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História das drogas

Chapter · January 2004

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Marcelo Ribeiro de Araújo Fernanda Moreira


Hospital Israelita Albert Einstein Universidade Federal de São Paulo
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Histórias das Drogas
Fernanda G. Moreira

Marcelo Ribeiro

Introdução
O consumo de plantas psicoativas remonta aos ancestrais do homem. O tema

polêmico dos tempos modernos é na verdade um assunto corriqueiro na história

da humanidade. No entanto, a ausência de novidade não diminui a polêmica

sobre o assunto. Outrora utilizada dentro de rituais religiosos, como

medicamentos ou recreacionalmente, o consumo de quase todas as substâncias

psicoativas foi proibido no Ocidente, incluindo o álcool nos Estados Unidos, que

o mantiveram na ilegalidade de 1919 a 1933. A partir da proibição, as drogas

passaram a ocupar o plano da marginalidade. A natureza farmacológica das

substâncias foi aos poucos se misturando aos valores sociais, culturais e morais

de cada sociedade. Esses, por sua vez, vêm determinando, o relacionamento

entre o homem e suas drogas.

Segundo Escohotado (1996), “São as atitudes sociais quem determinam quais

as drogas admissíveis e atribuem qualidades éticas aos produtos químicos”. Eis

a força motriz que rege o debate milenar acerca da legalidade e ilegalidade das

drogas, dos seus benefícios e perigos e o quanto tal proibição interfere nas

liberdades individuais e funcionam como forma de controle dos indivíduos pelo

Estado.
Para muitas pessoas, drogas são substâncias demoníacas e sua presença está

intimamente associada à degeneração dos valores sociais. Tais idéias se

contrastam com o uso festivo, religioso e sacramental dos primeiros tempos das

civilizações. Entre ambas as épocas, momentos de experimentação livre, por

vezes, abençoados pela Ciência, se alternaram com outros marcadamente

repressivos, ora de modo mais amplo e sistemático, ora restritos a substâncias

específicas.

Os caminhos trilhados até os tempos atuais são longos e complexos. No

entanto, continuam sendo analisados apenas a partir do presente. Assim, os

erros anteriores e as posturas historicamente assumidas continuam carecendo

de entendimento, deixando de contribuir para a busca de soluções mais

plausíveis (e menos apaixonadas), em especial por aqueles que convivem

diariamente com o problema e formam a opinião de boa parte do grande público

sobre o tema.

Cabe ao entendimento histórico desnudar preconceitos, sejam estes de caráter

repressivo ou libertário, por meio de uma análise cronológica e comparativa

capaz de abandonar conceitos maniqueístas, em busca de subsídios que

permitam a construção de uma nova consciência coletiva.


Homens e plantas
A manutenção do Paraíso Terrestre dependia da integridade de uma planta e da

abstinência de seu fruto. Ao violar essa regra Adão e Eva adquiriram a

consciência da morte e ficaram à mercê das impurezas do mundo. A expulsão

do Paraíso Terrestre não pertence apenas às grandes religiões monoteístas. A

primeira mitologia escrita (sumérios - 2800a.C.) fala de Enki, o Senhor da Terra

e habitante do Paraíso (Dilmun). Em um determinado momento, Enki resolveu

provar todas as plantas da Terra para “conhecer coração destas e determinar

seu destino”. Tal atitude despertou a ira de Ninhursag, a Deusa-Mãe, que

decidiu não mais lhe dirigir o “olho da vida”. Aplacada sua ira, Ninhursag fez

nascer Ninkasi, a Deusa das Poções, que curou Enki (Escohotado, 1996).

Tudo isso demonstra a importância que os vegetais possuíam para a

humanidade. Em primeiro, porque os vegetais sempre foram utilizados como

alimento pelo homem. Os primeiros ancestrais humanos eram herbívoros e

tinham nas frutas, nozes, raízes e tubérculos sua principal fonte de alimento. As

plantas psicoativas também faziam parte de sua dieta alimentar. Não há

qualquer sentido metafórico nessa afirmação. Drogas eram consumidas na

forma de plantas e plantas eram ingeridas como alimentos.

Segundo Sullivan & Hagen (2002), a fome perseguia constantemente o homem

pré-histórico. Os povos primitivos viviam da coleta e da caça. A dependência

extrema das forças da natureza os deixava sempre às voltas com a carestia.

