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ORALISMO X BILINGUISMO: FILOSOFIAS EDUCACIONAIS

HISTORICAMENTE CONTRASTANTES E PRESENTES NA


EDUCAÇÃO PARA O SURDO

Maíra Wood Almeida Souto1 - SEED

Eixo – História da Educação


Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

Este artigo busca entender e refletir, através de revisão bibliográfica, porque o bilinguismo
ainda não é consenso nas políticas educacionais de Estado e entre famílias e surdos, pois há
muitos que continuam desejando uma educação baseada no oralismo ou na comunicação total,
embora movimentos sociais dos surdos defendam o bilinguismo, com o uso da Língua
Brasileira de Sinais - Libras e da Língua Portuguesa na modalidade escrita, como principal
ferramenta na área de educação dos surdos. Verifica se este fato sofre a influência da falta de
políticas públicas ou do acesso a elas e se a construção da identidade surda tem relação com
esta discussão. Mostra que os sujeitos principais na defesa da escola bilíngue são os surdos
que avançam, mas são restringidos por políticas difundidas que tentam igualar os desiguais,
silenciando suas identidades, normatizando, de forma precária, os discursos. Conclui que a
Lei de Libras de 2002 lhes permitiu exigir direitos, e a escola bilíngue que desejam ainda é
uma tentativa que passa por necessária mudança social sobre a visão identitária deste grupo
historicamente excluído, mas que vem ganhando espaço nesta discussão à medida que os
sujeitos surdos passam a exigir participação nos espaços de decisão das políticas públicas, não
mais delegando este papel aos ouvintes e aceitando um papel secundário nas decisões
tomadas pelos agentes públicos, mas como autores transformadores de suas próprias
realidades, organizando seus movimentos e engajando-se na sua luta por igualdade de
direitos, de acesso à sociedade e de respeito a sua identidade que é plural.

Palavras-chave: Filosofias educacionais. Oralismo. Bilinguismo. Educação para o surdo.

1
Graduada em Bacharelado e Licenciatura de História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Pós-graduada em Libras - Língua Brasileira de Sinais pela Faculdade São Braz. Pós-graduanda em Educação
Especial: Educação Bilíngue para Surdos – LIBRAS/ Língua Portuguesa pelo Instituto Paranaense de Ensino e
Faculdade de Tecnologia América do Sul. Endereço eletrônico: mairawoodasouto@gmail.com

ISSN 2176-1396
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Introdução

Os dois métodos de ensino, oralista e bilinguista, existentes na segunda metade do


século XVIII sofreram uma abrupta ruptura a partir do Congresso de Milão em 1880, que
definiu a orientação educacional para os surdos, banindo o método bilíngue e oficializando o
oralismo como única metodologia aplicável nas práticas pedagógicas para população surda.
Somente no final do século XX este paradigma muda, com os avanços da língua de
sinais na educação, decorrentes das inúmeras pesquisas linguísticas das línguas de sinais
iniciadas por Stokoe, nos anos de 1960, que estabelecem o status linguístico das diversas
línguas de sinais. “Sob o impacto dessas pesquisas básicas sobre a língua americana de sinais,
nos anos 1970, a filosofia educacional oralista estrita cedeu à filosofia educacional da
comunicação total” (CAPOVILLA, 2000, p. 104).
A comunicação total, língua falada sinalizada, compreendida como aquela que busca
todos os meios (mímica, pantomima, leitura labial e sinais) para o desenvolvimento da
linguagem, tornando a língua falada mais compreensível ao surdo e auxiliando seu letramento
se tornou, no início dos anos de 1970, o método de excelência a ser adotado na educação para
surdos. Com o decorrer de sua disseminação, porém, ela se mostrou insuficiente já “que nem
os sinais nem as palavras faladas podiam ser compreendidos plenamente por si sós”
(CAPOVILLA, 2000, p. 109).
Desta forma, a língua de sinais, neste período do século XX, auxiliada pelo
aprofundamento da sua compreensão e complexidade linguística, se transforma no principal
instrumento da filosofia do bilinguismo que propõe a convivência, porém a não
simultaneidade das duas línguas, oportunizando ao surdo seu desenvolvimento de habilidades
em sua língua primária de sinais e na secundária, escrita, excluindo o objetivo do
desenvolvimento da fala.
No Brasil, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases nº 9.394/96, de 20 de
dezembro de 1996, a Educação Especial, embasada na Declaração de Salamanca (1994),
assume a política nacional de inclusão que tem como objetivo a promoção da educação para
todos. Desta forma, o surdo é incluído no ensino regular sem que a discussão do método de
ensino fosse reconsiderada e a visão clínica-terapêutica e oralista modificada. Em 24 de abril
2002, após muitas “batalhas” do povo surdo, finalmente a Lei nº 10.436 foi sancionada,
reconhecendo a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como meio legal de comunicação e
expressão.
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Entende-se como Língua Brasileira de Sinais (Libras) a forma de comunicação e


expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura
gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos,
oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil (BRASIL, 2002).

