Não irei me estender por muitas páginas, não quero que
isso seja desnecessariamente grande e nem muito curto para não ficar incompleto. O objetivo principal é trazer todas as minhas experiências pessoais e técnicas, desde quando fui resgatado pelo conselho tutelar para dentro de um serviço de acolhimento institucional de crianças e adolescentes (SAICA) até a minha participação em um dos projetos da UNICEF em parceria com o Ministério Público e a ONG Serenas para combater violências contra crianças e adolescentes. Neste projeto, Passa a Visão, tive a oportunidade de conhecer por dentro a grande maioria dos serviços de assistência e auxilio a pessoas vítimas de violências e aos funcionários que trabalham diretamente com isso. Conheci desde o alto escalão das políticas públicas como a secretária de direitos humanos da cidade de São Paulo, Soninha Francine, e alguns vereadores, principalmente Elaine do Psol, até conselheiras tutelares, psicólogos, promotores, assistentes sociais, entre outros. De todas essas pessoas, eu destaco a ONG Serenas que foi justamente a responsável por coordenar o projeto da UNICEF e, em primeiro, destaco as minhas conselheiras do SAICA que foram estrategicamente responsáveis por moldar meu caráter durante os anos finais da minha adolescência. Acredito que boa parte deste conteúdo possa servir para a sociedade em geral, e servir como base para futuras políticas públicas ou complemento da formação de atuantes das áreas sociais. Claro que não se pode ignorar a materialidade textual que foi escrita em um determinado momento e em uma determinada época social. Deixo desde já a minha gratidão por estarem adquirindo conhecimentos através do que escrevo. 2. Violência na Infância
Lembro-me nitidamente quando criança, em uma
igreja católica em Maúa, de um garotinho branco e muito magro acompanhado da avó. Ele sempre estava repleto de hematomas, sempre com muitas feridas, arranhões e com os olhos machucados. A avó, em todas as vezes que alguém questionava, dizia que ele era muito agitado. Durante o projeto da UNICEF nos deparamos com três a quatro divisões das violências contra crianças e adolescentes, mas aqui eu preferi usar outra forma dessas divisões que foram elaboradas também pela própria UNICEF em 2011 com o intuito de fornecer as informações mais completas possíveis. Essas divisões são: práticas prejudiciais, negligência, emocional, sexual e física. Realmente acho difícil alguém não ter vivido ou presenciado alguma dessas violências. Eu mesmo tanto presenciei quanto vivi e ouvi relatos pessoais sobre quase todas. Acredito que a primeira divisão dessas violências que qualquer um pode ter contato é com as práticas prejudiciais. Essa divisão é bem ampla então aconselho a leitura em conjunto ao documento produzido pela UNICEF. Atos de represália é o ato prejudicial mais comum e que qualquer pessoa comete automaticamente sem pensar. Quando alguém grita com você, você programadamente vai sentir a necessidade de devolver o grito. Igual quando alguém te xinga ou te dá um tapa e existe a necessidade de devolver da mesma forma. Crianças são crianças e elas ainda não têm a compreensão sobre a realidade para entender suas atitudes. Quando a criança comete alguma ação que acabe sendo vítima de uma represália temos três alternativas para justificar a ação que a criança cometeu. A primeira é o começo do aprendizado sobre a própria coordenação motora, a segunda é ainda estar em fase de compreender sobre seus sentimentos e a terceira é replicar as ações que aprendeu. Sempre é bom lembrar que quase toda atitude da criança é imitação das ações que ocorrem ao seu redor, assim como é na vida dos adultos. Geralmente imitamos as atitudes do nosso ambiente e nos enquadramos quase que perfeitamente ao que é orientado sobre os modos de se comportar em certos locais. Tendo isso, é importante pensar ao cogitar a represália ou qualquer tipo de violência contra crianças. Qual tipo de pessoa eu quero criar? Essa é uma pergunta que poucos responsáveis fazem e, se fizessem mais essa pergunta, não precisaríamos ter que repetir isso várias e várias vezes. É de necessidade deixarmos a criança ter a vivência da infância como dizem pesquisadores e adeptos da educação positiva. Começamos a cobrar as crianças cedo de mais, partindo logo do seu primeiro erro até a necessidade de querermos que tudo seja perfeito e feito da melhor forma. Desde encher um copo com suco até tirar as notas máximas podem existir as altas e as absurdas pressões impregnadas pelo capitalismo. Claramente perdura uma grande