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SUMÁRIO

: EDUSC
Editora da Universidada do Sagrado Coração.
07 Questões para a História do presente -
por Agnês Chauveau e Philippe Tétart
39 Pode-se fazer uma história do presente? -
por Jean-Pierre Rioux
C€397q — Chauveau, Agnês
Questões para a história do presente / Agnês
Chauveau, Philippe Térart; Tradução llka Stern Cohen._ 51 O retorno do politico - por René Rémond
— Bauru, SP; EDUSC, 1999
132 p; 21 em._ - (Coleção História) 61 Marxismo e comunismo na histéria
recente - por Jean-Jacques Becker
TSBN 85-86259-99-3
1. História-Filosofia. 1. Tétart, Philippe. II. Título. 73 Ideologia, tempo e histéria - por Jean-
I Séri Frangois Sirinelli
CDD 901
93 A visdo dos outros: um medievalista
diante do presente - por Jacques Le Goff
SBN 2-87027-458-0 (original)
N. 2 Copyright © 1992 Editions complexe 103 Questdes para as fontes do presente - por
Copyright O de tradução 1999 EDUSC
Robert Frank
119 Entre histéria e jornalismo - por Jean-
Tradução realizada a partir da 1º edição 1992. * Pierre Rioux
ivos de publicação em língua portuguesa
para o Brasil adquiridos pela,
127 Conclusão - por Serge Bernstein e Pierre
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Milza .
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capítulo 2
PODE-SE FAZER UMA
EmHOW—b, DO PRESENTE?
por Jean-Pierre RIOUX
Antes de adiantar uma argumentação que po-
deria tornar plausível uma resposta positiva a esta
questão, é preciso estar de acordo acerca desta noção,
a priori desconcertante, de história “do presente”'. Pois
não se trata nem do “período” último de um recorte
do passado para uso escolar e universitário, nem de
um conceito de substituição por tempos de crise da
temporalidade nas nossas sociedades invadidas pelo
efêmero, nem mesmo de um paradigma regulador no
caos das ciéncias sociais. Uma história dita do presen-
te participa de fato mais ou menos de todos esses vo-
cábulos. Houve, não duvidemos disso, uma boa parte
de bricolage na sua construção, enquanto que aqueles
que a questionam não depuseram as armas. Na Fran-
Ga, a questdo se estabeleceu no finzinho da década de
1970, quando.o CNRS, sem fazer alarde, criou um la-
boratério, o Institut d'Histoire du Temps Présent, cuja
missão, precisamente, consistia em refletir ativamente
sobre a nogdo, conduzindo pesquisas especificas que
resumiriam o movimento. Ela ndo parou de agitar os
espiritos, e o dito Instituto nunca esteve resguardado
das atribulacdes.
1 Uma primeira versdo desse taxto foi publicada em
Historical Reflections. Réfiéxions historigues, 1991, vol,
17, n. 3, alfred University, Nova York, p. 297-305.