Isso comprometia a provisão de aminoácidos essenciais à síntese de


neurotransmissores, como a serotonina, dopamina, noradrenalina e acetilcolina.

Nesse contexto, a busca por plantas psicoativas significava aliviar processos

cerebrais prejudicados pela depleção de neurotransmissores. Além disso, o

consumo de plantas psicoativas auxiliava o homem a tolerar as adversidades do

ambiente em que vivia. Desse modo, o consumo de estimulantes como as folhas

da coca e o tabaco ajudavam os hominídeos a suportar a fome e a fadiga.

Um processo adaptativo semelhante pode ser observado como consumo

ancestral de álcool. Apesar da evolução progressiva para o consumo de

gorduras e proteínas animais, a dieta dos primeiros ancestrais do homem era

eminentemente frugal. Qualquer fruto possui concentrações diminutas de álcool,

que aumentam ao longo de seu processo de amadurecimento. Um dos legados

genéticos desse hábito é a capacidade do homem metabolizar o álcool. Quanto

mais eficaz a metabolização do álcool pelo organismo, maior a capacidade de

tolerar sua presença e melhor a capacidade humana para a ingestão dos frutos.

O álcool em baixas doses nos frutos servia com estimulante para os seres vivos,

reforçando a associação entre o valor nutricional e o prazer do consumo

(Dudley,2002).

Plantas dos deuses


A necessidade do homem de se relacionar com o divino e seu mundo

aparentemente mágico, misterioso e ameaçador fez surgir a figura do

curandeiro, cuja função era viajar pelo sobrenatural, absorver as impurezas e as


enfermidades do mundo e trazer a seu grupo a esperança da vida. Encontra-se

aí a relação entre as primeiras formas de religião e o consumo de drogas

(McKenna, 1993; Escohotado, 1996).

A palavra fármaco deriva do grego (pharmak) e significa aquilo que o poder de

transladar as impurezas. A vítima dos sacrifícios oferecidos aos deuses (fosse

ela vegetal, animal ou humana) era chamada pelos gregos de pharmakós. O

alimento utilizado durante as cerimônias de comunhão era chamado de

phármakon. Essa última palavra passou a integrar a terminologia médica grega

e chegou até nossos dias com o nome de fármaco, remédio, medicamento. Para

os gregos phármakon era aquilo que poderia causar o bem ou o mal; a vida ou a

morte (Escohotado, 1996).

Até o aparecimento de Hipócrates não havia separação entre a técnica médica e

a magia. Desse modo tudo aquilo que fosse capaz de modificar os estados de

ânimo era considerado milagroso, um sinal do divino. As plantas capazes de

proporcionar tal efeito passaram a ser tratadas pelos sacerdotes como

enteógenas, ou seja, aquilo que engendra Deus dentro de si, que gera o divino.

Essas plantas passaram a ser uma ferramenta fundamental para que os

curandeiros realizassem suas operações lustrais, divinatórias ou de intervenção

na realidade, pois para isso era preciso que alcançassem estados alterados da

consciência. Nas palavras de Escohotado, a conjugação desse ato com a

música e a dança “produziam um frenesi extático, que promovia a liberação do


eu, cujo espaço era ocupado por um espírito tanto mais redentor, quanto menos

se parecesse com a lucidez”. As substâncias utilizadas nesse tipo de ritual eram

fundamentalmente sedativas (entorpecentes), como o álcool, o ópio, as plantas

anticolinérgicas, o cânhamo e os cogumelos.

O consumo de drogas na antiguidade

Civilizações do Crescente Fértil

Para os egípcios, as substâncias psicoativas tinham finalidades médicas e

profanas. As plantas mais consumidas, com ambos os propósitos, eram o

cânhamo, a mandrágora, a datura e a papoula. Os egípcios conheciam o

processo de fermentação das frutas pelo menos desde 3000a.C. O ópio,

extraído dos frutos da papoula, ao lado do vinho e da cerveja eram as

substâncias mais consumidas (McKenna, 1993; Escohotado, 1996).

A Mesopotâmia, localizada entre os rios Tigre e Eufrates foi ocupada

sucessivamente pelos sumérios, babilônios e assírios. Foi provavelmente nessa

região que a cerveja foi produzida pela primeira vez. Os mesopotâmios

utilizavam praticamente as mesmas substâncias consumidas pelos egípcios e

com os mesmos propósitos. Assim como no Egito, papoula tinha posição

privilegiada, vista como uma fonte de prazer e gozo (Escohotado, 1996).