diferença em falar sobre educação positiva com uma mãe classe média da Suécia e uma mãe pobre da América Latina que vê como última esperança para seus filhos os estudos. A educação e a vida do filho da mãe sueca está garantido de qualquer forma, ele se esforçando muito ou não. Já o filho da mãe latina nem sabe se conseguirá emprego mesmo graduado. Ainda sobre os atos prejudiciais, algo muito comum em muitas famílias da América do sul e América central é a alimentação forçada que é quando a criança pede mais que o suficiente e não come. Esse conceito de castigo vem de muitos anos atrás de quando existia a ausência de comida e as famílias do campo faziam de tudo para não desperdiçar. Ainda hoje essa cultura se perpetua em famílias de renda baixa e só será possível mudar essa cultura por meio da conscientização e acesso a rendas maiores das famílias que levará a modificação cultural. Mais atos prejudiciais, os que se enquadram, são distribuição de vídeos íntimos chamados de pornografia infatil. É o que toda a sociedade civil tenta combater, mas para combater diretamente precisamos regulamentar as mídias sociais. Todos podemos ser contra a pornografia infantil, no entanto, se não formos à favor da regulamentação das mídias sociais não estamos realmente sendo eficientes. Além disso, expor crianças a pornografia ou praticar relações sexuais próximo é ato prejudicial e que poderá afetar psicologicamente a crianças ainda na infância. Somente o consumo frequente e exagerado da pornografia pode causar danos a longo prazo em homens adultos. Atrapalhando suas relações afetivas, familiares e até profissionais. Então, uma criança ser exposta a isso logo quando não tem o cérebro completamente desenvolvido é tão prejudicial quanto. Provas de virgindade atualmente no Brasil e em boa parte da América Latina não ocorrem com tanta frequência devido a mudança cultural e ao sistema de ginecologia que preza pelo sigilo. Entretanto, existem exceções no Brasil em caso de abuso sexual que devem ser informado aos responsavéis. Na maioria das vezes, hoje em dia, o discurso da prova de virgindade é ainda incentivado por algumas religiões e igrejas presentes na América Latina. Essas religiões são tanto cristãs quanto de origem muçulmana, e são as grandes motivadoras para essa violência se perpetuar com meninas e mulheres. ONGs como o Movimento Olga Benário ou a ONG Serenas que combatem violências contra mulheres e meninas estão arduamente fazendo trabalhos de conscientização na sociedade e possuem um papel essencial para a mudança não só cultural como também estrutural para a realidade de meninas e mulheres. Exposição a drogas ou incentivo ao consumo é o último tópico que retratarei sobre práticas prejudiciais. Mesmo sabendo que a geração Z não consome tanto álcool ou drogas como a geração passada é ainda importante encararmos com preocupação o consumo por crianças e adolescentes, principalmente dos que vivem em negligência extrema causada pelos vícios dos pais. Nosso maior exemplo desse problema está na Cracolândia, onde as crianças crescem e vivem com bebidas e drogas o tempo todo, claramente não tem como não acabar reproduzindo os vícios dos seus pais. A negligência é um grande fator que pode acarretar na vivência das outras violências. Porém, é importante ressaltar que a maioria das violências contra crianças e adolescentes ocorrem no âmbito familiar ou lugares que são frequentes na vivência dessas crianças ou adolescentes. Esses lugares podem ser na escola, igrejas ou até mesmo em instituições públicas. A negligência normalmente se manifesta pela necessidade dos pais trabalharem para manter a casa ou por mães que acabaram engravidando ainda na adolescência e não possuem preparação para cuidar de uma criança (algo que não posso deixar passar é que em ambos os casos o papel de criar é sempre dado às mulheres. A sociedade é estruturada para que a responsabilidade de criação das crianças e adolescentes seja do sexo feminino em todas as hipoteses possíveis). “Ninguém perde a guarda por ser pobre” essa foi uma frase que me marcou muito quando ouvi de uma conselheira tutelar, e sim, eu concordo totalmente. Um dos aspectos da negligência envolve não dar roupa, moradia, alimentação entre outras coisas que só é possível com dinheiro. O que ocorre é que se você ganha 3.960 mil reais, no ano de 2023, você ganha mais que a média de 70% da população brasileira. Mais um ponto da negligência é o abandono, que pode envolver um responsável com deficiência intelectual, ou não possui condições físicas ou, simplesmente, não