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A formulagio mais brutal da questdo, aquela cronológica que deseja apenas espessar-se, \Emm tam-
que suporta a carga epistemoldgica mais forte, é evi- bém como um momento particularmente favordvel a
il

dentemente esta: pode o presente ser objeto de histó- observação da ação do tempo passado sobre o presen-
ria? Como de fato inscrever um presente fugaz na te ¢, enfim, como uma permuta tangivel entre memó-
construção, ou reconstrução, necessariamente tempo- ria e acontecimento. P
ral ou retroativa , que elabora o historiador confron-
tando suas hipóteses de trabalho com a dura realida-
de da documentação e do arquivo recebidos? “Avan- A PROXIMIDADE E A INTELIGIBILIDADE
çando um pouco a reflexão, percebe-se que essa dú-
vida remete a uma inquietação propriamente filosófi- O argumento mais fregiiente invocado contra
ca::o presente tem sua chance diante de uma longa essa histéria é o da proximidade. A objeção, de fato, é
n:mmmmo que parece ser - toda a obra de um Fernand forte. Como traduzir em termos de duragdo um pre-
Braudel foi construida em cima desse “parece” - a sente, por definigao, efémero? Presente esse cuja pro-
verdadeira modulagie e 4 respiração vital do devir dução, além disso, é cada vez mais, ao longo do sécu-
humano? lo XX, fendémeno atual, cujos delineamentos são con-
Por falta; sem diivida, de ter recebido como seus fundidos nesse turbilhdo denso e indistinto de mensa-
colegas anglo-saxdes, alemdes ou italianos, uma for- gens, nesse imenso rumor mundializado de um
mação filosófica suficiente, os historiadores franceses “atual” triturado, amassado, transformado sem tré-
contornaram com bastante frieza essa provocagio e gua, sob o triplo efeito da mediatização do acontecido,
lhe dão muito freqlientemente uma resposta de or- da ideologizag¢do do ato e dos efeitos de moda na nos-
dem mais metodoldgica do que epistemolégica ou me- sa apreensao de um curso da histéria? Se nosso pre-
tafisica. É verdade que um grande nome os ajuda a ul- sente é doravante uma sucessao de tlashes, de delirios
trapassar sua deficiéncia conceitual oferecendo-Thes o partidérios e de jogos de espelhos, como sair dele para
aval do bom Pai: o de Tocqueville, que engastou so- erigi-lo, em objeto de investigação histórica? 1
berbamente como se sabe, o tempo curto da democra- Ainda mais que o préprio historiador, acrescen-
cia, na Franga e na América, no tempo longo dos An- te-se, imerso em seu tempo, também oscila no curso
tigos Regimes. Gragas a ele, os acontecimentos inaudi- da correnteza, mergulha nessa confusdo de aconteci-
tos e os messianismos datados que tecem um presen- mentos sem hicrarquia nem causas aparentes e toma
te entraram nesse jogo do distinguo entre rupturas e a sopa do dia no noticidrio da TV. E se ele quiser se li-
continuidades ao qual o historiador francés se entrega vrar da onda? Logo serd grande nele a tentação de
com avidez e que, mais freqlientemente, faz às vezes simplificar seu curso pela aplicacio de alguma filoso-
de bagagem diante de qualquer novidade desconcer- fia curta que secaré esse real desorientador no fogo de
tante. Não nos espantaremos, pois, por vé-io tratar tão seu voluntarismo. A armadilha assim estd montada:
à vontade & história do presente ao mesmo tempo entre a marulhagem indistinta e a simplificação abust-
3 como o término de uma periodiza¢do e a fina pelicula va, a inteligibilidade ndo teria nenhuma chance.
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Admitindo mesmo que algum clarão pudesse sumir suas forças e tornar insipidas suas lembrangas
advir de uma navegação ao acaso; no entremeio des- aceitando privar de sentido sua experiéncia. ‘Alguns
ses recifes, a auséncia de fontes completas e de docu- até queimam etapas, seja produzindo uma palavra
mentos confidveis tornaria muito va qualquer tentati- mediatizavel e logo consumivel, seja fazendo-se a si
va exploratdria, acrescentam os céticos. Impde-se, en- mesmos de historiadores por sua conta e risco (leia-se,
tdo, a conclusão, adocicada ou sentenciosa de acordo por exemplo, a feliz empreitada de Daniel Cordier a
com o humor do detrator: que o historiador abando- propésito de Jean Moulin®). '
ne a partida, que ceda lugar aos jornalistas seriamen- Não se trata mais aqui, percebe-se bem, de uma
te documentados que preduzem desde os anos 1960 versão atualizada desse gosto generalizado pela histó-
uma “histéria imediata”. sem pretensdes supértluas e ria ou desse ativismo das raizes, das genealogias e das
modelada por um Tournoux ou um Lacouture’; que se celebrações patrimoniais que atacaram nossas socie-
contente em ler haja o que houver e reunir entre eles, dades as vésperas de um fim de século”. É antes de um
como materiais para uma histéria em gestação que ele, vivo desejo de identidade que nasce €ssa ambição de
deveria modelar, a produção dos socidlogos retrospec- uma-tistóriaatenta”
o presenite, cujá originalidade”
tivos, politélogos de geometria varidvel, economistas será ser escrita sob o olhar dos atores e cuja vocação
ruminando suas imprevisdes ou etnélogos repatriados desabrochará no balanço das temerosas especificida-
de seus longinguos rincdes. des do século XX.aEla será uma espécie de evangelho .