Índia e China

Os hindus foram os que mais utilizaram substâncias psicoativas com propósitos

religiosos e extáticos. O cânhamo, conhecido por ananda (fonte de vida) foi dado
aos hindus pelos deuses, que o fizeram brotar ao deixarem cair do céu gotas de

ambrosia (McKenna, 1993). O hábito de fumar maconha e datura permeou os

primeiros tempos das meditações budistas e segundo a mitologia hindu, quando

Buda meditava, gotas de orvalho caíam do céu na forma de daturas (Shultes et al.,

1998). Os hindus possuíam um deus-narcótico: o Soma. Tal divindade se

personificava em uma bebida de mesmo nome. A Amanita muscaria estava

presente em sua composição. Acreditava-se que a bebida era consumida

exclusivamente pelos deuses, mas fora dada como presente aos homens, para

conferir-lhes força e sabedoria (Escohotado, 1996).

Os primeiros vestígios de utilização do cânhamo encontram-se na China

(4000a.C.). A planta, no entanto, era pouco utilizada com fins religiosos ou

ritualísticos. O uso das fibras da planta para o fabrico de cordas e tecidos era a

principal utilidade do cânhamo para os chineses (Shultes et al., 1998).

O maior legado dos chineses para a humanidade foi o hábito de consumir o chá

verde. O chá verde foi descoberto pelo imperador Shen Nong, o pai da

agricultura chinesa. Segundo a lenda, enquanto viajava pelo interior da China,

folhas de Camellia sinensis caíram dentro do recipiente onde se fervia a água

para o descanso do imperador. Curioso, Shen Nong provou a bebida e

encontrou nessa uma fonte de refrescância e disposição.


Civilizações Pré-Colombianas

Apesar da pequena extensão, a América Central possui o maior número de

plantas com propriedades psicoativas, em especial alucinógenas. Todas elas

foram incorporadas aos rituais de purificação e êxtase dos toltecas, maias e

astecas (Shultes et al., 1998). Os cogumelos do gênero Psilocibe, denominados

“pequenas flores dos deuses” pelos astecas, foram os mais utilizados por essas

civilizações. As civilizações da América Central produziam um vinho sagrado, o

ololiuqui, utilizando sementes da Ipomea sp. e da Turbina sp., ambas são ricas

em alcalóides LSD-análogos. Os astecas sabiam fermentar a piña, uma polpa

suculenta extraída do ágave azul (Tequilana weber), com a qual faziam um

fermentado denominado pulque. Após a conquista espanhola, o pulque foi

destilado e originou a tequila, a bebida nacional do México. Os maias já

conheciam as propriedades estimulantes do cacau (cafeína) e sabiam fabricar

bebidas achocolatadas (McKenna, 1993; Escohotado, 1996).

Descendentes dos astecas, os huichóis permaneceram isolados por longos

períodos em Sierra Madre (México), tornando-se o povo pré-colombiano cujas

raízes culturais foram menos afetadas. Os huichóis acreditavam que podiam

conversar com o Grande Espírito a partir do consumo de um cacto, denominado

peiote, rico em mescalina, um alcalóide LSD-análogo (Shultes et al., 1998).

Detentores do mais vasto império das Américas, os incas utilizavam diferentes

substâncias psicoativas, com propósitos distintos. O hábito de mascar as folhas

da coca é o mais conhecido. Os incas chamavam-na de Mama Coca e


acreditavam que a planta era um presente dos deuses para que pudessem

suportar a fome e a fadiga. O consumo era um privilégio da nobreza. Soldados

de bravura comprovada, e servos podiam consumi-la mediante a autorização

expressa do imperador (Escohotado, 1996). Além da coca, os incas sabiam preparar,

pela infusão de duas plantas da floresta, a Ayahuasca. A palavra deriva do

quéchua, idioma oficial do Império Inca e significa vinho da alma (Shultes et al.,

1998). A bebida alcoólica dos incas era obtida a partir da fermentação do milho e

chamada de chicha.

Civilizações amazônicas

As civilizações amazônicas consumiam diversas plantas alucinógenas, com fins

religiosos. Os pajés, sob o efeito das substâncias, adquiriam poderes

telepáticos, divinatórios e lustrais. As principais plantas consumidas são ricas em

dimetiltriptamina (DMT), um alucinógeno LSD-análogo. São elas o yopo

(Anandenathera peregrina), a jurema (Mimosa hostilis), a epena (Virola

theiodora) e a chacrona ou rainha (Psychotria viridis) (McKenna, 1993).