possui condições financeiras. Normalmente esses são os principais motivos do abandono, mas como disse a conselheira “ninguém perde a guarda por ser pobre”. Entretanto, a pessoa pode de livre e espontânea vontade dar a guarda. Ao serem negligenciados tanto as crianças quanto adolescentes estão expostos a todos os tipos de violências que podem envolver desde acidentes domésticos até abusos, pois não têm representantes a quem possam pedir orientação e, geralmente, ainda não possuem maturidade suficiente para lidar com as violências. O trabalho doméstico praticado por crianças e adolescentes também pode se tornar uma negligência dependendo da forma que é executado pelos responsáveis. Deixar crianças menores de catorze anos como únicos responsáveis por crianças menores por bastante tempo é considerado negligência, pois crianças nesta idade além de não terem maturidade ainda podem acabar comprometendo o próprio desenvolvimento e até prejudicando a outra criança. Ademais, incentivar a criança a fazer atividades domésticas simples, que não apresentam riscos como arrumar o próprio quarto ou os próprios brinquedos não existe problema se a criança ou adolescente não tiver nenhum impedimento. (Um adendo importante sobre o trabalho doméstico infantil é que a grande maioria das crianças e adolescentes afetados são meninas, e no Brasil são predominantemente meninas negras e pardas de renda baixa). Presenciei relatos de crianças e adolescentes que “preferiram” estar negligenciados porque em casa sofriam mais violência do que sofriam na rua. Na rua alguém raramente tocava neles ou mexia com eles, mas em casa era tão ruim que se sentiam mais confortáveis dormindo na calçada do que no próprio quarto. A violência psicológica eu acredito que seja a que está presente em todas as classes e se manifesta em qualquer tipo de pessoa. No entanto, a primeira vez que qualquer pessoa terá contato com a violência psicológica será na infância. É muito fácil os responsáveis afirmarem que as crianças nascem “sem caráter” ou “ruins” ao invés de admitirem que a criação proporcionada deve ser o verdadeiro motivo das consideradas “más atitudes”. Gritos e xingamentos são muito normalizados na forma de criação das famílias latinas. Durante minhas consultas no SPVV (Serviço de Proteção Social à Criança e ao Adolescente), que tenho só elogios para dar, trabalhamos bastante os conceitos de violências psicológicas. Foi durante essas consultas que as duas psicólogas me ajudaram a ver que crianças e adolescentes também sofrem violências morais e podem demorar anos para as identificar, assim como as psicológicas. Além de gritos e xingamentos, as violências psicológicas e morais se apresentam em forma de controle excessivo sobre a criança e adolescente. Por exemplo, comparações e diminuição tanto físicas quanto intelectualmente. Críticas e humilhações constantes na presença de outras pessoas ou não. Também vale agregar que tanto um relacionamento amoroso abusivo quanto um relacionamento familiar abusivo podem ter as mesmas características. Tal como questionar constantemente o estado mental da vítima para tirar sua razão ou, em casos mais específicos, dizer que crianças inventam coisas ou mentem com intuito de deslegitimar o que é relatado. Partindo da violência psicológica e moral adentramos as violências visíveis ou não tão visíveis que são as físicas e as sexuais. Nem toda violência física deixa marcas, assim como nem toda a violência sexual deixa marcas que é o caso de assédio. Para uma visão melhor do que estou trazendo é importante se perguntar se algum dia já esteve trancado ou colocado em um ambiente de risco que se sentisse em perigo? Todas essas situações são violências físicas mesmo que não contenham, necessariamente, a agressão visível. São considerados atos prejudiciais e esse tipo de violência também se categoriza como psicológica ou até negligente, passando por ambas as divisões da violência. A tortura já foi um metódo muito usado antigamente para corrigir os comportamentos, mesmo que atualmente seja usado com menos frequência graças a nova legislação e aos serviços de proteção. No entanto, esse método se encontra presente em boa parte dos casos denunciados. Um exemplo de como é práticado a tortura, pode-se envolver machucar fisicamente, não dar alimentos, remédios essências ou roupas, mesmo tendo condições, e privar a criança ou adolescente de convivência com outras pessoas, entre outros. E a tortura geralmente está acompanhada de alguma exigência ou, na maioria das vezes, o agressor possui caracteristicas