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Universidade do Sul de Santa Catarina

Teoria do Conhecimento I
Disciplina na modalidade a distância

Palhoça
UnisulVirtual
2011
Créditos
Universidade do Sul de Santa Catarina | Campus UnisulVirtual | Educação Superior a Distância
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Reitor Coordenadores Graduação Marilene de Fátima Capeleto Patrícia de Souza Amorim Karine Augusta Zanoni
Ailton Nazareno Soares Aloísio José Rodrigues Patricia A. Pereira de Carvalho Poliana Simao Marcia Luz de Oliveira
Ana Luísa Mülbert Paulo Lisboa Cordeiro Schenon Souza Preto Mayara Pereira Rosa
Vice-Reitor Ana Paula R.Pacheco Paulo Mauricio Silveira Bubalo Luciana Tomadão Borguetti
Sebastião Salésio Heerdt Artur Beck Neto Rosângela Mara Siegel Gerência de Desenho e
Bernardino José da Silva Simone Torres de Oliveira Desenvolvimento de Materiais Assuntos Jurídicos
Chefe de Gabinete da Reitoria Charles Odair Cesconetto da Silva Vanessa Pereira Santos Metzker Didáticos Bruno Lucion Roso
Willian Corrêa Máximo Dilsa Mondardo Vanilda Liordina Heerdt Márcia Loch (Gerente) Sheila Cristina Martins
Diva Marília Flemming Marketing Estratégico
Pró-Reitor de Ensino e Horácio Dutra Mello Gestão Documental Desenho Educacional
Lamuniê Souza (Coord.) Cristina Klipp de Oliveira (Coord. Grad./DAD) Rafael Bavaresco Bongiolo
Pró-Reitor de Pesquisa, Itamar Pedro Bevilaqua
Pós-Graduação e Inovação Jairo Afonso Henkes Clair Maria Cardoso Roseli A. Rocha Moterle (Coord. Pós/Ext.) Portal e Comunicação
Daniel Lucas de Medeiros Aline Cassol Daga Catia Melissa Silveira Rodrigues
Mauri Luiz Heerdt Janaína Baeta Neves
Aline Pimentel
Jorge Alexandre Nogared Cardoso Jaliza Thizon de Bona Andreia Drewes
Pró-Reitora de Administração José Carlos da Silva Junior Guilherme Henrique Koerich Carmelita Schulze Luiz Felipe Buchmann Figueiredo
Acadêmica José Gabriel da Silva Josiane Leal Daniela Siqueira de Menezes Rafael Pessi
Marília Locks Fernandes Delma Cristiane Morari
Miriam de Fátima Bora Rosa José Humberto Dias de Toledo
Eliete de Oliveira Costa
Joseane Borges de Miranda Gerência de Produção
Pró-Reitor de Desenvolvimento Luiz G. Buchmann Figueiredo Gerência Administrativa e Eloísa Machado Seemann Arthur Emmanuel F. Silveira (Gerente)
e Inovação Institucional Marciel Evangelista Catâneo Financeira Flavia Lumi Matuzawa Francini Ferreira Dias
Renato André Luz (Gerente) Geovania Japiassu Martins
Valter Alves Schmitz Neto Maria Cristina Schweitzer Veit
Ana Luise Wehrle Isabel Zoldan da Veiga Rambo Design Visual
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Diretora do Campus Mauro Faccioni Filho Anderson Zandré Prudêncio João Marcos de Souza Alves Pedro Paulo Alves Teixeira (Coord.)
Universitário de Tubarão Moacir Fogaça Daniel Contessa Lisboa Leandro Romanó Bamberg Alberto Regis Elias
Milene Pacheco Kindermann Nélio Herzmann Naiara Jeremias da Rocha Lygia Pereira Alex Sandro Xavier
Onei Tadeu Dutra Rafael Bourdot Back Lis Airê Fogolari Anne Cristyne Pereira
Diretor do Campus Universitário Patrícia Fontanella Thais Helena Bonetti Luiz Henrique Milani Queriquelli Cristiano Neri Gonçalves Ribeiro
da Grande Florianópolis Roberto Iunskovski Valmir Venício Inácio Marcelo Tavares de Souza Campos Daiana Ferreira Cassanego
Hércules Nunes de Araújo Rose Clér Estivalete Beche Mariana Aparecida dos Santos Davi Pieper
Gerência de Ensino, Pesquisa e Marina Melhado Gomes da Silva Diogo Rafael da Silva
Secretária-Geral de Ensino Vice-Coordenadores Graduação Extensão Marina Cabeda Egger Moellwald Edison Rodrigo Valim
Adriana Santos Rammê Janaína Baeta Neves (Gerente) Mirian Elizabet Hahmeyer Collares Elpo Fernanda Fernandes
Solange Antunes de Souza Aracelli Araldi Pâmella Rocha Flores da Silva
Bernardino José da Silva Frederico Trilha
Diretora do Campus Catia Melissa Silveira Rodrigues Rafael da Cunha Lara Jordana Paula Schulka
Elaboração de Projeto Roberta de Fátima Martins Marcelo Neri da Silva
Universitário UnisulVirtual Horácio Dutra Mello Carolina Hoeller da Silva Boing
Jucimara Roesler Jardel Mendes Vieira Roseli Aparecida Rocha Moterle Nelson Rosa
Vanderlei Brasil Sabrina Bleicher Noemia Souza Mesquita
Joel Irineu Lohn Francielle Arruda Rampelotte
Equipe UnisulVirtual José Carlos Noronha de Oliveira Verônica Ribas Cúrcio Oberdan Porto Leal Piantino
José Gabriel da Silva Reconhecimento de Curso
José Humberto Dias de Toledo Acessibilidade Multimídia
Diretor Adjunto Maria de Fátima Martins Vanessa de Andrade Manoel (Coord.) Sérgio Giron (Coord.)
Moacir Heerdt Luciana Manfroi
Rogério Santos da Costa Extensão Letícia Regiane Da Silva Tobal Dandara Lemos Reynaldo
Secretaria Executiva e Cerimonial Rosa Beatriz Madruga Pinheiro Maria Cristina Veit (Coord.) Mariella Gloria Rodrigues Cleber Magri
Jackson Schuelter Wiggers (Coord.) Sergio Sell Vanesa Montagna Fernando Gustav Soares Lima
Marcelo Fraiberg Machado Pesquisa Josué Lange
Tatiana Lee Marques Daniela E. M. Will (Coord. PUIP, PUIC, PIBIC) Avaliação da aprendizagem
Tenille Catarina Valnei Carlos Denardin Claudia Gabriela Dreher Conferência (e-OLA)
Mauro Faccioni Filho (Coord. Nuvem)
Assessoria de Assuntos Sâmia Mônica Fortunato (Adjunta) Jaqueline Cardozo Polla Carla Fabiana Feltrin Raimundo (Coord.)
Internacionais Pós-Graduação Nágila Cristina Hinckel Bruno Augusto Zunino
Coordenadores Pós-Graduação Anelise Leal Vieira Cubas (Coord.) Sabrina Paula Soares Scaranto
Murilo Matos Mendonça Aloísio José Rodrigues Gabriel Barbosa
Anelise Leal Vieira Cubas Thayanny Aparecida B. da Conceição
Assessoria de Relação com Poder Biblioteca Produção Industrial
Público e Forças Armadas Bernardino José da Silva Salete Cecília e Souza (Coord.) Gerência de Logística Marcelo Bittencourt (Coord.)
Adenir Siqueira Viana Carmen Maria Cipriani Pandini Paula Sanhudo da Silva Jeferson Cassiano A. da Costa (Gerente)
Walter Félix Cardoso Junior Daniela Ernani Monteiro Will Marília Ignacio de Espíndola Gerência Serviço de Atenção
Giovani de Paula Renan Felipe Cascaes Logísitca de Materiais Integral ao Acadêmico
Assessoria DAD - Disciplinas a Karla Leonora Dayse Nunes Carlos Eduardo D. da Silva (Coord.) Maria Isabel Aragon (Gerente)
Distância Letícia Cristina Bizarro Barbosa Gestão Docente e Discente Abraao do Nascimento Germano Ana Paula Batista Detóni
Patrícia da Silva Meneghel (Coord.) Luiz Otávio Botelho Lento Enzo de Oliveira Moreira (Coord.) Bruna Maciel André Luiz Portes
Carlos Alberto Areias Roberto Iunskovski Fernando Sardão da Silva Carolina Dias Damasceno
Cláudia Berh V. da Silva Rodrigo Nunes Lunardelli Capacitação e Assessoria ao Fylippy Margino dos Santos Cleide Inácio Goulart Seeman
Conceição Aparecida Kindermann Rogério Santos da Costa Docente Guilherme Lentz Denise Fernandes
Luiz Fernando Meneghel Thiago Coelho Soares Alessandra de Oliveira (Assessoria) Marlon Eliseu Pereira Francielle Fernandes
Renata Souza de A. Subtil Vera Rejane Niedersberg Schuhmacher Adriana Silveira Pablo Varela da Silveira Holdrin Milet Brandão
Alexandre Wagner da Rocha Rubens Amorim
Assessoria de Inovação e Jenniffer Camargo
Gerência Administração Elaine Cristiane Surian (Capacitação) Yslann David Melo Cordeiro Jessica da Silva Bruchado
Qualidade de EAD Acadêmica Elizete De Marco
Denia Falcão de Bittencourt (Coord.) Jonatas Collaço de Souza
Angelita Marçal Flores (Gerente) Fabiana Pereira Avaliações Presenciais
Andrea Ouriques Balbinot Juliana Cardoso da Silva
Fernanda Farias Iris de Souza Barros Graciele M. Lindenmayr (Coord.)
Carmen Maria Cipriani Pandini Juliana Elen Tizian
Juliana Cardoso Esmeraldino Ana Paula de Andrade
Secretaria de Ensino a Distância Kamilla Rosa
Maria Lina Moratelli Prado Angelica Cristina Gollo
Assessoria de Tecnologia Samara Josten Flores (Secretária de Ensino) Simone Zigunovas
Mariana Souza
Osmar de Oliveira Braz Júnior (Coord.) Cristilaine Medeiros Marilene Fátima Capeleto
Giane dos Passos (Secretária Acadêmica) Daiana Cristina Bortolotti
Felipe Fernandes Adenir Soares Júnior Tutoria e Suporte Maurício dos Santos Augusto
Felipe Jacson de Freitas Delano Pinheiro Gomes Maycon de Sousa Candido
Alessandro Alves da Silva Anderson da Silveira (Núcleo Comunicação) Edson Martins Rosa Junior
Jefferson Amorin Oliveira Andréa Luci Mandira Claudia N. Nascimento (Núcleo Norte- Monique Napoli Ribeiro
Phelipe Luiz Winter da Silva Fernando Steimbach Priscilla Geovana Pagani
Cristina Mara Schauffert Nordeste)
Fernando Oliveira Santos
Priscila da Silva Djeime Sammer Bortolotti Maria Eugênia F. Celeghin (Núcleo Pólos) Sabrina Mari Kawano Gonçalves
Rodrigo Battistotti Pimpão Lisdeise Nunes Felipe Scheila Cristina Martins
Douglas Silveira Andreza Talles Cascais Marcelo Ramos
Tamara Bruna Ferreira da Silva Evilym Melo Livramento Daniela Cassol Peres Taize Muller
Marcio Ventura Tatiane Crestani Trentin
Fabiano Silva Michels Débora Cristina Silveira Osni Jose Seidler Junior
Coordenação Cursos Fabricio Botelho Espíndola Ednéia Araujo Alberto (Núcleo Sudeste) Thais Bortolotti
Coordenadores de UNA Felipe Wronski Henrique Francine Cardoso da Silva
Diva Marília Flemming Gisele Terezinha Cardoso Ferreira Janaina Conceição (Núcleo Sul) Gerência de Marketing
Marciel Evangelista Catâneo Indyanara Ramos Joice de Castro Peres Eliza B. Dallanhol Locks (Gerente)
Roberto Iunskovski Janaina Conceição Karla F. Wisniewski Desengrini
Jorge Luiz Vilhar Malaquias Kelin Buss Relacionamento com o Mercado
Auxiliares de Coordenação Juliana Broering Martins Liana Ferreira Alvaro José Souto
Ana Denise Goularte de Souza Luana Borges da Silva Luiz Antônio Pires
Camile Martinelli Silveira Luana Tarsila Hellmann Maria Aparecida Teixeira Relacionamento com Polos
Fabiana Lange Patricio Luíza Koing  Zumblick Mayara de Oliveira Bastos Presenciais
Tânia Regina Goularte Waltemann Maria José Rossetti Michael Mattar Alex Fabiano Wehrle (Coord.)
Jeferson Pandolfo
Arturo Fatturi

Teoria do Conhecimento I
Livro didático

Design instrucional
Lucésia Pereira

1ª edição revista

Palhoça
UnisulVirtual
2011
Copyright © UnisulVirtual 2011
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição.

Edição – Livro Didático


Professor Conteudista
Arturo Fatturi

Design Instrucional
Lucésia Pereira
João Marcos de Souza Alves (1ª ed. rev.)

Assistente Acadêmico
Aline Cassol Daga (1ª ed. rev.)

Projeto Gráfico e Capa


Equipe UnisulVirtual

Diagramação
Higor Ghisi
Daiana Ferreira Cassanego (1ª ed. rev.)

Revisão
Papyrus Textos Ltda.

ISBN
978-85-7817-356-2

121
F26 Fatturi, Arturo
Teoria do conhecimento I : livro didático / Arturo Fatturi ; design
instrucional Lucésia Pereira ; [assistente acadêmico Aline Cassol Daga]. – 1.
ed. rev. – Palhoça : UnisulVirtual, 2011.
204 p. : il. ; 28 cm.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7817-356-2

1. Teoria do conhecimento. I. Pereira, Lucésia. II. Daga, Aline Cassol.


III. Título.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul


Sumário

Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Palavras do professor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9
Plano de estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

UNIDADE 1 - Argumentação filosófica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21


UNIDADE 2 - O ceticismo e suas exigências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
UNIDADE 3 - Conhecimento, ceticismo e a vida cotidiana. . . . . . . . . . . . . . . 63
UNIDADE 4 - O idealismo como resposta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
UNIDADE 5 - A naturalização do conhecimento e o
questionamento cético. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
UNIDADE 6 - Filosofia da linguagem e o problema do conhecimento. . . 133
UNIDADE 7 - Fundacionalismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153

Para concluir o estudo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191


Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
Sobre o professor conteudista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197
Respostas e comentários das atividades de autoavaliação. . . . . . . . . . . . . . 199
Biblioteca Virtual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
Apresentação

Este livro didático corresponde à disciplina Teoria do


Conhecimento I.

O material foi elaborado visando a uma aprendizagem


autônoma e aborda conteúdos especialmente selecionados e
relacionados à sua área de formação. Ao adotar uma linguagem
didática e dialógica, objetivamos facilitar seu estudo a
distância, proporcionando condições favoráveis às múltiplas
interações e a um aprendizado contextualizado e eficaz.

Lembre‑se que sua caminhada, nesta disciplina, será


acompanhada e monitorada constantemente pelo Sistema
Tutorial da UnisulVirtual, por isso a “distância” fica
caracterizada somente na modalidade de ensino que você
optou para sua formação, pois na relação de aprendizagem
professores e instituição estarão sempre conectados com você.

Então, sempre que sentir necessidade entre em contato; você tem


à disposição diversas ferramentas e canais de acesso tais como:
telefone, e‑mail e o Espaço Unisul Virtual de Aprendizagem,
que é o canal mais recomendado, pois tudo o que for enviado e
recebido fica registrado para seu maior controle e comodidade.
Nossa equipe técnica e pedagógica terá o maior prazer em lhe
atender, pois sua aprendizagem é o nosso principal objetivo.

Bom estudo e sucesso!

Equipe UnisulVirtual.

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Palavras do professor

Estamos iniciando o estudo filosófico do conhecimento.


Este tema é denominado Teoria do Conhecimento ou
Epistemologia. É um tema amplo, que possui ramificações
em várias partes de nossas vidas e na própria Ciência.
Os conteúdos que estudaremos vão nos permitir
ter maior clareza ao afirmarmos que conhecemos,
ou não, algo acerca do mundo que nos rodeia.

O estudo filosófico do conhecimento seria mais simples,


não fosse a existência de um ponto de vista denominado
Ceticismo. Os céticos são filósofos os quais negam a
possibilidade de que conheçamos algo verdadeiramente.
Você pode não entender como uma pessoa assim pode existir,
mas basta pensar naquele seu (sua) colega que afirma “Deus
não existe” ou “não existem discos voadores”. Há aqueles
(as) que demonstram sua descrença afirmando coisas como:
“A verdade não existe, todos temos nossas opiniões e todas são
válidas”, ou ainda, “Nunca chegaremos a um conhecimento
do que são as coisas”. Estes são os exemplos mais encontrados
de céticos, e você deve conhecer alguém do tipo.

Bem, o Ceticismo foi um movimento filosófico incentivado


por Pirro De Ellis, filósofo que viveu alguns séculos antes
de Cristo. Todos os escritos de Pirro se perderam, e o seu
movimento, com o tempo, caiu no esquecimento. Contudo,
na Idade Moderna, foram encontrados manuscritos de
um dos seguidores de Pirro, chamado Sexto Empírico.

Os escritos de Sexto Empírico são transcrições dos


textos de Pirro de Ellis e colocavam em dúvida vários
ramos do saber da época: Matemática, Física, Teologia
e o próprio ato de ensino. A obra de Sexto Empírico
teve grande influência na Reforma Protestante, pois
serviu de fundamento intelectual para combater a Igreja
Católica da época, em sua exigência de autoridade única
Universidade do Sul de Santa Catarina

sobre o Cristianismo. A obra de Sexto Empírico circulou


entre os letrados de toda a Europa do século XVI e um dos
seus principais leitores foi o Filósofo René Descartes.

Descartes era contrário ao Ceticismo, mas o usou para elaborar


uma prova de que existe um fundamento seguro para todas
as ciências. Em sua obra Meditações de Filosofia Primeira,
cria um argumento de estilo cético, buscando demonstrar a
impossibilidade de se fundamentar o conhecimento seguro,
pois não temos meios de provar que existe um mundo exterior
a nós. Logo, nenhuma ciência poderia se constituir, pois não
poderíamos provar a existência dos objetos deste mundo. Este
argumento de Descartes, contudo, é apenas um primeiro passo
na construção de seu ponto de vista.

René Descartes não é um cético e acredita que tenha uma


resposta ao cético. Em outras palavras, René Descartes
“finge” acreditar no cético. Neste contexto, criou um “cenário”,
por assim dizer, em que tudo indica que o cético está
correto. Esta argumentação de Descartes foi extremamente
impressionante, tanto que, mesmo nos tempos atuais, os filósofos
tentam fornecer uma resposta ao cético da primeira meditação.
Ou seja, o cético cartesiano passou a ser o questionador de toda
a Teoria do Conhecimento. Assim, tentar uma resposta ao cético
faz‑no tratar de vários pontos da Teoria do Conhecimento.

Bem, esta foi uma pequena introdução ao tema da disciplina.


Gostaria agora de lhe falar sobre como o tema da disciplina
Teoria do Conhecimento será desenvolvido. Muitos filósofos
gostam de tratar a filosofia a partir de um ponto de vista
histórico, isto é, através da apresentação das várias teorias
propostas no estudo filosófico do conhecimento. Já a proposta
deste livro é que trabalhemos juntos as ideias ou argumentos dos
filósofos, fazendo uma ligação disto com nosso dia a dia.

Em cada unidade de estudo, discutiremos determinados


argumentos filosóficos sobre o conhecimento do mundo exterior.
A disciplina é voltada para a consideração de argumentos e exige
que você reflita sobre os argumentos que lhe são apresentados
e busque compreendê‑los. Este livro será seu companheiro de
discussão, ajudando‑o (a) a compreender problemas, conceitos,
argumentos e pontos de vista.

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Teoria do Conhecimento I

No início da Unidade 1, apresentaremos uma estória sobre


o conhecimento elaborada pelo filósofo estadunidense John
Pollock. Esta estória será utilizada de maneira recorrente na
apresentação dos conteúdos que serão estudados. A estória é uma
reconstrução contemporânea dos argumentos de René Descartes
na primeira de suas Meditações Filosóficas e foi transformada em
filme, com o nome de Matrix.

Bom estudo!

Professor Arturo Fatturi.

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Plano de estudo

O plano de estudos visa a orientá‑lo no desenvolvimento da


disciplina. Ele possui elementos que o ajudarão a conhecer o
contexto da disciplina e a organizar o seu tempo de estudos.

O processo de ensino e aprendizagem na UnisulVirtual leva


em conta instrumentos que se articulam e se complementam,
portanto, a construção de competências se dá sobre a
articulação de metodologias e por meio das diversas formas de
ação/mediação.

São elementos desse processo:

„„ o livro didático;

„„ o Espaço UnisulVirtual de Aprendizagem (EVA);

„„ as atividades de avaliação (a distância, presenciais e


de autoavaliação);

„„ o Sistema Tutorial.

Ementa
O conhecimento como problema filosófico, articulação entre
problema filosófico do conhecimento e Metafísica, Metafísica e
Teoria do Conhecimento entre os modernos, Giro Linguístico
e Conhecimento na Filosofia Contemporânea.
Universidade do Sul de Santa Catarina

Objetivos da disciplina

Geral
Proporcionar ao aluno o domínio dos fundamentos da discussão
filosófica sobre o conhecimento e os problemas oriundos da
fundamentação do conhecimento verdadeiro.

Específicos
„„ Proporcionar aos alunos os principais argumentos da
discussão filosófica do conhecimento.

„„ Apresentar aos alunos pontos de vista tradicionais sobre a


discussão filosófica do conhecimento.

„„ Instrumentalizar os alunos a decodificarem os pontos de


vista filosóficos quanto aos conhecimentos que lhes são
apresentados na cultura.

„„ Proporcionar aos alunos a discussão da conexão entre o


conhecimento de objetos e a fundamentação filosófica do
que são estes objetos.

„„ Proporcionar aos alunos os fundamentos filosóficos básicos


da discussão sobre o conhecimento.

„„ Introduzir os alunos nas formulações filosóficas que visam


construir as bases do conhecimento verdadeiro.

„„ Apresentar aos alunos as principais correntes do pensamento


filosófico contemporâneo sobre o conhecimento.

„„ Instrumentalizar os alunos para a discussão


filosófico‑argumentativa sobre o conhecimento.

„„ Proporcionar aos alunos instrumentos que os capacitem a


elaborar discussões sobre argumentos filosóficos.

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Teoria do Conhecimento I

Carga horária
A carga horária total da disciplina é 60 horas‑aula.

Conteúdo programático/objetivos
Veja, a seguir, as unidades que compõem o livro didático desta
disciplina e os seus respectivos objetivos. Estes se referem aos
resultados que você deverá alcançar ao final de uma etapa de
estudo. Os objetivos de cada unidade definem o conjunto de
conhecimentos que você deverá possuir para o desenvolvimento
de habilidades e competências necessárias à sua formação.

Unidades de estudo: 7

Unidade 1 – Argumentação filosófica


Nesta unidade, estudaremos, através de exemplos, como os
filósofos elaboram seus argumentos sobre o conhecimento
e quais as consequências que podem ser retiradas de cada
argumento. O objetivo principal desta unidade é fornecer a
você os princípios fundamentais da argumentação filosófica,
para que, nas unidades seguintes, você possa identificar
estes argumentos e discutir as consequências destes.

O conteúdo desta unidade busca instruí‑lo(a) a discutir


filosoficamente argumentos e reconhecê‑los nos textos
dos filósofos que estudaremos. Os exercícios que lhe
são propostos são uma aplicação de instrumentos para a
leitura de textos de Filosofia e, portanto, são exercícios de
reconhecimento de argumentos, bem como das afirmações
que provam as informações contidas nestes argumentos.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Unidade 2 – O ceticismo e suas exigências


Nesta unidade, veremos o que significa o ceticismo e qual
a diferença entre o ceticismo tradicional e o ceticismo
filosófico criado por René Descartes. O ponto principal
desta unidade é compreender o argumento central do
ceticismo quanto à possibilidade da existência de objetos.
Esta forma de ceticismo é paradoxal, pois parte do princípio
que nossa relação com o mundo no qual vivemos não
está fundamentada na certeza do conhecimento. Logo,
teremos de estudar o que é a verdade do conhecimento e
o que implica a exigência de certeza no conhecimento.

O objetivo final desta unidade é introduzir em nossa


noção de conhecimento o conceito de “certeza”, pois até
para Descartes o conhecimento era verdadeiro, se fosse
coerente com os sentidos ou com a existência dos objetos
(a qual era garantida por Deus). O ceticismo de Descartes
faz com que a razão busque suas próprias provas, isto é,
provas racionais, e que não aceite provas teológicas.

Unidade 3 – Conhecimento, ceticismo e a vida cotidiana


Nesta unidade, estudaremos como nosso conhecimento cotidiano
é afetado pelo ceticismo e como podemos responder a este
questionamento. Aqui, apresentamos os argumentos de alguns
filósofos contemporâneos que acreditam possuir uma resposta ao
cético, fundamentados em argumentos que podem ser retirados
do nosso dia a dia, nas tarefas comuns que desempenhamos e na
linguagem cotidiana que empregamos, ou que têm base aí.