Entre essas, merece destaque a ayahuasca, uma bebida preparada a partir da

chacrona e do cipó do jagube (Banisteriopsis caapi). A ayahuasca é conhecida

pelas civilizações amazônicas há pelo menos 2000 anos. Acredita-se que os

incas foram os grandes difusores da planta entre as tribos amazônicas (Shultes et

al., 1998). O consumo permaneceu vivo entre as tribos indígenas até ser

sincretizada a rituais cristãos no início do século XX pelo maranhanse Raimundo


Irineu Serra, o Mestre Irineu, que passou a chamar a ayahuasca de Santo

Daime. (Dai-me paz, dai-me saúde, dai-me felicidade).

A Idade Média
Durante a Antigüidade Clássica, as substâncias psicoativas foram utilizadas com

finalidades médicas, rituais e profanas. Com a fragmentação do Império

Romano, o mundo Ocidental abandonou as cidades e se fixou no campo, em

busca de subsistência e proteção contra as invasões bárbaras que assolavam o

antigo império.

A Europa viu-se fragmentada em feudos, unida apenas pela moral cristã. Dentro

desta, o consumo de substâncias psicoativas, outrora inserida em rituais

pagãos, foi terminantemente proibida, associado a atitudes demoníacas e

passível de penas capitais. Aqueles que insistiam em manipular tais ervas eram

freqüentemente acusados de bruxaria. Uma das plantas mais conhecida dos

europeus medievais era a mandrágora (Mandragora officinarum), rica em

propriedades anticolinérgicas (Mckenna, 1993).

As drogas nas sociedades ocidentais contemporâneas.

O contato com as substâncias

Com o fim da Idade Média, os europeus realizaram sua grande expansão

comercial por meio das navegações. A partir deste feito, voltaram a entrar em
contato com substâncias que utilizaram na Antigüidade e com outras trazidas do

Novo Mundo. A partir do século XVIII, várias experiências científicas foram

feitas com as mesmas. Paulatinamente, uma grande quantidade de

medicamentos foram produzidos a partir dos alcalóides destas plantas.

O consumo liberado

A partir do século XIX, a partir do espírito contestador do Romantismo, as

substâncias passaram a ser utilizadas com finalidade puramente recreativa. Foi

uma período de grande tolerância com o surgimento de vinhos à base de folhas

de coca, abertura de salões de ópio (fumeries) e consumo de maconha. Um

marco deste período foi a fundação do Clube dos Haxixins (1842), pelo médico

francês J.J. Moreau de Tours, um psiquiatra que utilizava o haxixe para o

tratamento da insanidade mental. Participavam do clube intelectuais como

Victor Hugo, Charles Baudelaire, Eugene Delacroix, entre outros (Escohotado, 1996).

Na opinião de David Musto (2002), a disseminação das drogas nas sociedades

ocidentais percorreu, via de regra, o seguinte caminho: inicialmente

apareceram como medicamentos promissores, que despertaram grande

interesse na classe científica. Os debates entusiasmados dentro dos muros da

academia chamaram a atenção do grande público. Nesse novo espaço, porém,

o consumo foi aos poucos se afastando do discurso e controle médico. Voltado

para uma perspectiva de prazer e recreação.

Essa nova condição das substâncias psicoativas, de instrumento ritual a produto

de consumo (e por isso desprovida de lastro cultural e rituais de controle),


proporcionou novos padrões de uso, com o surgimento de complicações e

danos físico, psicológicos e sociais. Isso suscitou nas nações a necessidade de

criar mecanismos de controle.

A proibição do consumo

Nas sociedades ocidentais contemporâneas, o fim do século XIX e o início do

século XX foram marcados pelo primeiro ciclo de intolerância ao uso de

substâncias psicoativas. Nos Estados Unidos, este ciclo iniciou com a

perseguição ao ópio em forma de fumo na Califórnia na década de 1870,

passou pela campanha contra a cocaína e a primeira lei contra ela (o chamado

Harrison Act, assinado em 1914) e culminou na aprovação de um dispositivo

legal que proibia a venda, distribuição e consumo de bebidas alcoólicas em todo

o território americano: o Volstead Act, mais conhecido como a “Lei Seca”, que

vigorou de 1919 a 1933.

