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Universidade do Sul de Santa Catarina

Filosofia Política II
Disciplina na modalidade a distância

Palhoça
UnisulVirtual
2011
Créditos
Universidade do Sul de Santa Catarina | Campus UnisulVirtual | Educação Superior a Distância
Avenida dos Lagos, 41 – Cidade Universitária Pedra Branca | Palhoça – SC | 88137-900 | Fone/fax: (48) 3279-1242 e 3279-1271 | E-mail: cursovirtual@unisul.br | Site: www.unisul.br/unisulvirtual
Reitor Coordenadores Graduação Marilene de Fátima Capeleto Patrícia de Souza Amorim Karine Augusta Zanoni
Ailton Nazareno Soares Aloísio José Rodrigues Patricia A. Pereira de Carvalho Poliana Simao Marcia Luz de Oliveira
Ana Luísa Mülbert Paulo Lisboa Cordeiro Schenon Souza Preto Mayara Pereira Rosa
Vice-Reitor Ana Paula R.Pacheco Paulo Mauricio Silveira Bubalo Luciana Tomadão Borguetti
Sebastião Salésio Heerdt Artur Beck Neto Rosângela Mara Siegel Gerência de Desenho e
Bernardino José da Silva Simone Torres de Oliveira Desenvolvimento de Materiais Assuntos Jurídicos
Chefe de Gabinete da Reitoria Charles Odair Cesconetto da Silva Vanessa Pereira Santos Metzker Didáticos Bruno Lucion Roso
Willian Corrêa Máximo Dilsa Mondardo Vanilda Liordina Heerdt Márcia Loch (Gerente) Sheila Cristina Martins
Diva Marília Flemming Marketing Estratégico
Pró-Reitor de Ensino e Horácio Dutra Mello Gestão Documental Desenho Educacional
Lamuniê Souza (Coord.) Cristina Klipp de Oliveira (Coord. Grad./DAD) Rafael Bavaresco Bongiolo
Pró-Reitor de Pesquisa, Itamar Pedro Bevilaqua
Pós-Graduação e Inovação Jairo Afonso Henkes Clair Maria Cardoso Roseli A. Rocha Moterle (Coord. Pós/Ext.) Portal e Comunicação
Daniel Lucas de Medeiros Aline Cassol Daga Catia Melissa Silveira Rodrigues
Mauri Luiz Heerdt Janaína Baeta Neves
Aline Pimentel
Jorge Alexandre Nogared Cardoso Jaliza Thizon de Bona Andreia Drewes
Pró-Reitora de Administração José Carlos da Silva Junior Guilherme Henrique Koerich Carmelita Schulze Luiz Felipe Buchmann Figueiredo
Acadêmica José Gabriel da Silva Josiane Leal Daniela Siqueira de Menezes Rafael Pessi
Marília Locks Fernandes Delma Cristiane Morari
Miriam de Fátima Bora Rosa José Humberto Dias de Toledo
Eliete de Oliveira Costa
Joseane Borges de Miranda Gerência de Produção
Pró-Reitor de Desenvolvimento Luiz G. Buchmann Figueiredo Gerência Administrativa e Eloísa Machado Seemann Arthur Emmanuel F. Silveira (Gerente)
e Inovação Institucional Marciel Evangelista Catâneo Financeira Flavia Lumi Matuzawa Francini Ferreira Dias
Renato André Luz (Gerente) Geovania Japiassu Martins
Valter Alves Schmitz Neto Maria Cristina Schweitzer Veit
Ana Luise Wehrle Isabel Zoldan da Veiga Rambo Design Visual
Maria da Graça Poyer
Diretora do Campus Mauro Faccioni Filho Anderson Zandré Prudêncio João Marcos de Souza Alves Pedro Paulo Alves Teixeira (Coord.)
Universitário de Tubarão Moacir Fogaça Daniel Contessa Lisboa Leandro Romanó Bamberg Alberto Regis Elias
Milene Pacheco Kindermann Nélio Herzmann Naiara Jeremias da Rocha Lygia Pereira Alex Sandro Xavier
Onei Tadeu Dutra Rafael Bourdot Back Lis Airê Fogolari Anne Cristyne Pereira
Diretor do Campus Universitário Patrícia Fontanella Thais Helena Bonetti Luiz Henrique Milani Queriquelli Cristiano Neri Gonçalves Ribeiro
da Grande Florianópolis Roberto Iunskovski Valmir Venício Inácio Marcelo Tavares de Souza Campos Daiana Ferreira Cassanego
Hércules Nunes de Araújo Rose Clér Estivalete Beche Mariana Aparecida dos Santos Davi Pieper
Gerência de Ensino, Pesquisa e Marina Melhado Gomes da Silva Diogo Rafael da Silva
Secretária-Geral de Ensino Vice-Coordenadores Graduação Extensão Marina Cabeda Egger Moellwald Edison Rodrigo Valim
Adriana Santos Rammê Janaína Baeta Neves (Gerente) Mirian Elizabet Hahmeyer Collares Elpo Fernanda Fernandes
Solange Antunes de Souza Aracelli Araldi Pâmella Rocha Flores da Silva
Bernardino José da Silva Frederico Trilha
Diretora do Campus Catia Melissa Silveira Rodrigues Rafael da Cunha Lara Jordana Paula Schulka
Elaboração de Projeto Roberta de Fátima Martins Marcelo Neri da Silva
Universitário UnisulVirtual Horácio Dutra Mello Carolina Hoeller da Silva Boing
Jucimara Roesler Jardel Mendes Vieira Roseli Aparecida Rocha Moterle Nelson Rosa
Vanderlei Brasil Sabrina Bleicher Noemia Souza Mesquita
Joel Irineu Lohn Francielle Arruda Rampelotte
Equipe UnisulVirtual José Carlos Noronha de Oliveira Verônica Ribas Cúrcio Oberdan Porto Leal Piantino
José Gabriel da Silva Reconhecimento de Curso
José Humberto Dias de Toledo Acessibilidade Multimídia
Diretor Adjunto Maria de Fátima Martins Vanessa de Andrade Manoel (Coord.) Sérgio Giron (Coord.)
Moacir Heerdt Luciana Manfroi
Rogério Santos da Costa Extensão Letícia Regiane Da Silva Tobal Dandara Lemos Reynaldo
Secretaria Executiva e Cerimonial Rosa Beatriz Madruga Pinheiro Maria Cristina Veit (Coord.) Mariella Gloria Rodrigues Cleber Magri
Jackson Schuelter Wiggers (Coord.) Sergio Sell Vanesa Montagna Fernando Gustav Soares Lima
Marcelo Fraiberg Machado Pesquisa Josué Lange
Tatiana Lee Marques Daniela E. M. Will (Coord. PUIP, PUIC, PIBIC) Avaliação da aprendizagem
Tenille Catarina Valnei Carlos Denardin Claudia Gabriela Dreher Conferência (e-OLA)
Mauro Faccioni Filho (Coord. Nuvem)
Assessoria de Assuntos Sâmia Mônica Fortunato (Adjunta) Jaqueline Cardozo Polla Carla Fabiana Feltrin Raimundo (Coord.)
Internacionais Pós-Graduação Nágila Cristina Hinckel Bruno Augusto Zunino
Coordenadores Pós-Graduação Anelise Leal Vieira Cubas (Coord.) Sabrina Paula Soares Scaranto
Murilo Matos Mendonça Aloísio José Rodrigues Gabriel Barbosa
Anelise Leal Vieira Cubas Thayanny Aparecida B. da Conceição
Assessoria de Relação com Poder Biblioteca Produção Industrial
Público e Forças Armadas Bernardino José da Silva Salete Cecília e Souza (Coord.) Gerência de Logística Marcelo Bittencourt (Coord.)
Adenir Siqueira Viana Carmen Maria Cipriani Pandini Paula Sanhudo da Silva Jeferson Cassiano A. da Costa (Gerente)
Walter Félix Cardoso Junior Daniela Ernani Monteiro Will Marília Ignacio de Espíndola Gerência Serviço de Atenção
Giovani de Paula Renan Felipe Cascaes Logísitca de Materiais Integral ao Acadêmico
Assessoria DAD - Disciplinas a Karla Leonora Dayse Nunes Carlos Eduardo D. da Silva (Coord.) Maria Isabel Aragon (Gerente)
Distância Letícia Cristina Bizarro Barbosa Gestão Docente e Discente Abraao do Nascimento Germano Ana Paula Batista Detóni
Patrícia da Silva Meneghel (Coord.) Luiz Otávio Botelho Lento Enzo de Oliveira Moreira (Coord.) Bruna Maciel André Luiz Portes
Carlos Alberto Areias Roberto Iunskovski Fernando Sardão da Silva Carolina Dias Damasceno
Cláudia Berh V. da Silva Rodrigo Nunes Lunardelli Capacitação e Assessoria ao Fylippy Margino dos Santos Cleide Inácio Goulart Seeman
Conceição Aparecida Kindermann Rogério Santos da Costa Docente Guilherme Lentz Denise Fernandes
Luiz Fernando Meneghel Thiago Coelho Soares Alessandra de Oliveira (Assessoria) Marlon Eliseu Pereira Francielle Fernandes
Renata Souza de A. Subtil Vera Rejane Niedersberg Schuhmacher Adriana Silveira Pablo Varela da Silveira Holdrin Milet Brandão
Alexandre Wagner da Rocha Rubens Amorim
Assessoria de Inovação e Jenniffer Camargo
Gerência Administração Elaine Cristiane Surian (Capacitação) Yslann David Melo Cordeiro Jessica da Silva Bruchado
Qualidade de EAD Acadêmica Elizete De Marco
Denia Falcão de Bittencourt (Coord.) Jonatas Collaço de Souza
Angelita Marçal Flores (Gerente) Fabiana Pereira Avaliações Presenciais
Andrea Ouriques Balbinot Juliana Cardoso da Silva
Fernanda Farias Iris de Souza Barros Graciele M. Lindenmayr (Coord.)
Carmen Maria Cipriani Pandini Juliana Elen Tizian
Juliana Cardoso Esmeraldino Ana Paula de Andrade
Secretaria de Ensino a Distância Kamilla Rosa
Maria Lina Moratelli Prado Angelica Cristina Gollo
Assessoria de Tecnologia Samara Josten Flores (Secretária de Ensino) Simone Zigunovas
Mariana Souza
Osmar de Oliveira Braz Júnior (Coord.) Cristilaine Medeiros Marilene Fátima Capeleto
Giane dos Passos (Secretária Acadêmica) Daiana Cristina Bortolotti
Felipe Fernandes Adenir Soares Júnior Tutoria e Suporte Maurício dos Santos Augusto
Felipe Jacson de Freitas Delano Pinheiro Gomes Maycon de Sousa Candido
Alessandro Alves da Silva Anderson da Silveira (Núcleo Comunicação) Edson Martins Rosa Junior
Jefferson Amorin Oliveira Andréa Luci Mandira Claudia N. Nascimento (Núcleo Norte- Monique Napoli Ribeiro
Phelipe Luiz Winter da Silva Fernando Steimbach Priscilla Geovana Pagani
Cristina Mara Schauffert Nordeste)
Fernando Oliveira Santos
Priscila da Silva Djeime Sammer Bortolotti Maria Eugênia F. Celeghin (Núcleo Pólos) Sabrina Mari Kawano Gonçalves
Rodrigo Battistotti Pimpão Lisdeise Nunes Felipe Scheila Cristina Martins
Douglas Silveira Andreza Talles Cascais Marcelo Ramos
Tamara Bruna Ferreira da Silva Evilym Melo Livramento Daniela Cassol Peres Taize Muller
Marcio Ventura Tatiane Crestani Trentin
Fabiano Silva Michels Débora Cristina Silveira Osni Jose Seidler Junior
Coordenação Cursos Fabricio Botelho Espíndola Ednéia Araujo Alberto (Núcleo Sudeste) Thais Bortolotti
Coordenadores de UNA Felipe Wronski Henrique Francine Cardoso da Silva
Diva Marília Flemming Gisele Terezinha Cardoso Ferreira Janaina Conceição (Núcleo Sul) Gerência de Marketing
Marciel Evangelista Catâneo Indyanara Ramos Joice de Castro Peres Eliza B. Dallanhol Locks (Gerente)
Roberto Iunskovski Janaina Conceição Karla F. Wisniewski Desengrini
Jorge Luiz Vilhar Malaquias Kelin Buss Relacionamento com o Mercado
Auxiliares de Coordenação Juliana Broering Martins Liana Ferreira Alvaro José Souto
Ana Denise Goularte de Souza Luana Borges da Silva Luiz Antônio Pires
Camile Martinelli Silveira Luana Tarsila Hellmann Maria Aparecida Teixeira Relacionamento com Polos
Fabiana Lange Patricio Luíza Koing Zumblick Mayara de Oliveira Bastos Presenciais
Tânia Regina Goularte Waltemann Maria José Rossetti Michael Mattar Alex Fabiano Wehrle (Coord.)
Jeferson Pandolfo
Carlos Euclides Marques
Daniel Swoboda Murialdo
Leandro Kingeski Pacheco
Marcos Rohling
Nei Antonio Nunes

Filosofia Política II
Livro didático

Design instrucional
Ana Cláudia Taú
Melina de la Barrera Ayres

1ª edição revista

Palhoça
UnisulVirtual
2011
Copyright © UnisulVirtual 2011
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição.

Edição – Livro Didático


Professor Conteudista
Carlos Euclides Marques
Daniel Swoboda Murialdo
Leandro Kingeski Pacheco
Marcos Rohling
Nei Antonio Nunes

Design Instrucional
Ana Cláudia Taú
Melina de La Barrera Ayres

Assistente Acadêmico
Aline Cassol Daga (1ª ed. rev.)

ISBN
978-85-7817-244-2

Projeto Gráfico e Capa


Equipe UnisulVirtual

Diagramação
Alice Demaria Silva
Edison Valim (1ª ed. rev.)

Revisão
Papyrus Textos Ltda.

320.01
M31 Marques, Carlos Euclides
Filosofia política II : livro didático / Carlos Euclides Marques ... [et al.] ;
design instrucional Ana Cláudia Taú, Melina de la Barrera Ayres ; [assistente
acadêmico Aline Cassol Daga]. – Palhoça : UnisulVirtual, 2011.
250 p. : il. ; 28 cm.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7817-244-2

1. Ciência política - Filosofia. I. Taú, Ana Cláudia. II. Ayres, Melina de la


Barrera. III. Daga, Aline Cassol. IV. Título.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul


Sumário

Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Palavras dos professores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Plano de estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

UNIDADE 1 - A noção de Estado 1:


das origens modernas à concepção hegeliana. . . . . . . . . . . . . 15
Carlos Euclides Marques e Nei Antonio Nunes
UNIDADE 2 - A noção de Estado 2: da concepção
negativa de Estado marxista à crise do Estado. . . . . . . . . . . . . . 57
Carlos Euclides Marques
UNIDADE 3 - Tocqueville e a questão da democracia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
Marcos Rohling e Carlos Euclides Marques
UNIDADE 4 - Aspectos da política em Hannah Arendt
e Michel Foucault . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
Carlos Euclides Marques, Daniel Swoboda Murialdo e
Leandro Kingeski Pacheco
UNIDADE 5 - A questão da resistência e da desobediência civil:
remédios liberais para o governo liberal. . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
Marcos Rohling e Carlos Euclides Marques

Para concluir o estudo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231


Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233
Sobre os professores conteudistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241
Respostas e comentários das atividades de autoavaliação. . . . . . . . . . . . . . 245
Biblioteca Virtual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249
Apresentação

Este livro didático corresponde à disciplina Filosofia Política II.

O material foi elaborado visando a uma aprendizagem autônoma


e aborda conteúdos especialmente selecionados e relacionados
à sua área de formação. Ao adotar uma linguagem didática
e dialógica, objetivamos facilitar seu estudo a distância,
proporcionando condições favoráveis às múltiplas interações e a
um aprendizado contextualizado e eficaz.

Lembre-se de que sua caminhada, nesta disciplina, será


acompanhada e monitorada constantemente pelo Sistema
Tutorial da UnisulVirtual. Por isso a “distância” fica caracterizada
somente na modalidade de ensino que você optou para sua
formação, pois, na relação de aprendizagem, professores e
instituição estarão sempre conectados com você.

Então, sempre que sentir necessidade entre em contato; você tem


à disposição diversas ferramentas e canais de acesso, tais como:
telefone, e-mail e o Espaço Unisul Virtual de Aprendizagem,
que é o canal mais recomendado, pois tudo o que for enviado e
recebido fica registrado para seu maior controle e comodidade.
Nossa equipe técnica e pedagógica terá o maior prazer em lhe
atender, pois sua aprendizagem é o nosso principal objetivo.

Bom estudo e sucesso!

Equipe UnisulVirtual.

7
Palavras dos professores

Olá, estudante!

Por onde começar, para dar conta de variadas temáticas


ligadas ao debate contemporâneo sobre a política: seu sentido,
suas estruturas, seus fundamentos e sua relação com outros
aspectos da vida humana... Eis um dilema.

Assim sendo, é bom esclarecer que o percurso que você


fará doravante, neste Livro Didático, é apenas mais um dos
recortes possíveis. Como tal, haverá carências que você, como
estudante ávido de saber político-filosófico, poderá apontar
com todo direito. Entretanto, tome o que está a sua frente
como uma iniciação e um complemento. Contraditório, você
pode pensar. Não, necessariamente. O conteúdo é iniciático,
pois, de forma, por vezes, básica e tópica, estará apontando
para você alguns autores, obras, temas, questões e concepções
políticas que, talvez, você ainda não tenha visto pontualmente.
Complementar, pois seu repertório não é mais aquele iter —
ou já não deveria ser mais — do filósofo iniciante. E, supondo
que você tenha acompanhado o curso na sua “linearidade”
— passou pela Ética e a Política Antiga e Medieval; pela
Filosofia Política Moderna; pela Antropologia Filosófica e
pelas Histórias da Filosofia —, dispõe, então, de certas noções
que ou serão criticadas em certos aspectos ou serão retomadas
em outros deles por autores contemporâneos.

As diversas Unidades a sua frente foram possíveis em função


da colaboração de vários pesquisadores, aos quais, neste
momento, como organizador destas contribuições, quero
agradecer. Esperamos que sua caminhada seja gratificante.

Bom estudo!

Professores Carlos Euclides Marques, Nei Antonio Nunes, Marcos


Rohling, Daniel Swoboda Murialdo, Leandro Kingeski Pacheco.
Plano de estudo

O plano de estudos visa a orientá-lo no desenvolvimento da


disciplina. Ele possui elementos que o ajudarão a conhecer o
contexto da disciplina e a organizar o seu tempo de estudos.

O processo de ensino e aprendizagem na UnisulVirtual leva


em conta instrumentos que se articulam e se complementam;
portanto, a construção de competências dá-se sobre a
articulação de metodologias e por meio das diversas formas de
ação/mediação.

São elementos desse processo:

„„ o livro didático;

„„ o Espaço UnisulVirtual de Aprendizagem (EVA);

„„ as atividades de avaliação (a distância, presenciais e de


autoavaliação); e

„„ o Sistema Tutorial.

Ementa
Pensamento político contemporâneo. Introdução a Hegel e
Marx. A crítica ao Contratualismo. Aspectos da Filosofia
Política na contemporaneidade.
Universidade do Sul de Santa Catarina

Objetivos

Geral:
Analisar a produção do pensamento político contemporâneo,
recuperando a noção de Estado Moderno, de forma a refletir
sobre as crises deste conceito face a perspectivas dos novos
regimes políticos.

Específicos:

„„ Identificar as noções de Estado e Democracia,


relacionando-as aos problemas no mundo
contemporâneo.

„„ Identificar a noção de poder face às mudanças do final do


século XIX e início do século XX.

„„ Contribuir com a formação de um vocabulário técnico de


filosofia.

„„ Instrumentalizar a análise, a avaliação e o


posicionamento quanto a alguns dos debates políticos
contemporâneos.

Carga Horária
A carga horária total da disciplina é 60 horas-aula.

Conteúdo programático/objetivos
Veja, a seguir, as unidades que compõem o livro didático desta
disciplina e os seus respectivos objetivos. Estes se referem aos
resultados que você deverá alcançar ao final de uma etapa de
estudo. Os objetivos de cada unidade definem o conjunto de
conhecimentos que você deverá possuir para o desenvolvimento
de habilidades e competências necessárias à sua formação.

12
Filosofia Política II

Unidades de estudo: 5

Unidade 1 – A noção de Estado 1: das origens modernas à concepção


hegeliana
Nesta unidade, inicialmente, você recuperará as origens da noção
moderna de Estado; passando pela crítica hegeliana e marxista ao
contratualismo; e culminando na visão política de Hegel.

Unidade 2 – A noção de Estado 2: da concepção negativa de Estado


marxista à crise do Estado
Nesta unidade, você conhecerá, de forma um pouco mais
aprofundada, a noção de Estado no pensamento marxista; passando,
posteriormente, às visões indicativas da crise desta noção.

Unidade 3 – Tocqueville e a questão da democracia


Aqui, você estudará a análise tocquevilleana da democracia nascente,
particularmente a dos Estados Unidos da América, e adentrará nos
problemas da democracia como regime político e social.

Unidade 4 – Aspectos da política em Hannah Arendt e Michel Foucault


Nesta unidade, você terá a oportunidade de aprofundar sua
compreensão da política, do ponto de vista arendtiano e
foucaultiano, tendo como pano de fundo a questão do poder.

Unidade 5 – A questão da resistência e da desobediência civil:


remédios liberais para o governo liberal
Esta unidade permitirá a você, partindo de uma perspectiva
liberal e neocontratualista, a de Rawls, refletir sobre a temática da
desobediência.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Agenda de atividades/Cronograma

„„ Verifique com atenção o EVA, organize-se para acessar


periodicamente a sala da disciplina. O sucesso nos seus
estudos depende da priorização do tempo para a leitura,
da realização de análises e sínteses do conteúdo e da
interação com os seus colegas e professor.

„„ Não perca os prazos das atividades. Registre no espaço


a seguir as datas com base no cronograma da disciplina
disponibilizado no EVA.

„„ Use o quadro para agendar e programar as atividades


relativas ao desenvolvimento da disciplina.

Atividades obrigatórias

Demais atividades (registro pessoal)

14
1
UNIDADE 1

A noção de Estado 1: das


origens modernas à concepção
hegeliana
Carlos Euclides Marques
Nei Antonio Nunes

Objetivos de aprendizagem
„„ Recuperar algumas noções modernas de Estado e
analisá-las a partir da perspectiva hegeliana e marxista.
„„ Estabelecer as primeiras diferenciações entre as noções
modernas e contemporâneas de Estado.
„„ Refletir sobre a noção hegeliana de Estado.

Seções de estudo
Seção 1 Questionamentos iniciais ou o preâmbulo da noção
de Estado
Seção 2 As contribuições de Maquiavel e dos
contratualistas, passando pelas críticas a certos
aspectos dessas contribuições
Seção 3 A noção hegeliana de Estado
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Olá, estudante!

Ansioso(a)?

Nesta primeira unidade, inicialmente, você recuperará, caso já tenha


feito Filosofia Política I, conhecimentos sobre alguns pensadores da
Idade Moderna e sobre como eles trabalharam aspectos da noção de
Estado. Tal estratégia passará pela crítica marxista e o pensamento
hegeliano. Com esta revisão, você terá elementos para estabelecer
proximidades e heranças, diferenças e críticas, entre a noção — ou
noções — moderna de Estado e a crise, desta noção, que começa a se
postular no século XIX.

Depois deste percurso, estudará a concepção hegeliana de


Estado, como este pensador vê o papel da história, da dialética
e das instituições jurídicas na concepção de Estado. Você
observará, também, as formas de poder e uma valoração sobre os
tipos de governo. Verá como a geografia e a história têm papel
importante no pensamento político de Hegel.

Como tais subsídios, você poderá avançar, mais e mais, no


debate sobre as noções de Estado e poder no pensamento
contemporâneo, visualizando continuidades e descontinuidades
nas abordagens da Filosofia Política Contemporânea.

Então, vamos começar?

Seção 1 - Questionamentos iniciais ou o preâmbulo da


noção de Estado
A temática da Política é, desde a Antiguidade Grega, fruto dos
debates sobre as relações de poder, as formas de governo e certa
tipificação das constituições ou, mais modernamente, do Estado.
Se a Grécia antiga tinha a polis como foco do debate sobre esta
temática, a partir da modernidade, você tem a noção de Estado.
Tal noção é geradora de um debate sobre a relação entre a
sociedade civil e as instituições ou estruturas do Estado; sobre

16
Filosofia Política II

qual seria o poder soberano e sobre as origens e os fundamentos


do Estado. Neste âmbito, também, insere-se a temática do poder
como você acompanhará doravante.

Antes dos questionamentos iniciais sobre o que é


e como se constitui o Estado, comece sua trajetória
enunciando algumas definições de Poder e de Estado
que lhe venham à mente ou faça uma rápida pesquisa
na internet. Faça isto antes de avançar na leitura, pois
esta é uma provocação, tanto para se ter um ponto de
partida, como também para exercitar a memória. Você
pode deixar sua contribuição no espaço logo abaixo.

Provavelmente, você encontrou ou pensou algo semelhante ao


que segue:

Quanto a Estado

„„ Arte de governar; ciência de governar;

„„ Organização ou administração de nações ou Estado;

„„ Ciência política;

„„ Organização partidária;

„„ Arte de persuadir e influenciar a opinião pública;

„„ Habilidade de relacionar-se com os outros em vista de


resultados.

Unidade 1 17
Universidade do Sul de Santa Catarina

Quanto a Poder

„„ Faculdade ou possibilidade de;

„„ Força física ou moral;

„„ Ter autorização;

„„ Domínio, controle;

„„ Governo de um país;

„„ Direito e capacidade de decidir

No momento, as expressões Teoria „„ Aptidão, perícia etc.


Política e Filosofia Política estão
sendo usadas como sinônimas, Como você pôde constatar, algumas definições, apuradas
embora, em dadas acepções, não
e resumidas do Dicionário Houaiss eletrônico da língua
seja assim. Alguns autores de tom
mais positivista diferenciam, p. ex., portuguesa (2009), relacionam os conceitos de Estado e Poder
Filosofia Política e Ciência Política. Político. Nesta medida, você vai começar pela construção da
A primeira parte de construções noção de Estado a partir de sua origem moderna, ou seja, os
meramente racionais, sem terem, primeiros passos desta caminhada o(a) remeterá, mesmo que
necessariamente, bases empíricas;
muito rapidamente, ao Renascimento e períodos seguintes. Você
a segunda, ao contrário, parte de
bases empíricas. Também esta
pode estar se questionando:
distinção tem suas origens em
Maquiavel, por alguns considerado o
pai da Ciência Política. Mas eu já estudei tal temática em Filosofia Política
I e lembro tratar-se de Teoria Política Moderna.
Não deveríamos, agora, estudar a Teoria Política
Contemporânea?

Seu questionamento — se o fez — tem sentido. Entretanto,


cabe atentar, conforme indica Marcondes (1998, p. 251), que a
Filosofia Contemporânea pode ser tomada como resultado da
crise do pensamento moderno no século XIX. Esta crise também
afeta o debate sobre a política, o papel do Estado e outros
aspectos correlatos. A Filosofia Contemporânea pode, grosso
modo, ser dividida entre duas abordagens:

„„ de um lado, assume-se como herdeira de um legado que


vem desde a antiguidade grega até o século XIX; e

„„ de outro lado, rompe com tal tradição.

18
Filosofia Política II

Tradição e ruptura, eis o que temos. Ainda mais: muitas


das críticas às estruturas e aos fundamentos políticos que se
cristalizaram ao longo da Idade Moderna e ainda se fazem
presentes na contemporaneidade foram, mesmo que de modo
parcial e acanhado, apontadas por pensadores na nascente deste
mesmo pensamento. Sem falar daqueles filósofos extemporâneos,
ou seja, que embora tenham vivido a maior parte do tempo num
período anterior ao que, geralmente, toma-se como marco da
Filosofia Contemporânea, são extremamente contemporâneos Qual o marco da Filosofia
para nossos debates. Contemporânea?
Como aponta Ferrater
Mora (2001), para uns ela
Assim, por exemplo, o pensamento marxista, embora começa com o romantismo
critique a visão democrática de Rousseau, expressa em filosófico, a partir do ano
Do contrato social, vê em seu Discurso sobre a origem da morte de Hegel, 1831;
e os fundamentos da desigualdade entre os homens para outros, dá-se a partir
vestígios da crítica à noção liberal de propriedade de 1875, com a renovação
privada. do pensamento kantiano;
há ainda os que a tomam
apenas no século XX; ou o
Voltemos, então, para a noção de Estado. O Estado Moderno final da I Guerra Mundial
nasce da ascensão de um novo modo de produção e, ou somente o Pós-II
consequentemente, apontam os marxistas, da visão de mundo Guerra Mundial. Para ter
uma noção do problema
de determinada classe social: a burguesia. O Estado Moderno cronológico, além do
caracteriza-se por dicionário supracitado,
leia o que diz o Tópico
1 – problemática filosófica
[...] um poder político que se exerce sobre um território e no século XX da Parte IV –
um conjunto demográfico (isto é, uma população, ou um Filosofia Contemporânea
povo); e o Estado é a maior organização política que a do livro Iniciação à
humanidade conhece.” (GRUPPI, 1998, p. 07). história da filosofia,
de Danilo Marcondes
(1998), ou o Tópico
Tal definição, que tomaremos para começar, indica três aspectos
1 – A filosofia de nosso
que devem estar presentes para constituir um Estado: tempo – ou na Introdução
do livro A filosofia
contemporânea de
Benedito Nunes (1996).
Poder político
O Dicionário de política, organizado por Bobbio (1992, p. 955),
apresenta uma definição útil, para o momento:

O poder político pertence à categoria do poder do


homem sobre outro homem, não à do poder do homem
sobre a natureza. Essa relação de poder é expressa de

Unidade 1 19
Universidade do Sul de Santa Catarina

mil maneiras, onde se reconhecem fórmulas típicas da


linguagem política: como relação entre governantes e
governados, entre soberano e súditos, entre Estado e
cidadãos, entre autoridade e obediência etc.

Povo
Eis uma noção um pouco vaga no âmbito da política. O
Dicionário de ciências sociais (SILVA, 1986, p. 953) atesta isto:

As ciências sociais de modo geral, e a sociologia em


particular, recorrem a critérios, sobretudo, de natureza
quanti­tativa, étnica, cultural, lingüística, religiosa etc.
para a conceituação de povo. Examinam as condições
reais em que se apresentam os agrupamentos humanos,
procurando identificar os elementos que concorrem para
sua integração. Extraem da observação do real os critérios
para as suas definições, ora utilizando-os isoladamente,
ora conjugando-os. Se prevalece o elemento quantitativo,
tem-se povo equiparado a população, i. e., à soma de
indivíduos que habitam determinado território; se
o realce é conferido ao elemento moral, à existência
de interesses e aspirações comuns, assim como à sua
permanência e defesa através dos tempos, assimila-se
o termo à nação; se predominam considerações de
ordem étnica, igualam-se as noções de povo e raça; se
preponderam apreciações sobre a estratificação social
e a valorização de uma classe em detri­mento de outra,
confunde-se povo com plebe, proletariado, proletariado,
maioria, contrapondo-se o vocábulo à elite, à burguesia, à
minoria privilegiada etc.

Em uma exposição mais histórica, o Dicionário de política,


organizado por Bobbio, registra o primeiro uso dessa noção
na tradição romana, constante da fórmula que define o Estado
romano, a saber, Senatus populusque romanus (O senado e povo
romano):

[...] os dois componentes fundamentais e permanentes


da civitas romana: o Senado, ou o núcleo das famílias
gentílicas originárias representadas pelos patres, e o
Povo, ou grupo “dêmico” progressivamente integrado e
urbanizado que passou a fazer parte do Estado com a
queda da monarquia.” (BOBBIO, 1992, p. 986).

20
Filosofia Política II

Sendo Maquiavel um estudioso da política romana na


Antiguidade, podemos ver certa retomada dessa noção. Ainda
cabe atestar que a noção de povo, mesmo que vaga e, por vezes,
bastante romântica, está intrinsecamente ligada à de populismo
nos debates mais próximos de nossa época.

Território
Das três, provavelmente esta é a noção mais clara. Fique, então,
com a definição jurídica apresentada pelo Dicionário Houaiss
eletrônico da língua portuguesa (2009):

[...] extensão ou base geográfica do Estado, sobre a qual


ele exerce a sua soberania e que compreende todo o solo
ocupado pela nação, inclusive ilhas que lhe pertencem,
rios, lagos, mares interiores, águas adjacentes, golfos,
baías, portos e tb. a faixa do mar exterior que lhe banha
as costas e que constitui suas águas territoriais, além do
espaço aéreo correspondente ao próprio território.

Assim, por exemplo, antes da demarcação de certo


espaço territorial para os israelenses, embora houvesse
uma nação (povo) israelita, não havia um Estado
israelita. E o Vaticano, em um sentido duro, também
não o é, mesmo que tenha um território pequeno e um
corpo administrativo, pois não tem uma nação, povo
residindo neste território.

Aliás, na modernidade, paulatinamente, o Estado tornou-se


independente de outros tipos de poder, como foi o caso do poder
religioso. É em oposição a este — o poder religioso — que o
poder do Estado coloca-se na modernidade. Basta lembrar que,
no modo de produção feudal, a Igreja (poder religioso) exerce
um papel muito importante na organização das relações sociais,
econômicas e de poder.

Unidade 1 21
Universidade do Sul de Santa Catarina

Seção 2 - As contribuições de Maquiavel e dos


contratualistas, passando pelas críticas a certos
aspectos destas contribuições
É a Maquiavel (1469-1527) que você deve retornar, quando
aborda a questão que envolve o Estado Moderno. Em sua
temática, Maquiavel está mais preocupado com a administração
do Estado, do ponto de vista político-mercantil. Lembre-se
de que é o começo da separação moderna entre Ética e
Política, ficando a primeira com aspecto da moralidade e
do ambiente privado; a segunda, com as coisas públicas e as
relações do Estado. Entretanto, é bom frisar que se trata,
mais especificamente, da separação entre certa moral — a
cristã católica romana — e o exercício do poder político.
(MAQUIAVEL, 1988).

Ou, como aponta Bobbio (1992, p. 961),

[...] diferença entre moral e Política, ou entre ética da


convicção e ética da responsabilidade, corresponde
também a ética individual e ética de grupo. [...] o que é
obrigatório para o indivíduo não se pode dizer que o seja
para o grupo de que o indivíduo faça parte.

A partir de Maquiavel, o governante moderno não é mais


aquele que distribui caridade, o exemplo moral; mas, o
administrador do Estado, um homem de negócios.

Maquiavel está preocupado com a unificação daquilo que


tardiamente será a Itália, isto fica claro em sua obra mais
conhecida, O príncipe. Mesmo sendo um republicano com
inclinação aos preceitos democráticos, o florentino propõe um
regime de caráter centralizador, pois, como já foi indicado, estava
preocupado com a unidade da Itália, constantemente ameaçada
de dominação por parte de outros Estados já consolidados. Neste
caso, a unidade na figura de um governante severo é condição
para construção de um Estado. Esclarecedor é o Capítulo XXVI,
de O príncipe, no qual Maquiavel, depois de lamentar o fracasso
de César Bórgia — no seu entendimento, aquele que reunia as
qualidades de príncipe unificador — exorta a criação de exércitos

22
Filosofia Política II

nacionais. Crê o pensador florentino que a lealdade e obediência


destes “cidadãos soldados” ao “príncipe-governante” seria um
passo importante na defesa das cidades e na unificação da Itália:

Querendo, pois, a vossa ilustre casa seguir aqueles


homens excelentes e redimir suas províncias, é
necessário, antes de toda e qualquer outra coisa, como
verdadeiro fundamento de qualquer empreendimento,
prover-se de tropas próprias, pois não se pode
conseguir outras mais fiéis e mais seguras, nem
melhores soldados. E, ainda que cada um deles seja
bom, todos juntos tornar-se-ão ainda melhores,
quando se virem comandados pelo seu príncipe e por
este honrados e mantidos. É necessário, portanto,
preparar esses exércitos, para poder, com a virtude
itálica, defender-se dos estrangeiros. Não se deve,
pois, deixar passar essa ocasião, a fim de que a Itália
conheça, depois de tanto tempo, um seu redentor.
Nem posso exprimir com que amor ele seria recebido
em todas aquelas províncias que têm sofrido por essas
invasões estrangeiras, com que sede de vingança,
com que obstinada fé, com que piedade, com que
lágrimas. Quais portas se lhe fechariam? Quais povos
lhe negariam obediência? Qual inveja se lhe oporia?
Qual italiano lhe negaria o seu favor? A todos repugna
este bárbaro domínio. Tome, portanto, a vossa ilustre
casa esta incumbência com aquele ânimo e com aquela
esperança com que se abraçam as causas justas, a fim
de que, sob sua insígnia, esta pátria seja nobilitada[...]
(MAQUIAVEL, 1988, p. 145-146).

Contudo, o modelo de um Estado forte e centralizador serve,


segundo Maquiavel, para os momentos de instabilidade política
tal qual vivia a Itália de seu tempo. Nos períodos de maior
estabilidade política, com expressiva ordem social e instituições
sólidas, a República é o modelo adequado. Sua opção pelo
modelo político republicano é evidenciada na obra Comentários
sobre a primeira década de Tito Lívio. Por exemplo, no
Capítulo V desta obra, ao se perguntar sobre a quem, no Estado,
deve-se confiar com maior segurança a defesa da liberdade, se
aos nobres ou ao povo, responde de maneira peremptória que ao
povo, pois este deseja, sobretudo, não ser degradado, já os nobres
almejam o domínio. Explica o filósofo italiano: [o povo] não
podendo apropriar-se do poder, não permite que outros o façam.
(MAQUIAVEL, 1994).

Unidade 1 23
Universidade do Sul de Santa Catarina

Cabe acrescentar que, para Maquiavel, o governante que age com


eficácia na política tem a capacidade (Virtú) de gerir os conflitos
político-sociais. Desta afirmativa, podemos deduzir que o poder
não é uma coisa que alguém tem (príncipe, nobres); e os outros
(povo, plebeus). Em um estudo seminal sobre o pensamento do
autor renascentista, Claude Lefort (2003, p. 42) deixa entrever que:

O poder, conforme Maquiavel, não se reduz à violência,


pois se constitui num campo de correlações de força.
Nos jogos de poder, pode-se revelar a habilidade política
do governante de superar os obstáculos (advindos, por
exemplo, da “má-fortuna”: condições adversas, má-sorte,
etc.). Nesse caso, a Virtú do governante (ou sua ausência)
pode ser verificada na maneira como ele administra
os conflitos político-sociais que envolvem o campo
relacional de poder, bastante complexo e multiforme,
do qual participam o povo, a nobreza, o exército e seus
líderes, a burocracia da cidade ou do Estado, bem como
as demais cidades ou Estados estrangeiros.

Contudo, como mostra Maquiavel em sua História de Florença


– última obra escrita pelo autor –, não só o governante deve ser
Como já foi dito, não cabe entrar
em grandes detalhes sobre autores “virtuoso”, pois também o povo pode ter as qualidades da virtude
que você já deve ter estudado. Caso política, sabendo agir de acordo com a “necessidade” (tal qual um
queira mais informações sobre a hábil guerreiro), com vista a reparar as distorções políticas dos
vida de Maquiavel e o contexto maus governantes. (MAQUIAVEL, 1998).
intelectual e político em que viveu,
a saber, a renascença italiana, leia a Falamos até aqui, ainda que brevemente, de teses contidas,
bela biografia de Maquiavel escrita
sobretudo, nos dois livros centrais de Maquiavel, a saber, O
por Maurizio Viroli, intitulada O
sorriso de Nicolau – História de Príncipe e Os Discursos. Tendo em vista que as relações de
Maquiavel (ver Saiba Mais). poder pressupõem a existência de governantes e governados,
destacamos a seguir uma passagem do instigante estudo de
Quentin Skinner (1998), As fundações do Pensamento Político
Moderno, na qual o autor enfatiza pontos de convergência nas
teses presentes nas duas obras:

A despeito das numerosas diferenças constatadas entre


“O príncipe” e os “Discursos”, vê-se que a moralidade
política subjacente aos dois livros é a mesma. A única
mudança na postura fundamental de Maquiavel deriva da
alteração de enfoque que ocorre em seu aconselhamento
político. Se, no “Príncipe”, sua preocupação principal
consistia em moldar a conduta de indivíduos que

24
Filosofia Política II

eram príncipes, nos “Discursos” se empenha mais em


oferecer conselho ao corpo inteiro dos cidadãos. Mas
as suposições subjacentes as suas recomendações são as
mesmas que antes. Isso se evidencia nas partes iniciais do
primeiro discurso, quando discute a fundação da cidade
de Roma por Rômulo. Maquiavel sente-se obrigado a
dizer que Rômulo causou “a morte de seu irmão e sócio”
no curso de sua ação, mas, imediatamente, acrescenta
que ele “merece ser desculpado” por esse crime atroz.
A razão é que tal ação na verdade se mostrou essencial,
a fim de garantir a segurança da nova cidade. E a tese
fundamental de Maquiavel é que ninguém pode ser
racionalmente censurado “por empreender uma ação,
embora extraordinária, que possa ter serventia para
organizar um reino ou constituir-se uma República”.
Assim, sua convicção pode resumir-se, como ele mesmo
reconhecia, na forma daquilo que chama a “saudável
máxima”, segundo a qual “certas ações repreensíveis
podem ser justificadas graças a seus efeitos, e, quando o
efeito for bom, como sucedeu no caso de Rômulo, sempre
justifica a ação. (SKINNER, 1999, p. 204).

Embora Maquiavel ainda não formule uma Teoria do Estado,


pois o que faz, em grande parte, é descrever como se constituem
os Estados, isto é o início da Ciência Política ou, como escreve
Gruppi (1998, p. 11), “[...] da teoria e da técnica da política
entendida como uma disciplina autônoma, separada da moral e
da religião.” Ao fazer isso, o florentino critica:

„„ as idealizações do Estado — como na República, de


Platão;

„„ a ideia de que o Estado é aquele que assegura a felicidade


e a virtude — como em Aristóteles; e

„„ a ideia do Estado como a preparação para o Reino de


Deus — tal qual boa parte do pensamento medieval.

Perceba que, no pensamento de Maquiavel, não se trata mais


Esta noção do agir político
de tomar o Estado pelo “dever ser”, mas por aquilo que se também aparece em
pode e deve fazer para a manutenção do Estado ou de uma Hannah Arendt, politóloga
ordem sociopolítica. Para o autor, trata-se de recuperar a noção contemporânea nossa.
aristotélica de que a Política é a arte do possível, da realidade.
Assim, ainda usando Gruppi (1998, p. 13), o florentino fornece
uma teoria realista, considerando a política de forma científica,
crítica e experimental. Mas, cabe repetir, Maquiavel não fornece,

Unidade 1 25
Universidade do Sul de Santa Catarina

ainda, uma Teoria do Estado. Esta se funda com Jean Bodin


(1530-1596), recebendo formulação mais completa com Thomas
Hobbes (1588-1679).

Hobbes (1983) parece tomar algumas coisas de Maquiavel, como


por exemplo, ver o homem como egoísta, avarento, mau; e, o
Estado, como uma forma de conter os impulsos naturais do ser
humano — impulsos estes derivados de seus desejos e paixões.
Para Hobbes, o Estado é um mal necessário ou menor. Grosso
modo:

Para Hobbes, o homem em “estado de natureza” é


livre para buscar sua autopreservação, o que coloca o
estado de natureza como estado de guerra de todos
contra todos. Para resolver este estado de guerra, os
Lembre-se de que as noções de homens estabelecem um contrato social e instituem a
estado de natureza, estado de sociedade política.
guerra, contrato social junto com a
ideia de sociedade civil marcam a
teoria contratualista clássica. Se você desejar, recupere com mais detalhes o que estudou
sobre a Teoria Política de Hobbes, para os fins deste estudo.
Aqui o que interessa destacar é que Hobbes funda o Estado em
um contrato social. Note que contrato é um termo da ordem
mercantil, comercial. Mas você pode perguntar:

Hobbes não defendia o ponto de vista aristocrático, de


um governante absoluto?

Sim, mas lembre-se: em um primeiro momento, a burguesia


alia-se aos nobres, ou seja, à aristocracia em oposição ao clero,
à Igreja. Tal aliança só será quebrada posteriormente, com as
revoluções, o liberalismo e a democracia burgueses. Mesmo a
aristocracia tradicional vai, aos poucos, assumindo características
consideradas burguesas. Veja o que diz Gruppi a respeito:

A noção do Estado como contrato revela o caráter


mercan­til, comercial das relações sociais burguesas. Os
homens, por sua natureza, não seriam propensos a criar
um Estado que limitasse sua liberdade; eles estabelecem
as restrições em que vivem dentro do Estado, segundo
Hobbes, com a finalidade de obter dessa forma sua
própria conservação e uma vida mais confortável. Isto é,
para saírem da miserável condição de guerra permanente
que é a conse­qüência necessária das paixões naturais.
26
Filosofia Política II

Mas não há pactos sem espadas, ou não passam de


palavras sem força; por isso o pacto social, a fim de
permitir aos homens a vida em sociedade e a superação
de seus egoísmos, deve produzir um Estado absoluto,
duríssimo em seu poder.
J. J. Rousseau, posteriormente, vai opor a Hobbes uma
bri­lhante objeção: ao dizer que o homem, no estado
natural, é um lobo para seus semelhantes, Hobbes não
descreve a natureza do homem, mas sim os homens
de sua própria época. Rousseau não chega a dizer que
Hobbes descreve os burgueses de sua época; mas, na
realidade, Hobbes descreve o surgimento da burguesia,
a formação do mercado, a luta e a crueldade que o
caracterizam. (GRUPPI, 1998, p. 14).

Muitas são as interpretações modernas e contemporâneas do


pensamento político de Hobbes. Entre os estudos que vinculam
as teses hobbesianas com o ideário liberal e o espírito do
capitalismo, figura, no século XX, o livro de Macpherson (1979)
intitulado A Teoria Política do Individualismo Possessivo
— de Hobbes a Locke. De certa forma, o desejo que todos os
indivíduos têm de conservar a própria vida, para Hobbes é um
apetite e um direito natural, que, segundo Macpherson (1979, p.
40-60), é visto como reflexo do homem civilizado:

A paixão pelo viver confortável é paixão do homem


natural de Hobbes. O homem natural é o homem
civilizado, apenas com a restrição legal removida. [...]
Hobbes acha que essa luta constante de cada indivíduo
pelo poder sobre todos os demais é o comportamento real
dos homens na sociedade civilizada.

Acredita o autor canadense que a análise de Hobbes da Natureza Embora não as discutamos
Humana — pela qual discutiria os temas do poder e da sociedade aqui, você pode
localizar na bibliografia
— consolida a ideia de uma sociedade de mercado possessivo. disponibilizada ao final
Nesta sociedade de mercado possessivo, não é só o trabalho da unidade, indicações de
humano que se torna artigo de mercado, pois “as relações de outras visões não menos
mercado moldam ou permeiam de tal forma todas as relações que profícuas e instigantes,
ela pode ser adequadamente chamada de sociedade de mercado, como as de Carl Schmitt,
Leo Strauss, Quentin
e não apenas de economia de mercado”. E mais, Hobbes estaria
Skinner, Richard Tuck,
mais ou menos consciente de que este modelo de sociedade era Norberto Bobbio e Renato
o referencial para a sua teoria política. Entretanto, esta é apenas Janine Ribeiro.
uma das interpretações sobre a Filosofia Política hobbesiana.

Unidade 1 27
Universidade do Sul de Santa Catarina

Como prova da complexidade do pensamento de Hobbes e do


contexto no qual estava inserido, destacamos as considerações
do filósofo iluminista Diderot, no verbete Hobbesianismo, da
Enciclopédia, sobre a influência do momento histórico e político-
social que justificariam supostos equívocos do autor inglês:

[...] o Parlamento estava separado da corte, e o fogo da


guerra civil era ateado por toda parte. Hobbes, defensor
da majestade soberana, foi alvo do ódio dos democratas.
Vendo então as leis pisoteadas, o trono cambaleante,
os homens arrastados como se fosse por uma vertigem
geral para as ações mais atrozes, pensou que a natureza
humana era má, e daí vem toda a sua história sobre
o estado de natureza. As circunstâncias fizeram sua
filosofia: ele tomou alguns acidentes momentâneos como
por regras invariáveis da natureza e tornou-se o agressor
da humanidade e o apologista da tirania. (DIDEROT;
D’ALEMBERT, 2006, p. 158-159).

Diderot, um iluminista convicto, aceita parcialmente a noção


hobbesiana de Natureza Humana (egoísta, má), mas diferente do
autor inglês, pois concebe as paixões como negativas. O filósofo
francês aposta na razão humana superando as paixões, e Hobbes
vê virtudes nas paixões humanas. Na primeira parte do Leviatã,
intitulada “Do Homem”, Hobbes sugere uma longa taxonomia
desses atributos humanos. Com base nessa classificação, dirá
que somos atraídos pela sensação de prazer e temos aversão ao
desprazer — por exemplo, procuramos nos afastar da dor e da
tristeza. Em relação aos prazeres, alguns são identificados com os
sentidos, e outros com o espírito. São exemplos dessas paixões: o
apetite, o desejo, o amor, a alegria.

Segundo Hobbes, o homem distingue-se dos demais


animais não somente pela razão, mas também pela
paixão denominada curiosidade, ou seja, o desejo de
saber o porquê.

Já o medo, aponta Hobbes, quando não se tem uma clara


compreensão das causas, não se sabendo ao certo quem ou o
que as gerou, chama-se “terror e pânico”. A emulação é o nome
dado à tristeza desencadeada pelo sucesso alheio (riqueza, bens e

28
Filosofia Política II

honra). Neste caso, os homens desenvolvem o esforço de ampliar


as capacidades próprias, visando igualar ou superar o competidor
que está a sua frente.

A felicidade durante a vida é definida por Hobbes


como o contínuo sucesso na obtenção das coisas
que os homens desejam e que os fazem continuar
prosperando. (HOBBES, 1983).

Hobbes insiste na concepção de vida como movimento,


mostrando que desejo, medo e sensação são paixões que a
constituem. A vida humana pressupõe a busca da realização dos
desejos, sendo impossível o viver (ou bem-viver) sem esse estado
de ambição, de competição constante com os demais humanos e
de luta para suprir a realização egoísta. A felicidade é o contínuo
progresso do desejo: é o caminho trilhado pelo homem que, de
objeto em objeto, procura de todas as formas perpetuar o prazer,
criando condições para uma vida mais satisfeita e feliz para si
(HOBBES, 1983, p. 39). A natureza competitiva dos homens
e a sua inclinação a viver sob a influência das paixões estão na
raiz dos conflitos e discórdias no estado natural. No entanto, as
paixões, assim como a razão, serão decisivas nas respostas dadas
por Hobbes aos dilemas do estado de natureza.

Contrastando com a simplificação e o reducionismo das


considerações de Diderot, o legado da Filosofia Política de
Hobbes é constatado tanto no resgate feito pelo pensamento
Iluminista (mesmo que, em tantos momentos, pouco fiel aos
escritos do próprio Hobbes) quanto pela contemporaneidade.
Assim sendo, o seu modelo dicotômico que institui o Estado —
estado de natureza e sociedade política, tendo no contrato social
o momento de transição de um estágio ao outro — influenciará
toda a tradição contratualista subsequente. Mas Hobbes não está
presente só nos partidários da teses de que o Estado funda-se
em um pacto entre os indivíduos. Mostrando a atualidade do
filósofo seiscentista, o autor contemporâneo Pierre Rosanvallon
diz que Hobbes é um dos pensadores que vê a política como
a arte combinatória das paixões humanas. Ou seja, entende as
paixões dos indivíduos como o substrato sobre o qual trabalham
os políticos. (ROSANVALLON, 2002, p. 25).

Unidade 1 29
Universidade do Sul de Santa Catarina

Como você pode perceber, Hobbes bem sabia que não se


tratava de negar ou desprezar as paixões humanas, pois o seu
reconhecimento e o seu ordenamento são condição para que o
Estado possa garantir a paz social e a conservação dos indivíduos.
Em outros termos:

Hobbes percebe que o reconhecimento dos interesses


e das paixões dos indivíduos é condição sine qua non
para o estabelecimento do Contrato Social e para a
instituição da Sociedade Política. Uma vez constituído
o Estado, o desejo de bem-viver dos indivíduos, a sua
conservação, não deve ser negligenciado pelo Poder
Soberano.

Como sabemos, este é um tema político moderno, mas também


uma urgência das sociedades contemporâneas.

Outros contratualistas que você pode recuperar, desta feita de


matriz mais liberal, são John Locke (1632-1704) e Immanuel
Kant (1724-1804): em ambos vemos a defesa das liberdades
individuais e da propriedade privada como direitos naturais.
Como representante do empirismo, serve para Locke uma
constatação genérica, dada a esta corrente no plano político:

No plano político, o empirismo tem como conseqüência


uma defesa do liberalismo contra a idéia absolutista do
direito divino do soberano. O poder é legítimo enquanto
se origina da vontade popular, sendo que o povo pode
delegá-lo a uma assembléia (parlamento) ou a um
monarca. O Estado existe para proteger os interesses dos
cidadãos e lhes garantir a so­brevivência e a propriedade.
O indivíduo é, portanto, nessa visão, sempre mais
importante do que a sociedade; sendo que o direito, as
leis que go­vernam uma sociedade são, em sua origem,
convencionais. (SOUZA FILHO apud REZENDE,
1992, p. 102).

Sendo assim, resta a pergunta:

Mas, o que é importante frisar em Locke que se


relaciona diretamente com o debate contemporâneo?

30
Filosofia Política II

Como outros contratualistas, Locke considera livre o homem


em estado de natureza; contudo, este (o homem) vê a
necessidade de limitar sua liberdade pela falta de um poder
comum (juiz neutro), capaz de dirimir as contendas geradas
entre os indivíduos nesse estado natural. Assim, o contrato é
estabelecido para garantir a propriedade, definida por Locke
como vida, liberdade e bens. Aliás, diferente de Hobbes, Locke
concebe o direito de resistência. Assim, se os representantes
dos poderes executivo ou legislativo desrespeitarem as cláusulas
Este tema será retomado
do contrato, podem ser destituídos de suas funções. Como em outra unidade.
lembra Gruppi (GRUPPI, 1998), algumas liberdades devem
ser garantidas pelo Estado: a de assembleia, a da palavra e,
principalmente, a de livre iniciativa econômica.

É importante você observar que há em Locke certa distinção


entre público e privado, relacionada à propriedade e ao Estado.
Diferenciando-se de tradições anteriores, Locke não considera
o Estado (o poder político, o governo) algo hereditário.
Lembre-se de que, na Idade Média, mas não só aí, a herança
da terra implicava também a do comando. Mesmo em regimes
monárquicos posteriores à Idade Média, o poder é hereditário.
Em função da distinção entre sociedade política (Estado) e
sociedade civil (as relações privadas), há a indicação de que
elas têm normas distintas: enquanto na sociedade civil há a
transmissão de propriedade; na sociedade política, não. “Todos
os direitos de propriedade são exercidos na sociedade civil,
e o Estado não deve interferir, mas sim garantir e tutelar o
livre exercício da propriedade.” (GRUPPI, 1998, p. 18). Tal
perspectiva já aparece quando se compara o estado de natureza
hobbesiano ao lockiano:

Para Hobbes, nesse estado de natureza todos os homens


têm direitos a tudo e, em decorrência disto, as noções
de direito positivo, justiça, bem e mal não têm lugar aí.
Já, para o Locke, há no estado de natureza a liberdade e
propriedade dentro dos limites da lei da natureza.