Discutiremos as razões pelas quais estes argumentos não surtem


o efeito desejado, isto é, não respondem ao cético. Consideramos
alguns argumentos que você já ouviu alguém defender e que,
normalmente, são usados como respostas às questões céticas.
Nosso objetivo é fazer a ligação entre:

„„ aquilo que já sabemos ou acreditamos; e

„„ e como estas crenças ou saberes não são respostas


adequadas ao problema filosófico do conhecimento.

16
Teoria do Conhecimento I

Unidade 4 – O idealismo como resposta


Nesta unidade, iremos estudar o pensamento de um filósofo
importantíssimo na História da Filosofia: Imanuel Kant.
Kant pertence ao período imediatamente posterior a Descartes
e foi um dos primeiros filósofos a tentar solucionar o problema
lançado por Descartes na Primeira Meditação.

Estudaremos alguns princípios do idealismo de Kant e


consideraremos a possibilidade de que este idealismo responda
ao problema filosófico do conhecimento. Vamos considerar o
ponto de vista idealista quanto ao conhecimento e seus principais
argumentos. Nosso objetivo nesta unidade não é o de aprofundar
o estudo da obra de Kant – algo que até hoje ainda não foi
empreendido – e sim conhecer alguns princípios básicos das ideias
de Kant, que permitem lançar uma resposta ao problema filosófico
do conhecimento.

Vamos perceber que a resposta de Kant fundamenta‑se em um


ponto de vista metafísico sobre os objetos do conhecimento e
ainda veremos como Kant elabora seu raciocínio metafísico sobre
o mundo que nos cerca. O estudo dos argumentos kantianos é de
fundamental importância na Teoria do Conhecimento e não se
pode estudar o problema do conhecimento sem aprender o ponto
de vista de Kant.

Unidade 5 – A naturalização do conhecimento e o questionamento cético


Nesta unidade, vamos estudar outra resposta fornecida ao
problema filosófico do conhecimento, qual seja, a de que o
senso comum é base para tornar as questões céticas ou mesmo
filosóficas como questões sem sentido, no que se refere à
possibilidade, ou não, do conhecimento. Iremos estudar alguns
argumentos de um filósofo contemporâneo que propõe o senso
comum como resposta às questões do conhecimento e a outras
questões filosóficas.

Acompanhamos os passos argumentativos deste filósofo e sua


resposta. Seu ponto de partida é de que sabemos diferenciar
cotidianamente quais conteúdos são interiores a nós (pois
pertencem à nossa consciência) e quais são exteriores (conhecidos

17
Universidade do Sul de Santa Catarina

através dos sentidos ou da percepção). A resposta deste filósofo


tornou‑se famosa na História da Filosofia por sua simplicidade
e por ser intuitiva. Ainda nos dias atuais, muitos livros de
Filosofia são escritos para discutir essa resposta e por qual razão
ela não soluciona o problema filosófico do conhecimento. Iremos
acompanhar o raciocínio de George Moore na sua tentativa de
responder ao ceticismo.

Nosso objetivo é aprender até que ponto os argumentos do


senso comum são frutíferos na tentativa de solucionar o
problema filosófico do conhecimento, a partir do momento que
questionam o problema filosófico do conhecimento, alegando não
ser claro o que a Metafísica determina como sendo um objeto
exterior e o que determina como objeto interior.

Unidade 6 – Filosofia da linguagem e o problema do conhecimento


Nesta unidade, iremos estudar o ponto de vista de que a
resposta ao problema filosófico do conhecimento é possível
apenas pela ciência ou pelos métodos científicos de investigação.
Este argumento foi proposto pelo filósofo Norte Americano
Willard Quine.

Vamos estudar o argumento de Quine como sendo a proposta


de que não se pode responder ao problema filosófico do
conhecimento, porque vemos nosso conhecimento do mundo
como se olhássemos o mundo “de fora”, como se fôssemos
espíritos flutuantes. O argumento de Quine visa “naturalizar” o
conhecimento, isto é, torna o ato de conhecer algo que faz parte
da natureza humana e não um ato exterior do ser humano, tal
como construir alguma coisa ou mover algum objeto.

Nosso estudo, nesta unidade, tem por objetivo tentar


compreender o argumento de que conhecer é algo natural em
nós e que, portanto, o problema filosófico do conhecimento
não existe ou, ao menos, é uma questão mal formulada por
parte dos filósofos. O argumento de Quine é importante,
pois nos faz tocar na questão da Ciência Cognitiva,
isto é, o estudo científico do conhecimento enquanto

18
Teoria do Conhecimento I

informação tornada natural pelo corpo humano ou pelo


cérebro humano. O argumento de Quine é fundamental
para compreender o nascimento da Ciência Cognitiva.

Nosso estudo deste argumento, entretanto, não vai tão longe.


O que pretendemos é considerar a resposta de Quine ao problema
filosófico do conhecimento e até que ponto é uma resposta
adequada às exigências do cético cartesiano.

Unidade 7 – Fundacionalismo
Nosso estudo nesta unidade dedicar‑se‑á ao problema filosófico
do conhecimento como um problema sobre o que faz, ou não faz
sentido perguntar. Este argumento está inserido no denominado
“giro linguístico”, isto é, o ponto de vista de que as respostas aos
problemas filosóficos sejam linguísticas. Iremos considerar o
problema filosófico do conhecimento com base no ponto de vista
do estudo filosófico da linguagem, isto é, a partir da consideração
de que nossa linguagem possui regras que não podem ser violadas
e que muitas questões formuladas na filosofia são construções
linguísticas equivocadas. Vamos tentar responder à questão: “Há
um problema filosófico quanto ao conhecimento, ou apenas um
uso equivocado da linguagem?”

Estudaremos o argumento denominado “Princípio de


Verificação”, o qual busca distinguir, na linguagem, as
proposições que podem ser verificadas na realidade, e quais,
não. Esse princípio foi utilizado na filosofia tanto pelo Filósofo
Ludwig Wittgenstein quanto pelos filósofos pertencentes ao
Círculo Positivista de Viena. Estudaremos a possibilidade de a
Metafísica, que seria o pano de fundo da linguagem, garantir a
existência de objetos.

19
Universidade do Sul de Santa Catarina

Agenda de atividades/Cronograma

„„ Verifique com atenção o EVA, organize‑se para acessar


periodicamente a sala da disciplina. O sucesso nos seus
estudos depende da priorização do tempo para a leitura,
da realização de análises e sínteses do conteúdo e da
interação com os seus colegas e professor.

„„ Não perca os prazos das atividades. Registre no espaço


a seguir as datas com base no cronograma da disciplina
disponibilizado no EVA.

„„ Use o quadro para agendar e programar as atividades


relativas ao desenvolvimento da disciplina.

Atividades obrigatórias

Demais atividades (registro pessoal)

20
1
UNIDADE 1

Argumentação filosófica

Objetivos de aprendizagem
„„ Conhecer a técnica de argumentação filosófica.

„„ Identificar conclusões de argumentos filosóficos.

„„ Apreender a explorar consequências de argumentos.

Seções de estudo
Seção 1 Aprendendo sobre argumentos

Seção 2 Argumentos filosóficos


Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


O objetivo desta unidade é estudarmos os instrumentos
básicos com os quais trabalha o filósofo. Normalmente temos
a concepção de que o filósofo é uma pessoa preocupada com
questões que não nos atingem no dia a dia. Acreditamos,
também, que a filosofia trabalha com ideias.

Para viabilizar este estudo, apresentamos a seguir uma estória


sobre o conhecimento elaborado pelo filósofo John Pollock.
Acompanhe.

Uma estória sobre o conhecimento

(Obs: os parágrafos foram numerados para facilitar a


indicação destes no texto do presente livro).

/1/ Tudo começou numa quinta‑feira à noite. Eu estava


sozinho em meu escritório observando pela janela a
chuva que caia nas ruas desertas lá fora. Foi então que o
telefone tocou. Era Anne, a esposa de Harry, e ela
parecia terrificada. Ela me contou que estavam sozinhos
em seu apartamento preparando a última refeição do dia
quando a porta da frente do apartamento veio a baixo e
por ela entraram seis homens encapuzados. Os homens
estavam armados e obrigaram Harry e Anne a
deitarem‑se no piso do apartamento com o rosto para
baixo. Um dos homens passou a examinar os bolsos de
Harry até que encontrou sua carteira de motorista.
Examinou a carteira por algum tempo, comparando a
foto com o rosto de Harry. Após algum tempo de exame
falou para os outros “OK! É ele mesmo”. Dito isto
retirou do bolso uma agulha hipodérmica e introduziu
na veia do braço de Harry uma substância que o fez
perder a consciência quase que imediatamente. Por
alguma razão que Anne desconhece, eles não fizeram o
mesmo com ela. Apenas a amarraram e deixaram no
piso do apartamento. Dois outros homens, vestidos de
branco e usando máscaras, entraram no apartamento
conduzindo uma maca sobre rodas. Colocaram o corpo
inerte de Harry sobre ela e o cobriram com lençóis
brancos. Imediatamente conduziram a maca para fora
do apartamento. Todos partiram e Anne ficou
imobilizada no piso do apartamento. Ela conseguiu
lutar para se soltar e ainda conseguiu ir aos pulos até a
janela do apartamento a tempo de ver os sujeitos

22
Teoria do Conhecimento I

colocarem a maca com Harry sobre ela, dentro de uma


ambulância. Partiram à toda velocidade.

/2/ No momento em que me telefonava, ela já havia se


livrado das amarras. Antes disto telefonou para a polícia
para fazer uma denúncia de sequestro. Para sua surpresa
não vieram policiais normais e sim dois homens
vestindo terno e gravata e nada amistosos. Eles, sem
nem mesmo examinar a cena do ocorrido, disseram para
ela que nada poderiam fazer e que se ela soubesse o que
era bom para ela, deveria manter silêncio sobre o
ocorrido. Caso comunicasse a mais alguém, eles
lançariam sobre ela a acusação de que era paranóica e
nunca mais iria ver seu marido novamente.

/3/ Não sabendo o que mais fazer, Anne telefonou para


mim. Ela ainda teve a presença de espírito de anotar a
placa da ambulância e eu não tive dificuldades em
encontrá‑la estacionada numa clínica nos arredores do
centro da cidade. Quando cheguei mais próximo da
clínica fiquei surpreso em notar que era mais reforçada
que uma fortaleza militar. Havia guardas na entrada e
muros altos ao redor de todo prédio. Como eu tive
treinamento militar me esforcei para superar os muros
altos e penetrar dentro da clínica. Todas as janelas do
piso térreo possuiam grades de proteção. Assim, tive
trabalho de soltar uma das grades da janela que, por
sorte, alguém deixou aberta. Quando entrei percebi que
estava num laboratório. Ouvi vozes abafadas numa sala
ao lado, caminhei pelo corredor com todo cuidado e
espiei pelo buraco da fechadura o que ocorria dentro
daquela sala. O que pude ver era como que uma sala de
operações com uma equipe de cirurgiões conversando e
trabalhando sobre a maca em que se encontrava o corpo
inerte de Harry. Ele estava coberto com tecido usado
em cirurgias e parecia que saiam tubos da parte superior
de seu corpo. Tive de conter um grito quando percebi
que eles haviam removido a parte superior do crânio de
Harry. Para minha consternação, um dos cirurgiões pôs
as mãos enluvadas dentro do crânio de Harry e retirou
de lá seu cérebro e o colocou numa cuba de aço
inoxidável. Os tubos e conexões que vi estavam agora
ligados ao cérebro, fora do corpo, de Harry. Os
cirurgiões transportaram o cérebro de Harry
cuidadosamente até um tanque cheio de um líquido
irreconhecível. Minha primeira impressão foi a de que
eu estava presenciando uma espécie de ritual moderno
satanista que faziam suas magias através da vivecção de
cérebros das pessoas. Meu segundo pensamento foi o de
que Harry nunca teve, de fato, um cérebro e que aquela
rotina era normal.

Unidade 1 23
Universidade do Sul de Santa Catarina

/4/ Minhas especulações foram interrompidas quando


luzes apareceram atrás de mim e, ao me voltar,
deparei‑me com os tipos de cirurgiões mais assustadores
que já havia conhecido. Eles me imobilizaram e
conduziram a uma sala colocando meu corpo sobre uma
mesa de cirurgia. Logo pensei “É minha vez agora!”
Podia ouvir as vozes dos médicos atrás de mim, mas não
conseguia observar o que faziam. Talvez estivessem
decidindo meu futuro. Neste momento uma porta se
abriu e pude ouvir a voz de uma mulher. A maneira
como os médicos malignos se comportaram com a
presença da mulher permitiu saber que ela era a chefe de
todos. Eu tentava ver quem era a mulher, mas a forma
como estava amarrado à mesa não permitia. Foi então
que ela se aproximou e olhou diretamente para meu
rosto. Fiquei surpreso ao reconhecer minha secretária
Margot. Comecei a pensar se tudo aquilo era devido a
um aumento de salário que lhe neguei no Natal. Era
Margot, mas uma Margot diferente daquela que eu
sempre conhecera. Ela usava uma entonação autoritária
quando se dirigiu a mim “Bem Mike, você acreditou
que era uma cara esperto, seguindo Harry até a clínica”.
Mesmo nesta situação ela ainda mantinha uma voz sexy,
apesar de eu não estar pensando sobre isto naquele
momento. Ela continuou falando “Tudo isto foi um
truque para trazê‑lo até aqui. Você viu o que ocorreu
com Harry. Mas, sabe, ele não está totalmente morto.
Aqueles cavalheiros são neurocientistas premiadíssimos
no mundo todo. Eles desenvolveram um procedimento
cirúrgico com o qual podem remover o cérebro de um
corpo e, mesmo assim, manter o cérebro vivo numa cuba
com nutrientes. Por certo que o departamento de saúde
pública não aprovaria o procedimento, nem nós
apresentaremos este fato a eles. Você vê todos aqueles
tubos e conexões saindo do cérebro de Harry? Eles o
conectam a um super‑poderoso‑computador. O
computador monitora o output do córtex em provê um
input no córtex sensório de tal forma que tudo parece
normal para Harry. São produzidas ficções mentais da
vida que combinam perfeitamente com suas lembranças
do passado de tal forma que ele não sabe nada do que
está lhe ocorrendo de fato. Ele acredita que, neste
momento, está se aprontando para ir ao escritório.
Contudo, ele nada mais é que um cérebro numa cuba”.

/5/ Ela continuou me explicando “Uma vez que nosso


procedimento tenha sido completamente testado iremos
até o Departamento de Administração de Drogas
(FDA). Contudo, ainda necessitamos de mais algumas

24
Teoria do Conhecimento I

experiências iniciais. Com Harry foi fácil. Mas


necessitávamos de alguém com uma vida mais variada e
interessante para realizar testes com nossos softwares:
alguém como você!” Neste momento eu me preparei
para começar a gritar por socorro. Os cirurgiões
reuniram‑se em torno a mim com olhares malévolos.
Um dos cirurgiões ainda segurava um bisturi
ensanguentado na mão se aproximou de mim, mal
contendo sua excitação. Mas Margot aproximou‑se mais
de meu ouvido e disse Aposto que você está pensando
que vamos operar você e retirar seu cérebro, tal com
fizemos com o Harry, não é? Mas você não tem do que
se assustar. Nós não vamos remover seu cérebro. Nós já
o fizemos, de fato, três meses atrás”.

/6/ Com isto, me deixaram sair. Encontrei o caminho


de volta ao meu escritório numa espécie de torpor. Por
alguma razão, eu não contei nada disto a outras pessoas.
Eu não conseguia acreditar naquela experiência que
vivenciei na clínica. Contudo, algumas marcas ficaram.
Me sinto atônito com a suspeita de que eu sou, de fato,
um cérebro numa cuba e tudo que vejo ao meu redor é
apenas invenção daquele software maligno. Além disto,
como poderia contar? Se o programa do computador
realmente funciona, não importa o que eu faça, tudo
parecerá normal para todas as pessoas. Talvez tudo que
eu veja não seja real! Esta possibilidade está me
deixando maluco. Estou considerando a possibilidade de
ir até aquela clínica voluntariamente e pedir que
removam meu cérebro apenas para que eu tenha certeza
de que vivo num mundo real.

/7/ Mike é um sujeito de sorte, pois Margot lhe contou o


que havia lhe ocorrido. Talvez ele não seja um cérebro
numa cuba. Não há como ele ter certeza. Se você meditar
sobre o caso, talvez nem você tenha certeza de que “não”
seja um cérebro numa cuba. Quais as evidências que você
possui de que sua percepção do mundo é real? Será que
sua visão, tato, olfato, audição são de coisas reais, ou são
fruto de inputs do software maligno? Todo o mundo que
você vê e com o qual corresponde, pode ser uma ficção.
Se você não consegue provar que não é um cérebro numa
cuba, então também não consegue provar que o
conhecimento do mundo material é possível. Você está
diante de um problema cético!

Autor: Pollack, 1986 (traduzido e adaptado para o


português pelo autor, em 2008).

Unidade 1 25
Universidade do Sul de Santa Catarina

Seção 1 – Aprendendo sobre argumentos


Em primeiro lugar, o material de trabalho da filosofia são
argumentos. Em breve vamos saber o que isto significa. Em
segundo lugar, a filosofia não tem nada a ver com “ter” ideias
ou não. O filósofo não lida com ideias. Isto pela razão de que,
ideias todos nós temos, contudo, poucos de nós conseguem
transformá‑las em argumentos, pois algumas ideias não são
passíveis de serem discutidas ou analisadas. Vamos a exemplos.

Considere a seguinte ideia “O mundo é feito de tristezas”. Apesar


de parecer uma informação, esta afirmação é uma opinião.
Uma informação é o conteúdo de
Outro exemplo “O amor é perigoso”. Não posso provar que é
uma frase que pode ser investigado
de maneira empírica ou não. Por uma afirmação verdadeira ou falsa. Logo, não é informação.
exemplo: “existem almas penadas”
é uma frase que não contém A filosofia trabalha com um tipo especial de ideias: apenas
informação e sim uma crença em aquelas que transmitem informações. As informações podem ser
almas penadas. Na discussão entre verdadeiras ou falsas, isto é, posso fornecer razões para elas ou
ateus e crentes, é uma disputa
definir a afirmação ”Deus existe” ou
não. Assim, os meus dissabores amorosos não permitem dizer
“Deus não existe” como informação que a afirmação “O amor é perigoso” é verdadeira. Em filosofia
ou como opinião ou crença. preferimos dizer que trabalhamos com argumentos e que,
portanto, fazer filosofia é trabalhar com a compreensão e análise
de argumentos. No nosso caso trabalharemos com argumentos
filosóficos sobre o conhecimento. Esta unidade visa explicitar um
pouco mais o que até agora foi dito sobre os argumentos.

Vamos nos aprofundar um pouco mais no estudo dos


argumentos. Por definição, um argumento é um conjunto de
proposições afirmativas estruturado de tal forma que a verdade
de uma das proposições está em função da verdade das outras.
Propriedade autorreguladora
de um sistema ou organismo
Parece uma definição complicada, mas não é!
que permite manter o estado
de equilíbrio de suas variáveis Veja: no seu dia a dia, você tenta provar para seus colegas e
essenciais ou de seu meio ambiente. amigos que várias coisas são verdadeiras em função de outras.
Para fazer isto, você constrói afirmações. Tudo ficaria bem se seus
amigos e amigas aceitassem, sem questionamento, o que você diz.

Mas imagine que alguns deles não aceitam sua afirmação como
verdadeira. Ora, você imediatamente lhes dá uma prova.

26
Teoria do Conhecimento I

Por exemplo, você afirma para eles que a temperatura


do mar determina a temperatura do ar acima dele.
Você pretendeu afirmar que, quando o mar está
gelado, o ar acima dele também estará gelado. Vamos
chamar esta afirmação de (A). Alguns de seus amigos
concordam, mas outros podem discordar de (A),
afirmando coisas como “O ar frio congela o mar” ou
“O mar está gelado, mas o vento também é gelado” ou
“Não há ligação entre uma coisa e outra”.

Você terá então de fornecer provas de sua afirmação (A) e


determinado tipo de provas que convençam seus amigos. Ou seja,
não é qualquer prova que você poderá fornecer. Por exemplo, não
adianta você dizer “Ouvi no rádio” ou “Meu vizinho, que é uma
pessoa de confiança, disse‑me”. Não! Você terá de fornecer provas
que conduzam seus amigos a aceitarem sua afirmação, ou seja,
você irá lhes fornecer outras informações relevantes para provar o
que você disse. Por meio destas informações, eles aceitarão (A).
Digamos que, depois de uma pesquisa na biblioteca, você consiga
as seguintes informações adicionais sobre sua afirmação principal:
(1) A água tem temperatura superior à do ar, pois é mais densa
que o ar; (2) é necessário mais tempo de aquecimento para fazer
a água esquentar do que o ar, e, por fim, (3) a mesma quantidade
de ar e de água aquecem em tempos diferentes. Então, o que você
conseguiu são informações extras que servem de prova para sua
afirmação (A).

Podemos reconstruir toda sua argumentação da seguinte forma:

(1) a água tem temperatura superior a do ar, pois é mais densa


que o ar;

(2) a mesma quantidade de ar e de água aquecem em tempos


diferentes; e

(3) é necessário mais tempo de aquecimento para fazer a água


esquentar do que o ar.

Logo:

(4) a temperatura do mar determina a temperatura do ar acima dele.

Unidade 1 27
Universidade do Sul de Santa Catarina

Veja que a afirmação (4) é sua afirmação original (A).


Ainda que modificada em algumas palavras, ela tem o
mesmo conteúdo do que você afirmou. Era esta afirmação
que você pretendia que eles aceitassem como verdadeira. Já as
afirmações (1), (2) e (3) são as provas de sua afirmação (A).
Outra coisa a notar é que as afirmações que servem como
prova podem ser verificadas, isto é, elas podem ser provadas
através de métodos científicos ou experimentais.

Não esqueça de que você foi à biblioteca fazer uma investigação


mais detalhada sobre sua afirmação inicial (A). Relembre
agora daquela afirmação que utilizamos mais acima “O amor
é perigoso” (B). Não há como fornecer provas informativas da
mesma forma que fornecemos para o exemplo (A). Assim, apesar
de (B) ter a forma de uma informação, ela é uma opinião ou uma
expressão de tristeza, mas não uma informação.

A lição que retiramos disso tudo é a seguinte:


não podemos afirmar que a filosofia trabalha
com “ideias”, pois tanto (A) quanto (B) são ideias,
mas há um diferença entre elas: (A) busca ser
verdadeira enquanto que (B) pode ser verdadeira
sobre o sujeito que a afirma, mas não do amor.
Assim, se você for até a biblioteca buscar maiores
informações sobre os perigos do amor, não irá
encontrar nada. Os filósofos, portanto, trabalham
com o tipo de argumento exemplificado em (A).

Além disso, cada parte daquele seu raciocínio que reconstruímos


possui um nome especial. Vejamos:

„„ (1), (2), (3), (4) são proposições;

„„ (1), (2), (3) são premissas (provas); e

Inferência significa tirar uma „„ (4) é uma conclusão.


conclusão por meio do raciocínio.
No caso, dadas as premissas,
Quando raciocinamos e chegamos à afirmação (4) através de (1),
inferimos uma conclusão.
(2) e (3), dizemos que elaboramos uma inferência.

Uma grande parte do trabalho do filósofo é compreender se as


premissas conduzem ao resultado esperado. O filósofo gostaria

28
Teoria do Conhecimento I

de reduzir todas as afirmações ao estilo de (A). Nem sempre é


possível. Na Teoria do Conhecimento, essa tarefa de redução
fica mais fácil devido ao tema com que tratamos, isto é, os
argumentos são mais determinados.

Não pense que os argumentos estão apenas nos livros e nos


pensamentos dos filósofos. Os advogados utilizam‑se bastante
de argumentos; juízes, quando dão seu veredito, fornecem
conclusões (um veredito é uma conclusão); os políticos, nos
debates, também utilizam‑se de argumentos; e o próprio ensino
é uma forma de argumentar.

Será que isto esclareceu um pouco qual é o


trabalho do filósofo e com qual material ele lida?

Vamos utilizar outro exemplo. Vamos examinar o argumento do


filósofo alemão Gottfried Leibniz (veja a Figura 1.1) que escreveu
o seguinte no prefácio de seu livro Ciência Geral:

Como a felicidade consiste na paz de espírito e como


a duradoura paz de espírito depende da confiança que
tenhamos no futuro, e como essa confiança é baseada na
ciência que devemos ter da natureza de Deus e da alma,
segue‑se que a ciência é necessária à verdadeira felicidade.

Veja como Leibniz encadeia suas afirmações com a ligação


“e” e “segue‑se”. Se fizermos um resumo do que Leibniz
está nos dizendo, teríamos o seguinte “Devemos conhecer
a ciência para sermos felizes”; mas como ele quer provar
que isto é verdadeiro, então ele fornece outras informações
adicionais, que são as premissas. As informações adicionais
conduzem você a aceitar a conclusão. Se você discordar
dele – o que não é proibido – você deverá fornecer as provas
(premissas) que “não” conduzem à afirmação final dele. Figura 1.1 ‑ Gottfried Leibniz
(1646‑1716) – filósofo,
Note que Leibniz não fez como nós que numeramos nossas matemático e político alemão.
Disputa com Isaac Newton a
afirmações para facilitar. Mas, normalmente, os filósofos invenção do cálculo
avisam‑nos que irão fornecer provas e que irão concluir infinitesimal. Tal disputa causou
acirrada discussão entre os
alguma afirmação e, sempre que fazem isto, eles buscam acadêmicos da época
afirmar alguma verdade, isto é, fornecer alguma informação. Fonte: Banco... (2011).