A Islândia, também sede de um forte movimento de intolerância, foi o primeiro

país ocidental a contar com uma lei proibindo o consumo de bebidas alcoólicas,

aprovada em 1908. (Carlini-Cotrim, 1992; Bravo, 2000). O primeiro esforço oficial para o

controle das drogas na Inglaterra foi durante a Primeira Grande Guerra, quando

o uso de opióides e de cocaína começou a ficar fora de controle. Estas

substâncias eram vendidas nas farmácias como um “útil e agradável presente

para os soldados na guerra”. O primeiro ato de controle das drogas então foi a

restrição da sua disponibilidade. Esta repressão levou à insatisfação da classe


médica inglesa que perdia a autonomia de prescrição de tais substâncias.

(Moreira, 2001).

Segundo Siveira (2001), “Cabe salientarmos que em situações onde o acesso às

drogas é muito facilitado e mesmo estimulado, existe também uma tendência ao

consumo descontrolado”. A ausência de medidas de controle, aliada às

turbulências sociais do período, fez notar o uso indevido de substâncias

psicoativas como fenômeno crescente. Porém, o outro extremo a que esta

política chegou não é menos perigoso. Ainda segundo Silveira, “Outro exemplo

do desenvolvimento de formas mais perigosas de consumo de drogas

desencadeadas pela repressão se deu na época da Lei Seca, no início deste

século, quando foi proibido o uso de álcool nos Estados Unidos: foi o único

momento da história onde, em conseqüência da dificuldade de acesso a bebidas

alcoólicas, foram registrados casos de uso de álcool injetável”.

“Doze anos depois (da aprovação da ‘Lei Seca’ americana) existiam 500.000

novos delinqüentes, 34% dos agentes responsáveis pela repressão são

suspeitos de corrupção junto com dois ministros, o do Interior e o da Justiça,

30.000 pessoas morrem por beber álcool metílico e 100.000 ficam com lesões

permanentes”. (Escohotado, 1996).

Segundo Musto (1991), durante o período de intolerância às drogas, os norte-

americanos conjugaram leis severíssimas a uma estratégia de silêncio, de

sonegação de informação à população sobre os efeitos e causas do uso de

drogas. “Penas severas, silêncio e, se o silêncio não era possível, exagero,


foram estratégias básicas contra as drogas”. Ainda para este autor, o preço

destas táticas equivocadas foi a descrença nas escassas e caricaturais

mensagens antidrogas veiculadas e, principalmente, a formação de uma

geração sem memória, que ignorava as lições do passado.

Motivações dos movimentos de controle de substâncias psicoativas

Vale à pena mencionar que existem divergências entre os estudiosos quanto às

motivações dos movimentos de controle de substâncias psicoativas. Conforme

(Carlini-Cotrim, 1992), para o enfoque epidemiológico, esboçado acima, estes ciclos

podem ser explicados fundamentalmente pela reação da população às variações

epidemiológicas de consumo de psicotrópicos. Segundo este enfoque, a postura

mais liberal em relação às drogas levaria ao aumento do consumo pela

população. Este aumento de consumo traria como conseqüência um aumento

nos danos pessoais e sociais, como maior número de acidentes, aumento de

casos de uso abusivo e dependência de psicotrópicos. O que levaria à

população a ter uma atitude menos tolerante frente às drogas.

“Com o século XIX chega o descobrimento e a comercialização dos fármacos,

sendo os principais, a morfina e a heroína. A comercialização e venda desta

última transformou a pequena fábrica de corantes Bayer numa gigantesca

empresa química. Em 1859 é produzida a cocaína, que pouco tempo depois

passou a estar presente em mais de uma centena de bebidas de venda livre,

entre elas a Coca Cola e o famoso vinho de coca Mariani. No inicio do século XX

as drogas conhecidas são de venda livre, sem que o fato chame a atenção de
juízes ou políticos”. (Bravo, 2000). Então, de acordo com o enfoque epidemiológico,

o desenvolvimento da indústria química possibilitando o aumento da variedade e

disponibilidade das substâncias psicoativas, aliado à falta de controle social teria

propiciado um aumento descontrolado do consumo dos psicotrópicos. E os

movimentos repressivos seriam o fruto da reação da sociedade frente aos danos

trazidos pelo uso indevido das drogas.