Esta ideia de Locke pode ser confirmada na seguinte passagem


de sua obra Segundo tratado sobre o governo:

Unidade 1 31
Universidade do Sul de Santa Catarina

[...] embora seja este um estado de liberdade, não o


é de licenciosidade; apesar de ter o homem naquele
estado liberdade incontrolável de dispor da própria
pes­soa e posse, não tem a de destruir-se a si mesmo
ou a qualquer criatura que esteja em sua posse, senão
quando uso mais nobre do que a simples conservação
o exija. O estado de natureza tem uma lei de natureza
para governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa
lei, ensina a todos os homens que tão-só a consultem,
sendo todos iguais e independentes, que nenhum deles
deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liber­
dade ou nas posses. Eis que sendo todos os homens
obra de um Artífice onipotente e infi­nitamente sábio
— todos servos de senhor soberano único, enviados ao
Você deve estar se perguntando
mundo por ordem d’Ele, por cumprir-lhe a missão —,
por que se passou de Locke para
são propriedade d’Aquele que os fez, destina­dos a durar
Kant, sem falar de Rousseau.
enquanto a Ele aprouver e não a uns e outros; e sendo
Esclarecendo: neste percurso,
todos providos de faculdades iguais, compartilhando de
estamos seguindo, em parte, o
uma comunidade de natureza, não há possibilidade de
raciocínio de Grupi. E ele, como
supor-se qualquer subordinação entre os homens que
muitos outros, apresenta Rousseau
nos autorize a destruir a outrem, como se fôssemos feitos
com certas diferenças em relação
para uso uns dos outros como as ordens inferiores de
a seus contemporâneos. Mais
criaturas são para nós. Qualquer pessoa, da mesma sorte,
ainda, por estar apresentando
que está na obrigação de preservar-se, não lhe sendo
as visões da Idade Moderna em
dado abandonar intencionalmente a sua posição, assim
relação ao Estado, para chegar à
também, por igual razão quando a própria preservação
crítica marxista destas ideias. Note:
não está em jogo, tem de preservar, tanto quanto puder,
o marxismo, apesar de grandes
o resto da Humanidade, não podendo, a menos que seja
críticas sofridas nos últimos anos
para castigar um ofensor, tirar ou prejudicar a vida, ou o
e queda de países ditos socialistas,
que tende à preservação da vida, a liberdade, a saúde, os
ainda é um pensamento vigoroso
membros ou os bens de outrem. (LOCKE, 1991, II, 6).
em nossa contemporaneidade.
Em Kant fica mais explícito, talvez por influência de Rousseau,
que o povo é o soberano. Contudo, tal soberania, na prática, não
é atribuída a todos os membros da sociedade. Isto acontece pelo
fato de alguns serem cidadãos independentes, e outros não. O que
significa ser independente, em Kant? Você já deve ter inferido a
resposta: é ter propriedades. Logo, os homens livres, independentes
são aqueles que têm propriedade. Quais as consequências disto?
Os direitos políticos, de fato, só são dados aos proprietários. É a
propriedade, no fundo, um critério de cidadania no pensamento
kantiano, pois só os proprietários têm o direito de ser votados
e votar. Nestes tempos, considera Gruppi (1998, p. 19), tanto
para Locke como para Kant, propriedade é basicamente terra.
Entretanto, conforme você pôde constatar na citação anterior
(Cap. V do Segundo tratado...), embora a terra seja central a
propriedade, em Locke é vida, liberdade e bens (móveis e imóveis).

32
Filosofia Política II

Kant é mesmo muito duro quanto ao desrespeito às leis,


condenando radicalmente as insurreições. Assim, para ele, se Você pode acessar o
um tirano viola o Estado de direito, não é direito revoltar-se texto completo no EVA,
contra ele, pois isto consistiria no uso de uma violação disponível na ferramenta
midiateca.
(injustiça) contra outra. Isto indica como Kant vê as revoluções.
Em “Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento?”, Kant
(1783) deixa claro que:

Revoluções não produzem esclarecimento, pois


o que há, quando vitoriosas, é uma substituição
de uma ordem por outra, repentinamente. E mais,
revoluções são contraditórias, pois desrespeitam o
espírito do esclarecimento, na medida em que este se
pauta na publicidade. Um homem pode e deve usar
publicamente sua razão para fazer críticas ao Estado,
à ordem jurídica estabelecida, mas isto dentro dos
parâmetros desta mesma ordem.

Ora, uma revolução só se faz às escondidas; se feita abertamente,


os revoltosos seriam pegos e a revolução não chegaria a seu fim.
Mas Kant admite que, se uma revolução for a cabo, constituirá
um novo Estado de Direito, ou seja, uma nova ordem jurídica e
política, à qual o povo deve se submeter.

A posição de Rousseau diferencia-se da posição liberal quanto


a certos aspectos das origens, do papel e da forma de governo.
Isto o coloca como um dos expoentes do nascimento da noção
democrático-burguesa.

Como você pôde constatar, os liberais, Locke e Kant,


não defendem, propriamente, a democracia.

Claro que não é descabida a vinculação entre democracia


e liberalismo. O que não dá para afirmar é que ambos,
inexoravelmente, sempre estejam juntos. Cabe lembrar que a
defesa liberal do regime democrático, sendo esta incorporada
a seus ideais, é um tanto tardia. Em Rousseau, por exemplo,
a sociedade é soberana e nunca pode perder sua soberania; o
governo, o aparato estatal, a estrutura jurídica estão a serviço do
povo, ou seja, os governantes são funcionários do povo. Mais
ainda: é na assembleia que se expressa a soberania. Pode-se

Unidade 1 33
Universidade do Sul de Santa Catarina

dizer que Rousseau defende uma democracia direta. Nos outros


pensadores apresentados anteriormente, viu-se que, a partir do
contrato, forma-se uma estrutura administrativo-jurídica que
passa a ser soberana em relação ao povo. As leis, então, regulam
e estão acima das vontades do povo, embora idealmente devam
respeitar ou representar tais vontades. Gruppi afirma que
Rousseau nega a distinção dos poderes — “Montesquieu tinha
fixado em começo de 1700: o poder legislativo (parlamento), o
poder executivo (governo) e o poder judiciário.” (GRUPPI, 1998,
p. 22), dando máximo poder à assembleia. São, basicamente, duas
as inspirações de Rousseau: a democracia de Genebra constituída
depois da reforma calvinista e a democracia ateniense (GRUPPI,
1998). De passagem, vale citar que, antes de Montesquieu, Locke
apresentou a seguinte distinção dos poderes políticos: executivo,
legislativo (o poder mais importante) e federativo (este último
deveria tratar das questões de política e defesa externa).

Tome este resumo como uma referência básica:

Montesquieu quis explicar as leis humanas e as instituições


sociais: enquanto as leis físicas são regidas por Deus, as regras
e instituições são feitas por seres humanos passíveis de
falhas. Definiu três tipos de governo existentes: republicanos,
monárquicos e despóticos, e organizou um sistema de governo
que evitaria o absolutismo, isto é, a autoridade tirânica de um só
governante. Para o pensador, o despotismo era um perigo que
podia ser prevenido com diferentes organismos exercendo as
funções de fazer leis, administrar e julgar.
Assim, Montesquieu idealizou o Estado regido por três poderes
separados, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Essa é a teoria
da separação de poderes e teve enorme impacto na política,
influenciando a organização das nações modernas. O pensador
levou dois anos escrevendo “Em defesa do Espírito das Leis”, para
responder ao vários críticos. Disponível em:
Fonte: UOL Educação (2010a).

34
Filosofia Política II

Para rever o pensamento de Montesquieu, ainda Para dar conta deste


de forma introdutória, leia o ensaio “Montesquieu: assunto, leia o ensaio
sociedade e poder”, de J. A. Guilhon Abuquerque, no Discurso sobre a origem
livro “Os clássicos da política” (vol. 1), organizado por e os fundamentos da
Francisco C. Weffort; ou o Capítulo X, de “A teoria das desigualdade entre os
formas de governo”, de Noberto Bobbio. As ideias de homens. Neste ensaio, o
Montesquieu parecem ter influenciado o pensamento autor “[...] distingue duas
de Hegel. Se você quer dar conta disto melhor, leia o formas: desigualdade
Capítulo XII da obra de Bobbio, citada anteriormente. natural e desigualdade
Nele, Bobbio faz comparações entre os dois autores. convencional. A primeira
consiste em diferenças
em vigor físico, saúde,
Como contratualista, Rousseau também trabalha com a noção agilidade mental etc.; a
de estado de natureza. Entretanto, o homem nesse estado, para o segunda, em diferenças
de riqueza, virtude,
genebrino, é bom e feliz em virtude de sua condição de liberdade.
poder e autoridade. No
Este homem em estado de natureza vive em grupos muito entender de Rousseau, as
pequenos, isolados uns dos outros por vastas áreas territoriais; primeiras desigualdades
nas áreas em que vivem têm o suficiente para sua alimentação são inevitáveis e
e abrigo, dados pela própria natureza. Por vezes, tido como na normalmente benignas
contramão de algumas características do iluminismo, Rousseau ou sem conseqüências; as
segundas, por outro lado,
vê na propriedade, nos avanços tecnológicos, na civilização, nos são ilegítimas, perniciosas
costumes sociais, a manifestação da decadência da humanidade. e sem justificação. É a
São estes fatores que retiram do homem sua liberdade natural e estas últimas que ele
produzem a desigualdade. Já é sua conhecida aquela máxima que dedica a maior parte de
se encontra no Do contrato social: “O homem nasceu livre, e em suas atenções.” (DENT,
1996, p. 142).
toda parte se encontra sob ferros.” (ROUSSEAU, 1978, I, cap. 1).

Você já se perguntou o que isto significa? De que


liberdade fala Rousseau?

Para o autor, ninguém é, no fundo, obrigado a obedecer a


outrem. Isto não faz parte da essência humana. Cada qual é
soberano de si mesmo. Cabe ressaltar que isto não significa que o
homem, em estado de natureza, não tenha sua liberdade limitada
por alguns aspectos. Suas condições físicas, as intempéries
naturais e tantas outras dificuldades para ganhar a vida são
exemplos destas limitações. Estas limitações, contudo, não são da
ordem do poder humano ou da negligência. Como lembra Dent
(1996), em Rousseau, são exatamente estas limitações que levam
os seres humanos a se associarem, pois, reunidos, descobrem
estes, os seres humanos, ao somarem suas forças e qualificações,
diminuem tais limitações e obstáculos. Nesses tipos de
associação, entretanto, o ser humano tem de abdicar, em parte,
de sua liberdade natural e, por exemplo, obedecer a outrem.
Unidade 1 35
Universidade do Sul de Santa Catarina

Atente para esta passagem de Do contrato social:

A passagem do estado natural ao estado civil produziu no


homem uma mudança considerável, substituindo em sua
conduta a justiça ao instinto, e imprimindo às suas ações
a moralidade que anteriormente lhes faltava. Foi somente
então que a voz do dever, sucedendo ao impulso físico, e o
direito ao apetite fizeram com que o homem, que até esse
momento só tinha olhado para si mesmo, se visse forçado
a agir por outros princípios e consultar a razão antes de
ouvir seus pendores. Embora se prive, nesse estado, de
diversas vantagens recebidas da Natureza, ganha outras
tão grandes, suas faculdades se exercitam e desenvolvem,
suas ideias se estendem, seus sentimentos se enobrecem,
toda a sua alma se eleva a tal ponto, que, se os abusos desta
nova condição não o degradassem com freqüência a uma
condição inferior àquela de que saiu, deveria abençoar
incessantemente o ditoso momento em que foi dali
desarraigado para sempre, o qual transformou um animal
estúpido e limitado num ser inteligente, num homem.
Reduzamos todo este balanço a termos fáceis de
comparar. O que o homem perde pelo contrato social é
a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o
tenta e pode alcançar; o que ganha é a liberdade civil e
a propriedade de tudo o que possui. Para que não haja
engano em suas compensações, é necessário distinguir
a liberdade natural, limitada pelas forças do indivíduo,
da liberdade civil que é limitada pela liberdade geral, e
a posse, que não é senão o efeito da força ou do direito
do primeiro ocupante, da propriedade, que só pode ser
baseada num título positivo.
Poder-se-ia, em prosseguimento do precedente,
acrescentar à aquisição do estado civil a liberdade moral,
a única que torna o homem verdadeiramente senhor de si
mesmo, posto que o impulso apenas do apetite constitui
a escravidão, e a obediência à lei a si mesmo prescrita é a
liberdade. Mas já falei demasiadamente deste assunto, e o
sentido filosófico do termo liberdade não constitui aqui o
meu objetivo. (ROSSEAU, 1978, Livro I, cap. VIII).

Outro aspecto que aparece implícito na passagem acima é a


negação da servidão de um homem sobre outro. A liberdade e a
igualdade, segundo Rousseau, não podem em absoluto ser tiradas
de alguém, como já foi dito. Nesta medida, uma estrutura de
poder — talvez fosse melhor dizer de governo, de comando e

36
Filosofia Política II

manutenção da ordem — não pode se sustentar na força, ou seja,


na violência. Dito em outras palavras, para Rousseau, a força não
legitima a soberania. Rousseau questiona:

Se for a força o que legitima a soberania, por que


haveríamos de obedecer por vontade?

Assim, você pode ver que, para o genebrino, é a vontade e não a


força que mantém a ordem estabelecida no contrato. Rousseau vai
mais além: para ele nenhum contrato pode estipular que regras
não possam ser quebradas por gerações futuras.

Você sabia?
Para atualizar e contextualizar tal questionamento, tome o caso
do debate constitucional brasileiro sobre a legitimidade das
cláusulas pétreas na constituição brasileira, bem ilustrado no
artigo Reflexões acerca da legitimidade das cláusulas pétreas,
de Frederico Augusto Leopoldino Koehler, professor e Juiz
Federal do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em Recife-PE,
do qual transcrevemos o Resumo:

O presente ensaio tem o intuito de desenvolver


reflexões críticas sobre a legitimidade das cláusulas
pétreas nos regimes democráticos. Para tanto, o
autor inicia o artigo com um breve histórico das
cláusulas pétreas no direito estrangeiro. Após, são
averiguadas as razões que comumente motivam
a sua criação. O texto analisa o instituto no
ordenamento jurídico brasileiro e, mais adiante,
destaca os pontos positivos e negativos das
limitações materiais ao poder de reforma. Aborda
então a teoria da dupla revisão e o paradoxo das
cláusulas pétreas. Por fim, questiona a legitimidade
dessa figura jurídica no regime democrático e o
papel do Supremo Tribunal Federal como intérprete
central do instituto e definidor do seu sentido e
alcance, apontando as conclusões atingidas.

Fonte: Koehler (2009).

Unidade 1 37
Universidade do Sul de Santa Catarina

Há, também, a questão da propriedade privada. Para Rousseau, a


consolidação da propriedade privada não é um avanço, mas algo
que gerou a desigualdade entre os homens. Já é sua conhecida
aquela passagem do ensaio Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens, que relata
quando certo homem demarcou um pedaço de terra e disse
que era de sua propriedade e outros a sua volta não disseram
nada contra, sendo assim possível o surgimento da propriedade
privada, fonte de grandes males para a humanidade futura.
Mesmo assim, cabe lembrar que:

A propriedade privada não pode ser entendida como


a razão de ser da sociedade civil em Rousseau, pois, no
fundo, ela é o resultado, o ponto culminante, a ponta
do iceberg de uma série de situações conflituosas
anteriores que levaram o ser humano à sociedade civil.

Na leitura que Dent (1996) faz de Rousseau, há uma posse


derivada da força do primeiro ocupante ou um direito deste
ocupante em função do trabalho. Explicando melhor: uma
pessoa, por sua força de trabalho na terra, pelo uso desta, tem
direito à posse dela. Tal juízo aproximaria Rousseau de Locke
que, ao se posicionar quanto ao direito de herança, indicaria
ser este aceitável apenas se o herdeiro continuar trabalhando a
terra que herdou. Isto quer dizer que, para ambos, a propriedade
privada, por si só, não é hereditária. Assim, Rousseau diz que,
embora haja um “direito natural” quanto à propriedade privada,
tal direito pode ser alterado na sociedade civil.

Em tal sociedade, esses direitos podem ser modificados;


mas, primordialmente, o seu possuidor será protegido em
seu gozo de tais direitos sob a égide da lei, de modo que a
sua propriedade torna-se um direito positivo em cuja fruição
será amparado e defendido. (DENT, 1996, p. 190).

Gruppi (1998) apresenta algumas críticas do ponto de vista


marxista ao pensamento de Rousseau. Resumidamente são elas:

„„ mesmo reconhecendo problemas na propriedade privada,


o genebrino não os supera;

38
Filosofia Política II

„„ a própria origem da propriedade pode ser vista como um


ato de um indivíduo, e não como resultado de relações
econômicas derivados do desenvolvimento das forças
produtivas;

„„ como Rousseau concebe que a assembleia não pode


delegar sua soberania a outrem, estabelece uma
identidade entre sociedade política e sociedade civil;

„„ o assembleísmo constante só pode ser possível em


pequenos grupos ou cidades. Como ficaria isto para
grandes populações? Ademais, o modelo ateniense, p.
ex., dependia da existência de um sistema escravocrata
que deixava os que tinham direitos de cidadania no ócio
para o exercício político; e

„„ como o próprio Rousseau confessa, seu modelo


democrático é utópico: nunca existiu e pode nunca
existir.

Parte destas críticas marxistas (resumidas de Gruppi)


são válidas para outros contratualistas. Desta forma,
Rousseau é visto como um representante da pequena
burguesia, de artesãos, particularmente a pequena
burguesia francesa desta época. Mas não nos
esqueçamos que esta é apenas uma das interpretações
possíveis do pensamento de Rousseau.

Algumas das críticas apresentadas acima envolvendo as


concepções antigas e modernas de democracia aparecem,
também, nas ideias de Benjamin Constant de Rebecque (1767-
1830), adentrando o século XIX, ou seja, no limiar, para alguns,
da contemporaneidade. O ideal liberal já é bastante difundido
Sempre lembrando o
na Europa desta época, seu pensamento destaca acentuadamente problema anteriormente
a separação entre Estado e sociedade civil. Aqui, o que é apontado da
importante destacar é que Benjamin Constant, ao diferenciar as cronologia para a
esferas do público e do privado, mostra como o homem moderno contemporaneidade.
— também o contemporâneo, pode-se dizer — está distante do
homem da antiguidade. Para este (o homem da antiguidade), a
liberdade é realizada na esfera do público, do coletivo: a paz e
a guerra, as relações comerciais, o fazer leis e julgar o homem
comum e os atos de magistrados, entre outras situações, eram

Unidade 1 39
Universidade do Sul de Santa Catarina

decididas na esfera da assembleia. Assim, cada um que tinha


direito de cidadania exercia diretamente seu poder. Para aquele (o
homem moderno e também nós, contemporâneos), é totalmente
o inverso: a liberdade se exerce no âmbito privado; no público, ela
é muito restrita.

Ao afirmar que os direitos à liberdade são desfrutados no âmbito


do privado — como os liberais anteriormente apresentados —,
mostra que estes são predominantemente direitos da iniciativa
econômica (burguesa). Isto o leva a identificar propriedade e
liberdade, estabelecendo a liberdade no âmbito da diferença, e
não da igualdade, contrapondo-se a Rousseau.

Seção 3 - A noção hegeliana de Estado


Para muitos pensadores, a questão central do debate político
contemporâneo gira em torno do binômio liberdade e igualdade.
Nesta medida, é problematizada a ação mínima ou “total” do
Estado na sociedade. Por exemplo: o filósofo francês Michel
Foucault (1926-1984) certa vez declarou que era atribuição da
filosofia, na contemporaneidade, fazer a crítica às formas de
individualização e totalização próprias dos poderes modernos,
mas ainda presentes em nossos dias.

Nesta unidade, mesmo que muito rapidamente, você recuperou


aspectos já estudados:

„„ a formação da noção de Estado no pensamento moderno; e

„„ algumas teses liberais e dos diferentes matizes


contratualistas.

Tudo isto, por vezes, apoiado em críticas a tais concepções.


Algumas destas críticas, como foi frisado, são de teor marxista.
Entretanto, cabe lembrar que certos aspectos do pensamento
marxista já são apontados por Hegel (1770-1831), embora de
maneira distinta. Entender o homem como histórico, as noções
de trabalho e alienação, entre outras concepções, são tomadas de

40
Filosofia Política II

Hegel, com significativas alterações por Marx e Engels. Cabe


destacar que a riqueza e o vigor do pensamento político de Hegel
e, assim, do seu legado aos estudos filosóficos atuais não devem
ser medidos exclusivamente por aquilo que muitos dos seus
detratores disseram. Assim, antes de passar para o pensamento
de Marx e suas derivações, cabe revisitar Hegel e sua noção de
Estado. Acompanhe.

Observe que é reveladora da percepção de estar num período de


transição e da crítica a alguns de seus predecessores e aliados, a
seguinte passagem do Prefácio da Fenomenologia do espírito,
(HEGEL, 1980, p. 10):

De resto, não é difícil ver que nosso tempo é um tempo


de nascimento e passagem para um novo período. O
Espírito rompeu com o mundo de seu existir e de seu
representar, que até agora subsistia e, no trabalho de
sua transformação, está para mergulhar esse existir
e representar no passado. Na verdade, o Espírito
nunca está em repouso, mas é concebido sempre num
movimento progressivo. Mas, assim como na criança,
depois de um longo período e tranqüilo tempo de
nutrição, a primeira respiração — um salto qualitativo
— quebra essa continuidade de um progresso apenas
quantitativo e nasce então a criança, assim o Espírito que
se cultiva cresce lenta e silenciosamente, até a nova figura
e desintegra pedaço por pedaço seu mundo precedente.
Apenas sintomas isolados revelam. A frivolidade e
o tédio que tomam conta do que ainda subsiste, o
pressentimento indeterminado de algo desconhecido são
os sinais precursores de que qualquer coisa diferente se
aproxima. Esse lento desmoronar-se, que não alterava os
traços fisionômicos do todo, é interrompido pela aurora
que, num clarão, descobre de uma só vez a estrutura do
mundo novo.
No entanto esse mundo novo não tem vírgula, como não
a tem a criança recém-nascida, uma realidade efetiva
acabada. E é essencial não deixar de lado esse ponto. O
primeiro surgir é, inicialmente, a imediateidade ou o
conceito daquele mundo novo. Assim como um edifício
não está pronto quando foram postos seus alicerces, assim
o conceito do todo que se conseguiu alcançar não é o
próprio todo.

Unidade 1 41
Universidade do Sul de Santa Catarina

Nesse movimento do Espírito, vê-se como Hegel toma em mais


alto grau a tradição contratualista e jusnaturalista, para invertê-
las na totalidade: não se trata mais de pensar o homem como
indivíduo asssociado como fundante do Estado, mas o próprio
Estado como fundante da sociedade civil. Para Hegel, o Estado é
uma das mais altas sínteses do espírito objetivo.
O espírito objetivo é uma das Hegel, diferente dos contratualistas, não parte de uma
formas mais complexas da vida
anterioridade dos indivíduos, ou seja, de um “estado de natureza”
social. Como esclarecem Aranha e
Martins (1993, p. 234) “[...] o espírito hipotético, a partir do qual surge a necessidade da sociedade.
exterior do homem enquanto Para ele, é o Estado que fundamenta a sociedade. Não é o
expressão da vontade coletiva indivíduo que escolhe o Estado, mas sim é por ele constituído.
por meio da moral, do direito, da
política: o espírito objetivo se realiza
naquilo que se chama mundo da Assim, para Hegel, não existe o homem em “estado de
cultura.” natureza”, pois o homem é sempre um indivíduo social.

Para Hegel, os contratualistas confundem Estado e sociedade


civil, quando partem do interesse particular do indivíduo como
formador do Estado. Se, conforme o modelo atomista, próprio
da tradição do contratualismo, o “Todo” (Estado) é resultado da
soma das “Partes” (indivíduos), em Hegel o “Todo” é anterior e
superior às “Partes”.

Esse “antiatomismo”, esta contraposição ao contratualismo, em


certa medida, aproxima o filósofo alemão da tradição aristotélica.
Para essa, o cidadão constitui-se como tal na polis, ou seja, nela,
o ser humano realiza-se plenamente. Esta posição de Hegel,
também, afasta-o do individualismo liberal.

O que está na base do Estado, propõe o filósofo alemão, não


é o contrato, mas a vontade. Nesta medida, mesmo que Hegel
critique Rousseau, dá ao genebrino certos méritos. Um trecho dos
resumos de comunicações, do I Colóquio Rousseau: Rousseau,
verdades e mentiras, realizado na Faculdade de Ciências e
Letras - UNESP/Araraquara, de 12 a 14 de novembro de 2003,
dá conta desses méritos:

[...] Rousseau avança em relação aos seus predecessores


porque ele esforça-se por aproximar instâncias até
então postas à parte uma da outra como o direito e sua
manifestação histórica. Esse aspecto evidencia-se na

42
Filosofia Política II

ideia do contrato que evoca uma organização social a


qual se apoiaria na vontade, e esta, por conseguinte, na
racionalidade. O ápice de tal empreendimento humano
configura-se na eclosão da Revolução Francesa, que
recebe de Rousseau elementos de inspiração e que
marca significativamente o pensamento hegeliano
(NOVELLI, 2003).

Hegel indica o equívoco dos contratualistas, ao partirem de um


a priori, de uma hipótese sem fundamento concreto, negando
a historicidade do Estado. No fundo, diz o autor, estes estão
pensando como o Estado deveria ser, e não como ele é. Tal qual
Rousseau, Hegel põe em xeque o otimismo liberal depositado
na noção de propriedade privada. Mas o pensador alemão vai
mais além e sustenta que, na sociedade, o direito de propriedade
encontra seu limite no direito de sobrevivência física e espiritual
dos sujeitos, ou seja, no direito de necessidade:

A particularidade dos interesses da vontade natural,


condensada na sua simples totalidade, é o ser pessoal
como vida. Possui esta, no período supremo e no
conflito com a propriedade jurídica de outrem, um
direito que pode fazer valer (não como concessão
graciosa, mas como direito), na medida em que há, de
um lado, uma violação infinita do ser e, portanto, uma
ausência total de direito e, de outro, apenas a violação
limitada da liberdade. É assim que são ao mesmo tempo
reconhecidos o direito como tal e a capacidade jurídica
de quem é lesado na sua propriedade.
Nota – É do direito daquela violação, do direito da
miséria que provém o benefício da imunidade que
o devedor recebe sobre a sua fortuna, isto é, sobre a
propriedade do credor; não se lhe tiram os instrumentos
de trabalho nem os meios de cultivo considerados
necessários, tendo em conta a sua situação social, para a
sua manutenção. (HEGEL, 2000, p. 113).

Antes de avançar, você deve estar se perguntando sobre esta


historicidade do Estado e a que ela está ligada. Para dar
conta disto, vamos, muito resumidamente, contextualizar o
pensamento de Hegel e apresentar algumas de suas noções
fundamentais.

Unidade 1 43
Universidade do Sul de Santa Catarina

Lembre-se! A Revolução Francesa, a desestruturação do


mundo feudal e o fortalecimento da ordem burguesa
impõem contradições no imaginário da época.
Contradições que vêm desde o Renascimento, mas se
tornam cada vez mais acentuadas, conforme a classe
burguesa e o sistema capitalista se consolidam mais e mais.

Podemos tomar esta situação como a contradição dialética, cuja


A Alemanha é, junto com a Itália,
resolução Hegel aponta como sendo a tarefa da razão. Como
um dos últimos Estados modernos lembram muitos comentadores, entretanto, a Alemanha ainda
a se unificar. vive uma atmosfera feudal, estando politicamente dividida em
vários Estados não unificados.

Tal espírito de época reflete-se na filosofia de Hegel, que se


pauta no devir, ou seja, no movimento, no vir-a-ser, a dialética.
Na abordagem dialética, todas as coisas e ideias são superadas
Reportando-se, em parte,
à dialética heraclitiana. por outras, caracterizando um tipo de morte, de destruição.
Veja, mais à frente, como Contudo, tal força destruidora é motriz do processo histórico.
a imagem da guerra, “Como assim?” Você deve estar se perguntando. É que a dialética
como luta dos contrários, apresenta-se em um movimento em três etapas:
é o mote da própria
realidade-racionalidade. „„ tese;

„„ antítese; e

„„ síntese.

A antítese nega a tese, e a síntese supera a contradição


entre tese e antítese.

Entretanto, não se trata de uma morte total, na medida em que

o presente é retomado como resultado de longo


e dramático processo; a história não é a simples
acumulação e justaposição de fatos acontecidos no tempo,
mas é resultado de verdadeiro engendramento, de um
processo cujo motor interno é a contradição dialética.
(ARANHA; MARTINS, 1993, p. 233.)

Trata-se, continuam as autoras, de uma dialética idealista,


pois a racionalidade é tomada como o tecido do real e
do pensamento. Assim, a história universal é a própria
manifestação da razão, na medida em que, tomando Platão,
Hegel identifica o real como o racional.
44
Filosofia Política II

Nessa perspectiva, Hegel explica a gênese e estabelecimento


do Estado não em um suposto estado de natureza, mas em um
processo dialético que passa pelos seguintes momentos: família,
sociedade civil e, por fim, o Estado como síntese mais perfeita.
Como você pode perceber, Hegel (diferente dos contratualistas)
faz a distinção entre sociedade civil e Estado.

Atente para estas passagens de sua obra Princípios da filosofia


do direito:

O conceito desta idéia só será o espírito como algo de


real e consciente de si, se for objetivação de si mesmo,
movimento que percorre a forma dos seus diferentes
momentos. É ele:

a) O espírito moral objetivo imediato ou natural: a


família. Esta substancialidade desvanece-se na perda
da sua unidade, na divisão e no ponto de vista do
relativo; torna-se então:

b) Sociedade civil, associação de membros, que são


indivíduos independentes, numa universalidade
formal, por meio das carências, por meio da
constituição jurídica como instrumento de segurança
da pessoa e da propriedade e por meio de uma
regulamentação exterior para satisfazer as exigências
particulares e coletivas. Este Estado exterior converge
e reúne-se na

c) Constituição do Estado, que é o fim e a realidade


em ato da substância universal e da vida pública nela
consagrada. (HEGEL, 2000, § 157).

Para o maior esclarecimento destas ideias, aqui vai um trecho de


Brandão (2004, p. 105-106):

Do ponto de vista teórico, o Hegel da Filosofia do


Direito é o primeiro – e não Marx – a fixar o conceito de
sociedade civil como algo distinto e separado do Estado
político, distinção apenas pressentida pelos pensadores
contratualistas e que substitui, deslocando e subvertendo
os seus conteúdos, tudo o que estes filósofos elaboraram
através dos conceitos de estado de natureza e sociedade civil.

Unidade 1 45
Universidade do Sul de Santa Catarina

A sociedade civil (Burgerliche Gessellschaft) é definida como


um sistema de carecimentos, estrutura de dependências
recíprocas onde os indivíduos satisfazem as suas
necessidades através do trabalho, da divisão do trabalho
e da troca; e asseguram a defesa de suas liberdades,
propriedades e interesses através da administração da
justiça e das corporações. Trata-se da esfera dos interesses
privados, econômico-corporativos e antagônicos entre si.
A ela se contrapõe o Estado político, isto é, a esfera
dos interesses públicos e universais, na qual aquelas
contradições estão mediatizadas e superadas. O Estado
não é, assim, expressão ou reflexo do antagonismo social,
a própria demonstração prática de que a contradição é
irreconciliável, como dirá mais tarde Engels, mas é esta
divisão superada, a unidade recomposta e reconciliada
consigo mesma. A marca distintiva do Estado é a
unidade, que não é uma unidade qualquer, mas a unidade
substancial que traz o indivíduo à sua realidade efetiva e
corporifica a mais alta expressão da liberdade.

Assim, atenta Brandão, recorrendo a Bobbio, a sociedade civil


hegeliana engloba tanto a esfera das relações econômicas e
a formação das classes sociais, como também, o direito, o
ordenamento administrativo e corporativo. Ressalta, também,
que as esferas anteriores ao Estado, pré-estatais, como a família
e a sociedade civil, apenas aparentemente estão fora do Estado,
pois, “[...] na verdade só existem e se desenvolvem no Estado.
Não há história fora do Estado. Não há nada fora da história.”
(BRANDÃO, 2004, p. 106).

Desta forma, ao estabelecer o princípio de historicidade, observe


que Hegel está se contrapondo aos contratualistas, pois a base
destes é um princípio não histórico, ou melhor, hipotético. Não
é demais acentuar que os principais escritos de Rousseau — Do
contrato social, Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens e Emílio — deixam claro o
teor hipotético de suas construções para dar conta da origem da
sociedade civil, seus males e a possível superação destes.

Há outro aspecto interessante, apontado por Bobbio: a relação


entre espaço e tempo, entre historicidade e espacialidade, que
explica a formação e desenvolvimento dos diferentes tipos de
organizações do ser humano. Acompanhe.

46
Filosofia Política II

Em Hegel – pensador no qual convergem, e se fundem


num sistema abrangente e complexo, dois milênios de
reflexão filosófica – encontramos uma concepção histórica
e geográfica – espacial – das formas de governo. [...]
Nas Lições de Filosofia da História, que representam
a última fase da evolução de seu pensamento, Hegel
dedica um capítulo introdutório à “base geográfica da
história universal”, no qual explica que a história do
mundo passou por três fases, caracterizadas por três
tipos diversos de base geográfica: o “altiplano”, com
suas grandes estepes e planuras, paisagem típica da
Ásia Central, onde têm origem as nações nômades
(principalmente pastoris); a “planície pluvial” que
caracteriza as terras do Indus, do Ganges, do Tigre
e do Eufrates, até o Nilo, onde o solo fértil leva
espontaneamente à “agricultura”; por fim, a “zona
costeira”, onde se desenvolve a inclinação para o comércio
e se formam novos motivos de riqueza, e novas condições
do progresso civil. [...]
Uma mudança no tempo corresponde também a uma
mudança no espaço, numa certa direção: do oriente para
o ocidente, isto é, acompanhando o sol. Hegel não quer
fazer profecias, mas em várias oportunidades afirma que
a América é o “país do futuro”, aquele “para o qual se
inclinará o interesse da história universal, nos tempos
futuros...” (Lições) [...]
[...] as formas históricas de constituição, pelas quais
passam todos os Estados, e a própria história do mundo,
são três – uma primeira forma de reino patriarcal, que
corresponde à categoria do despotismo; uma forma de
Estado livre, embora de liberdade particularística, que é
a república nas suas manifestações históricas da república
aristocrática e democrática; por fim, uma forma de reino
que já não é patriarcal ou despótica – a monarquia, em
que o rei governa uma sociedade articulada em esferas
relativamente autônomas [...].

Com efeito, as três formas de governo correspondem a


três tipos de sociedade: a primeira é ainda indiferenciada
e inarticulada, em que as esferas particulares de que
se compõe uma sociedade evoluída (ordens, classes ou
grupos) não emergiram da indistinta unidade inicial
(como acontece na família, um todo que ainda não se
compõe de partes relativamente autônomas); na segunda,
começam a surgir as esferas particulares, que, contudo,
não chegam a ser completamente autônomas com relação
à totalidade – é o momento da unidade desagregada e não

Unidade 1 47
Universidade do Sul de Santa Catarina

recomposta; na terceira, a unidade se recompõe mediante


a articulação das suas diferentes partes – há unidade e
diferenciação, e a unidade é perfeitamente compatível
com a liberdade das partes; de fato, só funciona mediante
o jogo relativamente autônomo dessas partes. A este
terceiro e último momento do desenvolvimento do
Estado ao qual corresponde historicamente a monarquia
moderna (diferente do antigo despotismo), isto é, a
monarquia constitucional – “um Estado evoluído”.
(BOBBIO, 1985, p. 145-148).

Como você deve estar percebendo, Hegel dá maior valor à


monarquia, e nisto muitos viram uma defesa do absolutismo.
Evidentemente, não se trata, aqui, da velha monarquia, mas de
uma monarquia constitucional. Para Bobbio (1985, p. 158):

Esquematicamente, pode-se dizer que para Hegel a


vida coletiva moderna se diferencia em duas esferas:
a sociedade civil, que é a das diferenças sociais; e o
Estado, a da unidade política, na qual as diferenças
sociais são articuladas e recompostas. Assim,
numa primeira aproximação, podemos afirmar que
a monarquia constitucional, como constituição
“articulada”, corresponde à época moderna como
sociedade “diferenciada”; e que a divisão dos poderes
nos quais se articula a constituição moderna se impõe
porque a unidade simples da comunidade antiga não
existe mais, e uma nova unidade não se pode formar
a não ser admitindo as diferenças sociais – como
comunidade complexa.

Isto indica que, para Hegel, a monarquia constitucional é a


melhor forma de governo para sua época; aquela que melhor
corresponde ao espírito do seu tempo. O que não quer dizer ser
impossível, em épocas vindouras, considerar como melhor outra
forma de governo.

O que distingue a monarquia constitucional não


é ser exercida por um, poucos ou muitos em suas
subdivisões, mas, ressalta Bobbio, que nela os poderes
do Estado estão divididos, sendo exercidos por
Tal divisão, cabe lembrar, já foi
diferentes órgãos.
apresentada por diversos pensadores
modernos, antes de Hegel.

48
Filosofia Política II

Sobre a divisão dos poderes, Bobbio aponta que temos, com


Hegel, a seguinte distinção: o poder do príncipe, o do governo e
o legislativo.

O poder judiciário não aparece nessa partição porque


é interpretado por Hegel não como genuíno poder
constitucional, mas como atividade administrativa
diretamente funcional, na ordem civil, mais do que na
política. A administração da justiça é colocada assim por
Hegel no nível da sociedade civil. Já o poder do príncipe
(do monarca, do soberano) representa um acréscimo ao
paradigma dos poderes de Montesquieu, que tendia a
atribuir ao monarca o poder executivo, e não um poder
ulterior, específico. Na constituição de Hegel, é no
monarca que todos os negócios e poderes particulares do
Estado encontram sua unidade definitiva; ele representa
o momento da decisão, da resolução com respeito a todas
as coisas, o momento da “pura vontade sem nenhum
acréscimo”. No modelo hegeliano, a figura do monarca
manifesta, portanto, a unidade pura e simples do Estado,
enquanto esta unidade, para não ser exclusivamente
alegórica, deve concretizar-se na vontade de uma única
pessoa física. (BOBBIO, 1985, p. 161).

A divisão dos poderes, em Hegel, diferente de muitos pensadores


modernos, não é um artifício de controle de um poder sobre o
outro, procurando evitar os excessos de alguma das partes. O
princípio da divisão dos poderes, lembra Bobbio, é “o princípio
de organização do corpo político, mediante o qual as esferas
particulares são reconduzidas ao universal.” (1985, p. 160).

Para Brandão (2004), Hegel consolida um movimento que


começa com Maquiavel procurando analisar o Estado como ele é,
como realidade histórica e efetiva; colocando como pouco viáveis
as teorias da origem natural ou divina do Estado (poder político);
consolidando a soberania e excelência do Estado e a separação
entre religião e política, política e ideologia; e reconhecendo a
questão da liberdade como central no pensamento político.

Como você pode perceber, Hegel acreditou ser possível que


as pessoas pudessem resolver, na sociedade civil, muitas das
contradições surgidas no âmbito das famílias. Mas, apesar de toda
a sua abrangência, a sociedade civil, em Hegel, não se mostrou
suficiente para dar respostas a muitas das carências humanas.

Unidade 1 49
Universidade do Sul de Santa Catarina

Por exemplo, embora exista um braço do Estado na


sociedade civil, a saber, a esfera jurídico-administrativa,
não é possível a efetivação da ética nesse espaço. A
sociedade civil é, sobretudo, o campo das relações de
mercado, contudo as relações que nela se efetivam não
devem ser interpretadas (reduzidas) exclusivamente
como econômicas.

Apesar disso, a ética, em Hegel, só se realiza plenamente no


Estado, na esfera pública por excelência. Se, por um lado, o
filósofo alemão é demasiado otimista no que tange às realizações
do Estado (síntese mais perfeita), não antevendo a dramática
experiência totalitária do século XX, por outro, assim como
Rousseau — mas não da mesma forma — entende que a
incorporação dos cidadãos no Todo (Estado) não deve suprimir a
liberdade destes sujeitos.

Será isso viável? É possível que os indivíduos


Para o aprofundamento realizem-se no Todo, sem se descaracterizarem como
destas questões em Hegel, sujeitos? Aliás, a garantia das liberdades individuais é
você pode fazer uma visita compatível com a igualdade entre todos os indivíduos?
aos verbetes políticos do
livro Dicionário Hegel.
Questões como estas podem enriquecer e, assim, subsidiar
nossos estudos sobre o pensamento político de Hegel, como
também sobre alguns dos grandes dilemas que envolvem a
Filosofia Política Contemporânea.

Síntese

Nesta unidade, você recuperou alguns aspectos da noção


moderna de Estado para chegar ao debate sobre o papel do
Estado em Hegel. Por fim, foi apontado como as questões
apresentadas por estes autores levam a repensar a noção moderna
de Estado e os dilemas ainda persistentes no pensamento político
contemporâneo. Como foi apontado de início, muitas lacunas
foram deixadas. Mas cabe a você, conforme seu interesse,
elaborar pesquisas complementares que diminuam algumas
destas lacunas.

50
Filosofia Política II

Atividades de autoavaliação

1) Ao longo desta unidade, você, além de estudar o pensamento político


de Hegel, revisou algumas concepções modernas da filosofia política.
Tendo isto em mente, enumere a segunda coluna de acordo com a
primeira.

01 – Maquiavel ( ) Defende a hipótese de que os homens em


estado de natureza são sadios, bons e
02 – Hobbes felizes. Entretanto, em algum momento,
03 – Locke tendo a propriedade como seu ápice, geram
escravidão e miséria.
04 – Rousseau
( ) Em função das condições em que se
05 – Kant encontrava sua nação, apesar de ser um
republicano, propôs um regime de um só
06 – Hegel para consolidar um Estado Nacional Italiano.
( ) Um liberal inglês, que não vê no estado
de natureza um ambiente de guerra e
egoísmo. De seu pensamento, face a
certa ambiguidade sobre como trata
a propriedade, pode-se concluir que a
cidadania plena só é possível para aqueles
que têm propriedade.
( ) Para ele, o estado de natureza é o estado de
guerra de todos contra todos.
( ) O alemão recusa-se a considerar o Estado
como instituição jurídica, apêndice da so­
ciedade civil.
( ) Ele é muito duro quanto ao desrespeito
às leis, condenando radicalmente as
insurreições. Entretanto, vê que, quando
uma tendência revolucionária vence,
estabelece uma nova ordem política, que
deve ser respeitada.

Unidade 1 51
Universidade do Sul de Santa Catarina

2) Em que medida é possível dizer que Hegel consolida um movimento o


qual começa com Maquiavel?

Saiba mais

Se você se interessou pela reflexão política hegeliana e quer


aprofundar um pouco mais, comece lendo:

Princípios da Filosofia do Direito, ou Direito


natural e ciência do Estado resumidos, Grundlinien
der Philosophie des Rechts, oder Naturrecht und
Staatswissenschaft im Grundrisse, 1821. Georg Wilhelm
Friedrich Hegel, 1770-1831. (HEGEL, 2000).

Esse texto é compilação de aulas de He­gel. Ao contrário


do que aconteceu com ou­tras aulas (estética, religião e
filosofia), He­gel redigiu e publicou pessoalmente as que
versavam sobre a filosofia do direito. Em Princípios
da filosofia do direito, há o in­tuito de unificar duas
perspectivas que a fi­losofia kantiana havia separado: por
um lado, o direito e a ordem jurídica (em que as vontades
são obrigadas a partir do exterior) e a moral (ordem ética
em que a considera­ção do dever determina a vontade a

52
Filosofia Política II

partir do interior). A unificação de subjetivo e ob­jetivo


será realizada pela noção de “morali­dade objetiva”
(Sittlichkeit).

O prefácio é célebre. Nele, Hegel caracteri­za a filosofia


como conhecimento daquilo que é; não dirá ela o que
o mundo “deve ser”: “A coruja de Minerva só alça vôo
quan­do cai a noite.” Pensar o que são sociedade e Estado
na ordem da vida ética e jurídica, tal é o objetivo dessa
obra. Não há de julgar tal ou tal forma, este ou aquele
aspecto do direito, da vida social, da política nacional
ou inter­nacional, mas sim de compreender a totali­dade
dessas formas, em toda a riqueza de suas manifestações
concretas.

A “vida ética” articula-se nos três momen­tos sucessivos


que são família, sociedade civil e Estado. A família é a
forma imediata — diríamos hoje “natural” — da vida
social. A “sociedade civil” é o nível das relações so­ciais
entre pessoas que buscam atender inte­resses particulares;
as pessoas, os proprietá­rios, assumem relações
contratuais que cons­tituem a base da vida jurídica
(direito civil e direito penal, sistema de penalidades).

O aspecto político introduz uma ruptura, pois Hegel


recusa-se a considerar o Estado como instituição jurídica,
apêndice da so­ciedade civil. No Estado, encarna-se a mais
elevada forma de moralidade objetiva, o racional realizado,
“o divino na Terra”. A vida do Estado prolonga-se na
política ex­terior, nas relações internacionais, enfim na
história mundial. Assim como ocorria no século XVIII,
Hegel vê na moral e nas ins­tituições jurídicas e políticas
a expressão da razão (“Tudo o que é real é racional; tudo
o que é racional é real”) e a expressão da liberdade. Mas
essa liberdade, em Hegel, não é a satisfação dos interesses
egoístas. O Estado não é instrumento da satisfação dos
interesses: é sua superação.

O Estado é a mediação do universal, por­quanto o


indivíduo não tem acesso a sua dimensão do universal
por meio da i­dade abstrata. Hegel não rejeita o

Unidade 1 53
Universidade do Sul de Santa Catarina

sujeito moral kantiano, mas só vê nele um momen­


to num processo mais elevado, que deve culminar no
Estado. Também é preciso que se encarne a ideia de
liberdade realizada no Estado. O príncipe de Hegel,
“lei viva”, é feito à imagem dos soberanos de que está
cheia a Europa do início do século XIX: Francisco II
da Áustria, Ferdinando VII da Espanha, Frederico-
Guilherme da Prússia. Como cada Estado está em
relação aos ou­tros na situação em que se encontra uma
pessoa diante de outras, as relações inter­nacionais
baseiam-se necessariamente na violência e na guerra.
O que leva Hegel, em nome de um realismo bastante
maquiavélico, a destruir os sonhos do século ante­rior na
instauração de um estado de paz permanente entre as
nações (Projetos* do abade de Saint-Pierre e de Kant).

Essa obra contribuiu muito para a instau­ração da


imagem de um Hegel conservador e até reacionário: a
do filósofo oficial, anti­liberal, da restauração prussiana.
Uma lei­tura mais atenta do texto, que foi submeti­do
(como todas as publicações de Hegel) aos tormentos
da censura, revela uma ima­gem bem menos dura, até
oposta. Hegel, ­que, é verdade, opta pela monarquia
consti­tucional, expressa aqui opiniões muito au­daciosas e
razoavelmente liberais.
Edição brasileira: Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Estudo: É. Weil, Hegel et I’État. Cinq conférences, Vrin,1985.

Fonte: HUISMAN, Denis. Dicionário da obras filosóficas. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p. 443-444.

54
Filosofia Política II

Além desse texto você pode consultar os seguintes livros.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. 4. ed. v. 2


Brasília: Edunb, 1992.

______. A teoria das formas de governo. 4. ed. Brasília:


Edunb, 1985.

______. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

______. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense,


2005.

GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel: as


concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. 15.
ed. Porto Alegre: L&PM, 1998.

HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São


Paulo: Martins Fontes, 2000.

______. A fenomenologia do espírito. São Paulo: Abril


Cultural, 1980. (Col. Os pensadores)

HOBBES, Thomas. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural,


1983.

INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed., 1997. (Dicionário de Filósofos)

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. 5. ed. São


Paulo: Nova Cultural, 1991. (Col. Os pensadores)

LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 17. ed. São Paulo:


Brasiliense, 1995.

MAURIZIO, Viroli. O sorriso de Nicolau: história de


Maquiavel. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo


possessivo: de Hobbes a Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979.

MAQUIAVEL, N. O príncipe. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 1988.

Unidade 1 55
Universidade do Sul de Santa Catarina

______. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio.


Brasília: UNB, 1994.

______. História de Florença. São Paulo: Musa Editora,


1998. (Ler os clássicos; v. 2)

MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. São Paulo:


Martins Fontes, 1994.

RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes


escrevendo contra o seu tempo. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
1999.

______. A marca do Leviatã: linguagem e poder em Hobbes.


São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

ROSANVALLON, Pierre. O liberalismo econômico:


História da ideia de mercado. São Paulo: EDUSC, 2002.
(Coleção Ciências Sociais)

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social e outros


escritos selecionados. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
(Col. Os pensadores)

QUIRINO, C. G.; SADEK, M. T. O pensamento político


clássico. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SKINNER, Quentin. Maquiavel: pensamento político. São


Paulo: Brasiliense, 1988.

______. Razão e retórica na filosofia de Hobbes. São Paulo:


Editora Unesp, 1999.

______. As fundações do pensamento político moderno. São


Paulo: Companhia das Letras, 1999.

WEFFORT, Francisco (org.). Os clássicos da política: Burke,


Kant, Hegel, Tocquiville, Stuart Mill, Marx. 10. ed. v. 2 São
Paulo: Ática, 2004.

YOLTON, John W. Dicionário Locke. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed., 1996. (Dicionário de Filósofos)

56
2
UNIDADE 2

A noção de Estado 2: da
concepção negativa de Estado
marxista à crise do Estado
Carlos Euclides Marques

Objetivos de aprendizagem
„„ Compreender, a partir da visão marxista, o papel do
Estado e refletir a respeito.
„„ Avaliar, face aos novos regimes políticos do século XX, os
limites da noção moderna de Estado.

Seções de estudo
Seção 1 A posição marxista

Seção 2 As divergências entre os marxistas e o


apontar da crise da noção moderna de
Estado
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Nesta unidade, você será apresentado à concepção marxista
de Estado, tanto como aparato de dominação e ideologização
por parte da burguesia, quanto como um caminho, a partir da
ditadura do proletariado, para uma sociedade sem Estado. E, como
reflexos parciais desta concepção marxista, você estudará também
o surgimento de regimes totalitários, tanto de direita como de
esquerda, que aguçaram a crise da noção moderna de Estado.

Então, vamos avançar?

Seção 1 - A posição marxista


Você já deve ter lido ou ouvido falar sobre o pensamento
político marxista. Tal corrente, ainda hoje, tem forte inserção
na academia e no ideário político. Algumas das noções
fundamentais desta corrente política – luta de classes, ideologia,
alienação, entre outras – fazem parte do repertório de muitos
de nós hoje. Mesmo teóricos não marxistas usam estas noções.
Seu fundador, Karl Marx (1818-1883), foi um homem ligado às
mudanças e às grandes revoluções do século XIX. Este século,
entre outras situações, vive o avanço e as consequências da
Revolução Industrial.

Como esta revolução junto com a Revolução Francesa


foi muito importante, antes de avançar, faça uma
pesquisa sobre suas características e suas implicações.
Utilize o espaço abaixo para fazer as suas anotações.

58
Filosofia Política II

Há, na expressão Revolução Industrial (como também na


Revolução Francesa), uma noção: a de revolução, que, por vezes,
pode ser confundida com revolta, rebelião. Tais noções podem
ser tratadas como sinônimo no âmbito do senso comum, da nossa
linguagem do dia a dia. Contudo, do ponto de vista político,
revolução implica uma transformação profunda da ordem e do
sistema social, enquanto uma revolta ou uma rebelião restringe-se
mais especificamente a uma região ou setor, geralmente não
tem conotações ideológicas e não produz alterações sistemáticas
nos fundamentos das estruturas sociais. Sinteticamente, é esta a
diferença.

Leia o verbete Revolução do Dicionário de Política,


organizado por Norberto Bobbio, e dê conta de forma
mais detalhada desta distinção e seus usos. Você pode
utilizar o espaço abaixo para fazer suas considerações.

Unidade 2 59
Universidade do Sul de Santa Catarina

A Revolução Industrial produziu profundas transformações na


sociedade, nas relações entre cidade e campo, nas relações e na
organização do tempo-espaço de trabalho, entre outras. Tais
transformações são resultado do surgimento das fábricas, da
produção em série e do trabalho assalariado, que alteraram a
economia, as relações sociais e a paisagem geográfica, geraram
a produção em série, a qual, aos poucos, desbancou a produção
manufaturada e os mecanismos de comércio internacional.

É bom lembrar, entretanto, que a palavra revolução,


como salienta Chauí, vem do vocabulário astrofísico e
designa algo inverso ao sentido dado atualmente no
âmbito da política. Leia o esclarecimento da autora:

O uso da palavra revolução para designar tais


mudanças é curioso. De fato, essa palavra provém do
vocabulário da astronomia, significando o movimento
circular completo que um astro realiza ao voltar ao seu
ponto de partida. Uma revolução se efetua quando
o movimento total de um astro faz coincidirem seu
ponto de partida e seu ponto de chegada. Revolução
designa movimento circular cíclico, isto é, repetição
contínua de um mesmo percurso. (CHAUÍ, 1996, p. 404).

A autora continua se perguntando como esta palavra passou a


significar profundas mudanças e alterações políticas no contexto
das relações sociais e de poder, significando exatamente o
contrário de seu sentido no vocabulário astro-físico, passando a
significar o percurso rumo ao tempo novo e à sociedade nova?
(CHAUÍ, 1996, p. 404).

Para ela, o caminho de resposta a estas inquietações deve passar


pelo exame mais aguçado das revoluções burguesas – a Revolução
Inglesa de 1644, a Revolução Norte-Americana de 1776 e a
Revolução Francesa de 1789.

Embora em todas elas o resultado tenha sido o mesmo:


a subida e consolidação política da burguesia como
classe dominante, nas três houve o que um historiador
denominou de “revolução na revolução”, indicando com
isso a existência de um movimento popular radical ou
a face democrática e igualitária da revolução, derrotada
pela revolução burguesa. Em outras palavras, nas três

60
Filosofia Política II

revoluções, a burguesia pretendeu e conseguiu derrotar


a realeza e a nobreza, passou a dominar o Estado e
julgou com isso terminada a tarefa das mudanças,
enquanto as classes populares, que participaram daquela
vitória, desejavam muito mais: desejavam instituir
uma sociedade inteiramente nova, justa, livre e feliz.
(CHAUÍ, 1996, p. 404).

Explica, ainda, a autora que as classes populares, por não


possuírem teorias político-filosóficas ou científicas, tomavam a
narrativa mítica – a Bíblia – para dar conta de explicar o mundo
em que viviam e desejavam. Desta forma, esclarece Chauí,

[...] possuíam duas referências de justiça e felicidade: a


imagem do Paraíso terrestre (no Antigo Testamento)
e o Reino de Deus na Terra ou Nova Jerusalém (no
Novo Testamento) que restauraria o Paraíso depois que
Cristo viesse ao mundo pela segunda vez e, no fim dos
tempos ou tempo do fim, derrotasse para sempre o Mal.
(CHAUÍ, 1996, p. 405).

De que dispunham as classes populares? –Você pode se


perguntar a partir da leitura desta parte do texto de Chauí. A
este questionamento, a autora responde: Elas dispunham de um
imaginário messiânico e milenarista.

Quando lutavam politicamente, atenta Chauí, estavam – as Milenarista, porque o


Reino de Deus na Terra
classes populares – a olhar para o passado – as origens do ser duraria mil anos de
humano no –; para o futuro – a Nova Jerusalém. “Olhavam felicidade, abundância e
para o tempo futuro e novo – a sociedade dos justos na Terra justiça
–, que seria a restituição ou restauração do tempo passado
original – o Paraíso.” (ibid., op. cit.) Assim, eram coincidentes o
ponto chegada e o ponto de partida do movimento político “[...]
com a existência da justiça e da felicidade, o futuro e o passado
se encontravam, fechando o ciclo e o círculo da existência
humana, graças à ação do presente.” (CHAUÍ, 1996, p. 405).
Isto explicaria, segundo a autora, o porquê desses sujeitos e
protagonistas usarem a palavra revolução. Com estas explicações
da autora, é possível compreender que, neste momento, o sentido
astrofísico não é tão contrário ao político – impregnado da
narrativa mítica – como parecia inicialmente.

Na realidade, são várias Revoluções Industriais. Alguns autores


falam de quatro. Analise.

Unidade 2 61
Universidade do Sul de Santa Catarina

1. A primeira, a partir da Inglaterra, tem início por volta


de 1760 e vai até aproximadamente 1860. As bases
principais desta fase são: o uso do ferro, do carvão, do
tear mecânico e, principalmente, da máquina a vapor.

2. A segunda, entre 1860 e 1900, baseia-se no aço, na


energia elétrica e em produtos químicos. Esta propiciou,
inclusive, a mudança na noção de hora de trabalho, já
que a luz elétrica possibilitou que as fábricas produzissem
vinte e quatro horas por dia. O sol não é mais a medida
do tempo de trabalho.

3. A terceira, no período entre guerras, constitui-se,


basicamente, na implantação de nossos sistemas de
produção, como a linha de montagem, e a consequente
produção em série.

4. A quarta, a partir da segunda metade do século XX,


incrementa-se com a introdução da automação e da
robotização.

Marx e seu principal colaborador, Engels (1820-1895), vivem


no ambiente das duas primeiras grandes Revoluções Industriais,
que produzem uma nova classe social: o proletariado. Tal
classe social, do ponto de vista marxista, é a contraposição da
classe dominante: a burguesia. Também é vista como a classe
revolucionária por excelência. Os fragmentos seguintes do
“Manifesto do partido comunista”, dão conta de como Marx e
Engels veem esta condição revolucionária do proletariado.

