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SEROPÉDICA
2019
HEMYLSON PORTO DE SOUZA
SEROPÉDICA
2019
AGRADECIMENTOS
In the present work, we sought to clarify and analyze the legally possible degrees of
regulatory state intervention on the individual urban transport sector, in view of the new
panorama that has been shaped since the advent of Uber and the like. Above all, the
regulatory variables on market equilibrium in the sector in question (consumer
perspective and competition defense) were examined; and service regulation from the
perspective of urban balance (urban mobility, accessibility, land use and occupation, and
environment). The juridical-dogmatic parameters employed in the analysis were the
constitutional norms referring to the division of federative competences, and principles,
values and fundamental rights, applicable to the regulation of urban transport; and federal
laws No. 12,587 / 2012 and No. 10,233 / 2001, both regulating the transportation sector.
In addition to clarifying various nuances about the regulation of the activity in question,
the realization of the present work made it possible to technically delimit the distinction
between the legal regime of taxi services and that of Uber, as well as to indicate clear
limits to the restrictive regulation by the municipalities over them new services.
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11
CAPÍTULO 1. REGIME JURÍDICO CONSTITUCIONAL DOS TRANSPORTES ... 18
1. Transportes Urbanos ............................................................................................... 18
2. Transportes urbanos na distribuição de competências constitucionais .................. 20
2.1. competência legislativa concorrente nos transportes urbanos ......................... 25
3. Transporte urbano x transporte rural ...................................................................... 27
4. Os transportes urbanos intermunicipais nas regiões metropolitanas ...................... 30
5. Política Nacional de Transporte e Política Nacional de Mobilidade Urbana ......... 33
6. Transportes não urbanos ......................................................................................... 39
4.1. Transportes terrestres não urbanos .................................................................. 41
4.2. Transportes aquáticos ...................................................................................... 41
4.2. Transportes aéreos ........................................................................................... 43
CAPÍTULO 2. NÍVEIS DE INTERVENÇÃO ESTATAL SOBRE A ECONOMIA ... 45
1. Considerações iniciais ............................................................................................ 45
2. A definição do conceito de serviços públicos em face das outras atividades estatais
.................................................................................................................................... 49
3. Serviços públicos econômicos x atividades econômicas stricto sensu ................... 52
4. Atividades econômicas stricto sensu monopolizadas pelo Estado ......................... 55
5. Enquadramento legal das atividades concretas nas diferentes categorias .............. 57
6. Intervenção estatal sobre as atividades econômicas stricto sensu .......................... 60
6.1. A livre iniciativa como direito fundamental .................................................... 61
6.2 O núcleo essencial da livre iniciativa como limite à regulação ........................ 63
6.4. Autorizações administrativas ........................................................................... 67
CAPÍTULO 3. REGULAÇÃO DOS TRANSPORTES URBANOS, COM ÊNFASE NO
TRANSPORTE INDIVIDUAL DE PASSAGEIROS ................................................... 72
1. Considerações iniciais ............................................................................................ 72
2. Classificação dos transportes urbanos segundo a Lei nº 12.587/2012 ................... 72
2.1. Transporte urbano de passageiros.................................................................... 74
2.1.1. Transporte coletivo de passageiros ............................................................... 76
2.1.1.1. Transporte público coletivo ....................................................................... 76
2.1.1.2. Transporte privado coletivo ....................................................................... 77
2.1.2. Transporte individual de passageiros ........................................................... 78
2.1.2.1. Transporte público individual.................................................................... 79
2.1.2.2. Transporte privado individual ................................................................... 80
3. Regime jurídico do transporte urbano individual ................................................... 82
3.1. Competência federativa para a definição do transporte individual como sendo
serviço público ou atividade econômica stricto sensu ............................................ 82
3.2. Regimes jurídicos do transporte urbano individual: Táxi x Uber ................... 85
3.3. Regulação interfederativa em regiões metropolitanas ..................................... 88
3.4. Cobrança por parte dos Municípios pelo uso do sistema viário urbano .......... 89
4. Diretrizes regulatórias do setor de transportes aplicáveis ao transporte individual
do modelo Uber .......................................................................................................... 90
4.1. O direito fundamental ao transporte ................................................................ 91
4.2. Regulação do transporte individual na perspectiva do equilíbrio urbano e
ambiental ................................................................................................................ 94
4.2.1. Possíveis impactos do transporte individual sobre o sprawl urbano ............ 95
4.2.2. Impactos sobre o tráfego urbano e sobre a emissão de gases poluentes....... 96
4.2.3. Possíveis vantagens dos novos serviços de transporte individual para o
equilíbrio urbano .................................................................................................... 99
4.3. Regulação do transporte individual com fundamento no equilíbrio de mercado
.............................................................................................................................. 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 106
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 108
11
INTRODUÇÃO
1
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE Educa. Conheça o Brasil –
População: População rural e urbana. Disponível em <https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-
brasil/populacao/18313-populacao-rural-e-urbana.html>. Acesso em 28/11/2019.
2
SIMÕES, Celso Cardoso Silva. Breve histórico do processo demográfico. In: FIGUEIREDO, Adma
Hamam (org.). Brasil: Uma visão geográfica e ambiental no início do século XXI. IBGE, Coordenação de
Geografia, Rio de Janeiro, 2016, p. 42.
3
A propósito, em 2015, foi concluída uma auditoria pelo Tribunal de Contas da União, que tinha por
objetivo avaliar a governança da Política Nacional de Mobilidade Urbana - PNMU (instituída pela Lei nº
12.587/2012) nas cidades brasileiras por parte dos órgãos executivos da União. Neste sentido, os trabalhos
puderam identificar o seguinte panorama: “(1) Metas e indicadores incapazes de avaliar e medir o
progresso e alcance dos objetivos; (2) Objetivos e diretrizes da PNMU desconsiderados na seleção das
propostas de investimentos em mobilidade urbana; (3) Fragilidade na cooperação entre os entes federados
para a implementação da PNMU; (4) Falta de priorização dos modos de transporte não motorizados e dos
serviços de transporte público coletivo.” TRIBUNAL DE CONTAS D UNIÃO, Acórdão nº 2.430/2015-
TCU-Plenário; Data da sessão: 30/9/2015; Relator Ministro Augusto Nardes; TC: 020.745/2014-1.
Disponível em https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/politica-nacional-de-mobilidade-urbana.htm.
Acesso em: 16/09/2019. Nota-se, desse modo, a dificuldade do Poder Público em administrar a PNMU, a
qual foi instituída por lei federal no anterior ao das manifestações.
12
Percebe-se que a mobilidade urbana está mais associada ao modo pelo qual se
desenvolve os deslocamentos de pessoas ou cargas, geralmente considerando-se aspectos
de qualidade, como o conforto nos veículos, qualidade das vias, segurança, e, sobretudo,
o tempo de deslocamento. Já a acessibilidade refere-se principalmente à autonomia das
pessoas em se deslocar para os destinos desejados, exigindo-se, para isso, a
disponibilidade de diferentes modos de transportes, sua integração, e a facilidade de
acesso a cada um deles.
Em grande parte das vezes, e com razão, o tema da acessibilidade é tratado com
especial atenção às pessoas portadoras de deficiência física. Não obstante, o conceito é
ainda mais amplo, aplicando-se a qualquer pessoa, no exercício do seu direito de ir e vir
(art. 5º, XV, da CRFB)4, que nos dias atuais, depende muito do acesso aos serviços de
transporte urbano.
4
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XV - é livre a locomoção no território nacional em
13
Deste modo, fica claro que a crise da mobilidade urbana, há pouco mencionada,
relaciona-se mais diretamente aos problemas de “imobilidade” causados, sobretudo,
pelos longos congestionamentos vivenciados nas grandes cidades. Já o problema na
acessibilidade refere-se à carência de alternativas de modos de transporte que se adequem
melhor às necessidades de cada pessoa, comprometendo-se, assim, a autonomia no
exercício da liberdade de locomoção.
Este discernimento introdutório é imprescindível para uma compressão mais
realista acerca dos principais problemas associados ao setor dos transportes urbanos,
sobretudo após advento da nova modalidade de negócios para a exploração do
transporte individual.
Trata-se dos serviços mediados por empresas do ramo da tecnologia, a exemplo da
Uber, da 99, e da Cabify. O nicho de mercado que, até então, era operado exclusivamente
pelo serviço de táxi, agora passa a ser explorado mediante um regime de pareceria entre
estas empresas e motoristas autônomos. Apenas usuários e motoristas previamente
cadastrados nas plataformas digitais das empresas (mediadas por aplicativos de
smartphones) podem participar do serviço.
A rápida expansão desta atividade, iniciada no Brasil em 2014, gerou a resistência
dos operadores de táxis, que alegaram se tratar de concorrência desleal, pressionando os
governantes de algumas cidades a proibirem a atividade. A Uber e as outras empresas do
ramo, por outro lado, aduziram argumentos baseados no princípio da livre iniciativa
contra a ação hostil de alguns governos, o que levou a questão para apreciação do
Supremo Tribunal Federal5. Por fim, antes mesmo da decisão do STF, tendo em vista a
insegurança jurídica que se instaurou na seara do transporte urbano individual, o
Congresso Nacional, em 2018, editou a Lei nº 13.360/2018, que alterou a Lei nº
12.587/2012 (Lei da Mobilidade Urbana), regulamentando os serviços do tipo Uber.
Sendo assim, é fato que hoje estes novos serviços já são uma realidade no Brasil.
Segundo informações fornecidas pela Uber, por exemplo, a empresa opera em mais de
100 cidades brasileiras, com mais de 600 mil motoristas parceiros e mais de 22 milhões
tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus
bens;” (grifo acrescido)
5
Em maio de 2019, o STF decidiu pela constitucionalidade dos serviços do tipo UBER. “A proibição ou
restrição do transporte individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional em razão da
violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. (...) No exercício de sua competência
para a regulamentação e fiscalização no transporte privado individual de passageiros, os municípios e os
distritos federais não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador Federal”. RE 1.054.110 e
ADPF 449.
14
6
UBER BRASIL. Newsroom. Uber completa 5 anos de Brasil com 2,6 bilhões de viagens realizadas.
17/07/2019. Disponível em <https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/uber-completa-5-anos-de-brasil-
com-26-bilhoes-de-viagens-realizadas/>. Acesso em 28/11/2019. A matéria ainda traz outros dados
interessantes: “Usuários já pagaram mais de 35 milhões de reais em valores extras aos motoristas parceiros,
como forma de reconhecer um bom serviço; (...) Sexta-feira, às 19h, é o período em que mais acontecem
viagens em todo o país;”
7
Abre-se o setor à livre concorrência, tanto para a entrada de novos motoristas, quanto para a entrada de
novas empresas mediadoras, como a Uber.
8
Conforme será analisado nos capítulos adiante, o ordenamento jurídico aplicável ao setor de transportes
tem como uma de suas diretrizes regulatórias, o estímulo a redução do uso do transporte individual nas
grandes cidades.
9
Por outro lado, também existem diretrizes previstas nas leis que orientam a intervenção regulatória no
sentido de garantir maior autonomia de escolha de modos de transporte para as pessoas, mediante a
disponibilização de alternativa de serviços.
15
À Ciência Jurídica, por outro lado, cabe reflexões acerca de cada uma destas
questões centrais, mas não com o intuito de encontrar respostas definitivas. A questão,
por exemplo, referente aos impactos negativos e positivos da Uber e similares sobre o
equilíbrio urbano deverá ser respondida com base em estudos empíricos a cargo das outras
ciências. Ocorre que a regulação jurídica das atividades econômicas nem sempre pode
aguardar pelos esclarecimentos que a pesquisa científica possa oferecer, haja vista o
dinamismo das transformações socioeconômicas. E não é só isso. Ainda que seja
desejável o respaldo científico para a tomada de decisão política no processo legislativo,
inclusive no âmbito da regulação setorial do domínio econômico, nem sempre a Política
e a Ciência caminham juntas. Mas é fato que o ordenamento jurídico vigente, e,
principalmente, a Constituição Federal de 1988, impõem limites em relação aos graus e
aos modos de intervenção regulatória do Estado sobre o domínio econômico.
Sendo assim, cabe à Ciência Jurídica esclarecer e analisar os limites e níveis
possíveis de ingerência regulatória permitidos pelo ordenamento jurídico brasileiro,
sobretudo considerando-se a sistemática, os princípios, os valores e os direitos
fundamentais que a Constituição Federal fez incidir sobre cada atividade econômica.
Por meio desta abordagem jurídico-dogmática, propõe-se, no presente trabalho, uma
análise dos limites e diretrizes regulatórios referentes ao setor de transporte urbano
individual, tendo em vista o novo panorama que vem se configurando a partir do advento
da Uber e similares. Serão examinadas, sobretudo, as variáveis regulatórias acerca do
equilíbrio de mercado no setor em tela (perspectiva do consumidor e da defesa da
concorrência); e a regulação do serviço na perspectiva do equilíbrio urbano (mobilidade
urbana, acessibilidade, uso e ocupação do solo, e meio ambiente). De modo a cumprir
tal proposta, a abordagem do tema está dividida em três capítulos.
No capítulo 1, o objetivo central será o de situar e especificar o transporte urbano
a partir de um contexto mais amplo dos transportes em geral, que englobam tantos os
transportes urbanos, como os de percurso mais amplo (intermunicipal, interestadual e
internacional). Neste ponto, entende-se adequado que se inicie a reflexão sob a
perspectiva da Constituição Federal de 1988, analisando a repartição de competências
federativas na matéria, além de outras disposições constitucionais aplicáveis. Em seguida,
após a caracterização do regime jurídico-constitucional dos transportes urbanos, o
capítulo trará uma visão panorâmica do sistema nacional de transporte, permitindo situar
os transportes urbanos neste contexto, bem como visualizar a sua relação com outras
modalidades apresentadas (transportes não urbanos).
16
O Capítulo 2, a seu turno, tem como tema central o estudo conceitual, sob a
perspectiva jurídico-dogmática, dos diferentes níveis de intervenção do Estado sobre o
domínio econômico. Primeiramente, serão tratados os diferentes modelos de Estado, com
base nesta gradação interventiva. Em seguida, a abordagem buscará delimitar as
atividades econômicas com reserva de titularidade estatal (inclusive os serviços públicos)
e aquelas cujo exercício é baseado na livre iniciativa (atividade econômica em sentido
estrito), tratando-se de esclarecer o sentido adotado neste trabalho para o conceito de
serviços públicos, haja vista a falta de consenso da doutrina acerca desta terminologia.
Por fim, as atenções serão voltadas para as atividades econômicas stricto sensu,
analisando-se os mecanismos regulatórios previstos no ordenamento jurídico brasileiro,
especialmente as autorizações de funcionamento. A delimitação conceitual das categorias
estudadas neste capítulo mostra-se indispensável para a qualidade técnica da análise sobre
a regulação de qualquer setor da economia.
Por derradeiro, no Capítulo 3, busca-se realizar o objetivo principal do presente
trabalho: o estudo sobre a regulação do setor de transporte urbano individual. Não entanto,
é necessária a delimitação desta modalidade específica dentre outros tipos de transporte
urbano previstos na Lei nº 12.587/2012 (transporte de cargas, transporte coletivo público
e privado, etc.). Feito isto, o transporte individual passará a ser o foco de análise,
iniciando-se pela distinção do regime jurídico do serviço de táxi e o da Uber e similares.