Para um outro enfoque, chamado psicossocial, a situação epidemiológica não

seria suficiente para explicar estes movimentos sociais: “Mais que isso, alguns

autores, como Craig Reinarman e Harry Levine, sugerem que a existência

objetiva de certos problemas sociais e a formação de movimentos que clamam

por sua resolução são processos independentes entre si... Assim, vários autores

(Levine, 1978; Pinson, 1985; Sulkunen, 1985) têm se dedicado a estudar os processos

sociais e históricos que têm levado os movimentos anti-drogas a cumprirem, nas

sociedades urbano-industriais, papéis de demarcarem fronteiras sociais, de

consolidarem estereótipos étnicos e sexuais, de fortalecerem sentimentos de

nação e classe, de legitimarem ações repressivas e de controle”. (Carlini-Cotrim,

1992).

Escohotado (1996) relaciona o movimento proibicionista na América com dois

fatores principais: primeiro, a reação do puritanismo nos EUA (que, como os

outros países onde floresceram os movimentos proibicionistas, tem forte

influência religiosa protestante) ao aumento da imigração - os abusos de

cocaína começam a ser atribuídos aos negros, de maconha aos mexicanos e de


álcool aos judeus e irlandeses, e segundo, à liquidação do estado mínimo, com

o recurso da formação de uma crescente burocracia que tenta disciplinar a vida

pública.

Segundo Carlini-Cotrim (1992), “O álcool passou cada vez mais a ser o elemento

que explicava tudo o que não ia bem na nação norte-americana emergente:

pobreza, crime, violência, desestruturação familiar, crianças abandonadas,

insucessos pessoais e falências financeiras... No século XIX, a transformação

do álcool em ‘bode expiatório’ da sociedade norte-americana significa,

sobretudo, a possibilidade de explicar os insucessos da ‘América Livre’ (Free

America)”.

Os estudiosos imputam motivação semelhante na proibição da maconha no

Brasil. A expansão do uso da cannabis entre os séculos XVI e XX no Brasil se

deu preferencialmente entre negros e índios, relacionando-se aos setores

marginalizados da sociedade. “Associada aos negros e aos índios, a maconha

em pouco tempo adquiriu fama. Vinculada a uma idéia de vagabundagem e

malandragem, a erva tornou-se maldita e a cultura do homem branco criou o

estigma e o mito ainda predominantes” (Rocco, 1999). Desta forma, associava-se

indiretamente a idéia de vagabundagem e malandragem aos negros e índios.

Para Adiala (1985) (apud Rocco, 1999) “a transformação do uso de drogas em

problema público, no Brasil, remonta às últimas décadas do século XIX e se

articula ao processo de controle da medicina por agentes especializados no

tratamento de saúde... esta nova medicina passa a ser oficial no país, instituindo
em sua prática ‘novas técnicas de controle social’, como forma de combater as

causas dos males do Brasil que eram o clima tropical e a miscigenação racial...

É nesse momento que as drogas aparecem como um problema”. E assim

seguem inúmeros exemplos de “lucros sociais secundários” trazidos pela

intolerância às drogas aos diversos países onde floresceu a “Ideologia de

Temperança”, que ultrapassam em muito a problemática dos danos trazidos pelo

uso indevido de substâncias psicoativas em si.

A contracultura e os questionamentos ao modelo proibicionista

No século XX, as décadas de 60 e 70 marcaram, em vários países, um período

de acentuada condescendência com o consumo de drogas. Neste período,

artistas e intelectuais propagaram o uso de substâncias psicoativas e o

associaram a ideais de contracultura e de uma nova ordem social. Foi um

período de grandes questionamentos, os jovens americanos não aceitavam com

a mesma naturalidade a intervenção bélica americana no Vietnã, reuniram-se

em grandes eventos como o festival de Woodstock. O desenvolvimento da

pílula anticoncepcional e publicações ousadas, como o relatório Hite,

questionavam tabus arraigados, desvinculando a atividade sexual da

constituição de família. Na França florescia uma turbulência que teve como

apogeu o movimento de “Maio de 68”, quando se tinha a impressão do fim da

ordem social vigente. O uso de substâncias psicoativas entrou neste pacote de

experimentações de novos costumes e questionamentos sociais (Olievenstein,

1991). Ainda na França, em 1970, foi aprovada a lei que garante o anonimato,

gratuidade e voluntariedade do tratamento dos dependentes químicos,


fundamentos que regem até hoje o atendimento a farmacodependentes neste

país (Moreira, 2000). Carlini-Cotrim (1992), observa que “o que distinguiu essas

décadas das que as precederam (e sucederam também) é que as tentativas de

discriminar e reprimir o uso de substâncias psicoativas encontraram,

comparativamente, pequeno eco social e pouca legitimidade”.