Unidade 1 29
Universidade do Sul de Santa Catarina

Então, não se assuste com os argumentos, eles são inofensivos e


facilitam nossa compreensão. Nossa dificuldade é que, no nosso
dia a dia, não construímos argumentos desta forma.

Se afirmarmos que “o automóvel Gol é mais econômico


que o Chevrolet Astra” e não fornecemos as provas, é
porque a informação já é de domínio comum. Quem
conhece alguma coisa sobre automóveis sabe que o
Chevrolet Astra usa mais combustível que o automóvel
Gol. Contudo, o trabalho do filósofo é construir ou
pedir as provas desta informação.

Devemos observar algumas características sobre os argumentos


pelo que foi dito até agora. Confirme.

„„ Argumentos são informativos.

„„ A informação de um argumento está contida na


sua conclusão.

„„ Sempre que argumentamos, devemos fornecer as provas


(premissas) de nossa conclusão.

„„ Argumentos são conjuntos de afirmações, mas nem


todas as afirmações contidas em um argumento são a
conclusão; algumas são premissas.

„„ Nos argumentos, as premissas são indicadas por “e”,


“tendo em vista que”, “dado que”, “supondo que”,
“partindo de que...”, entre outras. As conclusões são
marcadas por expressões como “Logo”, “sendo assim”,
“infere‑se que”, “segue‑se que”, “portanto”, entre outras.

30
Teoria do Conhecimento I

Seção 2 – Argumentos filosóficos


Será que já estamos prontos para trabalhar com argumentos da
Teoria do Conhecimento? Vamos tentar? Bem, releia o final da
estória sobre o conhecimento que está no início do livro. Mike
está desesperado com a incerteza de não saber se vive em um
mundo real ou em um mundo de ficção. Ou seja, se é ou não
um cérebro numa cuba que está sendo manipulado por um
cientista maléfico.

Nosso problema é apresentar uma resposta ou caminho de


resposta que elimine a dúvida de Harry e que, ao mesmo tempo,
não permita que outras pessoas tenham a mesma dúvida de Harry.
Assim, a resposta que buscamos deve ser verdadeira, inegável e
indubitável (que não resta dúvida quanto à sua veracidade).

Você poderia afirmar: “Basta que Mike pergunte a uma pessoa


ao seu lado se o mundo é real ou não”; ou você poderia afirmar:
“Basta beliscar o braço de Mike para que a dor do beliscão
prove‑lhe que vive num mundo real”. Bem, estas afirmações
parecem bastante coerentes. Mas, o que elas provam? Que Mike
está vivendo em um mundo real?

Infelizmente não!

Lembre‑se de que Mike já tinha sido submetido à cirurgia


maluca na qual seu cérebro já havia sido ligado ao computador
(veja o final do parágrafo 5 da estória). E que, portanto, ele
está correto em duvidar da realidade que vê. Além disto, um
beliscão, segundo a estória, poderia ser apenas mais uma
invenção do computador maligno. Isto é, o computador
simularia o beliscão, bem como simularia a pessoa ao
lado de Mike e, assim, Mike acreditaria estar vivendo na
realidade quando, de fato não está. Então, a afirmação “É
necessário que Mike sinta alguma coisa da realidade” para
que saiba que vive em um mundo real e não de fantasia.

Se você leu a estória com atenção, então já percebeu que os


cientistas malignos eliminaram o limite entre real e irreal.

Unidade 1 31
Universidade do Sul de Santa Catarina

Ou seja, a estória quer lhe conduzir a pensar em quais são os


critérios pelos quais você diz que algo é real ou irreal.
Critério significa parâmetros
A única forma de Mike ter certeza de que vive no mundo real
pelos quais julgamos como
ou o que as coisas são para é se encontrar algum tipo de conhecimento que os cientistas
distinguir o erro da verdade. malignos não possam fabricar no computador.

Mas como encontrar este tipo de conhecimento?

Vamos pensar naquelas sugestões que foram dadas mais acima.

S1 Perguntar a alguém se vê a mesma coisa que vemos.

S2 Pedir que alguém nos belisque.

Tanto em um caso como no outro, que tipo de afirmação está


pressuposta? Pense.

Em S1 está pressuposto que existem pessoas reais, diferentes de


nós e que podem ou não ver o mesmo que vemos. O argumento
Pressuposto significa que uma
circunstância ou acontecimento
funcionaria assim: digo que está chovendo e peço para uma
é antecedente a um outro, sem pessoa confirmar. Devo, então, acreditar que esta pessoa
que seja explicitado. Também existe independente de eu a ver, isto é, a existência da pessoa é
significa “dar a entender” independente de minha imaginação. Contudo, o que estamos
algo sem pronunciá-lo. pedindo para a pessoa é que ela confirme que estamos vendo a
chuva, mas a própria pessoa pode ser uma criação dos cientistas
malignos. Portanto, quer a pessoa diga sim, que está chovendo,
quer diga que não está chovendo, o fato de que existe uma outra
pessoa é o que está em questão.

Como sei que é uma pessoa real e não uma criação dos cientistas
malignos? Logo, perguntar para alguém nada prova (veja o início
do parágrafo 6 da estória). Quanto à S2, devemos concordar que
um beliscão no braço é algo radical, pois a dor seria uma prova de
que algo é real. Teríamos vencido a dúvida? Você crê que já têm
uma prova final? Infelizmente, mesmo a dor pode ser criada pelo
cientista maligno, tanto quanto a pessoa que nos belisca. Releia
a estória. Não é por pouca coisa que Mike ficou com vontade
de voltar ao laboratório e pedir que removam seu cérebro e o
coloquem novamente no seu crânio. Desta forma ele teria certeza
de que vive em um mundo real.

32
Teoria do Conhecimento I

Como você pode ver, a preocupação dos filósofos quanto aos


argumentos não é apenas a de fornecer respostas, mas também
a de tentar fundamentá‑las de tal maneira que não sejam
questionadas. Os argumentos devem estar firmes, por assim dizer,
para resistir aos ataques da dúvida. Você viu acima que as duas
respostas mais óbvias possuem contra‑argumentos que as anulam.

As discussões em filosofia, normalmente, dão-se sob diferentes


análises de argumentos elaborados por outros filósofos.
Em Teoria do Conhecimento, discutimos argumentos que
são propostos com a finalidade de “fundamentar” a nossa
compreensão do que possa ser conhecimento.

Não espere que um filósofo responda-lhe a uma questão do tipo:


“O que é....?”. Substitua as reticências por qualquer conceito e
você terá uma questão que, se for filosófica (o que é o tempo?) sua
resposta é uma definição (chamamos de tempo....). Se ele for
honesto, irá lhe lançar uma outra pergunta. Por outro lado, sua
pergunta poderá ser respondida através da experiência, por
exemplo “qual a altura de N”. Neste caso, não temos uma
pergunta filosófica.

Na História da Filosofia, temos o exemplo de


Sócrates que foi um exímio perguntador. Sócrates
questionava os atenienses sobre várias coisas; por
exemplo, ele perguntava “O que é o bem?”; “O que
é justiça?”; “O que é a verdade?”; e assim por diante.
Os atenienses, em resposta, apontavam-lhe algum
herói ou algum deus do olimpo grego. Sócrates não
aceitava a resposta, pois ela apontava apenas para um
Figura 1.2 ‑ Sócrates
caso do bem, da verdade, ou da justiça. No entanto, (470 ‑ 399 a.C.)
não respondia a questão: “O que é justiça?”. Fonte: Sócrates ([200-]).

Veja como o argumento na filosofia é importante: quando um


ateniense respondia à Sócrates, dizendo que a justiça era como o
deus “X”, o ateniense acreditavam que havia eliminado a questão.

Contudo, de fato Sócrates ainda lhe perguntava “E por qual


razão o deus ‘X’ é a justiça? De onde vem a justiça para que eu
possa reconhecê‑la e atribuir ao deus ‘X’ a característica de ser
justo?”. A resposta que Sócrates buscava era uma definição e não
o apontar para uma experiência ou um caso específico.

Unidade 1 33
Universidade do Sul de Santa Catarina

Assim, quando os filósofos buscam construir seus


argumentos para provar algo eles consideram
várias possibilidades: as verdadeiras e as falsas.
A Teoria do Conhecimento é esta busca pelo
conhecimento verdadeiro; mas uma verdade
que não seja questionada pela dúvida, ou
melhor, que, se for questionada pela dúvida,
apresentará respostas que anularão a dúvida.

Você verá mais a frente que muitos filósofos tentaram fornecer


uma resposta a quem põe o conhecimento em dúvida e afirma
que não existe fundamento do qual possamos construir nosso
conhecimento. Entretanto, todas estas respostas devem ser
analisadas enquanto consistências argumentativas e não como
teorias científicas. Acho que você entendeu qual a diferença, não é?

Em uma teoria científica, nós temos indicações para elaborarmos


investigações experimentais, isto é, nós temos a possibilidade de
realizar testes com objetos do mundo, medir resultados, refazer
os experimentos, criar novos instrumentos de experimentação
etc. Na filosofia, nós temos a análise dos argumentos e das
consequências destes argumentos. Este também é o objetivo da
Teoria do Conhecimento.

Assim, a questão da Teoria do Conhecimento é: existe


algum conhecimento indubitável?

Esta pergunta ainda continua sem resposta. Isto é, as possíveis


respostas que foram oferecidas pela história da filosofia sempre
apresentam alguns pontos obscuros e que devem ser reelaborados.
Uma solução seria você aceitar um determinado ponto de vista e
arcar com o custo da falta de respostas a determinadas perguntas.
Contudo, em filosofia, nós não adotamos uma resposta porque
“gostamos” dela.

Antes, adotamos um ponto de vista argumentativo e tentamos


responder aos questionamentos que nos fizerem. Conforme o
custo, não vale a pena manter um ponto de vista.

34
Teoria do Conhecimento I

Por exemplo: existe na Teoria do Conhecimento o ponto de vista


do Fenomenalismo. Segundo este ponto de vista, a realidade é
uma criação da percepção humana. O fenomenalista não nega
que exista um mundo, o que ele afirma é que o mundo que existe
é o mundo que nós percebemos. Assim, segundo o argumento
fenomenalista, o que existe é o que é percebido.

O filósofo que defendeu este ponto de vista foi


George Berkeley (veja a Figura 1.3), conhecido
por sua defesa de um tipo de idealismo radical,
denominado fenomenalismo. Seu nome foi dado a
uma das universidades da Califórnia, em Berkeley,
região que ele visitou com o intuito de construir uma
escola. Escreveu, entre outras obras, Tratado sobre os
Princípios do Conhecimento Humano, Diálogos
entre Hylas e Filonous e Ensaio para Uma Nova Figura 1.3 - George
Berkeley filósofo
Teoria da Visão. anglo‑saxão nascido na
Irlanda, em Kilkenny, em
Contudo, o ponto de vista de Berkeley possui várias 1685, e falecido em
Oxford, em 1753. Era
obscuridades, por exemplo, quando não estamos Bispo da Igreja Anglicana
percebendo um objeto ele ainda existe? Como saber Fonte: George... ([200-]).
se não há observador? Além disto, não é fato que
nossos sentidos nos enganam? Logo, como garantir que quando
percebemos um objeto, podemos estar certos de que o objeto é
daquela forma mesmo? Bem, este é um exemplo de argumento
em Teoria do Conhecimento.

Assim, não se pode afirmar que Berkeley fornece uma


resposta definitiva. Ele apresentou argumentos; cabe aos
filósofos analisá‑los para ver se respondem a questão principal:
podemos construir um conhecimento indubitável? Teremos
de avaliar os argumentos de outros filósofos que tentaram
responder a esta questão.

Mas, como se trata de filosofia, aprendemos muito mais com


as tentativas de responder a essa questão do que com a própria
resposta. É isto que veremos nas unidades seguintes deste livro.

Unidade 1 35
Universidade do Sul de Santa Catarina

Síntese

Aprendemos nesta unidade o que significa “argumentar” em


filosofia e como os filósofos fazem o estudo e análise dos
argumentos. Aprendemos, também, que nem toda afirmação
é uma informação, mas que pode ser uma opinião e que as
opiniões não são verdadeiras nem falsas, mas as informações
sim. Iniciamos, assim, o aprendizado da análise de argumentos
da Teoria do Conhecimento. Você perceberá que o estudo desta
unidade é muito importante para as unidades seguintes, pois, em
Teoria do Conhecimento, nós não lidamos com questões que a
experiência poderia responder, e sim com argumentos.

Na filosofia, como você pode perceber, nós discutimos e


analisamos argumentos e não ideias ou experiências. Você ficou
sabendo, também, que as respostas às questões filosóficas são,
também, argumentos. Isto explica a razão pela qual não temos
“uma” resposta única em filosofia, mas sim respostas que podem
ser analisadas e criticadas. Por fim, você também já sabe qual a
questão que investiga a Teoria do Conhecimento: a busca por um
conhecimento verdadeiro e não dubitável.

Atividades de autoavaliação

Ao final de cada unidade, você realizará atividades de autoavaliação.


O gabarito está disponível no final do livro didático. Mas, esforce‑se para
resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você promoverá
sua aprendizagem.

1) A partir dos dados discutidos nesta unidade, tente encontrar as


premissas e as conclusões nos seguintes argumentos.
a) “Ainda que exista um embusteiro, sumamente poderoso, sumamente
ardiloso, que empregue todos os seus esforços para manter‑me
perpetuamente ludibriado, não pode subsistir dúvida alguma de

36
Teoria do Conhecimento I

que existo, uma vez que ele me ludibria; e por mais que me engane
a seu bel prazer, jamais conseguirá que eu não exista, enquanto eu
continuar pensando que sou alguma coisa. Então, uma vez ponderados
escrupulosamente todos os argumentos, tenho de concluir que,
sempre que digo ou concebo em meu espírito Eu sou, logo existo, esta
proposição tem que ser necessariamente verdadeira”. (René Descartes).
Premissa:

Conclusão:

Unidade 1 37
Universidade do Sul de Santa Catarina

b) “No que diz respeito ao bem e ao mal, estes termos nada indicam de
positivo nas coisas consideradas por si, nem são mais do que modos
de pensar ou noções que formamos a partir da comparação de uma
coisa com outra. Assim, uma só coisa pode ser, ao mesmo tempo, boa,
má ou indiferente. A música, por exemplo, é boa para uma pessoa
melancólica, má para uma que está de luto, enquanto para um surdo
não é nem boa nem má”. (Benedito Espinosa)
Premissa:

Conclusão:

38
Teoria do Conhecimento I

c) É ilógico raciocinar assim: “Sou mais rico do que tu, portanto, sou
superior a ti. Sou mais eloquente do que tu, portanto, sou superior a
ti. É mais lógico raciocinar assim: Sou mais rico do que tu, portanto,
minha propriedade é maior que a tua. Sou mais eloquente do que tu,
portanto, meu discurso é superior ao teu. As pessoas são algo mais do
que propriedade ou fala”. (Epiteto, filósofo grego).
Premissa:

Conclusão:

Unidade 1 39
Universidade do Sul de Santa Catarina

d) “A nenhum homem é consentido ser juiz em causa própria;


porque seu interesse certametne influirá em seu julgamento,
e, não improvavelmente, corromperá sua integridade”. (James
Madison – O Federalista, número X).
Premissa:

Conclusão:

40
Teoria do Conhecimento I

e) “Se dermos à eternidade o significado não de duração temporal


infinita mas de intemporalidade, então a vida eterna pertence
aos que vivem no presente.” (Ludwig Wittgenstein – Tractatus
Logico‑Philosophicus).
Premissa:

Conclusão:

Unidade 1 41
Universidade do Sul de Santa Catarina

Saiba mais

Você poderá saber mais sobre os assuntos que foram estudados


nesta unidade, consultando os seguintes textos.

EWING, A C. As questões fundamentais da filosofia. Rio de


Janeiro: Zahar, 1984. O Capítulo 1 é o mais importante para
esta unidade. Ewing é um filósofo que tenta lançar argumentos
e os explicar.

CHAUÍ, Marilena. Convite ao Filosofar. São Paulo: Ática,


1998. A parte importante é o Capítulo 1 da Unidade 5 onde ela
esclarece algo sobre a construção lógica de argumentos. É uma
breve introdução.

COPI, Irving. Introdução à Lógica. São Paulo: Ed. Mestre Jou,


1979. Texto clássico de Lógica. Nos primeiros capítulos Copi
estuda a formação de argumentos e como analisá‑los.

42
2
UNIDADE 2

O ceticismo e suas exigências

Objetivos de aprendizagem
„„ Compreender o problema do conhecimento.

„„ Entender o que significa o ceticismo no estudo


do conhecimento.

„„ Aprender a considerar vários aspectos de uma


resposta filosófica.

„„ Estudar aspectos da obra e da filosofia de


René Descartes.

Seções de estudo
Seção 1 Descartes e o ceticismo

Seção 2 A argumentação do cético cartesiano

Seção 3 Verdades da razão e verdades da experiência


Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Nesta unidade, vamos iniciar o estudo do problema do
conhecimento. Você identificará os filósofos que primeiro
lançaram dúvidas sobre a possibilidade do conhecimento
verdadeiro e o primeiro filósofo que tentou dar uma resposta bem
elaborada para o problema. Além disto, aprenderemos a testar
nossas respostas ao problema do conhecimento. Por fim, iremos
compreender por qual razão a investigação do conhecimento é
tão importante.

Seção 1 – Descartes e o ceticismo


A estória que aparece nas primeiras páginas deste livro pode
lhe parecer estranha ou apenas ficção científica. Tudo bem,
existe ficção científica de péssima qualidade, quer dizer, você
logo percebe que a estória toda é ridícula. Entretanto, este não
é o caso da estória que lhe contei. Ela, de fato, contém grandes
doses de ficção científica. Mas, ajuda a compreender que, com o
crescimento da ciência, as hipóteses devem ser cuidadosamente
consideradas para só então serem descartadas.

Já se foi o tempo da ficção científica que mostrava formigas


gigantescas que invadiam uma cidade. As possibilidades científicas
no que diz respeito ao conhecimento do cérebro são testadas em
laboratório e algumas têm conseguido sucesso surpreendente.

Por exemplo, pessoas que perdem parte do cérebro


devido a acidentes ou doenças, podem ter esta
parte compensada com o que sobrou do cérebro.
Os neurocientistas já realizaram uma “bissecção”
do cérebro. Explicando melhor, sabe‑se que o
cérebro é composto por duas partes denominadas
“corpo caloso”. Estas duas partes estão ligadas
entre si com a base do cérebro. A “bissecção”
consiste em desligar uma parte problemática da
outra sã. E você sabe o que aconteceu? A parte que
ficou ligada compensou a ausência da outra.

44
Teoria do Conhecimento I

Veja bem, isto é ciência e não invenção. Portanto, se a “bisecção”


é possível, então a hipótese de retirada do cérebro e sua ligação
a um computador através de fibras sintéticas não é uma piada.
Ela é uma hipótese, algo possível, ainda que nunca tenha sido
realizada. Pode ser uma ficção, mas não é má ficção científica.
Além disto, como você já aprendeu na unidade anterior, os
filósofos não estão interessados em resultados científicos, mas
em consequências argumentativas. Logo, se você afirma que a
estória acima é uma mera brincadeira, então você deve conseguir
responder à duas questões básicas, quais sejam:

1. Você têm conhecimento científico atualizado que


comprova a impossibilidade prática e lógica de retirada
do cérebro, ou
Impossibilidade prática
significa que não é
2. você sabe que não é um cérebro em uma cuba? possível ter determinada
experiência, pois não
Para responder a questão (1) você precisa de informações existem meios de criá‑la,
atualizadas das investigações empíricas realizadas por exemplo: túnel do tempo;
cientistas; já para responder a questão (2), você precisa de impossibilidade
lógica, significa que
argumentos filosóficos. Mas você perguntará: por qual razão
algo é impossível de ser
necessito responder a questão (2) se é diferente da questão (1)? pensado, exemplo: um
Bem, é porque a questão (2) é um assunto filosófico e não círculo quadrado, andar
empírico. Mesmo que você responda a questão (1) e comprove para frente e para trás ao
a impossibilidade prática da remoção do cérebro vivo e sua mesmo tempo. Contudo,
imaginar que se possa criar
ligação a um supercomputador, a questão (2) ainda necessita
uma ligação entre uma
ser respondida, pois apenas admite respostas oriundas das camêra ótica e os nervos
considerações filosóficas sobre como adquirimos conhecimento óticos de uma pessoa cega
do mundo exterior. Ou seja, trata‑se de Teoria do Conhecimento. não é uma impossibilidade
lógica, apesar de ser uma
Bem, após esses comentários sobre a história, você vai estudar impossibilidade prática.
um filósofo que viveu no século XVI e que elaborou uma estória
muito parecida. Por sinal, a estória dos cérebros em uma cuba é
baseada em uma parte da argumentação desse filósofo. Refiro‑me
a René Descartes.
Você deve pronunciar “de-
Descartes viveu entre os anos de 1596 e 1650, estudou direito e car-te” e não “des-car-tes”,
foi soldado, chegando a participar de algumas batalhas. pois René nasceu na cidade
Descartes foi um gênio matemático e filosófico, desevolvendo de Chartrês na atual França
teoremas da Geometria Analítica que estudamos até hoje no e o “Des” é a indicação
deste local de nascimento;
ensino médio (você deve lembrar da expressão plano cartesiano).
em francês, o “s” é mudo,
Elaborou outras descobertas na Matemática como os polinômios; não se pronuncia. Por isto, o
foi o primeiro filósofo a estudar o sistema de circulação sanguínea correto é dizer “de-car-te”)

Unidade 2 45
Universidade do Sul de Santa Catarina

e o cérebro humano. Investigou como funcionava a visão humana


e desenvolveu algumas ideias na área da Física e da Ótica.

A obra filosófica de Descartes é também genial:


escreveu sobre os sentimentos humanos – ódio, amor,
ciúme etc – em uma obra chamada As Paixões da
Alma (DESCARTES, 1996); escreveu também
sobre o método de investigação das ciências num livro
intitulado Discurso do Método (DESCARTES,
1996) e tratou de refletir sobre como ensinar a pensar
corretamente na sua obra chamada Regras para a
Direção do Espírito.
Figura 2.1 ‑ René Descartes
(1596‑1650) – filósofo, Em todas estas obras, Descartes baseava seus
matemático e físico do século XVI.
argumentos na existência de conhecimentos racionais
Além de obras importantes no
inquestionáveis. Em 1641, ele escreve uma obra para
campo da filosofia, foi matemático
fecundo na área da geometria provar racionalmente a existência da alma, do mundo
criando, a geometria analítica
Fonte: René... (2011). e de Deus, tudo comprovado por meio da razão. Daí
dizermos que Descartes é um racionalista, isto é, um
filósofo que defende a razão como mais certa e mais segura do
que a experiência.

Para Descartes, a ciência por excelência era a Matemática;


todas as outras ciências e conhecimentos deveriam se adequar
aos métodos da matemática. Esta obra é intitulada Meditações
de Filosofia Primeira e consiste em seis meditações.
(DESCARTES, 1996).

O objetivo de Descartes é demonstrar que a razão é a


fonte de toda e qualquer prova, tanto nas questões de
conhecimento quanto nas questões de teologia, e que
qualquer prova obtida através da razão é equivalente a
uma regra da Matemática.

Meditações de Descartes é a obra que mais nos interessa no


momento, principalmente as duas primeiras meditações, pois é
nelas que você encontrará o argumento cético a partir do qual foi
elaborada a estória sobre os cérebros em uma cuba.

46
Teoria do Conhecimento I

Antes disto porém, vamos conhecer um outro tipo de filósofo, os


chamados “céticos”.

O fundador da escola cética foi Pirro de Ellis (320 a.C‑270 d.C).


Ele acreditava que as coisas são incognoscíveis (não podem ser
conhecidas). Com isto você deve suspender todo e qualquer
julgamento, isto é, você não deve dizer o que uma coisa é e, sim,
dizer “Pelo que podemos entender até agora...”. Fazendo isto você
não entraria em discussões e, portanto, não perturbaria sua alma.
O fim almejado por Pirro era a paz da alma, que, em grego,
Figura 2.2 ‑ Pirro de Ellis
diz‑se “ataraxia”, um estado de não perturbação pelas dúvidas. (365 a.C.–270 a.C.). Foi
Veja a Figura 2.2. contemporâneo de
Alexandre, o Grande, de
cujas expedições
A academia de Pirro durou um certo tempo depois de sua morte, participou
mais precisamente até 88 d.C. Após esta data, foi praticamente Fonte: A volta... (2010).
esquecida. No ano 150 d.C., um médico chamado Sexto
Empírico, do qual não temos data de nascimento nem morte,
publicou uma obra que se supõe ser uma compilação das ideias
de Pirro de Ellis. Contudo, Sexto Empírico já não visa mais um
ponto de vista ético ou de paz da alma e sim o da negação de
toda possibilidade de conhecer.