A educação dos surdos toma novos rumos e a luta do povo surdo em defesa de uma
educação bilíngue se evidencia, novas políticas inclusivas são traçadas e discutidas como o
Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei 10.439/2002 e o artigo 18
da Lei 10.098, de dezembro de 2000 (sobre a formação de intérpretes e tradutores em Libras).
Contudo, as discussões de métodos, práticas e visões permanecem, o decreto 5.626, em seu
capítulo VI art. 22 §3º deixa claro que os pais e os próprios alunos podem optar e dar
preferência pela educação sem o uso de Libras. Desta forma, apesar de o método bilíngue ter
adquirido bastante força com o movimento surdo, o método de ensino não é consenso na
atualidade, persistindo, em diversos espaços escolares, tanto o oralismo quanto o bilinguismo.
Ora, se o movimento surdo através de sua Federação Nacional vem defendendo o bilinguismo
como o método capaz de desenvolver as habilidades educacionais dos surdos. Por que o
bilinguismo ainda não é consenso? Por que a família ou os surdos ainda desejam uma
educação baseada no oralismo ou na comunicação total? Este fato sofre a influência da falta
de políticas públicas ou do acesso a elas? A construção da identidade surda tem relação com
esta discussão? É a reflexão sobre o contraste destas filosofias educacionais e como esta se dá
na atualidade brasileira que se propõe este artigo.

Observando as filosofias educacionais para o surdo na história contemporânea

No século XVIII, coexistiam dois métodos de ensino para os surdos, o método francês,
propagado pelo Abade Michel de L’Epée, baseado em um sistema de sinais e o método
alemão, de Samuel Heinicke, que defendia toda a instrução partindo do desenvolvimento da
oralização dos surdos, segundo Capovilla (2000) este método tem em sua raiz o ufanismo e a
formação da própria identidade nacional alemã. Foi em 1880, em um período da história
marcado por um forte nacionalismo das potências europeias, que ocorre o importante
Congresso de Milão onde se tem um divisor de águas sobre a educação para surdos.
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Sete dias de discussões, apresentações e votações, entre 6 e 11 de setembro de 1880,


em Milão, Itália, coroaram os pressupostos oralistas. As resoluções foram quase
unânimes, contando com poucas, e isoladas, oposições: às escolas de surdos cabia o
ensino da fala como meio de inserção do surdo em um mundo ouvinte. Os gestos?
Que fossem banidos. As práticas bimodais que utilizavam sinais em simultaneidade
com a fala também foram rejeitadas. O oralismo puro, como acordado por grande
parte dos mais de 170 membros do Congresso (em sua quase totalidade ouvintes),
foi apontado como a melhor abordagem para a educação de surdos (EIJI, 2016, p. 1).

É importante contextualizar a visão preponderante do período histórico mencionado


em relação às características das línguas de sinais.

À época, concebia-se a língua de sinais como uma forma inferior de comunicação


composta de um vocabulário limitado de sinais equivalentes à mera gesticulação
mímica e pantomima, sem estrutura hierárquica, gramática ou abstração, limitada a
uma representação holística de certos aspectos concretos da realidade
(CAPOVILLA, 2000, p. 101).

Esta tese da hegemonia do ouvir e do falar será responsável por reconsiderações na


forma e metodologia das várias instituições da época.

Assim, as propostas oralistas contaram com a chancelada oficial do Congresso de


Milão, fazendo de grande parte das escolas para surdos espaços de reabilitação, de
ortopedia da fala, de normalização de indivíduos ‘anormais’ (EIJI, 2016, p. 1).

No propósito desta filosofia educacional, estava claro que

O método oralista objetivava levar o surdo a falar e a desenvolver competência


linguística oral, o que lhe permitiria desenvolver-se emocional, social e
cognitivamente do modo mais normal possível, integrando-se, como um membro
produtivo, ao mundo dos ouvintes (CAPOVILLA, 2000, p. 102).