eterno para vivos, cujo historiador podera ser o após-
H tolo; um depoimento de boa qualidade científica sobre
A BUSCA DE IDENTIDADE esse estranho. sentimento próprio de nosso tempo,
Ínédito na torrente do tempo e que atrapalha tão fre-
De fato, essa desistência não resolveria nada. quentemente nossos contemporâneos: a consciência,
É, pois, a própria sociedade que impulsiona o historia- dolorosa ou exaltante, de ter sido, por bem ou por
dor a não desistir, que lhe sugere não tropeçar diante mal, tomados, triturados e designados por uma histó-
do obstáculo dá'proximidade e até mesmo utilizá-lo ria catastrófica cujo curso eles jamais dominaram. '
para melhor saltar. Visto que atores e testemunhas,
humildes ou não, não esperaram mais muito tempo e
dizem alto e claro, como mostra a proliferação de de- 7
poimentos em livros, que não pretendem deixar con- 3 Daniel Cordelier, Jean Moulin. L'inconnu du
Panthéon, Paris, Jean-Claude Lattês, 2 vols., publica-
dos, 1989,
2 Ver em particular Jean Lacouture, De Gaulle, Paris, 4 Ver sobre esse ponto Jean-Pierre Rioux, “Lémoi
Le Seuil, 3 vols, 1984-1986. Sobre essa “história patrimonial”, em Le Temps de la réflexion, VI, Pa
imediata e, mais geralmente, sobre a ligação entre Gallimard, 1985, pp. 39-48 e, para uma compara
história do tempo presente e jornalismo, ver Jean- com antes de 1901, Chronique d'une fin e sidle,
Pierre Rioux, “Entre histoire et journalisme”, infra. Frarnce, 1889-1900, Paris, Le Seuil, 1991,
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Duas guerras e duas crises mundiais, uma des- que seu próprio enigma, cujo sentido não perceberaim,
colonização e uma guerra fria, duas partilhas do mun- que lhes ensine o que queriam dizer suas palavras,
do, em 1919 e em 1945, espetacularmente arruínadas
i

seus atos, que não compreenderam. Eles precisam de


nos anos 1930 e no alvorecer dos anos 1990, subver- um Prometeu, e que no fogo que ele roubou, as vozes
sões tecnológicas inauditas e um progresso galopante: que flutuavam geladas no ar se revoltem, transfor-
é muito, com efeito, no espaço em que mal cabem três mem-se num som, ponham-se a falar.(...) Só então os
gerações cuja expectativa de vida, alids, aumentou mortos se resignarão à sepultura”. .