Para ele, como nada pode ser conhecido, nada pode ser
investigado. Portanto, devemos nos adequar ao comportamento
comum dos outros seres humanos. Há uma afirmação
interessante que Sexto atribui à Pirro: segundo Pirro, nada
pode ser ensinado, pois ou você ensina o que a pessoa já sabe e,
portanto, isto não é aprender algo; ou você ensina algo obscuro,
mas, neste caso, como você poderá fazer com que esta pessoa
entenda algo obscuro, que ela nem sabe como compreender?

Interessante não? Se você ensina o que outro já sabe, então, não


está ensinando nada. Se você ensina o que o outro não sabe,
então você lhe ensina algo obscuro, mas o obscuro não pode ser
ensinado. Portanto, ensinar resume‑se em (a) ensinar o que já
é sabido ou (b) ensinar algo obscuro e o obscuro não se ensina.
Sem (a) ou (b) não há ensino.

Unidade 2 47
Universidade do Sul de Santa Catarina

Sexto e Pirro não são contra o ensino; também não


afirmavam que Deus não existia ou que o mundo
não existia. Ora, afirmar que Deus não existe é ter um
conhecimento e eles não acreditavam que se pudesse
conhecer. Portanto, os céticos não eram ateus e nem
“crentes”. Vamos dizer que eles eram o que nós hoje
chamamos por “conformistas”, isto é, alguém que não
quer nenhuma perturbação na sua vida e, para tanto,
conforma‑se a tudo, para obter a paz.

Figura 2.3 - Martinho Lutero.


A Reforma Protestante ou
Luterana (do século XVI) foi um Agora que já você já conhece um pouco da história do termo
movimento teológico‑político “cético”, vai saber como esta escola de pensamento entra na
que dividiu a Cristandade a partir história filosófica do Ocidente. Durante o período da Reforma
da divulgação das 95 teses
elaboradas pelo ex‑frei da Ordem Protestante, havia grande oposição à autoridade e ao saber
de Santo Agostinho, Martinho teológico da Igreja estabelecida em Roma.
Lutero, contrárias à autoridade da
Igreja Católica Romana Foi nesta época que encontraram os escritos de Sexto Empírico.
Fonte: Nunes (2009).
Ora, tal como foi mencionado antes, os escritos serviram de
munição contra o saber teológico e contra a autoridade da Igreja
Católica da época. Contudo, os defensores da Reforma, que
usaram os argumentos de Pirro e Sexto, retiraram apenas os
argumentos que lhes serviam, isto é, os argumentos contra o
conhecimento das coisas, da impossibilidade de saber algo e,
mesmo, o de poder ensinar algo. Portanto, usaram apenas o que
Assim, a concepção de ceticismo
deixou de ser uma escola de Ética, e
lhes interessava.
passou a ser uma escola de Filosofia.
Esta afirmava que “nada se pode
conhecer, e nenhuma autoridade se
pode fundamentar”.

Seção 2 – A argumentação do cético cartesiano


Agora que já conhecemos Descartes, os céticos e qual seus
objetivos, vamos discutir a obra Meditações de Descartes.
Como racionalista, Descartes pretendia comprovar que a razão
é superior à experiência e, como filósofo, ele deveria demonstrar
que isto era verdade. Para comprovar o que era verdade ou
poderia chegar a ser uma verdade, Descartes optou por mostrar
que a experiência não fornece verdades e, se fornece alguma
verdade, ela é questionável.

48
Teoria do Conhecimento I

Em outras palavras, Descartes queria que você aceitasse que uma


verdade da razão deve ser igual a uma verdade matemática. Por
quê? Ora, se você questionar uma verdade da matemática, duas
possibilidades poderão ocorrer:

„„ sua questão não tem resposta e, portanto, algo é falso na


matemática. Isto não pode ocorrer, pois podemos errar
nos cálculos matemáticos, mas não admitir que as regras
de calcular estão erradas (você pode medir de maneira
errada a altura de uma pessoa, mas não faz sentido
afirmar que o metro padrão está errado); e

„„ sua questão não faz sentido.

Imagine que alguém diga “duvido que dois mais dois é igual
à quatro”. Se não for uma pessoa alcoolizada, nem estiver de
brincadeira, então a questão não faz sentido. Dois mais dois
sempre resultarão quatro. A mesma coisa ocorre com o metro
padrão: ele sempre é igual a cem centímetros. Se você disser que
um metro é a soma de 99 centímetros, então, se você não está
brincando nem estiver sob efeito de alguma substância química
que altere seu estado de percepção, então sua afirmação estará
errada. Mais do que isto: matematicamente, ela não faz sentido.

Não é por nada que chamam a matemática de


“rainha das ciências”, pois ela é perfeita. Uma verdade
matemática é inquestionável. Talvez você ache estes
argumentos complicados, mas quando considerarmos
o caso das verdades da experiência você terá mais
clareza da estratégia de Descartes.

Até agora falamos das verdades da razão. Agora consideremos as


verdades da experiência. Em primeiro lugar, vamos definir o que
é experiência. Podemos dizer que, em filosofia, uma experiência
é o resultado do conjunto de nossas percepções. É uma definição
difícil de entender? Talvez você queira maiores explicações, já que
é estudante de filosofia.

Considere o seguinte: você toma um pedaço de gelo e coloca


na sua mão. Tenha certeza de que é gelo (é água congelada
e não um outro líquido qualquer). O que ocorre? Você terá

Unidade 2 49
Universidade do Sul de Santa Catarina

uma sensação de que está segurando algo frio. Este será um


conhecimento fornecido pelos nervos de sua mão, pela sua pele
ou, se você deseja uma definição mais científica: uma informação
decodificada pelo seu cérebro a partir de um objeto externo a
você, por meio de suas sensações.

Portanto, você tem conhecimento que o gelo é frio através


de sua experiência de segurar um pedaço de gelo. É simples
não é? Se alguém me disser que o gelo não é frio, então lhe
faço segurar uma pedra de gelo na mão. Ele terá de concordar
que o gelo é frio se for uma pessoa normal (claro, não estou
considerando o caso de uma pessoa que por qualquer razão não
tenha sensibilidade nas mãos). Além disto, podemos comprovar
cientificamente que é gelo: fazemos testes de laboratório etc.

É inegável que é um conhecimento baseado na experiência.


Até aqui não há dúvida alguma. Contudo, Descartes lhe
perguntará: “é um conhecimento inquestionável?”. Aqui as coisas
complicam‑se, pois, se você disser que é inquestionável, você está
assumindo que, em todos os casos de experimentos iguais, as
pessoas concordaram que o gelo era frio e, portanto, dadas estas
experiências o gelo é frio. Mas isto não torna o conhecimento
inquestionável: um conhecimento verdadeiro não é adquirido por
maioria ou consenso.

Considere o seguinte: todos sabemos o que é a energia elétrica,


mas não é este conhecimento que faz uma lâmpada acender.
Concorda? Há algo na energia elétrica que faz a lâmpada acender,
independentemente de sabermos o que é! Portanto, o fato de
que todos sabem que o gelo é frio não é o que faz o gelo ser frio.
Você pode apelar para as sensações e dizer “Ora, qualquer pessoa
normal, ao segurar um pedaço de gelo dirá que é frio, pois terá as
mesmas sensações de frio!”. Bem, Descartes argumentará que: 1º
você admite, sem discussão, que todas as pessoas tem as mesmas
sensações. Mas isto não é bem assim, basta lembrar que você fala
de pessoas “normais”.

O que é uma pessoa normal neste caso? Ora, alguém que sente
que o gelo é frio! Logo, você define normal segundo o que você
pretende, a saber, que percebe que o gelo é frio. Isto não vale
como prova. Descartes poderia argumentar também que: se você
segurar um pedaço de gelo na mão durante muito tempo, não

50
Teoria do Conhecimento I

terá sensação de frio e sim de que algo está queimando sua mão.
Ora, a afirmação de que o gelo é frio já não é inquestionável.
É possível que você encontre alguém que diga “o gelo queima” e
esta pessoa não será maluca, pois de fato o gelo queima, apesar
de ser frio.

Lembre‑se de que os esquiadores de neve usam óculos de


proteção, óculos escuros. Ora, óculos escuros são para proteger
nossos olhos da luz do Sol, não é? Pois é, no caso de esquiar na
neve, a claridade pode queimar a retina de seus olhos! A neve é
gelada e queima os olhos. Além disto, se você ficar muito tempo
exposto à luz emitida pela neve você poderá “tostar” sua pele, tal
como alguém que fica exposto ao sol em uma praia ou deserto.

Parece que os céticos tinham razão, não é?

Eles poderiam afirmar: tenho tantas razões para dizer que o gelo
é frio, quantas para dizer que o gelo queima; logo, nada posso
afirmar com certeza a respeito do gelo e, portanto, não tenho
conhecimento infalível ou inquestionável sobre o gelo.

Vamos considerar outro exemplo: o do movimento. Por


definição, movimento é “Estado em que um corpo muda
continuamente de posição em relação a um referencial”. Agora
suponhamos que você encontre um cético que lhe afirma
“O movimento não existe, existe apenas corpos que se movem”.
Você poderá dizer a ele “Mas isto é o movimento, corpos que se
movem”. Ele lhe responderá “Mas é isto, você concorda comigo,
o movimento não existe”.

Agora pense: como provar, inquestionavelmente, para


este cético que o movimento existe?

Se você se movimentar pela sala dizendo — veja, movimento é


isto! Neste caso apenas comprovará o que ele já disse “existem
apenas corpos que se movem, mas não o movimento”. Qualquer
exemplo que você fornecer será de algo que se move, mas com
isto não respondeu a dúvida lançada pelo cético.

Unidade 2 51
Universidade do Sul de Santa Catarina

Ele não questiona que as coisas movam‑se, e sim que exista algo
chamado “movimento”. Para ele “movimento” é algo diferente
de um corpo movendo‑se. Complicado? Veja, o cético não aceita
as experiências como prova, pois elas são questionáveis. Ora,
no caso do movimento não temos como refutar o cético, pois
tudo que podemos lhe fornecer como prova são experiências.
Teríamos de fornecer outro tipo de prova que não envolva os
cinco sentidos da experiência.

Portanto, aqui nós já temos uma das exigências do ceticismo: as


provas não podem ser baseadas na experiência.

E por que é assim?

Porque, para cada experiência que você alega como prova, pode
existir outra que a negue (veja o caso do gelo, do movimento).
Aqui temos outra exigência do ceticismo: a certeza. Ou seja, você
deve fornecer uma razão que seja indubitável.

Que tal refletir um pouco sobre esses assuntos resolvendo


algumas questões?

1) Explique quais relações podem ser encontradas na estória


que é apresentada no início do livro e o questionamento do
cético cartesiano.

52
Teoria do Conhecimento I

2) Você considera que Mike, o personagem da estória, tornou‑se


um cético cartesiano? Justifique sua resposta.

3) Você acredita que Mike poderia ter outra saída para suas
dúvidas além daquela que ele mesmo propõe? Argumente sobre
sua resposta.

Unidade 2 53
Universidade do Sul de Santa Catarina

Seção 3 – Verdades da razão e verdades da experiência


Você deve estar se perguntando: qual a ligação deste título com
as ideias de Descartes?

Note que Descartes era muito esperto. Ele sabia que responder
ao cético não era algo fácil. Além disto, Descartes também
sabia que a única carta que o cético tinha para jogar era que a
experiência pode ser mutável, isto é, ela varia de pessoa para
pessoa e com o tempo. Logo, Descartes teria de eliminar esta
carta da mão do cético. O que ele faz? Responde ao cético?

Veja, o que Descartes propõe na Primeira Meditação: ele


apresenta todas as coisas das quais podemos duvidar. Todas elas
são baseadas em nossos cinco sentidos, em nossa experiência.
Portanto, Descartes concorda, a princípio, com o cético: não é
possível obter conhecimento verdadeiro! Inclusive, supõe que não
seja comprovado que tenhamos provas de que estamos acordados
neste momento.

Parece uma dúvida sem importância não é mesmo?

Então pense seriamente: se é uma dúvida boba é porque você


tem uma prova infalível de que não está sonhando neste
momento que está lendo estas linhas, de que existe um mundo
fora de sua casa, de que você está sentado em sua cadeira etc.
Mas cuidado, não forneça uma prova que seja baseada na
experiência, pois ela é duvidosa.

Descartes vai mais longe ainda e acrescenta mais algumas


dúvidas. Ele discute a possibilidade de que a matemática esteja
fora de dúvida. Ou seja, a matemática – como já dissemos mais
acima – não é oriunda da experiência. Entretanto, é fato que nos
enganamos nas operações matemáticas não é? Quem já não fez
um cálculo errado? Como explicar isto?

Descartes recorre a um “gênio maligno” que nos engana. Este


gênio faz com que acreditemos somar corretamente, quando,
de fato, estamos somando errado. Mais ainda, este gênio faz
com que acreditemos que vemos um céu azul, as cores, os

54
Teoria do Conhecimento I

objetos quando nada há. Ao perceber que, introduzindo a


hipótese do gênio maligno, Descartes acaba com o mundo
da experiência, seja verdadeira, seja falsa, ele retira do
cético a única carta que ele tinha contra a possibilidade do
conhecimento verdadeiro: a experiência.

Que tal resolver mais algumas questões de reflexão e


posteriormente publicar suas conclusões no EVA?

Leia novamente a estória que está no início do livro. Considere as


seguintes questões:

1) Leia com atenção o que Margot diz a Mike no final do


Parágrafo 5. Como Mike poderia provar a ela que ela estava
mentindo? Justifique sua resposta.

2) Considere a situação de Mike quanto a sua impossibilidade


de contar o fato a outras pessoas: elas também seriam ficções.
Pergunte‑se: com base em que você acredita na experiência que
outras pessoas lhe contam? Qual a razão para confiar no que elas
dizem que aconteceu? Explique sua resposta.

3) Se Mike se submetesse novamente à experiência que Margot


alega que ele foi vítima, ele poderia ter “uma prova de que não era
um cérebro em uma cuba”? Comente sua resposta.

Unidade 2 55
Universidade do Sul de Santa Catarina

Por fim, resta a Descartes mostrar que há uma verdade,


indubitável, na qual apoiar todo conhecimento. Esta tarefa, ele
realiza na Segunda Meditação.

Entretanto, preciso lhe avisar que esta resposta é uma construção


de Descartes, isto é, ele criou o que costumamos chamar de
“cenário” para o conhecimento na Primeira Meditação.

Neste cenário, parece que a única resposta possível é a de


Descartes. Muitos filósofos não concordaram com isto e
resolveram enfrentar o cético cartesiano (pois ele inventou aquele
cético) naquele mesmo cenário. As partes restantes deste livro são
os argumentos que os filósofos tentaram trabalhar para responder
ao cético cartesiano.

A resposta de Descartes ao problema é a seguinte: por mais que


eu duvide de minha existência, se estou sonhando neste momento
ou não, se estou sendo enganado por um gênio maligno, uma
coisa é certa: estou pensando. Ora, não há como duvidar de que,
ao duvidar, pensamos, não é verdade? Tente fazer isto. Você
verá que duvidar é pensar. Bem, então temos uma primeira
verdade, qual seja, nós pensamos. Tal verdade não é baseada na
experiência. Descartes marcou um ponto contra o cético.

Mas, ainda falta mostrar que algo existe sem que a


experiência seja a base.

Ora, pense um pouco: você já viu um pensamento solto, voando


ou no chão? Não! Então, raciocinemos com Descartes: se existe
pensamento, então existe alguma coisa que pensa. Portanto, se eu
penso, então eu existo. Dai resulta a famosa frase de Descartes
“Cogito, ergo sum”, que, traduzindo para o português, significa
“Penso, logo existo”.

Eis aí uma verdade não derivada da experiência. Mais adiante,


Descartes irá concluir que é uma coisa que pensa, que imagina
e que sente. Assim, Descartes demonstra ao cético, e com os
próprios argumentos deste que é possível encontrar uma verdade
da qual se pode derivar todo o conhecimento.

56
Teoria do Conhecimento I

Parece que a história poderia parar por aqui. Mas, se fosse


assim, não teríamos os séculos de discussão filosófica sobre
o conhecimento. Além disso, você sabe que, atualmente, o
conhecimento é concebido como “capital” de uma empresa ou
mesmo de uma universidade. Logo, investigar como chegamos
a um conhecimento verdadeiro e certo assume papel importante
para a sociedade atual.

Mas, então, você poderá se perguntar como esta investigação


continua, pois parece que Descartes respondeu ao cético? Bem,
a resposta de Descartes não foi aceita por vários filósofos: Kant,
foi um deles. Outros filósofos nem acreditam que exista a
possibilidade do problema, por exemplo, John Austin.

Assim, o que fizeram? Aceitaram o cenário construído por


Descartes na primeira e tentaram fornecer uma resposta diferente.
Mas, você pergunta, por quê? Ocorre que Descartes, ao derivar a
verdade de sua existência apenas da razão, não estava errado. Seu
erro, muitos alegam, foi derivar de uma verdade da razão (pense
na Matemática como uma verdade da razão) uma verdade da
experiência (pense no conhecimento de que o gelo é frio).

Isto parece complicado não é?

Por vezes, as coisas complicam-se e o que parecia simples já não


o é. Vamos tomar um exemplo para tentar deixar as coisas mais
evidentes. Imagine que você deve administrar uma empresa
qualquer. Você é um ótimo administrador, conhece várias teorias
administrativas e por isto foi escolhido para o cargo. Bem, aí está
você tendo de administrar esta empresa.

Você então faz um exame da situação da empresa e, após o


estudo, decide tomar uma decisão para melhorar o desempenho
da empresa. Aqui temos duas possibilidades: (a) sua decisão é
correta e (b) sua decisão não apresenta resultado algum. Agora,
vamos pensar nestes dois casos em comparação aos argumentos
de Descartes: no caso (a), Descartes alegaria que, se você
tomou a decisão baseado em verdades da razão, logo você só
poderia ter sucesso; no caso (b) Descartes alegaria que os erros
da experiência – a falta de resultado – são devidos à própria

Unidade 2 57
Universidade do Sul de Santa Catarina

experiência, logo você não decidiu com base na razão e sim


na sua experiência, no que você viu e examinou da situação da
empresa. Para Descartes, não haveria problema nesta análise.

Ocorre, alegam muitos filósofos, que as verdades da razão não


estão ligadas à verdade da experiência. Isto é, você poderia ter
aplicado uma decisão baseada na razão e o resultado ser péssimo.
Você pode dizer “dane‑se a coisa funcionou! Eu estava certo”.
Isto não está de todo errado.

O problema filosófico é saber por que deu certo. Neste caso o


“dane‑se” não é uma boa resposta! Descartes enfrentou o mesmo
problema, por esta razão os filósofos interessados no estudo do
conhecimento sempre buscam uma resposta ao cético. No final das
contas, estudar o conhecimento é saber como encontrar a verdade,
mas uma verdade que tenha a qualidade de uma certeza. Este foi o
projeto de Descartes e, podemos dizer, que muitos ainda seguem
seus passos iniciais na busca do conhecimento infalível.

Síntese

Você conheceu René Descartes e aprendeu um pouco sobre sua


proposta filosófica. Tal conhecimento permitiu compreender as
intenções de Descartes na Primeira e Segunda Meditações.
Aprendeu também que existem dois tipos de céticos: os que
duvidam que alcançaremos o conhecimento verdadeiro e os que
duvidam que alcançaremos qualquer tipo de conhecimento. Por
fim, aprendeu em que cenário o cético de Descartes exige certeza
dos conhecimentos.

Ainda, nesta última parte da unidade, discutimos estratégias para


diferenciar verdades da razão de verdades da experiência.

58
Teoria do Conhecimento I

Atividades de autoavaliação

Ao final de cada unidade, você realizará atividades de autoavaliação.


O gabarito está disponível no final do livro didático. Mas, esforce‑se para
resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você promoverá
sua aprendizagem.
Questões para reflexão.

1) Como você avalia o ponto de vista do ceticismo de que devemos nos


adequar às regras e normas para obter a paz de espírito? Justifique
sua resposta.

Unidade 2 59
Universidade do Sul de Santa Catarina

2) Você concorda que há uma separação entre verdades da experiência e


verdades da razão? Exemplifique sua resposta.

60
Teoria do Conhecimento I

Saiba mais

Para aprofundar os conteúdos abordados nesta unidade, consulte


os seguintes materiais.

DESCARTES, René. Meditações de filosofia primeira. São


Paulo: Nova Cultural, 1996. Os textos mais importantes para
esta segunda unidade são as duas primeiras Meditações. Na
primeira, Descartes elabora o cenário onde surge a dúvida cética
e na segunda responde a algumas das questões céticas. Nesta
segunda Meditação, preste atenção à maneira como surge o
“Penso, logo existo”.

DESCARTES, René. Princípios da filosofia. 3. ed. Lisboa:


Guimarães, 1984. Neste texto (bem curto por sinal), Descartes
elabora e explica as bases de sua filosofia. Vale a pena ler todo
o texto.

KOYRE, Alexandre. Considerações sobre Descartes. 2. ed.


Lisboa: Presença, 1981. Neste texto, o Prof. Koyre elabora alguns
comentários sobre a filosofia de Descartes. Os comentários são
gerais e apenas alguns pontos tratam da dúvida clássica.

MOORE, George E. Prova de um mundo exterior. São Paulo:


Abril Cultural, 1980. Este ensaio será utilizado em outras
partes deste livro, portanto é interessante conhecer o tipo de
prova que Moore fornece ao cético cartesiano. Quando você ler
o texto, analise o tipo de prova que o autor fornece ao cético e
compare com o final do Parágrafo 6 da estória que está no início
do livro texto.

Unidade 2 61
3
UNIDADE 3

Conhecimento, ceticismo
e a vida cotidiana

Objetivos de aprendizagem
„„ Compreender o que é o senso comum.

„„ Entender por que o senso comum não responde à


dúvida cética.

„„ Analisar a “Prova de Moore”.

Seções de estudo
Seção 1 Senso comum e conhecimento

Seção 2 John Austin e a resposta ao


questionamento cético

Seção 3 As questões da Teoria do


Conhecimento e a vida prática

Seção 4 George Moore e a questão do ceticismo

Seção 5 Avaliação filosófica da resposta do


senso comum
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Nesta unidade, você irá aprender um pouco mais sobre como
apresentar um tipo de conhecimento que o cético não possa
questionar. E também aprenderá com John Austin a “enquadrar”
a questão cética em problemas da linguagem. Certamente, você
perceberá que a resposta de Austin não será satisfatória, pois
enfrenta o cético de forma direta. Passaremos a considerar a
resposta de George Moore ao cético. A resposta de Moore ainda
hoje causa discussão, contudo, enquanto resposta direta ao cético,
não atinge o objetivo desejado. Iremos aprender que o cético
questiona não apenas nosso senso comum, nossa vida diária, mas
também o que lhe dá fundamento.

E então, está pronto(a)?

Seção 1 – Senso comum e conhecimento


Na unidade anterior, estudamos a argumentação filosófica, bem
como os princípios básicos do ceticismo, sua influência na busca
pelo conhecimento e a construção cartesiana de um novo tipo de
cético. Por fim, começamos a estudar os motivos pelos quais as
respostas comuns não são suficientes para responder ao cético.

Nesta unidade, vamos nos aprofundar um pouco mais e


estudar a tentativa de lançar contra a dúvida cética respostas
que constituem conhecimentos do senso comum. Primeiro,
vamos estabelecer um acordo quanto ao que é o senso comum.
Normalmente, dizemos que uma pessoa é de senso comum
quando ela não tem conhecimentos sobre o que fala.

Por exemplo: você já deve ter presenciado a conversa


de pessoas opinando sobre mecânica de automóvel.
Algumas destas pessoas fazem afirmações que você
sabe não funcionarem na prática.

64
Teoria do Conhecimento I

As afirmações como as do exemplo acima são opiniões sem


fundamento em conhecimento, e sim no que podemos chamar
de “ouvi dizer que...”. Ou seja: a pessoa que as afirma não tem
provas. Mas não é desse senso comum que estamos falando.
Estamos falando de conhecimentos comuns (por exemplo: o
fato de que, ao abrir uma torneira de cozinha, correrá água)
sobre fatos comuns (os ponteiros de um relógio andam em uma
determinada direção para marcarem as horas, por exemplo).

Exatamente, alguns filósofos acreditam que o cético não dá


atenção a estes fatos comuns e conhecimentos comuns. Ou seja:
para estes filósofos, o cético assume que não vive uma vida
como qualquer ser humano comum, devido a sua exigência de
certeza nos conhecimentos. Os dois filósofos que mais trataram
deste ponto de vista, embora com perspectivas diferentes contra
o cético, foram John Austin e George Moore. Vamos iniciar
estudando a argumentação de Austin.

John Austin foi o que se denomina “filósofo da


linguagem comum”. Muitos atribuem a ele a fundação da
Filosofia da Linguagem Comum na Universidade de Oxford,
no Reino Unido. Infelizmente Austin faleceu com cinquenta
Filosofia da Linguagem
anos e deixou uma obra inacabada. Temos um texto completo é o ramo da Filosofia
de sua autoria e vários escritos para revistas e algum deles que estuda a essência
inacabados. (AUSTIN, 1980). e natureza dos
fenômenos linguísticos.