O método oralista, agora oficializado, modifica a educação destinada ao povo surdo,


na maioria dos países ocidentais, e persistirá por um século, e seu efeito é considerado nefasto
do ponto de vista da identidade dos sujeitos.

Nenhum outro evento na história de surdos teve um impacto maior na educação de


povos surdos como este que provocou uma turbulência séria na educação, que
arrasou por mais de cem anos nos quais os sujeitos surdos ficaram subjugados às
práticas ouvintistas, tendo que abandonar sua cultura, a sua identidade surda e se
submeteram a uma ‘etnocêntrica ouvintista’, tendo de imitá-los (STROBEL;
PERLIN, 2008, p. 6)

O método também não frutificou como prática pedagógica, uma vez que,
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[...] pagou-se um preço intolerável pela aquisição da fala. Os alunos surdos da


década de 1850 que haviam passado pelo Asilo Hartford ou por outras escolas desse
tipo tinham um alto nível de alfabetização e instrução - plenamente equiparável ao
de seus equivalentes ouvintes. Hoje em dia, ocorre o inverso. O oralismo e a
supressão da língua de sinais acarretaram uma deterioração marcante no
aproveitamento educacional das crianças surdas e na instrução dos surdos em geral
(SACKS, 2010 p. 35).

Esta afirmação é reforçada por Capovilla (2000, p. 102):

Como resultado, foi observado um rebaixamento significativo no desenvolvimento


cognitivo dos surdos. Infelizmente, no entanto, em vez de ser percebido como
consequência do método, tal rebaixamento passou a ser usado como prova da
importância da linguagem oral para o desenvolvimento cognitivo dos surdos.

Segundo Capovilla (2000), apesar de resultados modestos apoiados nas novas


tecnologias que surgem entre as décadas de 1960 e 1990, a filosofia oralista não chegou a
desenvolver a linguagem dos surdos, o método oralista passou a ser substituído em larga
escala pela filosofia da Comunicação Total.
A Comunicação total foi compreendida como “língua falada sinalizada”, no entanto,

[...] é mais uma filosofia que se opõe ao oralismo estrito do que propriamente um
método [...]. Sob proteção desta nova filosofia educacional, nesta época, começaram
a surgir diversos sistemas de sinais, cujo objetivo central era aumentar a visibilidade
da língua falada, para além da labial (CAPOVILLA, 2000 p. 104).

Esta sinalização da fala se popularizou nas escolas e junto às famílias, possibilitando


ao surdo uma maior participação e interação social desde a legitimação do oralismo estrito.

Consideremos agora um pouco mais atentamente alguns dos recursos da


‘comunicação total’ que ajudaram a melhorar o desempenho acadêmico das crianças
surdas. Os sistemas de sinais podem basear-se no vocabulário da língua de sinais,
mas adicionar a ele aspectos da língua falada, ou então podem adotar um
vocabulário artificial. Sua característica mais importante é que neles a ordem de
produção das palavras da língua falada, que é produzida simultaneamente [...]
Assim, a estrutura das sentenças construídas por meio de sistemas transfere-se mais
facilmente à língua escrita do que a daquelas em língua de sinais (CAPOVILLA,
2000, p. 105, grifo do autor).

Embora a comunicação total tenha aparecido como um meio-termo e promovido uma


certa evolução na educação dos surdos, quando comparada ao oralismo estrito, o grande
problema estava na impossibilidade da conciliação entre a língua de sinais e os sistemas
criados para a sinalização da língua falada, devido a essência extremamente distinta entre as
duas.
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Mas as verdadeiras línguas de sinais são, de fato, completas em si mesmas:


possuindo, porém, um caráter diferente do que de qualquer língua falada ou escrita.
Assim, não é possível transliterar uma língua falada para a língua de sinais palavra
por palavra ou frase por frase - suas estruturas são essencialmente diferentes. Com
frequência, imagina-se, vagamente, que a língua de sinais é o inglês ou o francês.
Ela não é nada disso; é, ela própria, a língua de sinais. Assim, o ‘inglês em sinais’,
hoje preconizado como meio-termo, é desnecessário, pois não é preciso nenhuma
pseudolíngua intermediária. E, no entanto, os surdos são forçados a aprender esses
sinais não pelas ideias e ações que desejam expressar, mas pelos sons fonéticos em
inglês que eles não podem ouvir (SACKS, 2010, p. 37).