Em seguida, a regulação destes últimos será examinada com base nas diretrizes acerca do
equilíbrio urbano, e depois com base nas diretrizes do equilíbrio de mercado, conforme
mencionado há pouco.
A metodologia utilizada foi baseada no método dedutivo, partindo-se de bases
gerais (doutrinárias, pesquisadas na literatura jurídica; jurisprudência; normas jurídicas;
dados estatísticos oficiais; e matérias jornalísticas), para o enquadramento teórico-
jurídico das categorias específicas (o transporte urbano individual, especialmente o
serviço Uber e similares). A literatura adotada é composta por livros doutrinários de
autores nacionais, sobretudo nos ramos do Direito Administrativo, Constitucional,
Econômico e Urbanístico; e também por artigos científicos obtidos em revistas
especializadas do ramo jurídico e econômico, na maioria dos casos, com no máximo 5
anos de publicação. A pesquisa bibliográfica teve como foco principal a doutrina e as
normas jurídicas, utilizando-se muito pouco a jurisprudência (utilizou-se, algumas poucas
vezes, a página de pesquisa jurisprudencial do sítio eletrônico do Supremo Tribunal
17
Federal, com base no período a partir de 2014, quando a Uber iniciou suas operações no
Brasil).
18
1. Transportes Urbanos
“As classificações não são nem verdadeiras nem falsas, são funcionais ou
inúteis; suas vantagens ou desvantagens dependem do interesse que guia quem
as formula, e a sua fecundidade para apresentar uma área de conhecimento
de maneira mais facilmente compreensível ou mais rica das consequências
práticas desejadas pelo autor que as elabora. Sempre há múltiplas maneiras
de agrupar ou classificar um campo de relações ou de fenômenos; o critério
10
Assunto a ser trabalhado no próximo capítulo.
11
Tema a ser trabalhado no terceiro capítulo.
12
Não obstante, busca-se neste trabalho caracterizá-las em conformidade com o ordenamento jurídico.
19
para se decidir por uma delas é dado apenas por critérios de conveniência
científica, didática ou prática”.”13
13
CARRIÓ, Genaro R. apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. Editora
Fórum, 4 ed., 2017, Edição do Kindle (Locais do Kindle: p. 4035-4041). Ressalta-se que, na obra,
Alexandre Aragão concorda com o posicionamento do autor citado.
20
14
Além da menção feita pelo art. 21, XX, da CRFB, ao termo “transportes urbanos” , a definição legal
destes termos encontra-se na LPNMU (Lei nº 12.587/2010): “Art. 4º Para os fins desta Lei, considera-se: I
- transporte urbano: conjunto dos modos e serviços de transporte público e privado utilizados para o
deslocamento de pessoas e cargas nas cidades integrantes da Política Nacional de Mobilidade Urbana; II -
mobilidade urbana: condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano;
(grifo acrescentado)
15
Além da referência feita pelo art. 21, XX, e pelo art. 182, caput, da CRFB, ao termo “desenvolvimento
urbano” (que será discutido a seguir), há também menção legal a este termo no Estatuto da Cidade (Lei nº
10.257/2001): “Art. 3o Compete à União, entre outras atribuições de interesse da política urbana: (...) IV -
instituir diretrizes para desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico, transporte e
mobilidade urbana, que incluam regras de acessibilidade aos locais de uso público;
16
Por exemplo, o direito urbanístico e as regiões metropolitanas, conforme será visto adiante, são conceitos
que englobam de alguma forma o setor de transportes urbanos.
17
GUIMARÃES, Geraldo Spagno. Comentários à Lei de Mobilidade Urbana – Lei nº 12.587/12:
Essencialidade, sustentabilidade, princípios e condicionantes do direito à mobilidade. Editora Fórum, 2012.
Edição do Kindle (Local do Kindle: p. 2180)
21
18
Muito embora o art. 182, caput, também preveja competência legislativa da União para fixar diretrizes
gerais sobre a política de desenvolvimento urbano.
22
19
Os transportes urbanos incluem-se como um dos elementos do desenvolvimento urbano, conforme as já
citadas redações do artigo 21, XX, da CRFB, e do artigo 3 o, IV, do Estatuto da Cidade.
20
Segundo José Afonso da Silva, “o princípio geral que norteia a repartição de competência entre as
entidades componentes do Estado federal é o da predominância do interesse, segundo o qual à União
caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados
tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os
assuntos de interesse local, (...)”. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo.
Malheiros Editores, 2014, p. 482.
23
transportes em geral (e também sobre trânsito). Enquanto que o art. 21, XX, e o art. 182,
caput, determinam à União a instituição de diretrizes para o desenvolvimento urbano, o
que inclui o transporte urbano, o art. 22, XI, trata de transportes em geral, valendo tanto
para transportes urbanos quanto para transportes não urbanos. Este dispositivo (art. 22,
XI, da CRFB) será retomado na “seção 3” deste capítulo, mas vale lembrar, por hora, que
existe a possibilidade de delegação desta competência da União para os Estados, mediante
lei complementar, para legislar sobre questões específicas das matérias listadas no artigo
22, inclusive trânsito e transportes (art. 22, parágrafo único, da CRFB)21.
Prosseguindo, como se observou no artigo 24, I, ao atribuir à União, aos Estados e
ao DF, a competência concorrente para legislar sobre direito urbanístico, a Lex Mater
possibilitou que, em algum grau, estes entes políticos possam legislar sobre transportes
urbanos, por ser este um dos temas abordados pelo direito urbanístico. No entanto, em
conformidade com o princípio da predominância do interesse, certamente não será
cabível ao Estado legislar sobre transportes em assuntos que digam respeito apenas ao
âmbito local22-23.
Nada obstante, sabe-se que os aspectos que caracterizam a urbe muitas vezes
ultrapassam os limites territoriais do município, alcançando outros. É o que ocorre no
caso das metrópoles24, situação que certamente atrairá a incidência da competência de
interesse regional dos Estados e DF, para legislar, no que couber, sobre direito
urbanístico, inclusive transportes urbanos. Neste sentido, o artigo 25, §3º, da CRFB,
atribuiu aos Estados a competência para, mediante lei complementar, instituir regiões
metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos
de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de
funções públicas de interesse comum. Este assunto será retomado em maiores detalhes
adiante, merecendo uma subseção dentro desta seção, que trata de transportes urbanos.
Por hora, deve-se apenas ressaltar que regulações e planejamentos sobre transportes
21
“Art. 22. (...) Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões
específicas das matérias relacionadas neste artigo.”
22
Não se olvide o art. 30, I, da CRFB, no qual atribui-se aos municípios a competência exclusiva para
legislar sobre assuntos de interesse local;
23
Anote-se, inclusive, as regras sobre predominância do interesse em legislar, previstas nos parágrafos
do art. 24.
24
Conforme a Lei nº 13.089, de 2015 (Estatuto da Metrópole), entende-se por metrópole o “espaço urbano
com continuidade territorial que, em razão de sua população e relevância política e socioeconômica, tem
influência nacional ou sobre uma região que configure, no mínimo, a área de influência de uma capital
regional, conforme os critérios adotados pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -
IBGE;”
24
urbanos estão incluídos, no que couber, na esfera de competência dos Estados, à qual se
refere o art. 25, § 3º, da Constituição de 1988.
Em relação às competências municipais, além do art. 182, que confere ao Poder
Público municipal a atribuição de executar a política de desenvolvimento urbano (que
inclui os transportes urbanos), mediante, dentre outros instrumentos, a implantação do
plano diretor, há também as disposições do art. 30, da CRFB. Em primeiro lugar, o inciso
I, deste artigo, prevê a competência dos municípios para legislar sobre assuntos de
interesse local. Embora nem sempre haja um limite claro entre o que seja interesse local,
regional e nacional, fato é que deve-se respeitar o princípio da predominância do
interesse. No caso dos transportes, as competências municipais serão tratadas em detalhes
no “Capítulo 2”, o qual adentrará nas diretrizes regulatórias previstas na Lei de Política
Nacional de Mobilidade Urbana. Tendo em vista que a regulação municipal sobre o setor
em tela deve estar alinhada a estas diretrizes, maiores detalhes serão abordados no
próximo capítulo. Neste momento, é suficiente que, além do inciso I, do art. 30, da CRFB,
também se faça alusão a outros dois incisos deste mesmo artigo. O inciso II, prevendo
que “compete aos Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que
couber”, possui praticamente o mesmo sentido do inciso I, pois suplementar a legislação
federal e estadual “no que couber” corresponde justamente à competência de legislar
sobre assuntos de interesse local. O outro dispositivo que não se deve olvidar é o inciso
V, deste mesmo artigo, que trata da competência material dos Municípios para prestar e
organizar serviços públicos de interesse local, ressaltando expressamente a essencialidade
do serviço público de transporte coletivo. Percebe-se que este último dispositivo já traz
algumas subcategorias nas quais os transportes urbanos podem ser enquadrados: a
modalidade de serviço público; e a modalidade de transporte coletivo. Evidentemente,
são duas modalidades baseadas em critérios distintos. Não obstante, estas subcategorias
serão tratadas no “Capítulo 2” deste trabalho.
Por fim, deve-se consignar que a verificação destes parâmetros constitucionais,
acerca da distribuição de competências em matéria de transportes urbanos, é
indispensável para a análise dos diferentes níveis de regulação estatal nesta área. É que
num Estado federativo, os diferentes setores da economia podem ser passíveis da
ingerência regulatória exercidas por diferentes entes políticos (União, Estados e
Municípios, no caso do Brasil). Sendo assim, no capítulo 3, quando as nuances
regulatórias referentes aos transportes urbanos forem mais detidamente examinadas, estes
parâmetros acerca das competências deverão ser cuidadosamente considerados.
25
25
Isto não se aplica apenas aos transportes urbanos, mas também ao desenvolvimento urbano, que consiste
em um conceito mais amplo e que engloba os transportes urbanos, conforme se tem demonstrado.
26
“Manter”; “declarar”; “assegurar”; “permitir”; “decretar”; “autorizar”; “fiscalizar”; “emitir” moeda;
“administrar”; dentre outros.
27
No mesmo sentido, é o que ocorre com o inciso seguinte (inciso XXI, do art. 21, da CRFB): “estabelecer
princípios e diretrizes para o sistema nacional de viação;”
28
“Realmente, não conseguimos encontrar no vigente quadro constitucional respaldo para admitir-se a
edição de regulamentos autônomos. Está à mostra em nosso sistema político que ao Executivo foi apenas
conferido o poder regulamentar derivado, ou seja, aquele que pressupõe a edição de lei anteriormente
promulgada, que necessite do seu exercício para viabilizar a efetiva aplicação de suas normas.”
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Editora Atlas, 31 ed., São Paulo,
2017, p. 66.
29
O decreto autônomo, previsto no art. 84, VI, da CRFB, embora constitua exceção de ato administrativo
com fundamentação direta na Lei Maior, não são propriamente regulamentos, pois estes constituem atos
normativos (gerais e abstratos), enquanto que aqueles possuem a característica de atos concretos, lhes
faltando o caráter regulamentar.
26
fiel execução;”. Para o mesmo sentido, aponta o art. 49, V, da CRFB: “É da competência
exclusiva do Congresso Nacional: (...) V - sustar os atos normativos do Poder Executivo
que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.
Ato contínuo, deve-se consignar que o artigo 182, ao tratar, em parte, do mesmo
assunto que o art. 21, XX, sobre desenvolvimento urbano, deixou claro que as diretrizes
gerais deverão ser fixadas em lei (lei federal). Sendo assim, a LPNMU (lei nº
12.587/2012), em seu art. 1º, caput, afirma ser a Política Nacional de Mobilidade Urbano
o instrumento da política de desenvolvimento urbano de que tratam o art. 182 e o inciso
XX do artigo 21, ambos da CRFB30.
Diante destes fatos, fica bastante claro que o art. 21, em seu inciso XX, da CRFB,
prevê hipótese de competência legislativa da União, e não de competência
administrativa, indo ao encontro da previsão do caput, do art. 182. Além disso, o mesmo
artigo 21, XX, prevê a exclusividade da União somente em relação à regulamentação
geral de interesse nacional (instituição de diretrizes gerais) acerca do tema
desenvolvimento urbano (incluindo os transportes urbanos). No entanto, ao se considerar
o assunto desenvolvimento urbano (ou transportes urbanos) no âmbito do sistema
federativo de repartição de competências, não resta dúvida de que esta é uma matéria de
competência legislativa concorrente31-32, entre União, Estados, DF e Municípios,
conforme o predomínio do interesse regulatório (interesse local, regional ou nacional).
Anote-se, ainda, que à cada competência legislativa atribuída a qualquer ente
político, sempre corresponderá a competência administrativa deste mesmo ente para
fiscalizar o cumprimento de suas leis. Fora isso, no tocante às competências
administrativas sobre transportes urbanos, repise-se que a Carta Política de 1988 trouxe
expressamente as seguintes atribuições: aos Municípios para “organizar e prestar,
30
O referido diploma legal poderia ser considerado como o “Estatuto da Mobilidade Urbana”, que veio
justamente para trazer a regulação geral sobre a matéria, incumbência da União. Não obstante, uma vez
preenchido este espaço de conformação legislativa por este ente político, cabem aos outros entes
(Municípios, Estados e DF) legislarem sobre os aspectos da matéria que lhe couberem., conforme a
predominância do interesse.
31
Este mesmo entendimento é sustentado pelo professor Geraldo Spagno Guimarães, e, segundo ele, a
mesma tese é também pelo professor Uadi Lamêgo Bulos. Op. Cit. (Local do Kindle: p. 2191). Porém, no
meu entender, o autor não deixa claro que concorrente é a competência sobre o tema dos transportes
urbanos, e não a atribuição literal prevista no dispositivo, que expressamente prevê como exclusiva da
União a competência de instituir diretrizes (normas e orientações gerais acerca do assunto).
32
Além dos dispositivos examinados, não se olvide o art. 24, I, da CRFB, que prevê como competência
concorrente o ato de legislar sobre direito urbanístico. Embora o artigo estenda a competência concorrente
apenas à União, Estados e DF, a sua leitura deve estar associada à leitura do art. 30, I (competência dos
municípios para legislar sobre assuntos de interesse local), e, também, do inciso II, deste mesmo artigo
(competência do município para suplementar a legislação federal e estadual no que couber).
27
Diante do que já foi discutido, neste momento já deve ter ficado claro que o
delineamento jurídico infraconstitucional acerca dos transportes urbanos inicia-se pela
lei federal nº 12.587/2012 (Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana – LPNMU).
Conforme o entendimento já exposto, trata-se da regulação geral decorrente da
competência legislativa da União, dado o caráter mais nacional/geral abordado pela lei,
que tem por objetivo conferir diretrizes para a regulação a ser exercida por parte dos
outros entes políticos.
Nada obstante, do fato da LPNMU expressamente se referir à mobilidade
“urbana”/transportes “urbanos” decorre o seguinte questionamento: se a lei nº 12.587,
de 3 de janeiro de 2012, institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana,
seria este diploma legal aplicável aos transportes situados estritamente na região rural do
Município?