Foi um dos grandes pensadores britânicos


do Pós‑II Guerra Mundial. A sua grande
contribuição para a filosofia do século XX
foi desenvolvida na sua obra de referência:
“How to do Things with Words”. Nela,
defendia a distinção entre os enunciados
“performativos” (pelos quais algo é
criado) e os enunciados “constatativos”
(pelos quais é efetuada a comunicação
de uma informação). Outra importante
tese defendida por Austin era a de que, na
História da Filosofia, os confrontos entre Figura 3.1 ‑ John Austin
(1911‑1960)
as teses filosóficas e as crenças populares Fonte: John... ([200-?]).
são causados pela incompreensão de uma
linguagem comum.

Unidade 3 65
Universidade do Sul de Santa Catarina

O ponto de vista central de Austin era que os problemas


filosóficos são resolvidos através de um cuidadoso trabalho
sobre a linguagem. Por tal razão, muitos críticos chamavam‑no
pejorativamente de “taxonomista” da linguagem, isto é, alguém
que apenas faz a separação das palavras já conhecidas em classes
gramaticais, mas não contribui para a filosofia. Bem, espero que,
ao final do estudo, você possa formar seu ponto de vista pessoal
sobre tal crítica.

Antes de iniciar o estudo da próxima seção, que tal


realizar algumas atividades de reflexão para verificar a
sua aprendizagem até aqui?

Em uma folha de papel almaço, escreva o que é solicitado.

1º Na primeira face da folha, escreva 10 afirmações que você


acredita serem verdadeiras. Não faça frases longas, apenas
afirmações. Exemplo: “Sei que a Terra é redonda”.

2º Na segunda face da folha, escreva sobre cada uma das


afirmações, como você sabe que são afirmações verdadeiras, isto
é, quais suas razões para crer na verdade destas afirmações. Você
estará justificando sua crença na verdade daquelas afirmações.
Exemplo: “Eu sei que a Terra é redonda, pois meus professores de
Geografia me ensinaram assim”.

3º Na terceira face da folha, explique como você poderá provar a


verdade de cada afirmação, se alguém duvidar delas. Exemplo: “Sei
que meus professores estavam corretos ao afirmarem que a Terra é
redonda, pois a ciência provou isto através de investigações”.

4º Na quarta face da folha, escreva quais daquelas 10 afirmações


você ainda mantém como verdadeiras, mesmo que alguém duvide
das mesmas. Exemplo: “Eu mantenho que a Terra é redonda
com base nos seguintes fundamentos: (a) meus professores
me ensinaram; e (b) a ciência provou que a Terra é redonda e,
portanto, que meus professores estavam certos”.

Obs: É provável que, após realizar esta atividade, você perceba


ser bem difícil fundamentar ou fornecer fundamentos de tudo
que acreditamos conhecer.

66
Teoria do Conhecimento I

Seção 2 – John Austin e a resposta ao questionamento


cético
Austin argumentava que “usar a linguagem implica ter
conhecimento do significado das palavras”, sendo assim, uma
pessoa que usa a palavra “mundo exterior” ou “objeto do mundo”
deve saber o que está dizendo, se está usando a expressão de
maneira correta. Portanto, argumentará Austin, o cético é
uma pessoa contraditória, pois, ao pedir provas de que não
estamos sonhando neste momento, ele deve saber a diferença
entre o significado das palavras “sonhar” e “estar acordado”. Se
não tivesse tal conhecimento, não poderia usá‑las de maneira
significativa. Logo, para Austin, a questão já estaria resolvida.

Contudo, segundo Austin, o que o cético faz é, de fato, uma


redefinição de palavras que já conhecemos.

Por exemplo: se eu disser a você: “Não existem médicos em


São Paulo”, você irá pensar que ou estou fazendo algum chiste
ou estou maluco, e não concordará comigo. Contudo, se eu
conceituar médico como “alguém que cura qualquer doença
em 1 segundo”, então, diante de minha definição, você terá de
concordar que não existem médicos em São Paulo.

Pois bem, Austin diz o mesmo do cético. O cético toma uma


palavra que todos nós conhecemos, qual seja, “conhecimento”, e
a redefine dizendo “conhecimento é toda aquela informação que
não posso pôr em dúvida”.

É bem difícil encontrar alguma informação que “não”


possamos pôr em dúvida. Assim, o cético na verdade
nos confunde e já não sabemos apontar o que poderia
constituir um conhecimento seguro.

Portanto, segundo o ponto de vista de Austin, nossas práticas


comuns do dia a dia apresentam como pressuposto que tenhamos
conhecimento do que fazemos, do contrário estas práticas
perderiam seu sentido. Retomando a pergunta de Descartes na
Primeira Meditação – “Como sei que não estou sonhando?” – ,
a resposta do senso comum seria fazer a pergunta: “Como você
sabe diferenciar sonho de realidade, para elaborar esta questão?”

Unidade 3 67
Universidade do Sul de Santa Catarina

O cético parece estar encrencado!

Contudo existe uma diferença entre “saber a verdade do que algo


é” (por exemplo: “Sei que o pássaro que canta neste momento
é um canário”) e “dizer algo adequado ou razoavelmente”.
Em outras palavras, o cético diria para Austin que temos
de diferenciar as questões: “Como sei que é verdade?” de
“É adequado crer que é verdade?”. Assim, por exemplo, é
adequado crer que é verdade o que nos diz um professor sobre
algum conteúdo, mas, quando perguntamos: “É verdade que é
assim?”, estamos pedindo que o professor justifique qual a razão
para crer no que ele diz.

Ora, o que encontramos nas nossas práticas diárias é adequação,


razoabilidade, mas não necessariamente verdade.

Por qual razão nossas práticas são como são?

Esta será a pergunta do cético. Talvez isso lhe pareça confuso,


mas imagine o seguinte caso: sua empresa contrata um novo
gerente geral. Ele é conhecido por todos como um gênio da
administração, e todos o tratam assim. Agora imagine que você
pergunta para seu colega: “Devemos confiar nos direcionamentos
que este novo gerente nos fornecer?”. Seu colega poderá
responder: “Mas é claro, todos sabem que ele é um gênio da
administração”. Este é um tipo de resposta adequado à sua
pergunta. Mas e se você perguntar: “Como você sabe que ele é
um gênio da administração?”, a resposta de seu colega não poderá
ser: “Todos sabem disto”, pois não é esta sua questão.

Seu colega terá de fornecer razões para a genialidade do novo


gerente, e estas não estão baseadas no que dizem dele. Você está
questionando as “credenciais” do novo gerente, mesmo que seja
adequado afirmar que é razoável tratá‑lo como todos o tratam:
um gênio administrativo!

Este é o problema com a resposta de Austin ao cético. Austin


fornecelhe‑se práticas diárias como resposta à dúvida cética, mas

68
Teoria do Conhecimento I

o cético está colocando em dúvida a razão pela qual tal prática foi
adotada como verdadeira!

Vamos explorar outro exemplo fictício para fixar esta diferença


entre o que o cético pergunta e o que o senso comum lhe
dá como resposta (seria como perguntar “por qual razão é
verdadeiro?” e obter como resposta “porque todos tratam isto
como verdadeiro”).

Suponha que você está em uma festa, e o anfitrião da


festa pergunte‑lhe sobre um amigo comum de vocês:
“O Paulo virá à festa?” e que sua resposta seja: “Claro,
ele gosta de festas e não perderia esta”. Ocorre que
Paulo, ao se preparar para ir à festa, estava nervoso,
caiu e sofreu uma torção no pé. Ficou impossibilitado
de ir à festa. Seu anfitrião, ao final da festa, lhe diz:
“Você não sabia que Paulo viria e, portanto, não sabia
o que dizia, quando me respondeu”. Agora pense:
você mentiu quando disse que o Paulo viria à festa?
Não, é claro! Você não sabia que Paulo viria à festa?
Não, você sabia, ele mesmo lhe disse. Como imaginar
que ele sofreria um acidente?! Assim, você respondeu
de maneira razoável ou adequada à pergunta de
seu anfitrião. Mas, de fato, Paulo não veio à festa,
e isto contradiz sua afirmação de que ele viria. Isto
demonstra que nem sempre dizer algo adequado,
razoável corresponda a uma afirmação verdadeira.
O caso de seu amigo Paulo demonstra isto.

Para ampliar a sua compreensão sobre os assuntos


abordados, proponho algumas questões para reflexão.
Após resolvê‑las, publique os resultados na ferramenta
Exposição do EVA.

a) Que tipo de conhecimento nossas práticas do dia a dia


pressupõem? Seria um conhecimento verdadeiro, ou falso?

b) Por qual razão nossas práticas do dia a dia podem incluir o


erro ou o engano?

Unidade 3 69
Universidade do Sul de Santa Catarina

c) Quando você afirma que tem conhecimento de determinado


fato e este é verdadeiro durante certo tempo, mas passa a ser falso
em outro momento, ao afirmar este conhecimento novamente
estará cometendo algum engano? Por qual razão?

Vamos agora trazer esta conclusão para o caso do cético e a


resposta do senso comum: dizer que não se pode duvidar porque
se trata de um conhecimento razoável, prudente e adequado não
comprova a verdade que o cético exige, pois isto não impede que
se possa duvidar. Estas são condições da vida prática, mas não
condições de verdade.

Assim, é necessário diferenciar entre dois tipos de razão: as


razões para agir e as razões para afirmar que algo é verdadeiro.
Ao fornecer, ao cético, razões do senso comum, Austin está
fornecendo‑lhe razões para agir, e não condições de verdade.
Nossas razões para agir não estão, necessariamente, baseadas
em verdades. Elas fazem parte da nossa forma de vida, e não de
um conjunto de certezas. Quando investigamos as razões para
se afirmar que algo é verdadeiro, não fazemos perguntas com
respostas relevantes para o do dia a dia: queremos saber se “é
verdadeiro, é certo”, e não se é razoável ou adequado.

70
Teoria do Conhecimento I

Seção 3 – As questões da Teoria do Conhecimento e a


vida prática
Você pode estar frustrado(a) com este resultado: nossa vida
diária, vida prática, não é suficiente para responder ao cético e
para lhe fornecer razões daquilo que acreditamos ser verdadeiro!
Lembre‑se de que, fomos apresentados a um novo tipo de
cético. O cético construído por Descartes exige “certeza e
indubitabilidade” para a verdade.

Contudo, este estudo da argumentação de Austin não é de todo


negativo. Se você pensar bem, ficamos sabendo algo a mais, isto
é, que agimos segundo necessidades do momento, segundo o que
as circunstâncias nos exigem, e não segundo a indubitabilidade
de verdades. Ainda mais, isto revela que nossa vida comum é
fundamentada em nossas relações com outros seres humanos e
com o que esperamos que ocorra (“é razoável crer que....”), e que,
portanto, senso comum nada tem a ver com conhecimento.

Se nossa vida diária fosse pautada ou fundamentada pela verdade


indubitável de cada afirmação, gesto ou ação, nós não seríamos
como somos. Entretanto, nosso senso comum nos auxilia na vida
prática – mesmo que não seja indubitável – quando agimos uns
com os outros.

É isto que nos faz mais humanos, ainda que, na Teoria


do Conhecimento, isto não seja relevante para a
verdade dos conhecimentos.

Por outro lado, você pode ficar confuso(a), se pensar que agimos
sem fundamentos verdadeiros, mas você estará correto(a), pois
a função da ação não é a verdade, e sim a convivência entre
humanos e não humanos. Se fôssemos pensar na verdade
indubitável de cada ação prática, ficaríamos imóveis, sem ação.

Por tal razão, o argumento de Austin não funciona contra o


cético, pois Austin aceita como verdadeiro justamente o que
o cético está questionando. Além disto, surge uma questão
interessante nessa argumentação.

Unidade 3 71
Universidade do Sul de Santa Catarina

Qual o papel do nosso conhecimento comum?

Por exemplo: muitas vezes nossos parentes mais velhos não


possuem conhecimentos que podem provar como verdadeiros
ou como bem fundamentados, e, se pedirmos que fundamentem
esses conhecimentos, eles apenas dirão que aprenderam
assim. Muitos de nossos conhecimentos possuem este tipo
de qualificação, isto é, são do senso comum. Mas tal fato não
demonstra que o senso comum possui algum tipo de defeito
quanto ao conhecimento, por assim dizer. O senso comum não
é base para o conhecimento e também não é conhecimento,
pois não é uma informação fundamentada na verdade de
outras informações. Lembre‑se de que estamos falando aqui de
indubitabilidade, logo, saber algo através dos jornais ou de nosso
vizinho não é conhecimento indubitável.

Quantas afirmações não é mesmo? Para exercitar seu


aprendizado, resolva estas questões para reflexão.
Não esqueça de publicar os resultados na ferramenta
Exposição do EVA.

a) Construa uma afirmação que transmita um conhecimento


“razoável”, mas que pode ser falso, ou verdadeiro.

b) Responda à seguinte pergunta: “Nosso senso comum é


construído a partir de práticas ‘razoáveis’, ou, ao contrário,
práticas razoáveis são as que fazem parte do dia a dia?”

c) Por qual razão (ou quais), o conhecimento razoável é questionável?

72
Teoria do Conhecimento I

Seção 4 – George Moore e a questão do ceticismo


Vamos estudar agora o ponto de vista de outro filósofo que
defende o senso comum como resposta aos problemas filosóficos:
George Moore.

George E. Moore (1873‑1958) foi, ao lado de Bertrand


Russel (1872‑1970), um dos principais responsáveis pela
implantação de uma nova abordagem filosófica na
Inglaterra. Antes dele, predominava, entre os ingleses,
uma corrente idealista, que abafara a tradicional visão
cética e empírica, oriunda de autores como Francis
Bacon (1561‑1626), David Hume e John Locke
(1632‑1706). Depois de 1903, no entanto, com a
publicação de Principia Ethica e do ensaio Refutação
do Idealismo, Moore introduziu uma nova maneira
realista de tratar os problemas filosóficos. A principal
característica de seu pensamento era uma postura
analítica de investigação, voltada para o exame do
significado das expressões empregadas na linguagem
corrente, em oposição aos enunciados filosóficos de
difícil compreensão. Em relação ao uso dado pelo
senso comum à linguagem, Moore considerava seus
significados verdadeiros, e todos poderiam percebê‑los
claramente. Quanto ao uso filosófico da linguagem, era
preciso buscar uma interpretação que tornasse
evidente a verdade ou falsidade de suas proposições.

Vamos chamá‑lo apenas Moore, por questão


de praticidade e de tradição, pois seu
nome é citado assim nas discussões sobre o
ceticismo. Moore viveu bem mais tempo e
produziu várias obras não apenas de Teoria
do Conhecimento, mas também de ética (ele
escreveu a obra Pricipia Etica) e ensaios sobre
temas gerais da filosofia.
Figura 3.2 - George E. Moore
Moore acredita que muitas questões da Fonte: The Philosofers... (2011).
filosofia são elaboradas sem que os filósofos
que as formulam considerem que os conhecimentos que já
possuem, os quais exercem no dia a dia, eliminam a possibilidade
de que elaborem suas dúvidas. Por exemplo: de que não estamos
sonhando neste momento, ao lermos as páginas deste livro, que

Unidade 3 73
Universidade do Sul de Santa Catarina

existe um mundo exterior se considerarmos que nascemos, e,


portanto, tivemos pais (na época de Moore, 1930, ainda não
havia o “bebê de proveta”). Contudo, é discutível se um bebê de
proveta “não” possui pai ou mãe (mas isto é outro assunto), mas o
fato de estarmos sentados nesta cadeira implica que o espaço por
ela ocupado existe e deve ser contínuo com o espaço fora de nossa
casa (se você mora em um apartamento, imagine‑se no térreo).

Moore seria o tipo de filósofo que responderia ao cético da


seguinte forma: “Para você me dizer qual sua dúvida, é necessário
que eu possa ouvir sua voz, logo, algo externo existe e posso
prová‑lo: você que fala comigo”.

Enfim, Moore enfrenta o cético de maneira diferente de John


Austin: enquanto Austin aceitava as questões do cético e buscava
responder‑lhe, Moore tenta atacar o cético de maneira direta.
Ou seja: para Moore, a questão “Existe um mundo exterior?”,
ou então, “Como sei que não estou sonhando?” nem se pode
formular. Poderíamos afirmar que, para Moore, as questões que
podemos fazer em filosofia e que fazem sentido são as que nos
conduzem a algum conhecimento, e não as que solapam nosso
conhecimento já adquirido. Fazer tais questões seria como cortar
o galho em que se está sentado, para ter certeza de que todos os
galhos da árvore foram cortados, ou, para usar outra imagem,
desmontar um barco dentro de um rio para ter certeza de que
nenhuma de suas tábuas possui defeito.

O primeiro passo de Moore, como já dissemos, é enfrentar o


cético “de frente”, isto é, dizer que o ceticismo não faz sentido.
Para isto, Moore (1980) retoma em seu ensaio Prova da
Existência de um Mundo uma afirmação que o filósofo alemão
Immanuel Kant escreveu em sua obra Critica da Razão Pura:

“ainda permanece como um escândalo para a Filosofia


[...]que a existência de coisas exteriores a nós [...]
devam ser aceitas simplesmente como artigos de fé,
e que se alguém acha bom duvidar de sua existência
somos incapazes de enfrentar suas dúvidas com
qualquer prova satisfatória”.

A disposição de Moore é fornecer a prova satisfatória pedida por


Immanuel Kant. Para iniciar sua prova, Moore faz uma primeira

74
Teoria do Conhecimento I

distinção entre “coisas exteriores a nós” e “coisas interiores a nós”.


Aquilo que é “interior” ao ser humano depende do ser humano e
de sua percepção para existir.

Assim, por exemplo, quando você põe toda sua atenção em


determinada cor (a cor laranja, por exemplo) e depois volta seu
olhar para uma parede branca, você irá ver uma cor diferente,
uma espécie de objeto de cor esverdeada.

Tal cor, entretanto, apenas existe “na sua visão” ou no


seu campo de visão, e não é um objeto exterior a você:
ele depende de sua visão para existir.

Pois bem, Moore não que falar desse tipo de objeto – aos quais
ele dá o nome de pós‑imagem –, e sim daqueles objetos que não
dependem de nossa visão. Estes objetos seriam existentes por si
mesmos, independeriam de nós.
Para que você compreenda a estratégia de Moore, veja que ele
faz uma distinção que o cético ainda não havia feito. O cético
apenas diz que “não podemos conhecer objetos exteriores a nós”,
contudo Moore está sugerindo que uma “pós‑imagem” é um
objeto exterior a nós, apesar de depender de nossa visão. Com
isto, acusa o cético de não ser claro quanto ao que afirma ser
impossível conhecer (é como se perguntasse: afinal, o que é um
objeto exterior a nós, Sr. Cético?). Por outro lado, Moore quer
dizer ao cético que ele vai lhe apontar objetos que não dependem
de nós, isto é, objetos que, quer esteja você olhando, ou não,
continuam a existir.

Moore apresenta, então, sua prova: ergue uma mão e diz: “Eis
aqui uma mão”, ergue a outra mão e diz “Eis aqui outra mão”!
Uma prova estranha, você não acha? Mas, por mais estranha que
pareça, Moore está apresentando dois objetos exteriores a nós,
que independem de nossa visão, que podem ser tocados (você
pode apertar ou beliscar a mão de Moore).

Moore afirma ainda que sua prova é adequada a qualquer


prova cientificamente aceita, isto é, é uma prova lógica. Se você
lembrar o que falamos na primeira unidade sobre argumentos
e proposições que fazem parte de argumentos, verá que a prova

Unidade 3 75
Universidade do Sul de Santa Catarina

de Moore é apresentada de acordo com aqueles princípios: as


premissas de Moore não são iguais à sua conclusão. As premissas
são “eis aqui uma mão” e “eis aqui outra mão” e a conclusão será,
“logo, existem duas mãos”.

Moore alega que nós conhecemos a verdade das premissas e que


de premissas verdadeiras não se pode inferir uma conclusão falsa
(a não ser que estejamos raciocinando de forma errada). Ora,
você já deve estar acostumado(a) com o questionamento cético
suficientemente para saber que as premissas de Moore, as quais
ele diz que são verdadeiras, não são aceitas pelo cético.

Por sinal, é justamente isto que o cético questiona:


existem objetos exteriores a nós, para que
possamos conhecê‑los?

Assim, sem perceber, Moore “cai” na armadilha do cético!


Quando levanta uma mão e diz “Eis aqui uma mão”, ele está
apontando para o cético um objeto externo que depende de
nossos cinco sentidos para existir, lembra? Seria o mesmo caso
de você dizer ao cético: “Eis aqui uma cadeira” e “Eis aqui outra
cadeira”, logo “Existem duas cadeiras”, e com isto pretender
provar que existem objetos externos a nós. Se o cético aceitasse
estas premissas e as de Moore, ele deixaria de ser um cético!
Contudo o cético afirma: “Não sabemos se existem objetos
exteriores a nós”.

Veja que a questão do cético não diz respeito a conhecer


determinados objetos, e sim a como provar que estes objetos
existem. Logo, de nada adianta lhe mostrar mãos, cadeiras e
outros objetos quaisquer. É a exigência particular (a justificação
do conhecimento) do cético que faz com que estes objetos não
sirvam como prova.

Para aprimorar a compreensão desses conteúdos,


responda às seguintes questões reflexivas:

76
Teoria do Conhecimento I

a) Por qual razão o cético poderia aceitar as provas de Moore e


continuar sendo um cético?

b) O que você entende por “prova” da verdade de um conhecimento?

c) Todos os conhecimentos que você possui ou nos quais crê que


são verdadeiros podem ser “provados”? Justifique sua resposta.

Unidade 3 77
Universidade do Sul de Santa Catarina

Seção 5 – Avaliação filosófica da resposta do senso


comum
Você já percebeu que a resposta de Moore não é adequada, não
é? Pois bem, se as duas mãos de Moore não são prova, então o
que há de errado em nossa vida cotidiana que o cético põe em
questão? Vamos relembrar algumas coisas: o cético não acredita
ou duvida que possamos conhecer objetos exteriores a nós:

„„ os objetos exteriores a nós são aquelas coisas que você


percebe através de seus cinco sentidos;

„„ Moore apresenta como prova objetos do senso comum,


isto é, que todos conhecemos; e

„„ a prova de Moore não é suficiente, ou seja, ele não


respondeu à pergunta ou dúvida do cético.

Mas Moore apresenta um conhecimento cotidiano. Afinal, todos


os dias usamos nossas mãos para elaborar e levar a cabo várias
tarefas. Neste momento, estou usando minhas mãos para escrever
este texto no computador.

Como, então, isto não serve de prova de que existem


objetos exteriores a nós?

Um argumento que alguns filósofos formularam tenta fazer‑nos


compreender que a resposta de Moore ao cético deve ser
compreendida de maneira diferente. Eles concordam que Moore
faz uma afirmação direta contra o cético e lhe fornece uma
resposta adequada. Contudo, Moore esquece, ou não considerou
com o devido cuidado, que a pergunta do cético é uma questão
“externa” ao conhecimento, e que sua resposta é “interna”.

Vamos nos entender quanto a esta distinção: quando os filósofos


dizem que a pergunta do cético é “externa” ao conhecimento,
isto significa que o cético não está duvidando da existência ou do
conhecimento de coisas tais como mãos e cadeiras. Seria muita
ingenuidade do cético assumir tal ponto de vista. Ao mesmo

78
Teoria do Conhecimento I

tempo, a resposta de Moore é “interna”, pois fornece como


argumentos determinados conteúdos e informações que “já”
fazem parte do conhecimento. Ou seja: o cético afirma: “Não
existem objetos exteriores a nós”, e Moore lhe apresenta uma
maçã, por exemplo.

Mas a maçã é uma informação interna ao conhecimento como um


todo, ou seja, o questionamento do cético diz respeito à existência
ou possibilidade do conhecimento de “qualquer objeto externo a
nós”. Sendo assim, apresentar ao cético uma maçã e dizer: “Eis
um objeto do mundo exterior” não produz efeito algum.

Vejamos um exemplo mais concreto.

Imagine que você tem um amigo que se diz cético (ele


não crê que possamos conhecer objetos do mundo
exterior): ele afirma que o movimento não existe, mas
sim corpos que se movem. Este seu amigo pode ser
um sujeito um tanto estranho, mas o que ele afirma
faz sentido! Ele pode argumentar da seguinte forma:
quando você vê um automóvel em movimento o
que você vê? O movimento, ou o automóvel “em”
movimento? É óbvio que você vê um automóvel
em movimento. Da mesma forma, quando você
joga uma bola de futebol no chão e ela continua
quicando: o que você vê? Uma bola em movimento,
ou o movimento? Por certo que você vê a bola
movendo‑se, mas o movimento parece ser algo que
“está” na ação total da bola ou do automóvel. Isto é:
tenho de entender o que é movimento, para só então
afirmar que algo está se movendo, não é mesmo?

Pois é, seu amigo pode ser estranho, mas é um filósofo, melhor


ainda, ele tem uma questão filosófica. Como ocorre com toda
questão filosófica, sua resposta deve ser um argumento, e não
uma experiência (lembra‑se de termos falado nisto na primeira
unidade?) do tipo “eis aqui uma mão” e “eis aqui outra mão”.

Acho que você compreendeu o engano de Moore.