As armas que a burguesia utilizou para abater o


feudalismo voltam-se hoje contra a própria burguesia. A
burguesia, porém, não forjou somente as armas que lhe
darão morte; produziu também os homens que manejarão
essas armas – os operários modernos, os proletários.
Com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital,
desenvolve-se também o proletariado, a classe dos
operários modernos, que só podem viver se encontrarem
trabalho, e que só encontram trabalho na medida em que
este aumenta o capital. Esses operários, constrangidos
a vender-se diariamente, são mercadoria, artigo de
comércio como qualquer outro; em conseqüência, estão
sujeitos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as
flutuações do mercado. (1848, p. 5).

62
Filosofia Política II

Finalmente, nos períodos em que a luta de classes se


aproxima da hora decisiva, o processo de dissolução da
classe dominante, de toda a velha sociedade, adquire
um caráter tão violento e agudo que uma pequena
fração da classe dominante se desliga desta, ligando-se
à classe revolucionária, a classe que traz em si o futuro.
Do mesmo modo que outrora uma parte da nobreza
passou-se para a burguesia, em nossos dias, uma parte
da burguesia passa-se para o proletariado, especialmente
a parte dos ideólogos burgueses que chegaram à
compreensão teórica do movimento histórico em seu
conjunto. De todas as classes que ora enfrentam a
burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente
revolucionária. As outras classes degeneram e
perecem com o desenvolvimento da grande indústria;
o proletariado, pelo contrário, é seu produto mais
autêntico. As classes médias – pequenos comerciantes,
pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem
a burguesa, porque esta compromete sua existência
como classes médias. Não são, pois, revolucionárias,
mas conservadoras; mais ainda, reacionárias, pois
pretendem fazer girar para trás a roda da História.
Quando são revolucionárias é em conseqüência de sua
iminente passagem para o proletariado; não defendem
então seus interesses atuais, mas seus interesses futuros;
abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar
no do proletariado. [...] Nas condições de existência do
proletariado já estão destruídas as da velha sociedade.
O proletário não tem propriedade; suas relações com a
mulher e os filhos nada têm de comum com as relações
familiares burguesas. O trabalho industrial moderno,
a sujeição do operário pelo capital, tanto na Inglaterra
como na França, na América como na Alemanha, despoja
o proletário de todo caráter nacional. As leis, a moral, a
religião são para ele meros preconceitos burgueses, atrás
dos quais se ocultam outros tantos interesses burgueses.
Todas as classes que no passado conquistaram o poder
trataram de consolidar a situação adquirida submetendo
a sociedade às suas condições de apropriação. Os
proletários não podem apoderar-se das forças produtivas
sociais senão abolindo o modo de apropriação que
era próprio a estas e, por conseguinte, todo modo de
apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm
de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as
garantias e seguranças da propriedade privada até aqui
existentes.

Unidade 2 63
Universidade do Sul de Santa Catarina

Todos os movimentos históricos têm sido, até hoje,


movimentos de minorias ou em proveito de minorias.
O movimento proletário é o movimento independente
da imensa maioria em proveito da imensa maioria. O
proletariado, a camada inferior da sociedade atual, não
pode erguer-se, pôr-se de pé, sem fazer saltar todos os
estratos superpostos que constituem a sociedade oficial.
A luta do proletariado contra a burguesia, embora não
seja na essência uma luta nacional, reverte-se, contudo,
dessa forma nos primeiros tempos. É natural que o
proletariado de cada país deva, antes de tudo, liquidar sua
própria burguesia. (MARX; ENGLES, 2003, p. 7).

Como destaca Weffort (2004, p. 230), a ideia de revolução é


central no pensamento marxista. Tal pensamento, continua o
autor, não é uma noção, uma teoria ou um conceito abstrato,
“mas o sentido real de toda uma época histórica.” O que lembra a
décima primeira tese sobre Feuerbach: “Os filósofos se limitaram
a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo.”
(MARX, 1978, p. 53).

O que os autores querem dizer com isto?

„„ Trata-se de uma crítica a toda filosofia que fica apenas


no âmbito teórico, idealizando o mundo, privilegiando a
ideia como mote.

„„ Pode indicar, também, uma exaltação ao ativismo,


Note como, também aqui, a noção ou seja, a ação concreta como forma de mudança. Tal
de luta remete ao pensamento
posição será retomada mesmo por autores que criticam o
heraclitiano, que, por sua vez,
pode estar na gênesis da noção de marxismo, pensando o exercício da política como ação.
dialética tanto em Hegel como em
Marx. A noção de revolução é correlata da noção de dialética. A própria
noção de luta de classe é indicadora disto: a tese, a burguesia; a
antítese, o proletariado; a síntese, o fim da sociedade de classe.

Você pode estar se perguntando: “Que relação há disto com a


noção de Estado?”

Muito, pois para o pensamento marxista, o Estado é uma forma


de organização que a burguesia, a classe dominante, estabelece
para defender seus interesses. Contudo, diferente dos anarquistas

64
Filosofia Política II

que pretendiam chegar a uma sociedade sem classe sem passar


pela estrutura do Estado – pois, para estes, o Estado é um mal a
ser evitado –, o pensamento de Marx e de seus seguidores indica
que o proletariado deve tomar o Estado, para produzir igualdade
econômica e pôr fim à sociedade de classe. Nesta altura,
provavelmente o Estado perde seu sentido de ser.

Como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma


classe dominante fazem valer seus interesses comuns e
na qual se resume toda a sociedade civil de uma época,
segue-se que todas as instituições comuns são mediadas
pelo Estado e adquirem através dele uma forma política.
Daí a ilusão de que a lei se ba­seia na vontade e, mais
ainda, na vontade destacada de sua base real – na vontade
livre. Da mesma forma, o direito é reduzido novamente à
lei. (MARX; ENGELS, 1996, p. 98).

No Estado, toma corpo, diante de todos nós, o primeiro


poder ideológico so­bre os homens. A sociedade cria para
si um órgão visando a defesa de seus in­teresses comuns
diante dos ataques de dentro e de fora. Esse órgão é
o poder de Estado. Porém, apenas criado, ele se torna
independente da sociedade, tan­to mais na medida em
que se vai convertendo em órgão de uma determinada
classe e mais diretamente impõe o domínio dessa classe.
(REZENDE, 1992, p. 182).

Há um debate sobre se existe ou não uma Teoria Política Marxista e,


consequentemente, uma Teoria do Estado. Tal debate pauta-se no fato
de não haver uma obra específica sobre o Estado em Marx e, mesmo
em Engels. Em “A origem da família, da propriedade privada e do
Estado”, faz-se uma abordagem mais histórica da formação do Estado
do que uma tipologia do Estado. Para Bobbio (1985, p. 165-172), isto
se deve por ser o pensamento marxista uma “concepção negativa do
Estado”. Em que consiste tal concepção? Basicamente, aquela que vê
o Estado como repressor, embora, por vezes, um repressor necessário
para diminuir a natureza má do ser humano.

Unidade 2 65
Universidade do Sul de Santa Catarina

A ORIGEM DA FAMILIA, DA PROPRIEDADE E DO ESTADO


A partir de notas inéditas de Marx e ba­seado nos trabalhos do
etnólogo evolucio­nista americano Lewis Morgan e sua tripar­tição
da história em selvageria, barbárie e civilização (A sociedade
primitiva, 1877), Engels (1985) expõe as diferentes formas
originais da família e dos sistemas de parentesco, mostrando
que a gens iroquesa é a forma original da gens (grupo de
consanguíneos que forma uma linhagem), encontrada depois
entre os gregos, os romanos, os cel­tas e os germanos. Ele analisa
a gênese do Estado em Atenas e entre os germanos como
dissolução da organização baseada na gens.
Desta forma, o Estado não existiu sem­pre, e não é indubitável
que sempre existi­rá:

A sociedade que reorganizar a produ­ção com


base numa associação livre e igua­litária dos
produtores relegará toda a má­quina do Estado
ao lugar que passará a ser o seu: ao museu das
antigüidades, ao lado da roca e do machado de
bronze. (HUISMAN, 2000, p. 414)

Para a maioria dos filósofos clássicos, o Estado


representa um momento positivo na formação do
homem civil. O fim do Estado é ora a justiça (Platão),
ora o bem comum (Aristóteles), ora a felicidade dos
súditos (Leibniz), ora a liberdade (Kant), ora a máxima
expressão do ethos de um povo (Hegel). É considerado
geralmente como o ponto de escape da barbárie, da
guerra de todos contra todos; visto como o domínio
da razão sobre as paixões, da reflexão sobre o instinto.
Grande parte da filosofia política é uma glorificação do
Estado. Marx, ao contrário, considera o Estado como
puro e simples “instrumento” de domínio: tem uma
concepção que chamaria de técnica, para contrapor a
concepção “ética” prevalecente nos escritores que o
precederam. (BOBBIO, 1985, p. 164).

Para reforçar esta noção de que a teoria marxista, assim como


outras teorias socialistas ou no vocabulário mais contemporâneo,
libertárias, são “concepções negativas de Estado”, tomemos esta
passagem de Chauí (2000, p. 526):

66
Filosofia Política II

As teorias socialistas tomam o proletariado como


sujeito político e histórico e procuram figurar uma nova
sociedade e uma nova política na qual a exploração
dos trabalhadores, a dominação política a que estão
submetidos e as exclusões sociais e culturais a que são
forçados deixem de existir. Porque seu sujeito político são
os trabalhadores, essas teorias políticas tendem a figurar
a sociedade futura como igualitária, feita de abundância,
justiça e felicidade. Como percebem a cumplicidade
entre o Estado e a classe economicamente dominante,
julgam que a existência do primeiro se deve apenas às
necessidades econômicas da burguesia e por isso afirmam
que, na sociedade futura, quando não haverá divisão
social de classes nem desigualdades, a política não
dependerá do Estado. São, portanto, teorias antiestatais,
que apostam na capacidade de autogoverno ou de
autogestão da sociedade.

Como você deve ter percebido, a posição marxista é a antítese


da posição de Hegel. Este pensava o Estado como o supra-sumo
da realização do Espírito Objetivo, em que as contradições
são resolvidas. Já Marx vê o Estado como a perpetuação destas
contradições. Isto fica bem claro em muitos dos textos de Marx
e dos marxistas e de vários estudiosos desta corrente político-
filosófica.

Como esclarece Bobbio (1985), para uma concepção negativa do


Estado não é importante discutir as formas de governo, qual é
a boa, qual é a má. Isto perde um pouco do sentido, pois todas
são formas corrompidas. Tal visão tem, em relação à noção
hegeliana, dominante na época (século XIX), uma clara tentativa
de desmistificar a imagem do Estado como uma “divindade
terrena”, que se deve proteger com a própria vida. Evidentemente,
como tão bem recorda Bobbio, tal ideia não é uma novidade,
basta recuperar Maquiavel. Já é quase um senso comum que,
para Marx, o poder político é de uma classe, e foi instituído
para oprimir. O que reforça o fato de o Estado ser apenas um
instrumento de dominação quando na mão da classe dominante.
Eis porque o proletariado deve tomar o poder, as estruturas do
Estado.

Outro aspecto do pensamento marxista bastante conhecido


é o fato de privilegiar a análise econômica. Como a base das
transformações do mundo humano são as formas de produção
material de sobrevivência do ser humano, para a concepção

Unidade 2 67
Universidade do Sul de Santa Catarina

marxista, estas bases regem, também, as relações sociais e


políticas, ou seja, entender as relações de poder, a política,
é, também, dar conta das relações de dominação, divisão e
distribuição dos bens, do modo de produção, produtor das
relações sociais e de outras relações. Desta forma, os tipos de
Estado ou as formas de governo estão ligados aos modos de
produção.

Segundo Chauí (1996, p. 410-411), para Marx:

A sociedade civil é o processo de constituição e reposição


das condições materiais da produção econômica pelas
quais são engendradas as classes sociais: os proprietários
privados dos meios de produção e os trabalhadores ou
não proprietários, que vendem sua força de trabalho
como mercadoria submetida à lei da oferta e da procura
no mercado de mão de obra. Essas classes sociais são
antagônicas e seus conflitos revelam uma contradição
profunda entre os interesses irreconciliáveis de cada uma
delas, isto é, a sociedade civil se realiza como luta de
classes [...].

Neste contexto, é fácil perceber o Estado como, nas palavras


da autora, “[...] expressão política da luta econômico-social das
classes, amortecida pelo aparato da ordem (jurídica) e da força
pública (policial e militar).” (CHAUÍ, 1996, p. 411). Ou seja,
aparenta ser um poder público distante e separado da sociedade
civil. Assim, não é casual, alerta nossa filósofa marxista, que o
liberalismo defina o Estado como aquele que garante o direito
de propriedade privada, reduzindo a cidadania aos direitos dos
proprietários privados. A ampliação de tal cidadania será fruto,
do ponto de vista marxista, das lutas populares em contraposição
às ideias e práticas liberais. Partindo deste ponto de vista, é
possível afirmar que a economia não deixa de ser política. E, no
capitalismo, isto é mais claro.

A pergunta que se pode fazer é se o Estado, então, teria


autonomia, pelo menos parcial, em relação aos interesses da
classe dominante. Bobbio aponta que, mesmo do ponto de
vista marxista, em certos momentos, sim. Quais seriam estes
momentos?

68
Filosofia Política II

Uma possibilidade é quando as classes em luta têm a mesma


força. Neste caso, o Estado tem o papel de mediador. Neste
contexto, por vezes, aparece um carismático oportunista
“Bonapartismo (do nome dos
prometendo salvar a nação contra interesses supostamente
dois imperadores franceses
espúrios, que prejudicam o povo e a nação. Bonaparte), um governo que
procura parecer não partidário,
Aqui é interessante trazer à luz a função dos regimes aproveitando-se de uma luta
ditatoriais. Um exemplo analisado por Marx e Engels em extremamente aguda dos
algumas de suas obras é o bonapartismo. Do ponto de vista partidos dos capitalistas e dos
marxista, tal situação é o produto da disputa acentuada entre operários entre si. Servindo
de fato os capitalistas, esse
burguesia e proletariado. Para evitar maiores problemas, a
governo engana, mais que
burguesia ausenta-se do poder político. Mas, reforçam os ninguém, os operários com
autores, não do poder econômico. Muitas vezes, a ascensão promessas e pequenas
destes tiranos vem acompanhada de discursos que prometem a esmolas”. Maiores detalhes,
salvação da pátria e benefícios para as classes desprivilegiadas. leia o verbete bonapartismo,
escrito por Sergio Pistone,
Tal tirano que retira o poder político do parlamento e tem
no Dicionário de política
amparo de setores militares, quando não é membro do aparato (BOBBIO, 1992), ou o artigo
militar, é, geralmente, segundo Marx e Engels, apoiado por Dialética e história no 18
uma classe que não coincide nem com a burguesia dominante, Brumário de Luis Bonaparte
nem com o proletariado. Nesta situação, há autonomia política de Karl Marx (MARX, 1987),
de Bernardo Alfredo Mayta
do Estado. Mas, como a política, no fundo, depende da
Sakamoto.
economia, há uma falsa ideia de autonomia.

O bonapartismo foi, posteriormente, atribuído, por certas


semelhanças, a diferentes movimentos políticos que
provocaram profundos conflitos no século XX: o fascismo
e o nazismo e as ditaduras de direita que bem ilustraram
a história da América Latina, mas não só desta, pois
poderíamos incluir aí, a contragosto de alguns teóricos
marxistas mais dogmáticos, as ditaduras de esquerda.
Entretanto, é bom lembrar que, no pensamento marxista,
É importante salientar que
ditadura é sinônimo de despotismo. E o Estado, não importa o pensamento de Marx e de
se governado por um, poucos ou muitos, é uma ditadura, ou Engels não se debateram com
seja, o poder despótico. Neste sentido, podem-se entender o fenômeno das ditaduras
as expressões ditadura burguesa ou ditadura de direita e de esquerda: a ditadura do
ditadura do proletariado ou de esquerda. proletariado é, aí, ainda uma
utopia. É a consolidação de
regimes ditatoriais tanto de
O marxismo vê a ditadura do proletariado como força
esquerda como de direita
positiva. Isto se dá pelas características desta classe social. ao longo do século XX que
Sendo ela a classe que carece de quase tudo, poderia, ao propiciará o debate sobre
assumir o Estado, promover a igualdade social. Em parte, o que alguns autores mais
esta continua sendo a visão predominante em várias correntes contemporâneos chamaram de
totalitarismo.
marxistas e libertárias: a de que o proletariado é, por
excelência, a classe revolucionária.
Unidade 2 69
Universidade do Sul de Santa Catarina

Em 1917, uma Revolução consolidou-se a partir das bases do


pensamento de Marx e Engels: a Revolução Russa. Até quase
o fim da primeira metade do século XX, esta Revolução ainda
inspirava olhares maravilhados, face certas conquistas desta
nova nação e dos desejos de uma humanidade mais igualitária.
Contudo, aos poucos, certas atitudes das autoridades que
administravam o primeiro Estado Comunista começaram a
demonstrar que esta maior igualdade estava sendo manchada
por atitudes outrora consideradas negativas por parte de seus
fundadores teóricos.

Seção 2 - As divergências entre os marxistas e o


apontar da crise da noção moderna de Estado
Como você pôde perceber, a noção de revolução continua
sendo muito importante no pensamento político marxista,
mesmo que, às vezes, menosprezada por algumas correntes.
Marx e Engels deixaram uma obra que originou o marxismo,
ou melhor, os marxismos. No correr do século XX, diferentes
misturas foram-se fazendo: marxismo e psicanálise; marxismo e
estruturalismo; além de certas correntes marxistas apoiarem-se
mais na leitura de certo conjunto de textos ou dar maior
valor a uma ou outra noção da obra de Marx e Engels. Você
deve acrescentar a isto o fato de que a obra de Marx, quanto
à realização da “ditadura do proletariado” como Estado de
transição, é uma utopia e, ao se tentar realizar tal utopia, muitas
dificuldades foram encontradas.

Uma democracia direta, a partir dos conselhos de fábricas


e dos trabalhadores rurais foi, principalmente a partir do
governo de Stalin, substituída por uma burocracia partidária.
O Estado passou a implantar planos de desenvolvimento com
metas que, muitas vezes, não eram discutidas com as bases,
ou não tinham mecanismos que facilmente as adaptassem,
por parte das camadas de base, a algum tipo de problema
não previsto. Mais ainda, principalmente depois da Segunda
Grande Guerra Mundial, a ex-URSS (da qual a Rússia era a

70
Filosofia Política II

república principal) passou a adotar uma política expansionista,


conquistando, por vezes, territórios a força e lá implantando
seu regime, à revelia dos desejos locais. Divergências quanto a
como trabalhar as revoltas em outros países fizeram, em alguns
casos, a administração stalinista tomar partido de setores não
considerados proletariados.

Um exemplo disto foi a Revolução Chinesa. Tal divergência


de opinião e estratégia produziu cisões no Comunismo. São
claras as diferenças entre a China Comunista e a ex-URSS
ou a fragmentação dos Partidos Comunistas. As disputas
internacionais com os Estados Unidos da América, a Guerra
No Brasil, até
Fria, a corrida espacial, o investimento em revoluções e recentemente, o PCB e o
contrarrevoluções por parte das chamadas superpotências – PC do B representavam
URSS e EUA, além de problemas internos, começaram, com orientações, tendências
o passar do tempo, a produzir desgastes e o enfraquecimento diferenciadas do
Comunismo.
da primeira grande experiência socialista. E a grande ex-URSS
foi se fragmentando até cair e se transformar em mais um país
capitalista: a Rússia e tantas outras Repúblicas independentes.

Muitas críticas ao regime comunista foram feitas e ainda são.


O dilema entre liberdades políticas e bem-estar social continua
sendo o mote de muitas das discussões quanto às formas de
gerir o Estado. Ao que parece, nos dias atuais, o mundo está
dominado por uma ideologia neoliberal-capitalista. Para muitos,
isto é a demonstração da força do capitalismo e de sua capacidade
de adaptação; e da incapacidade do comunismo de se colocar,
de fato, como alternativa. Porém, tal situação também não tem
garantido, ao menos, a redução das desigualdades entre os seres
humanos, a redução da exploração pelo trabalho e uma melhor
distribuição de renda.

Pensadores como Cornelius Castoriadis (1985) avaliam que,


no fundo, a Revolução de 1917 não consolidou dois sistemas
econômico-políticos – capitalismo x comunismo –, mas dois
tipos de capitalismo: o capitalismo burocrático fragmentário e o
capitalismo burocrático total.

Unidade 2 71
Universidade do Sul de Santa Catarina

Cornelius Castoriadis (1922–1997) Filósofo, crítico social e


psicanalista grego naturalizado francês, nascido em Atenas,
considerado um dos intelectuais mais capazes e criativos da
segunda metade do século XX. Filiou-se (1942) ao partido
trotskista, conjunto dos métodos políticos, econômicos e sociais
defendidos por Lev Davidovitch Bronstein (1879-1940), dito
Trotski, dirigido por Spiro Stinas. Depois da guerra, mudou-se
para Paris (1945), integrando-se ao PCI de Claude Lefort. Depois
de fundar o grupo esquerdista Socialismo ou Barbárie (1948),
rompeu com o PCI francês e fundou (1949) e dirigiu a revista do
grupo (1949-1965), que se transformou num espaço de reflexão
sobre o autoritarismo, para a esquerda. Destacou-se pelo estudo
das formas autoritárias do Estado e por uma análise crítica do
regime burocrático vigente durante a maior parte do século na
ex-União Soviética. Trabalhou como economista para a OECD
(1960-1970) e tornou-se psicanalista prático (1974) e diretor de
estudos da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (1979). Sua
obra maior foi L’institution imaginaire de la société (1975-1989),
com sucessivas edições revisadas e ampliadas, mas também
destacaram-se Les carrefours du labyrinthe (1978-1997), obra em
5 volumes sucessivos, Capitalisme moderne et révolution (1979),
De l’écologie à l’autonomie (1981), entre outros, além de muitos
artigos publicados. Em vida, uma de suas ideias básicas foi a da
autogestão. Morreu de problemas cardíacos, na França.
Fonte: Net Saber (2009).

A sociedade russa, como as sociedades dos países da Europa


Oriental, da China etc., é uma sociedade dividida assimétrica
e antagonicamente, – na terminologia tradicional, uma
“sociedade de classes”. Está subordinada à dominação de um
grupo social particular, a burocracia, cujo núcleo ativo é a
burocracia política do PCUS. Essa dominação se concretiza com
exploração econômica, opressão política, escravização mental
da população pela burocracia em proveito próprio. A burocracia
não exerce, por conseguinte – não mais que nenhuma outra
camada dominante em uma sociedade qualquer – um domínio
absoluto sobre a sociedade. Ela deve enfrentar o conflito que
a opõe à população, cujas manifestações o regime totalitário
abafa, sem poder suprimi-las. Ela está sujeita às antinomias e às
irracionalidades consubstanciais ao regime burocrático moderno.
Enfim, a burocracia é ela própria dominada por seu sistema, pela

72
Filosofia Política II

instituição da sociedade da qual é correlativa e pelas significações


sociais imaginárias que esta instituição representa. A sociedade
russa é também uma sociedade alienada ou heterônoma, “todas as
classes confundidas”. (CASTORIADIS, 1985, p. 41-42).

Há nisto certo parentesco com o que diz Hannah Arendt, até


porque ambos trabalham com a crítica aos regimes totalitários.

Mas vamos examinar suas alternativas historicamente


por um momento: começou, afinal, com o capitalismo,
um sistema econômico que ninguém tinha planejado e
ninguém tinha previsto. Este sistema, como em geral
se sabe, deveu seu começo a um monstruoso pro­cesso
de expropriação como nunca tinha acontecido antes na
história com esta forma – isto é, sem conquista militar.
Expropriação, e acumulação inicial de capital – que foi
a lei segundo a qual surgiu o capitalismo e segundo a
qual ele avançou passo a passo. Não sei o que as pessoas
entendem por socialismo. Mas se você observar o que
realmente aconteceu na Rússia, então po­derá ver que lá
os processos de expropriação foram levados muito mais
longe; e pode observar que algo muito parecido está
ocorrendo nos modernos países capitalistas, onde é como
se o antigo processo de expropriação estivesse mais uma
vez à solta.Taxação ex­cessiva, desvalorização de facto da
moeda, inflação asso­ciada ao recesso econômico – o que
são estas coisas senão formas suaves de expropriação?
(ARENDT, 2008, p. 182).

Sobre os problemas derivados das disputas pós-revolução russa,


esta passagem de Chauí é esclarecedora:

Assenhoreando-se do Estado, o Partido Bolchevique


criou um poderoso aparato militar e burocrático, que,
evidentemente, entrou em conflito com os conselhos
populares de operários, camponeses e soldados, os
sovietes, pois estes se haviam organizado para realizar o
auto-governo de uma sociedade sem Estado. Os sovietes
foram sendo dizimados e substituídos por órgãos do
Partido Bolchevique, deles restando apenas o nome,
que seria colado ao de república socialista: República
Socialista Soviética.
Em 1923, o Partido Bolchevique está profundamente
dividido entre a posição de Trotski – que critica a
burocratização e propõe a tese da revolução permanente –

Unidade 2 73
Universidade do Sul de Santa Catarina

e a de Stalin, que conseguira galgar o posto de secretário-


geral do partido, acumulando enormes poderes em suas
mãos. Doente, Lênin escreve um testamento político no
qual sugere o afastamento de Stalin, alertando para o
perigo de seu autoritarismo. Não foi, porém, atendido.
Morre em janeiro de 1924.
Valendo-se do cargo e colocando a direção partidária
contra Trotski, Stalin assume o poder do Estado. Sob sua
orientação (embora ficasse nos bastidores), as principais
lideranças da revolução foram expulsas do partido;
Trotski foi banido e, em 1940, assassinado por um agente
stalinista, no México. (CHAUÍ, 1996, p. 426).

Assim, com a tese do “socialismo num só país” – contrapondo-se


à de “revolução permanente”, que internacionalizava o proletário
agente da revolução –, Stalin força a implantação da coletivização
na economia, sob a direção do Estado e do partido, tomando
o controle de toda a sociedade, como deixa claro Chauí, tanto
no âmbito militar, como policial e ideológico, instituindo o
“culto à personalidade” – não é sem sentido que alguns críticos
veem nesta prática um quê de resquício mítico-religioso. “Em
1936, começam os grandes expurgos políticos, conhecidos
como ‘processos de Moscou’”. (CHAUÍ, 1996, p. 426). Por
baixo dos panos, forja acusações que levam seus opositores a
serem condenados à morte, à prisão perpétua em campos de
concentração. Eis como se consolida o totalitarismo, constituindo
uma polícia secreta, um aparato de espionagem e delação.

Além da coletivização econômica, planejou a economia


para investimentos na indústria pesada, sacrificando
a produção de bens de consumo e os serviços públicos
sociais. Prevendo a Segunda Guerra Mundial, orientou a
economia para a indústria bélica, química pesada e energia
elétrica, produzindo, à custa de enormes sacrifícios e
privações da população, o maior crescimento econômico
da história da Rússia, que se tornou potência econômica e
militar mundial. (CHAUÍ, 1996, p. 426-427).

­ ais à frente, Chauí (1996) apresenta as contraposições das teses


M
stalinistas em relação às teses de Marx e Engels:

74
Filosofia Política II

„„ à tese marxista da revolução proletária mundial, o


stalinismo contrapôs a tese do socialismo num só país,
transformando-a em diretriz obrigatória para os partidos
comunistas do mundo inteiro. Isso significou que tais
partidos deveriam abandonar práticas revolucionárias em
seus países, para não prejudicar as relações internacionais
da União Soviética. Eram estimuladas, porém, as guerras
de libertação nacional contra os países colonialistas,
sempre que isso fosse do interesse econômico e
geopolítico da Rússia;

„„ à tese marxista da ditadura do proletariado para a


derrubada do Estado, o stalinismo contrapôs a ditadura
do partido único e do Estado forte;

„„ à tese marxista da abolição do Estado na sociedade


comunista sem classes sociais, contrapôs o
agigantamento do Estado, a absorção da sociedade
pelo aparelho estatal e pelos órgãos do partido, cuja
burocracia constituiu-se numa nova classe dominante,
com interesses e privilégios próprios;

„„ à tese marxista da luta proletária contra a burguesia e a


pequena burguesia, bem como à afirmação de que, em
muitos processos revolucionários, parte da burguesia
e da pequena burguesia se aliam ao proletariado, mas
o abandonam a partir de certo ponto, devendo ele
prosseguir sozinho na ação revolucionária, o stalinismo
contrapôs a tese oportunista da “estratégia” e da
“tática”, segundo a qual, em certos casos, o proletariado
faria alianças e nelas permaneceria e, em outros, não
faria aliança alguma, se isso não fosse do interesse da
vanguarda partidária;

„„ à tese marxista do internacionalismo proletário


(“Proletários de todos os países, uni-vos”, dizia o
Manifesto comunista), contrapôs o nacionalismo e o
imperialismo russos, primeiro invadindo e dominando
a Europa Oriental, e depois os países asiáticos não
dominados pela China;

Unidade 2 75
Universidade do Sul de Santa Catarina

„„ à tese marxista do partido político como instrumento de


organização da classe trabalhadora e expressão prática
de suas ideias e lutas, contrapôs a burocracia partidária
como vanguarda política, que não só “representa” os
interesses proletários, mas os encarna e os dirige, pois é
detentora do poder e do saber;

„„ à tese marxista da relação indissolúvel entre as ideias e


as condições materiais, isto é, entre teoria e prática, que
permitia o desenvolvimento da consciência crítica da classe
trabalhadora, contrapôs a propaganda estatal, a ideologia
do chefe como “pai dos povos”, o controle da educação e
dos meios de comunicação pelo partido e pelo Estado; e

„„ à tese de Marx de que a teoria e a prática estão numa


relação dialética, que o conhecimento é histórico e
um processo interminável de análise e compreensão
das condições concretas postas pela realidade social,
o stalinismo contrapôs uma invenção, o Diamat
(materialismo dialético), isto é, o marxismo como
doutrina a-histórica, fixada em dogmas expostos sob
a forma de catecismos de vulgarização da ideologia
stalinista. Foi tão longe nisso que considerou função do
Estado definir o pensamento correto.

Para tanto, os intelectuais do partido foram encarregados de


determinar as linhas “corretas” para a Filosofia, as ciências e as
artes. Instituiu-se a psicologia oficial, a medicina e a genética
oficiais, a literatura, a pintura, a música e o cinema oficiais, a
filosofia e a ciência oficiais, encarregando-se a polícia secreta
de queimar obras, prender, torturar, assassinar ou enviar para
campos de concentração os “dissidentes” ou “desviantes”.

Os herdeiros de Stalin foram mais longe: consideravam que,


como o partido e o Estado dizem a verdade absoluta, os “desvios”
intelectuais, artísticos e políticos eram sintomas de distúrbios
psíquicos e de loucura, enviando os “dissidentes” para hospitais
psiquiátricos:

„„ à tese marxista de que a classe trabalhadora é sujeito de sua


própria história quando toma consciência de sua situação e
luta contra ela, aprendendo com a memória dos combates
e a tradição das derrotas, o stalinismo contrapôs a ideia

76
Filosofia Política II

de história oficial da classe proletária, identificada com a


história do partido comunista e com a interpretação dada
por este último aos acontecimentos históricos, roubando
assim dos trabalhadores o direito à memória;

„„ à tese marxista de que os inimigos da classe trabalhadora


não são indivíduos dessa ou daquela classe, mas uma
outra classe social enquanto classe, contrapôs a ideia
de “inimigos do povo saídos do seio do próprio povo”
como inimigos de sua própria classe, porque são “agentes
estrangeiros infiltrados no seio do povo uno, indiviso,
bom e homogêneo”; e

„„ à tese de Marx da nova sociedade como concretização da


liberdade, da igualdade, da abundância, da justiça e da
felicidade, o stalinismo contrapôs o “operário-modelo” e
o “militante exemplar ”, acostumados à obediência cega
aos comandos do Estado e do partido e à hierarquia social
imposta por eles. Viver pelo e para o Estado e o partido
tornaram-se sinônimos de felicidade, liberdade e justiça.

A transformação das ideias e práticas stalinistas em instituições


sociais fez com que o stalinismo não fosse um acontecimento de
superfície, que pudesse ser apagado com a morte de Stalin. Pelo
contrário, foi instituída uma nova formação social, que modelou
corpos, corações e mentes, e que só desapareceu, parcialmente,
no fim dos anos 80 e inícios dos 90, porque a crise econômica,
provocada pelo delírio armamentista, fez emergirem contradições
sufocadas durante 70 anos.

Voltando a Castoriadis (1985), resumidamente, ele avança em


sua análise e declara que mesmo com suas diferenças e disputas
de domínio político, ambos os lados constroem uma imagem
acerca da racionalização do poder. Tal temática, por sinal, será
de grande importância na Filosofia Política Contemporânea,
particularmente a partir da segunda metade do século XX. Isto
leva o autor a indicar que a ideologia passa a ser de fundamental
importância no mundo contemporâneo:

Que a sociedade russa seja uma sociedade dividida,


subme­tida à dominação de um grupo social particular,
onde reinam a exploração e a opressão, é uma evidência
imediata diante dos fatos mais elementares e comuns. A

Unidade 2 77
Universidade do Sul de Santa Catarina

representação do regime russo como “socialista” ou como


“Estado operário”, com a cumplicidade quase universal da
“esquerda” e da “direita”; ou simplesmente a discussão de
sua natureza em relação ao socialismo, para saber sobre
que pontos e em que grau dele se afastara, representam
uma das maiores campanhas de mistificação conhecidas
na história. O permanente sucesso desta campanha
coloca evidentemente uma questão de primeira grandeza
sobre a função e a importância da ideologia no mundo
contemporâneo. (CASTORIADIS, 1985, p. 41-42).

Com isto, Castoriadis ainda carrega uma preocupação de teor


marxista: a análise da construção dos mecanismos ideológicos
como forma de libertação ou de conscientização das classes
oprimidas.

Que faz a ideologia? Oferece a uma sociedade dividida


em classes sociais antagônicas, e que vivem na forma da
luta de classes, uma imagem que permita a unificação e a
identificação social – uma língua, uma religião, uma raça,
uma nação, uma pátria, um Estado, uma humanidade,
mesmos costumes. Assim, a função primordial da
ideologia é ocultar a origem da sociedade (relações de
produção como relações entre meios de produção e forças
produtivas sob a divisão social do trabalho), dissimular
a presença da luta de classes (domínio e exploração
dos não-proprietários pelos proprietários privados dos
meios de produção), negar as desigualdades sociais (são
imaginadas como se fossem conseqüência de talentos
diferentes, da preguiça ou da disciplina laboriosa) e
oferecer a imagem ilusória da comunidade (o Estado)
originada do contrato social entre homens livres e iguais.
A ideologia é a lógica da dominação social e política.
Porque nascemos e somos criados com essas idéias e nesse
imaginário social, não percebemos a verdadeira natureza
de classe do Estado. A resposta à segunda pergunta
de Marx, qual seja, por que a sociedade não percebe o
vínculo interno entre poder econômico e poder político,
pode ser respondida agora: por causa da ideologia.
(CHAUÍ, 1996, p. 418).

Outra tendência mais contemporânea que tem certas influências


marxistas e segue nesta linha da análise ideológica é a “Escola
de Frankfurt”. Alguns de seus autores veem os aparatos de
comunicação de massa como grandes aparelhos ideológicos
usados para manter a ordem e mistificar ou esconder os

78
Filosofia Política II

problemas político-econômico-sociais do mundo contemporâneo.


Falam em razão instrumental e razão crítica. A primeira seria
utilizada para dominar e justificar a dominação. Atente para o
que escreve Chauí:

A razão instrumental é a razão técnico-científica,


que faz das ciências e das técnicas não um meio
de liberação dos seres humanos, mas um meio de
intimidação, medo, terror e desespero. Ao contrário, a
razão crítica é aquela que analisa e interpreta os limites
e os perigos do pensamento instrumental e afirma
que as mudanças sociais, políticas e culturais só se
realizarão verdadeiramente se tiverem como finalidade
a emancipação do gênero humano e não as idéias de
controle e domínio técnico-científico sobre a Natureza, a
sociedade e a cultura. (CHAUÍ, 1996, p. 60).
Os filósofos da Teoria Crítica consideram que
existem [...] duas modalidades da razão: a razão
instrumental ou razão técnico-científica, que está a
serviço da exploração e da dominação, da opressão
e da violência, e a razão crítica ou filosófica, que
reflete sobre as contradições e os conflitos sociais e
políticos e se apresenta como uma força libertadora.
A Escola de Frankfurt mantém a ideia hegeliana de
que há uma continuidade temporal ou histórica entre
a forma anterior da racionalidade e a forma seguinte.
Cada nova forma da racionalidade é a vitória sobre os
conflitos das formas anteriores, sem que haja ruptura
histórica entre elas. Mudanças sociais, políticas e
culturais determinam mudanças no pensamento, e tais
mudanças são a solução realizada pelo tempo presente
para os conflitos e as contradições do passado.
A razão não determina nem condiciona a sociedade
(como julgara Hegel), mas é determinada e condicionada
pela sociedade e suas mudanças. Assim, os inatistas
se enganam ao supor a imutabilidade dos conteúdos
da razão e os empiristas se enganam ao supor que as
mudanças são acarretadas por nossas experiências,
quando, na verdade, são produzidas por transformações
globais de uma sociedade. (CHAUÍ, 1996, p. 103-104).

Mas isto é outro tipo de debate que ultrapassa a questão do


Estado e está mais ligado à questão das estratégias de poder.
Tema que será trabalhado a partir de Hannah Arendt e Michel
Foucault em outra unidade. Aguarde!

Unidade 2 79
Universidade do Sul de Santa Catarina

A noção moderna de Estado, formulada a partir de Maquiavel,


embora ainda se coloque no cenário teórico-político
contemporâneo, parece tornar-se fraca em face da criação de
órgãos internacionais que estabelecem as políticas públicas e
econômicas de diversos países. Temas como a globalização, a
criação de blocos econômicos, o aquecimento global trazem
questões que colocam em xeque as noções de autonomia e mesmo
de territorialidade. Fundamentais na noção moderna de Estado.

Cabe lembrar ainda que, no século XIX e início do


século XX, consolidaram-se movimentos operariados
de fundamental importância para os debates
políticos da época. A Associação Internacional dos
Trabalhadores ou Primeira Internacional foi palco de
calorosos debates entre anarquistas e marxistas sobre
a condição do proletariado e a sua relação com o
Estado e as revoluções possíveis. Você pode recuperar
parte deste e de outros debates entre anarquistas e
comunistas na coletânea de textos organizados por
George Woodcock, Os grandes escritos anarquistas,
publicado pela L&PM (Porto Alegre, 1986).

Do ponto de vista dos fatos, estamos na era do desenvolvimento


do capitalismo industrial, com a ampliação da capacidade
tecnológica de domínio da natureza pelo trabalho e pela técnica.
Essa ampliação aumenta também o campo de ação do capital,
que passa a absorver contingentes cada vez maiores de pessoas no
mercado da mão de obra e do consumo, rumando para o mercado
capitalista mundial.

A burguesia organiza-se por meio do Estado liberal, enquanto


os trabalhadores industriais ou proletários organizam-se em
associações profissionais e sindicatos para as lutas econômicas
(salários, jornada de trabalho), sociais (condições de vida)
e políticas (reivindicação de cidadania). Greves, revoltas e
revoluções eclodem em toda parte, as mais importantes vindo
a ocorrer na França em 1830, 1848 e 1871. No Brasil, em
1858, eclode a primeira greve dos trabalhadores e, em 1878,
a primeira greve dos trabalhadores do campo, em Amparo
(Estado de São Paulo).

80
Filosofia Política II

Simultaneamente, consolida-se (em alguns países) ou inicia-se


(em outros países) o Estado nacional unificado e centralizado,
definido pela unidade territorial e pela identidade de língua,
religião, raça e costumes. O capital precisa de suportes territoriais
e, por isso, leva à constituição das nações, forçando, pelas
guerras e pelo direito internacional, a delimitação e a garantia de
fronteiras e, pelo aparato jurídico, policial e escolar, a unidade
de língua, religião e costumes. Em suma, inventa-se a pátria ou
nação, sob a forma de Estado nacional. Como se observa, a nação
não é natural, nem existe desde sempre, mas foi inventada pelo
capitalismo, no século XIX.

Ainda hoje, em pleno século XXI, visualizamos os problemas


derivados da expropriação e da divisão do mundo a partir de
critérios econômicos. Em função disto, alguns pensadores
consideram que a concepção marxista não foi superada e ainda
tem muito a contribuir para a análise das relações políticas
contemporâneas. Mesmo os críticos de certos fundamentos
do marxismo, como Arendt e Foucault, não descartam de
todo as contribuições de Marx e Engels. Há mesmo quem
diga, e o critique por isto, que um dos teóricos liberais mais
importantes do século XX, John Rawls foi influenciado por
teses marxistas. À luz disto, é sempre bom reforçar que não se
trata, aqui, de defender este ou aquele teórico, mas de propiciar
a você um conhecimento inicial de algumas teorias políticas
contemporâneas, para que você mesmo(a) possa pesquisar mais
e desenvolver seu posicionamento crítico frente a estas teorias. E
assim vamos avançando nos estudos.

Em continuidade ao estudo sobre a noção de Estado, nesta


Unidade, você, inicialmente, viu a concepção marxista e depois
foram apontadas algumas questões que levam a repensar a
noção moderna de Estado e se ela tem, ainda, consistência
face aos diferentes aspectos do mundo contemporâneo. Outros
temas serão abordados nas unidades seguintes. Avante, caro(a)
estudante!

Unidade 2 81
Universidade do Sul de Santa Catarina

Síntese

Nesta unidade, você pôde conhecer e avaliar os argumentos da


concepção marxista acerca do papel do Estado. Vislumbrou a
crítica marxista à concepção liberal de Estado como aparato
ideológico e repressor: do ponto de vista marxista, o Estado é
negativo e, até então, todas as formas de Estado serviram a uma
dada classe dominante, estabelecendo direito e deveres entre os
membros da sociedade.

Você pôde entender, também, o sentido e a importância da


noção de revolução na concepção marxista. E, como, a partir
da Revolução Russa, implantou-se uma disputa interna – entre
trotskistas e stalinistas – quanto à revolução: mantê-la no espaço
dos territórios conquistados, a saber, nos limites da antiga
URSS, ou promover a sua internacionalização, levando-a a
todos os cantos do mundo. Viu que a corrente vencedora foi a
stalinista, geradora de um dos Estados totalitários da história
contemporânea.

O totalitarismo, como você constatou, pode ser tomado com um


dos fatores que impulsionaram a crise da noção moderna de Estado,
apontando para ideias como a de capitalismo de Estado e capitalismo
fragmentário. Como exemplificação desta discussão, você ficou
conhecendo um pouco de Castoriadis e, junto, a redefinição
frankfurtiana da noção de razão – instrumental e crítica – pode dar
conta do papel da ideologia de da cultura de massa.

Atividades de autoavaliação

1) Se as classes sociais populares, no início das revoluções modernas, não


tinham explicações filosófico-políticas e científicas para o mundo em
que viviam, indique quais eram as fontes que tomavam. (Adaptada do
livro Convite à filosofia)

82
Filosofia Política II

2) Do ponto de vista marxista, o que é ideologia?

3) Numere a segunda coluna de acordo com a primeira


01 - Engels ( ) Trabalha com a noção de Totalitarismo,
indicando, também, que no mundo
02 - Trotsky contemporâneo, temos dois tipos de
03 - Stalin capitalismo: o de Estado e o fragmentário.

04 - Castoriadis ( ) Assumiu a liderança na URSS, depois da morte


de Lênin.
05 - H. Arendt
( ) Defendia a tese da revolução permanente.
( ) De origem judaica, teorizou sobre a crise de
autoridade e sobre o totalitarismo. Uma de
suas obras mais conhecidas é A origem do
totalitarismo.
( ) Em conjunto com Marx, escreveu, entre outras
obras, O manifesto comunista.

Unidade 2 83
Universidade do Sul de Santa Catarina

Saiba mais

Se você tem interesse na história recente da ascensão e queda da


primeira experiência contemporânea de um Estado comunista,
recomeda-se a leitura do livro de Geoffrey Blainey: Uma breve
história do século XX (São Paulo: Fundamento Educacional,
2009), particularmente os Capítulos 6 e 7.

Para dar conta, de forma mais densa, da história da formação


e desenvolvimento da “Escola de Frankfurt” e suas ideias, leia
A escola de Frankfurt – História, desenvolvimento teórico,
significação política, de Rolf WIGGERSHAUS (2002).

Para saber nais mais sobre a perspectiva marxista leia o texto


a seguir:

Texto extraído de: CHAUÍ, Marilena. Filosofia. São Paulo: Ed.


Ática, 2000, p. 214-219.

Marx parte da crítica da economia política. A expressão


economia política é curiosa. Com efeito, a palavra
economia vem do grego, oikonomia, composta de dois
vocábulos, oikos e nomos.

Oikos é a casa ou família, entendida como unidade


de produção (agricultura, pastoreio, edificações,
artesanato, trocas de bens entre famílias ou trocas de
bens por moeda, etc.). Nomos significa regra, acordo
convencionado entre seres humanos e por eles respeitado
nas relações sociais. Oikonomia é, portanto, o conjunto de
normas de administração da propriedade patrimonial ou
privada, dirigida pelo chefe da família, o despótes.

Os gregos inventaram a política porque separaram


o espaço privado – a oikonomia – e o espaço público
das leis e do direito – a polis. Como, então, falar em
“economia política”? Os dois termos não se excluem
reciprocamente?

84
Filosofia Política II

A crítica da economia política consiste, justamente,


em mostrar que, apesar das afirmações greco-romanas
e liberais de separação entre a esfera privada da
propriedade e a esfera pública do poder, a política
jamais conseguiu realizar a diferença entre ambas. Nem
poderia. O poder político sempre foi a maneira legal e
jurídica pela qual a classe economicamente dominante
de uma sociedade manteve seu domínio. O aparato
legal e jurídico apenas dissimula o essencial: que o
poder político existe como poderio dos economicamente
poderosos para servir seus interesses e privilégios e
garantir-lhes a dominação social. Divididas entre
proprietários e não proprietários (trabalhadores
livres, escravos, servos), as sociedades jamais foram
comunidades de iguais e jamais permitiram que o poder
político fosse compartilhado com os não proprietários.

Por que a expressão economia política tornou-se possível


na modernidade e, doravante, visível?

Porque a ideia moderna liberal de sociedade civil tornou


explícita a significação da economia política, ainda que a
ideologia liberal exista para esconder tal fato.

De fato, a economia política surge como ciência no


final do século XVIII e início do XIX, na França
e na Inglaterra, para combater as limitações que o
antigo regime impunha ao capitalismo. As restrições
econômicas próprias da sociedade feudal e o controle da
atividade mercantil pelo estado monárquico eram vistos
como prejudiciais ao desenvolvimento da “riqueza das
nações”. Baseando-se nos mesmos princípios que criaram
o liberalismo político, a economia política é elaborada
como liberalismo econômico.

Diferentemente dos gregos, que definiram o homem


como animal político, e, diferentemente dos medievais,
que definiram o homem como ser sociável, a economia
política define o homem como indivíduo que busca a
satisfação de suas necessidades, consumindo o que a

Unidade 2 85
Universidade do Sul de Santa Catarina

natureza oferece-lhe ou trabalhando para obter riquezas


e bem-estar. Por ser mais vantajosa aos indivíduos a vida
em comum, pactuam para criar a sociedade e o Estado.

As ideias de Estado, de natureza e de direito natural


conduziram a duas noções essenciais à economia
política: a primeira é a noção de ordem natural racional,
que garante a todos os indivíduos a satisfação de suas
necessidades e seu bem-estar; a segunda é a noção de
que, seja por bondade natural, seja por egoísmo, os
homens agem em seu próprio benefício e interesse e,
assim fazendo, contribuem para o bem coletivo ou social.
A propriedade privada é natural e útil socialmente, além
de legítima moralmente, porque estimula o trabalho e
combate o vício da preguiça.

A economia política buscará as leis dos fenômenos


econômicos na natureza humana e os efeitos das causas
econômicas sobre a vida social. Visto que a ordem
natural é racional e que os seres humanos possuem
liberdade natural, a economia política deverá garantir
que a racionalidade natural e a liberdade humana
realizem-se por si mesmas, sem entraves e sem limites.

Para alguns economistas políticos, como Adam Smith,


a concorrência (ou lei econômica da oferta e da procura)
é responsável pela riqueza social e pela harmonia entre
interesse privado e interesse coletivo. Para outros, como
David Ricardo, as leis econômicas revelam antagonismos
entre os vários interesses dos grupos sociais. Assim,
por exemplo, a diferença entre o preço das mercadorias
e os salários indica uma oposição de interesses na
sociedade, de modo que a concorrência exprime esses
conflitos sociais. Em ambos os casos, porém, a economia
realiza-se como sociedade civil capaz de se autorregular,
sem que o Estado deva interferir na sua liberdade; donde
o liberalismo econômico fundando o liberalismo político.

Marx indaga: “O que é a Sociedade Civil?” E responde:


Não é a manifestação de uma ordem natural racional
nem o aglomerado conflitante de indivíduos, famílias,

86
Filosofia Política II

grupos e corporações, cujos interesses antagônicos


serão conciliados pelo contrato social, que instituiria a
ação reguladora e ordenadora do Estado, expressão do
interesse e da vontade gerais.

A sociedade civil é o sistema de relações sociais que


organiza a produção econômica (agricultura, indústria e
o comércio), realizando-se através de instituições sociais
encarregadas de reproduzi-lo (família, igrejas, escolas,
polícia, partidos políticos, meios de comunicação,
etc.) É o espaço onde as relações sociais e suas formas
econômicas e institucionais são pensadas, interpretadas
e representadas por um conjunto de ideias morais,
religiosas, jurídicas, pedagógicas, artísticas, científico-
filosóficas e políticas.

A sociedade civil é o processo de constituição e reposição


das condições materiais da produção econômica pelas
quais são engendradas as classes sociais: os proprietários
privados dos meios de produção e os trabalhadores ou
não proprietários, que vendem sua força de trabalho
como mercadoria submetida à lei da oferta e da procura
no mercado de mão-de-obra. Essas classes sociais são
antagônicas e seus conflitos revelam uma contradição
profunda entre os interesses irreconciliáveis de cada uma
delas, isto é, a sociedade civil realiza-se como luta de
classes.

Sem dúvida, os liberais estão certos quando afirmam que


a sociedade civil, por ser esfera econômica, é a esfera dos
interesses privados, pois é exatamente isso o que ela é.

O que é, porém, o Estado? Longe de diferenciar-se


da sociedade civil e de separar-se dela, longe de ser a
expressão da vontade geral e do interesse geral, o Estado
é a expressão legal – jurídica e policial – dos interesses
de uma classe social particular, a classe dos proprietários
privados dos meios de produção ou classe dominante. E
o Estado não é uma imposição divina aos homens, nem
é o resultado de um pacto ou contrato social, mas é a

Unidade 2 87
Universidade do Sul de Santa Catarina

maneira pela qual a classe dominante de uma época e de


uma sociedade determinadas garante seus interesses e
sua dominação sobre o todo social.

O Estado é a expressão política da luta econômico-social


das classes, amortecida pelo aparato da ordem (jurídica)
e da força pública (policial e militar). Não é, mas aparece
como um poder público distante e separado da sociedade
civil. Não por acaso, o liberalismo define o Estado como
garantidor do direito de propriedade privada e, não por
acaso, reduz a cidadania aos direitos dos proprietários
privados (a ampliação da cidadania foi fruto de lutas
populares contra as ideias e práticas liberais).

A economia, portanto, jamais deixou de ser política.


Simplesmente, no capitalismo, o vínculo interno e
necessário entre economia e política tornou-se evidente.

No entanto, se perguntarmos às pessoas que vivem no


Estado liberal capitalista se, para elas, é evidente tal
vínculo, certamente dirão que não. Por que o vínculo
interno entre o poder econômico e o poder político
permanece invisível aos olhos da maioria?

Marx faz duas indagações.

1. Como surgiu o Estado? Isto é, como os homens


passaram da submissão ao poder pessoal visível
de um senhor à obediência ao poder impessoal
invisível de um Estado?

2. Por que o vínculo entre o poder econômico e o


poder político não é percebido pela sociedade
e, sobretudo, por que não é percebido pelos que
não têm poder econômico nem político?

Gênese da sociedade e do Estado – Dissemos que Marx


indaga como os homens passaram da submissão ao poder
pessoal de um senhor à obediência do poder impessoal
do Estado. Para responder a essa questão, é preciso
desvendar a gênese do Estado.

88
Filosofia Política II

Os seres humanos, escrevem Marx e Engels,


distinguem-se dos animais não porque sejam dotados
de consciência – animais racionais – nem porque sejam
naturalmente sociáveis e políticos – animais políticos –,
mas porque são capazes de produzir as condições de sua
existência material e intelectual. Os seres humanos são
produtores: são o que produzem e são como produzem.

A produção das condições materiais e intelectuais


da existência não são escolhidas livremente pelos
seres humanos, mas estão dadas objetivamente,
independentemente de nossa vontade. Eis por que
Marx diz que os homens fazem sua própria história,
mas não a fazem em condições escolhidas por eles. São
historicamente determinados pelas condições em que
produzem suas vidas.

A produção material intelectual da existência humana


depende de condições naturais (as do meio ambiente e as
biológicas da espécie humana) e da procriação. Esta não
é apenas um dado biológico (a diferença sexual necessária
para a reprodução), mas já é social, pois decorre da
maneira como se dá o intercâmbio e a cooperação entre
os humanos e do modo como é simbolizada psicológica
e culturalmente a diferença dos sexos. Por seu turno,
a maneira como os humanos interpretam e realizam a
diferença sexual determina o modo como farão a divisão
social do trabalho, distinguindo trabalhos masculinos,
femininos, infantis e de velhice.

A produção e a reprodução das condições de existência


realizam-se, portanto, por meio do trabalho (relação com
a Natureza), da divisão social do trabalho (intercâmbio
e cooperação), da procriação (sexualidade e instituição
da família) e do modo de apropriação da Natureza (a
propriedade).

Esse conjunto de condições forma, em cada época, a


sociedade e os sistemas das formas produtivas que a
regulam, segundo a divisão social do trabalho. Essa
divisão, que começa na família, com a diferença sexual

Unidade 2 89
Universidade do Sul de Santa Catarina

das tarefas, prossegue na distinção entre agricultura


e pastoreio, entre ambas e o comércio, conduzindo à
separação entre o campo e a cidade. Em cada uma das
distinções operam novas divisões sociais do trabalho.

A divisão social do trabalho não é uma simples


divisão de tarefas, mas a manifestação da existência da
propriedade, ou seja, a separação entre as condições
e os instrumentos do trabalho e o próprio trabalho,
incidindo, a seguir, sobre a forma de distribuição
dos produtos do trabalho. A propriedade introduz
a existência dos meios de produção (condições e
instrumentos de trabalho) como algo diferente das forças
produtivas (trabalho).

Analisando as diferentes formas de propriedade, as


diferentes formas de relação entre meios de produção
e forças produtivas, as diferentes formas de divisão
social do trabalho decorrentes das formas de propriedade
e das relações entre os meios de produção e as forças
produtivas, é possível perceber a sequência do processo
histórico e as diferentes modalidades de sociedade.

A propriedade começa como propriedade tribal e a


sociedade tem a forma de uma comunidade baseada na
família (a comunidade é vista como a família ampliada
à qual pertencem todos os membros do grupo). Nela
prevalece a hierarquia definida por tarefas, funções,
poderes e o consumo.

Essa forma de propriedade transforma-se em uma outra,


a propriedade estatal, ou seja, a propriedade do Estado,
cujo dirigente determina o modo de relações dos sujeitos
com ela: em certos casos (como na Índia, na China, na
Pérsia), o Estado é o proprietário único e permite as
atividades econômicas mediante pagamento de tributos,
impostos e taxas; em outros casos (Grécia, Roma), o
Estado cede, mediante certas regras, a propriedade às
grandes famílias, que se tornam proprietárias privadas.

90
Filosofia Política II

A sociedade divide-se, agora, entre senhores e escravos.


Nos grandes impérios orientais, os senhores ocupam-se
da guerra e da religião; na Grécia e em Roma, tornam-se
cidadãos e ocupam-se da política, além de possuírem
privilégios militares e religiosos, vivem nas cidades e em
luta permanente com os que permaneceram no campo,
bem como com os homens livres que trabalham nas
atividades urbanas (artesanato e comércio) e com os
escravos (do campo e da cidade).

A terceira forma de propriedade é a feudal,


apresentando-se como propriedade privada da terra
pelos senhores e propriedade dos instrumentos de
trabalho pelos artesãos livres, membros das corporações
dos burgos. A terra é trabalhada por servos da gleba
e a sociedade estrutura-se pela divisão entre nobreza
fundiária e servos (no campo) e artesãos livres e
aprendizes (na cidade). As lutas entre comerciantes e
nobres, o desenvolvimento dos burgos, do artesanato
e da atividade comercial conduzem à mudança que
conhecemos: a propriedade privada capitalista.