“Embora o uso de drogas e especialmente de opiáceos não fosse em absoluto

um problema novo para os Países Baixos, as raízes do problema das drogas na

atualidade encontram-se no final dos anos 60. Foi a época dos protestos

estudantis e juvenis, do questionamento da ordem social estabelecida e da

busca de novos valores (sub) culturais. Como parte dessa busca, as pessoas

começaram a experimentar drogas, como maconha e alucinógenos” (Grund, Kaplan

& Adrians, 1989).

Desde o fim da década de 70, o cenário das drogas passou por um novo

processo de mudança: vários países viveram um segundo ciclo de intolerância

às drogas, capitaneado pelos Estados Unidos e corroborado pela elaboração

das Convenções-Irmãs da ONU.

“Em 1972, a heroína tornou-se amplamente disponível nos Países Baixos. A

reação inicial das autoridades nacionais e locais não foi muito diferente da

reação que atualmente ainda vemos em muitos outros países, que, em palavras

simples, diz: "Este fenômeno é indesejável. Devemos livrar-nos dele por todos

os meios!" "Todos os meios" significava uma política judicial repressiva e...


(rápido) crescimento do movimento de tratamento baseado na abstinência”.

(Grund et al., 1989).

Porém, de acordo com Maierovitch (2003), o posicionamento europeu distanciou-

se do norte-americano. Enquanto este foi se caracterizando por uma crescente

intolerância, especialmente voltado para o consumo de drogas ilícitas, aquele

foi, gradativamente, aceitando novas formas de abordagem do problema,

conforme era observada a ineficácia das abordagens repressivas.

Desdobramentos futuros
Drogas sempre existiram e sempre existirão. Trata-se de uma realidade perene

e historicamente comprovada. Por sua vez, a maneira como a humanidade se

relaciona com as substâncias psicoativas é mutável. Na vigência do

proibicionismo mundializado, o debate atual sobre status das substâncias

psicoativas dentro da sociedade ocidental vem-se desenvolvendo a partir das

soluções apresentadas pelo o modelo norte-americano e o europeu.

Enquanto o primeiro tem privilegiado a repressão ao tráfico e consumo, à custa

da supressão de inúmeros direitos civis, a Europa tem adotado uma visão mais

tolerante e flexível, respeitando mais o conceito de cidadania. Apesar disso, as

Nações Unidas ainda corroboram a política repressiva, mesmo com todos os

reveses sociais que este tem causado, tais como violência, fortalecimento do

crime organizado e corrupção do Estado.


O ideário de um mundo livre de drogas completou um século, longe de alcançar

seus objetivos e com ‘efeitos colaterais’ altamente indesejáveis. Cabe, então, a

proposição de idéias que partam de outras premissas. Se um mundo livre de

drogas não se mostra possível, tendo em vista seu caráter milenar e

culturalmente arraigado à humanidade, talvez seja o momento de considerar

soluções que respeitem os direitos sociais, a tolerância e o convívio com as

diferenças. Desse modo, a sociedade civil recuperará uma importante

ferramenta suprimida pelos anos de proibição: a capacidade moldar hábitos a

partir dos referenciais de cultura e cidadania de seus membros. Uma história

que ainda não foi contada.

Referências bibliográficas
Dudley RF. Fermenting fruit and historical ecology of ethanol ingestion: is alcoholism in modern

humans an evolutionary hangover? Addiction 2002; 97: 381-8.

Escohotado A. Historia de las drogas. Madrid: Alianza Editorial; 1996.

McKenna T. Food of the Gods – the search for the original tree of knowlegde. New York:

Bantam Books; 1993.

Musto DF. One hundred years of heroin. Westport: Auburn House; 2002.

Shultes RE, Hofmann A & Rätsch C. Plants of the Gods – their sacred, healing and

hallucinogenic power. Rochester: Healing Art Press; 1998.

Sullivan RJ & Hagen EH. Psychotropic substance seeking: evolutionary pathology or

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