28
“Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico
da política de desenvolvimento e expansão urbana.
(...)
§ 2o O plano diretor deverá englobar o território do Município como um
todo.” (grifo acrescido)
33
Abordagem já empregada desde os tempos da Roma Antiga. CARVALHO FILHO, José dos Santos.
Comentários ao Estatuto da Cidade. Editora Lumen Juris, 3 ed., 2009, p. 3.
29
Para fechar esta questão, interessante trazer as lições do professor José dos Santos
Carvalho Filho acerca da integração das zonas urbana e rural, no âmbito da política
municipal de desenvolvimento urbano:
34
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. Editora Lumen Juris, 3
ed., 2009, p 29-30.
30
Feita estas ponderações, e, para que se evite confusões a respeito dos termos aqui
empregados, que fique consignado, desde já, que o termo “transporte urbano” será usado
para se referir aos transportes sobre os quais se aplica a Lei de Política Nacional de
Mobilidade Urbana. Logo, conforme acabou de se discutir, estão aí incluídos os
transportes rurais realizados no âmbito do território municipal. Seria possível optar-se
pelo emprego de termos que distinguissem as duas categorias, v. g., “transporte urbano
municipal “e “transporte rural municipal”. Entretanto, entende-se improdutiva tal opção,
primeiro porque a própria LPNMU não trata dessas duas categorias de modo apartado,
sendo, portanto, as suas normas aplicáveis a ambos os casos, no que couber. Em segundo
lugar, o termo “transporte urbano” tem sido frequentemente utilizado para discernir o
setor sobre o qual se aplica a competência municipal (e também a competência dos outros
entes, conforme já afirmado), discernindo-o dos transportes cuja competência regulatória
seja somente atribuída aos Estados, ao DF e à União. Nesta acepção comum, subtende-se
estar incluído neste termo os transportes municipais rurais. Portando, que fique claro que
será dessa forma que o termo “transporte urbano” será aqui empregado.
35
Até certo ponto, a LPNMU não deixou de considerar o caráter urbano do transporte intermunicipal,
interestadual, e, até mesmo, do transporte internacional, quando realizado em municípios limítrofes
localizados em Estados ou em países diferentes (neste caso, as chamadas cidades gêmeas, localizadas em
fronteiras), desde que a região apresente características urbanas. Entretanto, este tratamento especial
adotado pela LPNMU se deu somente em relação ao transporte público coletivo. É o que está
expressamente previsto no art. 26: “Esta Lei se aplica, no que couber, ao planejamento, controle,
fiscalização e operação dos serviços de transporte público coletivo intermunicipal, interestadual e
internacional de caráter urbano.” (grifo acrescido). Já os incisos XI, XII e XIII, do art. 4º, da mesma lei,
define cada uma dessas modalidades de transporte público coletivo de caráter urbano (intermunicipal,
interestadual e internacional, respectivamente). Por fim, a Lei da Mobilidade Urbana ainda tratou da
possibilidade de delegação, mediante convênio ou consórcio, do transporte público coletivo interestadual
e internacional da União para os Estados, D.F. ou Municípios (art. 16, § 2º); e do transporte público
coletivo intermunicipal dos Estados para os Municípios (art. 17, parágrafo único). De todo modo, deve-se
consignar que a ideia que será defendida nesta seção é mais abrangente, pois, não será aplicada apenas
ao transporte público coletivo, mas à categoria dos transportes urbanos como um todo, abrangendo o
transporte coletivo ou individual, público ou privado.
36
Isto também vale para as aglomerações urbanas e microrregiões, conforme o dispositivo constitucional
mencionado.
32
(...)
§ 1º Em Municípios acima de 20.000 (vinte mil) habitantes e em todos os
demais obrigados, na forma da lei, à elaboração do plano diretor, deverá ser
elaborado o Plano de Mobilidade Urbana, integrado e compatível com os
respectivos planos diretores ou neles inserido.
§ 2º Nos Municípios sem sistema de transporte público coletivo ou individual,
o Plano de Mobilidade Urbana deverá ter o foco no transporte não motorizado
e no planejamento da infraestrutura urbana destinada aos deslocamentos a pé
e por bicicleta, de acordo com a legislação vigente.
§ 3º O Plano de Mobilidade Urbana deverá ser compatibilizado com o plano
diretor municipal, existente ou em elaboração, no prazo máximo de 6 (seis)
anos da entrada em vigor desta Lei.
(...)”37 (grifo acrescido)
37
Lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012 (LPNMU).
38
Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole).
39
Segundo a Lei nº 13.089/2015: “Art. 2º Para os efeitos desta Lei, consideram-se: (...) IV – governança
interfederativa: compartilhamento de responsabilidades e ações entre entes da Federação em termos de
organização, planejamento e execução de funções públicas de interesse comum; (...) Art. 6º A governança
interfederativa das regiões metropolitanas e das aglomerações urbanas respeitará os seguintes princípios:
(...) III – autonomia dos entes da Federação; (...)” (grifo acrescido)
33
diretores de cada Município deverão estar alinhados à política metropolitana (art. 10, §
3º, do Estatuto da Metrópole), mas, tendo em vista que as políticas municipais de
mobilidade urbana deverão ser compatibilizadas com os respectivos planos diretores
(art. 24, § 3º, da LPNMU), logo, impõe-se concluir que, em última análise, a política de
mobilidade urbana de cada Município deverá se adequar à política metropolitana.
No entanto, isto não permite que o Estado interfira na autonomia municipal sobre a
política local de mobilidade urbana (art. 6º, III, do Estatuto da Metrópole), muito embora
haja alguma ingerência indireta, pois o Estado participa, junto com os Municípios, da
elaboração do planejamento metropolitano, que vincula a política de mobilidade urbana
local, conforme se demonstrou. Pelo mesmo motivo, embora a competência federativa
sobre os transportes intermunicipais seja atribuição estadual, no âmbito do planejamento
metropolitano haverá participação dos Municípios em algum grau de regulação, atraindo,
assim, para esta modalidade de transporte, a incidência da LPNMU.
Portanto, esta é a ressalva que precisa ser feita em relação aos transportes
intermunicipais, pois não deixarão de ser considerados como transportes urbanos
quando situados no âmbito de região metropolitana legalmente instituída pelo Estado.
Dito isto, deve-se ressaltar que, neste trabalho, sempre que houver referência à
categoria dos transportes urbanos, entenda-se que estão aí incluídos tanto os transportes
municipais (urbanos e rurais, conforme já apontado) quanto os transportes
intermunicipais das regiões metropolitanas40.
40
Neste último caso (regiões metropolitanas), por extensão do raciocínio, também estarão incluídos na
categoria dos transportes urbanos os transportes intermunicipais rurais.
34
Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e
terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar
os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.
Diante do exame das normas, fica claro que, conforme acabou de ser apontado, a
Carta Maior atribui à União a competência para a edição de normas gerais sobre
transporte. Mais uma vez, faz-se remissão ao princípio da predominância do interesse,
pois a regulamentação mais geral de determinado setor, numa Federação, tende a traduzir
um interesse de caráter nacional. No entanto, não se deve olvidar a possibilidade que o
parágrafo único, do art. 22, estende aos Estados para legislar sobre questões específicas
das matérias relacionadas no artigo, desde que haja, mediante lei complementar,
autorização prévia para tanto41. Desse modo, considerando os dois incisos do artigo 22,
da CRFB, colacionados acima (incisos IX e XI), os Estados poderão, desde que haja
autorização prévia em lei complementar, legislar sobre questões específicas referentes a
trânsito e a transportes, inclusive sobre as diretrizes da Política Nacional de
Transporte42.
41
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...)
Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das
matérias relacionadas neste artigo.” (CRFB)
42
Questões de interesse regional, diga-se de passagem, conforme o princípio da predominância do
interesse.
35
Ademais, faz-se aqui, em relação ao art. 21, XXI, a mesma ressalva que se fez
alhures acerca do inciso XX, do mesmo artigo, da CRFB. Neste sentido, repisa-se que se
trata de competência legislativa da União, e não de competência administrativa, já que
não se admite regulamento autônomo no ordenamento jurídico brasileiro. Desse modo,
esta competência (legislativa) foi exercida pela União mediante a edição da lei nº
12.379/201143.
43
Inclusive a própria lei nº 12.379/2011 prevê disposição neste sentido: “Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o
Sistema Nacional de Viação - SNV, sua composição, objetivos e critérios para sua implantação, em
consonância com os incisos XII e XXI do art. 21 da Constituição Federal.”
44
Entendo ser válida afirmação sobre a maior abrangência da PNT em relação ao da PNMU apenas
considerando-se, para esta comparação, tão somente o transporte. Isso se justifica pelo fato de que a PNMU
se refere à mobilidade urbana, conceito que inclui outros aspectos além do transporte, v. g., o controle de
tráfego, além da PNMU também tratar de acessibilidade. Veja-se, in verbis, a definição de mobilidade
urbana e de acessibilidade pela LPNMU: “Art. 4º Para os fins desta Lei, considera-se: (...) II - mobilidade
urbana: condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano; III -
acessibilidade: facilidade disponibilizada às pessoas que possibilite a todos autonomia nos deslocamentos
desejados, respeitando-se a legislação em vigor;” (grifo acrescido)
36
CRFB). Mesmo evitando-se entrar em detalhes, não é difícil perceber que, conforme
afirmado, os transportes urbanos (além dos não urbanos) estão incluídos no âmbito
destas normas (constitucionais e infraconstitucionais).
A lei nº 10.233/ 2011, por exemplo, embora tenha maior foco sobre o transporte
interestadual e internacional (especificamente nos transportes terrestres e aquáticos),
inclui no Sistema Nacional de Viação (SNV) a infra-estrutura viária e a estrutura
operacional dos diferentes meios de transporte de pessoas e bens, que estejam sob
jurisdição dos Municípios, Estados e DF45. Essas estruturas sob jurisdição do Município,
a princípio, servem ao transporte urbano. Nota-se, então, que o SNV trata de aspectos
operacionais e estruturais dos transportes em geral, incluindo os associados ao transporte
urbano. Interessante ressaltar que estas disposições específicas da lei nº 10.233/2011,
referentes aos Municípios, correspondem ao previsto no art. 3º, caput, da LPNMU, que
trata justamente dos aspectos estruturais e operacionais da PNMU, que traduz o
Sistema Nacional de Mobilidade Urbana (SNMU)46. Daí, fica claro que as normas
constitucionais genéricas, abordadas nesta seção, tratam tanto dos transportes urbanos
quanto dos não urbanos. As referidas leis federais regulam as normas constitucionais em
tela.
Ato contínuo, a lei nº 12.379/2011 traz disposições nesta mesma linha de
entendimento, ou seja, deixando claro ser aplicável tanto aos transportes urbanos quanto
aos não urbanos (art. 2°, § 1º), ainda que o foco principal seja sobre a regulação do
Sistema Federal de Viação (SFV)47. Ainda assim, o referido diploma legal traz um
capítulo regulando exclusivamente os sistemas de viação dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios (CAPÍTULO IV, artigos 38 ao 40).
De modo a facilitar a visualização das relações entre o SNV (Sistema Nacional de
Viação, incluindo sistemas federal, estaduais e municipais de viação) e o SNMU (Sistema
Nacional de Mobilidade Urbana), colaciona-se abaixo dois esquemas ilustrativos.
45
Conforme a lei nº 10.233/ 2011: “Art. 2º. O Sistema Nacional de Viação – SNV é constituído pela infra-
estrutura viária e pela estrutura operacional dos diferentes meios de transporte de pessoas e bens, sob
jurisdição da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”
46
Lei nº 12.587/2012: “Art. 3º O Sistema Nacional de Mobilidade Urbana é o conjunto organizado e
coordenado dos modos de transporte, de serviços e de infraestruturas que garante os deslocamentos de
pessoas e cargas no território do Município.” O tema será retomado em detalhes no Capítulo 2.
47
Lei nº 12.379/2011: “Art. 2º O SNV é constituído pela infraestrutura física e operacional dos vários
modos de transporte de pessoas e bens, sob jurisdição dos diferentes entes da Federação.
§ 1º Quanto à jurisdição, o SNV é composto pelo Sistema Federal de Viação e pelos sistemas de viação
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.” (grifo acrescido) O SFV está mais associado aos
transportes não urbanos, de competência administrativa apenas da União.
37
em parte, os diplomas legais que regulam os transportes em geral (baseados nos artigos
21, XXI, 22, IX e XI e 178, da CRFB)48.
Ademais, ainda que não se trate especificamente sobre transporte, mas sobre
trânsito49, também não se pode deixar se fazer nota ao Código de Trânsito Brasileiro (lei
nº 9.503, de 23 de setembro de 1997) que é a norma vigente reguladora da primeira parte
do art. 22. XI, da CRFB. Fato é que, embora este tema trate de aspectos que vão além do
âmbito estrito dos serviços de transporte50, não há como negar que trânsito e transporte
são temas intimamente ligados, pois o segundo, para que se realize com qualidade,
depende da regulação do primeiro; o controle do trânsito, por outro lado, pressupõe a
existência do transporte. Tanto é assim que o legislador constituinte elencou os dois temas
num mesmo dispositivo (art. 22. XI, CRFB).
Por fim, é importante ressaltar que é indispensável o correto entendimento sobre os
temas tratados neste subseção, como a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU),
a Política Nacional de Transportes (PNT), o Sistema Nacional de Viação, o Sistema
Nacional de Mobilidade Urbana, a regulação sobre trânsito, pois, além de incidirem
diretamente na regulação dos transportes urbanos, apresentam regras sobre a delimitação
de competências regulatórias dos diferentes entes federativos. Conforme será abordado
no capítulo 3, estas matérias constituem parâmetros específicos para a regulação setorial
dos transportes.
48
Cabe aqui uma nova remissão à obra de Geraldo Spagno Guimarães, quando o professor compara as
competências previstas nos artigos 21, XX e 22, XI, da CRFB: “Por isso, é necessário um registro
importante para discernir entre o que a Constituição dispõe no artigo 21, XX e no artigo 22, XI. No
primeiro caso o alvo da norma é transporte como elemento de desenvolvimento urbano e, no segundo, o
foco é transporte nacional, em seus aspectos gerais sistêmico, estrutural e operacional.” GUIMARÃES,
Geraldo Spagno. Op. Cit. (Local do Kindle: p. 2211)
49
O CTB, em seu Anexo I, define o termo trânsito como sendo a “movimentação e imobilização de
veículos, pessoas e animais nas vias terrestres.”
50
Basta remeter-se à redação do art. 5º, do CTB, para que se torne evidente a diversidade de aspectos
envolvidos no âmbito da regulação do trânsito: “Art. 5º O Sistema Nacional de Trânsito é o conjunto de
órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que tem por finalidade o
exercício das atividades de planejamento, administração, normatização, pesquisa, registro e licenciamento
de veículos, formação, habilitação e reciclagem de condutores, educação, engenharia, operação do
sistema viário, policiamento, fiscalização, julgamento de infrações e de recursos e aplicação de
penalidades.”