Essa nova forma de propriedade possui características


inéditas e é uma verdadeira revolução econômica,
porque realiza a separação integral entre proprietários
dos meios de produção e forças produtivas, isto é, entre
as condições e os instrumentos de trabalho, possuem
o controle da distribuição e do consumo dos produtos.
No outro pólo social, encontram-se os trabalhadores
como massa de assalariados inteiramente expropriada
dos meios de produção, possuindo apenas a força do
trabalho, colocada à disposição dos proprietários dos
meios de produção, no mercado de compra e venda da
mão-de-obra.

Essas diferentes formas da propriedade dos meios de


produção e das relações com as forças produtivas ou de
determinações sociais decorrentes da divisão social do
trabalho constituem os modos de produção.

Unidade 2 91
Universidade do Sul de Santa Catarina

Marx e Engels observaram que, a cada modo


de produção, a consciência dos seres humanos
transforma-se. Descobriram que essas transformações
constituem a maneira como, em cada época, a
consciência interpreta, compreende e representa para
si mesma o que se passa nas condições materiais de
produção e reprodução da existência. Por esse motivo,
afirmaram que, ao contrário do que se pensa, não são
as ideias humanas que movem a História, mas são as
condições históricas que produzem as ideias.

Na obra Contribuição à crítica da economia política,


Marx escreve:

O conjunto das relações de produção que corresponde ao


grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais
constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta
sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política
e à qual correspondem determinadas formas de consciência
social. O modo de reprodução de vida material determina
o desenvolvimento da vida social, política e intelectual
em geral. Não é a consciência dos homens que determina o
seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina sua
consciência.

É por afirmar que a sociedade constitui-se a partir de


condições materiais de produção e da divisão social do
trabalho; que as mudanças históricas são determinadas
pelas modificações naquelas condições materiais e
naquela divisão do trabalho, e que a consciência humana
é determinada a pensar as ideias que pensa por causa
das condições materiais instituídas pela sociedade,
que o pensamento de Marx e Engels é chamado de
materialismo histórico. Materialismo porque somos
o que as condições materiais (as relações sociais de
produção) nos determinam a ser e a pensar. Histórico
porque a sociedade e a política não surgem de decretos
divinos nem nascem da ordem natural, mas dependem
da ação concreta dos seres humanos no tempo.

92
Filosofia Política II

A história não é um progresso linear e contínuo, uma


sequência de causas e efeitos, mas um processo de
transformações sociais determinadas pelas contradições
entre os meios de produção (a forma da propriedade) e
as forças produtivas (o trabalho, seus instrumentos, as
técnicas). A luta de classe exprime tais contradições e é o
motor da História. Por afirmar que o processo histórico
é movido por contradições sociais, o materialismo
histórico é dialético.

As relações sociais de produção não são responsáveis


apenas pela gênese da sociedade, mas também pela do
Estado, que Marx designa como superestrutura jurídica
e política, correspondente à estrutura econômica da
sociedade.

Qual a gênese do Estado? Conflitos entre proprietários


privados dos meios de produção e contradições entre eles
e os não proprietários (escravos, servos, trabalhadores
livres). Os conflitos entre proprietários e as contradições
entre proprietários e não proprietários aparecem para a
consciência social sob a forma de conflitos e contradições
entre interesse particulares e o interesse geral. Aparecem
dessa maneira, mas não são realmente como aparecem.
Em outras palavras, onde há propriedade privada, há
interesse privado e não pode haver interesse coletivo ou
geral.

Os proprietários dos meios de produção podem ter


interesses comuns, pois necessitam do intercâmbio e da
cooperação para manter e fazer crescer a propriedade
de cada um. Assim, embora estejam em concorrência e
competição, precisam estabelecer certas regras pelas quais
não se destruam reciprocamente nem às suas propriedades.

Sabem também que não poderão resolver as contradições


com os não proprietários e que estes podem, por revoltas
e revoluções populares, destruir a propriedade privada.
É preciso, portanto, que os interesses comuns entre
os proprietários dos meios de produção e a força para
dominar os não proprietários sejam estabelecidos de

Unidade 2 93
Universidade do Sul de Santa Catarina

maneira tal que pareçam corretos, legítimos e válidos para


todos. Para isso, criam o Estado como poder separado da
sociedade, portador do direito e das leis, dotado de força
para usar a violência na repressão de tudo quanto pareça
perigoso à estrutura econômica existente.

No caso do poder despótico, a legitimação é feita pela


divinização do senhor: o detentor do poder (um indivíduo,
uma família ou um grupo de famílias) apresenta-se
como filho de um humano e de uma divindade, isto
é, o nascimento justifica o poderio. No caso do poder
teocrático, a legitimação é feita pela sacralização do
governante: o detentor do poder recebe-o diretamente de
Deus. No caso das repúblicas (democracia grega, o senado
e o povo romano), a legitimação é feita pela instituição do
direito e das leis que definem quem pode ser cidadão e
participar do governo.

Nos três casos, a divisão social parece como hierarquia


divina e/ou natural, que justifica a exclusão dos
não proprietários do poder e, sobretudo, estabelece
princípios (divinos ou naturais) para a submissão e a
obediência, transformadas em obrigações.

No caso do Estado moderno, as ideias de estado de


natureza, direito natural, contrato social e direito civil
fundam o poder político na vontade dos proprietários dos
meios de produção, que se apresentam como indivíduos
livres e iguais que transferem seus direitos naturais ao poder
político, instituindo a autoridade do Estado e das leis.

Eis por que o Estado precisa aparecer como expressão do


interesse geral e não como senhorio particular de alguns
poderosos. Os não proprietários podem recusar, como
fizeram inúmeras vezes na História, o poder pessoal
visível de um senhor, mas não o fazem quando se trata
de um poder distante, separado, invisível e impessoal
como o do Estado. Julgando que este se encontra a
serviço do bem comum, da justiça, da ordem, da lei, da
paz e da segurança, aceitam a dominação, pois não a
percebem como tal.

94
3
UNIDADE 3

Tocqueville e a questão da
democracia
Marcos Rohling
Carlos Euclides Marques

Objetivos de aprendizagem
„„ Refletir e analisar sobre a noção de democracia em
Tocqueville.
„„ Debater, crítica e coerentemente, aspectos ligados ao
regime democrático.
„„ Refletir sobre a participação política e o exercício da
liberdade.

Seções de estudo
Seção 1 Tocqueville: contextualização histórica

Seção 2 A democracia na América: ideias gerais

Seção 3 A igualdade, a liberdade e a virtude cívica

Seção 4 Outras questões sobre a democracia


Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Nesta unidade, será apresentado, inicialmente, o modelo liberal
de Tocqueville (1805-1859) como projeto de cidadania, guiado
pelo conceito de liberdade e igualdade. Nele, serão evidenciados
elementos que permitam caracterizar, numa democracia, a
virtude cívica. A obra referência será “A Democracia na América”
(TOCQUEVILLE, 1977). Partindo desta perspectiva do autor,
você acompanhará uma análise sobre a democracia das colônias
anglo-americanas. Posteriormente, você estudará outras reflexões
acerca dos dilemas da democracia a partir de Marilene Chauí.

Vamos lá!

Seção 1 - Tocqueville: contextualização histórica


A discussão da cidadania tem-se revelado como um dos temas
recorrentes na tradição do pensamento político, sobretudo o
Ocidental, de tal modo que é frequentemente reavaliado nos
seus pressupostos em contextos históricos diferentes, adquirindo
riqueza de significações e amplo leque de possibilidades
interpretativas. Neste entender, pois, o termo cidadania
é inequivocamente polissêmico: pode-se representá-lo e
interpretá-lo através de várias formas. Ao longo da história
político-filosófica, apresentam-se, entre as muitas possíveis, duas
tradições interpretativas significativas desse termo, quais sejam, o
republicanismo e o liberalismo.

Antes de dar continuidade ao seu estudo, veja no quadro a seguir


alguns conceitos importantes a serem discutidos adiante.

96
Filosofia Política II

O republicanismo, em sentido clássico, por suas bases, remonta a


Aristóteles e à res publica romana. Sendo redefinido na modernidade,
sobretudo pela obra de Maquiavel, atribui ao indivíduo, membro de
uma comunidade política, virtudes cívicas, entendidas como qualidades
que devem ser cultivadas pelos cidadãos para manterem estável uma
comunidade política, bem como para a afirmação de direitos e deveres.
(RAMOS, p. 06-10).

O republicanismo, em função da emergência do liberalismo


nos séculos XVI e XVII e da predominância deste em séculos
posteriores,

[...] manteve-se fiel a certos valores da tradição como a liberdade


política, o auto-governo da comunidade, o civismo e a soberania
popular e a participação ativa na comunidade política. Nesse
contexto, o republicanismo compreende a cidadania como
atribuição de virtudes cívicas [...] O liberalismo, em contraste,
apresentou-se como o modo predominante de pensar e
constituir a dimensão política do homem na modernidade. A
cidadania liberal é descrita como intitulação de direitos e o seu
valor normativo é apreciado como mero meio para a realização
dos mesmos, sobretudo as liberdades fundamentais. Por este
entendimento, o cidadão é designado pelo seu status de
pertencimento ao Estado como indivíduo portador de direitos,
anteriores à esfera política. Concebida de forma instrumental, a
cidadania é um meio pelo qual o indivíduo faz valer esses bens
jurídicos e a sua condição de titular dos mesmos, sobretudo
frente ao Estado. (RAMOS, p. 02-03).

O termo liberalismo, enquanto gênese, remonta ao período imediatamente


após a Revolução Francesa (1789), e foi cunhado para designar o conjunto
de doutrinas e ideias políticas e econômicas que defendiam os conceitos
de liberdade e autonomia individual. Em si, o liberalismo tem suas bases
remetidas ao pensamento de Locke e à Revolução Gloriosa (1688-1689). De
modo geral, na modernidade, para mediar e articular as relações entre o
político e o econômico, religioso, social, para nomear alguns, foi amplamente
aceito, de tal forma que se tornou, nesse contexto, como salientam muitos
autores, “depositário de determinados valores”, entre os quais a propriedade,
a liberdade e o governo constitucional limitado. Assim, a cidadania, no
entendimento liberal, é instrumento para a consecução e validação de
direitos para os quais, em linhas gerais, o Estado compromete-se com a
proteção e garantia do exercício.
Sob a ótica tocquevilleana, pode-se pensar a virtude cívica, entre outros,
no contexto da liberdade política conectada à participação política, na
medida em que se tem o associacionismo político e civil bem como o
interesse bem-intencionado. Assim, o liberalismo tocquevilleano, a partir
das análises de A Democracia na América (1977), para evitar os riscos da

Unidade 3 97
Universidade do Sul de Santa Catarina

tirania da maioria e alicerçado na ideia de liberdade e de iniciativa


individual, promoveria uma “pedagogia cívica” mediante a arte das
associações e da teoria do interesse bem compreendido. O intuito
era o de formar o cidadão no bom exercício de sua igualdade por
meio de sua liberdade, evitando, por conseguinte, que o Estado
desvirtualize-se daquilo que tem por função.
Segundo Cesareo, o associacionismo, quanto à natureza e funções
pode ser entendido assim: As associações voluntárias consistem em
grupos formais livremente constituídos, aos quais se tem acesso
por própria escolha e que perseguem interesses mútuos e pessoais
ou então escopos coletivos. O fundamento desta particular
configuração de grupo social é sempre normativo, no sentido de
que se trata de uma entidade organizada de indivíduos coligados
entre si por um conjunto de regras reconhecidas e repartidas, que
definem os fins, os poderes e os procedimentos dos participantes,
com base em determinados modelos de comportamento
oficialmente aprovados. (BOBBIO, 1992, p. 65). Mais à frente,
aponta-se a difusão do associativismo:

Nos Estados Unidos da América e na Suíça, por


exemplo, o associacionismo não encontrou os
obstáculos de ordem legislativa que encontrou na
França e na Itália, onde o direito de associação foi
suprimido durante o fascismo. Se já Tocqueville
tinha percebido o nexo entre expansão do
Associacionismo voluntário e regime político,
numerosos estudiosos aprofundaram pos­
teriormente e com maior sistematização esta rela­ção.
Entre estes lembramos, por exemplo, Rase, o qual,
do confronto do contexto francês com o norte-
americano, chega à conclusão de que as causas do
menor desenvolvimento e da menor rele­vância do
associacionismo na França, com respei­to aos Estados
Unidos da América, estão na deliberada repressão
das formas associativas por parte do Governo,
preocupado (e também receoso delas) com a exis­
tência de forças que lhe poderiam ser hostis, na
tradição liberal estritamente ancorada na liber­dade
individual, na tradição católica, no forte Governo
central, que desenvolve muitas funções as quais, nos
Estados Unidos, são deixadas aos Gover­nos locais e
aos cidadãos. (BOBBIO, 1992, p. 66).

Ao tratar da democracia, Tocqueville concebe que a caminhada


para a democracia é irresistível. A paixão pela igualdade, no
curso da história, inscreveu-a na consciência dos indivíduos de tal
modo que ela, subjetivamente, progride — isto é, os indivíduos
sentem-se iguais. Em outras palavras, a marcha pela igualdade

98
Filosofia Política II

das condições cria uma aspiração à igualdade, a qual incita, por seu
turno, a equalização das condições, segundo Olivier Nay (2007, p.
314-315). Assim, continua o autor, os americanos, no movimento
de transformação para a democracia, atingiram o estágio mais
elevado, posto que o objetivo de sua independência coloca-se na
realização deste intento (NAY, 2007, p. 315). Neste contexto, a questão
relevante para o autor é como, dada a igualdade de condições –
que, na América, é decorrência da lei de sucessão --–, pode-se salvar
a liberdade? Conforme apontado acima, a resposta de Tocqueville
inclina-se para o associacionismo, base sobre a qual se propõe pensar
o fundamento da virtude cívica. Também, como já mencionado, a
religião tem papel fundamental no desenvolvimento dos sentimentos
morais, e os sentimentos morais são os mesmos sentimentos do
cidadão, isto é, aqueles que incitam a virtude cívica.
Neste contexto, da democracia liberal, a pesquisa é arvorada em três
distintos momentos, a saber: contextualização histórica à Tocqueville,
seguida pela exposição das ideias gerais de A Democracia na
América (1977). Por fim, atinente à proposta desta pesquisa,
procura-se pensar e conceber, a partir da liberdade e da igualdade, a
virtude cívica.

Alexis de Tocqueville nasceu em Paris, na era napoleônica,


em 1805, sendo filho de Hervé de Tocqueville e de Louise-
Madeleine Le Peletier de Rosanbo. Seus pais foram presos
durante o Terror, iniciado por Robespierre (1758-1794) através
do Comitê de Segurança Pública, e salvos da guilhotina pelo
Thermidor, quando ocorreu uma reação à sistematização
sanguinária empreendida por Robespierre, terminando pela
“9 de Thermidor
condenação deste. Estes fatos serão significativos no imaginário (27/7/1794): marca a
intelectual de Tocqueville e, constantemente, objetos de reflexão derrubada do governo
com a finalidade de compreensão da Revolução Francesa (1789) revolucionário e a reação
e de seus desdobramentos. A maior parte dos dados biográficos da burguesia no sentido
foram apurados do texto de Francisco Bilac M. P. Filho, Aléxis de dar novos rumos ao
processo revolucionário.”
de Tocqueville: um enfoque histórico. (ALMEIDA FILHO;
BARROS, 2008).

Unidade 3 99
Universidade do Sul de Santa Catarina

Você sabia?
Roberspierre: político e revolucionário francês
(6/5/1758, Arrás, França -- 28/7/1794, Paris, França)
“O Governo revolucionário deve aos bons cidadãos
toda a proteção nacional; aos inimigos do povo
ele deve apenas a morte.” Neste trecho de um
discurso à Convenção, Maximilien Marie Isidore
de Robespierre expressou o fanatismo que tomou
Figura 3.1 - Roberspierre
conta da Revolução Francesa, no período que se Fonte: Dicionário...([200-?]).
seguiu à deposição da monarquia, conhecido
como “Terror”.
Filho de uma família da pequena burguesia, Maximilien Robespierre (Figura
3.1) perdeu sua mãe cedo e foi depois abandonado pelo pai. Viajou a Paris
com uma bolsa de estudos e, em 1781, graduou-se em direito. Exerceu a
profissão de advogado em sua cidade natal, Arrás, com sucesso.
Em abril de 1789, Robespierre tornou-se deputado pelo terceiro estado da
região de Artois. Revelou-se um grande orador.
Em abril de 1790, tornou-se membro do Clube dos Jacobinos, a ala mais
radical dos revolucionários. A partir daí, adquiriu notoriedade e sua vida
passou a estar intimamente associada aos acontecimentos da Revolução
Francesa.
Em 1791, Robespierre tornou-se um dos principais líderes da insurreição
popular do Campo de Marte. Sua fama de defensor do povo valeu-lhe o
apelido de “Incorruptível”. Depois da deposição da família real, em 1792,
Robespierre aderiu à Comuna de Paris e tornou-se um dos chefes do
governo revolucionário. Combateu então a facção dos girondinos, menos
radicais.
Robespierre foi um dos que pediram a condenação do Rei Luís XVI,
guilhotinado em 21 de janeiro de 1793. Em julho do mesmo ano,
Robespierre criou um Comitê de Salvação Pública para perseguir os
inimigos da revolução. Foi instaurado o regime do “Grande Terror” — o
auge da ditadura de Robespierre.
Em 1794, Robespierre mandou executar Danton, o revolucionário que
propunha um rumo mais moderado para a revolução. Neste mesmo ano,
tornou-se Presidente da Convenção Nacional. No dia 27 de julho, em uma
sessão tumultuada, Robespierre foi ferido e teve que sair da sala às pressas.
Foi detido imediatamente por seus inimigos e, dois dias depois, mandado à
guilhotina.
FONTE: UOL Educação (2010b).

100
Filosofia Política II

A Europa, à época de Tocqueville, em seus aspectos gerais


sucintamente apresentados, é marcada pela crescente reivindicação
da nova classe, a burguesia — isto é, os homens que exploravam
seu próprio negócio —, já estabelecida na Inglaterra, adiantada
neste processo por conta da Revolução Industrial e de outros
fatores, tais como o movimento de Cercamento, e ainda
por estabelecer-se na França. Ao lado de outra classe, a dos
Segundo a ‘Enclosure’,
camponeses — que passaram a trabalhar na cidade, com “Encyclopaedia
necessidades básicas como a da alimentação, a da residência e do Britannica”, citada por
vestuário —, passaram progressivamente a questionar e contestar Filho, “na Inglaterra o
as desigualdades entre os homens, no sentido de haver nobres e movimento conhecido
como ‘Cercamento’
servos, uns tendo que pagar tributos; outros, não.
começou no século XII e
tomou forças no período
Na França, durante os primórdios do que se chama Revolução
de 1450-1640, quando o
Industrial, a economia era ainda basicamente feudal, com propósito dos proprietários
uma minoria de proprietários, e uma maioria de camponeses era aumentar a oferta das
laborando em terras senhoriais, reais ou eclesiais, quadro que terras aráveis. Uma nova
permaneceu durante o século que antecedeu o nascimento de onda de ‘Cercamento’
ocorreu no período de
Tocqueville. Além disso, ressalte-se que o sistema fiscal francês
1750 a 1860, na esteira do
era completamente baseado na arrecadação de impostos sobre desenvolvimento de uma
as terras rurais e a comercialização de seus produtos, o que, a agricultura de eficiência.
rigor, dificultava a própria subsistência da camada mais pobre Ao final do século XIX, o
da sociedade francesa, além de evidenciar a bastante desigual processo de ‘Cercamento’
nas terras comuns
responsabilidade tributária entre os franceses.
na Inglaterra estava
completo.” (2008, p. 272).
Filho (2007, p. 282), em uma análise acurada dos traços
característicos de pensadores liberais do século XVIII, aponta
que existem neles algumas características comuns, entre as quais
o desdém que nutrem pelas massas citadinas e pela formação
de uma burguesia industrial e o receio do Estado centralizado.
Esses pensadores temiam que o materialismo levasse a ciência
à mediocridade e ao triunfo do individualismo no mesmo
movimento em que a centralização do Estado ferisse valores
como a liberdade, a individualidade e a diversidade; haja vista,
na época da economia feudal, esta ser diversificada e dividida
entre os vários burgos existentes em cada reino, diferentemente
do dirigismo econômico imposto pelo Estado centralizado. Esses
traços, de modo geral, estarão presentes na teoria desenvolvida
por Tocqueville, sobretudo na sua análise da democracia e seus
riscos, dentre eles o da tirania da maioria.

Unidade 3 101
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para Tocqueville, o conceito de Modernidade tem


importância na medida em que serve como paradigma
temporal de análise. Para ele, a Modernidade,
diferentemente de outros pensadores liberais do século
XIX que a entendem iniciada no século XVIII, começa
antes, no século XVII-XVIII, com a centralização da
Monarquia, sob o regime absolutista. Com isso, observa,
passasse-se paulatinamente da desigualdade feudal
para a igualdade da democracia. Os antigos laços da
aristocracia, cuja característica principal é distinção
de privilégios, e por isso, desigualdade, começa a ruir
quando da centralização do poder nas mãos do rei que,
sempre mais, dirime os privilégios da nobreza.

De modo geral, sucintamente, tem-se um paradigma acerca das


ideias que precederam Tocqueville e das que eram difundidas
em seu tempo, assim como o respectivo contexto histórico e
econômico. Elas ganham relevo na medida em que incidirão
sobre o modo como o autor compreenderá a Democracia e a
análise desta na América.

Seção 2 - A Democracia na América: ideias gerais


Como já dito, esta Unidade 3 centrar-se-á na análise que faz
Tocqueville da democracia, privilegiando os conceitos de liberdade
e igualdade e expurgando daí o que pode ser entendido como
virtude cívica na concepção do autor. Para elaboração de sua
pesquisa sobre a democracia entre os americanos, Tocqueville
observou os costumes e instituições da sociedade, e, partindo dos
princípios do empirismo, buscou uma conceituação e generalização
dos fenômenos sociais presentes naquela sociedade, ponto de vista
que o aproxima da metodologia elaborada por Montesquieu, em
“O Espírito das Leis” (1979): produziu uma análise generalista,
baseando sua pesquisa em categorias como condições geográficas,
leis, costumes e hábitos da sociedade americana. Na literatura
especializada, é ideia difundida a de que Tocqueville cria aquilo
que Weber (1864-1950) conceituará posteriormente como “tipos
ideais” — hipérboles da realidade que, em Tocqueville, consistiam
em imaginar uma democracia ideal.

102
Filosofia Política II

Você sabia?
Max Weber (21/04/1864, Erturt, Alemanha —
14/06/1920, Munique, Alemanha)

Max Weber (Figura 3.2) viveu no período em que


as primeiras disputas sobre a metodologia das
ciências sociais começavam a surgir na Europa,
sobretudo em seu país, a Alemanha. Filho de
uma família de classe média alta, com o pai
advogado, Weber encontrou em sua casa uma Figura 3.2 - Max Weber
Fonte: Marx... (2009).
atmosfera intelectualmente estimulante. Ainda
era criança quando se mudaram para Berlim.
Em 1882, foi para a Faculdade de Direito de Heidelberg. Um ano depois,
transferiu-se para Estrasburgo, onde prestou o serviço militar.
Em 1884, reiniciou os estudos universitários em Göttingen e Berlim,
dedicando-se às áreas de economia, história, filosofia e direito. Trabalhou na
Universidade de Berlim como livre-docente, ao mesmo tempo em que era
assessor do governo. Cinco anos depois, escreveu sua tese de doutoramento
sobre a história das companhias de comércio durante a Idade Média. A
seguir, escreveu a tese A História das Instituições Agrárias.
Em 1893, casou-se com Marianne Schnitger e, no ano seguinte, tornou-se
professor de economia na Universidade de Freiburg, transferindo-se, em
1896, para a de Heidelberg.
Depois disso, passou por um período de perturbações nervosas que o
levaram a deixar o trabalho. Só voltou à atividade em 1903, participando
da direção de uma das mais destacadas publicações de ciências sociais
da Alemanha. No ano seguinte, publicou ensaios sobre a objetividade
nas ciências sociais e a primeira parte de A Ética Protestante e o Espírito
do Capitalismo, que se tornaria sua obra mais conhecida e é de fato
fundamental para a reflexão sociológica.
Em 1906, redigiu dois ensaios sobre a Rússia: A Situação da Democracia
Burguesa na Rússia e A Transição da Rússia para o Constitucionalismo
de Fachada. No início da Primeira Guerra Mundial, Weber, no posto de
capitão, foi encarregado de administrar nove hospitais em Heidelberg.
Quando a guerra terminou, mudou-se para Viena, onde deu o curso
Uma Crítica Positiva da Concepção Materialista da História. Em 1919,
pronunciou conferências em Munique, publicadas sob o título de
História Econômica Geral. No ano seguinte, faleceu em consequência de
uma pneumonia aguda.
Fonte: UOL Educação (2010c).

Unidade 3 103
Universidade do Sul de Santa Catarina

Da viagem à América, sem dúvida, o que mais impressionou


Tocqueville foi a visão que teve da igualdade social, ao mesmo
tempo que, segundo notou, essa igualdade amparava-se na defesa
da liberdade. Essa observação incidiu positivamente sobre suas
ideias, fazendo que, paulatinamente, tomasse partido em favor
das ideias democráticas, contrapondo-se ao peso aristocrático que
tivera em sua formação. Rodriguez (1998, p. 78-83) atenta para a
influência que Guizot tem sobre a teoria tocquevilleana. Rodriguez
argumenta no sentido de uma conversão ao ideal democrática,
precisando-a entre maio de 1831 e fevereiro de 1832. Essa
dita conversão dá-se por conta da observação, inicialmente, do
sentimento de patriotismo com o qual se nutriam os americanos,
sendo completada, posteriormente, com a descoberta do que
é a igualdade bem regrada. Após isso, Tocqueville aderiria à
concepção de uma democracia irresistivelmente triunfante.

Segundo Quirino, ao elaborar o conceito de democracia, Tocqueville


acaba por apresentá-lo como um processo de caráter universal, de
tal sorte que este processo não se restringiria aos Estados Unidos.
Assim, continua o comentador, a democracia é vista por Tocqueville
como inevitável, providencial e

[...] seria a própria vontade divina, realizando-se


na história da humanidade [...] Esse é, portanto, o
eixo fundamental para se entender o significado de
democracia para Tocqueville: a existência de seu processo
igualitário, como se fosse uma lei necessária para se
compreender a história da humanidade. (WEFFORT,
2004, p. 153-154).

Na estrutura de sua obra, A Democracia na América (1977), depois


de salientadas as principais características físicas da América do
Norte, Tocqueville passa a identificar as populações que vieram
da Europa por conta das perseguições religiosas, argumentando a
disposição destas em tentar, na América, encontrar uma nova forma
de convívio religioso e político. O autor coaduna a esta busca a
igualdade civil incentivada e garantida pela lei de sucessão, segundo
suas análises, por ser “a lei que regulava as sucessões que levou a
igualdade a dar o seu último passo” (TOCQUEVILLE, 1977,
p. 45). Tal lei, segundo suas observações, ganha relevo na medida
em que divide a propriedade, criando, por conseguinte, a ruptura
do sentimento que tinham os europeus com a terra, fato típico na
aristocracia feudal. Assim, logo à frente, com espanto, aduz:

104
Filosofia Política II

Admira-me que os publicistas antigos e modernos não


tenham atribuído às leis de sucessão uma influência maior
na marcha dos negócios humanos. Tais leis pertencem, é
verdade, à ordem civil; deveriam, porém, ficar situadas à
frente de todas as instituições políticas, pois influem de
maneira inacreditável sobre a situação social dos povos,
cujas leis políticas são apenas a sua expressão. Têm,
ademais, uma maneira segura e uniforme de operar sobre
a sociedade; de certa maneira, afetam as gerações antes
de seu nascimento. [...] Constituída de certa maneira,
ela reúne, concentra, agrupa, em torno de certa cabeça,
a propriedade e, logo depois, o poder; de certa maneira,
faz fluir do solo da aristocracia. Conduzida por princípios Na América, segundo
outros e lançada num outro caminho, a sua ação é ainda Tocqueville, a
mais rápida; divide, partilha, dissemina os bens e o poder inteligência também
[...]. (TOCQUEVILLE, 1977, p. 45). se encontrava mais
ou menos distribuída
de forma tal que
Quando da partilha dos bens, em virtude da lei de sucessão, não se encontra lá
grandes mentes, cujas
Tocqueville divisa duas consequências evidentes: a primeira delas individualidades se
é que a morte de cada proprietário traz consigo uma revolução à fizessem brilhar pelas
propriedade, dada a mudança, de caráter de posse e de natureza, suas inteligência,
enquanto houver o fracionamento contínuo, cada vez mais intenso, como existira na
em porções menores, da propriedade. Segundo o autor, esse é o Europa. Muito embora
esse fosse o caso
efeito direto e material da lei. A segunda delas é que a lei age sobre em suas análises,
as paixões, constituindo o meio indireto, destruindo as grandes observou igualmente a
fortunas de forma célere. (TOCQUEVILLE, 1977, p. 45-46). existência de um nível
médio básico assim
De modo evidente, a lei de sucessão, ao estabelecer a partilha como de bom senso,
igual dos bens, rompe a íntima ligação que existia entre o espírito democraticamente
de família e a conservação da terra. Por conseguinte, a terra distribuídos entre
todas as pessoas. Numa
deixa de representar a família, uma vez que, ininterruptamente, passagem, Tocqueville
tende a ser dividida, até desaparecer por completo, com a quebra, confessa sua pasmidade
assim, da ideia de materialização do espírito familiar na terra, arguindo que quando
preponderante na aristocracia. Ganha relevo a afirmação de na Europa começa-se a
Tocqueville (1977), de que, onde termina o espírito de família, formação, nos Estados
Unidos já se iniciam
surge, na realidade de seus pendores, o egoísmo individual. as atividades práticas.
Portanto, é devido à lei de sucessão que, entre os americanos, (TOCQUEVILLE, 1977, p.
tem-se a igualdade, que se faz notar não somente nas fortunas, 232-5).
mas inclusive nas inteligências, de sorte que, conclui
Tocqueville, os homens americanos

mostram-se mais iguais pela sua fortuna e pela sua


inteligência, ou, noutras palavras, mais igualmente fortes

Unidade 3 105
Universidade do Sul de Santa Catarina

do que o são em qualquer país no mundo, e do que o


foram em qualquer outro século de que a História guarde
lembrança (TOCQUEVILLE, 1977, p. 48-49).

Segundo Quirino (WEFFORT, 2004), Tocqueville recebeu


severas críticas quanto ao juízo que fez da igualdade entre
os americanos em razão de se considerar que a democracia
americana, daquela época, apresentava grandes diferenças de
nível econômico entre seus habitantes, assim como também
diferenças raciais e culturais. De acordo com a autora, em suas
explicações sobre o que definia como igualdade de condições, fica
claro que Tocqueville exclui a possibilidade de se compreender a
igualdade apenas como igualdade econômica.

Para Quirino, o conceito de igualdade, de que fala


Tocqueville, encontra-se especialmente na igualdade
cultural e política a qual está assentada na ideia de
que, no desenvolvimento do processo democrático,
um povo tornar-se-á cada vez mais homogêneo.
(WEFFORT, 2004).

Nos Estados Unidos, aliás, o grande problema por ele apontado


para que tal processo pudesse se cumprir plenamente era a
existência de escravos. Sobretudo porque, por serem de raça
diferente, a cor iria, mesmo após a libertação, permanecer
como um fator de diferenciação e preconceito, escreve Quirino.
(WEFFORT, 2004).

Prosseguindo com a obra do autor, conforme reforça


Rodriguez (1998), estes foram, sem dúvida, fatores incontestes
que concorreram para a prosperidade das colônias anglo-
americanas. Pode-se, contudo, muito embora isso seja feito
pormenorizadamente por Tocqueville, apontar outras variáveis,
igualmente contribuintes, como os costumes puritanos, a
poupança — fruto do espírito do trabalho — assim como um
certo desmazelo da Metrópole, que foram decisivos no momento
independentista, que, concatenadas, promoveram as condições
para o estabelecimento da igualdade entre os americanos.

Com efeito, segundo esclarece Rodriguez (1998, p. 98), práticas


políticas e administrativas, na América do Norte, consagraram
certos princípios, desconhecidos dos europeus, a saber: “[...] a

106
Filosofia Política II

participação direta do povo nos negócios públicos, o voto livre


de imposto, a responsabilidade dos agentes do poder, a liberdade
individual e o julgamento pelo júri”.

Além disso, o autor ainda aponta ter Tocqueville destacado em


seu estudo que, enquanto a liberdade se desenvolvia na ordem
civil e política na América, a religião presidia no terreno moral,
fundando os direitos sobre a base firme dos deveres, eticamente
justificados. (RODRIGUEZ, 1998).

Para Tocqueville, prosseguindo com a exposição estrutural de


sua obra dada por Rodriguez, a união americana compõe-se de
Estados, cada um dos quais se divide em comunas e condados.
A comuna, em seu entender, parecia surgida das mãos de Deus
como primeiro refúgio da liberdade e não dependia senão dela
própria em tudo que se relacionasse ao convívio dos cidadãos.

A Comuna era enxergada por Tocqueville como um foco


de febril atividade social e de sabia emulação. O condado,
por sua vez, seria o equivalente ao arrondissement francês;
caracteriza-se porque é puramente administrativo e
judiciário, não é eletivo e pauta juridicamente a ação
das comunas. O governo norte-americano [...] age
como a Providência, sem se revelar. O poder é, sem
dúvida, o auxiliar da lei. Mas o soberano é a lei mesma.
(RODRIGUEZ, 1998, p. 99).

Não obstante, continua o autor, o poder sendo respeitado no


seu princípio, justamente pelo fato de ser enxergado não como
ponto culminante à sociedade, mas como o seu instrumento,
não era concebido pelos americanos como algo que devesse
ser concentrado nas mãos de uma única pessoa ou instituição,
mas como uma instância que deveria ser dividida, tendo-se em
vista o não-mitigamento de sua ação. Na América, segundo
expressa com surpresa, inexiste centro geral da administração,
significando, pois, que as decisões tomadas pelos poderes
legitimamente constituídos fossem fracas. Como se faz notar,
em nenhuma outra parte do mundo a ação governamental é mais
poderosa, por brotar do consenso da maioria. Decorre daí, e
que será detidamente trabalhado por ele no segundo livro de A
Democracia na América (TOCQUEVILLE , 1977): o risco da
tirania da maioria.

Unidade 3 107
Universidade do Sul de Santa Catarina

O poder judiciário, nesse contexto, segundo observa, ocupava


um lugar de destaque: a sua influência estendia-se da ordem civil
à política. Às atribuições que notadamente definiam-no como
instituição, juntava-se a de exercer um controle indireto sobre os
outros poderes, alicerçado na interpretação da Constituição, mais
do que nas leis, mas somente em casos particulares.

Tocqueville, depois de expor a organização civil, jurídica e


política do Estado, passa a examinar a Constituição Federal
da União, procurando analisar o espírito que a animava, assim
como, das relações das instituições políticas federais. Tocqueville
aponta que a unidade política, como sinteticamente expressa
Rodríguez,

[...] reside nas atribuições soberanas assinaladas à


União. A unidade judiciária é constituída por uma corte
suprema que interpreta as leis e que regulamenta as
diferenças entre os Estados; o princípio da independência
é representado pelo Senado, a Assembléia dos
representantes encarna o dogma da soberania nacional.
Ao poder legislativo, o Senado junta o poder judiciário e
político. Já o poder executivo é vigiado, mas não dirigido
pelo Senado e personifica-se no Presidente, a fim de que
sua responsabilidade seja mais completa. O primeiro
mandatário está munido com o poder do veto suspensivo.
(RODRIGUEZ, 1998, p. 101).

Já, aqui, Tocqueville aponta para o perigo do despotismo da


tirania da maioria, em que a prática da reeleição presidencial,
permitida pela Constituição, pode incorrer. Para o autor,
tal prática coloca-se a serviço deste, que é um dos riscos da
Democracia. O único motor de todo esse mecanismo é o
povo que se administra, faz e aplica leis por meio das formas
institucionais da organização comunal, do sufrágio universal e
do tribunal do júri. Além disso, o autor observa que os partidos
políticos que fossem relegados, mediante o sufrágio, a minorias
renunciam à prática da violência e assumem o compromisso
de tentar vencer seus adversários por meio da persuasão e da
prática parlamentar.

Tocqueville indica dois motivos que permitiam ao povo


americano movimentar-se e agitar-se, quais sejam: a liberdade
de imprensa e o espírito de associação. Todavia, destas, a que,

108
Filosofia Política II

em seu entender, parece ser vital é a liberdade de associação,


posto que se aplica a tudo, desde às decisões mais simples da
À frente, este ponto acerca
vida civil até aos atos mais importantes da soberania nacional. da liberdade de associação
Outro evento analisado por Tocqueville concerne ao fato de que será retomado; porquanto
a mutabilidade da administração e da legislação são decorrências atente-se à concepção
inequívocas do governo cujo sistema é o eletivo. Com isso, o de virtude cívica em
Tocqueville. (RODRIGUEZ,
autor procura apontar para as distintas diferenças observadas nos
1998).
diversos estados percorridos na América. Além disso, o autor
questiona-se se, dadas as condições únicas reunidas na América,
como as leis e costumes imperantes, as quais permitiram à
democracia configurar-se particularmente, seria possível que a
democracia se mantivesse em qualquer outro planeta. Embora,
como se disse, a democracia na América tenha surgido de forma
singular, o autor entende que seria possível manter a democracia
em qualquer outro lugar do planeta, desde que prismada pelas
leis e costumes adequadamente conjugados. (TOCQUEVILLE,
1977).

Após ter estudado a influência geral que a democracia tinha


sobre o desenvolvimento intelectual, moral, civil e político da
sociedade americana em relação a outras sociedades da época,
e, após ter identificado as virtudes e os vícios de tal sociedade,
Tocqueville passa à conclusão do estudo da primeira democracia.
Tal conclusão aponta para o individualismo que, solidamente
alicerçado na prática do livre exame, converteu-se em traço
marcante da sociedade americana. Essa característica, por outro
lado, é abrandada pela influência da religião, no sentido de que as
verdades morais conservam a estrutura de sua sociedade. Isso se
deve ao fato de que, na América, diferentemente do que ocorrera
na Europa, a Igreja não se alinhou ao poder constituído, mas,
estando separada, mantém sua influência, por reger os costumes.
(TOCQUEVILLE, 1977). Além disso, o autor ressalta ainda
o grande amor ao conforto e ao bem-estar material que tinham
os americanos, o qual era, no confronto com a religião, mitigado
pela mediação com o trabalho produtivo, quaisquer que fossem as
condições nas quais era praticado.

No segundo livro de A Democracia na América (1977),


publicado em 1840, com características mais abstratas,
centrando-se na reflexão sobre o homem democrático, tendo
por exemplo o homem americano, Tocqueville apresenta uma
visão mais geral das sociedades democráticas e busca analisar

Unidade 3 109
Universidade do Sul de Santa Catarina

as consequências sociais de uma sociedade democrática. Em


outras palavras, faz considerações abstratamente, pensa a
democracia, diferentemente do que fizera no primeiro livro, cuja
característica é a da descrição da realidade americana. Além
disso, Tocqueville explana acerca da temática do individualismo
ao falar do método filosófico dos americanos, que, ao contrário
dos europeus, não se debatem em torno de tradições filosóficas
e nem lhe dão a devida importância.

Segundo entende Rodríguez, quatro grandes problemas chamam


a atenção de Tocqueville no segundo livro:

„„ a influência da democracia sobre o movimento intelectual


nos Estados Unidos (TOCQUEVILLE, 1977, p. 321-
382);

„„ a influência da democracia sobre os sentimentos dos


norte-americanos (TOCQUEVILLE, 1977, p. 383-
426);

„„ a influência da democracia sobre os costumes


propriamente ditos (TOCQUEVILLE, 1977, p. 427-
510); e

„„ a influência que as ideias e os sentimentos democráticos


exercem sobre a sociedade política (TOCQUEVILLE,
1977, p. 511-542).

Em relação ao segundo livro, as exposições serão apenas estas,


visto que o intuito é apenas oferecer um quadro genérico da obra
de Tocqueville.

110
Filosofia Política II

Seção 3 - A igualdade, a liberdade e a virtude cívica


Segundo Quirino, Tocqueville considerou uma diversidade
de caminhos que as nações poderiam seguir para a realização
da democracia. Assim, o autor arguiu que as sociedades
democráticas podem ser liberais, ou tirânicas. Neste ínterim,
identificou dois grandes perigos que ameaçavam as democracias:
de um lado, a tirania da maioria; e, de outro, o despotismo
democrático. (WEFFORT, 2004).

Para Tocqueville, a democracia está associada a um


processo igualitário que não poderá ser cessado, o
qual se desenvolve de forma e de modo diferentes em
povos diversos. O que caracterizará, por outro lado, se
uma democracia cambiará para a liberdade ou para a
tirania será, sobretudo, a ação política.

Esta questão do despotismo da tirania da maioria é, sem dúvida,


um ponto crucial, já apontado no primeiro livro e desenvolvido
no segundo livro de A Democracia na América (1977).

O processo de igualização, como observado e apontado, pode


desenvolver desvios perigosos, os quais podem levar à perda da
liberdade, quais sejam:

„„ tirania da maioria: a cultura igualitária de uma maioria


poderia destruir as possibilidades de manifestação de
minorias ou mesmo de indivíduos diferenciados; é contra
o individualismo; e

„„ o surgimento de um Estado autoritário despótico: neste


caso, o Estado dos poucos tomaria para si todas as
atividades, assim, intervindo, também, nas liberdades
fundamentais. (WEFFORT, 2004).

Segundo Arriada e Bastos (2007), Tocqueville também explicita


como a democracia faz-se acompanhar de um progresso
do individualismo. Proclamados e reconhecidos os direitos
individuais, o gosto pela liberdade corrompe-se pela paixão pela
igualdade, que favorece a difusão de um espírito majoritário e
conformista.

Unidade 3 111
Universidade do Sul de Santa Catarina

De acordo com Tocqueville, a atividade política dos cidadãos


pode impedir que estes perigos ocorram. A existência e a
manutenção de certas instituições podem dificultar bastante
o surgimento de um Estado autoritário e mesmo de uma
sociedade massificada. O Estado despótico seria um Estado que
comandaria um povo massificado, preocupado apenas com suas
pequenas atividades particulares.

A democracia não precisa apenas ser igualitária,


ela pode permitir aos homens serem livres. É neste
ponto que se centra a discussão tangente à virtude
cívica. A tese aqui defendida é a de que a virtude
cívica está associada às instituições mantenedoras
da liberdade, assim como, ao associacionismo por
parte dos indivíduos no contexto do interesse bem
compreendido.

Tirania da maioria
Como você viu, a preocupação de Tocqueville, no primeiro livro,
nunca foi com as nefastas consequências da democracia, mas
apenas descrever a democracia entre os americanos. Contudo,
Texto em português: A separação
dos poderes, baseada na máxima
como supradito, neste livro o autor já apontara para os riscos
de que le pouvoir arrête le pouvoir que a democracia pode conter em si, entre os quais, o da tirania
(o poder detém o poder), é da maioria, que procede inequivocamente da vontade de todos
fruto dessa preocupação e abre — por isso, arrogando-se o direito de tudo fazer. Não pode
uma linha de pensamento que, ser esquecido que a preocupação fundamental de Tocqueville é
com antecedentes em Locke, se
prolongará em pensadores como
encontrar um método de limitar e controlar o poder, para que
Benjamin Constant, Tocqueville se possam evitar os abusos que este pode conter. Assim, como
ou o próprio Stuart Mill, todos eles aponta Muños-Alonso (2007, p. 244),
em permanente guarda contra os
abusos da maioria.
La separación de poderes, basada en la máxima de que
le pouvoir arrête le pouvoir, es fruto de esa preocupación
y abre una línea de pensamiento que, con antecedentes
en Locke, se prolongará en pensadores como Benjamin
Constant, Tocqueville o el propio Stuart Mill, todos ellos
en guardia permanente contra los abusos de la mayoría.

112
Filosofia Política II

Segundo ressalta este autor, para Tocqueville, nenhum poder,


qualquer que seja a sua origem, pode ser absoluto ou ilimitado,
de tal modo que a justiça constitui o limite do direito de todo o
povo. Tocqueville expressa-o do seguinte modo, já no primeiro
livro de A Democracia na América:

Tenho por ímpia e detestável a máxima de que, em


matéria de governo, a maioria de um povo tem o direito
de tudo fazer e, no entanto, situo nas vontades da maioria
a origem de todos os poderes. Estarei em contradição
comigo mesmo?
Existe uma lei geral, que foi feita ou pelo menos adotada,
não apenas pela maioria de todos os homens. É a lei da
justiça. A justiça constitui, pois, o limite do direito de
cada povo. (TOCQUEVILLE, 1977, p. 193).

A questão que está por detrás da tirania da maioria, na ótica de


Tocqueville, segundo expressa Quirino, é a do temor de que a
cultura igualitária de uma maioria destrua as possibilidades de
manifestação de minorias, ou mesmo de indivíduos diferenciados.
Assim, no desenvolvimento de uma sociedade em que hábitos,
valores, entendimentos, entre outros, fossem definidos por
uma maioria, quaisquer atividades ou manifestação de ideias
que escapassem ao que a massa da população acreditasse ser a
normalidade seriam impedidas de se realizar. (WEFFORT,
2004). De qualquer modo, Muños-Alonso aponta que
Tocqueville antecipa o fenômeno que os especialistas em
comunicação, no lastro de Elizabeth Noelle-Neumann,
denominam como espiral do silêncio.

Conforme a espiral do silêncio, quem se sente


em maioria motiva-se a falar e a intervir, e quem
se percebe como minoria tem, por outro lado, a
tendência a calar-se cada vez mais. A decorrência
disto é que a maioria aparece como mais majoritária
do que realmente é, e a silente, a silenciosa minoria,
que se sente em menor número, aparece como mais
minoritária do que realmente é. (MUÑOS-ALONSO,
2007, p. 247-248).

Unidade 3 113
Universidade do Sul de Santa Catarina

Na sequência, o autor explicita ainda que, sendo Tocqueville


um árduo defensor da liberdade individual, assim como
Stuart Mill, seu contemporâneo, seria necessário garantir o
direito de discordar e divergir de opinião, sem o que inexiste
Importante filósofo, pensador
político e ativista liberal inglês,
uma verdadeira democracia. (MUÑOZ-ALONSO, 2007).
nasceu a 20 de maio de 1806, em
Londres (Inglaterra), e faleceu em Segundo Quirino (apud WEFFORT, 2004, p. 155), Tocqueville
8 de maio de 1873, em Avignon temia que os hábitos e os costumes de uma maioria destruíssem
(França). Um dos grandes expoentes as vontades de minorias ou de indivíduos isolados, em virtude de
do Utilitarismo (veja maiores que o poder da maioria nos Estados Unidos “ultrapassa todos os
informações sobre esta corrente
poderes que conhecemos na Europa” (TOCQUEVILLE, 1977,
filosófica no Saiba mais, ao final
desta Unidade 3.)
p. 196). Jasmim salienta que

esta forma de tirania alimenta-se da interpretação e da


aplicação imoderadas do princípio democrático elementar
segundo o qual os interesses do maior número devem ser
preferidos aos do menor (id., 2005, p. 61).

Com isso, Tocqueville (1977) não quer dizer que, na América,


faça-se uso da tirania, mas somente que nenhuma garantia se põe
para seu não estabelecimento.

Despotismo democrático
Se o desenrolar de suas ideias sobre a tirania da maioria aparece
no primeiro livro de A Democracia na América (1977), as
suas reflexões a respeito dos perigos da concentração do poder
e dos tipos de despotismo que devem temer as sociedades
democráticas ocupam os últimos capítulos do segundo
livro. Isto se deve, em parte, não ao contato imediato com a
sociedade americana, mas a uma reflexão ainda mais profunda e
prolongada da democracia. A sociedade americana, no segundo
livro, é uma cortina de fundo que põe questões muito mais
gerais acerca do futuro da democracia.

Essas circunstâncias, conjuminadas às suas experiências políticas


ao longo de cinco anos, tempo que separa a primeira da segunda
publicação, conferem um valor muito grande às suas reflexões a
respeito da democracia do segundo livro.

114
Filosofia Política II

Como você pôde perceber, a preocupação


fundamental de Tocqueville centra-se nas relações
entre liberdade e igualdade. O autor tem primado o
receio de que aquela possa ser asfixiada por esta, uma
vez que os homens nutrem uma paixão insaciável e
invencível pela igualdade que, não se podendo tê-la na
liberdade, desejam-na na escravidão.

Segundo Tocqueville, o despotismo introduziu-se na democracia


por meio do individualismo característico do estado social
igualitário. Do amor à igualdade chega-se ao individualismo: este
é resultado daquele, apresentando-se, pois, como inevitável e, ao
mesmo tempo, preocupante. O individualismo, na terminologia
tocquevilleana, é uma expressão recente e decorre, segundo
sua análise, do fato de os cidadãos dedicarem-se cada vez mais
aos seus assuntos privados, abandonando, por consequência,
o interesse pelos negócios públicos. Desse desinteresse pelos
negócios públicos, cria-se espaço para o surgimento de um
Estado que, segundo assevera Quirino (WEFORT, 2004),
apodera-se de toda a administração pública e, depois, passa a
intervir nas liberdades fundamentais dos indivíduos.

Tocqueville entende que o individualismo, que inexiste nas


épocas aristocráticas, nasce da igualdade de condições. Assim,
pois, a “[...] aristocracia fizera de todos os cidadãos uma longa
cadeia que subia do camponês ao rei; a democracia desfaz a cadeia
e põe cada elo à parte” (TOCQUEVILLE, 1977, p. 387).

Neste contexto, tem-se que a principal preocupação de


Tocqueville pode ser entendida como quais as condições
necessárias para evitar o despotismo em sociedades igualitárias,
isto é, noutras palavras, como coadunar igualdade e liberdade.
Quirino traduz nestes termos a preocupação de Tocqueville:

O grande drama tocquevilliano é [...] buscar a solução


sobre a questão da preservação da liberdade na
igualdade. Pois, por um lado, o processo igualitário é
inevitável e apresenta perigos constantes de ameaça à
liberdade, por outro, a liberdade, mesmo a que já tenha
sido conquistada, é frágil e a qualquer momento pode
ser destruída. Considerando-se ainda que, para ele, a
igualdade sem liberdade é insuportável, suas obras, tanto

Unidade 3 115
Universidade do Sul de Santa Catarina

quanto suas atividades políticas, são uma luta constante


para que a democracia, sobretudo a francesa, fosse
construída preservando-se a liberdade. (WEFFORT,
2004, p. 157-158).

Jasmim, por seu turno, em seu ensaio Despotismo e história na


obra de Aléxis de Tocqueville (s. d.) acerca deste tema, entende
que a concepção tocquevilleana de liberdade política depende
de uma ação e “ [...] um conjunto de valores cujos pressupostos
tendem a ser destruídos pelo desenvolvimento continuado das
disposições internas à própria democracia.”

Tocqueville vislumbra na liberdade política a resposta para esta


questão, pois, nos Estados Unidos, a igualdade associou-se
aos mecanismos da liberdade política. O povo americano foi
suficientemente sábio para evitar, mediante o estabelecimento
dos princípios da soberania popular por meio das instituições
políticas concretas, o despotismo democrático. Tocqueville
expressa-se a este respeito desse modo:

Ali a sociedade age sozinha e sobre ela própria. Não


existe poder, a não ser no seio dela; quase nem mesmo
se encontram pessoas que ousem conceber e, sobretudo,
exprimir a idéia de ir procurá-la noutra parte. O povo
participa da composição das leis, pela escolha dos
legisladores, da sua aplicação pela eleição dos agentes do
poder executivo; pode-se dizer que ele mesmo governa,
tão frágil e restrita é a parte deixada à administração,
tanto se ressente esta da sua origem popular e obedece
ao poder de que emana. O povo reina sobre o mundo
político americano como Deus sobre o universo. É ele a
causa e o fim de todas as coisas; tudo sai do seu seio, e
tudo se absorve nele. (TOCQUEVILLE, 1977, p. 52).

Às instituições da soberania do povo, Tocqueville acrescentou


outras duas vantagens políticas que contribuíram para
salvaguardar a liberdade política, quais sejam: a descentralização
administrativa e as associações livres.

A descentralização administrativa na América produziu efeitos


políticos admiráveis aos olhos de Tocqueville. A respeito disso, o
autor escreve que, na América:

116
Filosofia Política II

[...] a pátria faz-se sentir por toda parte. É objeto de


anseios desde a aldeia até a União inteira. O habitante
liga-se a cada um dos interesses de seu país como aos seus
próprios. Glorifica-se na glória da nação; no triunfo que
ela obtém, julga reconhecer a sua própria obra e nela se
eleva; rejubila-se com a prosperidade geral da qual tira
proveito. Tem por sua pátria um sentimento análogo
àquele que experimentamos pela família, e é ainda por
uma espécie de egoísmo que se interessa pelo Estado”
(TOCQUEVILLE, 1977, p. 389).

Todavia, no concernente às virtudes cívicas, enquanto agentes


de superação do individualismo, as associações têm papel
preponderante. As associações livres das quais fala Tocqueville,
ressaltando a facilidade com que os americanos se associam na
vida civil com vista aos mais variados fins, são as associações civis
e políticas.

Tocqueville atribui um desempenho fundamental à constatação


do espírito associativo, pois são as associações que, nos povos
democráticos, devem tomar o lugar dos particulares poderosos
— e, portanto, despertar o cidadão à virtude cívica — que a
igualdade de condições fez desaparecer.

Assim, a um desejo, em face de um sentimento ou de uma ideia


que desejam produzir no mundo, procuram-se, e, quando se
encontram, unem-se. É, pois, através das associações que, para
Tocqueville (1977, p. 394), o isolamento humano, na democracia,
é superado. Assim, segundo o autor,

As associações políticas e industriais dos americanos


facilmente são por nós percebidas; mas as outras se
nos escapam; e, se as descobrimos, as compreendemos
mal, porque nunca vimos algo de análogo. Deve-se
reconhecer, entretanto, que são tão necessárias quanto as
primeiras ao povo americano, e talvez mais. Nos países
democráticos, a ciência da associação é a ciência mãe;
o progresso de todas as outras depende dos progressos
daquela. Entre as leis que regem as sociedades humanas,
existe uma que parece mais precisa e mais clara que todas
as outras. Para que os homens permaneçam civilizados
ou assim tornem-se, é preciso que entre eles a arte de se
associar se desenvolva e aperfeiçoe na mesma medida em
que cresce a igualdade de condições.

Unidade 3 117
Universidade do Sul de Santa Catarina

Tocqueville fala ainda que, entre as associações e os jornais,


existe uma relação que se coloca como necessária, decorrente
do fato de que os “jornais fazem as associações e as associações
fazem os jornais” (TOCQUEVILLE, 1977, p. 395). Tocqueville
assevera, ainda, que as associações políticas são consideradas as
grandes escolas gratuitas, aonde todos os cidadãos vêm aprender a
teoria geral das associações. Assim, enfatiza: “a arte da associação
torna-se, então, [...] a ciência mãe; todos a estudam e a aplicam”.
(ibid., p. 398).

Ademais, as associações políticas, voltadas para grandes


empresas, reconduzem os homens uns aos outros, obrigando-os
a saírem de suas famílias para ajudarem-se mutuamente. Através
dela, os homens “aprendem a submeter a sua vontade à dos
outros e a subordinar os seus esforços particulares à ação comum”
(TOCQUEVILLE, 1977, p. 394). Nos países democráticos,
enunciou Tocqueville, “as associações políticas formam, por
assim dizer, os únicos particulares poderosos que aspiram dirigir
o Estado” (ibid., p. 399).

Além disso, Tocqueville apontou para a relação entre as


associações e a igualdade democrática, haja vista que aquelas
devem, segundo a imagem aristocrática que têm da Europa,
ocupar o lugar dos particulares poderosos que a igualdade de
condições faz desaparecer. É digno de nota, também, que o autor
explorou a influência dos hábitos e dos costumes sobre o caráter
das instituições políticas americanas, demonstrando os traços
característicos dos americanos que tornaram liberal a democracia
no Novo Mundo.

Fazendo um pequeno parênteses, atento às considerações


sobre os costumes, a religião e a liberdade, que são relevantes
para Tocqueville.

Entre os costumes dos estadunidenses, Tocqueville considerou


a religião o fator mais importante para se compreender o caráter
liberal da democracia nos Estados Unidos. Como salientou, a
sociedade americana soube combinar o espírito de religião ao de
liberdade. A este propósito, qual seja, o da religião, Tocqueville
considera os costumes como uma das grandes causas às quais
pode-se atribuir a conservação da República Americana.