Unidade 3 79
Universidade do Sul de Santa Catarina

Ele não atentou para o fato de que o cético não estava


questionando a existência de suas mãos! E sim, questionando
todo e qualquer conhecimento de objetos exteriores a nós.
O filósofo Ludwig Wittgenstein, ao comentar esta tentativa
de Moore de provar a existência de objetos exteriores, disse o
seguinte: “Se o cético discordar de Moore, ele é um louco, e não
um cético”. Ou seja: Wittgenstein chamou a atenção – ainda que
sem dizer explicitamente – para o seguinte: a questão do cético
é interna ao conhecimento. Portanto, quem duvida que existam
objetos externos, também duvida que se possa provar a existência
de mãos, pés etc.

Ora, as mãos de Moore são certamente objetos exteriores, logo


elas fazem parte daquilo que o cético está questionando. Vamos
tomar um exemplo mais comum: suponhamos que um grande
teórico da administração visite a empresa em que você trabalha.
Após algumas apresentações e visitações, ele diz o seguinte:
“Muito bonita sua empresa, mas você não tem uma teoria da
administração sendo aplicada aqui”.

Você ficará intrigado(a) e poderá mostrar‑lhe novamente todos os


processos da empresa, desde o setor pessoal até a expedição das
mercadorias. Contudo, isto não é uma teoria da administração, é?

Certamente que não, estas são as partes que compõem sua


empresa, e não uma teoria do funcionamento destas partes.

Aquilo que o grande teórico da administração está lhe


cobrando ou afirmando que não existe em sua empresa
é diferente do “setor pessoal” ou da “expedição”. O
grande teórico da administração está pedindo que
você prove qual teoria da administração faz a ligação
entre as partes da sua empresa. Logo, apresentar
seção por seção não é uma resposta adequada.

O mesmo ocorre com Moore: no exemplo acima, você seria


Moore e o teórico da administração seria o cético. Ora, ele está
lhe exigindo outro tipo de resposta, e não que você lhe apresente
partes da empresa. Nesse exemplo, sua resposta teria de ser a
seguinte: levá‑lo até sua sala na diretoria e mostrar‑lhe seus
planos administrativos, os quais demonstravam quais as relações
entre as partes da empresa e de que maneira uma se liga a outra.
80
Teoria do Conhecimento I

Esta deveria ser a resposta de Moore ou, pelo menos, algo


parecido com isto. Moore deveria apresentar ao cético um tipo
de conhecimento que o levasse a crer na existência de suas
mãos, e não, simplesmente, mostrar suas mãos, pois isto o cético
não está questionando (ele até apertaria a mão de Moore para
cumprimentá‑lo!). Bem, se formos fazer um resumo do que
ocorreu com a resposta de Moore, teríamos duas observações:

(1) quando lidamos com dúvidas e questões filosóficas, as


nossas experiências não servem de resposta, pois são questões
experimentais, e não questões argumentativas; e

(2) nossas práticas diárias funcionam com base em sua utilidade,


e não em sua verdade. Assim, alegar contra o cético, fatos do
senso comum é dar um “sobrepasso”, por assim dizer, você pula
a prova da verdade de que determinada coisa existe e apresenta o
objeto diretamente.

O engano de Moore é acreditar que o questionamento cético


pode ser enfrentado diretamente, isto é, pensar que, quando
alguém duvida da existência de um objeto determinado e nós lhe
mostramos este objeto, então a pessoa deverá aceitar que o objeto
existe, obviamente. Mas o caso do questionamento cético não
está no mesmo nível: ele não está colocando em dúvida o nosso
conhecimento de um determinado objeto exterior, mas sim de
toda uma categoria de objetos, por assim dizer.
Com a expressão
O cético não afirma que não podemos provar uma classe
“categoria de objetos”,
de objetos que pertence à categoria de objetos exteriores. estou querendo dizer-lhe
Por exemplo: vamos tomar um objeto como uma cadeira. que todos aqueles objetos
Este objeto é conhecido através de nossos sentidos, temos de que você tem de provar
ver a cadeira, tocar nela, ou até uma foto poderia ser uma prova que existem, apelando
para seus sentidos,
válida. Assim, uma cadeira é um objeto de uma classe dentre
fazem parte da categoria
outras que pertencem a uma categoria, qual seja, classe dos “objetos exteriores”.
objetos exteriores.

O cético está alegando que não podemos provar que a categoria


“objetos exteriores” contém algum membro. Então, o que faz
Moore? Mostra ao cético um membro da classe que o cético
afirma não conhecermos. Ou seja: a resposta de Moore, por mais
que ele a retire com base no senso comum, não é suficiente.

Unidade 3 81
Universidade do Sul de Santa Catarina

O interessante na resposta de Moore é que nossa vida diária


baseia‑se em determinados conhecimentos e práticas que
estamos acostumados a cumprir e a afirmar, sem necessitar de
justificativa. Contudo, quando estes conhecimentos e práticas
são “jogados” como conhecimento ou base para justificativa de
conhecimento, não funcionam.

Bem, já vimos que as práticas diárias e os conhecimentos


necessários para desempenharmos bem nossas tarefas do dia
a dia, são elaborados com vista apenas a estas práticas. Nosso
dia a dia não é baseado em distinções filosóficas, e sim em
necessidades de outra ordem.

Portanto, a lição que podemos retirar da tentativa de Moore é


que nossa investigação das bases do conhecimento constitui uma
questão filosófica, e não uma questão do cotididano. Quando
uma pessoa surpreende‑se com uma questão filosófica e afirma
“Loucura!”, ela está justificada. Isto não quer dizer que as
questões filosóficas sejam ”loucura”, e sim que o senso comum
não é base para o entendimento de questões filosóficas, nem
de respostas filosóficas. O senso comum serve para as nossas
transações do dia a dia.

Síntese

O que estudamos nesta unidade foi o argumento de que a


questão elaborada pelo cético, isto é, que não podemos conhecer
nada do mundo exterior a nós, poderia ser respondida através de
alegações do senso comum. O senso comum aqui significa nossa
atitude para com os objetos e pessoas que nos cercam. Exemplos
destes objetos são cadeiras, maçãs, bicicletas e outros objetos
como estes.

Este argumento foi desenvolvido, em duas frentes distintas,


por dois filósofos ingleses: John Austin, que apelava para nosso
conhecimento necessário para o uso da linguagem; e George
Moore, que argumentava existir uma total evidência de objetos
82
Teoria do Conhecimento I

exteriores a nós através de nosso conhecimento da vida comum.


Ao analisarmos estes dois argumentos, percebemos que Austin
confunde “razoável” com “verdadeiro” e que Moore apresenta
como prova de objetos exteriores informações que são “internas”
ao conhecimento, isto é, que afirmam a existência de objetos do
mundo (exatamente o que o cético questiona).

Entretanto, Moore não se dá conta de que a questão do cético


diz respeito ao âmbito “externo” do conhecimento, isto é, como
podemos saber que coisas existem. O senso comum, então, não
fornece uma resposta adequada. Concluímos que não é função
do senso comum responder a questões filosóficas, tal como é
a questão elaborada pelo cético. O senso comum serve apenas
como pano de fundo de nossa vida prática. Em suma, o senso
comum não contém nenhuma questão filosófica, tampouco
fornece uma resposta filosófica.

Atividades de autoavaliação

Ao final de cada unidade, você realizará atividades de autoavaliação.


O gabarito está disponível no final do livro didático. Contudo se esforce
para resolver as atividades sem a ajuda do gabarito, pois, assim, você
estimulará sua autorreflexão.

1) Quando você pensa em tudo que conhece, quais conhecimentos seriam


“internos” e quais seriam “externos”? Explique por quê.

Unidade 3 83
Universidade do Sul de Santa Catarina

2) Posicione‑se quanto à seguinte afirmação: Moore era ingênuo,


pretensioso, ou não entendeu o ceticismo filosófico? Justifique
sua posição.

3) Explique por qual razão é difícil responder ao cético filosófico? Que tipo
de resposta ele aceitaria?

84
Teoria do Conhecimento I

Saiba mais

Caso você queira aprofundar seu conhecimento sobre a


argumentação de John Austin e de George Moore, você pode
consultar os seguintes ensaios destes filósofos:

AUSTIN, John L. Outras mentes. São Paulo: Abril Cultural,


1980. Col. Os Pensadores, no volume que traz por título Ryle,
Austin, Strawson, Quine. O Prof. Austin inicia este texto
discutindo o ponto de vista de um colega seu, o professor John
Wisdom. Infelizmente não foi colocado na tradução brasileira
o texto de Wisdom, portanto você terá alguma dificuldade de
compreensão no início do texto. Nele, Austin fala muito no
nome de Wisdom.

MOORE, George. Prova da existência de um mundo exterior.


São Paulo: Abril Cultural, 1980, Col. Os Pensadores. Neste
texto, Moore apresenta suas provas contra o ceticismo – “eis aqui
uma mão”, “eis aqui outra mão”. Você deve ter certa paciência
com a leitura, pois Moore é um argumentador refinadíssimo: ele
apresenta uma afirmação e depois passa a esmiuçá‑la.

MOORE, George. Uma defesa do senso comum. São Paulo:


Abril Cultural, 1980. É neste texto que Moore defende o senso
comum, ao constituir uma resposta aos problemas da Filosofia.
Moore escreve muito bem, mas usa de uma linguagem culta (que
foi bem adaptada pelo tradutor brasileiro), portanto prepare‑se
para alguma dificuldade de leitura. Mas vale o esforço!

CHAUÍ, Marilena. Convite a filosofia. São Paulo: Editora


Ática, várias edições. Este manual de filosofia é muito acessível.
No início da obra, a Profa. Chauí apresenta brevemente o
significado de senso comum e, na parte em que discute o
conhecimento, você irá encontrar alguns dos argumentos que
discutimos aqui. Porém, não vá se confundir: a autora prefere
dividir os filósofos em realistas, empiristas e idealistas. Caso você
tenha maior interesse em inserir os filósofos que estudamos nesta
unidade na divisão elaborada pela Profa. Chauí, entre em contato
com o seu professor tutor. Ou proponha uma discussão em um
fórum do EVA.

Unidade 3 85
Universidade do Sul de Santa Catarina

CHISHOLM, Roderick. Teoria do Conhecimento. Rio de


Janeiro: Editora Zahar, 1978.

Texto antigo, mas muito bom sobre o tema. Chisholm discute


o conhecimento no mesmo estilo que o fizemos nesta unidade.
Você encontrará uma resposta ao cético no primeiro capítulo do
livro. Como Chisholm era apaixonado por lógica, ele gostava de
dividir as afirmações através de letra e números, então prepare seu
espírito para uma leitura com frases entrecortadas e numeradas.

86
4
UNIDADE 4

O idealismo como resposta

Objetivos de aprendizagem
„„ Aprender o pensamento de Immanuel Kant
sobre o conhecimento.

„„ Distinguir os conceitos de a priori e a posteriori e


sua função na argumentação de Kant.

„„ Identificar, no ponto de vista de Kant,


uma mistura de Realismo e Idealismo.

„„ Dimensionar a possibilidade de Kant fornecer


resposta definitiva ao ceticismo.

Seções de estudo
Seção 1 Kant e as ideias sobre o conhecimento

Seção 2 O argumento kantiano

Seção 3 Kant contra o cético

Seção 4 As noções de a priori e a posteriori

Seção 5 O cético e as noções de a priori e a posteriori

Seção 6 Retomando o argumento de Kant

Seção 7 O círculo vicioso de Kant


Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Vamos estudar o pensamento de Immannuel Kant sobre o
conhecimento. Contudo, você deve estar ciente de que esta
é apenas uma parte da sua proposta filosófica. O objetivo da
filosofia de Kant, considerado como um todo, era demonstrar
que nosso entendimento possui regras que lhe são próprias e que
tais regras não são comparáveis às regras da experiência ou da
Matemática ou da Lógica.

Ele pretendia, com isto, permitir que a ciência tivesse progresso


e não permanecesse numa discussão apenas conceitual. De todas
as obras publicadas por Kant, ocuparemo‑nos apenas de sua
Crítica da Razão Pura. (KANT, 1980).
Quando você for pesquisar esta
Você não deve esperar que Kant lhe forneça uma resposta fácil;
obra, é necessário saber que a
primeira versão publicada por Kant antes ele quer convencê‑lo(a) de que não há outra resposta melhor
é sempre citada com o número da do que a fornecida por ele. Apesar disto, o pensamento de Kant
página antecedido por um A. Para foi amplamente aceito na Europa e nas academias de Filosofia
a segunda edição, os estudiosos em toda a Europa, a ponto de revolucionar a filosofia de seu
da obra de Kant citam o número
tempo. Sua influência foi sentida tanto na filosofia quanto na
da página antecedido por um B.
Devido às diversas correções feitas Teologia – pois Kant era de origem luterana.
por Kant para a segunda edição,
normalmente trabalhamos com
a segunda edição, a edição B. É Kant teve influência inclusive no Brasil, agora sobre
esta a edição que foi publicada na um grupo de pensadores da cidade de Recife em
coleção Os Pensadores. Outras Pernambuco. Tratava‑se de filósofos estudiosos
editoras publicam a edição A. do Direito, dentre os quais o mais importante é
Como nosso objetivo é discutir Tobias Barreto. Estes pensadores fundaram uma
apenas as ideias de Kant sobre escola kantiana em Recife, no século XIX. O fato,
o conhecimento, ficaremos contudo, é pouco estudado na academia brasileira,
restritos a determinadas partes pois suas influências maiores não recaíram
de sua Crítica da Razão Pura tanto na Filosofia e, sim, na área do Direito.
e mais ligados à edição B.

Por fim, entre todos os idealistas, Kant é o mais coerente, isto


por que ele aceitava que pensamos não por experiências, e sim
por conceitos – este é o seu idealismo: os conceitos são mais
importantes que as experiências –. Contudo, Kant acreditava
serem vazios os conceitos que não dizem respeito a nenhum
conteúdo da realidade, isto é da experiência.

88
Teoria do Conhecimento I

Obviamente, como mais adiante você verá, experiência para


Kant não é um conceito comum. Assim, é famosa a sua
expressão “Conceitos sem percepções (experiências) são vazios e
experiências (percepções) sem conceitos são cegas. Dessa forma,
o idealismo de Kant não é um idealismo comum, por assim dizer,
mas um Idealismo refinadamente elaborado.

Agora, chega de introdução e vamos conhecer um filósofo


fantástico e genial.

Seção 1 – Kant e as ideias sobre o conhecimento


O ponto de vista filosófico de Immanuel Kant sobre
o conhecimento é denominado por ele mesmo como
Idealismo Transcendental.

Idealismo, pois trata a realidade ou mundo como sendo uma


elaboração de nosso próprio entendimento; e transcendental,
pois investiga as próprias condições com as quais o entendimento
conhece ou elabora a realidade.

Desta forma, Kant está mais preocupado com a maneira pela


qual nosso entendimento “trabalha” para elaborar conhecimentos
do que com o próprio conhecer.

Bem, apesar de não ser fundamental para


compreender o pensamento de Kant, que tal
conhecer alguns dados de sua biografia? Veja a
Figura 4.1.

Kant nasceu na cidade de Königsber, na antiga


Prússia, no ano de 1724 e faleceu nesta mesma
cidade, em 1804. Veja a Figura 4.2. Ele nunca saiu
de sua cidade. Existem várias histórias ou estórias Figura 4.1 ‑ Immanuel Kant
(lendas) sobre as manias de Kant. Por exemplo, ele Fonte: Schweitzer (2011).
saía para caminhar sempre no mesmo horário e era tão rotineiro
que as pessoas acertavam seus relógios pela hora em que ele saía
de casa. Kant não gostava de reuniões e festas, mas, quando ia

Unidade 4 89
Universidade do Sul de Santa Catarina

visitar uma pessoa, solicitava a receita de um prato especial que


lhe havia sido servido e do qual gostava. Ele colecionava receitas
de culinária. Gostava de almoçar acompanhado sempre de
alguém, um amigo ou colega de universidade, mas, se nenhum
destes aparecia, ele mandava seu empregado convidar algum
passante para o almoço. Podemos dizer que Kant possuía uma
personalidade sui generis, isto é, diferente dos demais indivíduos
de sua época.

Figura 4.2 ‑ Imagem de Koenigsberg


Fonte: Vintage... (2009).

Para saber mais sobre a vida de Kant e algumas


características de sua personalidade, você pode
recorrer aos seguintes livros:

„„ História da Filosofia, de Will Durant – trata‑se


de uma obra clássica de História da Filosofia,
mas muito superficial. Durant dedica‑se mais
à biografia e aspectos pitorescos da vida de
cada um. É uma obra de fácil leitura apesar da
quantidade significativa de páginas.
„„ Georges Pascal, em sua obra O Pensamento de
Kant, traduzida pela Editora Vozes, apresenta, na
parte I, alguns detalhes da biografia de Kant.

Ele se destacou na filosofia após uma série de publicações e textos


que escreveu para concursos elaborados pela academia de Artes e
Ciências da Prússia. Esses textos não são os mais importantes de
sua carreira, apesar de nos ajudarem a conhecer um pouco mais

90
Teoria do Conhecimento I

de seu pensamento. Sua grande obra são as “três críticas”: Crítica


da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Crítica do Juízo.

Elas foram publicadas quando Kant já contava com seus


cinquenta anos. Tais obras foram tão importantes na filosofia
que renderam a Kant um emprego de professor comissionado,
isto é, pago pela universidade. Ele é o primeiro professor pago
para lecionar, o que, depois, tornou‑se uma constante nas
universidades de todo o mundo.

O trabalho de Kant foi tão importante para a


filosofia e para a universidade de Königsberg que,
até hoje, seu gabinete é preservado tal como o
deixou antes de falecer.

A grande influência do pensamento de Kant foi do


filósofo inglês David Hume, do qual discordava
frontalmente. Hume era um filósofo cético e
empirista, ou seja, para ele todo conhecimento é
proveniente de nossas experiências. Ele chamou a
atenção de Kant sobre o erro do idealismo comum:
não considerar que temos experiências com os
objetos do mundo. A influência de Hume (a qual
Kant denomina “meu acordar do sonho dogmático”) Figura 4.3 ‑ Imagem de
reside no argumento de Kant de que as experiências David Hume
Fonte: Conte ([200-?]).
são possíveis por termos já em nosso entendimento
algumas estruturas que favorecem este experienciar o
mundo. Veja a Figura 4.3.

Ou seja, para Kant, deveriam existir conceitos não provenientes


da experiência, e sim do próprio conhecimento. Ora, tendo ele
esta concepção, por certo que acreditava ser o ceticismo um
escândalo da filosofia (logo veremos por qual razão). Já falamos
de Kant na unidade anterior, quando estudamos os argumentos
de George Moore e sua tentativa de responder ao que Kant
considerava o “escândalo da Filosofia”.

Nesta unidade, vamos estudar as etapas do pensamento kantiano


sobre o conhecimento. Apenas para encerrar esta apresentação, é
interessante você saber o objetivo das três críticas de Kant:

Unidade 4 91
Universidade do Sul de Santa Catarina

„„ Crítica da Razão Pura objetiva estudar a forma como


nosso entendimento elabora o conhecimento, o que pode,
ou não, ser conhecido entre outros temas (limites da
razão, prova da existência de Deus, por exemplo);

„„ Crítica da Razão Prática estuda nossas ações e sua


estrutura;

„„ Crítica do Juízo estuda a forma como nosso


entendimento elabora juízos; e

„„ outras obras de Kant são Crítica do Juízo Estético, Paz


Perpétua (ética).

Seção 2 – O argumento kantiano


Vamos iniciar relembrando o desafio do cético cartesiano da
unidade anterior: “não podemos conhecer nada do mundo
exterior a nós”, pois não temos como provar que o que
percebemos é verdadeiro, ou não, considerando que toda nossa
fonte de conhecimento são nossos sentidos, nossa percepção
do mundo. Tal ponto de vista é, para Kant, um engano, pois
supõe que os objetos do mundo exterior são conhecidos por nós
através de inferências), isto é, através de mediações. No caso
do cético, a mediação seriam as percepções ou os sentidos.
Inferência: consequência,
dedução, ilação.
Kant afirmará que, se nosso conhecimento for concebido através
de inferências, então jamais poderemos conhecer qualquer coisa
do mundo exterior. Segundo Kant, não fazemos inferências para
conhecer, e sim conhecemos e, só após, fazemos inferências.
Sendo assim, devemos admitir que Kant possui um método
especial e diferente para estudar o conhecimento.

Lembrando a estória de Harry no início deste livro texto, Kant está


afirmando ou defendendo o ponto de vista de que Harry teria como
saber, por si mesmo, que não é um cérebro em uma cuba. Harry não
teria de recorrer a ninguém mais a não ser à sua própria mente.

92
Teoria do Conhecimento I

Faça uma pausa na leitura e realize as seguintes


atividades de reflexão e exponha suas conclusões
no Fórum do EVA. Assim outros colegas poderão
argumentar com você.
a. Você concorda que Harry teria apenas que
recorrer à sua própria mente ou entendimento
para saber que não é um cérebro em uma cuba?
Explique em que aspecto a argumentação de
Kant ajuda nesta questão.
b. Como você se posiciona filosoficamente quanto ao
que Kant afirma sobre as inferências que fazemos
para conhecer? Responda se apenas fazemos
inferências depois de já conhecermos, ou se
fazemos inferências a partir de nossas percepções
para, só depois, conhecer.

Bem, vamos ver como Kant argumenta sobre isto. De início,


podemos admitir que Kant concorda com Moore nas suas provas:
temos experiências com objetos exteriores a nós, e não é possível
negar isto (a prova de Moore é mostrar suas duas mãos, lembra?).

O que necessitamos é encontrar um meio de enfrentar o cético


frente a frente, isto é, mostrar‑lhe que suas dúvidas são incoerentes.
Mostrar que o cético é incoerente equivale a afirmar que o
Realismo é correto, isto é, mostrar que, quando conhecemos um
objeto qualquer, o conhecemos de maneira direta, e não através de
nossos sentidos. Conhecemos o objeto tal como ele é.

Assim, o problema do cético ou de quem não crê que possamos


conhecer objetos de maneira direta consiste em crer que
conhecemos de forma “indireta”, ou seja, através de inferências
retiradas de nossas percepções.

Unidade 4 93
Universidade do Sul de Santa Catarina

Seria como dizer que nosso amigo Harry da estória


acredita mais nas pessoas que estão à sua volta
do que naquilo que sua própria mente crê ou
pode crer. Harry necessitava de uma autoridade
“exterior” a ele a qual lhe permitiria fazer uma
inferência para concluir se é, ou não, um cérebro
em uma cuba. Lembra que ele chega ao cúmulo de
pensar em voltar à clínica para que lá comprovem
se ele é, ou não, um cérebro em uma cuba?

Pois é, Kant perguntaria a Harry: Mas como você pode duvidar


se está, ou não, com seu cérebro em uma cuba? Você deve ter
algum conhecimento direto de que não está em uma cuba? Como
você poderia diferenciar ‘estar com o cérebro em uma cuba’ de
‘não estar com o cérebro em uma cuba’?
Ora, Harry solicitaria a Kant uma resposta urgente, dado o
estado de desespero em que o vemos na estória.

Ficou intrigado(a) com as ideias de Kant? Se quiser


saber mais sobre aspectos deste argumento de Kant,
existem várias obras acessíveis e de fácil leitura:
„„ DELEUZE, Gilles. A Filosofia crítica de Kant.
Lisboa: Edições 70, 1987. Apesar de ser uma edição
de Portugal, ela é facilmente encontrada no Brasil.
Deleuze expõe, nos primeiros capítulos, os pontos
fundamentais do argumento de Kant;
„„ GRAYEFF, Felix. Exposição e interpretação da
filosofia teórica de Kant. Lisboa: Edições 70, 1987.
A obra foi publicada em Portugal, mas é facilmente
encontrada no Brasil. Grayeff tenta introduzir o
leitor no emaranhado de conceitos da filosofia de
Kant, de forma sistemática. É um texto original,
mas que apresenta certa dificuldade de leitura
para o leitor menos treinado, isto é, para quem
procura textos fáceis; e
„„ KANT, Immanuel. Prolegômenos a toda metafísica
futura. Lisboa: Edições 70. 2008. Nesta obra, Kant
argumenta contra aqueles que acreditam estar sua
filosofia errada e que apenas uma nova metafísica
poderia ser correta. A obra foi publicada em
Portugal, mas é facilmente encontrada no Brasil.
Nela, apesar de Kant não falar especificamente
sobre conhecimento, você encontrará muitos dos
conceitos que discutimos nesta seção/unidade.

94
Teoria do Conhecimento I

Seção 3 – Kant contra o cético


A resposta de Kant é um tanto complexa, mas não é difícil de
entender. O primeiro passo é saber que Kant acredita que nossa
percepção nos dá (estas são as palavras dele) objetos; o segundo
passo do argumento de Kant é afirmar que tais objetos são
recebidos pela percepção humana; o terceiro passo do argumento
de Kant consiste em afirmar que apenas conhecemos aquilo ou
objetos que nos são dados pela percepção.

Ora, argumentará Kant, boa parte da dúvida do cético já foi


destruída. O terceiro passo do argumento de Kant é o golpe final
no ceticismo: é o argumento de que aquilo que nossa percepção
nos dá, são múltiplos de informações, as quais são colocadas em
ordem pelo nosso entendimento. Ou seja, para Kant, sempre
conhecemos objetos de forma direta (tal como desejava provar
Moore, mostrando suas mãos), pois aquilo que nossa percepção nos
dá não é um objeto, mas uma variada quantidade de informações
desconexas, impressões de cores, impressões visuais e tácteis, as
quais nosso entendimento “construirá” como sendo um objeto.