39
Conforme vem sendo ressaltado, o presente trabalho tem como objeto principal os
transportes urbanos de passageiros, com ênfase no transporte individual privado de
passageiros mediante emprego de aplicativos do tipo Uber, temas que serão abordados
no Capítulo 2 e no Capítulo 3, respectivamente. Tendo isto em vista, não cabe, no escopo
deste trabalho, discussões aprofundadas acerca dos transportes não urbanos. Nada
obstante, será brevemente apresentado, a seguir, o panorama normativo-constitucional
geral acerca deste setor.
Dito isto, o primeiro ponto a ser destacado é que, como o nome já indica (não
urbano), trata-se de uma categoria identificada por exclusão. Serão aqui incluídos os
transportes não regidos pela LPNMU, que serão necessariamente os modais de
transporte intermunicipal, interestadual e internacional.
Já de início, relembre-se que apenas os transportes intermunicipais não
desenvolvidos no âmbito de região metropolitana podem ser considerados como não
urbanos. Nesta situação, em regra, o Estado exercerá a regulação dos transportes
intermunicipais, a menos que se realize algum convênio de cooperação com os municípios
envolvidos51. Sendo assim, não se estará tratando, a priori, de transportes urbanos, e, por
essa razão, não haverá incidência das normas da LPNMU. Dito isto, daqui pra frente,
nesta seção, o emprego do termo “transporte intermunicipal” se fará com referência a
este último caso, do transporte intermunicipal não urbano, considerando não haver
regiões metropolitanas associadas.
Pois bem, além do transporte intermunicipal, já foi dito aqui que também estão
incluídos na categoria dos transportes não urbanos o transporte interestadual e o
internacional. As duas últimas categorias se incluem no âmbito de competência da União
e serão inicialmente tratadas. O transporte intermunicipal, a seu turno, será retomado no
final de cada subseção, haja vista o caráter residual que constituinte originário conferiu
às competências federativas estaduais.
A Constituição Federal de 1988, ao tratar da competência da União no setor dos
transportes, faz referência específica aos diferentes modos de transporte: transporte
51
Certamente, não se deve olvidar a competência de regulação da União sobre aspectos mais genéricos
acerca dos transportes em geral, conforme se discutiu na seção anterior.
40
52
Segundo a lei nº 12.379, de 6 de janeiro de 2011: “Art. 2º O SNV é constituído pela infraestrutura física
e operacional dos vários modos de transporte de pessoas e bens, sob jurisdição dos diferentes entes da
Federação. (...) § 2º Quanto aos modos de transporte, o SNV compreende os subsistemas rodoviário,
ferroviário, aquaviário e aeroviário.” (grifo acrescido)
41
53
Consigne-se que os institutos da concessão, permissão e autorização, serão trados no próximo capítulo
em maiores detalhes.
42
54
Anote-se também a possibilidade de delegação, da União para os Estados e DF, em relação às
competências legislativas privativas sobre transporte aquaviário (art. 22, parágrafo único, da CRFB).
55
CCR BARCAS. Sobre a CCR Barcas. Disponível em: http://www.grupoccr.com.br/barcas/sobre-a-ccr-
barcas. Acesso em 16/09/2019.
43
56
Digo “em regra” baseado na possibilidade aberta pelo parágrafo único, do art. 22, da CRFB: “Lei
complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas
neste artigo.”. De fato, uma das matérias relacionadas neste artigo é justamente o direito aeronáutico (art.
22, I) e a navegação aérea (art. 22, X).
57
Ocorre que as inovações tecnológicas podem trazer no futuro alguma mudança da dinâmica municipal
dos táxi-aéreos. Ainda que a atividade já exista há algum tempo, fato que é que não se trata de um serviço
de fácil acesso pelos citadinos. No entanto, o site de notícia Forbes Brasil publicou recentemente uma
matéria que aponta para uma possível revolução que estar por vir no âmbito do setor de transporte aéreo
urbano. Vale a transcrição de um trecho da matéria: “O conglomerado aeroespacial Embraer está
apostando suas fichas no desenvolvimento de produtos e serviços em torno do transporte aéreo urbano. A
gigante brasileira está convencida de que este será o próximo grande passo no que diz respeito
à mobilidade. Terceira maior fabricante de aeronaves do mundo, atrás apenas da Boeing e da Airbus, com
receita de US$ 5,8 bilhões, a companhia lançou seu braço de mobilidade urbana, Embraer X, há dois anos,
depois de reconhecer que o setor aeroespacial passará por uma transformação inédita. ‘A próxima onda
de evolução nos transportes mudará a sociedade como a conhecemos. Nosso papel é desenvolver negócios
disruptivos no setor aeroespacial antes que outras empresas interfiram na área em que operamos’, diz
Antonio Campello, diretor executivo da Embraer X. A Embraer é uma das fabricantes por trás da Uber
Air, iniciativa de mobilidade urbana planejada para 2023. Aos 49 anos, a empresa brasileira é uma das
44
Sem embargo do que foi dito até aqui sobre o transporte aéreo, não se deve
confundir a competência exclusiva (ou privativa) da União, no tocante aos aspectos
específicos deste setor, com as possíveis conexões que possam haver com outros temas,
a exemplo do direito ambiental ou do direito urbanístico. Tais conexões não afastam as
competências atribuídas aos Estados e aos Municípios nas matérias associadas. Neste
sentido, existem precedentes do Supremo Tribunal Federal que confirmam este
entendimento.
Finalizando, repise-se que as modalidades de transportes tratadas nesta última seção
não serão analisadas neste trabalho. A apresentação sucinta destes setores foi proposta
somente com o intuito de delimitar de forma mais exata os transportes urbanos, estes sim,
objeto de análise no presente estudo.
. Sendo os transportes urbanos um dos setores mais importantes do domínio
econômico, uma vez delineado, neste capítulo inicial, o regime-jurídico constitucional do
setor em tela, no próximo capítulo será abordada, de modo abstrato, a disciplina legal e
constitucional acerca dos diferentes níveis de intervenção estatal na economia. Após a
apresentação e análise deste arcabouço teórico, no capítulo 3, o setor dos transportes
urbanos será detidamente analisado sob esta perspectiva, dando-se ênfase, no final, aos
transportes individuais mediante aplicativos do tipo Uber.
parceiras mais experientes do projeto e pode ajudar a superar as questões regulatórias e obstáculos de
infraestrutura em torno das viagens aéreas para colaborar com o cronograma da Uber”. (grifo no
original). MARI, Angelica. Como a Embraer planeja vencer a guerra aérea urbana. Forbes Brasil,
26/04/2019. Disponível em: https://forbes.uol.com.br/negocios/2019/04/como-a-embraer-planeja-vencer-
a-guerra-aerea-urbana/. Acessado em 16/09/2019.
45
1. Considerações iniciais
58
FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico. Editora Forense, 7ed., Rio de Janeiro,
2012, p. 70-76.
59
Ibidem, p. 70.
60
Ibidem, p. 70-76.
61
Tradução literal: “deixe fazer”; traduz a ideia da livre iniciativa, em sua acepção mais radical ou pura.
46
“Como resultado direto do New Deal foram criadas nos Estados Unidos
dezenas de agências federais, cujo paradigma no direito brasileiro são as
autarquias sob regime especial, as quais receberam a alcunha de alphabet
agencies (agências alfabéticas, minha livre tradução), devido à profusão das
siglas com que eram designadas: CCC (Civilian Conservation Corps), TVA
(Tennessee Valley Authority), AAA (Agricultural Adjustment Administration),
PWA (Public Works Administration), FDIC (Federal Deposit Insurance
Corporation), SEC (Securities and Exchange Commission), CWA (Civil Works
Administration), SSB (Social Security Board), WPA (Works Progress
Administration), NLRB (National Labor Relations Board).”63 (grifo acrescido)
62
Os principais exemplos da adoção deste sistema foram o dos países pioneiros na implantação da primeira
fase da Revolução Industrial, sobretudo no século XIX, em países como EUA, Inglaterra, Alemanha,
França, dentre outros exemplos.
63
FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Op. cit., p. 72.
47
64
FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Ibidem, p. 74.
65
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A reforma do estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle.
Cadernos MARE da reforma do estado, v. 1. Brasília: Ministério da Administração Federal e Reforma do
Estado, 1997, p. 13-14.
66
BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas,
econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador. Editora Fórum, 7ed., Belo Horizonte,
2016, p. 160.
67
Anote-se os EUA, de Ronald Reagan, e a Inglaterra, de Margaret Thatcher, experiências marcadas pela
redução do intervencionismo estatal na economia, como alternativa política de solução da crise fiscal.
48
68
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Ibidem, p. 17.
69
Idem. O Caráter Cíclico da Intervenção Estatal. Revista de Economia Política. Vol.9, n.3, julho 1989, p.
121.
49
70
Ibidem, Locais do Kindle: p. 4476-4577.
51
Por fim, há que se falar da acepção restritíssima, que exclui os serviços sociais e
mantém apenas os serviços públicos econômicos (art. 175, da CRFB). Embora o autor
reconheça haver distinção dos regimes jurídicos destas duas subcategorias, ele entende
que há um regime jurídico mínimo “significativo”71, posição que, data maxima venia,
não parece ser a mais adequada. Ao defender esta tese, o autor sustenta que a maioria das
atividades estatais, além dos serviços públicos econômicos, estão passando por um
processo de “economicização”, sobretudo no que se refere a certos mecanismos de gestão,
como as Parcerias Pública-Privadas, aplicáveis aos serviços sociais (saúde, v.g.).
Porém, entendo que isto não traduz a existência de um regime jurídico mínimo
significativo entre as subcategorias, pois há diferenças importantes entre os regimes
jurídicos dos serviços públicos econômicos e dos serviços públicos sociais, sendo a
principal delas a possibilidade de atuação dos agentes privados no mesmo setor em que
o Estado presta os serviços sociais (saúde, educação, etc.), havendo incidência do direito
à livre iniciativa, sem necessidade de delegação estatal, o que não ocorre com os serviços
públicos econômicos (tratados no art. 175, da CRFB)72.
71
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. Locais do Kindle p. 4706-4707.
72
De fato, a Carta Maior prevê expressamente a possibilidade do fornecimento de serviços de saúde pelo
setor privado (art. 199, caput). O mesmo se aplica à área da educação, conforme o art. 209, da CRFB. Mas
Alexandre Aragão faz uma importante advertência, ao defender que os serviços sociais só devem ser
considerados como serviços públicos quando prestados pelo Estado, pois independente da possibilidade
de complementação pelo setor privado, por livre iniciativa, a CFRB confere a obrigação do Estado em
fornecê-los à população. Quando prestados de modo complementar pela iniciativa privada, serão
considerados como atividades econômicas em sentido estrito, evidentemente sob forte regulação estatal
em razão do interesse coletivo na atividade. Por esse motivo, anote-se também que, evidentemente, não há
que se falar em proteção da livre concorrência (art. 173, da CRFB) como garantia aos agentes privados em
relação à atuação do Estado nestas áreas. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. Locais do Kindle p. 5201-
5204.
52
No entanto, há uma razão levantada pelo autor para incluir os serviços sociais
na categoria dos serviços públicos, afastando a acepção restritíssima, que é o fato de a
própria Constituição Federal de 1988 se referir aos serviços de saúde como serviços
públicos (art. 198, caput, § 2º, e art. 166, §§ 9º e 10).
Portanto, será adotado neste trabalho o conceito de serviços públicos adotado por
Alexandre Santos de Aragão, o qual, já transcrito acima, inclui tantos os serviços
públicos econômicos e os serviços públicos sociais (acepção restrita de serviços
públicos).
Não obstante, como o objetivo deste capítulo é analisar os níveis de intervenção do
Estado na ordem econômica, será necessário, daqui em diante, diferenciar os serviços
públicos econômicos das atividades econômicas em sentido estrito. Por não estarem
associados aos transportes urbanos, que é o tema geral do presente trabalho, bem como
por estarem mais diretamente relacionados à ordem social do que à ordem econômica, os
serviços públicos sociais (saúde, educação, assistência social, dentre outros) não serão
considerados nas discussões adiante, devendo-se deixar consignado, porém, que os
considero como uma subcategoria de serviço público, conforme os ensinamentos de
Aragão.
73
A concepção de serviços públicos que adota o critério subjetivo pressupõe o enquadramento apenas de
atividades de titularidade estatal no conceito. Mas também há autores que adotam o critério objetivo, que
é aquele que define o interesse no bem-estar coletivo como sendo a condição essencial do conceito, sendo
irrelevante o fato de ser a atividade de titularidade ou não do Estado, o que poderá até incluir,
equivocadamente, conforme será visto, atividades econômicas em sentido estrito no conceito de serviços
públicos. JUSTEN, Mônica Spezia apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. Locais do Kindle p.
4710-4712 (nota de rodapé nº 75).
53
74
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. Locais do Kindle p. 4416-4419.
75
JUSTEN FILHO, Marçal apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. Locais do Kindle p. 4760 (nota
de rodapé nº 78).
76
Além da defesa do consumidor ser prevista como direito fundamental (art. 5º, XXXII, da CRFB); também
está previsto expressamente na Lei nº 8.987/1995 a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos
serviços públicos (“Art. 7º. Sem prejuízo do disposto na Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, são
direitos e obrigações dos usuários: ...”); além disso, o próprio CDC faz referência aos serviços públicos
(“Art. 6º São direitos básicos do consumidor: ... X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos
em geral”).
77
Por conta da incompatibilidade com os preceitos do art. 175, da CRFB, alguns princípios do art. 170 não
são aplicáveis aos serviços públicos, a exemplo da livre iniciativa (há a necessidade de delegação estatal
para o exercício da atividade), e da possibilidade de exigência de autorização, prevista no parágrafo único
do art. 175 (o regime de delegação se dá por permissão ou concessão, sendo incoerente a necessidade de
autorização).
54
Percebe-se que os serviços públicos poderão ser prestados diretamente pelo Poder
Público, ou pelos agentes privados apenas mediante delegação (concessão ou
permissão)78. Sendo assim, pode-se concluir que os serviços públicos econômicos
constituem um microssistema jurídico-normativo dentro da Ordem Econômica, com
peculiaridades nítidas.
Primus, trata-se de atividades fora do âmbito da livre iniciativa, pois só poderão
ser exercidas pelos agentes privados caso o Estado decida delegar a atividade (decisão
predominantemente política). Secundus, uma vez que o Poder Público tenha optado por
delegar o exercício da atividade, os interessados em prestar o serviço deverão anuir com
contrato de adesão (contrato administrativo) proposto pelo ente estatal, nas condições
por este estipuladas. Tertius, por se tratar de vínculo contratual, serão estabelecidas
obrigações positivas ao contratante privado, cujo inadimplemento implicará em sanções
contratuais. Ademais, desde que garantida a indenização por perdas e danos, será sempre
possível que a Administração Pública encerre o contrato por razões de conveniência e
oportunidade.