118
Filosofia Política II

Por costumes, Tocqueville entende mores (derivada de mors, do


latim, que quer dizer o hábito, o costume), como o entendiam
os antigos. A aplicação dos costumes é estendida às diferentes
noções que os homens possuem, às diversas opiniões que correm
entre eles e ao conjunto das ideias de que se formam os hábitos
do espírito. Ou seja, todo o estado moral e intelectual do povo.
Com efeito, o autor entende que a religião é promanadora da
democracia entre os americanos, uma vez que, segundo analisa, a
América foi povoada por homens que se subtraíram à autoridade
do papa e que não se haviam sujeitado a nenhuma supremacia
religiosa em virtude do que, argumenta, conduziam para o novo
mundo um cristianismo democrático e republicano, favorecendo
singularmente o estabelecimento da república e da democracia
nos assuntos públicos. São as crenças religiosas que ensinam os
americanos a arte de ser livre, por estas regerem os costumes,
entende Tocqueville, pois é regendo a família que se trabalha no
sentido de reger o Estado.

Em relação à doutrina do interesse bem compreendido,


Tocqueville assevera que ela é mais apropriada às necessidades dos
homens de seu tempo e que ela é a mais poderosa garantia que lhes
resta contra si mesmos. No que pertine à religião, o autor não crê
que o único móvel dos homens religiosos seja o interesse, mas que
o interesse é o principal meio de que se servem as próprias religiões
para conduzir os homens. Assim, vê que o interesse aproxima os
homens das crenças religiosas. (TOCQUEVILLE, 1977, p. 404)
Jasmim (2000, p. 80) argumenta que:

O apego aos interesses privados e a conduta orientada


pela utilidade são provavelmente mais fortes nos
Estados Unidos do que em qualquer outro lugar. Mas
ali se desenvolveu, segundo Tocqueville, a doutrina do
interesse bem compreendido, na tradição já sugerida
por Montaigne, para a qual um caminho reto pode
ser seguido não por sua retidão própria mas por ser
mais útil. Num mundo em que as doutrinas morais do
desprendimento, do esquecimento de si, do “fazer o
bem sem interesse”, já não têm apelo social significativo,
a viabilidade de se romper o cordão de isolamento da
privacidade individualista estaria na identificação racional
dos interesses particulares com aqueles da cidadania.
Em outras palavras, no contexto moderno há que se
substituírem os “sacrifícios cegos e as virtudes instintivas”
daqueles poucos do passado pelas “luzes” do cálculo dos
muitos do presente.

Unidade 3 119
Universidade do Sul de Santa Catarina

A doutrina do interesse bem compreendido coloca-se, pois,


no contexto das virtudes cívicas, como compreensão de seu
próprio interesse individual haja vista que este, segundo Jasmim,
será mais que nunca o móvel principal, senão exclusivo, das
ações humanas. Segundo entende, a doutrina do interesse
bem compreendido nada tem de sublime, se comparada às de
desinteresse de si ou da beleza intrínseca à virtude. É moralmente
fraca, de um ponto de vista pouco elevado do qual os americanos
vêem as ações humanas.

Jasmim aduz que, nas notas de rascunho à


“Democracia”, vê-se Tocqueville elaborar uma distinção
entre três doutrinas que contemplam o interesse.
Cita, pois Tocqueville:

Há uma doutrina do interesse que consiste em crer que


se deve dobrar o interesse dos outros homens frente
ao seu e que é natural e razoável não ocupar-se senão
com este. É um egoísmo instintivo, grosseiro, que mal
merece o nome de doutrina [...] Há uma outra doutrina
do interesse que consiste em crer que o melhor meio
de ser feliz é pôr a serviço seu interesse e ser bom,
honesto, [ ...] em uma palavra, que o interesse bem
compreendido exige que se sacrifique com freqüência
o interesse próprio ou ainda que, para alcançar o seu
interesse no geral deve-se com freqüência negligenciá-lo
no detalhe. Eis uma doutrina filosófica que tem seu
valor [...].Há enfim, uma doutrina infinitamente mais
elevada, mais imaterial, segundo a qual a base das ações
é o dever. O homem penetra por sua inteligência no
pensamento divino. Ele vê que o objetivo de Deus é a
ordem e se associa livremente, na medida em que está
nele este grande desígnio. Ele coopera em sua humilde
esfera segundo suas forças a fim de cumprir sua missão
e obedecer seu mandamento. Ainda há aí interesse
pessoal, pois há um prazer orgulhoso e íntimo em
seu semelhantes pontos de vista e a esperança de uma
remuneração num mundo melhor, mas o interesse é
aí tão pequeno, tão dissimulado e tão legítimo quanto
possível [...] A doutrina do interesse bem compreendido
pode fazer os homens honestos. Mas só aquela do amor
de Deus os faz virtuosos. Uma ensina a viver, a outra
a morrer, e como se poder fazer viver bem por muito
tempo homens que não querem morrer? (JASMIN,
2000, p. 80-81).

120
Filosofia Política II

Jasmim perquire que a doutrina do interesse é o resultado de


duas ideias arraigadas nas sociedades democráticas, a saber, do
egoísmo que faz como que só se pense em si, e da concentração
da alma nas coisas materiais. O interesse de Tocqueville
colocava-se, pois, nas implicações políticas, não sendo

a grandeza um valor agregativo nas sociedades


igualitárias, a doutrina do interesse bem compreendido,
se útil a toda sociedade, é “ainda mais útil naquelas onde
os homens não podem retirar-se para fruição platônica do
bem fazer e vêem o outro mundo prestes a escapar-lhes”.
(BIGNOTO, 2000, p. 82)

Assim, é verdade, argumenta Jasmim (ibid., op. cit.),

[...] que ela toma as “virtudes extraordinárias” ainda mais


raras, mas na medida em que “volta o interesse pessoal
contra si próprio e se serve, para dirigir as paixões, do
aguilhão que as excita”, ela se põe ao alcance de todas
as inteligências e se “acomoda maravilhosamente às
fraquezas dos homens”. Por isso a doutrina do “egoísmo
esclarecido” – ou da utilidade da virtude – aparece aos
olhos do autor como a mais adequada à psicologia dos
indivíduos democráticos.

Disso, tem-se que a doutrina do interesse bem compreendido


abrange, no contexto democrático, uma garantia contra si
mesmo. Procurando seu próprio interesse, o indivíduo contribuirá
para a manutenção da sociedade democrática, pois

se os cristãos que obedecem às leis morais na Terra por


esperarem recompensa nos Céus produzem por isso
um mundo de paz, os indivíduos modernos, incapazes
de alcançar por gosto e convicção as virtudes sublimes,
podem produzir uma prática social ordenada na busca
(moderada, bem compreendida) de seus interesses
privados. (JASMIN, 2000, p. 82).

Recuperando certas ideias desenvolvidas à luz do pensamento de


Tocqueville e procurando resumi-las, ao menos por hora, você viu
que se pretendeu identificar, na obra A Democracia na América
(1977), de Tocqueville, alguns elementos caracterizadores da virtude

Unidade 3 121
Universidade do Sul de Santa Catarina

cívica. Estes elementos, intrinsecamente, foram encontrados,


em particular, nas panaceias tocquevilleanas para a superação do
individualismo o qual se instala no seio de uma democracia em
decorrência da igualdade de condições, alavancando, assim, a tirania
da maioria e o despotismo democrático.

Estes elementos foram identificados, inicialmente, na esteira


das lições dadas pelos americanos, nas práticas político-
administrativas de descentralização, que mantinham a soberania
popular, e nas livres associações. As associações, inicialmente,
são destacáveis, por, tendo por contraste a antiga sociedade
aristocrata, iniciarem e ensinarem — além de ocuparem o lugar
outrora da aristocracia, no quadro social — aos cidadãos as
práticas da liberdade. Em conjunto a essas ideias, está a doutrina
do interesse bem compreendido, que consiste, grosso modo, no
uso do interesse, refletido na dimensão pública, em favor dos
interesses privados. Por interesse, mesmo privado, o indivíduo
age participativamente na esfera pública, porque, no fundo,
corresponde ao interesse privado.

O grande problema político, segundo Tocqueville, é como


conciliar o inevitável aumento do poder social, produzido pela
progressiva igualdade de condições com a participação política
dos membros de uma comunidade. O resultado a que chega
Tocqueville é o de que o único remédio eficaz é a liberdade
política. (MENDES, 2007). No fundo, talvez essa seja, em
Tocqueville, a grande virtude cívica, haja vista dirimir os males
advindos da igualdade de condições decorrentes da irresistível
marcha à democracia.

Nos dias atuais, o individualismo diagnosticado


como risco às democracias por Tocqueville pode ser
traduzido como indiferença política. Assim, continua
sempre presente e atual a direção apontada pelo autor
para os males das democracias, porque, segundo a
constatação das realidades democráticas, o isolamento
dos indivíduos em seus projetos particulares é patente
em esquecimento à vida cívica.

122
Filosofia Política II

Seção 4 - Outras questões sobre a democracia


Passando por algumas das questões apontadas por Tocqueville
acerca da democracia sem necessariamente estar trabalhando
a partir deste autor, o Capítulo 11 — A questão democrática,
da Unidade 8 — O mundo da vida prática, do já clássico
manual Convite à filosofia, elaborado por Marilena Chauí,
complementa e avança alguns aspectos anteriormente
trabalhados tanto nesta unidade.

Chauí (1996, p. 422-423) inicia seu texto lembrando as


experiências totalitárias da primeira metade do século XX: o
fascismo (originado na Itália) e o nazismo ou nacional-socialismo
(originado na Alemanha). A autora aponta aspectos que levaram
a estes regimes totalitários.
Note que este fenômeno
recupera, em parte, o
aspecto do bonapartismo .
Partindo da crítica marxista ao liberalismo, mas
recusando a idéia de revolução proletária comunista, o
austríaco Adolf Hitler se oferece à burguesia e à classe
média para salvá-las da revolução operária. Propõe o
reerguimento da Alemanha através do fortalecimento do
Estado, do nacionalismo geopolítico (a nação é o “espaço
vital” do povo, que deve conquistar e manter territórios
necessários ao seu desenvolvimento econômico) e da
aliança com os setores conservadores do capital industrial
e, sobretudo, do capital financeiro. Hitler é eleito, em
eleições livres e diretas, para o parlamento e, a seguir, dá
o golpe de Estado nazista.
A Itália, embora estivesse do lado dos vencedores da
Primeira Guerra Mundial, ficou insatisfeita com as
compensações que lhe foram dadas e, ao mesmo tempo,
tentava manter-se economicamente pela exploração de
colônias na África. Benito Mussolini, como Hitler, partiu
da crítica marxista ao liberalismo, mas, como Hitler,
recusava a idéia de revolução proletária comunista. Em
vez dela, propôs o fortalecimento do Estado nacional, a
aliança com setores conservadores do capital industrial
e financeiro, a guerra de conquista de territórios e o
nacionalismo baseado nas glórias do antigo Império
Romano.

Unidade 3 123
Universidade do Sul de Santa Catarina

Na sequência, a autora apresenta características comuns a estes


dois regimes totalitários: o antiliberalismo, a colaboração de
classe, aliança com o capital industrial monopolista e financeiro,
nacionalismo, corporativismo, partido único que organiza
as massas, ideologia de classe média, imperialismo belicista,
educação moral e cívica, propaganda de massa, prática da censura
e da delação, racismo, estatismo. (CHAUÍ, 1996, p. 423-425).

Você deve ter notado que muitos destes aspectos são comuns a
regimes ditatoriais implantados na América Latina na segunda
metade do século passado. Depois Chauí passa a apresentar a
Revolução Russa e demonstra como o stalinismo se contrapôs às
teses de Marx e Engels.

É bom lembrar, como faz a autora, que o regime totalitário


stalinista só termina com o advento da chamada glasnost
(transparência), proposta nos anos 1980 por Gorbatchev.

Chauí demonstra, na sequência, como os Estados capitalistas


— após a Segunda Grande Guerra Mundial e o amainar
da chamada Guerra Fria — a partir da noção de Estado do
Bem-Estar social (Welfare State), com fortes investimentos na
economia, em benefícios sociais básicos — como educação, saúde,
previdências entre outros — tentam combater o comunismo ou a
possibilidade da retomada de regimes nazi-facistas, propagando
“tratar-se do combate entre a opressão e a liberdade, a ditadura e
a democracia.” (CHAUÍ, 1996, p. 430).

Para manter seus domínios — os dos capitalistas — na divisão


entre capitalistas e comunistas, basicamente entre domínio norte-
americano e soviético, instituições internacionais como o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) emprestam
dinheiro aos países de Terceiro Mundo, para que estes invistam
nas “melhorias sociais”. Isto pode parecer grandioso, entretanto,
as nações imperialistas não têm dúvidas em investir direta
ou indiretamente em golpes de Estado, ditaduras militares
e guerrilhas contrarrevolucionárias, quando seus interesses
internacionais são afetados. São conhecidos, até hoje, diversos
exemplos disto.

124
Filosofia Política II

Tal propagação, segundo Chauí, faz da democracia uma


ideologia. Veja na sequência as razões apontadas pela autora.

Liberalismo e Social-Democracia não tratam da mesma forma a


questão dos direitos, pois

[...] o primeiro limita os direitos à cidadania política da


classe dominante, o segundo amplia a cidadania política
e acolhe a ideia de direitos sociais —, no que tange à
democracia são semelhantes. Como a definem? Como
regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades
individuais. (CHAUÍ, 1996, p. 430).

Disto Chauí (1996, p. 430) retira um questionamento — que


você, também, pode ter feito —, a saber, o que significa isso?
Passa, então, a apresentar, enumerativamente, as explicações:

Ambos identificam liberdade e competição;

[...] identificam a lei com a potência judiciária para


limitar o poder político, defendendo a sociedade contra
a tirania, a lei garantindo os governos escolhidos pela
vontade da maioria;

A potência do judiciário e do executivo são assemelhadas


à ordem social. Tal entendimento faz com que a luta
de classes seja impedida ou com repressão, ou com o
atendimento de algumas demandas sociais;

Apesar de propagarem a democracia como um “valor” ou


um “bem”, na prática, a veem a partir da eficácia;

Reduzem, então, a democracia [...] a um regime político


eficaz, baseado na ideia de cidadania organizada em
partidos políticos e manifestando-se no processo eleitoral
de escolha dos representantes, na rotatividade dos
governantes e nas soluções técnicas (e não políticas) para
os problemas sociais.

Decorrência de tudo isto que foi apontado por Chauí é ver


a democracia nestes regimes — Liberal e Social-Democrata
— como formal, e não como uma democracia concreta.
Passa-se a visualizar o verdadeiro significado da democracia,
demonstrando-se que a eleição não é um mero processo de
escolha de um representante para o parlamento, mas

Unidade 3 125
Universidade do Sul de Santa Catarina

[...] que o poder não se identifica com os ocupantes do


governo, não lhes pertence, mas é sempre um lugar
vazio, que os cidadãos, periodicamente, preenchem
com um representante, podendo revogar seu mandato,
se não cumprir o que lhe foi delegado para representar.
(CHAUÍ, 1996, p. 431).

Neste sistema, ou melhor, em uma sociedade democrática,


alerta a autora, as noções de situação e oposição, maioria e
minoria revelam que a sociedade é dividida e que tais divisões
são legítimas e devem ser públicas. Assim, a democracia, por
dar legitimidade aos conflitos, permite que a própria sociedade
trabalhe este conflito.

As idéias de igualdade e liberdade como direitos civis


dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação
jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de
direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam
garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los. É
esse o cerne da democracia. (CHAUÍ, 1996, p. 431).

Partindo destas considerações, a autora estabelece,


exemplificando, diferenças entre direitos, necessidades
ou carências e interesses. O primeiro difere dos outros,
principalmente, por não ser “[...] particular e específico, mas
geral e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e
classes sociais.” (CHAUÍ, 1996, p. 431). Assim, uma sociedade
democrática, para a autora, não é apenas um sistema de governo
com eleições, partidos, divisão dos poderes republicanos, respeito
à vontade da maioria e da minoria, mas quando, além disto tudo,
também institui direitos.

Retomando as características da democracia em sua origem, ou


Ainda assim, o fato de serem seja, a democracia grega na Antiguidade, a autora apresenta uma
estipulados, formalmente, tais reflexão sobre as noções de igualdade e liberdade, demonstrando
direitos abre a possibilidade de os
movimentos sociais reivindicarem,
que, no processo de desenvolvimento da democracia, de suas
de fato, o cumprimento de tais origens aos dias atuais, igualdade e liberdade foram conquistadas
direitos. por outros segmentos da sociedade — outrora sem direitos à
cidadania — e como não basta apenas estabelecer formalmente
tais direitos, eles devem, de fato, ser cumpridos. Tais conquistas
foram resultados de lutas socialistas e populares ou, para usar um
termo mais recente, dos setores progressistas da sociedade.

126
Filosofia Política II

E continuam sendo motivo de embates, pois as desigualdades


sociais, políticas e econômicas, de fato, persistem.

A sociedade democrática institui direitos pela abertura


do campo social à criação de direitos reais, à ampliação
de direitos existentes e à criação de novos direitos. Com
isso, dois traços distinguem a democracia de todas as
outras formas sociais e políticas:
A democracia é a única sociedade e o único regime político
que considera o conflito legítimo. Não só trabalha
politicamente os conflitos de necessidade e de interesses
(disputas entre os partidos políticos e eleições de governantes
pertencentes a partidos opostos), mas procura instituí-los
como direitos e, como tais, exige que sejam reconhecidos e
respeitados. Mais do que isso. Na sociedade democrática,
indivíduos e grupos organizam-se em associações,
movimentos sociais e populares, classes se organizam em
sindicatos e partidos, criando um contra-poder social que,
direta ou indiretamente, limita o poder do Estado.
A democracia é a sociedade verdadeiramente histórica,
isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações
e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e
pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade
democrática não está fixada numa forma para sempre
determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões
e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade
objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria praxis.
(CHAUÍ, 1996, p. 433).

É clássica e já caiu no senso comum a definição de democracia


dada por Abraham Lincoln: “A democracia é o governo do povo,
pelo povo, para o povo”. Mas o povo pode ser uma categoria
muito vaga, e mais, o sistema capitalista estabelece uma série de
dificuldades à democracia, principalmente nos países periféricos.
E, hoje, mesmo em países avançados, certos direitos civis
conquistados à força de muita luta estão sendo rediscutidos. É o
caso, por exemplo, dos direitos trabalhista, da previdência, para
citar alguns que aparecem mais comumente na mídia.

Chauí alerta que o abandono das políticas sociais, pelas


privatizações, e o desenvolvimento acelerado de novas
tecnologias, vêm provocando outros tipos de desigualdades:

„„ alterações nos processos de trabalho, resultando em


desemprego em massa;

Unidade 3 127
Universidade do Sul de Santa Catarina

„„ grandes deslocamentos humanos à busca de melhores


condições de vida e de trabalho, que resultam, nos
países de capitalismo avançado, para onde, geralmente,
deslocam-se essas massas, no aumento do racismo, da
exclusão social política e cultural;

„„ os direitos econômicos e sociais, já conquistados, postos


em xeque; e

„„ a supressão do Estado de Bem-Estar Social por um


Estado Neoliberal, que privatiza os direitos sociais
conquistados.

Além disto, o direito à participação política, opina a autora,


também se encontra ameaçado, na medida em que essas novas
tecnologias forjam uma nova divisão de trabalho, alargada a vastos
setores, estabelecendo a separação entre dirigentes e executantes,
entre “competentes” e “incompetentes”. Os primeiros são
detentores de conhecimento científico e tecnológico; os segundos

[...] são aqueles que não possuem conhecimentos


tecnológicos e científicos, mas sabem apenas executar
tarefas, sem conhecer as razões e as finalidades de
sua ação. São por isso considerados incompetentes e
destinados a obedecer. (CHAUÍ, 1996, p. 434-435).

O maior perigo é quando isto se converte na ideologia da


competência tecno-científica, estabelecendo, na prática, uma
suposta naturalidade quanto ao poder de decisão para os
detentores destas competências.

Não só o direito à representação política (ser


representante) diminui porque se restringe aos
competentes, como ainda a ideologia da competência
oculta dissimula o fato de que, para ser “competente”, é
preciso ter recursos econômicos para estudar e adquirir
conhecimentos. Em outras palavras, os “competentes”
pertencem à classe economicamente dominante, que,
assim, dirige a política segundo seus interesses, e não
de acordo com a universalidade dos direitos. (CHAUÍ,
1996, p. 435).

128
Filosofia Política II

Outro obstáculo à democracia, apontado pela autora, está


relacionado à informação. Para tomarmos decisões com mais
consistência, precisamos ter acesso à informação. Aqui, os meios
de comunicação têm grande papel. Contudo, como você pode
constatar a vista grossa, no geral, nos meios de comunicação, são
utilizados como aparatos ideológicos, manipulando ou omitindo
informações.

Apesar de listar todos estes obstáculos à democracia, a autora


pondera que tais obstáculos não inviabilizam a sociedade
democrática, pois é nela que podemos percebê-los e lutar contra
eles.

Outros obstáculos que podemos acrescentar e são bem visíveis


em nosso país são a corrupção, o clientelismo e o autoritarismo
políticos, uma tendência a ver alguns políticos como “salvadores
da pátria”.

A imagem populista e messiânica dos governantes indica


que a concepção teocrática do poder não desapareceu:
ainda se acredita no governante como enviado das
divindades (o número de políticos ligados a astrólogos e
videntes fala por si mesmo) e que sua vontade tem força de
lei. As leis, porque exprimem os privilégios dos poderosos
ou a vontade pessoal dos governantes, não são vistas como
expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas
coletivas. O poder judiciário aparece como misterioso,
envolto num saber incompreensível e numa autoridade
quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade
seja, por um lado, incompreensível, e, por outro, ineficiente
(a impunidade não reina livre e solta?) e que a única
relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso
“jeitinho”). (CHAUÍ, 1996, p. 436).

Como você pode observar tanto a partir das ideias de Tocqueville


como das de Chauí, a democracia, ou melhor, a sociedade
democrática não é perfeita, mas algo que podemos alargar, a
partir de conquistas. Pensando a política como exercício da
liberdade, conforme Hannah Arendt (2007), e liberdade como a
invenção do possível e a democracia como a criação dos direitos,
é correto pensar, também, a sociedade democrática como aquela
que, ao debater seus conflitos de forma pública, possibilita a
construção do possível, ou seja, da liberdade.

Unidade 3 129
Universidade do Sul de Santa Catarina

Síntese

Nesta unidade, você passou, primeiro, por uma contextualização


histórica do pensamento de Tocqueville, partindo para uma
análise da democracia tomada por este pensador a partir da
democracia nas colônias anglo-americanas, ou seja, nas origens
da democracia norte-americana. Visto isto, ainda tomando
como pano de fundo o pensamento de Tocqueville, você passou
por reflexões em torno da igualdade, da liberdade e da virtude
cívica no regime democracia. Por fim, a partir de Marilena
Chauí, foram apontadas questões relacionadas à democracia
como regime social e os problemas enfrentados pela democracia,
hoje, face ao avanço do neoliberalismo e das novas conquistas
tecnológicas e do capitalismo mundial.

Tal percurso poderá alargar seus horizontes quanto ao debate


político, possibilitando um melhor entendimento de seu papel
como cidadão no processo de construção de uma democracia que
não seja meramente formal.

Atividades de autoavaliação

1) A atividade abaixo foi adaptada da Questão 9 [geral] do ENADE de


Filosofia 2008.

O caráter universalizante dos direitos do homem [...] não é


da ordem do saber teórico, mas do operatório ou prático:
eles são invocados para agir, desde o princípio, em qualquer
situação dada. (François JULIEN, filósofo e sociólogo.)

Neste ano [2008], em que são comemorados os 60 anos da Declaração


Universal dos Direitos Humanos, novas perspectivas e concepções
incorporam-se à agenda pública brasileira. Uma das novas perspectivas
em foco é a visão mais integrada dos direitos econômicos, sociais,
civis, políticos e, mais recentemente, ambientais, ou seja, trata-se da
integralidade ou indivisibilidade dos direitos humanos.

130
Filosofia Política II

Dentre as novas concepções de direitos, destacam-se:


„„ a habitação como moradia digna, e não apenas como necessidade
de abrigo e proteção;
„„ a segurança como bem-estar, e não apenas como necessidade de
vigilância e punição; e
„„ o trabalho como ação para a vida, e não apenas como necessidade
de emprego e renda.
Tendo em vista o exposto acima, selecione uma das concepções
destacadas e esclareça por que ela representa um avanço para o exercício
pleno da cidadania, na perspectiva da integralidade dos direitos humanos,
e relacione com a reflexão feita sobre democracia formal e democracia
concreta.

Unidade 3 131
Universidade do Sul de Santa Catarina

2) Tomando o que você estudou em toda esta Unidade 3, assinale V para


as afirmações verdadeiras e F para as falsas.
a. ( ) O pensamento de Tocqueville parte da análise dos fatores políticos
e econômicos geradores da Revolução Russa.
b. ( ) O associativismo é defendido por Tocqueville como forma de evitar
o risco da tirania da maioria.
c. ( ) Admirado com a igualdade social das colônias anglo-americanas
na América, Tocqueville toma partido dos ideais democráticos,
contrapondo-se ao peso aristocrático que tivera em sua formação.
d. ( ) A democracia deve ser entendida, simplesmente, como um
sistema de regras políticas as quais garantem os direitos sociais e
econômicos de seus membros, cabendo aos poderes executivo e
judiciário manter a ordem social.
e. ( ) A democracia aliada a um sistema escravocrata foi vista por
Tocqueville com bons olhos.

Saiba mais

Seria interessante que, a partir dos temas discutidos nesta


unidade, você se aprofundasse nos textos a seguir.

O utilitarismo
O utilitarismo como corrente de pensamento no
campo da ética e da fi­losofia política tem sua origem
principalmente nas idéias do pensador francês Claude-
Adrien Helvétius (1715-71) e do inglês Jeremy Bentham
(1748-1832), este influenciado por Helvétius. Esses
pensadores formularam o ‘princípio de utilidade’ como
critério do valor moral de um ato. De acordo com este
princípio universal, o bem seria aquilo que maximiza
o benefício e reduz a dor ou o sofrimento. Terão mais
valor de um ponto de vista ético, portanto, as ações
que beneficiarem o maior número de pessoas possível.
Trata-se de uma concepção que avalia o caráter ético
de uma atitude a partir do ponto de vista de suas
conseqüências ou resultados. Este princípio difun­
diu-se bastante no século XVIII, durante o Iluminismo,

132
Filosofia Política II

por ir ao encontro de um projeto de reforma social.


Constitui-se ao mesmo tempo em um princípio de
aplicação prática, inspirando inclusive a Revolução
Francesa (1789), que chegou a conceder a Bentham o
título de ‘cidadão honorário’. O útil (useful) é entendido
como aquilo que contribui para o bem-estar geral.
No entanto, o utilitarismo foi bastante criticado por
pensadores racionalistas, por exemplo, Kant, adversário
da ética das conseqüências.

O filósofo, pensador político e ativista liberal inglês John


Stuart Míll (1806-73) foi um dos maiores defensores do
utilitarismo no século XIX. Foi o primeiro a de fato usar
este termo, procurando argumentar contra seus críticos,
sobretudo em sua principal obra de ética, intitulada
precisamente Utilitarismo [Utilitarianism], de 1863.
Influenciado em sua educação pelas idéias de Helvétius
e Bentham, de quem era afilhado, Míll retoma-as e
de­senvolve-as em sua obra teórica e na militância liberal.

Nem sempre, contudo, os argumentos em defesa das


noções de prazer e felicidade ficam muito explícitos,
assim como não fica suficientemente claro como se dá a
passagem do prazer, ou da realização, individual para o
bem comum, o que tem suscitado um grande debate em
torno das idéias utilita­ristas até nossos dias.

Para Mill, o princípio da máxima felicidade é


universal, porém ele conside­rava que apenas a partir
de determinados contextos históricos é possível decidir
como aplicá-lo e definir que tipo de liberdade e direitos
devem ser defendidos. A autopreservação é igualmente
um princípio universal e por vezes surge o conflito sobre
como conciliar o bem comum e os interesses individuais.

A influência do utilitarismo no século XX foi grande,


permanecendo como uma das principais correntes
contemporâneas no campo da ética e tendo inspirado
concepções políticas como a de ‘bem-estar social’
e concei­tos como o de ‘maximização do benefício’.”
(MARCONDES, 2007, p. 127-128).

Unidade 3 133
Universidade do Sul de Santa Catarina

Um texto introdutório sobre Stuart Mil é o de Elizabeth


Balbachevsky, Stuart Mill: liberdade e representação, no livro
organizado por Weffort, Os clássicos da política (v. 2).

Tocqueville e a República
Publicado na Folha de São Paulo, terça-feira, 15 de novembro de 1977.

Alexis de Tocqueville (1805-1859), advogado e político


francês que foi aos EUA em missão oficial por nove
meses (1831-32), disso resultando uma monumental
investigação, “Democracias na América”, a mais profunda
avaliação do sistema democrático norte-americano
até hoje feita. O livro foi nos 20 anos seguintes um
autêntico “best-seller”. Influenciando profundamente
o pensamento político europeu. John Stuart Mills
considerou-o a melhor obra filosófica jamais escrita sobre
a democracia representativa. O texto [abaixo], pouco
conhecido, é o resumo de um discurso (com anotações
dos escribas) pronunciado por Tocqueville em janeiro de
1848 na Câmara dos Deputados francesa, às vésperas da
proclamação da Primeira República. Não é propriamente
um texto republicano, mas uma dramática descrição
da vida nacional francesa um mês antes dos tumultos
populares, que antecederam a República.

“Senhores, sinto temor pelo futuro. Doenças e medo


estão contaminando as mentes. Pela primeira vez, em 15
ou 16 anos, sinto sensação e consciência da instabilidade
e este é o sentimento da véspera da revolução. Atribuir,
como o fez recentemente o ministro das Finanças, a
raiz de nossos males a acidentes e circunstâncias, é
simplesmente transformar em causa os sintomas da
doença. Acredito piamente que nossa moléstia origina-se
em razões mais fundas do que nas ocorrências fortuitas
mencionadas pelo ministro.

E o que está acontecendo, na realidade, nestes dias


sombrios. Percebo que a compostura pública e o espírito
público estão num estado calamitoso. É minha opinião
que o governo contribui de forma decisiva para esta
perigosa situação. (aplausos)

134
Filosofia Política II

Senhores, quando olho para a classe que governa, a classe


que tem direitos políticos, e olho a classe dos governados e
percebo o que se passa em ambas, perturbo-me. Na classe
dominante vejo-a dominada exclusivamente pelos apetites
pessoais, ambições materiais e interesses particulares.
Meus caros colegas, aqui nesta casa nos últimos dez ou
quinze anos aumenta o número daqueles que já não votam
por razões políticas mas apenas guiados por seus interesses
individuais. E aqui representamos exatamente a classe
dirigente. Percebo igualmente a ascensão de uma nova
moralidade: aqueles que conservam seus direitos políticos
agem como se isto fosse um privilégio pessoal e não uma
obrigação pública, uma responsabilidade.

E o que acontece na esfera pública naturalmente acontece


na vida particular. Vejam esta onda de escândalos, de
crimes, ofensas, esta brutalidade generalizada que unifica
encarregados da ordem com os desordeiros. Quando isto
ocorre em tal escala, não é razão para se assustar? A vida
nacional reflete sempre a vida individual. A corrupção,
o vício e a falta de nobreza, que campeiam nas ruas e
nas casas, é a mesma que está instalada na corte e na
administração. (protestos da direita).

Não o digo como moralista, mas como político. Sabem


os senhores qual a causa verdadeira desta mudança nos
comportamentos individuais tornando-os corruptos?
É a corrupção nos comportamentos públicos. Se a
imoralidade domina as grandes ações, ela se projeta
igualmente nas pequenas ocorrências. Quando uma
nação consegue cunhar dois tipos de moralidade - a
moralidade pública e a moralidade privada – então a
moralidade desta nação periga.

Alguns clamam que não há perigo a vista; não há


sintomas de desordens nem revoltas. Enganam-se, o
espírito da revolta engajou-se profundamente no espírito
da nossa gente. Vejam o que acontece no meio da classe
operária. Sim, estão tranquilos, não estão dominados
por nenhuma febre política. Mas os senhores não

Unidade 3 135
Universidade do Sul de Santa Catarina

conseguem distinguir que agora as paixões políticas


transformaram-se em agudos problemas sociais? Não
percebem os senhores que agora entre o povo não mais se
discute se deve-se ou não abandonar tal ou qual lei, esta
ou aquela administração? Agora, fala-se que todos os que
estão no poder são incompetentes e indignos de confiança.
Agora, não se fala mais em política mas na propriedade.
E quando este estado de espírito se aprofunda nas massas,
cedo ou tarde geram-se perigosas revoluções. Estamos
senhores, à beira de um vulcão. (protestos, várias reações)

O governo veio aos poucos nos últimos anos readquirindo


todo o poder absolutista, exercendo todas as prerrogativas,
insinuando-se em todas as frestas enquanto vão
minguando mais e mais os princípios da liberdade e os
direitos individuais. Não será isto a causa do descrédito,
do desinteresse, da desesperança e do desânimo?

Falo sem amargura e sem interesse partidário. Se, por


ventura, me indigno, faço-o sem rancor. Preocupa-me o
futuro. A vida dos monarcas estará atada por fios mais
fortes do que as vidas dos demais homens? E até quando?

Fala-se em reformas. Estou inclinando a acreditar que


estas reformas legislativas não são apenas úteis mas
necessárias. Mas eu não sou tão louco a pensar que a
mera troca de leis reforme um país. Não é o mecanismo
das leis que decide os destinos do mundo. O que decide
acontecimentos, senhores, é o espírito do governo.
Mantenham suas leis, se não querem aceitar as reformas
propostas, fiquem no poder, se não querem uma renovação
de homens, mas pelo amor de Deus, mudem o espírito do
governo”. (fortes aplausos)
Fonte: Tocqueville... (1997).

136
Filosofia Política II

Introdução à democracia
Publicado na Folha da Manhã, terça-feira, 18 de setembro de 1951.
Sérgio Buarque de Holanda

Por circunstâncias puramente fortuitas, tive ocasião, em


maio de 1949, de fazer parte de um comitê internacional
convocado para exame, esclarecimento e síntese dos
diferentes significados atribuídos à palavra “democracia”.
A reunião efetuou-se em Paris e representou a segunda
etapa de um amplo inquérito promovido pela UNESCO
entre especialistas do mundo inteiro.

A primeira etapa tinha sido constituída de um


questionário largamente distribuído, cujas respostas
deveriam fornecer a maior variedade possível de pontos
de vista acerca de um conceito de natureza variável
e capaz de assumir aspectos diversos ou mesmo
contrastantes. Foi sobre essas respostas que tiveram de
trabalhar os oito componentes de nosso comitê.

Entre os inúmeros textos que deveriam formar a base


dos debates apareceu um único autor brasileiro: o
mesmo que, com o título de “Por Uma Definição da
Democracia”, forma o núcleo do livro publicado agora
pelo Sr. Wilson Martins, de Curitiba: “Introdução à
Democracia Brasileira” (Editora Globo, Porto Alegre,
1951). Ninguém mais no Brasil (e muito poucos, em
verdade, no restante desta América chamada latina
– creio que somente o historiador mexicano Silvio
Zavala e o filosofo argentino Francisco Romero) se
dignou atender aos apelos formulados pela direção da
UNESCO.

Por mais de um motivo, e, sobretudo, em face desse


abstencionismo generalizado entre nossos estudiosos,
abstencionismo que vi reiterar-se alguns meses mais
tarde, quando me foi dado participar de outras duas
reuniões de natureza semelhante, o texto do sr. Wilson
Martins adquire um relevo singular.

Unidade 3 137
Universidade do Sul de Santa Catarina

Contudo, o significado especial desta contribuição não


me parece que resida no fato de se tratar de opinião
brasileira, capaz de espelhar convicções correntes
entre nós, porventura mais correntes do que em outros
países. A verdade é que, mesmo no Brasil, as definições
unicamente políticas de democracia já passaram um
pouco de moda ou, ao menos, já não se fazem escutar
com demasiada freqüência. E na definição que nos
encaminhara o escritor paranaense é a inflexão política,
no sentido mais estrito, o que domina sem contraste.

A primeira pergunta, e fundamental, no questionário,


refere-se à ambiguidade que entraria aparentemente
no termo “democracia”. É licito admitir que exista
efetivamente semelhante ambiguidade? Depois desse,
outro problema de ordem geral se apresentava: o que se
refere às relações entre a democracia de “forma”, conceito
exclusivamente político, e democracia “real”, conceito
social e político “latu sensu”.

Este último, que ocupou largamente a atenção da


maioria dos especialistas consultados, parece ao sr.
Wilson Martins o efeito de uma falsa colocação do
problema político. Partindo dessa distinção, o autor
passa a examinar, em outros estudos do volume, que
não faziam parte do trabalho mandado à UNESCO, as
aplicações de seu ponto de vista ao Brasil, acreditando
poder contribuir, assim, para a instauração entre nós
de um verdadeiro regime democrático. E, finalmente
apresenta-nos, a título de curiosidade, o esboço do que
seria uma constituição de onde tivesse sido eliminado
tudo quanto não é matéria propriamente constitucional,
mas onde se garantisse ao mesmo tempo a centralização
política e a descentralização administrativa.

Não tratarei destas últimas partes, que nos levariam


muito além do que o permitem as dimensões normais
de uma simples crônica. Só a primeira, aliás, que se
relaciona com a delimitação e, por conseguinte, com
o maior esclarecimento do conceito de democracia, já
oferece matéria para extenso comentário.

138
Filosofia Política II

Confesso, antes de tudo, que não consigo ver tão


nitidamente quanto o sr. Wilson Martins a linha de
separação que existiria entre a democracia como filosofia
de vida e como sistema político. Parece-me, ao contrário,
que os sistemas políticos, queiram ou não, nos remetem
inevitavelmente a alguma concepção do mundo ou, nas
palavras do autor, a uma filosofia de vida. Mas não é
preciso certamente que esta se distinga pelo seu caráter
rigorosamente sistemático e perfeitamente coerente. Da
própria noção moderna de democracia, que deita raízes
nas especulações próprias da “Era das Luzes”, cabe
dizer que se mostrou capaz de sobreviver à filosofia dos
“filósofos” setecentistas.

Tentando ignorar essa espécie de condicionamento


da democracia estritamente política, o sr. Wilson
Martins foi levado, em seu ensaio, a pôr de parte todos
os aspectos que considera puramente técnicos e mais
administrativos do que políticos.

É característico que, ao discutir a famosa declaração


de Lincoln em Gettysburg (“Governo do povo, pelo
povo, para o povo”), ele só vê nela, coerente com seu
ponto de vista, duas proposições essenciais ao regime
democrático. A democracia será, nesse caso, um
governo do povo pelo povo,

mas não possui o privilegio de ser um governo


para o povo, se a preposição para indica o valor
de decisões tomadas para o bem-estar geral
da coletividade. Porque tais decisões tomadas
não são caráter político, mas de natureza
administrativa, não são de ordem doutrinária,
mas de ordem técnica.

Ora, a preposição para não é essencial apenas à noção de


democracia; em verdade nenhum governo digno desse
nome pode existir ou substituir sem que inclua entre suas
atribuições essenciais a de promover o bem público. Isso

Unidade 3 139
Universidade do Sul de Santa Catarina

mesmo exprimiu admiravelmente o professor Richard


McKeon, relator de nosso comitê, sobretudo onde
respondeu a certas interpretações de Bertrand Russel.

Os anglo-saxões” – dissera o filosofo britânico


– “definem democracia como o reinado da
maioria; os russos definem-na como o interesse
da maioria, interesse este determinado

conforme a filosofia política marxista”. Há aqui uma


tentativa de separação entre governo pelo povo e governo
do povo. A diferença entre as concepções “ocidental”
e soviética há de ser procurada, notou-o McKeon, nas
diferenças de interpretação do pelo e do para, não apenas
na ênfase relativa atribuída a um ou outro. Aliás o
próprio Lenin reconhecera que o estabelecimento, por
conseguinte o desaparecimento, da democracia depende
do governo pelo povo.

É curioso notar que, em sua bela contribuição, o


colaborador brasileiro no inquérito não deixa de
reconhecer, e reconhece-o expressamente, na página
27 deste seu livro, que “todos os sistemas de governo
existem para o povo”. Todos, por conseguinte também
os sistemas democráticos. Mas logo a seguir pergunta:
“Como, pois, distinguir a democracia pelo mesmo
caráter que distingue também os sistemas totalitários?”
Raciocínio muito semelhante, creio eu, ao de quem,
tendo afirmado que vermelho é uma cor se sinta
obrigado a negar que o azul também o seja. Pois como
podem duas coisas tão claramente diversas apresentar
entre si qualquer traço comum?

O engano do Sr. Wilson Martins neste passo consiste


em que amarrou fortemente a ideia do governo para o
povo às teorias modernas de planificação econômica ou,
ainda mais, às apologias do Estado onipotente, e não
conseguiu desatá-las no curso da sua argumentação. A
tanto levou-o o justo afã de encontrar uma salvaguarda
contra os efeitos catastróficos daquelas apologias. Poderia

140
Filosofia Política II

evitar, no entanto, a generalização se considerasse que


a proposição “governo para o povo” é inseparável do
resto da fórmula de Gettysberg. Os governos feitos
apenas para o povo, erigidos em juízes exclusivamente
– se assim se pode dizer – à custa de mecanismos
de propaganda tão poderosos que abafam toda voz
contrastante e, ao cabo, só deixam ouvir a ressonância
de sua mesma linguagem. Não é outra coisa, aliás, o que
fazem os regimes totalitários, ainda quando pretendem o
contrário.
Fonte: Holanda (1951)

Além dos textos vistos anteriormente você pode consultar os


seguintes livros:

BALBACHEVSKY, Elizabeth. Stuart Mill: liberdade e


representação. In: WEFFORT, Francisco F. C. /(org.) Os
Clássicos da Política (vol. 2). 10. ed. 8. reimp. São Paulo:
Ática, 2004.

BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G.


Dicionário de política. 4. v. 2. ed. Brasília: Editora UnB,
1992.

CHÂTELET, François; DUHAMEL, Olivier; PISIER-


KOUCHNER, Evelyne. História das idéias políticas. Trad.
Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

FILHO, Francisco Bilac M. P. Aléxis de Tocqueville: um


enfoque histórico. In: FILHO, Agassiz A; BARROS,
Vinícios S. C. Novo manual de ciência política. Malheiros:
São Paulo, 2008.

JASMIN, M. G. Aléxis de Tocqueville: a historiografia


como ciência da política. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG,
2005.

Unidade 3 141
Universidade do Sul de Santa Catarina

MENDES, Valdenésio A. O despotismo democrático e a


redução do homem em Tocqueville. Revista EmTese, vol. 4
n. 1 (1), ago./dez./2007, p. 137.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Do espírito das


leis. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

NAY, Olivier. História das idéias políticas. Rio de Janeiro:


Vozes, 2007.

QUIRINO, C. G. Tocqueville: sobre a liberdade e a


igualdade. In: WEFFORT, Francisco F. C. (org.) Os
Clássicos da Política (vol. 2). 10. ed. 8. reimp. São Paulo:
Ática, 2004.

142
4
UNIDADE 4

Aspectos da política em Hannah


Arendt e Michel Foucault
Carlos Euclides Marques
Daniel Swoboda Murialdo
Leandro Kingeski Pacheco

Objetivos de aprendizagem
„„ Refletir sobre as noções de política e poder em Hannah
Arendt e Michel Foucault e analisá-las.
„„ Apresentar algumas das teses centrais de Arendt e
Foucault no debate sobre a Filosofia Política.
„„ Estabelecer relações entre o pensamento político de
Arendt e Foucault.
„„ Subsidiar conceitualmente alguns aspectos da ação
política atualmente.

Seções de estudo
Seção 1 Hannah Arendt: a política como liberdade

Seção 2 A caracterização da pesquisa foucaultiana


quanto à temática do poder: aspectos iniciais
Seção 3 Possibilidades de inviabilizar a tese do
economismo e a política com guerra
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Nesta unidade você estudará com detalhes as teses de Hannah
Arendt e Michel Foucault. Verá como a politóloga — Arendt
não gostava de ser chamada de filósofa — retoma aspectos da
tradição antiga, entendendo a política não somente como algo
que é feito pelos políticos profissionais, mas que política é ação.
Com Arendt, também, você refletirá sobre as noções de poder,
autoridade, violência, força e autoridade. Já, com Foucault,
refletirá sobre a tese de que a política é outra forma de fazer a
guerra. Notará a influência do método genealógico nietzschiano
e de sua concepção da vida como um eterno retorno do mesmo
e a reinterpretação da noção heraclitiana da guerra dos contrários
como o motor de tudo.

Nesta caminhada, você notará como estes autores têm posições


críticas em relação a algumas correntes políticas apresentadas nas
unidades anteriores: embora reconheçam alguns avanços em um
ou outro aspecto dos defendidos pelas correntes anteriores, não
concordam com outros tantos, como você perceberá.

Por fim, você poderá comparar as posições de Arendt e Foucault


e ver que ambos, apesar das diferenças, têm algo em comum: ver
a política com ação, embate.

Então, vamos continuar?

Seção 1 - Hannah Arendt: a política como liberdade


Compreender o pensamento político de Hannah Arendt requer
que retomemos uma discussão que está na origem da reflexão
e da prática política grega: retomando a polis (Cidade-Estado).
Trata-se aí de uma prática próxima do que hoje chamamos
cidadania e que, em certa medida, afasta-se da relação
comumente aceita entre política e governo dos homens. Boa parte

144
Filosofia Política II

das reflexões de Hannah Arendt sobre a política construiu-se


sobre o nascimento do totalitarismo e as consequências deste
sistema na compreensão do que seria a política.

Em seu estudo sobre o nascimento do sistema totalitário, mais


exatamente o Nazismo e o totalitarismo soviético, Arendt
apresenta como as relações entre o Estado, o poder e a violência
aproximaram-se, a ponto de, ainda hoje, olharmos para a política
com um preconceito que nos leva na direção do que ela chama
o apolítico: a completa falta de participação do homem na
construção de seu próprio futuro, na tomada de decisão referente
à sua existência, no exercício do possível e da liberdade.

Nesta unidade, inicialmente, você será conduzido(a) a uma rápida


reflexão sobre a origem deste preconceito contra a política, as
relações que foram estabelecidas entre política e poder na nossa
história recente e que possibilitaram uma leitura do conceito tão
afastada de sua prática original e do ideal de política que esta
autora defende. Para isso, tentar-se-á mostrar quais as causas
que, em determinada época, marcaram a prática política que
acabou nos levando ao afastamento desta mesma coisa política
— parodiando a noção romana de res publica, ou seja, a visão do
exercício político como da ordem pública, como um bem comum
e não como uma res privata, uma coisa privada. Voltando ao
sistema totalitário mencionado acima, ele foi o ponto máximo e a
ruptura com uma tendência que se arrastava desde os primórdios
da criação dos Impérios expansionistas no início do século XIX.

De acordo com Arendt (1989), em seu livro Origens do


Totalitarismo, o início dos Impérios expansionistas, no fim do
século XIX, marca o fim do Estado como instituição constituída
pela participação pública, pelo sistema republicano, tal como
visto nas Revoluções Americana e Francesa no século XVIII. É
o momento em que o ideal econômico se apodera das estruturas
de poder e acontece o que a autora chama “expansão por amor
à expansão” (ibid., p. 156), em que a busca por mercado e
o crescimento da produção industrial são o alvo das nações
sustentadas pelos expansionistas. Neste momento, o aparato
estatal de controle e coerção é exigido para garantir a exploração
destas terras colonizadas, pois a única garantia de que o capital
poderia agir livremente e independente das leis era através da
força. É início de um movimento em que a política externa e

Unidade 4 145
Universidade do Sul de Santa Catarina

a violência casam-se e a violência torna-se a “essência de toda


estrutura política” (ibid., p. 167). A defesa da política como
luta pelo poder e o poder como coerção pelo uso da violência
tornaram-se, ao longo do século XIX e XX, a ideologia corrente.
E, com ela, tudo o que girava em torno da política começou a ser
entendido em termos de violência. Este processo se acentua no
século XX, com a chamada crise da autoridade, quando os velhos
pilares que sustentavam a sociedade e a política são, por fim,
esvaziados, dando lugar à dúvida e incerteza.

No campo político, aponta Arendt, acontece da mesma forma, a


perda da autoridade do governo e a desconfiança com os velhos
sistemas políticos dariam lugar a qualquer forma de experiência
política. É aqui que o totalitarismo se instaura. Da dúvida quanto
ao regime a se seguir, estabelece-se uma nova forma de poder,
que, pela sua novidade, não tinha a menor previsibilidade. A
esfera política nos termos de comando e obediência, tradição
advinda das teorias políticas de Platão e Aristóteles, alcança seu
ponto máximo.

O poder é tratado como força, pois é garantia de


obediência. E a força se faz pelos meios da violência.
Nesta medida, autoridade vira autoritarismo, mantido
pelos aparatos de violência, como tão bem demonstra
a autora, em Sobre a violência (1994), particularmente
no segundo capítulo.

Os resultados, todos conhecemos: campos de concentração,


extermínio em massa e a concretização da violência como um
fim em si mesma. É interessante notar que o uso da violência foi
sempre um expediente do Estado, porém como ferramenta para
alcançar um objetivo para além dela. O totalitarismo alimentou a
violência ao ponto de ser ultrapassado por ela, e quase se tornar o
fim último do Estado, alerta Arendt em vários de seus textos.

Foi a instauração de um regime de terror, em que cada aspecto da


vida, do doméstico ao público, do particular ao privado, passa a
ser controlado pela máquina do sistema. É a influência da polícia
no controle da informação, da intelectualidade, enfim, de todas
as atividades humanas. E o fim de toda e qualquer liberdade.
Este último aspecto é considerado por Arendt como o mais
importante, pois diferente de outros regimes de controle.

146
Filosofia Política II

A fascinação pela morte que o totalitarismo alimentou


ameaçou até mesmo a permanência do homem no
mundo. A negação da liberdade que este regime
estabeleceu chegou ao ponto de ver, no nascimento,
a possibilidade do novo, um entrave para seu
movimento. Ora, negar o nascimento é negar a
continuidade da espécie. É neste sentido que Arendt
vai apontar o totalitarismo como um regime ditado
pela morte. Em nome do controle, adotou-se a morte.

Fica fácil entender, com o que se viu aqui, o porquê do contra


a política: o modo como foi entendida e praticada nos regimes
totalitários, mas também durante a guerra fria, quando,
ao simples apertar de um botão, toda a vida no planeta se
extinguiria; casos de genocídio em guerras recentes nos Bálcãs
e países da África; e, hoje, as relações entre os Estados Unidos
e seus inimigos nos mostram a vida colocada em jogo e como
o perigo ainda está vivo. Dados da Universidade de Uppsala
mostram como os conflitos armados em diversos estados ao
redor do mundo confirmam, em certo sentido, a “previsão” de
Hobsbawm (2007, p. 35) de que “a perspectiva de um século de
paz é remota”.

Este intrincado modo de pensar os conceitos de poder, força


e violência é analisado pela filósofa para mostrar que uma
perspectiva diferente do que é política, que não assimila violência
e poder, é possível. Esta nova perspectiva segue uma tradição que
remonta à prática política grega e romana.

Segundo a autora, então, o conceito de poder é definido pela


quantidade, “habilidade humana para agir em concerto”
(ARENDT, 1994, p. 36). É uma qualidade característica do
grupo, e nunca pode ser dito como pertencente a alguém, sendo
a sua própria existência dependente da existência do grupo.
Assim, um homem só não tem poder sobre um grupo de homens,
o que acontece é que este mesmo grupo pode abrir mão de seu
poder e agir de acordo com a vontade do solitário. Já, o vigor
é, sim, uma qualidade individual, dependente do caráter de seu
portador, e, não raras vezes, está em desacordo com o poder
do grupo, dada a natureza do grupo de se colocar contra a
individualidade. A força, palavra fácil quando se fala de política,
é usada frequentemente como sinônimo de violência, quando

Unidade 4 147
Universidade do Sul de Santa Catarina

deveria ser utilizada com relação às forças da natureza ou força


das circunstâncias. A autoridade, o termo mais equivocado de
acordo com a filósofa, “é uma qualidade que pode ser investida
em pessoas” (ARENDT, 1994, p. 37), como quando dizemos a
autoridade dos pais, do professor etc. Sua característica principal
é o fato de ser “reconhecida de modo inquestionável, sem o
auxílio da força ou da persuasão” (ibid., op. cit.). Ao dizer que
reconheço a autoridade de meu professor, não sou forçado a
obedecer-lhe por meios externos ao próprio reconhecimento de
sua autoridade. Jaz aqui a grande diferença entre a autoridade,
força e violência. Onde há violência, a autoridade não se faz mais
presente. Do mesmo modo, com o uso da força. Um homem, ao
usar a força para que seja obedecido, o faz por não ter mais sua
autoridade reconhecida. Por fim, a violência, para a politóloga,
é instrumental, ou seja, trata-se de uma técnica cujo objetivo
é implementar o vigor natural, torná-lo maior, até o ponto de
substituí-lo.

Para Arendt, equalizar violência e poder só é possível a partir


da perspectiva de governo como mando e obediência. Porém, a
política não é necessariamente governo. Trata-se, antes, de uma
ação que tem um caráter público, de grupo. Arendt busca no
modelo político da polis grega a manifestação que considera mais
originária do que entende como política. O espaço de onde brota
o poder na polis é o espaço público onde os homens em conjunto
decidiam pelo destino de sua cidade ou, como dirá Arendt,
discursavam e agiam. “Ao mesmo tempo, a mais importante
atividade para o ser-livre desloca-se do agir para o falar, da ação
livre para a palavra livre.” (ARENDT, 2007, p. 56).

A raiz da palavra política é a multiplicidade, pollói,


que quer dizer muitos, em grego. Política só pode
existir, portanto, com muitos. A partir desta leitura,
o conceito de poder, tal como Arendt defende,
emana do povo, da conjunção das forças dos vários
elementos envolvidos em uma ação, enfim, da
comunidade. Este poder somado emana a autoridade
necessária para que aqueles que dele participam
reconheçam a validade de uma lei, por exemplo.

148
Filosofia Política II

A lei imposta pelo povo faz-se sobre ele mesmo. Neste sentido, não
há mando ou obediência, porque não há quem mande ou obedeça.
É como se todos mandassem e obedecessem, e a relação estabelecida
é uma relação entre iguais. Eis outro aspecto da política, para a
politóloga, de caráter negativo: não dominar e não ser escravo.

[...] se quiserem entender a coisa política no sentido da


categoria meio-ob­jetivo, ela era, tanto na acepção grega
como na acepção de Aristóteles, antes de mais nada,
um objetivo e não um meio. E o objetivo não era pura
e simplesmente a liberdade tal como ela se realizava na
polis, mas sim a libertação pré-po­l ítica para a liberdade
na polis. O sentido da coisa política aqui, mas não
seu objetivo, é os homens terem relações entre si em
liberdade, para além da força, da coação e do domínio.
Iguais com iguais que, só em caso de necessidade, ou
seja, em tempos de guerra, davam ordens e obedeciam
uns aos outros; porém, exceto isso, regulamentavam
todos os assuntos por meio da conversa mútua e do
convencimento recíproco.
A coisa política entendida nesse sentido grego está, por­
tanto, centrada em torno da liberdade, sendo liberdade
en­tendida negativamente como o não-ser-dominado e
não-­dominar, e, positivamente, como um espaço que só
pode ser produzido por muitos, onde cada qual se move
entre iguais. (ARENDT, 2007, p. 48).

Desta forma, um modelo político fundado sobre a violência


é, no fundo, não político, dado que nem a autoridade nem
a participação popular cabem aí. Um poder concentrado e
emanando de um homem só não é poder, dado que não tem sua
autoridade reconhecida e só será obedecido pela coerção apoiada
pela violência. A partir da leitura das obras arendtianas O que é
política? (2007) e Sobre a violência (1994), você perceberá que
o contrário da política é a inação, e mais, que o regime totalitário
produziu tal inação, retirando do ser humano sua liberdade, ou
seja, sua capacidade de produzir o possível, o por vir, próprio do
exercício político. Como já foi apontado, para Arendt, a política é
o próprio exercício da liberdade.

A prática política grega fez-se sobre a liberdade e para a liberdade.


Um homem, para poder participar, fazer parte da polis, deveria
estar liberto das relações de coerção e obediência: “ele não devia
estar subordinado como escravo à coação de um outro, nem como

Unidade 4 149
Universidade do Sul de Santa Catarina

trabalhador à necessidade do ganha-pão diário.” (ARENDT, 2007,


p. 47). Esta liberdade era a condição para a política, uma condição
pré-política, aponta Arendt, segundo a qual as relações entre os
homens se estabelecessem para além da força e do domínio. É a
condição também para que houvesse a tão declarada igualdade, a
isonomia, o direito igual para todos de participarem da política.
Obviamente, guardadas as proporções, como você deve saber
dos estudos de História da Filosofia I ou de outra leitura sobre
as origens da democracia e suas características na Grécia Antiga,
poucos tinham este direito o qual só podia ser garantido pelo
escravagismo. Ou se era cidadão livre ou escravo na polis.