Em meados dos anos de 1970, constata-se que as habilidades de leitura e escrita


continuavam limitadas. Diversas pesquisas passam a ser realizadas pelo ‘Centro de
Comunicação Total’ de Copenhague e a conclusão a que chegaram é que as crianças ao invés
de atingir uma versão visual da língua falada estavam convivendo com uma “[...] amostra
linguística incompleta e inconsistente, em que nem os sinais nem as palavras faladas podiam
ser compreendidos plenamente por si sós” (CAPOVILLA, 2000, p. 109).
Neste contexto, a partir de 1980, o aprofundamento dos estudos da complexidade
linguística das línguas de sinais naturais e presentes nas comunidades surdas caminha em
consonância com os anseios da necessidade de desenvolvimento cognitivo social das crianças
surdas e da educação destinada a esta população. A filosofia do bilinguismo surge como
alternativa substitutiva da comunicação total, propagando que a língua falada e de sinais
podem conviver, mas não simultaneamente.

O bilinguismo tem como pressuposto básico que o surdo deve ser bilíngue, ou seja,
deve adquirir como língua materna a língua de sinais, que é considerada língua
natural dos surdos, e como segunda língua, a língua oficial de seu país. [...] O
conceito mais importante que a filosofia bilíngue traz é que os surdos formam uma
comunidade, com cultura e língua próprias. A noção de que o surdo deve, a todo
custo, tentar aprender a modalidade oral da língua para poder se apropriar do padrão
de normalidade é rejeitada por esta filosofia. Isto não significa que a aprendizagem
da língua oral não seja importante para o surdo, ao contrário, este aprendizado é
bastante desejado, mas não é percebido como único objetivo educacional do surdo,
nem como possibilidade de minimizar as diferenças causadas pela surdez
(GOLDFELD, 1997, p. 42-43).

Segundo Capovilla (2000), a Suécia foi o primeiro país a reconhecer os surdos como
minoria linguística e a assegurar o direito político à educação em língua falada e de sinais. Na
sequência, vários países passam a adotar as devidas línguas de sinais para a educação da
criança surda. A Dinamarca teve um programa de pesquisa pioneiro, descrito por Hansen
(1990), que acompanhou durante oito anos os avanços da língua de sinais e das línguas falada
e escrita com nove crianças surdas conforme a filosofia do bilinguismo. Foi registrado tanto o
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aprimoramento do vocabulário e da fluência em língua de sinais quanto um grande


desenvolvimento das habilidades de leitura que ampliou o vocabulário de palavras,
melhorando substancialmente as habilidades de leitura labial. Ainda se ressalta, nesta
pesquisa, o grande progresso social, cognitivo e acadêmico dos pesquisados. Este estudo vem
ao encontro das expectativas da filosofia bilíngue que visa à promoção da capacidade
comunicativa e espontânea da linguagem e a evolução do respeito e identidade como pessoa
surda.
Ainda em consonância com os argumentos defendidos pelo bilinguismo, Sacks (2010,
p. 38) analisa a importância do desenvolvimento da linguagem nas crianças:

A língua deve ser introduzida e adquirida o mais cedo possível, senão seu
desenvolvimento pode ser permanentemente retardado e prejudicado, com todos os
problemas ligados à capacidade de ‘proposicionar’ mencionados por Hughlings-
Jackson. [...] As crianças surdas precisam ser postas em contato primeiro com
pessoas fluentes na língua de sinais, sejam seus pais, professores ou outros. Assim
que a comunicação por sinais for aprendida - e ela pode ser fluente aos três anos de
idade -, tudo, então, pode decorrer: livre intercurso de pensamento, livre fluxo de
informações, aprendizado da leitura e escrita e, talvez, da fala. Não há indícios de
que o uso de uma língua de sinais iniba a aquisição da fala. De fato, provavelmente,
ocorre o inverso.

A proibição total da língua de sinais acarretou, para o povo surdo, uma defasagem
histórica de aquisição ao conhecimento acumulado pela humanidade, a necessária
readequação desta filosofia metodológica oralista estrita foi embasada em estudos de
psicologia e pedagogia e na análise da dificuldade de apreensão do conhecimento da criança
surda.