sensivelmente. Assim, como estranhar que, tendo Essa recusa do efémero, esta necessidade de dar
mudado para tantos vivos a relação existencial com a sentido enquanto ndo se acredita mais nem no pro-
história - sem falar do peso inquisitório dos milhões de gresso linear, acompanham-se também de uma neces-
mortos -, o desejo de um relato linear resumido e de sidade de transmitir cóm urgéncia esta experiéncla
uma investigagdo explicativa da aventura tenha atin- embriondria e muito pouco loguaz as novas gerações
gido as consciéncias ? . | que, também elas, virgens de qualquer memdria ajui-
zada, arriscam-se a ser levadas no turbilhão e as quais
o “mocismo” ambiente renega ainda mais qualquer
A RECUSA DO EFEMERO capacidade de fidelidade histérica. Não ressaltamos o
bastante, me parece, o quanto nossas sociedades reco-
E essa preocupagdo com uma relagio fiel e com mecam com essa propensdo a declinar mais uma vez
a coleta do dossié é redobrada, com todos os efeitos da os grandes fatos de um presente memorável que in-
rapidez adquirida pela ação generalizada da midia, por ventou a Atenas de Herédoto ou de Tucidides. Desde
uma espécie de vontade comovente de lutar contra 1959 os estudantes colegiais da Franga deviam estudar
uma massificagio das efemérides que mantém uma te- o mundo até 1945 e, desde 1983, os programas de his-
merdria amnésia nas nossas sociedades. “Aceleragio da toria das classes de terceiro colegial ¢ de último ano
histéria” , mundialização das questdes, imediatismo de . dos liceus levam a investigagdo “até nossos dias” , sem
uma informagio torrencial vertendo “seqiiéncias” que que esta decisdo de acender os fogos do presente nos
‘fazem as vezes de acontecimentos: esses lugares co- jovehs espiritos possa ser o fruto de uma pressão cor-
muns do analista apressado do século XX excitam in- porativa dos professores (antes sacudidos por essa no-
contestavelmente um desejo de conhecimento instan- vidade, e até mésmo hostis a uma nova mudanga dos
tdneo, nutrem uma inquietago surda em que se mis- programas de último ano em 1989, que amplia a par-
turam nostaigia das “belles-époques”, reação de defesa te da histéria proximay): o sistema educacional , a pre-
diante do futuro, necessidade de continuidades marca- ~ o talvez de sua desarrumação interna e de sua inca-
das e sede de identidade coletiva ou nacional. A pres- pacidade atual de hierarquizar valores e conccitos, ho-
são social traduz assim no presente, tranfere para o mologou, sem reagir, uma ambição social que circula-
presente, a fórmula célebre que Michelet aplicava ao -va na atmosfera.
i passado: “ Eles precisam de um Édipo que lhes expli-
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RAESE

O BOM SENSO DO ARTESÃO moso “recuo”. A ambição cientifica constrói, a boa dis-
tancia, o seu objeto de estudo, métodos de investigação
É um mal ou um bem ? O debate não está fe- histérica acertados desde Langlois e Seignobos aneste-
chado, ‘mas não faltam argumentos, para resolvê-lo siam propriamente a carne de um presente alarmado,
o questionamento rigoroso apazigua a desordem parti-
ousadamente num sentido positivo.Afinal de cortas,
déria. Em poucas palavras: a construgdo de um relato
os programas escolares editados por Victor Duruy em
1865 paravam no limiar do ano...1863 e os de 1902
histérico hierarquizara, pois, tanto a perestroika gor-
batcheviana quanto a decomposição do império caro-
davam conta ousadamente do Caso Dreyius, enquan-
lingeo, tanto os “anos Miterrand”’ quanto a magistra-
to o último volume da grande Histoire de la France diri-
tura de Monsieur Falliéres.
gida por Ernest Lavisse, publicado em 1923 por Char-
les Seignobos, integrava sem partidarismos a guerra
de 1914-1918. Como não sentir além disso que tma
reflexdo histérica sobre o presente pode ajudar as ge- A ATUALIDADE DO TEMPO
ragdes que crescem a combater a atemporalidade con-
temporéanea, a medir o pleno efeito destas fontes ori- Somos instados a não sorrir diante de tanta can-
ginais, sonoras e em imagens, que as midias fabricam, dura anunciada por esses modestos pionciros de Clio
a relativizar o hino & novidade tão comumente entoa- atualizada. Pois a histéria do presente, experimentada
do, a se desfazer desse imediatismo vivido quc aprisio- hoje a partir dessa argumentagio considerada bem
na a consciéncia histérica como a folha de plastico simples, contribui, no entanto, para colocar questdes
“protege” no congelador um alimento que não se bastante temerdrias a disciplina histérica inteira .
consome? “Tudo o que é importante é repetido”, dizia ou-
A histdria do presente, como vemos, naceu sem trora Ernest Labrousse. E meio século de combates
n:fim.._anSEmmn:_:u_finun_a:n_muoaaaon:nnn: dos Annales para apreender o repetitivo significativo,
um imperativo listoriggrafico; pelo menos na Franca.