A todas estas condições, somam-se, é claro, a aplicabilidade da regulação prevista
na lei n° 8.987/1995, e das regulações específicas, a exemplo da lei n° 12.587/2012 (Lei
da Política Nacional de Mobilidade Urbana), que, do art. 8° ao 10, trata especificamente
dos serviços públicos de transporte urbano coletivo. Também não se deve olvidar a
sujeição dos serviços públicos à regulação geral sobre temas como meio ambiente,
Direito do Trabalho, Direito do Consumidor, etc.79
Como é fácil notar, o fundamento que possibilita a prestação de serviços públicos
econômicos pelos agentes privados permite, em sua essência, um elevado grau de
ingerência estatal na atividade. É claro que, muitas vezes, o interesse dos governos em
atrair o setor privado para a prestação de serviços públicos poderá favorecer propostas de
contratos mais vantajosas e flexíveis para o operador privado. Por outro lado, também é
possível que atividades econômicas stricto sensu de relevante interesse coletivo (v.g.,
saúde suplementar, farmácias, setor financeiro), que prescindem de delegação estatal,
apresentem regulações muito rigorosas, muitas vezes superando a regulação de certos
serviços públicos. Ainda assim, as referidas peculiaridades do regime jurídico dos
serviços públicos possibilitam um grau maior de ingerência estatal, havendo, inclusive,
78
Os institutos da concessão e da permissão serão abordados mais adiante.
79
Anote-se que as atividades econômicas em sentido estrito também estão sujeitas a este último tipo de
regulação.
55
Seguindo a linha de entendimento que vem sendo construída, deve-se fazer nota a
um caso especial previsto na Ordem Econômica Constitucional. Em regra, conforme já
pontuado, o que separa fundamentalmente os serviços públicos das atividades
econômicas stricto sensu é o fato destas se situarem no âmbito da livre iniciativa,
enquanto que aqueles estão fora deste âmbito. No entanto, há uma exceção de atividades
econômicas stricto sensu que também estão fora da seara da livre iniciativa: as atividades
econômicas stricto sensu monopolizadas pelo Estado (atividades dos setores do petróleo,
gás natural e minérios nucleares – art. 177, CRFB).
Segundo o § 1º, do referido artigo, algumas dessas atividades podem ser delegadas
a empresas privadas81. Neste caso, a atuação dos agentes privados também estará
fundamentada na possibilidade de contratação com o Poder Público, sujeitando-se os
agentes privados a boa parte das prerrogativas contratuais do Estado aplicáveis aos
serviços públicos. Não se trata de delegação, mas de meros ajustes de contratos
80
Mais adiante, ainda neste capítulo, será realizada uma análise mais detida a esta questão.
81
O § 1º apenas não prevê a possibilidade de delegação ao setor privado das atividades previstas no inciso
V, do mesmo art. 177 (“a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o
comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja
produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as
alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal.”).
56
82
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. Locais do Kindle p. 4837-4839.
57
Figura 3. Classificação das atividades econômicas, conforme a Constituição Federal de 1988 (art. 170
ao 181).
Conforme se analisou na primeira seção deste capítulo, cada Estado soberano detém
plena autonomia para definir a amplitude de sua participação no domínio econômico.
Neste sentido, verificou-se que a experiência recente, pelo menos desde o século XIX até
o momento atual, apresentou diversas opções de graus interventivos, desde os modelos
mais estatizantes, cujo extremo poderia ser constatado nas experiências socialistas; até os
modelos mais liberais, a exemplo das experiências de muitos países ocidentais no XIX.
As principais variáveis desta escala são: (1) a abrangência, em concreto, do âmbito
de exercício da livre iniciativa (atividades econômicas stricto sensu não monopolizadas),
inversamente proporcional à (2) amplitude da reserva estatal de atividades econômicas
(serviços públicos e atividades econômicas monopolizadas). Quanto maior a segunda
variante, menor será a primeira, resultando em um modelo de Estado Provedor. Por outro
lado, quanto maior a primeira, menor será a segunda variável, tendo por resultado um
modelo Estado Liberal83.
Vale relembrar que, segundo Luiz Carlos Bresser Pereira, as diferentes
conjunturas que se seguiram ao longo destes últimos séculos revelaram um caráter cíclico
do intervencionismo estatal, que tem traduzido a resiliência das sociedades ao adotarem
83
Considero estas duas variáveis como sendo as principais na escala que mede o tamanho da participação
do Estado na economia, mas não as únicas. Há outra variável importante, que será analisada mais adiante:
o nível de regulação estatal sobre o domínio econômico, pois mesmo em modelos que definam uma menor
amplitude da reserva estatal de atividades econômicas, nada impede que a regulação e, portanto, o nível de
intervenção estatal sobre atividades não reservadas, inclusive, seja elevado. Esta hipótese acabaria também
por resultar em um Estado “gigante” sobre a economia,
58
84
Esta necessidade de positivação na Lei ou na Constituição é um dos aspectos contidos na definição de
serviços públicos de Alexandre Aragão, adotada neste trabalho, e há pouco repisada. O autor contesta a
concepção de Duguit, na qual entende-se que a caracterização de determinada atividade como serviço
público decorreria não do Direito Positivo, mas sim da “natureza das coisas”, tendo em vista o bem-estar
da coletividade como caráter essencial do conceito. Afasta, ainda, o doutrinador, a possibilidade de ato
administrativo retirar determinado setor do âmbito da livre iniciativa, já que este é um direito fundamental
expressamente previsto na Lei Maior. Ibidem, Locais do Kindle p. 4795.
85
Rever o esquema da figura 3, que delimita estas categorias de atividades econômicas.
59
86
Art. 30, V, da CRFB: “Art. 30. Compete aos Municípios: (…) V - organizar e prestar, diretamente ou
sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte
coletivo, que tem caráter essencial;”
87
Este é o entendimento defendido por Alexandre Aragão.
88
O princípio da subsidiariedade refere-se à atuação estatal no domínio econômico, que deverá ocorrer em
último caso, somente quando indispensável para atender o interesse público.
60
89
Este ponto será abordado na próxima seção.
90
“A Constituição Federal deu, então, certa margem de discricionariedade ao Legislador em relação às
atividades enumeradas nos incisos X a XII do art. 21 para que, diante das evoluções tecnológicas
propiciadoras da concorrência e do Princípio da Proporcionalidade na sua expressão de subsidiariedade,
enquadre-as como serviços públicos ou como atividades privadas de interesse público sujeitas a uma
regulação de natureza autorizativo-operacional.” ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. Locais do
Kindle p. 6749-6753.
91
Neste trabalho, entende-se por privatização a transferência da titularidade de determinada atividade ou
bens patrimoniais do Estado para a iniciativa privada. A desestatização, a seu turno, é aqui entendida sob
uma concepção mais abrangente, envolvendo não só a privatização de bens ou atividades, como também a
mera delegação do exercício de determinada atividade estatal para a iniciativa privada. Esta linha de
entendimento, além de guardar conformidade com as disposições da Lei n° 9.491/1997, também é adotada
por José dos Santos Carvalho Filho. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito
Administrativo. Editora Atlas, 31ed., São Paulo, 2017, p. 364-367.
61
stricto sensu sob livre iniciativa estão sujeitas92. É justamente este segundo aspecto que
será objeto de análise, na presente seção. Propõe-se, para melhor organização das ideias,
a divisão em quatro subseções: (6.1) a livre iniciativa como direito fundamental; (6.2) o
núcleo essencial da livre iniciativa como limite à regulação; (6.3) noções gerais sobre a
Lei nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica); e (6.4) Autorizações administrativas.
92
É preciso consignar que dentro das categorias do domínio econômico que vem sendo trabalhadas no
presente capítulo, o art. 173, da CRFB, refere-se às atividades econômicas stricto sensu exercidas pelo
Estado, em regime de concorrência com a iniciativa privada (diferente do que ocorre na seara dos serviços
públicos). Desse modo, o referido dispositivo determina que, apenas subsidiariamente, o Estado atuará
neste domínio (situações de imperativos de segurança nacional ou de relevante interesse coletivo).
Ademais, os parágrafos do art. 173 trazem disposições que buscam limitar os efeitos que a atuação estatal,
ainda que em regime de concorrência, poderiam gerar sobre os agentes privados. Trata-se de garantia de
defesa da concorrência justamente para que este tipo de atuação estatal não constitua ingerência
indevida nas atividades privadas. Portanto, embora haja algum impacto no domínio econômico, não se
trata de um modo de intervenção estatal na atuação dos agentes privados.
62
93
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. Locais do Kindle p. 6356-6361. Neste trecho, o doutrinador
ainda cita um interessante posicionamento de MARTIN H. REDISH sobre o assunto: “As pessoas jurídicas
são apenas uma forma de associação voluntária, uma conjunção de talentos e recursos nelas
conscientemente aportados por indivíduos” (trecho em nota de rodapé n° 15).
94
Sobre o núcleo essencial dos direitos fundamentais, Gilmar Ferreira Mendes afirma que: “A ordem
constitucional brasileira não contemplou qualquer disciplina direta e expressa sobre a proteção do núcleo
essencial de direitos fundamentais. É inequívoco, porém, que o texto constitucional veda expressamente
qualquer proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 4º, IV).
Tal cláusula reforça a ideia de um limite do limite também para o legislador ordinário. Embora omissa no
texto constitucional brasileiro, a ideia de um núcleo essencial decorre do próprio modelo garantístico
utilizado pelo constituinte. A não admissão de um limite ao afazer legislativo tornaria inócua qualquer
proteção fundamental.” MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional. Editora Saraiva, 12 ed., São Paulo, 2017, p. 192.
95
“Para Alexy, a ponderação realiza-se em três planos. No primeiro, há de se definir a intensidade da
intervenção. No segundo, trata-se de saber a importância dos fundamentos justificadores da intervenção.
No terceiro plano, então se realiza a ponderação em sentido específico e estrito. Alexy enfatiza que o
postulado da proporcionalidade em sentido estrito pode ser formulado como uma lei de ponderação
63
Isto posto, cabe agora analisar os limites da regulação estatal sobre as atividades
econômicas, tendo em vista a inviolabilidade do núcleo essencial do direito à livre
iniciativa.
segundo a qual, quanto mais intensa se revelar a intervenção em um dado direito fundamental, mais
significativos ou relevantes hão de ser os fundamentos justificadores dessa intervenção”. Ibidem, p. 214.
96
BINENBOJM, Gustavo. Op. cit., p. 166-168.
64
97
“A maioria das obrigações positivas cuja imposição aos empresários privados é vedada ao Estado
geralmente constituem ações que o Governo deveria executar per se. O Estado não pode, em razão de
eventuais dificuldades financeiras ou mero comodismo, determinar a uma empresa privada, não
prestadora de serviço público, que as execute em seu lugar. Se ele realmente quiser desenvolver essas
ações, deve fazê-lo às suas expensas, eventualmente até mesmo contratando a empresa prestadora do
serviço privado de interesse público, ou requisitando os seus serviços mediante indenização, se estiverem
presentes os pressupostos legais para tanto.” ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. Locais do Kindle
p. 6549-6554.
98
Corresponde à “regulação por normas de comando e controle”. BINENBOJM, Gustavo. Op. cit., p.
164-166.
65
99
“ (...) afinal, por que regular? Pela ótica da ciência econômica, a resposta segue uma lógica simples:
sempre que o mercado concretamente analisado apresentar falhas estruturais e comportamentais vis-à-vis
das características do modelo ideal de mercado em concorrência perfeita (hipóteses i a v supra), está-se
diante de falhas de mercado que justificam a regulação estatal.” BINENBOJM. Gustavo. Op. Cit., p. 176.
100
“Além disso, sempre será possível orientar a escolha regulatória pela busca de outros valores
considerados relevantes no processo democrático, seja para a inibição de efeitos indesejáveis (degradação
ambiental, lesão a consumidores, discriminação de grupos minoritários), seja para a promoção de efeitos
desejáveis pelo mercado (higidez do meio ambiente, ampliação da oferta de bens essenciais, inclusão de
pessoas com necessidades especiais ou historicamente discriminadas).” Ibidem, p. 176.
101
“As limitações são gerais e se inserem no próprio conteúdo do direito; não chegam a coarctar os
atributos concernentes ao seu núcleo essencial para torná-los despiciendos ou pouco significativos. Por
essas razões, não são indenizáveis. Se ultrapassar esses lindes, a limitação legal ou administrativa na
verdade terá deixado de o ser, constituindo uma servidão administrativa, uma requisição, uma
desapropriação ou um confisco puro e simples. Não é por outra razão que o núcleo essencial dos direitos
fundamentais é chamado de ‘limite dos limites”. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. Locais do Kindle
p. 6421-6425.
102
“O Estado pode exigir das empresas alguns comportamentos, sempre acessórios às suas atividades
principais – via de regra consequências lógicas do seu exercício –, que contribuam para realizar o
interesse público setorial ligado à atividade principal. As empresas podem ter a atividade funcionalizada
para a realização das políticas públicas do setor em que atuam, mas não podem ser forçadas elas próprias
a executá-las, salvo se o Estado contratá-las ou indenizá-las.” ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit.
Locais do Kindle p. 6513-6517.
103
“As limitações à liberdade de empresa são legítimas sempre que não constituam limitações irracionais,
desproporcionais ou arbitrárias, que possam impedir ou reduzir consideravelmente o exercício da
atividade empresarial”. ORTEGA, Ricardo Rivero apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. Locais
do Kindle p. 7114-7116 (nota de rodapé n° 30).
66
Não se pode deixar de fazer nota, ainda que de forma sucinta, sobre Lei nº
13.874/2019. Trata-se da chamada “MP da Liberdade Econômica” (Medida Provisória nº
881, de 2019), que foi convertida em lei em setembro de 2019. O diploma legal “institui
a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo normas de proteção à
livre iniciativa e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e
regulador” (art. 1º, caput).
O referido dispositivo faz menção ao art. 170, parágrafo único, da CRFB, que prevê
que apenas a lei poderá exigir autorização de órgãos públicos para o exercício das
atividades econômicas. Ademais, o mesmo art. 1º, da Lei nº 13.874/2019, também faz
alusão ao art. 174, da CRFB, o qual também afirma que, na forma da lei, o Estado, como
agente normativo e regulador da atividade econômica, exercerá as funções de
fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e
indicativo para o setor privado.
Percebe-se, diante destas remissões, que a Lei da Liberdade Econômica veio
exercer o papel de norma geral sobre a proteção da livre iniciativa, de modo a
regulamentar os referidos dispositivos constitucionais que tratam dos limites que a
intervenção estatal sobre a economia deverá observar.
Além de trazer um catálogo de direitos e garantias relacionados à liberdade
econômica (art. 3º e 4º), a Lei também traz alterações em inúmeros diplomas legais,
inclusive o Código Civil de 2002 (do art. 6º ao 15). Ademais, o art. 2º, em seus incisos,
define os seguintes princípios norteadores da Lei 13.874/2019: (I) a liberdade como uma
garantia no exercício de atividades econômicas; (II) a boa-fé do particular perante o
poder público; (III) a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício
67
104
Art. 2º, parágrafo único, da Lei da Liberdade Econômica: “Regulamento disporá sobre os critérios de
aferição para afastamento do inciso IV do caput deste artigo, limitados a questões de má-fé,
hipersuficiência ou reincidência.”
105
Na seara da gestão de bens públicos, a autorização difere em um aspecto em relação à permissão:
enquanto esta é concedida ao particular quando existe interesse público no uso que este pretende realizar
sobre o bem público, na autorização, a princípio, predomina o próprio interesse privado do particular. A
concessão de uso de bens públicos, a seu turno, difere da autorização e da permissão por ser
consubstanciada mediante contrato administrativo, enquanto que as outras duas constituem atos
administrativos. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Editora Atlas,
31ed., São Paulo, 2017, p. 1250-1257.