A dialética entre o oralismo e o bilinguismo na atualidade brasileira

Goldfeld (1997) faz um relato sobre a educação de surdos no Brasil iniciada em 1885
com a chegada do professor surdo francês Hernest Huet, a pedido de D. Pedro II. Em 1857,
com a fundação do ‘Instituto Nacional de Surdos-Mudos’ (INES) a língua de sinais era
utilizada como estrutura educacional. Em 1911, o Instituto estabelece o Oralismo em todas as
disciplinas, mas a língua de sinais é proibida oficialmente em 1957, permanecendo como
língua exilada aos pátios e corredores da escola. Em 1970, a Comunicação total é defendida
no Brasil e é a partir da década de 1980, com bases na pesquisa da linguista Lucinda Ferreira
Brito sobre a língua de sinais, que o Bilinguismo entra em pauta na educação brasileira.
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Atualmente, essas três abordagens convivem no Brasil, e pode-se dizer que todas
têm relevância e representatividade no trabalho com surdos. As diferentes
abordagens causam muitas discórdias e muitos conflitos entre os profissionais que as
seguem [...] hoje, em alguns países do mundo como a Venezuela, existe uma
filosofia adotada oficial e obrigatoriamente em todas as escolas públicas para surdos
(no caso, a filosofia bilíngue), mas como no Brasil, a maioria dos países convive
com essas diferentes visões sobre os surdos e sua educação, acreditando que a
verdade única não existe e, portanto, todas as abordagens seriamente estudadas
devem ter espaço (GOLDFELD, 1997, p. 33).

Nas duas primeiras décadas dos anos 2000, com o reconhecimento da Libras “como
meio legal de comunicação e expressão” (BRASIL, 2002) e os movimento surdos
propositivos em defesa a escolas bilíngues, que tiveram seu ápice em 2011, quando, após
infrutífera participação na Conferência Nacional da Educação, foram desprezados em suas
proposições e acusados de segregacionistas tendo, na sequência, a comunicação do
fechamento do INES e a sentença de a educação para surdos ser destinada somente às escolas
inclusivas. O Movimento dos Surdos Brasileiros e suas entidades representativas como a
‘Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos’ (FENEIS) travaram uma imensa
resistência e articulação em defesa das Escolas Bilíngues para os Surdos, objetivando garantir
emendas específicas no Plano Nacional de Educação (PNE) sancionado em 2014. Esta
resistência, descrita por Campello e Rezende (2014), procurou incluir o texto proposto
elaborado pela Feneis sobre a educação para os surdos, porém o texto sancionado foi
modificado à revelia. Desconsideraram-se, então, as proposições dos surdos, abraçando o que
Campello e Rezende (2014) chamam de “concepções errôneas sobre nossa educação”
sinalizadas pela nota de esclarecimento da Feneis em 2013, onde salienta que o modelo
proposto pelo Ministério da Educação (MEC) afirma que as escolas e classes bilíngues
possuem como única especificidade a presença de intérpretes de Libras e que, com isso,
enfraquecem as conquistas obtidas pelos surdos e vão contra o Decreto 5625/2005,
reafirmando que, em escolas e classes bilíngues, as aulas sejam ministradas diretamente em
Libras, com metodologias específicas.
Ainda hoje, o cenário descrito por Goldfeld (1997) se faz presente, a coexistência das
filosofias educacionais para os surdos resistem nos espaços educativos. A existência de
escolas bilíngues, de classes bilíngues e de Atendimentos Educacionais Especializados nas
escolas inclusivas convive com escolas especiais destinadas à oralização dos jovens surdos.
Muitos trabalhos acerca da importância e dos desafios das escolas bilíngues são publicados na
mesma conjuntura onde sites e blogs pessoais de surdos oralizados, e que defendem esta
filosofia, são divulgados.
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Não sei se V. Exas. sabem da existência dos surdos oralizados. Estes comunicam-se
oralmente, sem problemas, embora alguns tenham dificuldade na fala e entendem
por leitura labial. Como podem ver, nós, surdos oralizados, por nos comunicarmos
oralmente, não usamos língua de sinais. Nada temos contra a língua de sinais, a
oralização foi uma opção exclusivamente nossa e de nossos pais, sem
menosprezarmos e negarmos nossa surdez, como muitos psicólogos e educadores de
surdos gostam de afirmar. Nós, mais do que ninguém, sabemos que somente a
oralização amplia nossas possibilidades e iniciativas como qualquer ser humano e,
por isso mesmo, acreditamos que somente o oralismo é capaz, como um todo, de nos
incluir na sociedade, sem sermos marginalizados. Por este motivo, não concordamos
com o fato de a língua de sinais ser a língua exclusiva e única do surdo. [...]
Finalizando e resumindo nossa mensagem, a legalização da língua de sinais não nos
ajuda, nem resolve nossas dificuldades. Seria como uma obra de fachada, de
aparência humanitária. Os surdos não precisam somente de demonstração de
humanitarismo do Poder Público. Precisam de um apoio mais direcionado, mais
eficaz, mais positivo, mais competente. O que adianta colocar um intérprete de
LIBRAS em cada serviço público? Melhor usar esta verba para colocar uma
fonoaudióloga em cada escola! Nada adianta nos encaminhar ao aprendizado de uma
língua que visa excluir e separar as pessoas (MANIFESTO DE SURDOS
ORALIZADOS, 2008).

