessi­
pedagogia nova quanto ao papel do docente.
dade profunda. C om o se dizia com to d a a razão
E e s nos convidam a situar o debate em torn o
na época, a ajuda do docente pode ser útil, mas
é t duas opções. A prim eira, tradicional e nefas-
a sua direção não é necessária.
agir “de fora para d e n tro ” ; a segunda, mais
priada: agir “de dentro para fora” (BLOCH, Assim, o conjunto das atividades que se de­
3: 32). O m estre deixa, pois, de ser aquele senrolam na classe são m odificadas. N a lógica
dá constantem ente o saber (p. 48). Seu papel daquilo que vimos anteriorm ente, toda atividade
iste, antes, em responder às necessidades da deve responder a um a necessidade (CLAPARÈ­
ça, situando-a no centro das suas preocu- DE, apud BLOCH, 1973: 36). C onsequente­
s. m ente, nenhum a atividade é im posta a partir do
172 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

exterior. A escola ativa de que se fala não é sim ­ a escola tradicional, mas problem as concrt-:»^
plesm ente um a escola onde se desenrolarão ativi­ vindos do seu m undo in terio r (BLOCH, i-~ 3
dades; pelo contrário, é um conceito preciso, do 36). É p o r essa razão que o m étodo dos p r c r e a j
qual Kerschensteiner (apud BLOCH , 1973: 44) é tão p o p u lar na escola nova. O fam oso
dá um a definição com plexa, mas interessante: ning by doing de Dew ey expressa p e r f e i t a m a J
Em vez de exigir que a criança seja “ati­ a ideia de que, ao fazer as atividades (que c m I
va”, é preciso que ela seja “ativa por si respondem às suas necessidades), é que a cr*sm
mesma”, e ser “ativa por si mesma” não ça evolui e aprende. M as deve-se n o tar que. a j
significa apenas que ela deve ser “por si
p rep arar atividades atraentes, o m estre não raw
mesma ativa”, mas que o princípio da­
quilo que a obriga à atividade deve es­ ponde necessariam ente às necessidades da c r á J
tar “nela mesma”, e que essa obrigação ça. Tanto Dewey quanto C laparède d e n u n c ia *
deve emanar “da própria criança”, dos severam ente os artifícios inventados pelos pro­
seus “próprios interesses”, e traduzir fessores hábeis, para suscitar o interesse atravdti
a urgência com a qual estes exigem os de atividades divertidas, mas não significativas*
meios da sua satisfação.
para as crianças (CHATELAIN & COUSINET
Insiste-se nas atividades de expressão. Efe­ 1966: 38). Segundo eles, um interesse não pooe
tivam ente, favorecendo a expressão infantil, ser estim ulado a p artir do exterior; ele só pooe
pode-se perceber m elhor tanto as necessidades surgir do fundo do p ró p rio indivíduo.
quanto os cam pos de interesse da criança. É
Essa abordagem tem um a incidência impor­
assim que são desenvolvidas profusam ente as
tante no program a a “tran sm itir” aos alunos. N i
atividades de desenho livre, de redação sobre
escola nova não há program a preestabelecidc
tem as livrem ente escolhidos pelos alunos, as
Para Dewey, os program as são estranhos à ex­
brincadeiras espontâneas, as conversas em que
periência da criança; são um a preparação para
as crianças discutem sobre aquilo que as p reo ­
mais tarde e não poderiam ser verdadeiram ente
cupa verdadeiram ente. Além disso, as atividades
devem “tom ar sem pre com o p o n to de partida o educativos. As necessidades e os cam pos de inte­
m eio natural e social no qual decorre a vida da resse dos alunos devem, pois, estar na base dos
criança” (BLOCH, 1973: 34). A escola nova é program as.
um a escola aberta para o m undo e não cortada Veremos como, aos olhos de Dewey,
da vida. Assim, o docente não se obstina em exi­ uma matéria deve corresponder preci­
samente a esse ponto de vista para fa­
gir que as crianças realizem atividades que não
zer parte do programa; e só poderia ser
sejam significativas para elas e cuja utilidade introduzida nele no momento em que
esteja dependente unicam ente de critérios dos ela intervém no ciclo vivo dos interesses
adultos. De preferência, faz-se en trar na escola da criança, para permitir-lhe resolver
o m undo da criança. E o seu m undo é o que a os seus problemas. Essa regra é válida
p reocupa “aqui e agora”. Jo h n Dewey dizia que para o ensino tanto das ciências quan­
to da história, da geografia e da língua
a criança procura constantem ente resolver os
materna. Ela implica a condenação de
problem as com que se depara. N ão se deve dar todo ensino dogmático que viesse a ser
à criança um problem a fictício e fora da sua ex­ imposto aos alunos em virtude de um
periência viva, com o aqueles em que era perita programa preestabelecido, além de pro­
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 173