Não é motivo para desesperar o fato admitido


pela própria autora de que, poucas vezes na nossa
história, esta prática se repetiu. Arendt não era uma
pessimista com respeito à política. Pelo contrário,
via nas manifestações contrárias à política o gérmen
de movimentos autoritários. Os desmandos a que
assistimos, hoje, por parte de nossos representantes
são, em grande medida, culpa de nossa falta de
participação, de mobilização, se você preferir. Porém,
a democracia no Brasil atual aproxima-se de uma
participação política popular, quando, por meio de
centros comunitários e outros órgãos, aproximamo-
nos da responsabilidade pela construção de nossa
legislação e sociedade, muito embora estejamos longe
de alcançar e cimentar aquele ideal de isonomia.

Há, para a autora, um preconceito em relação à política, na


medida em que a reduzimos às práticas dos profissionais da
política. Assim, quando dizemos que não gostamos de política
ou que a política é algo que não presta, estamos, salienta a autora,
nos equivocando, pois tal entendimento produz exatamente um
não exercício da política, por parte de nós.

Reflita bem: se concordamos com a posição da


autora, de que a política é o exercício da liberdade,
da construção do possível, ou a consideramos algo
ruim e não “damos bola” para o fazer político, estamos
equivocados e, no fundo, acabamos contribuindo para
que outros façam aquilo que não queremos, ou seja,
que os políticos profissionais exerçam suas obrigações
da forma que queiram.

150
Filosofia Política II

Arendt também é pioneira ao tomar como pano de fundo de


suas análises políticas movimentos sociais pouco estudados até a
primeira metade do século XX, como o movimento estudantil,
o de emancipação feminina e dos afrodescendentes. No geral,
visualizando-os com bons olhos, ou seja, positivamente.

Seção 2 - A caracterização da pesquisa foucaultiana


quanto à temática do poder: aspectos iniciais
O que é poder político? O poder é um bem ou é um exercício? O
poder deve ser pensado em termos de fundamentação absoluta ou
em termos de relação?

Essas perguntas abrangem o âmbito da filosofia política, que,


por sua vez, guarda respostas diversas. Eminentes pensadores
desenvolveram reflexões acerca do tema poder ou de temas
conexos, de tal maneira que revolucionaram nossa maneira de
encarar a política. Foucault é um desses pensadores que, ao
pensar a política, o fez de modo inusitado. Este inusitado não
se deu somente ao criticar concepções tradicionais de pensar o
poder em termos de bem ou de direito, mas, substancialmente,
no denunciar o caráter insustentável de qualquer fundamentação
de poder absoluta, e por não se ter pensado em toda amplitude
a inter-relação entre poder e saber. Nesta Unidade 4, ao
caracterizar o modo de Foucault pensar poder, você deve ter
em consideração que a inter-relação entre saber e poder pode
não estar explícita, mas está implícita e norteia cada um de seus
argumentos.

O foco central desta unidade será apresentar brevemente a tese


de Foucault “a política é a guerra continuada por outros meios”,
em função da aula de 7 de janeiro de 1976, contida no livro Em
defesa da sociedade (1999). Para alcançar isto, agregam-se duas
temáticas específicas:

„„ caracterizar o modo de Foucault pesquisar; e

„„ aprofundar o sentido das referências a Reich e a


Nietzsche.

Unidade 4 151
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para tanto, partiremos de teses implícitas no próprio texto


de Foucault. Estas teses implícitas subsidiam e sustentam a
conclusão “a política é a guerra continuada por outros meios”
(1999). Estas teses implícitas são as seguintes:

„„ há na indagação “o que é o poder?” um modo pré-


concebido de pensar o poder o qual deve ser alterado; e

„„ a pesquisa de Foucault caracteriza-se pela influência


de dois fenômenos, tanto pela eficácia das ofensivas
dispersas e descontínuas, quanto pelas reviravoltas do
saber: o fenômeno da eficácia das ofensivas dispersas e
descontínuas caracteriza-se por desenvolver uma crítica
de caráter local; e o fenômeno das reviravoltas de saber
caracteriza-se pela revolta dos saberes sujeitados.

Os saberes sujeitados distinguem-se em dois tipos, seja como


saberes históricos sepultados e seja como saberes desqualificados.
Os saberes históricos sepultados assim o são em função de
uma separação instituída por organizações sistemáticas e por
ordenações funcionais; os saberes desqualificados assim o são
em função de uma perspectiva científica absoluta; apresenta-se
a genealogia como método capaz de resgatar a memória dos
combates, através do acoplamento dos saberes sepultados e dos
saberes desqualificados.

O método genealógico representa uma virada metodológica


contra o caráter centralizador, totalitário, inibidor, do discurso
científico; o fazer genealógico permite perceber que o discurso
sobre o poder está sustentado, modernamente, por um caráter
inibidor, reducionista, de economismo na teoria do poder, tanto
a partir de concepções de poder jurídica e liberal quanto da
concepção de poder marxista.

A tese do economismo, seja a partir da subordinação funcional ou


da isomorfia formal, é uma perspectiva reduzida de caracterizar
o poder; é possível inviabilizar a tese do economismo a partir da
hipótese do poder como repressão e da hipótese do poder como
guerra; a hipótese da repressão torna-se mais clara ao aprofundar
a referência a Reich; a hipótese da guerra torna-se mais clara ao
aprofundar a referência a Nietzsche; a partir da hipótese de Reich
e da hipótese de Nietzsche propõe-se a tese “a política é a guerra

152
Filosofia Política II

continuada por outros meios”. Se este apanhado geral lhe parece,


a partir de certo momento, meio complicado, não se preocupe: no
correr do texto, tais perspectivas serão clareadas. Então, avante!

Saliente-se que há na indagação “o que é o poder?” um modo pré-


concebido de pensar o poder o qual deve ser alterado. Foucault não
propõe a tese “a política é a guerra continuada por outros meios”
sem antes criticar a concepção do economismo na análise de poder.

A crítica ao economismo surge concomitante à indagação acerca


do sentido de poder. A indagação não se limita à pergunta
sobre “o que é o poder?” (FOUCAULT, 1999, p. 19), pois
Foucault pensa que esta pergunta já se encontra carregada
de posicionamentos, de pré-concepções relativas a um modo
de saber. Assim, inviabiliza-se esta pergunta como parte de
uma estratégia para modificar o caráter absoluto da pergunta,
tradicionalmente legitimado; ao mesmo tempo em que se propõe
um foco estrutural, outra concepção de pesquisa, que viabilize
pensar o poder em suas relações, em seus mecanismos, efeitos,
em diferentes níveis, campos e extensões.

Indicando algo que você verá mais à frente, é esclarecedora esta


passagem do escrito “Os dispositivos de poder e o corpo” em
Vigiar e punir, de Saly da Silva Wellausen (2006, p. 3):

O estilo foucaultiano recusa o conceito clássico de poder


centralizador e localizado no Estado. O seu modo
inverso de pensar, ao demolir o conceito e as formas
tradicionais do poder, gera efeitos de opinião, levando
muitos comentadores a pensarem num anarquismo. A
espacialização institucional vai produzir os personagens;
os dispositivos sociais são os lugares do poder, no interior
dos quais os sujeitos se tornam visíveis, como o negativo
da ordem. A “História da loucura” e “O nascimento da
clínica” analisam, em diferentes épocas, os dispositivos do
poder produtores do sujeito ocidental, como o OUTRO -
o louco, o doente.
O poder não possui uma essência determinada, mas
pode ser definido como “constelação”. Rudimentos de
uma política podem ser encontrados, quando surge a
preocupação em indicar as máquinas de poderes, sua
produção e os lugares onde se sente sua luz. Um dos
alvos de Foucault é o pensamento marxista, cuja ideia de
poder está ligada à de centralização do poder nas mãos

Unidade 4 153
Universidade do Sul de Santa Catarina

da classe dominante. Como forma diferente de pensar o


poder, Foucault o define como dispersão, localização em
lugares particulares — o asilo e a prisão. Existem saídas
de poder que circulam no interior da sociedade, lugares,
máquinas produtoras de sujeitos, uma vez que o poder
está em todo lugar e em todas as coisas.

Tenha em mente que a pesquisa de Foucault caracteriza-se pela


influência de dois fenômenos, tanto pela eficácia das ofensivas
Os temas referem-se a conversas
sobre a História, seja da Psiquiatria,
dispersas e descontínuas, quanto pelas reviravoltas do saber.
da Sofística, da Inquisição, da Foucault propõe uma pesquisa alternativa sem um campo pré-
Sexualidade, a localização da determinado, sem direção pré-determinada.
gênese de uma teoria, etc.
Em termos gerais, pesquisar-se-iam temas próximos sem a
necessidade de formar um conjunto coerente ou contínuo, o que
resulta delinear uma perspectiva fragmentária, descontínua,
dispersa e repetitiva. Admite-se que este caráter da pesquisa é
influenciado por algumas linhas de pesquisa contemporâneas,
que possuem em comum dois fenômenos singulares: a eficácia de
Foucault cita explicitamente a
análise existencial, referências
ofensivas dispersas e descontínuas e as reviravoltas de saber.
ao marxismo atual, a Reich, a
Marcuse, ao anarquismo, a Deleuze Como você verá mais à frente, estas linhas de pesquisa
e Guatarri. encontram-se influenciadas, direta ou indiretamente, pelo
pensamento nietzschiano que trabalha como a genealogia,
perspectivismo e o experimentalismo. Estas duas últimas noções
são bem explicadas por Marton (1993, p. 47-48):

Perspectivismo e experi­mentalismo estão, de certa for­ma,


relacionados. Cabe ressal­tar o caráter fundamentalmen­te
experimental do pensamen­to nietzschiano. Os aforismos,
tentativas renovadas de refle­tir sobre algumas questões,
possibilitariam experimentos com o pensar. São vários
os textos em que o próprio Nietzs­che convida o leitor à
experi­mentação, seja por entender que nós, humanos, não
passa­mos de experiências ou por acreditar que não nos
deve­mos furtar a fazer experiências com nós mesmos.
Em “Para além de bem e mal”, refere-se aos filósofos
que estão por vir como os experimentadores, os que
têm o dever “das cem ten­tativas, das cem tentações da
vida”. E, num fragmento póstu­mo, chega a declarar:
“Sempre escrevi minhas obras com todo o meu corpo e
minha vida: ignoro o que sejam problemas ‘puramente
espirituais’”.

154
Filosofia Política II

Em seus escritos, a inten­ção de fazer experimentos


com o pensar encontra tradução em per­seguir uma
idéia em seus múlti­plos aspectos, abordar uma ques­tão
a partir de vários ângulos de visão, tratar de um tema
assumin­do diversos pontos de vista, en­fim, refletir sobre
uma problemáti­ca adotando diferentes perspecti­vas. [...]
Intimamente ligados, perspectivismo e experimentalis­mo
explicam as aparentes contra­dições que emergem dos
textos. Adequado ao perspectivismo, o estilo aforismático
põe-se a serviço do experimentalismo.

Sintetizando, é pertinente dizer que o fenômeno da eficácia das


ofensivas dispersas e descontínuas caracteriza-se por desenvolver
uma crítica de caráter local.

Foucault denomina o primeiro fenômeno, que influencia suas


pesquisas de eficácia das ofensivas dispersas e descontínuas. Nesse
Note o teor político disto,
fenômeno, caracteriza-se a “prolífera criticabilidade das coisas”
reforçando a relação
(FOUCAULT, 1999, p. 10), seja das instituições, das práticas, dos entre epistemologia
discursos, da friabilidade geral dos solos, dos gestos, dos corpos. e política, visto que a
A crítica deste primeiro fenômeno abrange um “caráter local” consolidação de forma
(ibid., op. cit.). A partir destas críticas descontínuas e particulares, totalitária de um discurso
descobre-se algo inicialmente não previsto, que é o “efeito inibidor coloca este discurso como
absolutamente verdadeiro,
próprio das teorias totalitárias” (ibid., op. cit.), envolventes, dando aos outros discursos
globais. Não se quer negar que tais teorias, mesmo inibindo, não a conotação de falsos,
forneceram e fornecem instrumentos localmente utilizáveis (ibid., inválidos, atrasados. Além
op. cit.). Entretanto tais teorias totalitárias sempre fornecem disto, mediante uma
instrumentos localizáveis com a condição de que a “unidade teórica autoridade estabelecida
por um discurso científico
do discurso fique como que suspensa” (ibid., op. cit.), recortada,
não sujeito, mas sujeitado.
representada, caricaturada. Por sua vez, o caráter local da crítica Quem define, ainda hoje
não significa empirismo ingênuo e simplório, nem ecletismo e cada vez mais, quem é o
frouxo, nem oportunismo, nem permeabilidade a qualquer teoria, louco (e o que é a loucura);
nem ascetismo voluntário e nem magreza teórica. O inédito de que procedimentos deve
tomar o enfermo; que
tal crítica local indica uma espécie de produção teórica autônoma,
tipo de alimentação, de
não centralizada (ibid., op. cit.), que, para ser válida, não necessita cuidados físicos devo ter?
de aprovação de um regime comum, além de revelar o condicional Tais orientações que, por
restritivo encontrado nos discursos cientificistas totalitários, vezes, são “ditaduras de
incapazes de lidar plenamente com a especificidade. comportamento”, não
poderiam estar tirarando
a liberdade de ser do
humano?

Unidade 4 155
Universidade do Sul de Santa Catarina

Em Microfísica do poder (1986) e Vigiar e punir (1977), para


citar duas das obras mais lidas do autor, você pode encontrar
uma diversidade de artigos que desconstroem a imagem que
temos de determinadas instituições. Partindo de uma genealogia
da construção destas instituições, Foucault mostra como
determinadas relações de poder são construídas por discursos
que as reforçam e como há uma relação entre saber e poder.
Tal relação chega mesmo a afetar nossos corpos, construindo
posturas mediante determinadas relações institucionais. Tal
constatação se encaixa muito bem com um dos motes do
pensamento contemporâneo, a saber, a crise da modernidade
e, como tal, de suas instituições e dos discursos que a sustentam
Não é à toa que você pode constatar, ao ler alguns dos ensaios
de Microfísica do poder (1986), a grande crítica de Foucault
ao Iluminismo, demonstrando que é a partir deste período que
certos imaginários sobre instituições como hospitais, hospitais
psiquiátricos, presídios, escolas, entre outras, vão-se construindo.

Fixe isto: o fenômeno das reviravoltas de saber caracteriza-se


pela revolta dos saberes sujeitados. Os saberes sujeitados
distinguem-se em dois tipos: seja como saberes históricos
sepultados, seja como saberes desqualificados. Foucault
denomina o segundo fenômeno, que influencia suas
pesquisas, de “reviravoltas de saber”. Este segundo fenômeno
caracteriza-se como a “insurreição dos ‘saberes sujeitados’”
(FOUCAULT, 1999, p. 11), em função de um esgotamento
de certos referenciais tradicionais como saber, conhecimento,
livros, por outros, como vida, real, grana e viagem. Poder-se-ia
distinguir o saber sujeitado em dois tipos, seja como saberes
históricos sepultados; seja como saberes desqualificados. O
acoplamento entre os blocos de saberes históricos sepultados e
a série de saberes desqualificados sustenta a essência da crítica
local.

Ou seja: as reviravoltas do saber estão intimamente


relacionadas com a eficácia das ofensivas dispersas e
descontínuas, pois a crítica local só pode efetuar-se em
função das reviravoltas do saber.

Outro ponto a ser destacado: os saberes históricos


sepultados assim o são em função de uma separação
instituída por organizações sistemáticas e por
ordenações funcionais.

156
Filosofia Política II

Os “blocos de saberes históricos sepultados” (FOUCAULT,


1999, p. 11) referem-se aos saberes presentes, conhecimentos
históricos, meticulosos, eruditos, exatos, técnicos, saberes
sepultados da erudição, que se encontravam mascarados no
interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos, os quais a crítica
local pode refazer reaparecer por meios da erudição. Tais saberes
foram sepultados em detrimento de uma “coerência funcional”
ou de uma “sistematização formal”. A partir destes saberes
sepultados, eruditos, sujeitados, desses conteúdos históricos,
possibilita-se descobrir a separação objetivada, instituída pelas
“organizações sistemáticas” e “ordenações funcionais”. Tais
organizações sistemáticas e ordenações funcionais impuseram-se
e impõem-se no mascarar as lutas e os enfrentamentos dos
saberes, sepultando os saberes sujeitados.

Nestas condições podemos então compreender


que ela não se aplica sem problemas a tudo que
resiste ou escapa às formas de po­der-saber de nossa
sociedade; a tudo o que resiste ou escapa ao poder
estatal, à universalidade mercantilista e às regras
de produção. Ou se­ja, a tudo o que é percebido e
definido negativamente: doenças, crime, loucura.
Por muito tempo e ainda em boa parte nos nossos
dias, a medicina, a psiquiatria, a justiça penal e a
criminologia ficaram nos confins de uma manifestação
da verdade nas normas de conhecimen­to, e de uma
produção da verdade na forma da prova: esta, tendendo
sempre a se esconder sob aquela e procurando através
dela justificar­-se. A crise atual destas disciplinas
não coloca em questão simples­mente seus limites e
incertezas no campo do conhecimento. Coloca em
questão o conhecimento, a forma de conhecimento,
a norma “su­jeito-objeto”. Interroga as relações
entre as estruturas econômicas e políticas de nossa
sociedade e o conhecimento, não em seus conteúdos
falsos ou verdadeiros, mas em suas funções de poder-
saber. Crise, por conseqüência, histórico-política.
(FOUCAULT, 1986, p. 118).

Atente para o seguinte: os saberes desqualificados assim o são


em função de uma perspectiva científica absoluta. Entenda-se
a expressão saberes desqualificados como “toda uma série
de saberes que estavam desqualificados como saberes não
conceituais” (FOUCAULT, 1999, p. 12), como sendo inferiores,

Unidade 4 157
Universidade do Sul de Santa Catarina

ingênuos, abaixo do padrão enquanto conhecimento, enquanto


científico. Logo, saberes sujeitados são aqueles desqualificados
pela hierarquia científica, pois não apresentam senso comum, e
sim abrangem um escopo local e singular. Entretanto, poder-
se-ia caracterizar tal saber sujeitado como saber das pessoas, seja
do enfermeiro, do doente, etc., em oposição ao saber científico,
médico, oficial. Foucault defende que tal saber sujeitado, saber
das pessoas, não é saber comum, mas saber diferencial, local,
regional, incapaz de unanimidade. A desqualificação de tais
saberes foi intencional, pois “foram deixados em repouso quando
não foram efetiva e explicitamente mantidos sob tutela” (ibid., op.
cit.).

Agora vamos apresentar a genealogia como método capaz de


resgatar a memória dos combates, através do acoplamento dos
saberes sepultados e dos saberes desqualificados.

Foucault sustenta que, em ambos os saberes, seja nos saberes


históricos sepultados, eruditos, seja nos saberes desqualificados,
jaz a “memória dos combates”. E, dever-se-ia aprofundar as
pesquisas desta memória dos combates dos saberes, delineando,
assim, uma genealogia.

Não se deve entender aqui genealogia em seu


sentido genérico, referente, conforme encontramos no
“Dicionário Aurélio”: “1º ao estudo de origem de famílias;
2º à procedência, origem, 3º ao estudo da origem e da
De forma genérica, tática refere-se:
formação do indivíduo ou da espécie” (GENEALOGIA. In:
1º aos meios postos em prática para
FERREIRA, 1999). A pesquisa genealógica foucaultiana
se sair bem em qualquer coisa; 2º a
consiste especificamente em “redescoberta exata
arte de manobrar tropas e 3º a arte
das lutas e memória bruta dos combates”, enquanto
da guerra que trata da disposição
“acoplamento desse saber erudito e desse saber das
e manobra das forças durante o
pessoas” (FOUCAULT, 1999, p. 13).
combate ou iminência. Em Foucault,
tática deve ser entendida como a
estratégia adotada por algum ator,
Com o mesmo sentido, entende-se “genealogia” como “o
indivíduo ou instituição, em uma acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias locais
relação de poder. [...] que permite a constituição de um saber histórico das lutas
e a utilização desse saber nas táticas atuais” (FOUCAULT,
1999, p. 13). Assim, poder-se-ia, de maneira genealógica,
delinear um quadro de saber versus poder que não se vincula a
uma perspectiva inibidora, científica, totalitária, mas sim a uma
perspectiva que contemple a insurreição dos saberes sujeitados, o
que implica outro foro de debate, em outro campo de luta.

158
Filosofia Política II

É bom destacar que o método genealógico representa uma virada


metodológica contra o caráter centralizador, totalitário, inibidor,
do discurso científico.

Foucault propõe a genealogia não como oposição da “unidade


abstrata da teoria à multiplicidade concreta dos fatos” (1999, p.
13); nem como desqualificação do “especulativo para lhe opor, na
forma de um cientificismo qualquer, o rigor dos conhecimentos
bem estabelecidos” (FOUCAULT, 1999, p. 13); e nem como
empirismo e nem como positivismo. Propõe a genealogia com a
finalidade de

fazer que intervenham saberes locais, descontínuos,


desqualificados, não-legitimados, contra a instância
teoria unitária que pretende filtrá-los, hierarquizá-los,
ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro”
(FOUCAULT, 1999, p. 13).

“As genealogias são anticiências”, mas isto não implica direito à


ignorância ou recusa ao saber, nem experiência imediata ainda
não captada pelo saber. As genealogias tratam “da insurreição dos
saberes”, não contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de
uma ciência, mas “contra os efeitos centralizadores de poder que
são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso
científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa”
(FOUCAULT, 1999, p. 14).

É de pouca importância em que sede política, psiquiátrica,


escola, etc., há a institucionalização do discurso científico, pois a
genealogia implica combater quaisquer “efeitos de poder próprios
de um discurso considerado científico” (FOUCAULT, 1999, p.
14). A questão não é invalidar o discurso científico, mas mostrar
que essa perspectiva impõe uma ótica restrita, reducionista, dos
fenômenos de nossa realidade.

A ciência tem-se isolado, continuamente, em um patamar do


qual pode questionar se “é ou não é ciência?”. Tal pergunta não
só institucionaliza o discurso científico, mas se estipula capaz de
determinar, a partir de seus pressupostos, e distinguir o que é
conhecimento e o que não é.

Unidade 4 159
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para Foucault, todo discurso científico, em seu desenrolar, em


suas regras e em seus conceitos, é uma questão posterior. Há
questões que precisam ser feitas antes da pergunta totalizante.
As questões que urgem são: qual a ambição de poder que a
pretensão de ser uma ciência traz consigo? Quais tipos de saber
se desqualificam ao afirmar ser esse saber uma ciência? Qual
sujeito, falante, de experiência e de saber, se minimiza em
função do cientista e de seu discurso científico? Qual vanguarda
teórico-política justifica o afastamento de outros tipos de saber
descontínuos?

Até se pode afirmar que o marxismo é uma ciência, com


uma estrutura racional, com proposições que dependem de
procedimentos de verificação, mas fazê-lo é vincular ao discurso
marxista os efeitos de poder cientificista.

É preciso alertar que a ciência, os discursos científicos, desde


a Idade Média no ocidente, impuseram efeitos de poder. A
genealogia surge, justamente, para fazer frente a estes efeitos de
poder cientificistas, pois, por definição, genealogia seria

relativamente ao projeto de uma inserção dos saberes na


hierarquia do poder próprio da ciência, uma espécie de
empreendimento para dessujeitar os saberes históricos
e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta
contra toda coerção de um discurso teórico unitário,
formal, científico (FOUCAULT, 1999, p. 15).

Para empreender tal virada metodológica, proceder-se-ia primeiro


por meio de uma arqueologia.

Arqueologia tem o sentido geral, como o apontado no


Dicionário Aurélio: “1. O estudo científico do passado
da humanidade, mediante os testemunhos materiais
que dele subsistem; 2. O conjunto das técnicas
de pesquisa e da interpretação do que resulta da
arqueologia” (FERREIRA, 1999).

Contudo, em Foucault (1999, p. 16), arqueologia tem sentido


mais específico, como “o método próprio da análise das
discursividades locais”. A arqueologia instrumentaliza, provê
tais análises discursivas, para que a genealogia possa revelar,

160
Filosofia Política II

desvelar, descobrir “a tática que faz intervir, a partir dessas


discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados
que daí se desprendem” (ibid., op. cit.). Esse método genealógico
não é proposição de um solo teórico contínuo, sólido, mas o
estabelecimento de traços gerais, do pôr em oposição, em luta,
em insurreição os saberes, contra a instituição, os efeitos de saber
e de poder do discurso científico. O posicionamento de Foucault
almeja nos afastar do caráter necessário, e reposicionar nosso
olhar para a contingência, a especificidade e a singularidade
daquilo que está em jogo. Logo, alterar a pergunta “o que é
poder” implica reposicionar-se diante do saber e do poder, a
partir do método genealógico, acolhendo a insurreição dos
saberes sujeitados.

Reforçando a diferenciação entre genealogia e arqueologia,


atente para o que escreve Fernando Danner (2009, p. 1), em suas
Considerações iniciais, ao ensaio A genealogia do poder em
Michel Foucaul:

O projeto de uma genealogia do poder surgiu no


pensamento de Foucault a partir da década de 1970
principalmente com a publicação de Vigiar e Punir (1975)
e da História da Sexualidade I: A Vontade de Saber (1976),
complementando o projeto de uma arqueologia do saber.
O que passa a interessar a Foucault é o poder enquanto
elemento capaz de explicar como se produzem os saberes e
como nos constituímos na articulação entre ambos.
A grande diferença entre uma e outra é que “a
arqueologia pretende alcançar um modo de descrição
(liberado de toda ‘sujeição antropológica’) dos regimes
de saber em domínios determinados e segundo um
corte histórico relativamente breve; a genealogia tenta,
recorrendo à noção de ‘relações de poder’, o que a
arqueologia deveria contentar-se em descrever”. Enquanto
a arqueologia (Ser-Saber) procurou analisar as gêneses
e as transformações dos saberes no campo das ciências
humanas, a genealogia (Poder-Saber) procurava analisar
o surgimento dos saberes, que se dá a partir de “condições
de possibilidade externas aos próprios saberes, ou melhor,
que, imanentes a eles – pois não se trata de considerá-los
como efeito ou resultante –, os situam como elementos de
um dispositivo de natureza essencialmente estratégica”. O
que Foucault quer mostrar é que não existem sociedades
livres de relações de poder. Os indivíduos são o resultado
imediato dessas relações de poder.

Unidade 4 161
Universidade do Sul de Santa Catarina

Atente para isto: o fazer genealógico permite perceber que o


discurso sobre o poder está sustentado modernamente por um
caráter inibidor, reducionista, de economismo na teoria do poder,
tanto a partir de concepções de poder jurídica e liberal quanto da
concepção de poder marxista.

Foucault questiona, a partir de sua metodologia genealógica, a


concepção política predominante. Pergunta ele se a “análise de
poder pode ser deduzida da economia” (FOUCAULT, 1999, p.
19). Tal análise tem caracterizado, grosso modo, a concepção
de poder a partir do século XVII. Independente das inúmeras
diferenças entre as diversas concepções de poder, jurídica, liberal,
marxista, poder-se-ia destacar um ponto em comum: é um
“economismo” na teoria do poder. Mediante a teoria jurídica
clássica do poder, que envolve tanto a concepção jurídica quanto
a liberal, “o poder é considerado um direito” (ibid., op. cit.),
que, se havendo possuidor, o é “como de um bem”. Tal bem é
modelado por uma concepção econômica de mercadoria. Neste
caso, entende-se que bem é transferível ou alienável, total ou
parcialmente, mediante ato jurídico, ato fundado de direito,
pertencente à ordem da cessão ou do contrato.

Assim, neste caso, o poder político segue um modelo formal,


jurídico, de ordem contratual. Nesta concepção, o poder é
aquele que todo indivíduo detém e viria a ceder para constituir
um poder, uma soberania política. Mediante a concepção
marxista geral do poder, tem-se uma “funcionalidade
econômica do poder” (FOUCAULT, 1999, p. 20). Entenda-se
funcionalidade econômica como o papel essencial do poder,
como manutenção das relações de produção e recondução
da dominação de classe, que o próprio desenvolvimento e as
modalidades próprias da apropriação das forças produtivas
tornaram possível. Logo, “o poder político encontraria na
economia sua razão de ser?”. Assim, em função desta concepção
tradicional de poder político fundado no modelo econômico,
tem-se, de um lado, a concepção jurídica liberal, fundada na
economia de circulação de bens; e, de outro lado, a concepção
marxista, fundada na economia como razão de ser.

162
Filosofia Política II

Seção 3 - Possibilidades de inviabilizar a tese do


economismo e a política com guerra
Aqui, cabe reforçar, sinteticamente, que a tese do economismo,
seja a partir da subordinação funcional ou da isomorfia formal, é
uma perspectiva reduzida de caracterizar o poder.

Foucault (1999, p. 20) critica tal economismo na teoria de poder


em dois pontos básicos, seja porque “o poder político está sempre
em posição secundária em relação à economia?” e, seja porque
“o poder é modelado com base na mercadoria?”. Admite-se a
possibilidade das relações de poder e das relações econômicas
estarem profundamente intricadas. Entretanto, propõem-se
instrumentos diferentes de análise os quais permitam estabelecer
que o caráter indissociável entre o âmbito econômico e o âmbito
político não seria nem da ordem da subordinação funcional,
referente à concepção marxista, e nem da ordem da isomorfia
formal, referente à concepção jurídica clássica.

Neste ponto, é possível fazer um questionamento em torno da


possibilidade de inviabilizar a tese do economismo a partir da
hipótese do poder como repressão e da hipótese do poder como
guerra. A partir de uma tentativa de análise não econômica do
poder, Foucault dispõe de duas hipóteses.

„„ A primeira hipótese critica a ordem da isomorfia formal


referente à concepção jurídica clássica, e, assim, tal
hipótese propõe que o poder não se dá, não se troca,
não se retoma, pois poder não é um bem. Neste caso,
se o poder se exerce, então se inviabiliza o formalismo
econômico da concepção clássica de poder. De acordo
com esta hipótese, se o poder é exercício, então se
propõe que “o poder é essencialmente o que reprime”
(FOUCAULT, 1999, p. 21). Poder que reprime a
natureza, os instintos, as classes, os indivíduos. Logo, a
análise do poder implica, essencialmente, a análise dos
mecanismos de repressão. A primeira hipótese, à qual se
vincula o mecanismo de poder como exercício repressivo,
Foucault denomina de “hipótese de Reich”.

Unidade 4 163
Universidade do Sul de Santa Catarina

„„ A segunda hipótese critica a subordinação funcional


referente à concepção marxista, e, assim, tal hipótese
propõe que o poder não é manutenção das relações
econômicas, não é recondução das relações econômicas,
mas é, em si mesmo, uma “relação de força”
(FOUCAULT, 1999, p. 21). Se o poder é relação de
força, de acordo com esta hipótese, então se inviabiliza
o funcionalismo econômico, a concepção marxista de
poder. E, se o poder é relação de força, não se deve
analisá-lo em termos de cessão, contrato, alienação,
recondução das relações de produção, mas em termos
de combate, de enfrentamento, de guerra. A segunda
hipótese, na qual o fundamento da relação de poder é
enfrentamento belicoso, guerreiro, das forças, Foucault
denomina de “hipótese de Nietzsche”.

Todavia, procurar-se-á aprofundar o sentido da referência tanto


a Reich quanto a Nietzsche, a partir destas duas hipóteses de
poder, como repressão e como guerra.

Disto você pode partir para a afirmação de que hipótese da


repressão torna-se mais clara ao aprofundar a referência a Reich.
Como? Da primeira hipótese, destaca-se a vinculação a Reich e
ao significado do termo repressão. Mas, o que é repressão? De
maneira geral, repressão significa ato ou efeito de reprimir (se).

Por reprimir pode-se entender, conforme se apura no


Dicionário Aurélio: 1. Sustar a ação ou movimento de;
conter, reter, moderar, coibir, refrear, represar; 2. Não
manifestar; ocultar, disfarçar, dissimular; 3. Violentar,
oprimir, vexar, tiranizar; 4. Impedir pela ameaça ou
pelo castigo, proibir; 5. Castigar, punir; e 6. Conter-se,
moderar-se, dominar-se, refrear-se (C). Em termos
específicos da Psicologia, ainda conforme o Dicionário
Aurélio, tem-se repressão como mecanismo de
defesa mediante o qual os sentimentos, as lembranças
dolorosas ou os impulsos desacordes com o meio
social são mantidos fora do campo da consciência
(FERREIRA, 1999).

Aproximando tais sentidos, geral e especializado, poder-


se-ia pensar propor repressão como um impedimento de
ordem qualitativamente subjetiva, uma coerção, que surda ou

164
Filosofia Política II

estridente, impõe um não fazer, ou um fazer, por força ou por


constrangimento. Tal ordem subjetiva “esconde” algo. Este
algo escondido, pertinente a esta aula de Foucault, parece ser
caracterizado pelo afastamento, impedimento, da consciência
do exercício do poder, inerente à condição humana; pelo
afastamento, impedimento, da realização plena deste exercício
de poder, além de caracterizar o âmbito psicológico, relativo à
repressão, como essencial para pensar as relações de poder em
detrimento do âmbito físico, da opressão.

Mas por que se manteria o exercício do poder fora do campo


da consciência? E que elementos Reich poderia fornecer para se
pensar em poder como repressão?

Reich publica, em 1942, A função do orgasmo, obra que, ao


investigar a sexualidade, caracteriza de maneira singular o
fenômeno da repressão. Segundo Reich (1975, p. 16),

[...] as enfermidades psíquicas são a conseqüência do


caos sexual da sociedade. Durante milhares de anos,
esse caos tem tido a função de sujeitar psiquicamente
o homem às condições dominantes de existência e de
interiorizar a dinâmica externa da vida. Tem ajudado
a efetuar a ancoragem psíquica de uma civilização
mecanizada e autoritária, tornando o homem incapaz de
agir independentemente.

Deduz-se de Reich pensar repressão como um poder


consequente do âmbito do caos social-histórico, determinante
para a sujeição individual, negadora da vida, castradora da
vontade e da autonomia. Tal fenômeno repressivo é marcado
pela sujeição e interiorização.

Pensar o fenômeno repressivo implica denunciar a deflagração


de neuroses, de doenças, que, aliadas ao medo, tendem a
perpetuar tal estado de repressão, inviabilizando relações
plenas. Alerta-se o fechamento do indivíduo para a reação
política, para a liberdade, pois que:

[...] os indivíduos criados com uma atitude negativa


diante da vida e do sexo contraem uma ânsia de prazer,
fisiologicamente apoiada em espasmos musculares

Unidade 4 165
Universidade do Sul de Santa Catarina

crônicos. Essa ânsia neurótica de prazer é a base na qual


certas concepções de vida, negadoras da vida e produtoras
de ditadores, são reproduzidas pelos próprios povos.
É a própria essência do medo de um modo de vida
independente, orientado para a liberdade. Esse medo se
torna a mais significativa fonte de força para qualquer
forma de reação política, e para a sujeição da maioria dos
homens e mulheres que trabalham a indivíduos ou grupos.
É um medo biofisiológico [...] (REICH, 1975, p. 16).

Explicita-se a necessidade de repensar a vinculação do âmbito


biológico como pertinente a qualquer reflexão política, uma
vez que qualquer caso de repressão passa necessariamente pelo
impedimento de ordem subjetiva, psicológica, o qual, por sua vez,
inter-relaciona-se com a ordem biológica.

Há a possibilidade de pensar o processo de repressão atual a


partir de um quadro estruturado social e historicamente centrado
por um traço indelével, dissipado, alienante, caracterizado
pela cristalização de encouraçamentos nos indivíduos. Tais
encouraçamentos devem ser pensados como inter-relação do
indivíduo também com o âmbito político, pois, na medida em que
cada indivíduo torna-se o receptáculo do processo de formação de
couraças, inviabiliza-se paulatinamente a liberdade plena, além de
desnaturalizar e alienar o homem. Conforme Reich (1975, p. 16),

[...] a estrutura do caráter do homem moderno, que


reflete uma cultura patriarcal e autoritária de seis mil
anos, é tipificada por um encouraçamento do caráter
contra a sua própria natureza interior e contra a miséria
social que o rodeia. Essa couraça do caráter é a base do
isolamento, da indigência, do desejo de autoridade, do
medo à responsabilidade, do anseio místico, da miséria
sexual e da revolta neuroticamente impotente, assim
como de uma condescendência patológica. O homem
alienou-se a si mesmo da vida, e cresceu hostil a ela.
Essa alienação não é de origem biológica, mas sócio-
econômica.

Embora se possa considerar a alienação como uma relação


vinculada ao âmbito biológico do indivíduo, Reich aponta a
“causa” do fenômeno repressivo como sendo socioeconômica.

166
Filosofia Política II

Este certamente é um nó de divergência entre a genealogia


proposta por Foucault e o uso que este faz do conceito de
repressão desenvolvido por Reich.

Embora o próprio Foucault refute o economismo na análise de


poder com auxílio da hipótese da repressão, este desconfia de sua
insuficiência. Foucault admite a possível insuficiência do conceito
de repressão para pensar o poder, pois tal parece que “para
caracterizar os mecanismos e os efeitos do poder, é totalmente
insuficiente para demarcá-los” (FOUCAULT, 1999, p. 25).

Ainda, segundo a concepção de Reich, poder-se-ia pensar


a repressão como marca do exercício político. Contudo tal
repressão não deve ser encarada como um fenômeno isolado,
como exercício exclusivo do Estado, pois que permeia todas as
instituições e indivíduos, já que

não é só nos estados totalitários que se encontra a


ditadura totalitária. Esta se encontra na Igreja tanto
quanto nas instituições acadêmicas, entre os comunistas
tanto quanto nos governos parlamentares. É uma
tendência humana universal causada pela supressão da
vida (REICH, 1975, p. 20).

Tal fenômeno da repressão abarca a universalidade dos


indivíduos, em uma “estrutura marcada pela impotência e pelo
medo à vida” (ibid., p. 17).

Você poderia concluir que, a partir de Reich, tem-se


repressão como um dos conceitos centrais para entender
a natureza humana e as relações sócio-históricas.
Subentende-se como Foucault pôde pensar que a
concepção de poder implica abordar necessariamente
o conceito de repressão. O poder enquanto repressão
é relação, que se espraia por todos os indivíduos e por
todas as instituições. O poder, de natureza repressiva,
é um exercício marcado pelo impedimento subjetivo,
de imposição social-histórica, de negação da vida, da
autonomia, da liberdade, da independência.

Unidade 4 167
Universidade do Sul de Santa Catarina

O poder pensado como repressão alerta-nos para a perda da


consciência política dos indivíduos, para a atual impossibilidade de
realização plena deste poder e para o fato de se ter subestimado o
âmbito subjetivo para pensar essencialmente o poder.

Você notará que a hipótese da guerra torna-se mais clara ao


aprofundar a referência a Nietzsche. Da segunda hipótese
destaca-se a vinculação a Nietzsche e ao significado do termo
guerra. Mas, o que é “guerra”?

Guerra, segundo o Dicionário Aurélio, deriva do


germânico ocidental werra, o que significa discórdia,
peleja. Em termos gerais, ainda tomando o Dicionário
Aurélio, guerra pode significar, 1. Luta armada entre
nações ou partidos; conflito; 2. Expedição militar;
campanha; 3. Combate, peleja, luta, conflito; 4. A arte
militar; 5. A administração, os negócios militares; e 6.
Oposição, hostilidade. (FERREIRA, 1999).

É possível destacar “guerra”, como conflito, como oposição, como


luta, em dois sentidos específicos, seja de natureza não armada
ou de natureza armada. Em Nietzsche, o termo “guerra” tem,
sobretudo, o sentido de oposição não armada, mas nada impede
que tal oposição seja também armada. Contudo, não se trata de
abordar a guerra em si, mas entender que a guerra representa uma
atitude fundamental diante da vida. Esta atitude vincula-se à
necessidade de lutar por nossos valores, pensamentos e vontades.
Nietzsche, em Assim falou Zaratustra, expõe que,

[...] vós deveis procurar o vosso inimigo e fazer a vossa


guerra, uma guerra por vossos pensamentos. E se o vosso
pensamento sucumbe, a vossa lealdade, contudo, deve
cantar vitória. Deveis amar a paz como um meio de novas
guerras, e mais a curta paz do que a prolongada. Não
aconselho o trabalho, mas a luta. Não vos aconselho a paz,
mas a vitória. Seja o vosso trabalho uma luta! Seja a vossa
paz uma vitória. Não é possível estar calado e permanecer
tranqüilo senão quando se têm flechas no arco; a não ser
assim, questiona-se. Seja a vossa paz uma vitória! Dizeis
que a boa causa é a que santifica também a guerra? Eu
vos digo: a boa guerra é a que santifica todas as coisas. A
guerra e o valor têm feito mais coisas grandes do que o
amor do próximo. (NIETZSCHE, 2002, p. 50).

168
Filosofia Política II

Nietzsche, em Genealogia da moral: uma polêmica (2003),


também aborda o termo “guerra”, ao distinguir dois tipos de
indivíduos, orientados por diferentes concepções de moral,
elogiando o modo de ser do homem nobre que se vincula à
guerra, à vida, à atividade; em oposição ao modo de ser apático
sacerdotal, vinculado à paz, ao ascetismo, à passividade.
Subentende-se que é natural viver segundo uma concepção
guerreira em oposição a uma vida despojada do que lhe deveria
ser inerente. Nietzsche (2003, p. 25) explica que,

[...] os juízos de valor cavalheiresco-aristocráticos têm


como pressuposto uma constituição física poderosa,
uma saúde florescente, rica, até mesmo transbordante,
juntamente com aquilo que serve à sua conservação:
guerra, aventura, caça, dança, torneios e tudo o que
envolve uma atividade robusta, livre e contente. O
modo de valoração nobre-sacerdotal – já o vimos – tem
outros pressupostos: para ele a guerra é um mau negócio!
Os sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis
inimigos – por quê? Porque são os mais impotentes. Na
sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e
sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. Na
história universal, os grandes odiadores sempre foram os
sacerdotes, também os mais ricos de espírito – comparado
ao espírito da vingança sacerdotal, todo espírito restante
empalidece.

É que mesmo a felicidade é consequência das escolhas feitas neste


sentido, de viver segundo uma concepção de luta, de guerra, do
homem nobre; ou de paz, de resignação, do homem ressentido.
Segundo Nietzsche, os homens nobres,

[...] sendo homens plenos, repletos de força e, portanto,


necessariamente ativos, não sabiam separar a vontade da
ação – para eles, ser ativo é parte necessária da felicidade
[...] tudo isso o oposto da felicidade no nível dos
impotentes, opressos, achacados por sentimentos hostis
e venenosos, nos quais ela aparece essencialmente como
narcose, entorpecimento, sossego, paz, ‘sabbat’, distensão
de ânimo e relaxamento dos membros, ou, numa palavra,
passivamente [homens de ressentimento].

Unidade 4 169
Universidade do Sul de Santa Catarina

Você pode aproximar a concepção nietzschiana de “guerra” com


a concepção heraclítica de “guerra”. Aliás, é significativo o apego
declarado do filósofo da martela com “o obscuro” do período
originário da filosofia. Propor tal aproximação implica querer
compreender “guerra” também como um princípio ontológico,
uma vez que todas as coisas, todos os acontecimentos estão
permanentemente em conflito, em transição, submetidos ao
devir, a essa força universal e implacável de mudança contínua,
a dialética. De Heráclito, no fragmento 80, tem-se que “é
necessário saber que a guerra é comum e que a justiça é discórdia
e que tudo acontece mediante discórdia e necessidade” (KIRK,
1994, p. 200); e, no fragmento 53, tem-se que

a guerra é a origem de todas as coisas, e, de todas, ela é


soberana, e a uns ela apresenta-os como deuses, a outros
como homens; de uns ela faz escravos, de outros, homens
livres (ibid., op. cit.).

Você pode concluir que, a partir de Nietzsche, a guerra


é vista como um dos conceitos centrais para entender
a natureza das atitudes humanas, caracterizadas
moralmente e bipolarizadas em termos de atividade ou
passividade. Neste sentido, Foucault parece indicar a
impossibilidade de pensar o poder como passividade,
resignação e sossego. Parece indicar-se a necessidade
de reconhecer a guerra como o foro próprio do poder
político, o qual todo indivíduo deve necessariamente
conscientizar-se.

Este exercício político só alçaria voo e também só poderia


alcançar a plenitude na atividade, na ação, no combate. Só
se pode ser feliz na luta. Aproximar Nietzsche de Heráclito
Novamente o parentesco com o
pensamento grego da filosofia
permite pensar guerra ontologicamente, e, assim também pensar
originária. Trata-se da retomada do o âmbito político como análogo à mudança contínua de todas
agon, do polemos. as coisas, como sendo não estático. Poder enquanto guerra deve
ser pensado enquanto relação de escopo universal, que se espraia
por todos os indivíduos e por todas as instituições, enquanto
atores envolvidos. Poder como guerra também é um exercício,
primordialmente marcado pela vontade de querer. Querer em
Nietzsche não é algo fixo. Pensar a guerra como poder político
implica pensar a realidade como uma constante mudança, na

170
Filosofia Política II

qual o homem, inacabado enquanto pertencente a esta realidade,


precisa se refazer continuamente, sem tréguas, sem paz,
lutando contra as imposições, negadoras da vida, negadoras da
autonomia, negadoras da liberdade, negadoras da independência.

Tal concepção de poder como guerra bebe no diagnóstico


nietzschiano, relembra o quanto nossos valores estão
influenciados por uma concepção resignada, apática, pacífica,
descomprometida, principalmente, consigo mesma. Poder como
guerra é um alerta, pois nosso exercício do poder político, e cada
valor genuíno, próprio, inerente a cada ser humano — se é que já
existiu algum — está se atrofiando.

A passagem abaixo, de Crepúsculo dos ídolos (NIETZSCHE,


1987), mais exatamente o aforismo 38 da parte intitulada
Incursos de um extemporâneo, é bem ilustrativa disto,

Meu conceito de liberdade. — O valor de uma coisa não


está às vezes naqui­lo que se alcança com ela, mas naquilo
que por ela se paga — no que ela nos custa. Dou um
exemplo. As instituições liberais deixam de ser liberais
tão logo são alcançadas: mais tarde, não há piores e mais
radicais danificadores da liber­dade, do que instituições
liberais. Sabe-se, até, o que elas conseguem: minam
a vontade de potência, são a nivelação de montanha e
vale transformada em moral. [...] Liberalismo: dito em
alemão, animalização em rebanho [...] Essas mesmas
instituições, enquanto ainda são combatidas, produzem
efeitos inteiramente outros; propiciam de fato, então, a
liberdade, de uma maneira poderosa. Vista com mais
precisão, é a guerra que produz esses efeitos, a guerra por
instituições liberais, que, como guerra, faz perdurar os
instintos iliberais. E a guerra educa para a liberdade. Pois
o que é liberdade? Ter a vontade de responsabilidade pró­
pria. Manter firme a distância que nos separa. [...] Estar
pronto a sacrificar à sua causa seres humanos, sem excluir
a si próprio. Liberdade significa que os instintos viris, que
se alegram com a guerra e a vitória, têm domínio sobre
outros instintos, por exem­plo, sobre o da “felicidade”. O
homem que se tornou livre, e ainda mais o espírito que
se tornou livre, calca sob os pés a desprezível espécie de
bem-estar com que sonham merceeiros, cristãos, vacas,
mulheres, ingleses e outros democratas. O homem livre
é um guerreiro. — Segundo o que mede-se a liberdade
em indivíduos como em povos? Segundo a resistência
que tem de ser superada, segundo o esfor­ço que custa

Unidade 4 171
Universidade do Sul de Santa Catarina

permanecer acima. O tipo mais alto de homens livres


teria de ser pro­curado ali onde constantemente é superada
a mais alta resistência: a cinco passos da tirania, rente
ao limiar do perigo da servidão. Isso é psicologicamente
verda­deiro, se aqui, por “tiranos”, se entendem instintos
inexoráveis e terríveis, que exi­gem contra si o máximo de
autoridade e disciplina [...]; isso é também politicamente
verdadeiro, basta dar seu passeio através da his­tória. [...]
Primeiro princípio: é preciso ter necessidade de ser forte:
senão nunca se chega a isso. — Aquelas grandes estu­fas
para a espécie forte, para a mais forte espécie de homem
que houve até agora, as comunidades aristocráticas
ao modo de Roma e Veneza, entendiam liberdade
exatamente no sentido em que eu entendo a palavra
liberdade: como algo que se tem e não se tem, que se
quer, e que se conquista [...]

A partir da hipótese de Reich e da hipótese de Nietzsche,


propõe-se a tese “a política é a guerra continuada por outros
meios”. Em função da argumentação estabelecida, tem-se da
hipótese de Reich que “o poder é essencialmente repressão”
(FOUCAULT, 1999, p. 22); e tem-se da hipótese de Nietzsche
que “o poder é a guerra, é a guerra continuada por outros meios”
(ibid., op. cit.). Logo, poder-se-ia inverter a proposição de
Clausewitz. Se a tese de Von Carl Clausewitz é a de que a guerra
é a política continuada por outros meios (ibid., op. cit.), então
Foucault propõe que “a política é a guerra continuada por outros
meios” (ibid., op. cit.). Foucault defende que as duas hipóteses, de
Nietzsche e de Reich, não são inconciliáveis, ao contrário, pois
“a repressão é [...] a conseqüência política da guerra” (ibid., 1999,
p. 24). Marca-se, assim, nitidamente, a supremacia, o caráter
elementar, da hipótese da guerra sobre a hipótese da repressão.

Foucault explicita essa supremacia, ao expor que a tese “a política


é a guerra continuada por outros meios” implica três coisas:

„„ em primeiro lugar, decorre que as relações de poder,


em nossa sociedade, caracterizam-se, sobretudo,
como relação de força, estabelecida em determinado
momento, historicamente precisável, na guerra e pela
guerra. Portanto o poder político pode parar a guerra
ou fazer reinar a paz, mas não pode suspender os efeitos
da guerra. O poder político tem a função de “reinserir
perpetuamente” essa relação de força mediante uma
“guerra silenciosa” (FOUCAULT, 1999, p. 23), seja

172
Filosofia Política II

nas instituições, nas desigualdades econômicas, na


linguagem e nos corpos. Nesse caso, entende-se a política
como sanção e recondução do desequilíbrio das forças
manifestadas na guerra.

„„ em segundo lugar, decorre que, sempre se escreveria


a história dessa guerra, mesmo quando se escrevesse
a história da paz e de instituições da sociedade, pois,
dentro do conjunto da paz civil, encontram-se as
lutas políticas, os enfrentamentos, as modificações de
força, as reviravoltas, etc. E, a partir de cada elemento
desse conjunto, permitir-se-ia decifrar os episódios, as
fragmentações, os deslocamentos da própria guerra. Ou
seja, todos esses elementos devem ser interpretados como
as continuações da guerra; e

„„ em terceiro lugar, decorre que a decisão final só pode vir


da guerra. Tal afirmação significa que as armas deverão
ser os juízes.

Em sentido geral, segundo o Dicionário Aurélio,


armas entende-se como, 1. Instrumento ou engenho
de ataque ou de defesa; 2. Qualquer coisa que sirva
para um desses fins; 3. Cada uma das subdivisões
básicas da tropa do Exército: infantaria, cavalaria,
artilharia, engenharia, comunicações, que constituem
a categoria dos combatentes; e 4. Recurso, meio,
expediente (FERREIRA, 1999).

Especificamente em Foucault, não se deve entender armas


no sentido exclusivamente e geralmente pré-concebido, como
instrumento de ataque ou defesa de conotação negativa,
mas, essencialmente, como estratégia, tática, recurso, meio,
expediente, intrínseca aos exercícios dos atores no palco do
poder. Ora, o fim do âmbito político seria a última batalha. Só na
última batalha suspender-se-ia o exercício do poder como guerra
continuada. Como não há como suspender o âmbito político, não
há como não estar na guerra.

Mas qual a consequência desta tese para nós? O que ela pode
significar em termos de política?

Unidade 4 173
Universidade do Sul de Santa Catarina

A tese de Foucault, “a política é a guerra continuada por outros


meios”, não é apenas a consequência lógica de pensar o poder
como o somatório da hipótese da repressão e da hipótese da
guerra. Esta tese implica uma inédita concepção de poder, seja
por refutar o economismo, em sua concepção liberal, jurídica
ou marxista; seja por expor o caráter totalitário, reducionista
de epistémes, de discursos científicos; seja por alterar o modo de
pensar o poder, relativizando-o; seja por resgatar os saberes que,
de uma forma ou de outra, estavam sujeitados; e, seja para poder
traçar, através de uma genealogia, o caminho inter-relacionado
entre poder e saber.

A tese de Foucault implica a impossibilidade de uma


fundamentação absoluta, dogmática de poder; na
necessidade de alargar o escopo da reflexão política
em função do âmbito subjetivo, e, assim, não se limitar
ao âmbito objetivo; na caracterização ativa do exercício
político respectiva a cada ator, superando as estratégias
passivas que o cristalizam. A tese de Foucault implica
rever as noções de liberdade e de paz que norteiam as
concepções políticas jusnaturalistas.

Não é o caso de depreciar a liberdade ou a paz, mas mostrar


que, de fato, nunca poderiam ter fundamentado o poder. Eu
nunca me senti totalmente livre ou totalmente em paz, embora
sempre tenha acreditado nestes ideais. Contudo, por mais que
nos esforcemos por acreditarmos em utopias, já está na hora
de entender o quanto estas são limitadas. Mas, sem utopias,
sem referenciais, tudo se relativiza, “desmancha-se no ar”. No
relativizar, a concepção de poder em Foucault toma proporções
inusitadas, tais que se poderia perguntar: o que não implicaria
poder político? Quem ou o que não está envolvido pela
política?

Decorre, nesta perspectiva, que o Estado não é o único culpado


pelas mazelas políticas, a sociedade também tem sua parcela
de culpa, mas o cidadão, o nó mais fraco da corda, não pode
mais continuar tolhendo-se, isentando-se de seu quinhão de
participação. Diante de tantas fragilidades, parece que o caminho
aponta a co-responsabilidade de todos os atores políticos, e a
impossibilidade de se poder dizer “só este é culpado”.

174
Filosofia Política II

Do viver contemporâneo segue o seguinte dilema político: o


que é pior? Ter uma vida inteira orientada por referenciais
políticos limitados, por utopias; ou ter uma vida inteira marcada
pela certeza da incerteza, pela relativização, pela certeza da
inexistência de fundamentos políticos, pela sensação de fuga de
critérios? Pense nestas questões doravante.

Síntese

No percurso desta Unidade 4, você estudou a noção de poder


em Hannah Arendt e Michel Foucault. Viu como a politóloga
recupera aspecto da tradição grega para defender que a política
não é somente aquilo que fazem os políticos profissionais, mas
ação, ação dentro de um coletividade, em relação à coisa pública.
Derivado disto, com Arendt, você refletiu sobre as noções de
poder, autoridade, violência, força e autoridade, assim como sobre
o totalitarismo, gerador do inverso da política, do ponto de vista
arendtiano, a inação.

De Arendt passou para Foucault, analisando sua tese de que


a política é outra forma de fazer a guerra. Em tal tese, você
visualizou a influência do método genealógico nietzschiano e de
sua concepção da vida como um eterno retorno do mesmo e da
noção heraclitiana da guerra dos contrários como o motor de tudo.

Nesta unidade, você pôde, também, identificar as críticas tanto


de Arendt como de Foucault a aspectos de teorias políticas que
os antecederam e eram (são) fortes em sua época. Estudou que,
para Foucault, o poder envolve aspectos que não são apenas de
ordem da superestrutura — Estado — mas também da ordem da
relação entre poder e saber, da disciplinarização dos corpos pelos
saberes. Com isto, pôde entender que os saberes são construídos
por relações de poder e que há saberes tomados como “melhores”
e saberes esquecidos ou marginalizados.

A partir de seu conhecimento das ideias de um e outro, pôde


comparar o pensamento de ambos, encontrando diferenças e
semelhanças. Eis mais um conjunto de ideias que você insere em
seu repertório para contribuir com seu posicionamento face ao
fazer político.