68
106
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit. p. 151.
107
Ibidem, p. 147-148
108
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. Locais do Kindle p. 6637-6657.
109
“A limitação conceitual das autorizações a atos discricionários seria, assim, meio inadequado ao
alcance dos objetivos do marco regulatório da maior parte dos setores da economia em que é utilizada,
qual seja, a atração de capitais, para o que é imprescindível um nível satisfatório de segurança jurídica,
ainda mais se considerarmos os elevados investimentos que esses setores demandam.” Ibidem, Locais do
Kindle p. 6665-6668.
110
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. Editora Atlas, 27 ed., São Paulo, 2014, p.
238.
111
Cabe relembrar a parte da norma constitucional (art. 21, XI e XII) cuja redação é objeto de controvérsia:
“Compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: (...)”. (grifo
acrescido)
112
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit. p. 152 (nota de rodapé nº 133).
69
113
Esse descompasso entre denominação e natureza de institutos provoca indesejável confusão entre os
operadores do direito e é inegavelmente contraproducente para a ciência jurídica. Daí a importância de
perquirir-se o conteúdo e a natureza do instituto, e não apenas a sua forma ou denominação.” Ibidem, p.
153.
114
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. Locais do Kindle p. 6864-6865. O Autor cita o argumento
usado pelo Ministro Nelson Jobim, em sede do RE n°220.99-7.
115
Ibidem, Locais do Kindle p. 6881-6882.
116
No mesmo sentido é o que dispõe a Lei n° 8.987/1995, que trata sobre a delegação de serviços públicos
em geral.
117
RE n°220.99-7 e ADI n°1668.
118
Há quem diferencie as autorizações em (1) operativas e (2) por operação:” Não se deve, por isso,
confundir ‘autorização operativa’ ou ‘de funcionamento’ com ‘autorização por operação’: ‘Sem renunciar
à função primária de controle, que também canaliza, pretende ir mais além dela, disciplinando e
orientando positivamente a atividade do seu titular na direção previamente definida por planos ou
programas setoriais (...). Já nas autorizações por operação, a relação entre o poder público e o
autorizatário é episódica. E não cria nenhum vínculo estável entre eles. Realizada a operação comercial
70
estão sujeitas, em razão do elevado interesse público a elas associado, levaram alguns a
chamá-los de serviços públicos impróprios. No entanto, de modo a evitar confusão na
sistemática que vem sendo delineada no presente capítulo, é mais prudente que se afaste
esta terminologia.
Para concluir, cabe colacionar mais uma ilustração, com o intuito de resumir, em
uma única imagem, as diferentes categorias de atividades econômicas lato sensu,
baseadas nos diversos níveis de intervenção estatal examinados ao longo deste capítulo.
Figura 4. Classificação das atividades econômicas, conforme a Constituição Federal de 1988 (art. 170
ao 181).
1. Considerações iniciais
veículos de tração animal, das bicicletas, e dos deslocamentos a pé120. Estes últimos têm
sido vistos como uma forma de solução para congestionamentos e emissões de gases
poluentes tão frequentes na maioria das cidades, tendo recebido inclusive o status de
modo preferencial de transporte na LPNMU (art. 6º, II)121. Este tema será mais
detidamente discutido mais adiante.
O § 2º, do art. 3º, da LPNMU, traz outras três classificações, desta vez “quanto ao
objeto”, “quanto às características do serviço”, e “quanto à natureza do serviço”.
Neste sentido, “quanto ao objeto” (art. 3º, § 2º, inciso I), o dispositivo distingue o
transporte urbano de passageiros e o de cargas. Quanto a esta última categoria, o art. 4º,
inciso IX, a define da seguinte maneira: “transporte urbano de cargas: serviço de
transporte de bens, animais ou mercadorias”. Uma rápida reflexão sobre estas duas
categorias, no que se refere aos direitos fundamentais envolvidos em cada tipo de serviço,
permite constatar que, enquanto que o transporte de passageiros, em regra, está mais
intimamente ligado ao direito de liberdade, de ir e vir (art. 5°, caput, e inciso XV, da
CRFB), o transporte de cargas está mais relacionado ao direito de propriedade (art. 5º,
XXII, da CRFB) e ao direito de livre iniciativa, de exercício das atividade econômicas
(art. 170, caput e parágrafo único, da CRFB).
Cabe, em relação a este ponto, trazer as lições de Geraldo Spagno Guimarães:
120
Os transporte não motorizado “já conta com regulamentação em cidades brasileiras que legislaram
organizando e autorizando, com exigências e limites, o transporte de tração animal, os quais devem ser
identificados, sujeitando-se às normas de circulação do Código de Trânsito Brasileiro e as que vierem a
ser fixadas pelo órgão ou entidade com circunscrição sobre a via, admitida a circulação à direita da pista
no sentido da via ou pelo acostamento onde houver (artigo 52 do CTB).” GUIMARÃES, Geraldo Spagno.
Comentários à Lei de Mobilidade Urbana – Lei nº 12.587/12 – Essencialidade, sustentabilidade, princípios
e condicionantes do direito à mobilidade. Editora Fórum. 1 ed., Belo Horizonte, 2012. Edição do Kindle.
Locais do Kindle: p. 2644-2651.
121
“Na onda ecológica, vários Municípios estão implantando ciclovias e paraciclos (dispositivos para
estacionamento de bicicletas). Em 25.04.2012, a Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos
Deputados aprovou o PL nº 1.346/11, do Deputado Lucio Vieira Lima. Com relatoria do Deputado
Valadares Filho, o projeto propõe a criação do Estatuto dos Sistemas Cicloviários, com o objetivo de
vincular os entes federativos à promoção do uso de bicicletas como meio de transporte viável e efetivo,
implementando infraestrutura e articulação com a malha viária, além de outras facilidades”. Ibidem,
Locais do Kindle: p. 2651.
74
122
Ibidem, Locais do Kindle: p. 2805-2812.
123
Verificou-se, no Capítulo 1, a aplicabilidade da referida Lei aos transportes urbanos, no que couber.
75
124
“Ajuda na compreensão do tema o que já explicamos, nos comentários ao artigo 4º, VIII, sobre o
enquadramento do táxi como um transporte individual de passageiros, e o que o distingue do transporte
coletivo não é o número de passageiros, mas justamente o fato da viagem ser individualizada, isto porque
se trata de serviço específico, aleatório, personalizado, sem itinerário ou rota predefinidos.” (grifo
acrescido) GUIMARÃES, Geraldo Spagno. Op. cit., Locais do Kindle: p. 4192. Com a devida vênia, este
aspecto apontado pelo autor não distingue o serviço de transporte individual de passageiros do transporte
coletivo, pois há casos em que este também podem apresentar personalização de viagens, a exemplo dos
transportes fretados.
125
lei nº 12.468/2011 (Lei que regulamenta a profissão de taxista): “Art. 2º É atividade privativa dos
profissionais taxistas a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público
individual remunerado de passageiros, cuja capacidade será de, no máximo, 7 (sete) passageiros.” (grifo
acrescido).
126
Decreto nº 44399/2018, do Município do Rio de Janeiro (regulamenta os serviços do tipo Uber e
similares): “Art. 10. Para cadastrar-se nas PROVER os motoristas deverão, cumulativamente, atender aos
seguintes requisitos: (...) VI - operar veículo motorizado: a) com capacidade de até seis passageiros,
excluído o condutor, obedecida a capacidade do veículo; (...)”. (grifo acrescido) OBS: De acordo com o
Decreto, PROVER significa “plataformas digitais gerenciadas por Provedoras de Redes de
Compartilhamento”.
76
127
“Art. 30. Compete aos Municípios: (...) V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão
ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter
essencial; (...)” (grifo acrescido).
77
128
Lembre-se as ressalvas feitas no Capítulo 1 acerca dos transportes intermunicipais realizados no âmbito
das regiões metropolitanas, que, por se enquadrarem excepcionalmente no conceito de transporte urbano,
também podem se definir como transporte urbano público coletivo, incidindo, porém, a governança
interfederativa (Estatuto da Metrópole). O exemplo da CCR Barcas, no Estado do Rio de Janeiro, usado no
primeiro capítulo, enquadra-se, portanto, nesta categoria, por se situar em região metropolitana. Outro
exemplo é a Supervia, que opera o serviço de transporte ferroviário de passageiros, também metrópole
fluminense.
78
129
Conforme consignado no Capítulo 2, adota-se neste trabalho o conceito de autorização definido por
Alexandre Santos de Aragão, o qual inclui atos discricionários ou vinculados, e atos precários ou
definitivos. Assim sendo, o a licença é entendida como uma autorização vinculada e definitiva.
130
Conforme o entendimento de Geraldo Spagno Guimarães, sobre o qual já consignei discordância, o
transporte fretado não é classificado como transporte coletivo, mas sim como transporte individual. Veja-
se in verbis: “(...) É provável que essa opção se dê em face do que prescreveu o §2º, do artigo 14 da Lei
Federal nº 10.233/2001, quando vedou a prestação de serviços de transporte coletivo de passageiros
(embora não possa o fretado ser considerado transporte coletivo na medida em que as viagens são
individualizadas) (...)” (grifo acrescido) GUIMARÃES, Geraldo Spagno. Op. cit., Locais do Kindle: p.
2792.
79
mudanças, desde profundas alterações no regime jurídico dos táxis, até o advento dos
novos serviços mediados por aplicativos, a exemplo da Uber. Já se aproximando do fim
da presente seção, serão agora apresentadas apenas algumas noções iniciais sobre estes
serviços, tendo em vista a abordagem mais detalhada que se seguirá ao longo do capítulo.
Percebe-se facilmente que a mudança mais radical sobre o art. 12, da LPNMU, foi
a exclusão do transporte público individual da categoria jurídica de serviço público.
Prevê, ainda, funções estatais similares às previstas para o transporte privado coletivo, a
serem exercidas sobre a transporte público individual (disciplina e fiscalização). A única
diferença, neste aspecto, é a previsão da função estatal de organização no art. 12, mantidas
as diretrizes regulatórias sobre a qualidade do serviço (segurança, conforto, higiene, etc.)
e sobre a fixação de valores máximos dos preços. Estas características aproximam muito
este tipo de transporte à categoria das atividades econômicas stricto sensu de relevante
interesse coletivo, do mesmo modo que ocorre com o transporte privado coletivo,
conforme já analisado.
Ora, se esta categoria de transporte individual não é mais considerada serviço
público, então qual a sua diferença em relação ao transporte privado individual? Está
aí uma grande questão que será discutida mais adiante neste capítulo.
131
Tendo em vista a extensão do nome escolhido pelo legislador, neste trabalho será empregado o termo
transporte privado individual para se referir a esta modalidade de transporte urbano.
81
TRANSPORTES URBANOS
(art. 4°, I, da LPNMU)
A partir deste momento, maior ênfase será dada ao transporte urbano individual.
Nesta seção, especificamente, será realizada uma comparação entre as noções gerais dos
regimes jurídicos do transporte público individual (táxi) e do transporte privado
individual (Uber, v. g.). Em seguida, nas próximas seções, o foco será sobre esta última
categoria.
Não obstante, antes de mais nada, é importante esclarecer alguns pontos
importantes acerca da competência federativa para a definição das referidas categorias de
transporte individual como sendo serviços públicos ou atividade econômica em sentido
estrito.
132
Ver Capítulo 2.
83
questão acerca da competência federativa, pois a referida comparação dos serviços será
realizada mais adiante.
“No que diz respeito aos táxis, conveniente salientar a discussão acerca da
natureza desta atividade, provocada sobretudo pelo recente surgimento e
popularização, no Brasil, de serviços de transporte individual de passageiros
solicitados por meio de aplicativo eletrônico, que acabam por criar uma
concorrência anteriormente inexistente. Em nossa opinião, faz-se necessária,
para se averiguar se este novo serviço invade, sem delegação, um espaço
reservado a serviço público, a análise da legislação de cada município. Isso
porque, independentemente de ser um serviço público ou uma atividade
privada regulamentada, trata-se, em qualquer dos casos, de um serviço de
interesse predominantemente local, atraindo a competência legislativa
municipal (art. 30, I, CF). A Lei federal nº 12.587/2012, que instituiu as
diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, traça apenas algumas
linhas mestras sobre o tema, sendo do município a titularidade para a
regulação do serviço em si (e a sua determinação como serviço público ou
não).”133 (grifo acrescido)
133
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. Editora Fórum, 4º ed., Belo Horizonte,
2017. Edição Kindle. Locais do Kindle: p.6971-6980 (nota de roda pé nº 11).
84
a resposta parece ser negativa, sendo tal classificação do transporte urbano um tema de
interesse local. No entanto, me parece que se estar a tratar de uma característica
fundamental das atividades de transporte, que envolveria restrições ao direito
fundamental da livre iniciativa.
Ademais, relembre-se que os transportes urbanos em geral, em todas as suas
categorias, estão associados ao interesse local, sendo a Política Nacional de Mobilidade
Urbana parte integrante da Política de Desenvolvimento Urbano, conforme a discussão
realizada no Capítulo 1. Diante deste fato, do posicionamento ora questionado, decorreria
ampla margem de conformação legislativa para que cada Município defina uma série de
categorias de transportes urbanos (não apenas os individuais) como serviços públicos, o
que, por sua vez, geraria uma elevada insegurança jurídica no setor, tendo em vista haver
mais de 5.500 Municípios integrando a Federação.
Parece que, justamente para evitar este tipo de inconveniente, o constituinte
originário definiu a competência da União Federal para instituir diretrizes para o setor de
transporte urbano, o que está consubstanciado na Lei nº 12.587/2012. Sendo assim, os
regimes jurídicos gerais definidos pela LPNMU para cada categoria de transporte
urbano deverão ser observados pelos Municípios, inclusive no caso dos táxis134 e dos
serviços de transporte privado individual (Uber), dado o caráter nacional deste diploma
legal.
Isto posto, cabe agora entender melhor o delineamento básico que a Lei da
Mobilidade Urbana conferiu a cada uma destas duas categorias de transporte urbano
individual.
134
Em relação aos táxis, Thiago Marrara, tratando da referida alteração que a Lei nº 12.865/2013 realizou
sobre o art. 12 da LPNMU, elenca, dentre outras, as seguintes implicações no regime jurídico da atividade:
“(1) Os antigos ‘serviços públicos de transporte individual de passageiros’ (redação originária do art. 12)
transformam-se em ‘serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros’ (redação atual
do art. 12); (2) Os serviços continuam sob a competência municipal, mas não mais como modalidade de
serviço público sob titularidade estatal; (3) Os serviços passam a constituir atividade econômica privada
e não monopolizada, sujeita unicamente à regulação pelo poder local mediante técnicas de polícia
administrativa e/ou fomento;(...)” (grifo acrescido). MARRARA, Thiago. Serviços de táxi: aspectos
jurídicos controvertidos e modelos regulatórios. Revista de Direito da Cidade, v. 08, nº3, Rio de Janeiro,
2016, p. 1057.