clamar que “toda lição deve ser uma res­ puramente exterior dos métodos tradi­
posta” [a uma necessidade] (BLOCH, cionais [...] vem do interior”; a discipli­
1973: 38). na interior deve substituir a disciplina
exterior (BLOCH, 1973: 52).
A concepção da disciplina é um a característi­
ca im portante da abordagem centrada nos cam ­ Essa disciplina interior se m anifesta na a t­
pos de interesse das crianças. N a escola tradicio­ m osfera geral de um a classe nova. N ão se en­
nal m antém -se a disciplina de m odo autoritário, contra ali a ordem m ecânica e excessiva da clas­
com o se o aluno estivesse constantem ente en tre­ se tradicional, seu clima sério e triste; a classe
gue à agitação e à deso rd em e fosse preciso vi- assemelha-se, de preferência, a um a colm eia em
giá-lo. C om pletam ente diferente é a concepção que todos estão ocupados em suas tarefas respec­
de disciplina em um a perspectiva nova. Q uando tivas, num a espécie de am biente sereno (p. 43).
há interesse na classe, quando o aluno pode tra ­
Em conclusão, o retrato da pedagogia tra ­
balhar com aquilo que o m otiva verdadeiram en­
dicional pintado pelos partidários da pedagogia
te, a questão da disciplina se apresenta diferente­
nova é bastante som brio. E ntretanto, esse artifí­
m ente e fica, em grande parte, resolvida.
cio retórico lhes perm itiu definir o tipo de p ed a­
A velha disciplina autoritária e policial,
gogia que preconizavam . E nquanto a pedagogia
[...] a disciplina de heteronomia e de co­
ação com todas as suas ameaças pode ser tradicional é um a pedagogia do objeto, da cultu­
suprimida. “O interesse, o interesse pro­ ra a transm itir pelo professor ao aluno, a peda­
fundo pela coisa que deve ser assimilada gogia nova se inscreve em um a dinâm ica oposta:
ou executada”, substitui, como “mola
substitui o ensino do m estre pela aprendizagem
propulsora da educação”, o temor ao
castigo, e até o desejo de recompensa. do aluno e se define, po r conseguinte, com o um a
Torna-se assim o princípio de uma dis­ pedagogia do sujeito. Essa visão da pedagogia
ciplina que em oposição à “disciplina continua bem presente em nossos dias.

Conclusão

O estudo das transform ações que se produziram no


m undo da educação, nos séculos XIX e X X , perm itiu o
aparecim ento de alguns elem entos im portantes. Prim eira­
m ente, tom am os consciência da existência de um a tradição
pedagógica que tem a sua origem no século XVII e que se
consolidou nos séculos seguintes. Depois, constatam os que
a contribuição do século XIX para a educação reside princi­
palm ente em um a série de m edidas legislativas (escolaridade
obrigatória, gratuidade, laicidade). O ensino m útuo não é,
propriam ente falando, um a inovação, mas, antes, um a con­
solidação da ideologia pedagógica do século XIX. Analisa-
174 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