Ou ainda:

Mas, damos ênfase no grupo de surdos oralizados justamente porque nosso grupo
tem pouca divulgação e muita gente nem sabe que existimos. Daí, quando se depara
com um surdo oralizado, acha que é um caso raríssimo e por isso, nem deve ser
considerado como um grupo que precisa de acessibilidade. Ou acha que não
precisamos de nada, já que ‘estamos tão bem’. Divulgamos o grupo junto com a
solicitação de acessibilidade, estamos aproveitando o gancho apenas para debater
dois assuntos relevantes […] (LOBATO, 2011, p.1).

Entre as críticas das práticas dentro de escolas bilíngues, encontramos,


constantemente, o discurso sobre o despreparo dos profissionais e a prática do bimodalismo
(português sinalizado). São salientadas atuação de um massivo professorado ouvinte em
detrimento dos professores surdos e a construção da identidade.
Assim, afirma Fernandes (2003, p. 34) que:

Dentre as questões substantivas que imprimem à surdez um outro espaço discursivo,


distanciado da ditadura da normalidade, está localizada a discussão em torno do
direito a uma educação bilíngue, significada a partir de práticas linguistico-
discursivas voltadas à construção de um espaço de resistência e edificação da
identidade surda.

O que é revalidado por Strobell:


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O povo ouvinte, por falta de conhecimentos, nomeia erroneamente os sujeitos


surdos, muitas vezes veem-nos com inferioridade. A sociedade não conhece nada
sobre o povo surdo e, na maioria das vezes, fica com receio e apreensiva, sem saber
como se relacionar com os sujeitos surdos, ou tratam-nos de forma paternal, como
‘coitadinhos’, ou lidam como se tivéssemos ‘uma doença contagiosa’, ou de forma
preconceituosa e outros estereótipos causados pela falta de conhecimento [...] O fato
é que [...] não existe uma identidade surda exclusiva, ela é mutável e construída por
papéis sociais diferentes, assim como pode ser além de surdo, rico, professor,
alemão, católico e homossexual e também pelas línguas que constrói sua
subjetividade, assim como língua de sinais e língua portuguesa. [...] A História
Cultural dos surdos reflete os movimentos mundiais de surdos procurando não ter
uma tendência em priorizar apenas os fatos vivenciados pelos educadores ouvintes,
que se tornaram uma história das instituições escolares e das metodologias
ouvintistas de ensino. Mas sim, procurar retratar os padrões culturais do povo surdo
através de relatos, depoimentos, fatos vivenciados e de observações, misturando-se
em um emaranhado de acontecimentos e ações, levadas a cabo por associações,
federações, escolas e movimentos de surdos que são desconhecidas pela grande
maioria das pessoas. O interessante é que, segundo Lane (1992), no século passado,
quase metades dos professores eram surdos, não existiam audiologistas, terapeutas
de reabilitação ou psicólogos educacionais. Os sujeitos surdos não eram avaliados
segundo os métodos ou pelo grau de sua surdez, pelo contrário, eram descritos em
termos culturais, atualmente, ao consultar o povo surdo, encontramos casos
semelhantes (STROBEL, 2008, p. 31-36-59, grifo do autor).