É por defender este tipo de argumento que se


denomina Kant “idealista”, isto é, aquele tipo de filósofo
o qual defende o argumento de que a realidade, os
objetos, as coisas são construções da mente humana
(no caso de Kant, diríamos, do entendimento humano).
Entretanto, não devemos acreditar que Kant afirma
não existir a realidade. Pelo contrário, Kant argumenta
que a realidade, por ser uma criação de nosso
entendimento, deve existir. Sendo assim, as provas que
o cético exige não fazem sentido segundo o ponto de
vista Idealista, como o de Kant. Mais acima já vimos isto.

Então, você pode afirmar que Kant defende o conhecimento


direto de objetos. Mas, ao mesmo tempo, não pode dizer que
esses objetos são encontrados como os conhecemos na realidade,
pois é o nosso entendimento que os constrói. Isto significa que,
para o Idealismo kantiano, a realidade do mundo externo é uma
condição para que possamos ter conhecimento. Em uma passagem
famosa da Crítica da Razão Pura, Kant afirma: “Conceitos sem
percepções são vazios; percepções sem conceitos são cegas”.

Unidade 4 95
Universidade do Sul de Santa Catarina

Analisando o que Kant está dizendo, você poderá perceber que,


segundo ele, os conceitos necessitam de percepções organizadas
pelos nossos sentidos, pois, só assim, os conceitos terão uma
referência ou significado.

Por outro lado, as percepções são conjuntos de imagens,


sensações, impressões sensoriais desordenadas. Kant chama‑as de
“múltiplo da percepção”. Se elas são um múltiplo desordenado,
então necessitam ser organizadas, para que obtenhamos
conhecimento. Essa organização é realizada pelo entendimento
através das regras lógicas e da atribuição de conceitos. Portanto,
sem os conceitos, as percepções não nos levam ao conhecimento:
são cegas.

Kant combina dois tipos de pontos de vista filosóficos, quais


sejam: ao afirmar que “conhecemos objetos de maneira direta”,
ele é um realista, isto é, os objetos existem na realidade.
Contudo, ao argumentar que nossa percepção nos dá um
múltiplo desorganizado de informações e que tais informações
são organizadas pelo entendimento, a fim de “construir” um
objeto da realidade, então ele é um idealista.

Ora, se o objeto é construído pelo entendimento segundo regras


próprias deste, então não há como duvidar da existência dos objetos.
Aqui, neste aspecto, Kant propõe uma espécie de Realismo. Creio
que fica fácil compreender a argumentação de Kant, não é? Vamos
tomar um exemplo para testar sua compreensão.

Imagine que você segure uma flor vermelha em sua


mão. Esta flor terá para você perfume, cor, tamanho,
espinhos, peso, entre outras coisas. Bem, o cético
perguntaria a você: “Como você sabe que tem uma flor
em mãos, e não um outro objeto qualquer?”. Se você
é um filósofo kantiano, responderá ao cético: “Pois é
assim que meu entendimento constrói este objeto!”.
Outra resposta possível seria afirmar que o múltiplo
de informações que sua percepção recebe (todas
aquelas características da flor) é organizado de maneira
que você perceba diretamente uma flor. Este tipo de
resposta foi denominado Idealismo Transcendental,
isto é, que ultrapassa a percepção e o entendimento,
e busca compreender as regras pelas quais o
entendimento forma os objetos, a realidade.

96
Teoria do Conhecimento I

Para saber mais sobre a aplicação do conceito transcendental


em Kant, você pode consultar os seguintes trechos dos livros já
sugeridos na Seção 2:

„„ Leia a introdução (páginas 11 até 18) da obra de Felix


Grayeff e o seu comentário inicial à obra de Kant
(páginas 23 até 29);

„„ Gilles Deleuze, na sua introdução, apresenta mais


detalhamentos sobre o método transcendental de Kant,
especialmente na introdução de sua obra citada mais
acima; e

„„ Kant, em seus Prolegômenos, faz uma detalhada


explicação (páginas 109 a 116) do que ele define
por transcendental.

Seção 4 – As noções de a priori e a posteriori


Além desse argumento de Kant, há outra distinção feita por ele
que pode ajudar na compreensão de seu ponto de vista contra o
cético. Ele distinguia dois tipos de conhecimentos: conhecimentos
a priori e conhecimentos a posteriori. Um conhecimento a priori não
depende da experiência para ser verdadeiro.

Por exemplo, quando você pensa no que significa


ter um corpo, imediatamente pode afirmar que, na
concepção (isto é, na própria ideia) de corpo está
a extensão deste corpo, isto é, seu comprimento.
O fato de que ter um corpo implica ter comprimento
não constitui um conhecimento que você retirou da
realidade, e sim da própria noção de corpo (do próprio
conceito, podemos dizer). Seria um tanto estranho
imaginar um corpo sem comprimento.

Outra noção a priori é a da lógica: as implicações lógicas não


são provadas pela experiência, e sim pela própria concepção

Unidade 4 97
Universidade do Sul de Santa Catarina

de implicação lógica. A experiência em nada ajuda aqui.


Podemos afirmar que a priori também significa analítico, isto é,
conhecimentos que exigem apenas a razão, e não a experiência.
Funciona como na Matemática: os exercícios matemáticos
obedecem a certas regras de solução, porém estas regras não são
obtidas pela experiência. Por outro lado, conhecimentos a posteriori
são aqueles que você apenas pode provar através da experiência.

Assim, quando você diz que um corpo tem comprimento, faz


uma afirmação baseada em conhecimento a priori, mas se você
diz que este corpo possui 2 metros de comprimento, então
você fez uma afirmação que apenas será verdadeira através da
experiência. Ou seja, que o comprimento do corpo é de 2 metros
apenas será uma afirmação verdadeira, se nós medirmos o corpo
e comprovarmos que ele tem 2 metros.

Para Kant, todas as regras do entendimento humano são


provadas a priori, isto é, elas não são verdadeiras por terem sido
provadas pela experiência, e sim porque são regras analíticas,
regras lógicas. Assim, quando Kant afirma que o entendimento
possui uma lógica para a construção dos objetos da realidade, as
regras de construção devem ser aceitas como verdades analíticas,
e não como verdades a posteriori, provadas pela razão.

Para exercitar esses conhecimentos, responda aos


seguintes itens:
a) Elabore dois exemplos de afirmações a priori.

b) Elabore dois exemplos de afirmações a posteriori.

98
Teoria do Conhecimento I

Seção 5 – O cético e as noções de a priori e a posteriori


Esta distinção feita por Kant entre dois tipos de conhecimento
não permite que o cético possa ir muito longe em suas dúvidas,
isto é, ele pode duvidar se um corpo existe mesmo na realidade,
mas não pode duvidar de que, quando ele fala em corpo, ele não
sabe o que diz! O cético é colocado por Kant numa enrascada: ele
apenas poderá duvidar, se aceitar que seu entendimento possui
regras de construção de objetos: ao fazer isto, ele assume que
existe um tipo de conhecimento do qual não pode duvidar.

Ele não pode duvidar que pensa ou que tem um entendimento


que constrói regras de compreensão. Além do mais, Kant alega
que não existem objetos no sentido em que o cético acredita em
objetos, isto é, objetos na realidade que existem por si, os quais
conhecemos por inferências de nossos sentidos.

Lembra o que foi dito mais acima?

Kant não aceita que obtenhamos conhecimento por inferências


de nossos sentidos, mas sim que são organizações elaboradas
pelo nosso entendimento. Esta é a razão de eu ter dito que a
crítica que Kant faria a Harry, personagem de nossa estória,
seria perguntar‑lhe por qual razão duvida de sua mente, de seu
entendimento? Ele, Harry, apenas poderia duvidar se é um
cérebro em uma cuba, se já soubesse o que isto é! Um tanto
paradoxal a resposta de Kant, não é? Mas ela faz sentido! Você
pode duvidar de alguma coisa, se já possuir algum tipo de
conhecimento desta mesma coisa.

Assim, retornando ao cético, diríamos que ele apenas pode


duvidar da existência de objetos externos a nós, se souber o que é
um “objeto externo”. Ao mesmo tempo, o cético deve admitir o
seguinte, se ele quer manter a afirmação de sua dúvida quanto à
existência de objetos exteriores a nós:

(1) existe um tipo de coisa (objeto) que é exterior a nós;

(2) existe um tipo de coisa (objeto ou algo assim) que é


“interior” a nós;

Unidade 4 99
Universidade do Sul de Santa Catarina

(3) não podemos provar que os objetos exteriores não são os


objetos interiores; e

(4) não podemos provar que existem objetos exteriores a nós.

Mas as afirmações (1) e (2) são condições para que o cético


afirme (3) e (4). Podemos até admitir que as afirmações (1), (2) e
(3) são condições anteriores à afirmação (4), que é a afirmação
tradicional do cético com quem estamos lidando. Isto significa
que ele apenas pode afirmar sua dúvida, se admitir a verdade
de outras afirmações, quais sejam, (1), (2) e (3). O problema do
cético reside na afirmação (3), pois é a partir desta afirmação
que (4) é possível ou faz sentido.

Para refletir um pouco mais sobre este assunto,


realize a seguinte atividade e publique os resultados
na Exposição do EVA.
a. Elabore uma afirmação sobre algum objeto
do mundo.
b. Analise esta afirmação nas suas condições de
possibilidade, isto é, o que deve ser admitido
para que a afirmação tenha sentido.
c. Faça a distinção: dentre as afirmações que
devem ser admitidas, quais são as mais básicas.

Vamos agora trazer o caso de Harry para nossa explicação e


colocar as afirmações de dúvida de Harry na ordem em que
colocamos as afirmações do cético acima. Bem, Harry está
desesperado por não saber se é, ou não, um cérebro em uma cuba.
Ele chega a admitir a ideia de ir até o laboratório e deixar que
ponham seu cérebro em uma cuba e depois o retirem da cuba,
para que ele possa ter certeza de que “não é um cérebro em uma
cuba”. Bem, segundo o argumento que apresentamos acima, a
dúvida de Harry, para fazer sentido, teria de ser assim descrita:

(1) sei o que é não ser um cérebro em uma cuba;

(2) sei o que é ser um cérebro em uma cuba;

(3) não sei distinguir ‘o que é estar com o cérebro em uma cuba’
de ‘não estar com o cérebro em uma cuba’; e

100
Teoria do Conhecimento I

(4) não sei se sou um cérebro em uma cuba, ou não.

Ocorre com Harry a mesma coisa que ocorre com o cético:


Harry sabe alguma coisa para poder duvidar de outras. Assim,
a afirmação (4) de Harry só faz sentido se ele admitir que
sabe a verdade de (1) e (2). A afirmação (3) é a expressão de
desconhecimento de Harry quanto ao que distingue uma
coisa – (1) de (2) – de outra.

O que Kant afirmaria para Harry é que ele possui algum


conhecimento anterior à sua dúvida e que, portanto, ele deverá
justificar este conhecimento anterior. Se ele não sabe justificar (1)
e (2), a afirmação (4) não faz sentido. Novamente digo que Kant
afirmaria para Harry que ele tem mais confiança em (2) do que
em (1), as outras afirmações se seguiriam desta confiança em (2) e
da desconfiança em (1). Contudo, se Harry confia mais em (2) do
que em (1), é por ele saber que (1) não é verdadeira. Mas como ele
sabe isto? E como ele sabe que (2) é verdadeira?

Podemos agora trazer para este nosso raciocínio aquilo que


Kant afirma dos dois tipos de conhecimento, isto é, que um é
a priori e o outro a posteriori. Harry busca um conhecimento
a posteriori de (4), isto é uma prova da experiência de que ele
não é um cérebro em uma cuba. Mas, para que esta busca de
conhecimento a posteriori tenha sentido, Harry deve saber a priori
que (1) e (2) são verdadeiras. Ele não pode fugir, alegando que
(1) e (2) são conhecimentos a posteriori, pois, mesmo que o sejam,
estas afirmações são parte da “análise”de (4) e , portanto, são
conhecidas a priori.

Seção 6 – Retomando o argumento de Kant


Voltando ao argumento de Kant quanto às regras do
entendimento e fazendo um paralelo com o que dissemos acima
quanto ao raciocínio do cético e o raciocínio desesperado de
Harry, Kant afirma‑nos que existe uma maneira de conhecer
objetos exteriores a nós, que não dependem de nossos sentidos
nem de nossa experiência.

Unidade 4 101
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para ele, temos percepção de uma série de informações


desconexas, as quais nosso entendimento, agindo segundo regras
a priori, constrói de maneira significativa como sendo um objeto
do mundo exterior. Este argumento, dissemos também, está
baseado na existência de regras a priori no entendimento. Apenas
se admitirmos que tais regras existem, o argumento de Kant
poderá fazer sentido.

Além disso, admitindo que Kant esteja correto em seu argumento,


tanto o Realismo quanto o Idealismo são verdadeiros.

Ora, Idealismo e Realismo são incompatíveis. Kant torna‑os


compatíveis ao afirmar que o entendimento constrói os objetos
do mundo exterior a partir de um conjunto de informações que
são organizadas pelas regras do entendimento, isto é da razão
e não da experiência. Entretanto, não se pode afirmar que
todos os filósofos realistas aceitariam tal argumento. Para eles,
os objetos existem independentes de nós. Para se diferenciar
destes filósofos realistas, Kant denomina seu realismo de
Realismo Transcendental.

Para refletir um pouco mais, responda com suas


palavras à seguinte questão e publique sua resposta na
ferramenta Exposição do EVA.

Como é possível que, para Kant, tanto o Realismo


quanto o Idealismo possam ser compatíveis, uma vez
que, tradicionalmente, ambos são incompatíveis?

Para deixar um pouco mais claras estas distinções, vamos


trabalhar sobre um exemplo interessante: se alguém lhe
perguntasse o seguinte: “Uma árvore que cai em uma floresta
onde não há um ser humano por perto para presenciar o fato,
faz barulho, ou não?”

Se você responder que a queda da árvore deverá fazer barulho,


então você é um realista. Se você responder que a árvore não faz
barulho, então você é um idealista, afinal o barulho da árvore
apenas existe para nós humanos que o ouvimos. Neste caso, o
cético não poderá dizer nada, ao menos quanto ao idealista. Ele
poderá questionar o realista, pois admite que existiu barulho,

102
Teoria do Conhecimento I

mesmo sem ele estar lá, mesmo que nenhum ser humano
estivesse lá.

O cético lhe perguntaria como ele sabe e, neste caso, sua resposta
seria apenas afirmar que o barulho de uma árvore caindo
não é uma criação nossa, e sim da natureza física dos objetos.
O problema com o argumento de Kant é desejar compatibilizar a
resposta do idealista com a do realista.

Ele afirma que a árvore faz barulho, mesmo que nenhum ser
humano presencie sua queda, porque nosso entendimento
constrói a queda de um corpo físico como sendo barulhenta,
isto é, como algo que faz barulho. Ele responderia à questão
afirmando que há barulho sim, mas porque nosso entendimento
constrói as coisas desta forma.

Seção 7 – O círculo vicioso de Kant


Ora, se você não percebeu o círculo vicioso em que Kant se
envolveu, então vou lhe mostrar de maneira simples: para Kant,
a verdade do Idealismo garante a verdade do Realismo. Se fosse
responder ao cético (não podemos conhecer nenhum objeto
exterior a nós), Kant diria que conhecemos objetos de maneira
direta, pois os construímos tal como os percebemos.

Assim, Kant deixa‑nos com uma tarefa complicada, qual seja,


investigar se nosso entendimento detém mesmo aquelas regras que
ele diz que o entendimento utiliza para construir os objetos. Mas,
para investigar essas regras, teremos de admitir que elas existem.

Entretanto, isso, por sua vez, implica admitir que o


Idealismo de Kant está correto!

O filósofo norte‑americano Barry Stroud deu‑se conta deste


círculo vicioso existente no argumento de Kant, e o estudou mais
aprofundadamente. Não cabe aqui passar todos os passos de

Unidade 4 103
Universidade do Sul de Santa Catarina

Barry Stroud, mas sim dizer que ele não foi contestado. Ou seja,
sua descoberta do problema do círculo vicioso é aceita por toda a
comunidade filosófica, menos pelos filósofos kantianos, é claro!

Assim, concordaremos que Kant dá uma resposta satisfatória ao


cético, se aceitarmos o Idealismo Transcendental. Contudo,
há aqui certa resistência, pois falta uma prova de que nosso
entendimento funciona da forma descrita por Kant e, além disto,
não parece que os objetos do mundo existam por si mesmos, isto
é, eles dependem de nós, de nossa percepção, que os capta como
informação desconexa.

No final das contas, se analisarmos detalhadamente a


argumentação de Kant, perceberemos que não responde ao
cético de maneira adequada, e sim se refugia do questionamento
cético afirmando que “tudo está em nossa mente”, e, portanto,
sua dúvida não faz sentido. Ora, o cético redarguirá, afirmando
que seria o mesmo que refugiar‑se numa igreja durante um
bombardeio: nada garante que a igreja “não” será bombardeada.
O mesmo cabe para o argumento de Kant: refugiar‑se na mente
ou no entendimento é admitir que o entendimento ou a mente
estão corretos.

Mas esta não é a resposta que o cético pede. Ele quer saber como
podemos provar que temos conhecimento de coisas externas
a nós; ele não perguntou “Como as informações desconexas
de nossa percepção tornam‑se objetos do mundo?”, pois as
informações desconexas, as quais nosso entendimento constrói
com objetos, devem ter alguma origem.

Kant admite que nossa percepção “capta” um conjunto de


informações desconexas, mas não explica como estas informações
chegam até nossa percepção. Aqui, teríamos de elaborar alguns
acréscimos ao argumento de Kant, considerando que ele não nos
fornece uma resposta adequada.

Ou seja, a resposta de Kant é subjetiva demais para ser aceita, ao


menos como uma resposta válida contra o cético. É como se ele
dissesse ao cético: “Pobre homem, desconfia se está percebendo
objetos da natureza, ou não, quando a natureza é criada por nós
e, portanto, ela só pode existir!”.

104
Teoria do Conhecimento I

Ao desesperado Harry, Kant responderia que sua dúvida não


faz sentido, pois tanto estar em uma cuba quanto estar fora dela
são construções de nosso entendimento e, portanto, a resposta
estaria nas regras do entendimento para construir as experiências
que Harry teve ou crê que teve. Contudo, os argumentos de
Kant visam demonstrar que, através das regras do entendimento,
construímos os objetos da realidade.

É por esta razão que ele diria a Harry que não deveria buscar
provas da realidade através de seus sentidos, pois estes apenas
lhe forneceriam um múltiplo de percepção. Kant, através de sua
“revolução copernicana” (Nós criamos o mundo objetivo, não
o encontramos pronto. Nosso entendimento nos “dá objetos
externos, sempre que usa as regras do entendimento de maneira
correta), também se torna um empirista.

Entretanto, cabe aqui outra consideração.

A questão é: por qual razão devemos aceitar a argumentação


de Kant? As provas que ele nos fornece não são convincentes e
mais se parecem com convenções. Ou seja, as provas seriam mais
convincentes se Kant nos mostrasse o que causa o múltiplo da
percepção e que o entendimento organiza.

Ele não pode fornecer esta resposta, pois seria afirmar que
os objetos existem na realidade tal como afirma um realista e
não um idealista como Kant. Este ponto é tão controverso que
Kant apenas conseguiu responder afirmando que “Apenas Deus
percebe o que um objeto é em si mesmo”, apenas Deus conhece
“a coisa em si”. Nós humanos, devido à nossa limitação, apenas
compreendemos as coisas como são para nós, segundo nosso
entendimento. Nós percebemos fenômenos, e não objetos tal
como são. Bem, este é um primeiro ponto.

O segundo aspecto para o qual eu gostaria de chamar sua


atenção é o seguinte: o Realismo kantiano é, de fato, um
artifício argumentativo baseado no Idealismo. Ou seja, é por
argumentar que nosso entendimento constrói os objetos da
realidade – poderíamos até afirmar que o entendimento constrói

Unidade 4 105
Universidade do Sul de Santa Catarina

a realidade – que o Realismo tem alguma chance de possuir


sentido para Kant. Caso não aceitemos o seu Idealismo, então o
Realismo que ele propõe também cai por terra.

Por fim, caso o cético respondesse para Kant, ele diria,


simplesmente: não sou um idealista, pois o múltiplo que é
dado na percepção deve ter alguma origem. Se esta origem é
a sensação e a percepção, então é possível que eu perceba de
maneira errônea, que os meus sentidos me enganem; mesmo que
o objeto seja construído pelo entendimento, isto não garante que
a organização do múltiplo seja correta para com o que nos é dado
na percepção.

Parece, por fim, que o cético não foi convencido por Kant. Antes,
Kant exige que o cético aceite sua argumentação para que, só
então, aceite a prova do mundo exterior fornecida por Kant. Mas
cabe ao cético uma última palavra: não aceitar o Idealismo.

Síntese

Nesta unidade, você estudou os argumentos de Immanuel Kant


sobre o conhecimento. Ficou sabendo que Kant foi um idealista,
ainda que não um idealista comum. O Idealismo de Kant parte
do pressuposto de que nosso entendimento possui regras que lhe
são próprias, regras que não são encontradas na experiência, mas
que ordenam a experiência.

Ao mesmo tempo, aprendeu que, para Kant, a resposta ao cético


é positiva: sim, diria ela, possuímos conhecimento de objetos
exteriores a nós. Kant afirmaria isto devido à sua maneira de
combinar Idealismo com Realismo.

Você aprendeu que esta combinação entre Realismo e Idealismo


elaborada por Kant baseia‑se exatamente no argumento de
que nossa percepção não é ordenada, isto é, ela recebe uma

106
Teoria do Conhecimento I

quantidade de informações. Mas apenas o entendimento ordena


essas informações, segundo regras, para que elas se transformem
em conhecimento. Assim, sempre existirão objetos externos
para Kant, pois sempre perceberemos um “múltiplo” dado na
percepção e, portanto, duvidar da existência de objetos exteriores
é duvidar desse múltiplo que nos é dado.

Contudo, conhecimentos são possíveis apenas pelo entendimento,


e não pela percepção. Assim, você percebe que Kant é astuto o
suficiente para dizer ao cético que ele duvida de algo apenas por
já possuir algum conhecimento anterior desse algo.

A parte crítica que apresentamos da filosofia de Kant mostra


que o argumento kantiano funciona apenas se aceitamos
que o Realismo, da maneira que ele o constrói, é verdadeiro.
Entretanto, aceitar este Realismo Transcendental exige que
aceitemos o Idealismo kantiano. Ora, não há razão lógica pela
qual sejamos obrigados a aceitar o Idealismo Transcendental
de Kant.

Assim, permanece um problema: a existência de objetos


exteriores a nós. A conclusão só pode ser esta, pois, se você quer
responder ao cético, não faz sentido ser obrigado a aceitar outro
sistema de pensamento – no caso, o sistema de Kant – para então
dar sua resposta ao cético. Kant exige de nós que aceitemos seu
Idealismo e seu Realismo, para, só então, fornecermos uma
resposta ao cético. Ora, nossa pergunta será: e devemos aceitar
que o Idealismo de Kant está correto?

Creio que você percebeu que Kant retira‑nos da discussão com o


cético e nos faz discutir sobre seu Idealismo.

Unidade 4 107
Universidade do Sul de Santa Catarina

Atividades de autoavaliação

Ao final de cada unidade, você realizará atividades de autoavaliação.


O gabarito está disponível no final do livro didático. Mas, esforce‑se para
resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você promoverá
sua aprendizagem.

1) Elabore um texto dissertativo, reconstruindo com suas palavras o


argumento de Kant de que seu Idealismo é uma resposta ao cético.

2) Explique como é possível que Kant combine Idealismo com Realismo,


se ambos são contrapostos?

108
Teoria do Conhecimento I

3) Você concorda com Kant, sobre o fato de que a realidade é uma


construção de nosso entendimento? Elabore um texto justificando
sua resposta.

Unidade 4 109
Universidade do Sul de Santa Catarina

Saiba mais

Para conhecer melhor a distinção entre os dois tipos de


conhecimento em Kant, consulte:

PASCAL, Georges. O Pensamento de Kant. Petrópolis: Editora


Vozes, 1980.

O filósofo francês Georges Pascal escreveu um texto sobre o


pensamento de Kant. Este texto é bem completo para uma
introdução e está traduzido para o português do Brasil.

110
5
UNIDADE 5

A naturalização do conhecimento
e o questionamento cético

Objetivos de aprendizagem
„„ Compreender o argumento da naturalização do
conhecimento, elaborado por Quine.

„„ Avaliar as consequências da naturalização do estudo


do conhecimento.

„„ Entender a proposta de naturalização do conhecimento


frente ao ceticismo.

„„ Analisar a resposta de Quine ao ceticismo.

Seções de estudo
Seção 1 Ponto de vista interno e ponto de vista externo
do conhecimento

Seção 2 O argumento naturalista de Willard Quine

Seção 3 Capacidades cognitivas e o conhecimento


da realidade

Seção 4 Naturalização do conhecimento e ceticismo

Seção 5 O cético contra Quine: uma avaliação final


Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


O filósofo norte‑americano Willard Quine apresentou a proposta
de naturalização do estudo do conhecimento. Sua resposta
gerou um novo ponto de vista para os estudos do conhecimento:
os resultados da ciência natural são agregados como base de
nossos conhecimentos, e o estudo do ser humano, enquanto ser
cognitivo, elaborado pela psicologia empírica, é parte do estudo
do conhecimento.