mos tam bém a derrubada das concepções que se opera


fim do século XIX. Vimos o papel im portante desemp
do, então, pela ciência com o crítica da tradição, e os esfc
despendidos nesse m om ento para fundar a pedagogia
a ciência. M ais especificam ente, assinalam os a im por
da psicologia na constituição dos novos discursos pedagcip
cos, assim com o as tentativas em preendidas p o r essa c :„ c - |
plina no estudo da criança e das suas necessidades. E n ím |
insistim os num m ovim ento pedagógico de grande amplinad
que se desenhou no início do século X X , a escola nova. Vi­
mos que a pedagogia nova se define de m odo polêm ico, isqfl
é, p o r oposição à pedagogia tradicional. A pedagogia nota i
representa um a verdadeira revolução das ideias e das práti­
cas que se estendeu po r todo o século.
O p resen te cap ítu lo desem penha, pois, um papel de
transição. Por um lado, descreve o fim de um longo pn>
cesso de estruturação da pedagogia, que com eçou com c»
gregos, atravessou a Idade M édia, o Renascim ento, o séculdj
XVII e o Século das Luzes para culm inar no século XIX.
Por o u tro lado, ele abre a p o rta para o século X X , que foi
incrivelm ente fecundo no plano das ideias e das práticas pe­
dagógicas. Eis o que analisarem os nos próxim os capítulos.

Resumo

O fim do século XIX e o início do X X são m arcados


pela passagem da pedagogia tradicional para a pedagogia
nova. A pedagogia tradicional, p o rta d o ra dos costum es dos
séculos passados, é um a prática conservadora, prescritiva e
ritualizada, além de ser um a fórm ula que perpetua o m étodo
de ensino do século XVII. Essa tradição, baseada na ordem ,
é levada ao extrem o no século XIX com o ensino m útuo:
po r seu interm édio, e po r um a questão de eficácia, preten­
de-se instruir o m aior núm ero de alunos com o m enor custo
possível.
E n tretan to , é no início do século X X que a pedagogia
tradicional é contestada pela escola nova. O s fatores subja­
centes a essa revolução estão ligados n o tad am en te à ciên-
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova

cia, que tom a agora um lugar p rep o n d e ra n te , e ao desejo


de estar mais à escuta das necessidades da criança, a fim de
criar um hom em novo. A pedagogia é ab o rd ad a com o um
dom ínio de p rática que deve relacionar-se com a ciência
em geral e com a psicologia da criança em particular. Re-
corre-se à observação e à experim entação objetivas, a fim
de criar um a ciência da educação. A pedagogia nova tom a
corpo em um a oposição estreita à tradição: concentração
da atenção na criança, nas suas necessidades e seus cam ­
pos de interesse; definição do docente com o guia etc. Em
sum a, a pedagogia nova situa a criança no centro das suas
preocupações e se opõe a um a pedagogia tradicionalm ente
cen trad a no m estre e nos conteúdos a transm itir. Esse m o­
vim ento é o p o n to de p artid a de correntes de pensam ento
que ainda existem hoje e que influenciam o conjunto das
práticas pedagógicas atuais.

Questões

1) M encione e descreva as quatro características mais


im portantes da pedagogia tradicional.
2) N o início do século X X , começa-se a falar de “ciência
da educação”. O que significa essa expressão?
3) M encione e com ente as duas características mais rele­
vantes da pedagogia nova.
4) Explique com o a pedagogia nova se construiu por
oposição à pedagogia tradicional. Dê exemplos.
5) Em que sentido a criança é um centro de interesse
novo na pedagogia nova? C om ente a sua resposta.

Atividade de aprendizagem

A pedagogia nova m arca o advento de um a nova m anei­


ra de ver a educação. Servindo-se de suas palavras, escreva
em que sentido essa pedagogia continua sendo válida em
nossos dias.
176 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade ate o

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