Neste contexto, analisar a educação inclusiva que se dá aos surdos que estão
matriculados no ensino regular com apoio de intérpretes em Libras e participando, no
contraturno, em salas de recursos se faz necessário refletir sobre as premissas da educação
inclusiva.
Skliar (2016, p. 19) aponta que na América Latina, a partir da Declaração de
Salamanca a ideia de inclusão na escola regular inclusiva absorve dois discursos, um
progressista que salienta a discriminação e exclusão das escolas especiais, salientando o
direito dos diferentes sujeitos em participar da escola pública que deve “aceitar, conter e
trabalhar com a diversidade”, e outro, um discurso totalitário que propõe a inclusão para todos
os diferentes sujeitos, sem perceber a especificidade de cada caso “[...] sem debater a ética do
processo junto com associações e grupos que compõem a alteridade de deficiente e suas
famílias”. Nos discursos historicamente construídos permanecem os olhares sobre deficiência
e normalidade e seus sistemas de representação e significação política formam parte “de uma
mesma matriz de poder”. O pensamento da inclusão que apoie a socialização da diversidade
deficiente leva à “inclusão excludente ou integração social perversa”, “a ilusão de ser como os
demais, o parecer como os demais, o que ressalta numa pressão etnocêntrica de ter que ser,
forçosamente, como os demais”.
Assim, as questões referentes à construção de identidade não podem continuar sendo
renegadas a um segundo plano.
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Estar atento às novas atitudes dentro do espaço escolar solicita dos educadores uma
visão crítica, política, social, cultural e um questionamento amplo sobre as práticas e
narrativas que lhes constituem, assim como a manutenção dessas narrativas através
de suas ações. As lutas por identidade no espaço escolar implicam uma atenção
especial para o conceito da diferença, um aprofundamento nas discussões referentes
à diversidade cultural (como o polêmico multiculturalismo), uma posição crítica
frente aos poderes da linguagem social e dos discursos hegemônicos (LULKIN,
1998, p. 42).

Pois o acesso a sociedade e sua participação na mesma não devem calar as


características individuais e coletivas de um grupo social.

Conclusão

As filosofias educacionais destinadas ao sujeito surdo sempre sofreram a influência de


sua conjuntura, do olhar ao povo surdo de seu tempo e dos interesses sociais dominantes. Esta
não é uma afirmação inédita e nem dissociada da realidade de qualquer filosofia educacional
destinada aos ouvintes também. O olhar estigmatizante, segregacionista ao povo surdo
acompanha o olhar de formação de capital humano destinado à escola pública. A intenção foi
mostrar que, embora estas filosofias tenham perpassado os séculos significando e
ressignificando o povo surdo, elas ainda estão presentes na sociedade brasileira, coexistindo.
Seria devido ao Decreto 5.625/2005 que permite a família e aos próprios alunos a opção pelo
tipo de educação que desejam? Ou seria devido à visão da educação como pilar da formação
para o mundo do trabalho e inserção numa sociedade que busca ser “normalizada” e
uniformizada, sem permitir que o desigual sobreviva em suas especificidades?
Devido ao fato de a busca por uma identidade surda política e autônoma das visões
assistencialistas surgir no final do século XX, e persistir em luta, neste início do século XXI,
o Movimento dos Surdos Brasileiros e suas entidades representativas conquistam espaços
antes renegados e a escola como local de diálogo e construção de conhecimento humano não
poderia estar fora deste campo de batalha.
A Oralização que lhes foi imposta, e que ainda é defendida nos meios educacionais e
sociais, visa “normatizá-los”, os “enquadrar” em uma sociedade, uma língua e um padrão que
agora eles podem negar.
Neste estudo de revisões bibliográficas, os sujeitos principais na defesa da escola
bilíngue são os surdos que avançam, mas são restringidos por políticas difundidas que buscam
igualar os desiguais calando suas identidades, normatizando de forma precária os discursos. A
busca pelo melhor tipo de educação para os surdos ainda encontra inúmeros entraves técnicos
2283

e de formação humana, o século de proibição da língua natural dos surdos ainda é nocivo ao
empoderamento e participação política dos sujeitos surdos. Mas isso não significa afirmar que
grandes passos em direção à emancipação dos discursos surdos não foram dados. A Lei de
Libras de 2002 lhes permitiu exigirem direitos, e a escola bilíngue que desejam ainda é uma
busca que passa por necessária mudança social sobre a visão identitária deste grupo
historicamente excluído em seu direito de falar por si, através dos meios que lhe são naturais:
as mãos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases Nº 9.394/96, de 20 de dezembro


de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Distrito Federal, 1996.

______. Lei Nº 10.098, de dezembro de 2000. Estabelece normas gerais e critérios básicos
para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade
reduzida, e dá outras providências. Distrito Federal, 2000.

______. Lei Nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais -
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