FE os historiadores do recente , nadando na indolércia
conceptual assinalada há pouco, mas bastante bem ga- 5 Também não nos esquecamos que foram' os histo-
rantidos sobre suas retaguardas sociais, fizeram bonito, riadores do politico que sempre estiveram na van-
no final das contas, martelando o bom senso do velho guarda da hist6ria do tempo presente. Sobre sua con-
artesdo, metodologicamente pouco sofisticado mas
tribuigio, ver René Rémond (org.), Pour une histoire
politique, Paris, Le Seuil, 1988.
passavelmente percuciente: o argumento da “falta de
recuo” não se sustenta, dizem eles, pois é o préprio his-
6 Sobre estas, ver o ensaio de mise en forme histórica
pontual, “Les années Miterrand (1981-1991), L'Histoire,
toriador, desempacotando sua caixa de instrumentcs e n. 143, abril de 1991, que compararemos utilmente
experimentando suas hipdteses de trabalho, que cria com um puro trabatho de jornalistas, Pierre Favier
sempre, em todos os lugares e por todo o tempo, o fa- e Michel-Martin Roland, La décennie Miterrand, 1. l.ex
rupiures, Paris, Le Seuil, 1990.
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MA f 1i sMA DAA
( MGVADABERMAÂLIMASA

para afirmar a série cuantificada como via real da in- Nós vivemos no retorno do recitativo,
.do des-
teligibilidade, para anunciar a longa duragdo portado- contínuo, do factual, do pessoal e do idealizado, num
ra do sentido oculto, forjou uma espécie de consenso século XX que, no entanto, proclamou tão forte a
débil que o estudo do presente bem que poderia atro- marcha forçada do progresso, a construção acelerada
.pelar. Pois a longa duracdo braudeliana adiciona de- do homem novo, a densificação inelutável dos fenô-
terminismos geograficos, socio-econdmicos ou antro- menos ¢ a inflexibilidade da lei do número: este para-
polégicos nem sempre dando a chave de sua hierar- doxo estd no bojo de uma histéria do presente; ele dá
quizagdo, porque perseverou na idéia de que o sólido a ela uma singular aptidao para a provocagio retros-
era perdurdvel e de que a apreensdo das economias, pectiva sobre o trabalho do historiador e & desconstru-
das sociedades e das civilizações bastava para esclare- ção das filosofias da histéria muito apressadas.