sádicas. Concluindo este texto, finalizamos com violência sexual. O aspecto da violência sexual é um pouco diferente das outras, pois é uma violência muito específica e cometida predominantemente por homens. Este texto está sendo finalizado no dia 29 de janeiro de 2024, às 20 horas e 22 minutos. Até este exato momento, de acordo com o Google, foram presos um professor de ensino fundamental com mais de 1.800 mídias de abuso sexual infantil em seu computador, um policial militar preso por exploração sexual e armazenamento de fotos e videos de abusos, e outros dois homens também presos por exploração sexual de adolescente e crianças. Tirando o professor, os dois últimos foram presos por exploração sexual. Então já se é compreensivo que o problema no Brasil não é unicamente de abuso sexual infantil, mas também de exploração sexual infantil. A violência da cultura masculina continua funcionando terrivelmente. 18 de maio é o dia do combate à exploração e escravidão sexual infantil. Quando gerenciava as redes sociais do Projeto Passa a Visão nem tinha ideia sobre a existência dessa data, mas bem no dia uma das coordenadoras do projeto da #agendaunicef me falou sobre a data e sugeriu que a gente postasse algo sobre. A partir daí comecei a me aprofundar sobre este assunto que eu não tinha tanto conhecimento quanto essa violência poderia ocorrer com frequência no Brasil, na América Latina e no mundo. A maioria das pessoas em trabalho sexual são mulheres pobres, sem estudo e que são ou foram vítimas de violências. Não, a prostituição em si pode ter sido gourmetizada pelas redes sociais, mas a realidade física e material é essa. Tanto mulheres trans como mulheres cis estão em níveis semelhantes de características sociais. Geralmente a exploração e a escravização sexual ocorrem com crianças e adolescentes, não com mulheres adultas. Assim como são as estatísticas de violência sexual que ocorrem em grande maioria com meninas abaixo de 18 anos. E isso não é tão diferente com exploração sexual. Desigualdade. O próprio pai vender a filha sexualmente com fins lucrativos é uma marca tão violenta da nossa sociedade que até mesmo profissionais da assistência social e segurança pública têm dificuldade de lidar com casos assim. Pare por um instante e observe o parágrafo anterior. Pense sobre uma realidade que você passaria por isso e como lidaria após ser resgatado ou resgatada. Bem, não lidaria. Este é o ponto, é uma violação tão absurda que até para o melhor psicólogo é uma tarefa complexa. Somente a própria pessoa conseguiria entender a sua realidade e para chegar a sua libertação de um mundo de culpa e destruição, precisaria entender as violências sociais e a desigualdade. Partindo disso, encontrará um certo conforto com intuito de conseguir liberdade das violências sofridas. O abuso sexual infantil pela America Latina não ocorre somente com crianças até certa idade estipulada pela legislação, ela também está inserida em homens mais velhos em frente de escolas aguardando adolescentes. Seduzem essas garotas com a intenção de manipulá-las, controlá-las e não darem oportunidade delas questionarem as violências que eles podem vim a praticar. Se até mesmo mulheres adultas podem sofrer tais violências dentro de um relacionamento, uma adolescente pode acabar sofrendo ainda mais até conseguir identificar o que está ocorrendo. Infelizmente muitas acabam não reconhecendo. Não são homens doentes que cometem essas coisas, são homens completamente saudáveis que, às vezes, têm até ajuda para conseguirem manter seus abusos. Você, seu pai, seu irmão, seu amigo, seu colega de trabalho ou seu chefe podem ser violadores. É impossível continuarmos acreditando que a polícia (construída por homens e integrada em grande parte por homens) possa realmente resolver algum problema que eles mesmo criaram e até praticam. Como já tinha dito no primeiro capítulo, só através da educação podemos diminuir as violências sociais na América Latina. Digo isso não somente direcionado às escolas de educação primárias ou secundárias, mas também direcionado juntamente às formações das pessoas em cargos superiores da administração estatal. Agradecimentos
A maioria da população brasileira é composta de
mulheres e a minha vida também. Obrigado a minha mãe, Silvia, a minha tia e madrinha, Maria, a minha avó, Lourdes, a minha tia, Márcia, as incríveis mulheres da ONG Serenas, as coordenadoras do SAICA e as minhas queridas amigas do dia a dia.
Nação tarja preta: O que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica (leia também Nação dopamina)