Unidade 4 175
Universidade do Sul de Santa Catarina

Atividades de autoavaliação

1) Tome as seguintes situações.


a) Em uma sala de aula, os estudantes, de forma ordeira, reclamam
da postura do professor. O professor, recusando-se a escutar as
reclamações dos estudantes, manda alguns para a secretaria da
escola, dizendo ser esta atitude dos estudantes falta de respeito e
indisciplina.
b) Um membro do parlamento, sendo eleito por uma dada
comunidade, costuma visitá-la para levantar os problemas locais,
procurando conversar com os seus membros. Nestas visitas, este
membro do parlamento é, geralmente, tratado com respeito,
ao qual ele responde de igual forma. Mesmo quando tratado
desrespeitosamente, o que é raro, o membro do parlamento
(representante da comunidade) procura manter a calma e o trato
respeitoso.
Partindo da noção arendtiana de autoridade e poder, responda às
seguintes questões:
1- Na situação a, quem tem poder: o professor ou os estudantes?
Justifique sua resposta.
2- É correto, em relação à atitude do professor na situação a, dizer que
ele manteve sua autoridade? Justifique sua resposta.
3 – É correto dizer que, em relação à situação b, o membro do
parlamento manteve sua autoridade frente à comunidade que
representa? Justifique sua resposta.

176
Filosofia Política II

2) Conforme você estudou, a tese de Foucault sobre a política como outra


forma de guerra encontra antecedentes em alguns filósofos. Assinale
abaixo apenas a dupla de filósofos com a qual (dupla) o pensamento
político foucaultiano tem parentesco.
a. ( ) Parmênides e Kant
b. ( ) Marx e Epicuro
c. ( ) Maquiavel e Zenão de Eleia
d. ( ) Heráclito e Nietzsche
e. ( ) Pitágoras e Descartes

Saiba mais

Ao longo desta unidade, algumas obras foram citadas. Destas,


como sugestão, tome as seguintes:

ARENDT, Hannah. O que é política? Trad. Reinaldo Guarany.


7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

______. Sobre a violência. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro:


Relume-Dumará, 1994.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no


Collège de France. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.

______. Microfísica do poder. Organização e trad. de Roberto


Machado. 6. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

______. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis:


Vozes, 1977.

Unidade 4 177
Universidade do Sul de Santa Catarina

HOBSBAWM, E. Globalização, democracia e terrorismo.


Trad. José Viegas. 2. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.

MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores.


São Paulo: Moderna, 1993. (Col. Logos)

NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra. Trad.


Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002.

______. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo


César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

______. Obras incompletas. Seleção de textos de Gerard


Lebran; trad. e notas Rubens Rodrigues Torres Filho. 4. ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os pensadores)

NUNES, Nei Antonio. O elogio da política e o poder e a


liberdade em questão: apontamentos sobre o pensamento de
Hannah Arendt e Michel Foucault. I: Revista Temas Matrizes.
Cascavel-PR: Unioeste, vol. VI, n. 11, 2007.

Para saber um pouco mais sobre o austríaco Wilhelm Reich leia


o texto a seguir:

Se você desejar saber um pouco mais sobre Von Carl Clausewitz,


lei ao seguinte texto:

178
Filosofia Política II

Wilhelm Reich
Psicanalista

24/3/1897, Dobryzcynica, Áustria


(hoje parte da Polônia) Figura 4.1 - Wilhelm Reich foi
3/11/1957, Lewisburg, EUA condenado a dois anos de prisão
e morreu no cárcere.
Da Página 3 Pedagogia & Comunicação Fonte: Um pouco... (2011).

“A vida brota de milhares de fontes vibrantes, entrega-se a todos que


a agarram, recusa-se a ser expressa em frases tediosas, aceita apenas
as ações transparentes, as palavras verdadeiras e o prazer do amor.”
Com mensagens como essa, Reich, teórico controvertido, conquistou
seguidores no mundo inteiro.

Wilhelm Reich vinha de uma família de judeus não praticantes. Foi


educado em casa até os 13 anos, quando a mãe suicidou-se. Três anos
depois, perdeu o pai. Em seguida, durante a Primeira Guerra Mundial,
teve a casa invadida pelo Exército russo. Depois, alistou-se no Exército
austríaco, chegando ao posto de tenente.

Em 1918, com o fim da guerra, matriculou-se na Universidade de Viena


para estudar medicina. Em 1920, foi aceito pela Sociedade Psicanalítica
de Viena, sob o comando de Sigmund Freud. Dois anos depois, tornou-se
médico.

Entre 1922 e 1924, estudou neuropsiquiatria no Hospital Universitário de


Viena, com o professor Wagner Jauregg (que depois ganharia um Prêmio
Nobel de Medicina).

Em 1922, casou com uma assistente, Annie Pink (eles teriam duas filhas).

Em 1927, publicou “A Função do Orgasmo” e, dois anos depois,


“Materialismo Dialético e Psicanálise”. Mudou-se para Berlim em 1930.
Naquela cidade, ingressou no Partido Comunista Alemão (do qual seria
expulso em 1933).

Nos anos 1930, afirmou ter descoberto o “orgônio”, a substância vital


presente na energia sexual. Em 1932, separou-se de Annie e passou a
viver com a bailarina Elsa Lindeber. No ano seguinte, publicou “Análise do
Caráter” e “Psicologia de Massas do Fascismo”. Então, fugindo do nazismo
e da perseguição aos judeus, foi morar e trabalhar na Escandinávia.

Unidade 4 179
Universidade do Sul de Santa Catarina

Em 1934, determinado a descobrir a materialidade da libido, a


energia sexual, passou a desenvolver o projeto “Bions”. No ano
seguinte, em Oslo (Noruega), realizou pesquisas no Instituto de
Biofísica e proferiu palestras na Universidade.

Em 1939, separou-se de Elsa e foi viver com Ilse Ollendor (os dois
teriam um filho). No mesmo ano, mudou-se para os EUA.

Em Nova York, trabalhou como professor associado de psicologia


clínica na New School for Social Research. Criou uma máquina,
o “acumulador de orgônio”. Em 1941, o FBI o prendeu por
atividades subversivas.

Mudou-se para o estado do Maine em 1944 e construiu ali uma


casa, dando-lhe o nome “Orgonon”. O FBI, então, investigou o
tal acumulador de orgônio, e Reich precisou defender-se nos
tribunais.

Em 1948, seus seguidores criaram a Fundação Wilhelm Reich,


para preservar o pensamento, as atividades e as obras do
psicanalista. Entre aquele ano e 1957, Reich foi perseguido pela
FDA (a agência do governo americano que regula gêneros
alimentícios e medicamentosos), sendo acusado de fraude.

Em 1957, foi condenado a dois anos de prisão e teve todas as


suas obras proibidas. Em dezembro do mesmo ano, um ataque
cardíaco matou-o na prisão.
Fonte: Wilhelm (2010).

180
Filosofia Política II

Política por outros meios: Carl von Clausewitz - com


Da Guerra, Carl von Clausewitz revolucionou a teoria
militar
por Roberto Simon

Friedrich Engels costumava chamá-lo de “gênio puro”.


Vladimir Lênin, de “um dos maiores historiadores
militares”. Em 1914, a Alemanha colocou em prática
seu plano de guerra. Extensos trechos de sua obra-
prima eram citados nos discursos de Adolf Hitler. E até
Colin Powell, ex-secretário de Estado americano, disse
ter-se baseado nele para formular sua estratégia contra o
Iraque, em 2003. Afinal, por que Carl von Clausewitz,
um general prussiano que atuou na passagem do
século 18 para o 19, foi capaz de influenciar tantas
personalidades?

A resposta está em um livro. Com Da Guerra,


Clausewitz foi o primeiro teórico a explicar os conflitos
militares modernos. Seus conceitos estão sintetizados
em uma máxima: “A guerra é a continuação da política
por outros meios”. Para ele, a vitória materializa-se
na destruição física e moral do inimigo. “Guerra é
um ato de violência destinado a forçar o adversário a
submeter-se à nossa vontade”, ele afirma. Como o desejo
de submissão é mútuo, a rivalidade levará as batalhas a
seus extremos.

Clausewitz foi capaz de teorizar essa mudança para o


conflito absoluto, porque ele mesmo foi protagonista
dos conflitos militares de sua época. Nascido em 1780
em uma família nobre da Pomerânia, Clausewitz
ingressou no Exército prussiano com apenas 12 anos.
Aos 13, conheceu o campo de batalha pela primeira
vez. Depois, voltou-se para a teoria militar, até que as
guerras napoleônicas o lançaram novamente na guerra.
Em 1806, na batalha de Auerstadt, foi derrotado pelas
forças de Napoleão e enviado preso a Paris. De volta às
salas de aula prussianas, em 1815, tornou-se diretor da
Escola de Guerra alemã. Reconhecido como intelectual,

Unidade 4 181
Universidade do Sul de Santa Catarina

foi incumbido da educação militar do príncipe herdeiro


Frederico Guilherme IV. Quando a coroa da Prússia
resolveu se aliar à França, o general juntou-se às forças
do imperador russo, o czar Alexandre I. Em Moscou,
acompanhou de perto a retirada das tropas de Napoleão.

Ao morrer de cólera, em 1831, aos 51 anos, Clausewitz


deixou uma pilha de manuscritos teóricos inacabados.
No ano seguinte, sua viúva, Marie von Brühl (1779-
1836), reuniu esses fragmentos e os publicou. O aspecto
fragmentário de Da Guerra (publicado no Brasil pela
Martins Fontes) não diminui sua importância. Como o
general afirmou, antes de morrer, “mesmo incompleta, a
obra pode provocar uma revolução na teoria da guerra”.
Clausewitz tinha razão.
Fonte: Simon (2008).

182
5
UNIDADE 5

A questão da resistência e da
desobediência civil: remédios
liberais para o governo liberal
Marcos Rohling
Carlos Euclides Marques

Objetivos de aprendizagem
„„ Diferenciar desobediência e resistência civil.
„„ Analisar, principalmente a partir do pensamento político
de John Rawls, a noção de desobediência civil e suas
implicações.
„„ Indicar os critérios que definem a desobediência civil.
„„ Estabelecer relações entre as noções estudadas e certos
aspectos da vida política contemporânea.

Seções de estudo
Seção 1 Preâmbulos conceituais: resistência e
desobediência civis
Seção 2 Recuperando Locke

Seção 3 John Rawls: considerações iniciais

Seção 4 A noção de lei

Seção 5 Definição, justificação e papel da


desobediência civil, em Rawls
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Nesta unidade, você vai trabalhar as noções de resistência e de
desobediência civil, a segunda particularmente em Rawls, mas
não só. Passará pelo debate sobre a legalidade e legitimidade
das ações de resistência e desobediência civis como elementos
propiciadores dos direitos humanos e das conquista políticas.
Verá tipificações destas situações. E, para entender certo legado
tomado do pensamento político moderno em relação a estes
temas, retomará John Locke, estabelecendo, posteriormente,
certas relações entre este pensador da origem do Liberalismo e o
neoliberal contemporâneo John Rawls.

No trato com Rawls, você passará pelas noções de “posição


original” e “véu da ignorância” como as bases do contrato social e
“razoabilidade”.

Ainda terá oportunidade de entender como Rawls vê a


liberdade dentro de um complexo de direitos. Tudo baseado,
principalmente, mas não só, em sua obra Uma teoria da justiça,
de 1971, que trabalha a justiça como equidade. Este tema, como
você notará, interessa àqueles que se dedicam, sobremaneira, ao
direito, mas também, à filosofia política, à filosofia do direito
e à ciência política. O enfoque central da temática será de teor
filosófico, e não apenas jurídico.

Vamos à caminhada!

Seção 1 - Preâmbulos conceituais: resistência e


desobediência civis
A temática da desobediência civil como derivada do debate sobre
a resistência civil — do ponto de vista de alguns teóricos — não
é nova no cenário do debate político. Ambas são fruto da questão
sobre o respeito à lei em dadas situações. Neste sentido você pode
se perguntar:

184
Filosofia Política II

É moralmente adequado respeitar leis que são injustas


ou foram postas em desrespeito à Constituição ou por
um gestor no poder de forma ilegal?

Podemos remeter este debate à Antiguidade. Você deve


lembrar-se da tragédia Antígona de Sófocles, importante
tragediógrafo grego. A protagonista desta história, Antígona, por
convicções morais e em nome de uma lei religiosa, desrespeita
a norma prescrita pelo governante, Creonte. Tal prescrição do
governante proíbe o sepultamento e honrarias àqueles que, do
ponto de vista do governante, haviam guerreado ao lado dos
inimigos da cidade, Tebas, ou seja, contra esta cidade. É sabido
que os dois irmãos de Antígona morreram, matando-se um
ao outro, cada qual defendendo um lado. Mesmo sabendo que
estaria fazendo um ato ilegal, Antígona presta homenagens e
sepulta o irmão, o qual não tinha, à luz da prescrição humana,
direito às honras funerárias. Pega, ela é condenada a morrer
sepultada viva em uma caverna.

Você deve se lembrar, ainda, do diálogo platônico Críton, onde o


protagonista, Sócrates, é atiçado pelo amigo Críton a desrespeitar
o resultado do julgamento, por considerar que este é uma grande
injustiça. Naquela situação, o protagonista resolve respeitar a lei,
mesmo que ela seja injusta. Observe que, neste diálogo, Platão
está a defender a lei como um ideal absoluto de ordenamento
sociopolítico. Em última instância, é ela — a lei — que mantém
a ordem política; desobedecê-la seria quebrar tal ordem, ou seja,
quebrar a harmonia sociopolítica, não importando o teor da lei.

Enfim, respondendo à questão anterior: em princípio, como


cidadãos, devemos respeitar as leis. A isto, como salienta Bobbio
(1992, p. 335), se denominou obrigação política. Mas, a partir
da Modernidade, fica mais forte o debate sobre a possibilidade e a
legitimidade da resistência civil e, com ela, a desobediência civil.

É importante você saber que o debate acerca da desobediência


civil está relacionado a dois conceitos importantes: legalidade e
legitimidade. Veja mais sobre o assunto no texto a seguir:

Unidade 5 185
Universidade do Sul de Santa Catarina

O princípio da legitimidade

A legitimidade tem exigências mais delicadas, visto que levanta


o problema de fundo, questionando acerca da justificação e dos
valores do poder legal. A legitimidade é a legalidade acrescida de sua
valorização. É o critério que se busca menos para compreender e aplicar
do que para aceitar ou negar a adequação do poder às situações da
vida social que ele é chamado a disciplinar.
No conceito de legitimidade, entram as crenças de determinada época,
que presidem à manifestação do consentimento e da obediência.
A legalidade de um regime democrático, por exemplo, é o seu
enquadramento nos moldes de uma constituição observada e
praticada; sua legitimidade será sempre o poder contido naquela
constituição, exercendo-se de conformidade com as crenças, os
valores e os princípios da ideologia dominante, no caso a ideologia
democrática.
Do ponto de vista filosófico, a legitimidade repousa no plano das
crenças pessoais, no terreno das convicções individuais de sabor
ideológico, das valorações subjetivas, dos critérios axiológicos variáveis
segundo as pessoas, tomando os contornos de uma máxima de caráter
absoluto, de princípio inabalável, fundado em noção puramente
metafísica que se venha a eleger por base do poder.
A legitimidade inquire acerca dos preceitos fundamentais que
justificam ou invalidam a existência do título e do exercício do poder, da
regra moral, mediante a qual se há de mover o poder dos governantes
para receber e merecer o assentimento dos governados.
Vale ressaltar a importância que tem o entendimento sociológico da
legitimidade, a qual implica sempre uma teoria dominante do poder.
A legitimidade abrange, por último, duas categorias de problemas:
„„ a necessidade e a finalidade mesma do poder político que se
exerce na sociedade através principalmente de uma obediência
consentida e espontânea, e não apenas em virtude da compulsão
efetiva ou potencial de que dispõe o Estado (instrumento máximo
de institucionalização de todo o poder político). Vista debaixo desse
aspecto, a legitimidade do poder só aparece contestada nas doutrinas
anárquicas, nomeadamente no marxismo; e
„„ saber se todo poder é legal e legítimo ao mesmo tempo, e quais
as hipóteses configurativas de desencontro desses dois elementos:
legalidade e legitimidade.

Fonte: O Princípio... (2009).

186
Filosofia Política II

Para autores mais contemporâneos — entre eles John Rawls,


que você verá nesta unidade com mais atenção — resistência
Para ter mais informações
e desobediência tornam-se legítimas, como formas de sobre John Rawls, consulte
aprimoramento das próprias leis e, com isto, da ordem política. o Saiba Mais no final
desta unidade.
No que diz respeito às leis, esclarecedor é o verbete Resistência,
Direito de (Resistência), do “Dicionário de política” (BOBBIO,
1992, p. 336):

A Resistência à autoridade. Os ordenamentos jurídicos,


em especial os códigos penais e as leis administrativas,
costumam regular ou tipificar a infração que se produz
quando alguém se opõe de modo persistente e por vezes
violento à ação e ao exercício da autoridade constituída.
Do ponto de vista jurí­dico-penal, é interessante
distinguir este tipo de resistência da coação, do atentado
ou da desobediência, mas aqui só interessa destacar o seu
sentido nessas perspectivas penais e administrativas.
A resistência passiva pode configurar um ato
diferente por seu significado e suas conseqüências.
Tem efeitos sindicais muito importantes e também
pode ter repercussões jurídicas de algum relevo. Já
foi experimentada com êxito em algumas ocasiões, e
encontrou em Gandhi um filósofo e um prático para
aplicar suas doutrinas políticas. Tem por conseguinte um
sentido tanto jurídico como político.
B. A Resistência, movimento político de oposição. A
Resistên­cia é uma força política de caráter patriótico,
que, na Grécia, França, Itália e alguns outros países,
se manifestou na guerra de 1939-45 contra o domínio
nacional-socialista e fascista. O ato da invasão e de
domínio nazista ou fascista denominou-se ocupação, e
chamavam-se Resistência — de natureza específica em
cada um dos países citados, mas de interesse em todos
eles — os movimentos clandestinos de luta e apoio de
patriotas que se locomoviam entre os países, correndo
enormes riscos e enfrentando toda sorte de dificuldades,
para prejudicar, obs­truir e acabar com a ação do poder
ocupante. A Resistência ficou consagrada como uma
estrutura típica do comportamento sócio-político, e pode
revestir-se de um caráter geral para qua­lificar qualquer
movimento que se pareça com ela.

Unidade 5 187
Universidade do Sul de Santa Catarina

Como bem atenta Bobbio (1992, p. 336), a desobediência é


um tipo de resistência. Outro dado importante apontado pelo
autor é o fato de a noção de desobediência civil ser moderna,
inaugurada pela tradição anglo-saxônica ,“a começar pelo ensaio
clássico Civil disobedience (1849) de Henry David Thoreau, no
qual o escritor americano declara recusar o pagamento das taxas
“Henry David Thoreau (1817-
1862) — Escritor e naturalista,
ao Governo que as emprega para fazer uma guerra injusta (a
Thoreau teceu suas considerações guerra contra o México), afirmando: “a única obrigação que eu
filosóficas a partir da observação tenho o direito de assumir é a de eu fazer em cada circunstância
da natureza em Walden, (1854), o que eu acho justo”. Depois, ante a consequência do próprio
sua obra mais importante. Fez ato que poderia levá-lo à prisão, responde: “Num governo que
parte, junto com Emerson, do
movimento transcendentalista.
prende injustamente qualquer pessoa, o verdadeiro lugar para um
Reformador, pregou a homem justo é a prisão”. E, continua Bobbio (1992, p. 336):
desobediência civil ao facilitar
a fuga de escravos. Seu ensaio
Desobediência Civil, de 1849, Em sentido próprio, a Desobediência civil é apenas uma
influenciou a ação política de das situações em que a violação da lei é considerada como
líderes do século 20, como Gandhi eticamente justificada por quem a cumpre ou dela faz
e Luther King.” propaganda. Trata-se de situações que habitualmente
são compreendidas pela tradição dominante da filosofia
política sob a categoria do direito à resistência. Alexandre
Passerin d’Entrèves distinguiu oito modos diferentes de o
cidadão se comportar diante da lei:
1º - obediência de consentimento; 2º - obséquio formal;
3º - evasão oculta; 4º - obediência passiva; 5º - objeção
de consciência; 6º - desobediência civil; 7º - resistência
passiva; 8º - resistência ativa. As formas tradicionais de
resistência começam na resistência passiva e terminam
na resistência ativa. A Desobediência civil, em seu
significado restrito, é uma forma intermédia. Na esteira
de Rawls, d’Entrêves define-a como uma ação ilegal,
coletiva, pública e não violenta, que se atém a princípios
éticos superiores para obter uma mudança nas leis.

A partir do que é exposto acima, você pode perguntar-se:


“Como distinguir as situações que podem ser tomadas como
direito de resistência em relação a outras situações?”. Tal
questionamento de fundamental importância é respondido na
sequência do texto bobbiano:

188
Filosofia Política II

Podemos distinguir as situações que entram na categoria geral


do direito de resistência, baseados em diversos critérios calcados
no tipo de desobediência em ato: a) omissiva ou comissiva que
consiste em não fazer o que é mandado [...] ou em fazer aquilo
que é proibido [...]; b) individual ou coletiva, segundo é realizada
por um indivíduo isolado [... ] ou por um grupo cujos membros
condividem os mesmos ideais [...]; c) clandestina ou pública, ou
seja preparada e realizada em segredo, como acontece [...] no
atentado anárquico baseado na surpresa, ou, então, anunciada
antes da execução, como acontece habitualmente com a ocupação
das fábricas, de casas, de escolas, feita com a finalidade de obter
a revogação de normas repressivas ou impeditivas consideradas
discriminatórías; d) pacífica ou violenta, isto é, realizada através
de meios não violentos, como o sit-in e toda a forma de greve, de
uma maneira geral [...], ou com armas próprias ou impróprias,
como acontece geralmente numa situação revolucionária [...];
e) voltada para a mudança de uma norma ou de um grupo de
normas ou até do ordenamento inteiro. Sua natureza não é de
molde a questionar todo o ordenamento, como acontece com
a objeção de consciência em relação à obrigação de prestar o
serviço militar, muitas vezes em circunstâncias excepcionais,
como é o caso de uma guerra considerada particularmente
injusta [...] nem tende tampouco a derrubar um sistema por
inteiro como acontece com a ação revolucionária. Além disso,
a desobediência pode ser, segundo uma distinção que remonta
às teorias políticas da idade da Reforma, passiva ou ativa. É
passiva aquela que visa à parte preceptiva da lei e não à parte
punitiva; por outras palavras, é aquela que é realizada com a
vontade precisa de aceitar a pena que daí resultar e, enquanto tal,
na medida em que não reconhece ao Estado o direito de impor
obrigações contra a consciência, reconhece-lhe o direito de
punir toda a violação das próprias leis. Ativa é a que se dirige ao
mesmo tempo para a parte preceptiva e para a parte punitiva da
lei, de tal modo que o que a realiza não se limita a violar a norma
mas tenta subtrair-se à pena de todas as maneiras. (BOBBIO,
1992, p. 336).

O debate sobre a desobediência civil, como você já viu


anteriormente, é daqueles que envolveu o limite entre Moral e
Política.

Note bem, o respeito a uma regra moral exige uma


obediência interior, uma consciência de que tal regra
deve ser respeitada. Já a regra política, a lei jurídica, é algo
que vem do exterior. Não importa se você considere, ou
não, a regra coerente, basta respeitá-la. Trata-se da mera
obediência à regra, lei, norma.

Unidade 5 189
Universidade do Sul de Santa Catarina

Embora para alguns autores modernos, como por exemplo,


Kant, a política — regra jurídica — seja, em última instância,
uma adequação moral, tal posição não é comum a alguns autores
modernos e contemporâneos, que estabelecem, na linha da tradição
fundada por Maquiavel, uma separação entre Moral e Política.

Neste sentido, ou seja, nesta linha em que se pensa a Moral


separadamente da Política, existem justificativas possíveis para a
desobediência civil.

„„ Como salienta Bobbio (1992, p. 338), a desobediência


civil como transgressão da lei é, por vezes, justificada
num princípio de origem religiosa que, posteriormente,
foi laicizado na doutrina do direito natural. Trata-se de
uma obrigação que é independente de coação,

[...] e por conseguinte em consciência, distinta da lei


promulgada pela autoridade política, que obriga apenas
exteriormente, e, se alguma vez obriga em consciência, é
apenas na medida em que é conforme à lei moral.

A citação de Gandhi apresentada na sequência por


Bobbio é significativa:

Ouso fazer esta declaração não certamente para subtrair-


me à pena que deveria ser-me aplicada, mas para mostrar
que eu desobedeci à ordem que me havia sido dada
não por falta de respeito à autoridade legítima, mas
para obedecer à lei mais alta do nosso ser - a voz da
consciência (BOBBIO, 1992, p. 338).

„„ Uma segunda via de justificação é apresentada por


Bobbio e pauta-se na superioridade do indivíduo
sobre o Estado. Também de carater jusnaturalista
e contratualista, tem em Locke seu expoente mais
significativo. Antes de você passar para a abordagem
rawlsiana da temática, será apresentada a você,
rapidamente, a questão da resistência civil em Locke.
É sempre bom relembrar que não se trata de um autor
contemporâneo, mas, por ter sido destacada, desde
a Unidade 1, a contribuição de muitos pensadores

190
Filosofia Política II

modernos, Locke se faz presente. É que Rawls, um


liberal e um neo-contratualista, é influenciado pelas
ideias de Locke, Rousseau e Kant entre outros modernos.

„„ Bobbio (1992, p. 338) apresenta, ainda, uma terceira


justificativa, que se funda na noção de que toda forma
de poder, coerção sobre o homem é perversa. É o que
defendem as vertentes libertárias.

Seção 2 - Recuperando Locke


Tome, rapidamente, algumas questões em Locke. Tal digressão
servirá para você fazer uma ponte entre um pensador liberal
originário, ou seja, da origem desta concepção política, e as teses
defendidas po Rawls.

Locke, como homem público, participou ativamente dos


eventos políticos que acometeram a Inglaterra do século XVII,
encontrando na Revolução Gloriosa o seu ápice. Seus escritos
políticos inserem-se na conjuntura opositora às teses absolutistas
da fundamentação do poder régio. Neste particular, pode-se
arguir que o pensamento político, pelo menos o do Segundo
Tratado do Governo Civil, é uma justificação ex facto dos
eventos políticos aos quais estava atrelado. Assim, o direito de
resistência dos súditos ao soberano, que deve ter o consentimento
daqueles para ser legítimo, resulta do descumprimento deste para
com a finalidade do pacto, a saber, a salvaguarda dos direitos
naturais dos súditos. Ora, o soberano que age sem ter em conta
a salvaguarda dos direitos dos súditos age em seu interesse
particular, sendo, pois, entendido como governo tirânico, e,
portanto, passivelmente resistível.

Para Martins e Monteiro (1978), assim como toda a teoria do


conhecimento exposta no Ensaio acerca do Entendimento
Humano – cuja tese é a de que todo o conhecimento é
fundamentalmente derivado da experiência –, as teses sociais e
políticas de Locke caminham em sentido paralelo: do mesmo

Unidade 5 191
Universidade do Sul de Santa Catarina

modo que não existem ideias inatas, também não existe poder
que possa ser considerado inato e de origem divina, assim como
desejavam os teóricos do absolutismo.

De forma ampla, o direito de resistência ocorre quando há uma


quebra da legitimidade com a qual era revestido o governo, isto
é, quando há a deturpação da finalidade para a qual a sociedade
civil foi constituída. Em face disso, Locke é levado a pensar em
formas dessa degeneração. Estão na sequência.

A conquista
A conquista, em termos simples, consiste na dissolução do
governo a partir de ações exteriores à comunidade civil. Locke
assevera que, por conta da ambição que tem “enchido o mundo”,
“muitas pessoas têm tomado a força das armas por consentimento
do povo, considerando a conquista como uma das origens do
governo” (LOCKE, 1991, Cap. XVI, p. 286). O que Locke
tem em mente é deixar claro que, em sua teoria, apenas o
consentimento é fundante de uma comunidade política, pois
“sem o consentimento do povo, não é possível nunca fundar-se
nova sociedade” (ibid., op cit.). Locke dedica um longo capítulo a
esta temática e, em seu interior, divisa dois tipos de conquistas:

A derivada de uma guerra injusta e ilegítima

No primeiro tipo de conquista, os cidadãos têm os seus direitos


desrespeitados, de forma injusta, pelos conquistadores. Disso, de
modo algum terão os conquistados que prestar obediência aos
conquistadores, posto que “o agressor que se põe em estado de
guerra com outrem, invadindo-lhe injustamente o direito, não pode
nunca, por meio de tal guerra injusta, chegar a ter direito sobre o
conquistado”, portanto “é claro que aquele que conquista em guerra
injusta não pode ter qualquer direito à submissão e obediência do
conquistado” (LOCKE, 1991, Cap. XVI, p. 286-287). Como
consequência, neste caso, retorna-se ao estado de natureza porquanto
não haver mais a quem apelar-se, a não ser ao céu;

192
Filosofia Política II

A derivada de uma guerra justa e legítima

No segundo tipo, a conquista pertence à justiça do conflito,


embora o poder do conquistador seja puramente despótico. Ainda
assim, considerando que a vitória favoreça o lado justo, Locke
faz algumas consideração acerca da submissão, das quais três são
relevantes:

„„ conquista, em guerra injusta, não gera direito à


submissão e obediência por parte do conquistado;

„„ o governo dos conquistadores sobre os conquistados é de


tipo despótico; e

„„ o poder que possui o conquistador é sobre a vida de


quantos, pondo-se em estado de guerra, perderam-na,
mas não tem, por isso, direito e título às posses deles.

O interesse do autor, ao falar da conquista, é preservar, do


conquistador, a propriedade O que está em discussão é a
apropriação ilegítima dos bens daqueles que envolvidos na guerra,
encontram-se subjulgados. O conquistador tem direito à vida
dos que lhe concorrem em guerra, não aos seus bens. (LOCKE,
1991, Cap. XVI).

O contraste é aqui
A usurpação estabelecido no seguinte
sentido: a conquista
A usurpação, similar à conquista injusta, difere desta num degenera o governo e a
ponto: esta se trata de uma ação intentada do exterior da sociedade civil, ao mesmo
comunidade política, ao passo que aquela parte do interior da tempo, porque consiste,
quanto aos fundamentos,
sociedade política, pois que se configura como alterações do
nos princípios de
poder determinadas a partir do interior da própria comunidade, conquista. (LOCKE, 1991,
advindas de golpes e das revoluções ou guerras civis. Este tipo Cap. XVI, p. 286-293).
de degeneração, em contraste com a conquista, consiste na
mudança de pessoas, quanto ao governo da sociedade, e não
das formas e normas deste. Assim, o usurpador, para Locke, é
aquele que toma para si o que não lhe pertence, nem de fato, nem
de direito, invadindo, pois, a propriedade de terceiros. Locke
expressa-o nos seguintes termos:

Unidade 5 193
Universidade do Sul de Santa Catarina

Da mesma forma que se pode chamar a conquista de


usurpação estrangeira, assim também a usurpação é
uma espécie de conquista interna, com a diferença que
um usurpador não pode ter nunca o direito a seu favor,
somente sendo usurpação quando o usurpador entra
na posse daquilo a que um terceiro tem direito. Isto,
na medida em que é usurpação, consiste somente em
mudança de pessoas, mas não das formas e regras do
governo. (LOCKE, 1991, Cap. XVII, p. 294).

A tirania
A tirania consiste na terceira forma de degeneração da sociedade
civil. Esta é compreendida, por Locke, como “o exercício do
poder além do direito, o que não pode caber a pessoa alguma”
(LOCKE, 1991, Cap. XVII, p. 295), como desvirtuamento dos
fins da comunidade civil, por parte do governante, em favor do
atendimento às suas paixões particulares. Assim sendo, o tirano
é aquele que, tendo sido levado ao poder de modo legítimo, por
meio de do consentimento da comunidade, não o exerce para o
bem público. Portanto, é tirano todo aquele que, mesmo havendo
obtido o poder de forma legítima, por intermédio da comunidade
política, não cumpre as leis estabelecidas pelo legislativo, não
governa dentro dos limites da lei, com vistas ao bem público,
mas apenas segundo sua vontade e vantagens pessoais. (FILHO,
1980). Nesta perspectiva, segundo o entende Locke, por não
se comprometer com o interesse pelo bem público, assim como
o conquistador e o usupador, o tirano também poderá sofrer,
dentro da legitimidade, a resistência do povo. Neste prisma,
Locke afirma que, contra a tirania, como contra todo o poder
político que exceda os seus limites e ponha o arbítrio no lugar
da lei, o povo tem o direito de recorrer à resitência ativa e à
força. Neste caso, a resistência não é rebelião, porque é, antes,
a resistência contra a rebelião dos governos à lei e à própria
natureza da sociedade civil. O povo, para o filósofo, torna-se juiz
dos governantes e, de algum modo, apela para o próprio juízo de
Deus. (LOCKE, 1991).

194
Filosofia Política II

A dissolução do governo
A última forma de degeneração é a dissolução do governo. De
forma analítica, colocam-se, para Locke, duas condições para que
o governo seja dissolvido, a saber:

„„ quando se altera o poder legislativo: neste caso, tem-se


a dissolução em função do executivo tomar para si
as prerrogativas que pertencem ao legislativo, não
permitindo, ao substituir-lhe, o seu funcionamento,
outorgando a si o que é legitimamente pertencente ao
legislativo; e

„„ quando o legislativo investe contra os direitos naturais


dos indivíduos: neste caso, o legislativo não respeita
seus limites de ação e investe contra os direitos naturais
dos indivíduos de tal modo que, agindo assim, o
legislativo viola suas prerrogativas, não se atendo às suas
atribuições e agindo, de modo ilícito, ao causar prejuízo à
comunidade. Assim como nos casos predecessores, esses
modos de proceder ensejam, por parte da comunidade
política, razões para resistir ao governo, através de sua
dissolução.

É importante você observar que, para Locke, o homem


deixa o estado de natureza para ingressar na sociedade
civil exatamente para estabelecer leis que sejam
perenes e possam constituir julgamentos imparciais.

Ora, se, em sociedade, as leis são suplantadas pela vontade


arbitrária do governante, o qual se coloca como juiz de suas
próprias causas, então os homens retornam à situação inicial
em que não há para quem apelar, a não ser para a força. Esta
conjuntura configura-se na existência de um estado de guerra
entre o governante — que viola a propriedade e o direito natural
de seus cidadãos — e os governados, que têm como escolha
submeter-se aos caprichos de tal governante, ou resistir-lhe,
depondo-o inevitavelmente pelo uso da força. Locke, nestas
circunstâncias, exalta o povo à resistência, à desobediência civil
e à defesa de seus direitos – dimensionando a não violação dos
mesmos. (FILHO, 1980). O direito de resistência é, assim, o
direito que têm os cidadãos de depor

Unidade 5 195
Universidade do Sul de Santa Catarina

[...] um governo, quando o poder político se degenera


em poder despótico, violando os direitos naturais
dos mesmos ao se impor pela força, e não mais pelo
consentimento, afastando-se portanto, da sua função
precípua, qual seja, proteger os indivíduos e suas
propriedades. (FILHO, 1980, p. 177).

Além disso, a resistência é legítima tanto para cessar as violações


internas quanto as violações externas. Destarte, o direito de
resistência constitui-se em um legítimo direito do cidadão para
não permitir que a sociedade civil afaste-se dos fins para os quais
fora estabelecida, por meio da resistência a governos que agem
fora dos limites da lei. Como é evidente, o direito de resistência
faz retornar ao povo aquilo que, de fato, lhe pertence, a saber, o
poder político, estabelecido por ele, para a manutenção dos seus
direitos naturais.

É importante você observar que a destituição de um governo não


põe fim à sociedade civil. Isto porque a dissolução do governo
não dissolve o contrato.

Filho entende o pacto originário como concebido


pelo assentimento geral dos indivíduos que mantém
a sociedade civil e faz com que os mesmos, uma vez
havendo reconquistado o poder político, estabeleçam um
novo governo que deve permanecer sob o controle de toda
a sociedade. (FILHO, 1980, p. 177).

Além disso, este autor assevera que, concluindo as ideias


fundamentais acerca da teoria de Locke, acerca da
fundamentação, manuntenção e resistência ao poder civil,

[...] o direito natural, o livre consentimento dos


indivíduos para instaurar, por meio de um contrato social,
um poder político, a proteção do direito de propriedade, a
supremacia do Poder Legislativo sobre o Poder Executivo
e o direito à revolução constituem essencialmente, a
filosofia política lockeana. Estes fundamentos, por sua
vez, configuram as finalidades precípuas e os limites do
poder político. (FILHO, 1980, p. 177).

É mergulhado em uma posição jusnaturalista que Locke procura


limitar o poder político e, por conseguinte, vincular a norma

196
Filosofia Política II

jurídica, a ideia de uma lei natural, fundamento legítimo tanto do


direito positivo quanto da sociedade civil.

O direito de resistência é, portanto, o modo legítimo de


salvaguardar-lhes os direitos naturais individuais contra
os abusos do governante.

Como você pode constatar, nesta breve incursão por Locke,


muito das questões ligadas à resistência civil podem ser um ponto
de partida para, ainda hoje, debatermos tal temática.

Para efeitos comparativos, seria interessante você


recuperar, com mais ênfase, a noção de resistência
civil apresentada por alguns teóricos modernos,
particularmente Locke. Faça uma pesquisa neste
sentido e descreva abaixo suas considerações a
respeito, antes de continuas seus estudos.

Feitas estas observações iniciais, veja a seguir como Rawls


trabalha a noção de desobediência civil.

Unidade 5 197
Universidade do Sul de Santa Catarina

Seção 3 - John Rawls: considerações iniciais


Rawls é um pensador que, politicamente, defende o
contratualismo, nos passos de Locke, Rousseau e Kant. Seguindo
o contratualismo, expresso inicialmente em sua obra magistral,
Uma Teoria da Justiça, de 1971, o autor vê na “posição original”,
que é um dispositivo puramente hipotético e a-histórico, a origem
da sociedade política. Tal noção é vista, por alguns autores, como
um correlato contemporâneo do “estado de natureza”, com suas
devidas adaptações. Na posição original, as pessoas, que são
representativas, estariam sob o “véu da ignorância”, conceituado
pelo pensador como total privação do conhecimento da posição
que se ocupa na sociedade e das partes que representam. Assim
condicionados, os sujeito representativos deliberariam sobre os
princípios da justiça, os quais são frutos do consenso.

A discussão, dentro da qual a lei encontra-se na obra rawlsiana,


vincula-se à concepção do estado de direito e sua função protetiva
dos direitos individuais relacionados com os princípios de justiça,
especialmente com a liberdade; e, por outro lado, à questão do
dever e da obrigação naturais dos indivíduos, no contexto do
O que se pretende considerar, agora,
são os direitos individuais como
estado democrático-constitucional.
objeto de proteção do estado de
direito. A intenção não é apenas No entender de Rawls, o estado de direito está intimamente
relacionar essas noções com os relacionado com a liberdade. Tal relação ganha relevo, quando
princípios de justiça, mas também se considera a noção de sistema jurídico e de sua íntima conexão
elucidar o sentido da prioridade da com os preceitos que definem a justiça como regularidade.
liberdade. (RAWLS, 1997, p. 257).

Para Rawls, um sistema jurídico é uma ordem coercitiva


de normas públicas destinadas a pessoas racionais,
com o propósito de regular sua conduta e prover
a estrutura da cooperação social. Quando essas
regras são justas, elas estabelecem uma base para
expectativas legítimas, as quais possibilitam que as
pessoas confiem umas nas outras e reclamem quando
não veem suas expectativas satisfeitas, de modo que,
se a base dessas reivindicações for incerta, os limites da
liberdade também o serão.

Para que as obrigações decorrentes constituam a base das


expectativas legítimas, pressupondo que essas sejam regras
equitativas ou justas, basta que um grupo de indivíduos filie-se

198
Filosofia Política II

a essas instituições e aceite os benefícios daí resultantes. Os


organismos constitucionais definidos por esse sistema têm, em
geral, o monopólio do direto legal de exercer pelo menos as formas
extremas de coação. Essas características simplesmente refletem o
fato de que a lei define a estrutura básica no âmbito da qual se dá o
exercício de todas as outras atividades. (RAWLS, 1997).

Decorre, assim, que o estado de direito é o resultado da aplicação


ao sistema jurídico da concepção formal da justiça, e, neste
sentido, tal qual é pensado por Rawls (1997), tem envolvimento
com os seguintes princípios preceituais: princípio preceitual do
dever implica poder, que, na teoria da justiça, identifica várias
características do estado de direito, a saber:
O termo poder é
entendido por Rawls como
„„ as ações exigidas ou proibidas pelo estado de direito
sendo equivalente a ter
devem ser do tipo que seria razoável que as pessoas condições subjetivas e
possam fazer ou evitar. Um sistema de regras dirigido objetivas para realizar as
para as pessoas racionais para organizar sua conduta se ações e cumprir os deveres
preocupa com o que elas podem, ou não, fazer; e obrigações, haja vista ser
o cidadão uma pessoa, e,
„„ a ideia de que o dever implica poder transmite a noção neste sentido, com todas
as habilidades inerentes à
de que aqueles que estabelecem as leis e dão ordens
personalidade moral – a
fazem-no de boa fé; concepção de bem e o
senso de justiça –, as
„„ a exigência de que um sistema jurídico reconheça a quais, mais à frente, serão
impossibilidade do cumprimento da lei como argumento estudadas. Vale lembrar
de defesa; que a proposta deste
trabalho nada versa sobre
um estudo acerca deste
„„ exigência de que casos semelhantes devem receber
tema, na obra deste autor.
tratamento semelhante; Para maiores detalhes
veja Rawls (1997, 3ª parte,
„„ a pressuposição de que não há ofensa sem lei; e p.437-655).

„„ reconhecimento dos princípios da justiça natural,


os quais definem a noção de justiça natural a qual
deve assegurar que a ordem jurídica seja imparcial e
regularmente mantida. (RAWLS, 1997).

No que concerne à especulação levada a efeito acerca da lei,


elaborada perifericamente, esta é interpretada pelo autor como
diretriz endereçada a pessoas racionais, para sua orientação.
Neste contexto, as leis, em consonância com a teoria da justiça,
não precisam satisfazer necessariamente, em todos os casos, os

Unidade 5 199
Universidade do Sul de Santa Catarina

princípios preceituais do estado de direito, mas, tendo em mente


que esses princípios preceituais derivam de uma noção ideal,
espera-se somente que elas se aproximem dessa noção. (RAWLS,
1997). Com efeito, outra discussão relevante, posteriormente
intentada por Rawls, é que a melhor ordenação, tendo em vista
um sistema de sanções ponderado com relação às desvantagens
pelas partes na convenção constituinte, é aquele que minimiza os
riscos, referentes ao sistema de sanções, quais sejam:

„„ o de que não seja atendida a necessidade de cobrir os


gastos da manutenção do organismo; e

„„ o da probabilidade de que essas sanções venham a


interferir erroneamente na liberdade dos cidadãos.

Assim, observe que, para Rawls, está claro que, em condições


iguais, os perigos para a liberdade são menores quando uma lei é
administrada imparcial e regularmente, de acordo com o princípio
da legalidade. É interessante notar que a liberdade, neste contexto,
é um complexo de direitos e deveres definidos pelas instituições.
E que o seu exercício se dá dentro daquilo que determina a lei
em base nas expectativas legítimas. Esta é estabelecida quando as
normas do sistema jurídico são justas. Assim, ela constitui a base
que possibilita que as pessoas confiem umas nas outras e reclamem
quando não veem suas expectativas satisfeitas, de modo que, se as
bases dessas reivindicações forem incertas, os limites da liberdade
também o serão. Para que as obrigações decorrentes constituam
as bases para expectativas legítimas, pressupondo que essas sejam
regras equitativas ou justas, basta que um grupo de indivíduos
filie-se a essas instituições e aceite os benefícios daí resultantes.
(RAWLS, 1997).

De acordo com Rawls, o dever natural mais importante,


sob a ótica da teoria da justiça, é o de apoiar e
promover as instituições justas.

Este dever, portanto, tem duas implicações, quais sejam


(RAWLS, 1997):

„„ os membros devem obedecer às instituições que lhes


dizem respeito; e

200
Filosofia Política II

„„ os membros devem cooperar na criação de instituições


justas.

Do dever natural, origina-se o comprometimento de todos.


Supondo-se que a constituição básica da sociedade seja justa, ela
será estavelmente mantida mediante o apoio dos membros. Este
princípio, em contraste com o princípio utilitarista, é escolhido
por combinar e ser coerente com os dois princípios da justiça:
Sobre as críticas de Rawls
ao utilitarismo, leia o
„„ Assim, a estabilidade é assegurada, mediante o apoio dos
interessante artigo de Júlio
membros, através do senso de justiça dos cidadãos, sendo Esteves, As críticas do
este, inclusive, um dos aspectos da personalidade moral. utilitarismo por Rawls.
“Aplicado à teoria política,
„„ O outro aspecto, no entender de Rawls, é sua capacidade o princípio utilitarista reza
para ter uma concepção de bem. que a limitação coercitiva
das liberdades individuais
por parte do Estado pode
Outro dever natural, citado por Rawls (1997, p. 374-375), é o do
ser considerada como
respeito mútuo, que trata especificamente do manifestar a uma justificada, na medida em
pessoa o respeito merecido como ser moral, caracterizado pelos que suas consequências
dois aspectos acima referidos. A razão para reconhecer este dever são úteis, i.e., na medida
está no reconhecimento dos cidadãos de que, no convívio social, em que o Estado tende
a promover o maior
precisam da garantia da estima de seus consócios.
bem-estar ou felicidade
da coletividade a ele
Acerca da explanação em torno do dever e da obrigação, o
submetida. Ou seja: ainda
princípio da equidade é particularmente relevante, pois afirma que a restrição coercitiva
que cada pessoa deve fazer a sua parte, especificada pelas regras das liberdades seja em si
de uma instituição. Este princípio tem duas partes: mesma um mal necessário,
ela estará justificada
„„ a primeira afirma como contraímos obrigações; e na medida em que for
compensada por um
„„ a segunda estabelece a condição de que a instituição máximo de bem-estar ou
felicidade proporcionado
envolvida seja justa.
para a coletividade.”
(ESTEVES, 2002, p. 82).

Portanto, observe que a obrigação é só originada


mediante a existência de certas necessidades básicas,
e o termo dever é destinado às exigências morais
derivadas do princípio de equidade, enquanto que
o termo de deveres naturais é destinado às demais
exigências. (RAWLS, 1997).

Tendo isso em mente, Rawls afirma que, para explicar


obrigações baseadas na confiança, precisamos tomar como
premissa o princípio de equidade. Assim, a justiça como

Unidade 5 201
Universidade do Sul de Santa Catarina

equidade apregoa que os deveres e obrigações naturais surgem


unicamente em virtude de princípios éticos, os quais seriam
escolhidos na posição original. Esses critérios, juntamente
com os fatos relevantes das circunstâncias imediatas que
determinam nossos deveres e obrigações, destacam o que
conta como razão moral. Além disso, Rawls (1997) propõe
uma questão:

O termo decente, usado por Rawls


para fazer referência a Povos ou Em que medida e em quais circunstâncias deve-se
Sociedades Decentes em, O Direito continuar a obedecer a uma lei injusta?
dos Povos descreve sociedades
não liberais cujas instituições
cumprem condições específicas A injustiça de uma lei, afirma Rawls, não é justificativa suficiente
de direito e de justiça política e para não se obedecer a ela, posto que as leis são vistas como
levam seus cidadãos a honrar um obrigatórias, não excedendo certos limites de injustiça, quando
Direito razoavelmente justo no
entendimento e parâmetros da
a estrutura básica de uma sociedade é razoavelmente justa.
Sociedade dos Povos. Esses povos, Uma lei injusta, em linhas gerais, em determinadas ocasiões,
segundo o autor, possuem, na deve ser obedecida, tendo-se em vista o objetivo de se obterem
estrutura básica, a “hierarquia as vantagens de um procedimento legislativo eficaz e de não
de consulta decente”, o que faz se incorrer em prejuízos à estrutura básica de uma sociedade,
seus membros participarem
quando esta é razoavelmente justa. (RAWLS, 1997). Esta
efetivamente, em termos de
decisão, na definição dos rumos da questão conduz a outra relevante discussão na teoria rawlsiana:
política. Para dar conta de maiores sua concepção dos limites da desobediência civil.
detalhes, leia Rawls (2004, p. 3-4;
79-80; 92-93). No plano internacional, Rawls desenvolve a ideia de tolerância
estendida aos povos decentes. A discussão em torno das leis, a
qual está vinculada ao sistema de direito, pertence à criterização,
de modo que as sociedades hierárquicas decentes pertençam,
como membros de boa reputação, a uma Sociedade dos Povos
razoável. Destes dois critérios elencados por Rawls (sociedade
dos povos decente e razoável), o mais relevante à questão do
direito é o segundo, o qual é dividido em três partes:

„„ primeiro: o sistema de direito deve assegurar a todos os


membros do povo os direitos humanos;

„„ segundo: deve impor deveres e obrigações morais a todas


as pessoas dentro do respectivo território; e

„„ terceiro: deve haver uma crença sincera e não


irrazoável, da parte dos juízes e outros funcionários que
administram o sistema jurídico, de que a lei é realmente
guiada por uma ideia de justiça e do bem comum.
(RAWLS, 2004).
202
Filosofia Política II

A discussão acerca das leis na teoria política de Rawls é situada,


assim, dentro desse contexto. Por um lado, no âmbito interno,
numa dependência aos dois princípios que regem uma sociedade,
sobretudo em sua estrutura básica, posto que eles são aplicáveis
tanto às instituições quanto aos indivíduos; e, por outro, no
âmbito externo, aos direitos humanos. Assim, as leis, devidamente
compreendidas e situadas, estão a serviço da justiça, de modo a
promover entre todos os membros a justiça equitativamente.

Seção 4 - A noção de lei


Da teoria da justiça de Rawls, sobretudo no contexto de sua
obra Uma Teoria da Justiça, você pode inferir que as leis são
diretrizes endereçadas a pessoas racionais para sua orientação.
Isto ocorre dentro da estrutura básica da sociedade, supondo
que esta seja bem-ordenada. Neste sentido, é somente às pessoas
racionais que, de fato, cabe a obediência ou desobediência a uma
lei, seja ela injusta, ou não. Tendo em conta que as partes na
posição original, sob o véu da ignorância, deliberam acerca dos
princípios adequados para realizar a liberdade e a igualdade, a lei,
como tal, deve estar em consonância com as especificações dos
princípios da justiça. Assim, raciocina Rawls (1997, p. 14):

Depois de haver escolhido uma concepção de justiça,


podemos supor que as pessoas deverão escolher uma
constituição e uma legislatura para elaborar leis, e assim
por diante, tudo em consonância com os princípios da
justiça inicialmente acordados.

Nesta medida, é exigência, em uma sociedade bem ordenada,


que as leis reflitam a concepção de justiça, deliberada na posição
original, nas especificações dos princípios da justiça. Disso, tem-se
que a lei define a conduta dos indivíduos, concebidos como pessoas
racionais, conforme apontado inicialmente. Note que, como Rawls
se faz entender, é a lei quem define a estrutura básica da sociedade,
no âmbito da qual se dá o exercício de todas as demais atividades.
É definindo, pois, a estrutura básica da sociedade, que a lei
estabelece os parâmetros da conduta justa do indivíduo.

Unidade 5 203
Universidade do Sul de Santa Catarina

Nossos deveres e obrigações jurídicos, numa sociedade bem


ordenada, são estabelecidos, segundo Rawls (1997), pelo
conteúdo da lei, na medida em que este é determinável. Se uma
lei for imprecisa e incerta, esclarece Rawls, nossa liberdade
para agir dentro da estrutura básica da sociedade também será
imprecisa e incerta, e, consequentemente, não haverá meios que
possibilitem a criação de uma base para expectativas legítimas.
Disso, “se as leis são diretrizes endereçadas a pessoas racionais
para sua orientação, os tribunais devem preocupar-se com a
aplicação e imposição dessas regras da maneira apropriada”
(RAWLS, 1997, p. 261), ou seja, há a implicação na existência de
um sistema jurídico, que garanta a aplicação de tais leis.

Para Rawls, a aplicação dos princípios da justiça, em primeiro


lugar, destina-se à estrutura básica da sociedade, de forma que
esses princípios governem a atribuição de direitos e deveres.
A formulação de tais princípios tem como pressuposto que a
estrutura básica da sociedade seja dividida em duas partes:

„„ o primeiro princípio é aplicável à primeira parte, a


qual compõe o sistema social que define e assegura as
liberdades básicas iguais; e

„„ o segundo princípio é aplicável à segunda parte, a


qual especifica e estabelece as desigualdades de ordem
econômica e social.

Para ilustrar, eis uma lista das necessidades básicas apontadas por
Rawls:

„„ a liberdade política (direito de voto e de ocupar cargo


público);

„„ a liberdade de expressão e de reunião;

„„ a liberdade de consciência e de pensamento;

„„ a liberdades de pessoa (proteção psicológica e a agressão


física – integridade); e

„„ o direito à propriedade privada e à proteção, em


consonância com o conceito de estado de direito, contra a
prisão e a detenção arbitrárias.

204
Filosofia Política II

Assim, reportando-se ao primeiro princípio, essas liberdades


devem ser iguais para todos. Além disso, Rawls (1997)
compreende a aplicação dos princípios da justiça (liberdade
e igualdade) em ordem serial, isto é, o primeiro antecede o
segundo, em um sentido lexicalmente prioritário, de forma
que não é permitida a violação das liberdades básicas em prol
de vantagens econômicas e sociais. Em outras palavras, não se
admite a permuta entre liberdades básicas e ganhos sociais e
econômicos, seguramente, por força dos princípios da justiça.

A Justiça como Regularidade


O texto de Rawls que mais versa sobre a justiça como
regularidade localiza-se em Uma Teoria da Justiça. Rawls
entende que a aplicação da lei deve dar-se consoante os princípios
da justiça, respeitando suas especificações. Acerca da justiça
formal, diz Rawls (1997, p. 61-62):

A essa administração imparcial e consistente das leis


e instituições, independentemente de quais sejam seus
princípios fundamentais, podemos chamar de justiça
formal. Se pensamos que a justiça sempre expressa algum
tipo de igualdade, então a justiça formal exige que, em
sua administração, as leis e as instituições se devam
aplicar igualmente (ou seja, do mesmo jeito) àqueles
que pertençam às categorias definidas por elas. Como
enfatizou Sidgwick, esse tipo de igualdade está implícito
na própria noção de lei ou instituição, uma vez que ela
seja considerada como um sistema de regras gerais. A
justiça formal é a adesão ao princípio, ou, como disseram
alguns, a obediência ao sistema.

A aplicação da justiça formal, ou como sugere o próprio Rawls,


justiça como regularidade ao sistema jurídico faz surgir o estado
de direito. O estado de direito é, então, o resultado da aplicação
ao sistema jurídico da concepção formal da justiça. Este estado
de direito, no entender de Rawls, está intimamente relacionado
com a liberdade, visto que esta relação é evidenciada quando se
considera a noção de sistema jurídico e de sua íntima conexão
com os preceitos que definem a justiça como regularidade.
(RAWLS, 1997).

Unidade 5 205
Universidade do Sul de Santa Catarina

O Estado de Direito
De acordo com Rawls, pode-se dizer que o estado de direito
envolve preceitos. Veja a seguir a explicação de alguns deles:

Dever implica poder

O preceito de Rawls de que dever implica poder identifica várias


características do sistema de direito. De acordo com a primeira delas,
as ações exigidas ou proibidas pelo estado de direito devem ser do
tipo razoável, que as pessoas possam fazer ou evitar, de forma que um
sistema de regras dirigido para as pessoas racionais para organizar sua
conduta se preocupa com o que elas podem, ou não, fazer.

Abrindo parênteses, é importante explicar a noção de


razoabilidade em Rawls. Para tanto, você pode tomar Sidney
Reinaldo da Silva, em seu artigo Razoabilidade, pluralismo e
educação segundo John Rawls. Esclarece o comentador:

John Rawls destacava duas capacidades morais: a


racionalidade e a razoabilidade, respectivamente, a
capacidade de conceber um bem, um projeto de vida e de
buscar os meios adequados para realizá-los e a capacidade
de propor e aceitar acordos justos, de negociar regras e
normas com ponderação e reciprocidade. A primeira
mantém correlação com a razão estratégica e a segunda com
a civilidade e a capacidade de negociar consensos e contratos
justos. A razoabilidade diz respeito a valores da esfera
política, e exige uma formação que favoreça o florescimento
de virtudes políticas, sem as quais a pessoa não poderia
participar do debate público. O modo como devem ser
formadas as capacidades morais na escola exige a negociação
razoável entre os profissionais da educação. Assim, ao se
decidir, na escola obrigatória, como e quais virtudes cívicas
serão ensinadas para se formar cidadãos razoáveis, exige-se
razoabilidade. (SILVA, 2010, p. 3-4)

A segunda característica, evidenciada na ideia de que o dever


implica poder, transmite a noção de que aqueles que estabelecem
as leis e dão ordens fazem-no de boa fé. Neste sentido, as
autoridades devem acreditar, seguramente, que as leis podem ser
obedecidas. A este respeito, Rawls diz, inclusive, que a própria
boa-fé destas autoridades deve ser reconhecida por aqueles que

206
Filosofia Política II

são sujeitados aos seus ditames, visto que leis e ordens são aceitas,
se, realmente, acredita-se que se pode obedecer a elas e executá-
las. Por último, este princípio preceitual expressa, segundo
Rawls, a exigência de que um sistema jurídico reconheça a
impossibilidade de cumprimento e obediência como defesa. Caso
não o possa, que seja, pelo menos, um atenuante. O sentido disto
é que, ao impor regras, um sistema jurídico deve ter em conta
a capacidade, ou não, para sua execução como algo relevante.
Seria um fardo insuportável para a liberdade, enfatiza Rawls, se
a possibilidade de sofrer sanções se limitasse a atos acerca dos
quais a execução, ou não execução, não estivesse em nosso poder.
(RAWLS, 1997).