cer uima leitura da his:Gria. Essa história, de outro lado, toma tdo jubilaté-
Ora o presente, examinado sob o microscopio ria e t&o cientificamente oportuna‘a exploração de um
do historiador, faz brotar da proximidade ambiente segundo paradoxo do presente, que ilumina toda
um conjunto de argumentos mais ideal, mais cultural a configuração do tempo humano: o imbricamento
e mais individual, umz outra composigio hierarquiza- constante, cruel ¢ alimentador ao mesmo tempo, do
da do tempo, em que a ação combinada da personali- passado com o presente (inclusive sob a forma de
dade (a do grande lider, tanto daquele que decide traumas, no choque de. grandes eventos-datadores
como do vencido}, do acontecimento (esta “esfinge” como as guerras mundiais, de recalque ou de balbu-
dizia Edgar Morin’, fruto ilegitimo do capricho dos fa- cios da memória coletiva a propdsito das guerras
tos e do escandalo da midia) e do narrativo (a cronica de descolonizagdo, por exemplo), o trabalho do luto
massificada de um acontecido repetidamente provo- como condição necessaria para um apaziguamento ou
cando individuos cada vez menos agregados) põe em uma hierarquizagdo de um presente invasivo, a énfa-
dúvida o valor operatdrio e explicativo de um quanti- se da representagdo do passado como parte integrante
ficado macigo e de uma repeti¢do considerada com- do imediato. Uma vez que ela observa tão comoda-
probatdria, um e outro bem encravados desde os anos mente a presenga ativa do tempo na nossa construção
1930 nas boas velhas infra-estrutras do esquema do contempordneo, ela contribui sem divida assim
marxiano, sendo marxista. para melhor colocar a vetha questio do sentido, no
momento em que desabam as visdes do curso das
coisas. '
Essa história, de fato, por ser feita com testemu-
nhas vivas e fontes. proteiformes, porque é levada a
7 Num número sioneiro da revista Communication,
desconstruir o fato histórico sob a pressão dos mcios
18, 1972. Ver além disso Pierre Nora, “Le retour de
l'événement”, em Jacques Le Goff e Picrre Nora de comunicagdo, porque globaliza e unifica sob o fogo
(org.) Faire de ['histoire, Paris, Gallimard, das representagies tanto quanto das ações, pode aju-
oo

1974, pp.
210-228. dar a distinguir talvez de forma mais útil do que nun-
48 ' = 49
G5 BRG]
5

ca o verdadeiro do falso. Pois se.ela tem como missdo, capitulo 3


como toda histéria digna deste nome, mostrar a evi-
déncia cientifica das verdades materiais diante do es- O RETORNO DO POLITICO
quecimento, da amnésia ou do delirio ideoldgico,
(pensemos, por exemplo, nos que negam as ciinaras
de gas), ela sem diivida estd mais apta a explicar do
que a verdade estatistica da enumeragdo, da qual so- por René REMOND
mos tão apreciadores; ela não evita ver em ação a ver-
dade psicoldgica da intenção, a humilde verdade do
plausivel, a força da questdo da memoria sobre o cur-
Não insistirei em demonstrar que o politico, os
so do tempo.
fendmenos assim chamados, retomaram, na histéria
Um vibrato do inacabado que anima repentina-
contemporédnea, e particularniente naquela do-pre-
mente todo um passado, um presente pouco a pouco
sente, ainda comumente chamada de histéria imedia-
aliviado de seu autismo, uma inteligibilidade perse-
ta, um lugar que eles tinham perdido. Admite-se, hoje
guida fora de alamedas percorridas: é um pouco isto,
em dia, que o politico também pode ser um objeto de
a histdria do presente.
conhecimento cientifico assim como um fator de ex-
plicagdo de outros fatos além de si mesmo. Basta por-
tanto observar e considerar que ¢ incontestdvel. Cita-
rei dois exemplos. Primeiro a recente entrevista entre
Jean-Pierre Rioux
Jacques Le Golf e Pierre Lepape em que se coloca logo
a questdo: “Mas a crise da Nova Histdria expressou-se
também por um certo número de retornos, retorno da
histéria-relato, da biografia, do acontecimento, mas
sobretudo da histdria politica” que tinha sido manti-
da sob controle pelos Annales em proveito da histéria
econdmica e social. Qutre exemplo: a longa entrevis-
ta publicada pelo L'Express em 6 de fevereiro de 1992,
com Georges Duby, ele também medievalista. Seu in-
terlocutor lhe diz, a propdsito da Nova histdria: “Con-
fesse que ela conheceu também um sério revés. Por
interessar-se pelas profundidades e pelos detalhes” - o
que ndo é a mesma coisa, a questdo me parece con-
fundir duas ordens de realidade - “vocês acabaram por
' negligenciar os préprios acontecimentos”. E G, Duby
responde: “E verdade, é por isso que há uns dez anos
ES

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