85
135
Transporte público individual (art. 4º, VIII, da LPNMU) e transporte remunerado privado individual
de passageiros (art. 4º, X, da LPNMU) para os serviços de táxis e do Uber, respectivamente. Repise-se que,
embora haja essa distinção em “público” e “privado” na terminologia, ambos são considerados pela lei
como atividade econômica stricto sensu.
86
mais restritivo, aproximando-o do modelo dos táxis. Só que neste último caso, repise-se
que a elevação da restrição estatal deverá observar os direitos fundamentais envolvidos,
como o direito fundamental ao transporte (art. 6º, da CRFB), direito fundamental à livre
iniciativa (art. 170, caput, da CRFB), direito à liberdade de locomoção, e o princípio da
proporcionalidade, conforme será visto a seguir.
136
Conforme ressaltado no Capítulo 1, esta é a conclusão obtida a partir da interpretação harmônica dos
artigos 21, XX e 182, da CRFB, e dos regimes jurídicos previstos no Estatuto da Cidade, no Estatuto da
Metrópole e na Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana.
137
Segundo a Lei nº 13.089/2015: “Art. 2º Para os efeitos desta Lei, consideram-se: (...) IV – governança
interfederativa: compartilhamento de responsabilidades e ações entre entes da Federação em termos de
organização, planejamento e execução de funções públicas de interesse comum; (...) Art. 6º A governança
interfederativa das regiões metropolitanas e das aglomerações urbanas respeitará os seguintes princípios:
(...) III – autonomia dos entes da Federação; (...)” (grifo acrescido)
89
3.4. Cobrança por parte dos Municípios pelo uso do sistema viário urbano
Para a análise deste ponto, cabe trazer à discussão a doutrina de Maria Sylvia Z. Di
Pietro acerca do uso de bem público por particular. A ilustre doutrinadora sistematiza o
tema de um modo muito coerente e adequado, delimitando-o a partir de dois critérios de
classificação: (1) quanto à conformidade da utilização do bem com o destino principal a
que está afetado (uso normal e anormal); (2) quanto à exclusividade ou não do uso (uso
comum ou privativo)138.
No que se refere ao primeiro critério, deve-se caracterizar o uso do sistema viário
urbano pelos operadores da Uber e similares como uso normal, pois, embora se trate
de uma atividade econômica, o uso das vias está conforme a destinação a qual este bem
público foi afetado. Já em relação ao segundo critério, tal uso deve ser considerado como
comum, por não se caracterizar pela exclusividade. Sendo assim, a princípio, por se
tratar de uso normal e comum, ao transporte urbano individual não deveriam ser aplicados
os institutos da autorização ou da permissão139.
No entanto, a autora traz uma subdivisão da dentro da categoria do uso comum:
(I) uso comum ordinário e (II) uso comum extraordinário. A doutrinadora caracteriza esta
segunda categoria (uso comum extraordinário), sendo a primeira identificada por
exclusão. Veja-se in verbis:
138
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. Editora Atlas, 27 ed., São Paulo, 2014, p.
762.
139
Autorização e permissão como atos de gestão do uso de bens públicos por parte da Administração
Pública não se confundem com a autorização de funcionamento de atividades privadas, ou com a
permissão como ato de delegação de serviços públicos, conforme discutido no Capítulo 2 (subseção 6.4).
90
Tem-se, nesse caso, uso comum – já que a utilização é exercida sem o caráter
de exclusividade que caracteriza o uso privativo – porém sujeito à
remuneração ou ao consentimento da Administração. Essa modalidade é a que
se denomina de uso comum extraordinário, acompanhando a terminologia de
Diogo Freitas do Amaral.”140 (grifo no original)
Diante destas explicações, fica claro que é nesta categoria (uso comum
extraordinário) que o uso das vias públicas por parte dos operadores do transporte urbano
individual. Não obstante, de acordo com a sistemática normativa prevista na LPNMU
para os serviços da Uber e similares, não está dentre as exigências atribuídas aos
condutores o pagamento referente à utilização das vias, fato que os Municípios não
poderão deixar de observar141. No entanto, não há nenhum óbice legal para que esta
cobrança seja imputada às empresas mediadoras, conforme já ocorre nas regulações de
alguns Municípios142.
Por fim, deve-se consignar que este valor a ser pago pelas empresas enquadra-se no
conceito de preço público, e não no de taxa. Não se trata de taxa por não se enquadrar no
art. 145, inciso II, da CRFB: (a) pagamento do tributo em razão do exercício do poder de
polícia; (b) pagamento por serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao
contribuinte ou postos a sua disposição. No máximo, o serviço de manutenção do sistema
viário urbano poderia ser considerado como serviços uti universi, não sendo nem
específico nem divisível. Desse modo, em razão de estarem associados à gestão dos bens
públicos, constituem preços públicos (receita pública originária).
140
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 764.
141
Como abordado neste capítulo, esta é uma das diferenças entre a Uber e o serviço de táxi. Enquanto que
neste, os motoristas é que podem pagar pela outorga para a prestação do serviço, no caso da Uber e
similares, o pagamento é imputado diretamente às empresas mediadoras, o que caracteriza a maior liberdade
de entrada no mercado para os motoristas interessados em prestar o serviço.
142
Cite-se como exemplo a regulação municipal do Rio de Janeiro sobre os serviços prestados pela Uber e
similares, que, mediante o Decreto nº 44.399/2018 (arts. 5º, 6º e 7º), atribuiu às empresas mediadoras a
exigência do pagamento de percentual do valor total das viagens cobrado pelos seus condutores.
91
Ademais, deve ser ressaltado que, além de estar englobado no conceito de função
social da cidade, é fácil perceber que o direito ao transporte também assume um caráter
instrumental para o exercício de outros direitos sociais, como a educação, a saúde, o
trabalho, a alimentação e o lazer, dada a necessidade de deslocamento físico para
acessar os serviços, tanto no meio urbano quanto no meio rural.
Até mesmo o exercício da livre iniciativa, no âmbito econômico, depende do
transporte de cargas, que é indispensável para o desenvolvimento nacional145. Estes
aspectos inerentes ao direito ao transporte foram ressaltados na justificação da Proposta
de Emenda Constitucional, da Deputada Luiza Erundina:
143
BONIZZATO, L.; BOLONHA, C. e BONIZZATO, A. R. D. Consequências institucionais do revigorado
direito constitucional ao transporte: questões, indagações e desenvolvimentos urbanísticos e institucionais
após a emenda constitucional nº 90 à constituição brasileira de 1988. Revista de Direito da Cidade, v. 09,
nº1, Rio de Janeiro, 2017, p. 213.
144
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. Editora Lumen Juris, 3 ed.,
2009, p 14.
145
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) II - garantir o
desenvolvimento nacional; (...)” CRFB 1988.
93
Sendo assim, fica claro que a inclusão do direito ao transporte no artigo 6º, da Carta
Magna, trouxe maior destaque à sua relevância, sendo agora expressamente considerado
como um direito fundamental social. Além do mais, não se deve olvidar que o direito em
tela não deixa de se caracterizar como uma das faces do direito de ir e vir, previsto no
artigo 5º, caput (direito à liberdade), e inciso XV (direito a locomoção, entrada,
permanência e saída, no território nacional)147.
Para fechar esta subseção, faz-se necessário examinar um último ponto, não menos
importante, a respeito do tema. No que se refere à efetiva garantia do direito ao
transporte, o que mudou com a sua inclusão no artigo 6º da constituição? O ponto
principal a ser analisado, ainda que de forma breve, para que não se fuja do objeto deste
trabalho, é sobre a possibilidade (ou não) do pleito, inclusive individual, deste direito em
face do Poder Judiciário, como já acontece com outros direitos sociais, a exemplo da
saúde e da educação. Alguns autores defendem a possibilidade desta hipótese:
146
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Proposta de emenda à constituição nº 90-a, de 2011, da Sra. Luiza
Erundina, que “Dá nova redação ao art. 6º da constituição federal, para introduzir o transporte como
direito social". 2011, p. 02 Disponível em
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=522343. Acesso em
16/09/2019.
147
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XV - é livre a locomoção no território
nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele
sair com seus bens;” (grifo acrescentado)
94
148
BONIZZATO, L.; BOLONHA, C. e BONIZZATO, A. R. D. Op. cit., p. 221-222.
95
Antes de mais nada, deve-se consignar que o impacto nos custos de deslocamento
urbano provocados pelo advento do novo modelo é capaz de gerar consequências
significativas na dinâmica das cidades. Neste sentido, o principal efeito atribuído à
redução no custo do transporte é o espraiamento urbano (ou sprawl urbano), que consiste
149
“Os holandeses não apenas desregulamentaram o mercado de táxis, mas também criaram incentivos
para que tal mercado operasse em consonância com as outras políticas urbanas. Por exemplo, o mercado
de táxis foi estimulado a operar como um modal interligado à rede de transporte coletivo das cidades,
contrapondo a lógica de que os táxis são substitutos dos veículos particulares e que concorrem com o
transporte coletivo (argumento que tem sido desafiado pela evidência empírica recente). Em suma, os
holandeses compatibilizaram os benefícios trazidos pela desregulamentação do mercado de táxis (análise
de equilíbrio parcial) com os demais objetivos dos planejadores urbanos (análise de equilíbrio urbano).”
ESTEVES, Luiz Alberto. O Mercado de Transporte Individual de Passageiros: Regulação, Externalidades
e Equilíbrio Urbano. Documentos de Trabalho 001/2015. Departamento de Estudos Econômicos - DEE,
Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, Ministério da Justiça, Brasília, setembro de 2015,
p. 46.
150
“A economia de compartilhamento, nesse sentido, decorre da união de diversas necessidades sociais,
dentre elas, crises econômicas, e de facilidades tecnológicas: nasce da confluência de diversas demandas
e tendências econômicas e sociais, e mais importante, de um conjunto de inovações tecnológicas. De um
lado, consumidores cada vez mais conscientes, que preferem alugar a comprar e de outro, um sistema
tecnológico que permite isso”. RAUCH, Daniel e SCHLEICHER, David apud TELÉSFORO, Rachel
Lopes. Uber: Inovação disruptiva e ciclos de intervenção regulatória. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro,
2017, p. 29-30.
151
“Inovações disruptivas são caracterizadas, entre muitos fatores, por gerarem mudanças abruptas em
modelos de negócio, além de atuarem como uma plataforma em um mercado de dois lados, ligando
diversos fornecedores e consumidores. Portanto, garantem ao consumidor a oportunidade de desfrutar de
substitutos imperfeitos para hotéis e táxis, por exemplo. A plataforma on-line tende a reduzir os custos de
procura dos consumidores, ao mesmo tempo que permite que mais fornecedores possam entrar no
mercado, ao reduzir barreiras à entrada. Portanto, pode-se concluir que tais plataformas melhoram a
correspondência eficiente entre compradores e vendedores. Ao fazê-lo, tais plataformas entram em
concorrência com segmentos onde incumbentes históricos oferecem serviços semelhantes.” Ibidem, p. 15.
96
152
ARCHER, R. apud ESTEVES, Luiz Alberto. Op. cit., p. 38.
153
“Dentre os problemas ambientais, um de especial destaque é o aumento do escoamento das águas
pluviais, além do agravamento gerado pelo espraiamento das cidades nas periferias, onde geralmente são
concentrados os mananciais43. Outros problemas ambientais incluem: redução da diversidade de
espécies, aumento do risco de enchentes e inundações, remoção excessiva de vegetação nativa,
fragmentação de ecossistemas, etc (... ) redução da qualidade do ar (doenças respiratórias, do coração e
alguns tipos de câncer), acidentes com colisões de veículos automotores (traumas e ferimentos, fatais ou
não), isolamento social e estresse (impactos de saúde mental).” Ibidem, p. 38-39.
154
Ibidem, p. 13.
97
(art. 6º, II)155 quanto a Lei nº 10.233/2001 (art. 11, IX)156 preveem expressamente a
prioridade do uso das vias públicas pelos meios de transporte público coletivo e os não
motorizados em detrimento do transporte individual.
Sobre esta questão, entendo que a regulação municipal dos transportes urbanos deva
necessariamente considerar alguns pontos importantes. Em primeiro lugar, não se deve
contestar as referidas diretrizes regulatórias previstas em ambas as leis federais, pois não
há controvérsias quanto ao impacto negativo que a expansão do transporte individual
possa causar no tráfego urbano. Só que algo que pouco se discute precisa também ser
considerado. Os referidos dispositivos legais não se referem exclusivamente aos
serviços de transporte urbano individual, que englobam os táxis e os novos modelos do
tipo Uber. No conceito de transporte individual também deve ser incluído o transporte
individual privado, mediante veículo próprio, o que, a seu turno, não configura
nenhum tipo de serviço.
Diante desta situação, tendo em vista o direito fundamental ao transporte (art. 6º,
da CRFB), o direito de liberdade de locomoção (art. 5º, XV, da CRFB), e o princípio da
isonomia (art. 5º, caput, da CRFB), a regulação estatal não poderá conferir tratamento
mais gravoso aos usuários de serviços de transporte privado individual, quando
comparado ao tratamento conferido àqueles que se locomovem por meio de veículos
automotores próprios. Esta acepção da matéria, porém, somente deve ser observada
quando os fundamentos da regulação se aplicarem indistintamente a ambas as situações.
Ora, é justamente isso que ocorre quando considerados os aspectos relativos à
qualidade do tráfego urbano, à emissão de gases poluentes na atmosfera, ao
espraiamento urbano e a outros aspectos influenciados pelo transporte individual,
independentemente se configurado como serviço ou como uso de veículo automotor
próprio.
Portanto, a principal implicação deste entendimento é que as restrições e controle
de entrada no mercado de transporte individual não poderão ser implementados com
fundamento na qualidade do tráfego urbano e na redução emissão de gases poluentes, sob
pena de clara violação do princípio da isonomia, e dos direitos fundamentais ao transporte
155
Lei nº 12.587/2012: “Art. 6º. A Política Nacional de Mobilidade Urbana é orientada pelas seguintes
diretrizes: (...) II - prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos
serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado”. (grifo acrescido)
156
Lei nº 10.233/2001: “Art. 11. O gerenciamento da infra-estrutura e a operação dos transportes
aquaviário e terrestre serão regidos pelos seguintes princípios gerais: (...) IX – estabelecer prioridade
para o deslocamento de pedestres e o transporte coletivo de passageiros, em sua superposição com o
transporte individual, particularmente nos centros urbanos;” (grifo acrescido)
98
e à livre locomoção. É que, neste caso, os usuários dos serviços de táxis, Uber, e similares,
suportarão um ônus não estendido àqueles que se locomovem mediante veículos próprios.
Não obstante, há uma série de mecanismos jurídicos disponíveis aos gestores das
cidades para promover a prioridade dos transportes públicos coletivos e não motorizados
sobre os transportes individuais (incluindo os serviços e o uso de veículo próprio):
“Esses gestores têm focado suas políticas no sentido de criar incentivos para
que as pessoas substituam o transporte individual de passageiros (públicos ou
privados) por transporte coletivo. Neste sentido, os gestores urbanos
manipulam “carrots & sticks”, ou seja, buscam reduzir custos pecuniários
(subsídios) e de oportunidade (aumento na velocidade de deslocamento) dos
transportes coletivos e imputam custos adicionais aos veículos que servem de
transporte individual de passageiros, tais como impostos sobre propriedade
de veículos, taxas, seguros, pedágios urbanos, não utilização de linhas e
canaletas exclusivas para ônibus, rodízios de placas, (...)” (grifo
acrescido)157
157
ESTEVES, Luiz Alberto. Op. cit., p. 13.