Casos semelhantes devem receber tratamentos semelhantes

O princípio preceitual da isonomia, ou seja, de que casos


semelhantes devem receber tratamento semelhante é relevante
no sentido de que, sem este preceito, as pessoas não poderiam
regular suas ações por meio de regras. Este preceito limita
significativamente a descrição dos juízes e de outros que ocupam
cargos de autoridade, além de que os força a fundamentar as
distinções que fazem entre pessoas por meio de uma referência
aos princípios e regras legais corroborantes. Sob este aspecto,
este preceito do sistema jurídico coloca em relevo a coerência.
(RAWLS, 1997).

O preceito de que não há ofensa sem lei

O princípio preceitual da legalidade, expresso na ideia de que não


há ofensa sem lei exige do sistema de direito, para Rawls:

„„ primeiro, que as leis sejam conhecidas e expressamente


promulgadas;
„„ segundo, que seu significado seja claramente definido;
„„ terceiro, que os estatutos sejam genéricos tanto na forma
quanto na intenção e que não sejam usados como um
meio de prejudicar determinados indivíduos que podem
ser expressamente nomeados (decretos confiscatórios);

Unidade 5 207
Universidade do Sul de Santa Catarina

„„ quarto, que infrações mais graves sejam interpretadas


estritamente; e
„„ por último, que as leis penais não sejam retroativas em
detretimento daqueles aos quais se aplicam.

De acordo com Rawls, estas exigências do princípio de que


não há ofensa sem lei estão todas implícitas na noção de
Para Rawls, o pluralismo razoável, regulamentação do comportamento por normas públicas.
em contraposição ao pluralismo em (RAWLS, 1997).
quanto tal, o qual admite a existência
de teorias abrangentes não razoáveis,
é o resultado normal dcultura de
instituições livres da democracia Os princípios da justiça natural
constitucional. (RAWLS, 2004, p. 173).
Em O Liberalismo Político, Rawls Por fim, os princípios da justiça natural devem, dentro do
faz o seguinte contraponto entre o
pluralismo razoável e o pluralismo
sistema de direito, assegurar que a ordem jurídica seja imparcial e
enquanto tal: “O liberalismo político regularmente mantida. (RAWLS, 1997).
[...] vê essa diversidade como
o resultado de longo prazo das
faculdades da razão humana situada
num contexto de instituições livres A lei legítima
duradouras.[...] Ao articular uma
concepção política de tal maneira que O referencial teórico, concernente à lei legítima, na obra de
ela possa conquistar um consenso
sobreposto, não a adaptamos à
Rawls, encontra-se na Ideia de Razão Pública revista, em O
irracionalidade existente, mas ao fato Direito dos Povos. Para o filósofo, a ideia de razão pública,
do pluralismo razoável, que resulta inicialmente discutida em O Liberalismo Político, faz parte de
do exercício livre da razão humana uma concepção de sociedade democrática constitucional bem
em condições de liberdade.” (RAWLS, ordenada, sendo parte da própria ideia dessa sociedade a forma e
2002, p. 190).
o conteúdo dessa razão, porquanto a democracia ser caracterizada
pelo pluralismo razoável.

Segundo Rawls, os cidadãos percebem que não podem


chegar a um acordo com base nas suas doutrinas
abrangentes irreconciliáveis. Em virtude disso, precisam
considerar quais tipos de razões podem oferecer
razoavelmente um ao outro em matéria de questões
políticas fundamentais.

Assim, Rawls propõe que, na razão pública, as doutrinas


abrangentes de verdade ou direito sejam substituídas por uma
ideia do politicamente razoável, dirigida aos cidadãos enquanto
cidadãos. Além disso, para o filósofo, a ideia de razão pública
não critica nem ataca qualquer doutrina abrangente, exceto na

208
Filosofia Política II

medida em que seja incompatível com os elementos essenciais da


razão pública e de uma sociedade democrática. A exigência básica
que se impõe, assim, no entender do autor, é que uma doutrina
O ideal de razão
razoável aceite um regime democrático constitucional e a ideia de pública, para Rawls,
lei legítima que o acompanha. (RAWLS, 2004). concretiza-se quando os
juízes ou legisladores,
Rawls esclarece que a ideia de razão pública, que é distinta do executivos principais e
ideal da razão pública, explicita no nível mais profundo os outros funcionários do
valores morais e políticos que devem determinar a relação de governo, ou candidatos
a cargo público, atuam a
um governo democrático constitucional com os seus cidadãos
partir da ideia de razão
e a relação destes entre si. A ideia de razão pública, no dizer de pública, a seguem e
Rawls, tem uma estrutura definida em cinco aspectos, quais explicam a outros suas
sejam: razões para sustentar
posições políticas
„„ as questões políticas fundamentais às quais se aplica; fundamentais em função
da concepção política de
„„ as pessoas às quais se aplica (funcionários do governo e justiça que consideram
como a mais razoável.
candidatos a cargos públicos);
Pelos cidadãos não
funcionários do governo,
„„ seu conteúdo como dado por um conjunto de concepções tal ideal é realizado
políticas razoáveis de justiça; quando eles se veem
como legisladores ideais e
„„ a aplicação dessas concepções em discussões de normas repudiam os funcionários
coercitivas a serem decretadas na forma de lei legítima e candidatos a cargo
para um povo democrático; e público que violam a razão
pública, cumprindo, os
não funcionários, o dever
„„ a verificação pelos cidadãos de que os princípios de civilidade e fazendo
derivados das suas concepções de justiça satisfazem o o possível para que os
critério de reciprocidade. (RAWLS, 2004). funcionários mantenham-
se fiéis a ela. (RAWLS,
Além disso, Rawls assevera que a razão pública dá-se de três 2004, p. 178-179).
formas, a saber:

„„ como razão de cidadãos livres e iguais, é a razão do


público;

„„ seu tema é o bem público no que diz respeito a questões


de justiça fundamental, de dois tipos: elementos
constitucionais essenciais; e questões de justiça básica; e
a sua natureza e conteúdo são públicos, sendo expressos
no raciocínio público por um conjunto de concepções
razoáveis de justiça política a qual se pense que possa
satisfazer o critério de reciprocidade. (RAWLS, 2004).

Unidade 5 209
Universidade do Sul de Santa Catarina

A aplicação da ideia de razão pública, neste contexto, é somente


àquelas questões de fórum político público, o qual pode ser, no
entender do autor, dividido em três partes:
Essa divisão elaborada por „„ o discurso dos juízes nas suas discussões — e
Rawls é em função de o filósofo especialmente dos juízes de um supremo tribunal;
compreender como distinta a
aplicação da razão pública a esses
três casos, no que ele chama de a
„„ o discurso dos funcionários do governo — especialmente
concepção ampla de cultura política executivos e legisladores principais; e
pública. (RAWLS, 2004, p. 176).
„„ o discurso de candidatos a cargo público, na plataforma
de campanha e declarações políticas. (RAWLS, 2004).

Diferente desse fórum tripartite é a cultura de fundo, aquilo que


o autor denomina “posição original”, da sociedade civil. Rawls
compreende que a cultura de fundo não é guiada por nenhuma
ideia ou princípio central, político ou religioso. A ideia de razão
pública, segundo o filósofo, não é aplicada a essa cultura de fundo.

Voltando à discussão acerca da ideia de razão pública, Rawls a


entende como sendo originada de uma concepção de cidadania
democrática numa democracia constitucional. Essa relação
política fundamental da cidadania com a democracia tem duas
características:

„„ a primeira delas é que se trata de uma relação de cidadãos


com a estrutura básica da sociedade — na qual se entra
pelo nascimento e somente se sai pela morte; e

„„ a segunda é dada pela relação de cidadãos livres e iguais,


que exercem o poder político último como corpo coletivo.
(RAWLS, 2004).

Neste sentido, observe que, para Rawls, essas duas características


originam imediatamente a questão de como e quando os
elementos constitucionais essenciais e as questões de justiça
básica estão em jogo. Os cidadãos assim relacionados podem
ser obrigados a honrar a estrutura do seu regime democrático
constitucional e aquiescer aos estatutos e leis decretados sob ele.
Sendo assim, pergunta-se:

210
Filosofia Política II

Por quais ideais políticos os cidadãos que


compartilham igualmente o poder político último
devem exercer esse poder, de modo que cada um
possa justificar razoavelmente as suas decisões
políticas para todos?

A resposta formulada por Rawls a essa questão é que os cidadãos


são razoáveis quando se veem, mutuamente, como livres e iguais
em um sistema de cooperação social ao longo de gerações, e
assim, estão preparados para oferecer um ao outro termo justo
de cooperação segundo o que consideram ser a concepção mais
razoável de justiça política; e quando concordam em agir com
base nestes termos, mesmo ao custo dos seus interesses em
situações particulares, contanto que os outros cidadãos aceitem
esses termos. (RAWLS, 2004).

Em uma questão constitucional essencial, ou em uma questão


de justiça básica, todos os funcionários governamentais atuam a
partir da razão pública e a seguem, e quando todos os cidadãos
razoáveis pensam em si mesmos idealmente, isto é, como se
fossem legisladores seguindo a razão pública, a disposição jurídica
que expressa a opinião da maioria é lei legítima, e, desta maneira,
politicamente (e, inclusive, moralmente para Rawls) obrigatória
para cada cidadão. Acerca desta disposição, Rawls entende que a
cada cidadão:

[...] pode não parecer [...] como a mais razoável ou a


mais adequada, mas é politicamente (moralmente)
obrigatória para cada cidadão e deve ser aceita como tal.
Cada um pensa que todos falaram e votaram pelo menos
razoavelmente e, portanto, que todos seguiram a razão
pública e honraram o seu dever de civilidade. (RAWLS,
2004, p. 181).

Rawls entende, portanto, que a ideia de legitimidade política


baseada no critério de reciprocidade estabelece que o exercício do
poder político de cada cidadão é adequado apenas quando estes
acreditam sinceramente que as razões que ofereceriam para suas
ações políticas são suficientes. Além disso, os cidadãos devem
pensar razoavelmente que outros cidadãos também poderiam
aceitar razoavelmente essas questões. Para Rawls, esse critério se
aplica em dois níveis, a saber:

Unidade 5 211
Universidade do Sul de Santa Catarina

„„ à própria estrutura constitucional; e

„„ aos estatutos e leis particulares decretados em


conformidade com essa estrutura.

Nesta medida, o papel do critério de reciprocidade na razão


pública é especificar a natureza da relação política num regime
Acerca do critério de
reciprocidade, Rawls expõe
democrático constitucional como uma relação de amizade cívica,
que ele é, normalmente, violado, posto que, quando funcionários do governo atuam a partir dele
sempre que as liberdades básicas e outros cidadãos o apoiam, este governo dá forma às suas
são negadas, “pois quais razões instituições fundamentais.
podem satisfazer o critério de
reciprocidade e, ao mesmo tempo, Como é evidente, a argumentação rawlsiana é interessada pela
justificar que seja negada a algumas
democracia. Segundo o autor, seu interesse é afixado, dentre as
pessoas a liberdade religiosa,
que outras sejam tratadas como muitas democracias teorizadas, pela democracia constitucional
escravas, que uma qualificação por bem ordenada, compreendida como uma democracia deliberativa,
propriedade seja imposta ao direito sendo a própria ideia de deliberação a ideia definitiva a favor desta
de voto, ou que o direito de sufrágio democracia. Nessa democracia deliberativa, Rawls argumenta
seja negado às mulheres?” (RAWLS,
que há três elementos essenciais:
2004, p. 181-182).
„„ a ideia de razão pública;

„„ uma estrutura de instituições democráticas


constitucionais que especifique o cenário dos corpos
legislativos deliberativos; e

„„ o conhecimento e o desejo dos cidadãos em geral de


seguirem a razão pública e concretizarem o seu ideal na
conduta política.

Além disso, Rawls (2004) entende que a democracia deliberativa


também reconhece que, sem instrução ampla sobre os aspectos
básicos do governo democrático para todos os cidadãos, e
sem público informado a respeito de problemas prementes,
decisões políticas e sociais cruciais simplesmente não podem ser
tomadas. Assim, é patente que a estrutura governamental de
uma democracia constitucional deve manter peremptoriamente
os cidadãos informados a respeito dos problemas mais evidentes
desta sociedade.

212
Filosofia Política II

A ideia de lei legítima, para uma sociedade


democrática, segundo Rawls, é o resultado da aplicação
do conteúdo da ideia de razão pública, formado por
um conjunto de concepções políticas razoáveis de
justiça, em discussões de normas coercitivas.

Conforme apontado acima, a lei legítima é a expressão, por um


lado, da atuação de todos os funcionários e juízes governamentais,
e, por outro, da ação dos cidadãos razoáveis, que se pensam como
legisladores ideais seguindo a ideia de razão pública. Além disso,
a lei legítima é compreendida por todos os cidadãos como sendo
aplicada à estrutura geral da autoridade política.

Rawls esclarece, ainda, com relação ao voto do cidadão, no


processo de formação de uma lei legítima, os quais devem votar de
acordo com o seu ordenamento completo de valores políticos, que:

A concepção política razoável de justiça nem sempre


leva à mesma conclusão; tampouco cidadãos que
sustentam a mesma concepção concordam sempre
quanto a questões específicas. Não obstante, o resultado
da votação [...] deve ser visto como legítimo, contanto
que todos os funcionários governamentais, apoiados por
outros cidadãos razoáveis, de um regime constitucional
razoavelmente justo, votem de acordo com a idéia de
razão pública. Isso não significa que o resultado seja
verdadeiro ou correto, mas que o resultado é uma lei
razoável e legítima, obrigatória para os cidadãos pelo
princípio da maioria. (RAWLS, 2004, p. 222).

No que diz respeito a esses cidadãos, para os quais, de acordo


com os seus valores políticos razoáveis, a lei resultada não seja
correta, Rawls diz que eles mesmos não precisam exercer o
direito assegurado por essa lei. Assim, segundo o autor, podem
tais cidadãos:

[...] reconhecer o direito como pertencente à lei legítima


decretada em conformidade com instituições políticas
legítimas e com a razão pública e, portanto, não lhe
resistir com a força. (RAWLS, 2004, p. 222-223).

Unidade 5 213
Universidade do Sul de Santa Catarina

Outrossim, a ideia que Rawls procura clarificar nesta


argumentação não é a de que uma lei legítima seja
necessariamente uma lei justa. Em Uma Teoria da Justiça, Rawls
esclarece que a constituição é um procedimento justo, todavia,
imperfeito. Ora, é imperfeito porque não existe nenhum processo
político factível que garanta que as leis estabelecidas segundo
parâmetros legítimos serão justas. (RAWLS, 1997). Apesar
disso, o cidadão tem o dever natural de apoiar instituições justas,
em função do que é obrigado a acatar leis e políticas injustas, ou,
pelo menos, a não lhes fazer oposição usando meios ilegais, desde
que elas não ultrapassem certos limites de injustiça.

Entretanto, para o filósofo, em um regime democrático, o


interesse legítimo do governo é que a lei e a política públicas
sustentem e regulamentem, de maneira ordenada, as instituições
necessárias para reproduzir a sociedade política ao longo do
tempo, de modo a promover a justiça.

A desobediência civil
A desobediência civil é desenvolvida por Rawls na segunda parte
de sua obra Uma Teoria da Justiça, estando, portanto, vinculada
não à teoria ideal, mas à teoria não-ideal, isto é, às instituições in
concreto. Para Rawls, o fato de uma lei ser injusta não caracteriza
as circunstâncias necessárias para a justificação da desobediência
civil. Embora o autor considere como necessário que uma teoria
da obediência admita a possibilidade da desobediência civil,
o autor não considera que tal deva ser praticada de qualquer
modo. A desobediência civil, deste ponto de vista, direta ou
indiretamente — Rawls enfileira-se entre aqueles que fazem esta
distinção — deve ser um ato público e não violento, pretendendo,
No que concerne à obediência à
mesmo que se sofra sanções, a correção da lei.
lei, na obra de Rawls, tem-se dois
referenciais: por um lado, no âmbito
internacional, em O Direito dos Na teoria rawlsiana, uma lei injusta é aquela que não
Povos, o estudo das diferentes está de acordo com as enunciações e implicações
sociedades admitidas pelo autor; provenientes dos princípios da justiça, os quais estão
por outro, em, Uma Teoria da na base do estabelecimento de todos os deveres
Justiça, o estudo do que é uma lei e obrigações. Para o filósofo, o fato de uma lei ser
injusta e da desobediência civil. injusta não é motivo justo e razão suficiente para
deixar de obedecê-la.

214
Filosofia Política II

A injustiça de uma lei


A discussão sobre a obediência, ou não, a uma lei injusta,
na teoria rawlsiana, é situada, principalmente, no Capítulo
VI, § 53, de Uma Teoria da Justiça. Nesta passagem, Rawls
afirma que a questão relevante consiste em saber em quais
circunstâncias e em que medida somos obrigados a obedecer
ordenações injustas. A elaboração teórica de tal indagação parte
da pressuposição de ser claro que o nosso dever e obrigação de
aceitar ordenações concretas podem ser sobrepujados, em certas
ocasiões, por exigências que dependem do conceito de justo, e
que, consideradas todas as circunstâncias, podem justificar a não
obediência, em certos momentos, a uma lei injusta.

A injustiça de uma lei e, igualmente, de uma política, para Rawls,


pode surgir de dois modos:

„„ as leis, em grau diverso, podem afastar-se dos padrões de


justiça publicamente aceitos; e

„„ essas leis podem conformar-se com a definição de justiça


de uma sociedade ou de uma classe dominante, que pode
não ser razoável em si mesma, em virtude de algumas
concepções serem mais ou menos razoáveis que outras.
Segundo Rawls (1997),
Entretanto, para Rawls, é complexa a construção dessa teoria
como regra geral, uma
funcional baseada nestes dois modos pelos quais uma lei torna-se concepção de justiça é
injusta, no sentido de que, inicialmente, quando as leis afastam-se razoável na proporção
dos padrões publicamente reconhecidos, é pensável que se recorra da força dos argumentos
ao senso de justiça da sociedade — para o caso da desobediência que se podem apresentar
a favor de sua adoção na
— e, em um outro caso, deve-se discutir por que temos o dever
posição original.
de obedecer a leis injustas.

Para Rawls, o dever de justiça e o princípio da equidade


pressupõem que as instituições sejam justas. Mas isso
não é suficiente. É preciso, para a elaboração de uma
teoria, que se esclareça o porquê de se obedecer a uma
lei que seja injusta.

Assim, Rawls postula que possa existir uma sociedade na qual o


sistema social seja bem ordenado, sem apresentar uma ordenação
perfeita, isto é, uma sociedade quase justa, na qual exista um
regime constitucional viável, que satisfaça o princípio da justiça.

Unidade 5 215
Universidade do Sul de Santa Catarina

Rawls entende, também, que a constituição é vista como um


procedimento justo, porém imperfeito, visto que não há como
garantir, mediante procedimentos políticos factíveis, que as leis
hão de ser justas. Nas atividades políticas, prossegue o filósofo,
é impossível atingir uma justiça procedimental perfeita. No
pensamento de Rawls, em uma sociedade cujo regime político
interno seja de quase justiça, os cidadãos têm o dever de acatar
ordenações e políticas injustas em virtude do dever natural de
apoiar instituições justas.

Além disso, há o problema da instabilidade, latente nesta


discussão levada a efeito por Rawls em torno do dever de
obediência, tendo em vista que o dever natural mais elementar
e fundamental, a partir da teoria da justiça, é o de apoiar e
promover as instituições justas. Isto é, há o risco, no caso da não
obediência a certas ordenações injustas, de se incorrer na geração
da instabilidade das instituições. Para promover a estabilidade
das instituições, é preciso, em certos casos, obedecer a certas
ordenações injustas. A estabilidade das instituições justas, no
contexto de Uma Teoria da Justiça, é simplesmente fruto do
estímulo da aceitação da exigência de apoio e acatamento destas
instituições. Tal estabilidade é ameaçada, fundamentalmente, por
duas posturas, quais sejam: a postura egoísta e a desconfiança da
lealdade alheia.

Desse modo, tendo em vista que o objetivo dos cidadãos é


barganhar benefícios para si — isto é, cada cidadão vivendo em
sociedade, compreendendo-a como um sistema de cooperação
social, procura, por meio desta, através da cooperação social entre
pessoas livres e iguais, haurir benefícios para si — cada cidadão
tem o dever de acatar instituições, políticas e leis injustas e
obedecer a elas, em vista da manutenção desta sociedade.

216
Filosofia Política II

Seção 5 - Definição, justificação e papel da


desobediência civil, em Rawls

Definição
Rawls alerta que uma teoria acerca da desobediência civil
deve, antes de tudo, definir o âmbito dentro do qual se situa
A desobediência civil
e identificar, igualmente, as considerações que são, de fato, rawlsiana é concebida
pertinentes. inexoravelmente para o
caso particular de uma
Para o filósofo, a desobediência é iniciada com um público cujos sociedade bem-ordenada,
constitutivos principais são a não violência e a consciência no isto é, uma sociedade
sentido de que propõe uma mudança na lei. O ato de protesto democrática, quase
justa, na qual acontecem,
configurante da desobediência civil não viola necessariamente
porém, violações sérias da
a mesma lei contra a qual se protesta. Há, para Rawls, uma justiça. Neste sentido, diz
distinção entre a desobediência civil direta e indireta. Tal diferença o autor, a desobediência
é esclarecida por Joelton Nascimento (2006) em seu ensaio “O civil apresenta-se no
conceito de desobediência civil na teoria do Brasil à luz das interior de uma sociedade
democrática mais ou
reflexões de Hannah Arendt”.
menos justa e configura-se
como um problema de
deveres conflitantes. A
[...] desobediência indireta, ou seja, quando o contestador
teoria da desobediência
viola uma lei não por achá-la injusta, mas para contestar
civil rawlsiana tem
uma outra ação ou política governamental. Ao contrário
três partes, a saber: a
da desobediência direta, que é quando o contestador viola
definição, a justificação e o
uma lei para atacar o conteúdo apenas da lei a que viola.
papel que ela desempenha
na sociedade. (RAWLS,
Além disso, Rawls entende literalmente que a desobediência 1997, p. 402-3).
civil é um ato contrário à lei, e que os envolvidos, mesmo
considerando que uma lei protestada seja mantida, estão
preparados para opor-se a ela. (RAWLS, 1997, p. 404).

A desobediência civil, observa Rawls (1997, p. 405),


é um ato político. Assim o é porque se orienta e se
justifica por princípios embasadamente políticos, isto
é, aqueles princípios reguladores da constituição e das
instituições sociais.

O autor compreende, em Uma Teoria da Justiça, que a


concepção de justiça, comumente partilhada, subjaz à ordem
política. Ele presume que haja uma concepção pública de
justiça. Ora, é a partir desta concepção que, numa sociedade

Unidade 5 217
Universidade do Sul de Santa Catarina

razoavelmente democrática, os indivíduos regulam suas


atividades políticas e interpretam sua constituição, de modo
que a violação contínua e deliberada dos princípios básicos
dessa concepção por um longo tempo incita, ou à submissão,
ou à resistência.

A desobediência civil é um ato público (RAWLS, 1997), no


sentido estrito do termo, ou seja, ela é feita em público, sendo
comparada, pelo filósofo, ao ato de falar em público. Por
conta disso, é caracterizada como uma ação que não violenta,
sendo esta incompatível com a noção de apelo público latente
em si. Há, para Rawls, outra razão pela qual a desobediência
civil é considerada uma ação não violenta: ela expressa uma
desobediência à lei dentro dos limites da fidelidade à lei (essa
fidelidade é expressa pela natureza pública e não violenta do ato),
embora seja situada na margem externa da legalidade. Ou seja, é
a fidelidade à lei que move a desobediência.

Portanto, resulta que a desobediência civil, numa sociedade bem


ordenada, é definida por Rawls como uma forma de protesto
nos limites da fidelidade à lei, sendo, nesta perspectiva, distinta,
por um lado, da objeção de consciência; e, por outro, da própria
ação armada.

Justificação da desobediência civil


Em sua argumentação acerca da justificação da desobediência civil,
na qual Rawls não menciona o princípio da equidade, mas somente
o dever natural de justiça, base primeira dos vínculos políticos
com um regime constitucional, Rawls esclarece que esta se reserva
aos limites internos de um estado democrático, isto é, é restrita às
injustiças internas — entendendo aqui que estas são promovidas
por suas instituições —, de uma sociedade bem ordenada.

Para o autor, há três pressupostos, que são condições a partir


das quais se elabora uma justificação da desobediência civil.
Analise-as.

„„ A primeira condição pressuposta concerne à injustiça,


a qual constitui o objeto da desobediência civil. Rawls
considera, como acima apontado, que a desobediência

218
Filosofia Política II

civil é um ato político, dirigido ao senso de justiça


razoável da comunidade. Ela deve ser restringida a
casos de injustiça evidente, sobretudo à violação do
princípio da liberdade igual, uma vez que este define
o status comum da cidadania igual dentro de um
regime constitucional. Dessa maneira, Rawls exclui da
desobediência civil as violações ao princípio da diferença,
posto que suas infrações são mais difíceis de serem
verificadas em razão de o princípio ser aplicado a práticas
e instituições sociais e econômicas. A despeito disso,
argumenta o filósofo, é melhor deixar a resolução dessas
questões ao processo político — desde que as liberdades
iguais necessárias estejam preservadas.

„„ A segunda condição imposta por Rawls diz respeito à


suposição de que os apelos normais dirigidos à maioria
política já foram feitos de boa-fé e não obtiveram êxito,
mostrando-se os meios legais evidentemente inúteis.
Nos casos em que a desobediência civil é o último
recurso, pondera Rawls, deve-se ter certeza de que
ela é factualmente necessária. De fato, na perspectiva
rawlsiana, só se encontra a segunda condição, se houver
comprovadamente necessidade da desobediência civil.
Caso não haja, não se a tem.

„„ A última condição configura-se, para Rawls, no sentido de


que, em certas ocasiões, o dever natural de justiça pode
exigir uma determinada restrição, qual seja, o problema
O dever natural
das minorias. Entende o filósofo que tal problema se de justiça, também
coloca quando minorias sofrem graus de injustiça durante considerado o mais
certo tempo, e, por esta razão, alicerçadas nas condições relevante, para Rawls,
referidas anteriormente, têm razão para a prática da é aquele de apoiar e
desobediência civil. Rawls reconhece que pode haver uma promover as instituições
situação na qual diversas minorias tenham, comprovada justas. Tem dois aspectos:
obedecer às instituições
e evidentemente, razão para a prática da desobediência
justas que nos dizem
civil. Isso pode gerar, no seio desta sociedade quase justa, respeito; e cooperar para
uma grave desordem, e esta poderia minar a eficácia da a criação de instituições
constituição justa. Assim, a solução ideal, no entender justas quando elas não
de Rawls, é um acordo de cooperação política entre existem. (RAWLS, 1997, p.
as minorias, o qual objetiva regular o nível total de 369-371).
desarmonia nesta sociedade, sob pena de, se assim não
for feito, gerar-se um dano permanente na constituição
conforme a qual tais cidadãos têm um dever natural de
justiça.

Unidade 5 219
Universidade do Sul de Santa Catarina

O autor considera ainda, à luz dessas três condições, se é sensato


e prudente exercer o direito à desobediência civil, tendo em vista
que, num estado de quase justiça, é improvável que se reprima a
dissensão legítima de modo vindicativo, mas é importante que
a ação seja concebida de forma adequada para exercer um apelo
efetivo sobre a comunidade mais ampla.

Papel da desobediência civil


Por fim, Rawls esclarece o papel da desobediência civil no âmbito
de um sistema constitucional e mostra sua ligação com o governo
democrático, supondo que a sociedade em questão é, como vinha
fazendo, quase justa, e que os princípios da justiça são, em sua
maior parte, reconhecidos como termos básicos da cooperação
voluntária entre pessoas livres e iguais.

Rawls pretende deixar claro que, pela prática da desobediência


civil, um cidadão apela ao senso de justiça da maioria com o
intuito de tornar público, no tocante à pessoa, que as condições
de cooperação livre estão sendo violadas. Disso, tem-se que,
numa sociedade bem ordenada, na qual as instituições são
justas, apesar de imperfeitas, os cidadãos, quando são lesados
comprovadamente, a partir das condições anteriormente
especificadas, não precisam obedecer às leis que os ferem, porque,
segundo Rawls, a desobediência civil é um recurso estabilizador
de um sistema constitucional, embora, como afirma o próprio
Rawls, seja, por definição, ilegal.

A desobediência civil, com a devida moderação


e o critério justo, auxilia a manter e a reforçar as
instituições justas, visto que, restituindo à injustiça
dentro dos limites da fidelidade à lei, ela serve para
prevenir desvios da rota da justiça e para corrigi-los
quando acontecem.

Rawls alerta que o recurso à desobediência civil, mesmo


repousando unicamente sobre uma concepção de justiça que
caracteriza a sociedade democrática, parte da teoria do governo

220
Filosofia Política II

livre, o que acarreta riscos evidentes. Assim, argumenta, uma das


razões de ser das formas constitucionais e de suas interpretações
judiciais é a de estabelecer uma interpretação pública da
concepção política da justiça e uma explicação da aplicação de
seus princípios para as questões sociais.

O filósofo é convicto de que, tendo em mente os possíveis


desvios que uma lei possa ter da concepção pública do justo
compartilhada pelos cidadãos numa sociedade bem ordenada, é
mais relevante que a lei e suas interpretações sejam estabelecidas
do que o fato de serem estabelecidas corretamente. A concepção de bem, na
teoria moral rawlsiana, é
um dos poderes morais
Atenção! Cada cidadão, a partir da perspectiva atribuídos ao sujeito.
rawlsiana, é considerado autônomo e responsável por Segundo Rawls, a
aquilo que faz, isto é, numa sociedade democrática definição do bem, que
sabe-se reconhecer que cada cidadão é responsável é puramente formal,
por sua interpretação dos princípios da justiça e pela afirma simplesmente que
conduta que assume à luz deles. Entretanto, tal fato o bem de uma pessoa
não significa que a decisão da prática da desobediência é determinado por um
civil seja como lhe aprouver. plano racional de vida
que ela escolheria com
racionalidade deliberativa.
O filósofo entende que, para agir de modo autônomo e E o bem da pessoa é
responsável, o cidadão deve observar os princípios que embasam definido como a execução
bem sucedida de um
e orientam a interpretação da constituição, vendo como esses
plano racional de vida.
princípios deveriam ser aplicados concretamente. Caso comprove
a necessidade e a justificação da desobediência civil, isto é, quando
as circunstâncias assim se colocarem, sua prática será consciente e,
portanto, de acordo com a teoria da desobediência civil.

Fazendo um novo balanço do que foi apresentado até agora,


podemos salientar que a teoria da justiça de Rawls, como se
procurou elucidar, mostra-se como uma tentativa de superar,
no âmbito filosófico, principalmente, a teoria utilitarista —
amplamente predominante nos países e culturas falantes da
língua inglesa. Rawls, a partir dos seus princípios da justiça
— conteúdo da justiça política —, construídos a partir de uma
posição originária, formaliza uma teoria, cuja base é kantiana,
estendida a uma sociedade liberal, na qual as pessoas possuem

Unidade 5 221
Universidade do Sul de Santa Catarina

uma personalidade moral. A personalidade, para o autor, é


formada fundamentalmente pela concepção de bem e pelo senso
Primeira qualidade do sujeito,
para Rawls, é possuir uma de justiça.
personalidade moral,
desenvolvida adequadamente ao Além disso, convém enfatizar, essas pessoas são razoáveis e racionais.
longo de sua vivência em contato Dessa maneira, elas têm em conta alguns objetivos comuns.
com as instituições da estrutura
básica da sociedade, numa A temática das leis, neste âmbito, é particularmente interessante,
sociedade bem ordenada, regulada, haja vista Rawls não se pôr a explanar detidamente a este
logo, por instituições justas. respeito. Apesar disso, o autor não a negligencia e, apesar
Na formação da personalidade
moral, a justiça é, em princípio,
de serem breves as considerações, são bastante relevantes e
desenvolvida no sujeito por práticas interessantes. Como apontado pelo filósofo, as leis são diretrizes
institucionais. Para Oliveira (2003, p. direcionadas às pessoas racionais, cujo objetivo é viver num
13), o senso de justiça e a faculdade sistema de cooperação social, do qual a base, como sistema
de concepção do bem são inerentes social, é transmitida à geração posterior. Neste sentido, essas
à ideia de pessoas morais, livres e
pessoas procuram, mediante seus atos, agir de forma tal que a
iguais, vivendo numa sociedade
democrática. justiça seja aprendida por todas as pessoas mediante as práticas
institucionais. Neste intuito e contexto, é compreensível
o seguinte dizer de Rawls: “a justiça é a primeira virtude
das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de
pensamento”. (RAWLS, 1997, p. 3). O autor continua sua
argumentação esclarecendo que:

Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser


rejeitada ou revisada se não é verdadeira; da mesma forma
leis e instituições, por mais eficazes e bem organizadas
que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se são
injustas. (RAWLS, 1997, p. 4).

Dessa forma, para o sujeito, em última análise, a lei deve ser


expressão institucional da justiça para o benefício do sistema de
cooperação social no qual está inserido, isto é, uma sociedade bem
ordenada. Caso não corresponda com essa finalidade, prejudicando
deliberadamente membros ou grupos desta sociedade, Rawls,
legalmente, isto é, dentro dos limites da lei, admite a desobediência
civil como forma de protesto em benefício da sociedade e como
forma de promover a justiça mediante a correção dessa norma.
Cabe enfatizar que a desobediência civil, como já fora apontado
já, é um recurso de protesto público dentro dos limites da lei, em
vista de reformulação ou abandono total desta norma jurídica
em razão de sua injustiça. Nesta perspectiva, pode-se dizer que a
desobediência civil é uma possibilidade de aprimoramento da lei e,
consequentemente, da própria ordem política.

222
Filosofia Política II

Síntese

Nesta unidade, você começou definindo resistência e desobediência


civis. Recuperou o legado liberal e contratualista em sua origem
moderna, particularmente Locke, mas não só, adentrando
posteriormente na abordagem do neoliberal e neocontratualista
John Rawls. Viu que Rawls elabora uma teoria da justiça que
concebe justiça como equidade. Tal teoria pretende dar conta de
responder à questão do que é e de como é uma sociedade justa,
partindo de noções intuitivas dos valores políticos do Ocidente,
quais sejam, a democracia constitucional e a ideia de pessoas como
seres livres e iguais. Você pôde se dar conta de que essa concepção
de justiça é lançada por Rawls, embora seja esboçada numa série
de artigos anteriores, no livro Uma Teoria da Justiça. Esta obra
é dividida em três partes — a teoria, as instituições e fins. Com
base nestas partes, você deu conta da definição, da justificação e do
papel da desobediência civil no contexto de uma sociedade livre e
democrática com propõe Rawls.

A partir da reflexão apontada nesta Unidade, você pôde


desenvolver uma pesquisa temática e alargar um pouco mais seus
conhecimentos sobre a desobediência civil e noções correlatas.
Procure informações sobre as críticas feitas à abordagem
rawlsiana. Isto poderá contribuir para seu posicionamento
quanto às ideias do autor e ver que, após a publicação da primeira
edição de Uma teoria da justiça, em 1971, o autor elaborou,
face a tais críticas, alguns rearranjos em sua teoria. Com estas
recomendações, desejamos que você tenha subsídios para avançar
em relação ao que foi apresentado. E bons estudos!

Unidade 5 223
Universidade do Sul de Santa Catarina

Atividades de autoavaliação

1. Leia o trecho a seguir:


“A idéia de uma _________ é uma releitura da condição do ________
presente em todos contratualistas, ou seja, a situação em que cada
indivíduo depende de si para se manter e não há um poder que os
obrigue a reconhecer seus pactos e os direitos dos outros. Embora
todos reconheçam a falta de correspondência histórica desta
situação, existem exemplos perenes do estado natural nas relações
internacionais, que não estão submetidas a nenhum governo mundial
que obrigue uma nação a cumprir um contrato estabelecido com outra.
Porém, a versão de Rawls para a ___________ oferece tantas variações
das características do modelo tradicional que convém mantê-la apenas
em seu estatuto hipotético.” (SILVA, [200-]).
Assinale a alternativa que preencha, na ordem de apresentação no
fragmento, as lacunas acima
a. ( ) posição original, estado de natureza, posição original.
b. ( ) estado de natureza, véu da ignorância, justiça distributiva.
c. ( ) liberdade, contrato social, posição original.
d. ( ) posição original, véu da ignorância, contrato social.
e. ( ) contrato social, posição original, contrato social.

2. Marque com X a alternativa que caracteriza a Teoria da Justiça de John


Rawls:
a. ( ) ética das virtudes
b. ( ) ética do discurso
c. ( ) utilitarismo consequencialista
d. ( ) egoísmo ético
e. ( ) neo-contratualismo

224
Filosofia Política II

Saiba mais

Para saber mais sobre John Rawls leia o texto a seguir.

John Rawls
(1921, Baltimore, EUA - 2002, Lexington,
EUA)
O filósofo de Harvard John Rawls é um
dos membros do clube dos grandes
pensadores do contracto liberal, que
incluiu entre outros T. Hobbes, J.J.
Rousseau, J. Locke e I.Kant.
Em 1971, publicou o seu primeiro Figura 5.1 - John Rawls
trabalho A Teoria da Justiça. Neste Fonte: University of West
trabalho, citado extensivamente nas Florida (2007).
áreas da filosofia, política e economia, que gerou mais discussões
que qualquer outro trabalho de filósofos do sec. XX, Rawls
desenvolve os princípios da justiça, que deveriam estruturar uma
sociedade liberal. Inicia o seu trabalho criando uma situação
hipotética, a que chama a “posição original”: os participantes têm
que definir os princípios e linhas orientadoras da sua vida futura
em nível político econômico-social ao longo de uma discussão
onde estão cobertos pelo véu da ignorância.
O véu da ignorância impede as pessoas de conhecer qualquer
informação, incluindo a que lhe diz respeito, relativamente à
posição na sociedade, posse de matérias primas, sexo, crenças
religiosas, ranking social, etc. Sem saber a sua própria posição
na sociedade futura, se vão ser ricos ou pobres, membros da
maioria ou da minoria e por aí fora, consegue-se garantir um
debate imparcial entre os intervenientes, pois estes não são
afectados pelos interesses parciais, o que conduz à determinação
de princípios justos e à obtenção de acordos. É por isso que John
Rawls afirma que obtém uma “Justiça Justa”. A argumentação
consiste em que cada pessoa irá querer garantir os princípios da
Justiça, porque ele ou ela pode calhar no extracto social mais
baixo da sociedade. A aplicação igual da lei para todos, leva à
exclusão dos interesses parciais, e adquire assim um carácter
justo, um tema que desde os seus primórdios é importante para
o Liberalismo.
O contracto resultante desta situação hipotética “a posição
original”, iria garantir de acordo com Rawls dois princípios:

Unidade 5 225
Universidade do Sul de Santa Catarina

o princípio da liberdade e o direito àdiferença. Estes dois


princípios são a essência da elegante teoria de Rawls. O primeiro
princípio que garante a maior liberdade pessoal para cada
indivíduo (liberdade de pensamento, crença, etc.) desde que
não interfira com a mesma liberdade de outra pessoa é uma
expressão do liberalismo clássico. O segundo princípio defende
que as diferenças sociais e desigualdades económicas só serão
consideradas justas enquanto os membros mais desfavorecidos
também puderem ganhar com a distribuição desigual de ganhos
e de oportunidades.
Através deste segundo princípio, Rawls integra na perspectiva
económica, um elemento redistributivo, sendo que foi este o
princípio que despertou paixões nos mais variados quadrantes.
Por um lado, alguns liberais são a favor de um Estado que
defenda apenas as liberdades negativas e criticaram o segundo
princípio por propor um papel ao estado na distribuição
económica, sendo que em consequência vêem o postulado
do segundo princípio de direitos económicos positivos como
estando afectado pelo pensamento socialista. Contudo, uma
segunda escola critica Rawls por não ir mais longe, pois a sua
teoria não garante igual estatuto económico. A crítica mais
compreensiva do lado liberal vem de Robert Nozick’s Anarquia,
o Estado e a Utopia 1974, igualmente um clássico actualmente e
que foi uma resposta directa ao trabalho de Rawls.
Tendo em consideração os desenvolvimento do pensamento
liberal, o professor de relações internacionais de Princeton,
Charles Beitz, aplicou a “Teoria da Justiça” à esfera internacional.
Em Teoria política e relações internacionais, 1979, Beitz
argumentou pela validação e aplicação dos dois princípios às
relações internacionais. Rawls, contudo, refutou atempadamente
a sua leitura e discordou da aplicação dos seus princípios para
além do contexto doméstico. A sua resposta mais tardia a C.
Beitz, e a resposta sobre se estes princípios podem ser aplicados
à lei internacional, podem ser encontrados em A lei das Pessoas
de Rawls.
Pode-se afirmar que a concepção de justiça de Rawls mantém-se
como a integração mais coerente e sistemática das ideias liberais
com os conceitos da distribuição económica. Rawls oferece
a justificação das desigualdades económicas, contudo liga o
progresso económico de qualquer membro de uma sociedade
ao benefício dos menos previlegiados. Para além disso, o
pragmatismo e laicidade da sua teoria torna-a muito útil para
enfrentar os desafios com que os juristas actuais se confrontam
em democracias multi-religiosas, multi-etnicas e multi-culturais.
Especialmente, a necessidade de se procurar princípios justos

226
Filosofia Política II

para agir como o denominador comum que permita uma


pluralidade de valores e modos de vida, em sociedades pacíficas
e estáveis, faz com que o trabalho de Rawls seja um marco na
ciência política e do pensamento liberal do século XX.

Bibliografia:
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Univ.- Press, 1971.
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Fonte: Plank [20--?]).

“Uma teoria da Justiça” de John Rawls


Huismaan (2000, p. 526), em seu Dicionário de obras filosóficas,
resume algumas ideias desta obra.
Filósofo liberal, Rawls tenta nessa obra dar sentido à noção de
justiça. Para isso, re­toma a filosofia do contrato social, contrato
que constitui a ‘base moral’ de uma socie­dade democrática. A
sociedade, a que nin­guém tem a obrigação de aderir, é definida
como um sistema eqüitativo e voluntário de cooperação entre
vários indivíduos.
A teoria do contrato social baseia-se em uma ‘posição original’,
posição hipotética em que os indivíduos atuam em ignorância e
são racionalmente animados por seus próprios interesses. Esses
indivíduos devem entrar em acordo sobre um sistema de coo­
peração. Mas, ignorando o lugar que ocu­pará nesse sistema,
cada um deles conside­ra a possibilidade do pior, ou seja, o caso
em que ocupará uma posição inferior. A partir daí cada um adota
a ‘estratégia do máximo’ (estratégia inspirada na teoria dos

Unidade 5 227
Universidade do Sul de Santa Catarina

jogos), segundo a qual para o jogador que não tem certeza de


ganhar a melhor estraté­gia consiste em assegurar-se de que o
pior resultado será o melhor possível; ele mini­miza, assim, suas
perdas máximas, ou ain­da, maximiza suas perdas mínimas.
Na posição original e em virtude da estratégia do máximo, os
indivíduos escolhem dois princípios distintos; o primeiro (liber­
dade) é prioritário em relação ao segundo (diferença). Conforme
o princípio de liber­dade, os indivíduos empenham-se em
insti­tuir o âmbito de liberdade mais vasto possível, que seja
ao mesmo tempo compatível com uma liberdade semelhante
para todo. Cada um irá dispor assim da maior liberdade
compatível com a liberdade alheia. É o princípio de diferença
que justifica as desi­gualdades. Rawls critica a teoria neoclássi­
ca e utilitarista que ignora as desigualdades ­confunde justiça
com maximização do bem-­estar social e admite, assim, que o
sacrifício de um indivíduo pode aumentar o bem-­estar de todos.
Para Rawls, ninguém é um meio com vistas a servir a sociedade,
e as liberdades civis são sempre superiores à economia. Mas as
desigualdades não são necessariamente injustiças. Elas podem
ser admitidas com duas condições: primeira, é preciso uma
‘justa igualdade de oportuni­dades’: em outras palavras, que
as situações capazes de oferecer vantagens sejam acessíveis a
todos; depois, a sociedade deve poder tornar os menos ricos
tão ricos quanto seja possível ser, ou seja, chegar a um ponto
ótimo na distribuição da renda. As­sim, as únicas desigualdades
admissíveis são as que dêem vantagens aos menos favorecidos,
visto que a desigualdade injusta não oferece vantagens a todos.
Influenciado por Kant, Rawls desenvolve nessa obra uma teoria
sistemática da justiça que se baseia em princípios racionais (a
razão prática). É grande sua influência tanto sobre as teorias
quanto sobre as políticas econômicas, no mundo anglo-saxão
e na Europa continental, principalmente junto aos liberais e aos
progressistas. Uma vez que o pensamento igualitarista, que
identifica justiça com igualdade econômica, perde pertinência,
a teoria rawlsiana tende a justificar as desigualdades, e isso em
nome da justiça.”

228
Filosofia Política II

Algumas leituras fundamentais para a temática discutida nesta


unidade são:

BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. 4. ed. Brasília:


Edunb, 1992. 2. v.

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segundo tratado do governo civil. 5. ed. São Paulo: Nova
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Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

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______. Justiça como eqüidade: uma reformulação. Trad.


Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Unidade 5 229
Para concluir o estudo

Nas duas primeiras unidades deste livro, você traçou um


caminho de estudos que partiu de definições preliminares
sobre a noção moderna de Estado, passando pelo
pensamento hegeliano e o marxista e culminando no debate
sobre a crise desta noção.

Na sequência, estudou a visão tocquevilleana sobre a


democracia nos Estados Unidos da América em sua fase inicial,
analisando as ideias de igualdade, liberdade, virtude cívica e
associativismo relacionadas ao contexto democrático. Avançou
na reflexão sobre os problemas da democracia nos dias atuais.

Estudou, ainda, as teses sobre a política de Hannah Arendt


e Michel Foucault, passando pelos conceitos de política,
poder, autoridade, força, entre outros, vendo a política como
agir humano.

Na última Unidade, a partir do pensamento de John


Rawls, foram apresentadas ao debate a resistência e a
desobediência civil.

Esses estudos, como dito em Palavras Iniciais, são um ponto


de partida para você alargar seus conhecimentos acerca da
Filosofia Política Contemporânea. Com eles, você poderá ter
mais subsídios para se posicionar em relação aos problemas
políticos do mundo em que vivemos.

Esperamos ter aberto uma série de perspectivas nesse


campo, seja para análise dos conceitos já consolidados nas
tradições modernas e do início do século XX, seja para
inseri-los em debates mais atuais, gerando em você novas
possibilidades de pesquisa e reflexão. Com o sincero desejo
de sucesso e bons estudos, despedimo-nos.

Grande abraço!

Professores Carlos Euclides Marques, Daniel Swoboda


Murialdo, Leandro Kingeski Pacheco, Marcos Rohling,
Nei Antonio Nunes.
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teórico, significação política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
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uol.com.br/biografias/wilhelm-reich.jhtm>. Acesso em: 20 jan. 2010.
WOODCOCK, George (Org.) Os grandes escritos anarquistas. Porto
Alegre: L&PM, 1986.
YOLTON, John W. Dicionário Locke. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

240
Sobre os professores conteudistas

Carlos Euclides Marques

Nascido na Ilha de Santa Catarina, em 1964, filho de


um pescador e uma dona de casa. Viveu dos três aos
dezenove anos no município de São Gonçalo-RJ, onde
fez seu ensino fundamental e médio, sempre em escolas
públicas. Graduou-se em Filosofia – Bacharelado e
Licenciatura — pela UFSC em 1992, onde também fez o
mestrado na área de Teoria Literária, concluído em 1997.
Como professor, começou trabalhando com substituto no
departamento de Filosofia da UFSC, em 1992. Também
foi professor na Univali e, atualmente, exerce a função
de professor substituto na UFSC e ACT, na rede de
ensino médio do Estado de Santa Catarina. Na Unisul,
trabalha desde 2002. Tem alguns artigos publicados
em revista e, além deste livro, também escreveu com a
colaboração da professora Maria Juliani Nesi os livros
Antropologia Filosofica e História da Filosofia II, além
de ter contribuído em algumas unidades de outros livros.

Gosta de Estética e Filosofia Antiga principalmente.


Tem uma filha chamada Ariadne, fruto de uma união
estável.

Veja também: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/


visualizacv.jsp?id=K4706925E6>.

Daniel Swoboda Murialdo

Formado em Filosofia pela Universidade Federal de


Santa Catarina. Publicou pela Universidade de Ijuí a
tradução de uma entrevista com David Hume e uma
autobiografia deste autor, organizadas sob o título Da
imortalidade da alma e outros textos póstumos, tendo
também publicado, pelos Anais da Sociedade Brasileira
Universidade do Sul de Santa Catarina

de Estudos Clássicos, um ensaio sobre a sofística e a tragédia


grega. Atualmente, leciona Filosofia na rede particular e estadual
de ensino médio de Santa Catarina.

Veja também: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/


visualizacv.jsp?id=K4765905H1>.

Leandro Kingeski Pacheco

Possui em Filosofia – Bacharelado (1994/UFSC), Licenciatura


(1997/UFSC) e Mestrado (2005/UFSC). Atualmente trabalha
como Assistente Pedagógico da UnA Jurídica e Social do
Campus Norte da Universidade do Sul de Santa Catarina
(Unisul). Tem experiência docente no ensino superior, na área
de Filosofia e de Educação, tanto na graduação quanto na
especialização. É co-autor ou autor de alguns livros didáticos
utilizados na EaD, tanto pela UDESC quanto pela Unisul.

Veja também: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/


visualizacv.jsp?id=K4792169U9>.

Marcos Rohling

Possui graduação em Filosofia, bacharelado e licenciatura,


pela Universidade Federal de Santa Catarina, é bacharelando
em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina, e
mestrando em Filosofia pelo Programa Pós-Graduação em
Ética e Filosofia Política da UFSC. Na área de Filosofia, tem
interesse, principalmente, por Ética, Filosofia Política, Filosofia
do Direito e Filosofia da Educação, realizando pesquisas em
questões relacionadas ao Senso de Justiça, à Justiça, ao Direito,
à Lei Legítima e à Educação, sobretudo na Teoria Política do
filósofo norte-americano John Rawls e seus críticos. Na área
de Direito, nutre interesse por questões voltadas ao Direito do
Trabalho, ao Direito Constitucional, aos Direitos Humanos e ao
Direito Educacional. Além disso, nutre interesse por questões
envolvendo teoria social e temas como cidadania, republicanismo
e liberalismo. Ademais, hodiernamente, é docente da Prefeitura
de São José, em caráter temporário.

Veja também: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/


visualizacv.jsp?id=K4241981J3>.
242
Filosofia Política II

Nei Antonio Nunes

Nascido na Ilha de Santa Catarina, em 1968, filho de Donato


José Nunes e Elizete Maria Nunes. Cursou o ensino fundamental
no Colégio Estadual Leonor de Barros (Bairro Itacorubi) e o
médio no Colégio Estadual Simão José Hess (Bairro Santa
Mônica). Graduou-se em Filosofia – Bacharelado — pela
UFSC em 1994, onde fez o Mestrado na área de Educação
(linha de pesquisa: Educação, História e Política) concluído em
2000. Deste de 2008, é aluno do curso de doutorado junto ao
Programa de Pós-graduação em Sociologia Política, também da
UFSC. Bolsista do CNPq e membro do NEPP–UFSC (Núcleo
de Estudos do Pensamento Político). Na docência, trabalhou
como substituto, de 1989 até 1997, no Colégio Estadual
Professor Henrique Stodieck. Também foi professor substituto
do Departamento de Filosofia da UFSC, em 1995, e leciona na
UNISUL desde 1996. No Ensino e na Pesquisa, seus interesses
estão voltados às seguintes áreas: Filosofia Política, Ciência
Política, Ética, Filosofia Moderna e Filosofia Contemporânea.
Os seguintes artigos (disponibilizados na Internet) fazem parte
de sua produção bibliográfica: “A Escola e as Práticas de Poder
Disciplinar” (Revista Perspectiva), “Acontecimento e Crítica:
re-interrogações sobre os dilemas da liberdade. (Livro – Temas.
56º Congresso Brasileiro de Enfermagem), “Quando a História
encontra o Corpo: interface entre os deslocamentos foucaultianos
e a iconoclastia kafkiana” (Escola Anna Nery – Revista de
Enfermagem), “Michel Foucault e a genealogia como crítica do
presente” (Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis),
“Agamben e o Conceito de Estado de Exceção” (Revista do
Direito – CESUSC), “O Elogio da Política e o Poder e a
Liberdade em questão: apontamentos sobre o pensamento de
Hannah Arendt e Michel Foucault” (Revista Temas & Matizes).
Atualmente, desenvolve a seguinte pesquisa no doutorado: A
Crítica Genealógica de Michel Foucault à Teoria Hobbesiana
da Soberania e à Governamentalidade Liberal: os limites da
concepção jurídica do poder, dos processos biopolíticos de
assujeitamento da vida humana e a emergência de novas práticas
de subjetivação.

Veja também: <http://lattes.cnpq.br/9885086765629522>.

243
Respostas e comentários das
atividades de autoavaliação

Unidade 1
1)
(04)
(01)
(03)
(02)
(06)
(05)

2) Ambos tomam o Estado como ele é; criticam teorias


naturalistas ou de fundo religioso para fundamentar a função
do Estado, caracterizando a separação entre moral e política.
Também: consideram a liberdade como ponto central da
política.

Unidade 2

1) Basicamente, fontes de cunho mítico-religioso: o Novo e o


Velho Testamento da Bíblia. Tal imaginário tem um caráter
messiânico, milenarista e soteoriológico...
2) Um fenômeno histórico resultante do modo de produção
econômico. É um conjunto de representações ou ideias sobre
os seres humanos e suas relações que mantém ou justifica
tais relações...

3)
(04)
(03)
(02)
(05)
(01)
Universidade do Sul de Santa Catarina

Unidade 3

1) Após escolher uma entre as novas concepções de direito abordadas


na questão (a habitação como moradia digna, e não apenas como
necessidade de abrigo e proteção; a segurança como bem-estar, e não
apenas como necessidade de vigilância e punição; o trabalho como
ação para a vida, e não apenas como necessidade de emprego e
renda). É preciso que você disserte sobre como tal concepção contribui
para a promoção e consolidação da cidadania, considerando o caráter
da integralidade/indivisibilidade dos direitos humanos. Ao fazê-lo, é
pertinente também explorar alguns indicativos da própria questão,
como o caráter universalizante dos direitos humanos ou sobre a figura
da mão chamuscada que segura um papel amassado. Estes aspectos
deverão estar relacionados com as noções de uma democracia que
garanta as conquistas sociais, conforme apresentado a partir de Chauí
na seção final da Unidade.

2)
a) ( F )
b) ( V )
c) ( V )
d) ( F )
e) ( F )

Unidade 4

1) Os estudantes têm poder, pois, conforme Arendt, poder está ligado


a número e, neste caso, os estudantes são a maioria e se postam
ordenadamente, como coletivo reivindicando algo.
2) Não, pois o professor não soube usar adequadamente sua autoridade
e, quando a viu ameaçada, usou de um artifício punitivo, para mantê-
la, e perdeu o respeito entre os estudantes, gerando uma relação de
medo. Perdeu com isto sua autoridade. Podemos dizer, neste caso, que
o professor agiu autoritariamente, mas não com autoridade.
3) Sim, neste caso o membro do parlamento manteve sua autoridade,
pois, como representante da comunidade, continua vendo-se no
papel de alguém que foi escolhido por um grupo para representar
os interesses desta comunidade. E, mais, diferente do professor da
situação a, o parlamentar é respeitado e procura respeitar os membros
da comunidade que representa, mesmo quando sua autoridade é
ameaçada.

246
Filosofia Política II

2)
d. (X) Heráclito e Nietzsche

Unidade 5
1)
a. ( X ) posição original, estado de natureza, posição original
2)
e. ( X ) neo-contratualismo

247
Biblioteca Virtual

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alunos a distância:
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