158
Lei nº 12.587/2012: “Art. 5º A Política Nacional de Mobilidade Urbana está fundamentada nos
seguintes princípios: (...) II - desenvolvimento sustentável das cidades, nas dimensões socioeconômicas e
ambientais; (...) Art. 6º A Política Nacional de Mobilidade Urbana é orientada pelas seguintes diretrizes:
(...) IV - mitigação dos custos ambientais, sociais e econômicos dos deslocamentos de pessoas e cargas na
cidade; (...) Art. 7º A Política Nacional de Mobilidade Urbana possui os seguintes objetivos: (...) IV -
promover o desenvolvimento sustentável com a mitigação dos custos ambientais e socioeconômicos dos
deslocamentos de pessoas e cargas nas cidades;”
159
Lei nº 10.233/2001: “Art. 11. O gerenciamento da infra-estrutura e a operação dos transportes
aquaviário e terrestre serão regidos pelos seguintes princípios gerais: (...)V – compatibilizar os transportes
com a preservação do meio ambiente, reduzindo os níveis de poluição sonora e de contaminação
atmosférica, do solo e dos recursos hídricos; VI – promover a conservação de energia, por meio da redução
do consumo de combustíveis automotivos; VII – reduzir os danos sociais e econômicos decorrentes dos
congestionamentos de tráfego; (...) Art. 12. Constituem diretrizes gerais do gerenciamento da infra-
estrutura e da operação dos transportes aquaviário e terrestre: (...) V – promover a adoção de práticas
adequadas de conservação e uso racional dos combustíveis e de preservação do meio ambiente ”
99
Embora uma das maiores vantagens associadas aos transportes individuais por
aplicativos tenha sido a redução dos preços e maior democratização do acesso a este tipo
de serviço160, é fato notório que seus preços não se comparam com aqueles praticados no
âmbito dos transportes públicos coletivos. Neste sentido, não parece razoável imaginar
que haverá competição entre estas duas categorias de transporte urbano, sobretudo ao se
considerar as viagens de ida e volta no trajeto casa-trabalho de longas distâncias. Seria
mais razoável pensar que a concorrência dos motoristas da Uber e similares se dê no nicho
de mercado dos táxis, que envolve viagens mais curtas e/ou esporádicas, evidentemente
ampliando o acesso pela população ao serviço, tendo em vista a redução dos preços.
Considerando-se tal peculiaridade, é de se esperar que os novos serviços possam
melhorar a acessibilidade das vias expressas de maior mobilidade urbana161, atuando de
forma complementar aos transportes públicos urbanos. Foi justamente neste sentido que
se configurou o exemplo holandês por ocasião da desregulamentação dos serviços de
táxis, há pouco mencionado. Evidentemente, é necessário, para que sistema funcione, que
o Poder Público disponibilize serviços públicos de transporte com qualidade (segurança,
conforto, razoável rapidez, etc.), de modo a alcançar as diretrizes setoriais do transporte
que tratam da integração dos modais162.
Além destas implicações, o compartilhamento oneroso de um mesmo veículo
automotor ao longo do dia tende a diminuir a demanda por estacionamento nas regiões
centrais das cidades, considerando-se a possibilidade de cidadãos que possuam veículos
próprios optem por utilizar a Uber ou similares em determinadas circunstâncias 163. Este
tipo de uso do serviço possivelmente também ocorrerá para o lazer, em horários e dias
não comerciais, inclusive por consumidores de bebidas alcoólicas, evitando-se acidentes
de trânsito.
160
Este ponto será abordado na seção seguinte.
161
As definições dos termos acessibilidade e mobilidade foram abordadas no Capítulo 1.
162
Lei nº 12.587/2012: “Art. 6º A Política Nacional de Mobilidade Urbana é orientada pelas seguintes
diretrizes: (...) III - integração entre os modos e serviços de transporte urbano; ”. E Lei nº 10.233/2001:
“Art. 12. Constituem diretrizes gerais do gerenciamento da infra-estrutura e da operação dos transportes
aquaviário e terrestre: (...) II – aproveitar as vantagens comparativas dos diferentes meios de transporte,
promovendo sua integração física e a conjugação de suas operações, para a movimentação intermodal
mais econômica e segura de pessoas e bens;”.
163
ESTEVES, Luiz Alberto. Op. cit., p. 15.
100
Por fim, deve-se ressaltar que a democratização do acesso aos novos serviços de
transporte individual garante a um número maior de pessoas uma melhora na
autonomia164 do uso do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana (art. 3º, da LPNMU)165,
e, portanto, em maior acessibilidade (art. 4º, III, da LPNMU)166. Contribui-se, assim, para
uma maior inclusão social neste tipo de serviço, tradicionalmente elitizado167.
164
Lei nº 10.233/2001: “Art. 11. O gerenciamento da infra-estrutura e a operação dos transportes
aquaviário e terrestre serão regidos pelos seguintes princípios gerais: (...) VIII – assegurar aos usuários
liberdade de escolha da forma de locomoção e dos meios de transporte mais adequados às suas
necessidades; (...);”
165
Lei nº 12.587/2012: “Art. 3º O Sistema Nacional de Mobilidade Urbana é o conjunto organizado e
coordenado dos modos de transporte, de serviços e de infraestruturas que garante os deslocamentos de
pessoas e cargas no território do Município.”
166
Lei nº 12.587/2012: “Art. 4º Para os fins desta Lei, considera-se: (...) III - acessibilidade: facilidade
disponibilizada às pessoas que possibilite a todos autonomia nos deslocamentos desejados, respeitando-se
a legislação em vigor;”
167
Lei nº 12.587/2012: “Art. 7º A Política Nacional de Mobilidade Urbana possui os seguintes objetivos:
I - reduzir as desigualdades e promover a inclusão social; II - promover o acesso aos serviços básicos e
equipamentos sociais; III - proporcionar melhoria nas condições urbanas da população no que se refere
à acessibilidade e à mobilidade;”
168
BINENBOJM, Gustavo. Op. Cit. , p. 216.
169
“Em termos práticos, o UBER é um aplicativo (mobile app), disponível para download em smartphones,
que permite a qualquer usuário requisitar um veículo de motorista profissional, previamente credenciado
no UBER, para transporte individual de passageiros.” Ibidem, p. 218.
170
Ibidem, p. 225-226.
101
Desse modo, fica claro que a plataforma tecnológica fornecida pelo aplicativo
garante amplo acesso a informações relevantes para a tomada de decisão. No serviço de
táxis, durante muito tempo, o controle dos preços pelos Municípios foi o único
mecanismo adotado para a amenizar os efeitos da assimetria de informação. Na Uber, a
seu turno, por utilizar um sistema dinâmico de formação de preços, baseado na oferta e
demanda do serviço em determinado momento, além de permitir que o usuário tenha
conhecimento prévio do preço a ser pago, também é capaz de auto-regular o excesso de
oferta e de demanda, contribuindo para o a eficiência e equilíbrio deste mercado.
Quanto ao parâmetro da segurança, dois aspectos merecem ser abordados. O
primeiro diz respeito à segurança pública, que, no caso da Uber, o próprio fornecimento
amplo de informações sobre o motorista, sobre o usuário, sobre o veículo e sobre a viajem,
trazem maior sensação de segurança tanto aos usuários quanto aos motoristas. Com a
tecnologia de GPS largamente utilizada nos dias de hoje, é possível até mesmo que ambos
compartilhem a viagem com amigos ou familiares, em tempo real, para fins de segurança.
Ademais, exige-se dos motoristas a certidão negativa de antecedentes criminais,
exigência que está expressa na LPNMU (art. 11-B, IV).
102
171
Lei 10.233/2012: “Art. 11. O gerenciamento da infra-estrutura e a operação dos transportes aquaviário
e terrestre serão regidos pelos seguintes princípios gerais: (...) XII - estimular a pesquisa e o
desenvolvimento de tecnologias aplicáveis ao setor de transportes. (...) Art. 12. Constituem diretrizes gerais
do gerenciamento da infra-estrutura e da operação dos transportes aquaviário e terrestre: (...) IV –
promover a pesquisa e a adoção das melhores tecnologias aplicáveis aos meios de transporte e à
integração destes;”
103
172
BINENBOJM, Gustavo. Op. cit., p. 222.
104
Note-se que, de forma unânime, a Suprema Corte adotou o entendimento que vem
sendo defendido ao longo deste trabalho, especialmente no Capítulo 3, no que se refere
aos limites que deverão ser observados pelos entes federativos no âmbito da intervenção
regulatória sobre as atividades econômicas, neste caso, em relação ao serviço de
transporte urbano individual. Neste sentido, vale colacionar a ementa do referido
julgado, que resume, de modo muito esclarecedor, grande parte das ideias que foram
trabalhadas na presente monografia:
Por fim, diante do exposto nesta última subseção acerca da regulação equilíbrio de
mercado de transporte urbano individual, ao que tudo indica, os novos modelos de
serviços por aplicativos do tipo Uber parecem cumprir melhor as diretrizes sobre defesa
do mercado de transportes, previstos na Lei n° 12.587/2012173, na Lei nº 10.233/2001174,
e na Constituição Federal de 1988, especialmente quanto à livre concorrência e à defesa
do consumidor (art. 170, IV e V, respectivamente). Para fechar o capítulo, consigne-se,
in verbis, uma reflexão de Gustavo Binenbojm acerca do tema em estudo:
173
Lei n° 12.587/2012: “Art. 5º A Política Nacional de Mobilidade Urbana está fundamentada nos
seguintes princípios: (...) IV - eficiência, eficácia e efetividade na prestação dos serviços de transporte
urbano; (...)VI - segurança nos deslocamentos das pessoas; (...) IX - eficiência, eficácia e efetividade na
circulação urbana.”
174
Lei n° 10.233/2001: “Art. 11. O gerenciamento da infra-estrutura e a operação dos transportes
aquaviário e terrestre serão regidos pelos seguintes princípios gerais: (...) III – proteger os interesses dos
usuários quanto à qualidade e oferta de serviços de transporte e dos consumidores finais quanto à
incidência dos fretes nos preços dos produtos transportados; (...) Art. 12. Constituem diretrizes gerais do
gerenciamento da infra-estrutura e da operação dos transportes aquaviário e terrestre: (...) VII – reprimir
fatos e ações que configurem ou possam configurar competição imperfeita ou infrações da ordem
econômica.”
175
BINENBOJM, Gustavo. Op. cit., p. 226.
106
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo que foi analisado, a principal constatação, em termos gerais, se deu
em torno do caráter desafiador que regulação econômica apresenta. Trata-se de um campo
de aplicação do Direito, que, pela sua própria definição, envolve uma série de conflitos
de interesses políticos, econômicos e sociais, implicando, muitas das vezes, em colisão
de direitos e valores fundamentais. De fato, esta caraterística da regulação econômica
decorre de sua própria definição, pois os requisitos e restrições impostos pelo poder
público ao desenvolvimento das atividades econômicas geram aumentos dos custos na
geração de bens e serviços. Geralmente, o resultado deste tipo de intervenção estatal é o
aumento nos preços e a redução da oferta destes bens e serviços ao consumidor final.
Por outro lado, não se pode olvidar que a Carta Política e ordenamento jurídico
como um todo estabelecem um sistema amplo e harmônico de valores e direitos
fundamentais que orientam a vida em sociedade, a exemplo do meio ambiente
ecologicamente equilibrado, da saúde pública, dos direitos da personalidade, do direito
à privacidade, dos direitos trabalhistas, da redução das desigualdades sociais e
regionais, do princípio da solidariedade, da dignidade da pessoa humana, e dentre tantos
outros. Sendo assim, e sabendo-se que em nosso sistema constitucional nenhum direito
ou valor fundamental é absoluto, no âmbito da regulação econômica, todos os interesses
deverão ser considerados, decidindo-se casuisticamente a eventual prevalência de uns
sobre outros, mediante a ponderação dos interesses em jogo.
Ocorre que o setor de transportes de passageiros, tema central deste trabalho,
envolve direitos fundamentais centrais à dignidade da pessoa humana, como o direito de
liberdade, de ir e vir, e de ter acesso aos outros direitos fundamentais que demandem
serviços de transportes, como, por exemplo, a saúde e a educação. Deste modo, de todos
os pontos levantados ao longo deste trabalho, acerca dos limites à regulação do transporte
urbano individual, dois deles parecem ter um peso maior. Trata-se, primeiramente, da
obrigatoriedade dos entes federados, sobretudo dos Municípios, em observar o princípio
da isonomia quando cogitarem a possibilidade de impor restrições ao fornecimento do
serviço de transporte individual, quando estas mesmas restrições não forem extensíveis
aos proprietários de veículos utilizados no próprio transporte. Ora, conforme bastante
repisado neste trabalho, não se está a ignorar a necessidade de redução do uso de veículos
particulares nas grandes cidades, exigência necessária para a diminuição dos
congestionamentos e das emissões de gases poluentes na atmosfera, principalmente. A
107
questão é que não se justifica, com base nestes mesmos fundamentos, onerar, de forma
mais gravosa, os usuários dos serviços de transporte individual em face daqueles que se
utilizam do próprio veículo para se locomover pela cidade.
Por outro lado, as restrições baseadas na correção das falhas de mercado do setor
de transporte individual são específicas da atividade econômica em tela, não se aplicando
aos que se deslocam por meio do próprio veículo. Mas, mesmo assim, constatou-se neste
trabalho que, até o momento, em relação ao equilíbrio de mercado (defesa do consumidor
e defesa da concorrência) a auto-regulação decorrente das inovações gerenciais e
tecnológicas da Uber e similares parecem estar sendo mais efetivas do que a regulação
estatal, que vinha sendo aplicada aos serviços de táxis. Dessa forma, pretensões
regulatórias dos entes políticos (sobretudo, os Municípios), neste âmbito de proteção,
exigem estudos empíricos que demonstrem possíveis falhas neste mercado.
Ante o exposto, estas parecem ser as principais limitações da regulação estatal
sobre o setor em estudo: na seara da tutela do equilíbrio urbano e ambiental, somente
restrições extensíveis às pessoas que utilizam o próprio veículo para se locomover
poderão ser aplicados aos serviços de transporte urbano individual (pedágios, aumento
de impostos sobre veículos de pequeno porte, definição de faixas seletivas nas vias
públicas, aumento nos preços de estacionamentos, etc.), em razão do princípio da
isonomia, da proporcionalidade e da razoabilidade; já as restrições que visem a correção
de falhas de mercado exigirão o ônus da prova, mediante estudos científicos, ao poder
público regulador, sob o risco de captura regulatória e desvio de finalidade. Nenhuma
regulação se justifica por si só, a priori, sendo sempre necessário que se apresente
fundamentos razoáveis pelo poder público, sob pena de ilegalidade ou
inconstitucionalidade da medida.
108
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109
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