A resposta de Quine é um tanto complexa, mas seu argumento


é interessante. Talvez possamos responder ao ceticismo, quanto
ao conhecimento, se contarmos com a ajuda da ciência em
nossa tarefa.

Nesta unidade, você irá estudar os passos da argumentação de


Quine e, ao final, comparar sua proposta com as questões que o
cético pede que sejam respondidas, para que possamos afirmar
que conhecemos objetos exteriores a nós.

Seção 1 – Ponto de vista interno e ponto de vista


externo do conhecimento
Você deve lembrar que, ao estudarmos o ponto de vista de
George Moore sobre o conhecimento, fizemos distinção entre
ponto de vista interno e ponto de vista externo do conhecimento.
Relembrando o que foi dito naquela unidade, temos o seguinte
argumento: o ponto de vista interno ao conhecimento estuda ou
investiga as afirmações que dizem respeito às relações entre um
conhecimento com outro.

A afirmação “Neste momento chove em Florianópolis”,


se considerada apenas de um ponto de vista interno
do conhecimento, deverá ser avaliada e investigada em
sua dependência de outras afirmações.

112
Teoria do Conhecimento I

Assim, saber que é verdade o que a afirmação acima assevera


depende de outras afirmações que, por sua vez, devem ser
verdadeiras. Neste caso, o conceito “interno” significa a relação de
um conhecimento com outro, de uma afirmação de conhecimento
com outra. Por outro lado, “externo” indica que se faz uma
avaliação de afirmações de conhecimento em sua relação com
a possibilidade de conhecer. Por exemplo, perguntar “Como é
possível obtermos conhecimento sobre o clima de Florianópolis?”
configura uma pergunta elaborada do ponto de vista externo; não
questiona se chove, ou se faz sol em Florianópolis, e sim como
é possível conhecermos algo, fazermos afirmações verdadeiras
sobre o clima em Florianópolis.

Também poderíamos dizer que o ponto de vista externo ao


conhecimento avalia o que fazemos com o conhecimento sobre o
clima de Florianópolis.

Portanto, quando você questiona a verdade de


uma afirmação sobre determinado conhecimento,
você está pedindo justificativas baseadas em outros
conhecimentos. Por outro lado, quando você questiona
a possibilidade do conhecimento, então sua questão
deve ser respondida através de justificativas que
comprovam que nós conhecemos, como conhecemos,
que método usamos para conhecer e assim por diante.

Esta distinção é muito importante, pois, ao usar conhecimentos


adquiridos durante seu curso de graduação, deverá saber se está
usando um conhecimento específico, ou se está aplicando um
método de conhecer. Além disso, é a ignorância desta distinção
que nos faz acreditar que o questionamento do cético cartesiano
é absurdo.

Quando ele pergunta: “Como sabemos que não estamos


sonhando neste momento?” (ou como sabemos que não somos um
cérebro em uma cuba?), costumamos responder “Esta pergunta
não faz sentido, pois estou vendo o sol, as árvores e sinto dor,
se belisco meu braço”. Entretanto, a pergunta questiona todo o
nosso conhecimento, quanto a estarmos, ou não, acordados, e não
apenas um tipo de conhecimento, por exemplo, que vejo o sol.

Unidade 5 113
Universidade do Sul de Santa Catarina

O cético de Descartes lança uma dúvida ampla e geral sobre


toda possibilidade de conhecimento (tal como Harry, que tem de
encontrar um ponto indubitável para saber que não está plugado
no computador do cientista maligno). Assim, é necessária muita
cautela ao lhe responder, pois podemos estar presos em uma
armadilha argumentativa.

Gostaria de citar a avaliação que fizemos dos argumentos de


Austin e Moore: você deve lembrar que ambos alegam conhecer
objetos exteriores a eles e, a partir disto, afirmam que possuem
provas de que objetos exteriores a nós existem: esta é esta, mão
alega Moore; o objeto que dá significado à palavra “casa” ou
“pedra”, alegará Austin.

Contudo, ambos estão equivocados em suas respostas


ao cético.

O equívoco de ambos consiste em não perceberem que o


questionamento do cético é amplo e coloca em dúvida todo e
qualquer conhecimento, e não apenas aqueles objetos que Austin
e Moore alegam existir. Ou seja: o cético faz um questionamento
a partir de um ponto de vista externo ao conhecimento, e as
provas que Austin e Moore lhe fornecem são internas. Portanto,
a dúvida do cético ainda não foi respondida (seria como dizer a
Harry “Olhe você não está vendo suas mãos? Então como pode
pensar que está recebendo inputs de um computador? Como você
duvida que isto não é real?).

Nesta unidade, vamos aprender um pouco sobre os argumentos


de Willard Quine. Filósofo estadunidense nascido em 1908,
estudioso de Matemática e Lógica além de Filosofia da
Linguagem e Filosofia da Ciência. Ele escreveu várias obras
importantes na área da Filosofia e da Lógica. Esteve no Brasil,
onde ministrou algumas aulas na USP (Universidade de São
Paulo) nos anos sessenta. O ponto de vista de Quine ficou
conhecido pelo título de um de seus ensaios mais famosos
Figura 5.1 - Willard Quine
Fonte: Galeria... ([20--?]). “Epistemologia Naturalizada”. A palavra “naturalizada” significa
que a Epistemologia tornou‑se parte das faculdades da natureza
humana e é estudada pela Psicologia Empírica. (QUINE, 1975).

114
Teoria do Conhecimento I

Quine alega que, para nós humanos, conhecer é uma capacidade


biológica e psíquica tanto quanto é a digestão, os impulsos
cerebrais ou o aparelho reprodutor humano. Por consequência
do seu argumento, estudar o conhecimento equivale a estudar
um aspecto físico de nossa natureza humana, e não algo que,
por sermos seres humanos, podemos fazer, isto é, conhecer
(da mesma forma que andar de bicicleta não faz parte de nossa
natureza, mas é algo que podemos fazer).

A Epistemologia constitui‑se no estudo científico do A Ciência Cognitiva é


conhecimento e apela para dados e fatos da ciência empírica, a ciência que estuda os
a qual estuda o cérebro e a maneira como trabalhamos com as fenômenos “conscientes”
informações que adquirimos do mundo exterior. Evidentemente como fenômenos físicos
e de processamento
que este ponto de vista de Quine foi expandido para constituir
de informações. 
a chamada Ciência Cognitiva. Quando naturalizou a
Epistemologia, Quine tornou‑a parte de uma ciência.

Vamos voltar aos argumentos de Quine.

Em seu ensaio “Epistemologia Naturalizada” (o qual você


poderá encontrar traduzido para o português pela Professora
Andréa Loparic e publicado pela editora Abril na coleção
Os Pensadores), Quine (1980, p. 64) faz a seguinte afirmação:

A epistemologia, ou algo que a ela se assemelhe, encontra


seu lugar simplesmente como um capítulo da psicologia
e, portanto, da ciência natural. Ela estuda um fenômeno
natural, a saber, um sujeito físico.

A grande vantagem dessa “naturalização” dos estudos


epistemológicos, segundo Quine, é que tais estudos poderão
servir‑se livremente dos resultados obtidos nas ciências empíricas
e não ficarão presos às tentativas de elaborar reconstruções
racionais de nosso conhecimento. Tal ponto de vista, continua
Quine, não desfaz as tentativas anteriores de compreender como
os objetos do mundo são postos pela realidade para o sujeito e
como o sujeito os conhece.

Unidade 5 115
Universidade do Sul de Santa Catarina

Quine denomina esta tentativa como


“reconstrução racional”.

A novidade é que a ciência natural servirá de apoio ao


empreendimento epistemológico; isto é, saber como conhecemos
é agora um campo de estudo científico (nosso amigo Harry
deveria se submeter a uma bateria de testes neurológicos e a
sessões de tomografia para estudar seu cérebro).

Seção 2 – O argumento naturalista de Willard Quine


O argumento de Quine possui uma amplitude considerável
sobre nosso estudo do conhecimento, quando o compreendemos
suficientemente. Assim, os problemas sobre como os objetos
que nos cercam são conhecidos já não será um problema da
lógica das percepções visuais ou táteis. Segundo Quine, ao
estudarmos o conhecimento (a Epistemologia, como ele afirma)
a partir do ponto de vista da ciência, teremos como investigar
empiricamente – através de experimentos – como as percepções
são trabalhadas por nosso cérebro, como as percepções são
enquanto estímulos cognitivos em nosso aparelho cerebral.

Ou seja: não estaremos mais utilizando um aparato conceitual da


Filosofia, e sim das ciências empíricas. Ora, isto significa dizer
que o conceito “percepção” constitui‑se através de estímulos e
respostas que recebemos dos objetos através de nossa visão e do
processo dessas informações.

As dúvidas e investigações sobre a percepção e a maneira como


percebemos serão tratadas através dos conceitos e experimentos
da Psicologia Empírica, e não mais através da Filosofia,
ou – como diz Quine – através da reconstrução racional (Harry
não precisaria de estudos de Lógica, e sim de resultados de
experimentos empíricos sobre como ele conhece).

116
Teoria do Conhecimento I

O ponto central do argumento de Quine é que a


ciência natural é agora responsável pelas bases do
estudo do conhecimento.

Outro aspecto importante do argumento de Quine diz respeito


a como atribuímos verdade ou falsidade a uma afirmação.
Lembremos que até agora tratamos a verdade ou falsidade das
afirmações como sendo a relação entre o que diz a afirmação
sobre a realidade e a realidade da qual afirma algo (a saber: falso
ou verdadeiro).

Assim, a afirmação de que está chovendo em Florianópolis é


verdadeira se isto estiver ocorrendo, quer dizer, se, na realidade,
estiver chovendo em Florianópolis. Contudo, você tem
acompanhado e discutido uma determinada linha de argumentação
que pede justificativas quanto à possibilidade de sabermos alguma
coisa verdadeira sobre a realidade.

Desta forma, necessitamos provas de que a realidade pode


ser conhecida. Lembre‑se de que as respostas a este tipo de
questionamento não podem ser “internas”, mas sim “externas”.
Você pode avaliar o argumento de Quine como a tentativa de dar
consistência a afirmações sobre a existência da realidade a partir
da ciência, ou usando‑a como apoio.

Vamos tentar compreender melhor o alcance dos argumentos


elaborados por Quine, de outro ponto de vista. Procure pensar
um pouco no que a ciência exige para construir uma teoria
explicativa sobre determinados objetos. O cientista age da
seguinte forma padrão: ele determina um tipo de objeto a ser
estudado e do qual pretende fornecer explicações e descrições de
como este objeto se comporta.

Você pode pensar em qualquer objeto que desejar: bactérias,


vírus, corpo humano, circulação do sangue, funcionamento
do cérebro etc. O cientista faz suas observações e as guarda na
forma de afirmações particulares. A partir destas afirmações
particulares, o cientista irá montar sua teoria geral sobre o
comportamento de todos aqueles objetos que observou, quer
dizer, objetos do mesmo tipo.

Unidade 5 117
Universidade do Sul de Santa Catarina

Você tem aí uma maneira de fazer ciência, exatamente a maneira


em que Quine está pensando. Ora, quando o cientista faz
suas observações e as guarda como afirmações ou proposições
particulares, Quine denomina estas afirmações particulares de
Afirmações do tipo “H é líquido
em t1”, “H é líquido em t2”, e assim
“proposições observacionais”, isto é, são proposições que contêm
por diante, variando apenas “t”, que informações sobre a realidade.
indica o momento da observação.
Creio que está ficando mais claro para você onde Quine pretende
chegar com sua argumentação. Elaborar uma proposição
observacional é transmitir conteúdos da realidade, conteúdos
acessíveis a todas as pessoas capacitadas. Consequentemente, há
uma espécie de acordo quanto ao que conta como conteúdo de
uma proposição observacional ou, em outras palavras, quanto ao
que é um objeto de observação.

Segundo Quine, uma proposição observacional é importante em


dois aspectos, quais sejam:

„„ as proposições observacionais são um repositório de


evidência para as teorias científicas, isto é, as teorias
científicas são verdadeiras ou falsas com base no
conteúdo das proposições observacionais; e

„„ os conteúdos das proposições observacionais são o


que aprendemos quando somos ensinados a atribuir
significado às nossas palavras, isto é, o conteúdo de
realidade das proposições observacionais é o significado
de nossas palavras.

Assim, as proposições observacionais apresentam uma dupla


importância na argumentação de Quine, tanto por serem a base
empírica das teorias científicas, quanto por serem os itens que
estão relacionados ao nosso uso das palavras e de seu aprendizado.
Mais importante ainda é a ligação que tais conteúdos possuem
com nossas capacidades cognitivas (Harry saberia que está frente
aos objetos reais, e não frente a meras imaginações causadas
por um computador). Vamos agora estudar mais um pouco as
consequências do argumento de Quine, no que diz respeito às
capacidades cognitivas e sua relação com o conhecimento.

118
Teoria do Conhecimento I

Seção 3 – Capacidades cognitivas e o conhecimento da


realidade
Um dos pontos principais da argumentação de Quine é o de que
existe uma espécie de acordo quanto ao conteúdo das proposições
observacionais, considerando que este conteúdo poderá ser
determinado através da investigação científica ou pelo uso das
teorias científicas. O alcance desse argumento para o estudo do
conhecimento é importante, pois a alegação de Quine é a de que
as proposições observacionais possuem conteúdo da realidade, e
este conteúdo chega até nós através das informações captadas por
nossos órgãos de percepção.

A captação das informações é, segundo Quine (1985, p. 167),


dependente de um acordo fundado em nossas capacidades
cognitivas básicas. Ou seja: todos nós humanos temos
capacidades cognitivas para processar as informações captadas
por nossa percepção e tais capacidades são comuns entre nós
humanos. Os casos desviantes – defeitos nas capacidades
perceptivas ou nas capacidades cognitivas – são colocados ao lado,
considerando que não são predominantes.

Complementando este argumento, Quine (1985, p. 167) afirma que

Não há subjetividade no fraseado das sentenças


observacionais [proposições observacionais](...);
de ordinário, elas serão sobre corpos. Dado que o
traço distintivo de uma sentença observacional é a
concordância intersubjetiva sob estimulação [capacidade
perceptiva] concordante, é mais provável que aquilo de
que trata seja de natureza corpórea.

Em outras palavras, a concordância quanto aos corpos físicos


de que falam as proposições de observação (as quais Quine
também denomina sentenças observacionais; entenda‑se com
isto o “fraseado”) é oriunda das capacidades perceptivas ou,
como Quine diz, de estimulação concordante. Nunca esquecer
o argumento de que as estimulações são dados cognitivos, os
quais são oriundos de objetos corpóreos e são iguais para todos os
seres humanos (o que Quine denomina intersubjetivo), pois todos
possuem o mesmo aparelho perceptivo, o qual é estudado pela
ciência natural.

Unidade 5 119
Universidade do Sul de Santa Catarina

O argumento de Quine será o de que nossas capacidades de


percepção deverão ser estudadas pela ciência e, desta forma,
poder‑se‑á eliminar a possibilidade de que alguém lance dúvidas
sobre o que se está percebendo.

Você está conseguindo perceber a engenhosidade do


argumento de Quine?

Ele retira a força da Epistemologia tradicional, a qual denomina


de “reconstrução racional”, e coloca a Epistemologia como
uma das áreas de estudo da ciência, pois é a ciência que
garante maiores conhecimentos do mundo que nos cerca,
através das hipóteses que os cientistas constroem e que, não
à toa, funcionam. Se os cientistas elaboram hipóteses sobre
determinados objetos físicos e estas hipóteses funcionam, então
devemos crer que tais objetos existem.

Entretanto, a existência destes objetos não é algo que se


possa provar sem os instrumentos da ciência. Quine utiliza
o fato de que a ciência explica as relações entre os objetos do
mundo e o comportamento de um objeto qualquer, como
forma de assegurar que as capacidades de percepção do ser
humano devem ser estudadas pela ciência natural, neste caso a
Psicologia Experimental.

A partir dessa exposição resumida do argumento de Quine,


retomemos agora o problema que é o centro de nosso estudo,
qual seja, a possibilidade de que não possamos conhecer objetos
do mundo exterior, ou, dito de outra maneira: a possibilidade de
que não consigamos provar que existem objetos exteriores a nós.
Não temos uma resposta direta de Quine a esta questão.

Algumas afirmações em seu texto podem nos servir de pistas


para o tratamento que a Epistemologia Naturalizada fornecerá
para a questão do cético.

Por exemplo: em determinado momento de seu ensaio


“Epistemologia Naturalizada”, Quine afirma o seguinte quanto
às sentenças observacionais:

120
Teoria do Conhecimento I

(...) uma sentença observacional é uma sentença sobre


a qual todos os que falam a língua pronunciam o
mesmo veredito, quando é dada a mesma estimulação
concomitante. Em termos negativos, uma sentença
observacional é uma sentença que não é sensível, no
interior da comunidade lingüística, a diferenças de
experiências passadas. (QUINE, 1985, p. 167).

Analisando as palavras de Quine nesta citação, podemos


inferir o seguinte:

a) uma sentença observacional diz respeito a objetos ou, nas


palavras de Quine citadas mais acima, corpos;

(b) as pessoas não têm dúvida quanto a uma sentença observacional,


pois todos possuem a mesma estimulação perceptiva;

(c) as sentenças observacionais não são contraditadas por


experiências passadas, isto é, as sentenças observacionais são
estabelecidas com alto grau de certeza; e

d) existe uma comunidade linguística ou de falantes que utilizam


as mesmas sentenças observacionais, ou seja, os vereditos (se
são verdadeiras ou falsas) sobre sentenças observacionais são
comumente partilhados dentro de uma comunidade de falantes.

Definidos estes itens, vamos compará‑los, na próxima seção, com


o que exige o cético.

Seção 4 – Naturalização do conhecimento e ceticismo


Considerando, por um lado, que o ceticismo afirma não
podermos conhecer objetos exteriores a nós e que, mesmo se
os pudéssemos conhecer, não conseguiríamos provar a sua
existência, tendo em vista que temos apenas provas oriundas
de nossos cinco sentidos; e, considerando, por outro lado, as
afirmações de Quine, podemos auferir que ele não considera
legítimas as questões do cético. Podemos concluir isto a partir
daqueles itens que ressaltamos da citação de Quine. Vejamos.

Unidade 5 121
Universidade do Sul de Santa Catarina

I. O cético afirma que as experiências passadas podem influenciar


no que conhecemos agora, isto é, na relação entre a certeza da
percepção atual de um objeto físico qualquer com as percepções
que tivemos, antes, deste mesmo objeto. Ou seja: para o cético,
as percepções passadas são fonte de dúvidas, pois elas podem
ser confusas. Quine, por outro lado, afirma que este não é o caso.
Segundo ele, as sentenças observacionais (por exemplo: “existe
uma caneta sobre a minha mesa”) não são afetadas pela experiência
passada. A explicação para isto é clara: a comunidade linguística
entra em acordo sobre a qual objeto uma sentença observacional
se refere e, sendo assim, não há influência de experiências passadas
sobre esta sentença. Ao mesmo tempo, sendo nossa percepção
estudada e explicada pela ciência, então os resultados que a ciência
alcança são estabelecidos de maneira experimental e podem ser
provados como verdadeiros ou falsos através do método científico.
II. O cético questiona nossas afirmações de existência de objetos
exteriores a nós. Segundo ele, nossos cinco sentidos (percepção) já
nos enganaram e, portanto, não são confiáveis para que sobre eles
se construa qualquer conhecimento do mundo. Os argumentos
de Quine que separamos na seção anterior demonstram que,
segundo seu ponto de vista, as experiências passadas não
influenciam no estabelecimento dos conteúdos das sentenças
observacionais. Além disto, as pessoas (seres humanos) possuem
o mesmo aparato perceptivo, o qual é estudado pela ciência
natural. Ora, dado que temos o mesmo aparato de percepção (ou,
nas palavras de Quine, a mesma “estimulação”), as dúvidas do
cético quanto ao que são objetos exteriores não fazem sentido,
pois as pessoas não têm dúvidas quanto ao que percebem. Caso
alguma dúvida persista, as investigações científicas sobre nossa
percepção irão estabelecer o que são objetos da percepção.
III. Outro argumento de Quine, exposto no mesmo ensaio, diz
respeito ao status da observação de objetos físicos exteriores a nós.
Lembremo‑nos de que, se nos guiarmos pela argumentação do
cético, não temos como justificar a existência de objetos exteriores
a nós. Nossos sentidos nos enganam e não possuímos outro tipo de
fonte de conhecimento para provar a existência real de um mundo
de objetos. Segundo os argumentos de Quine, não há dúvida
quanto à existência de objetos da observação (veja as afirmações
a e b mais acima). Quine argumenta em seu ensaio Epistemologia
Naturalizada (p. 167) que os filósofos consideram apenas os casos
desviantes como os que estabeleciam a impossibilidade de um
padrão de objeto de observação. Contudo, alega Quine, pelo fato
de possuirmos uma comunidade de falantes da mesma língua, o
padrão poderá ser definido sem problemas (veja afirmação d mais
acima). Sendo assim, não resta dúvida de que a observação
de objetos e corpos externos a nós não está sob suspeita.

122
Teoria do Conhecimento I

Estes três pontos são suficientes para compreendermos que, ao


naturalizar a Epistemologia, Quine buscava lhe fornecer força
experimental, e não apenas força argumentativa. O problema
do ceticismo quanto ao conhecimento não faz sentido na
argumentação de Quine e, desta forma, a resposta de Quine à
questão da justificação de nosso conhecimento também pode ser
tomada como uma resposta ao problema do ceticismo.

A força do aparato experimental da ciência implica que o


cético – se expandirmos os argumento de Quine – ou não
pertence a uma comunidade de falantes mais ampla, ou não
aceita que sua percepção, sendo idêntica a de todas as demais
pessoas, é explicada pela ciência. Neste último caso, a ciência
forneceria uma base para a resposta ao cético, qual seja, “a ciência
demonstra que a forma como trabalha nossa percepção é idêntica
para todos os casos normais”.

Aqui o conceito “normal” designa um padrão que é


aceito por toda comunidade linguística a partir dos
conhecimentos (ou informações) disponibilizados
pela ciência.

Ao naturalizar nosso conhecimento fazendo‑o objeto de uma


ciência empírica, Quine estaria transformando a Epistemologia
tradicional, de um estudo puramente filosófico, para um ramo de
estudo científico.

Nossos estudos de Epistemologia sobre a natureza de nosso


conhecimento do mundo que nos cerca devem se basear
unicamente na ciência e nos resultados que a ciência nos
fornece sobre nós e nosso aparato de percepção. As proposições
observacionais, aquelas que mais intimamente estão ligadas
à existência de objetos no mundo exterior, são construções
linguísticas de conjuntos de percepções

Enquanto tais, as proposições de observação possuem conteúdos


que são determinados, não mais pela mente humana ou apenas
através do relato do que é percebido (por exemplo: sei que há
um gato sobre o tapete, porque posso vê‑lo), mas sim através
do estudo científico de nossos “receptores sensoriais” (QUINE,
1985, p. 165). Isto significa que não contam mais os relatos

Unidade 5 123
Universidade do Sul de Santa Catarina

que o sujeito faz daquilo que percebe no momento em que vê


determinado objeto. Para Quine, o conhecimento científico
fornece a base experimental para verificarmos o que o sujeito
percebe, isto é, como sua percepção está sendo estimulada.

Para finalizar esta seção, vamos elaborar algumas distinções


a mais.

„„ Os objetos existem independentemente de nossa


vontade ou do relato do que estamos percebendo. Quine
justificaria esta afirmação alegando que a Psicologia
Científica estuda, de maneira experimental, nossas
percepções, ou o que ele denomina de estimulação
sensorial. Assim, a ciência garante que nossas sensações
constroem um objeto, e esta garantia é baseada na teoria
sobre nossas percepções.

„„ Não há motivo para uma dúvida quanto ao mundo


exterior, pois todas as pessoas possuem as mesmas
estimulações sensoriais e o mesmo aparato perceptivo.
As diferenças entre pessoas que podem ver as cores
daquelas que são daltônicas, e apenas distinguem tons de
cinza, não anula o fato de que as cores são estimuladoras
de nosso aparato perceptivo. As dúvidas quanto à
existência, ou não, das cores independem da vontade
ou ponto de vista do sujeito que observa um padrão de
cor. O fato é que seu aparato de percepção está sendo
estimulado, e temos meios experimentais de estudar sua
percepção. Portanto, é fácil descobrir se o sujeito está,
ou não, sendo estimulado sensorialmente, pois podemos
testar em laboratório sua percepção.

„„ As proposições de observação, ou, nas palavas de Quine,


observacionais, são relatos de eventos e objetos exteriores
a nós, se a comunidade dos falantes possui a mesma
estimulação sensorial concomitante.

124
Teoria do Conhecimento I

Exemplificando o que foi afirmado: todas as pessoas


estudadas até agora afirmam que a água quente causa
dor, quando derramada sobre nossas mãos. Portanto,
este é um estímulo concomitante, espalhado por
toda a comunidade, e, desta forma, é algo objetivo.
Consequentemente, duvidar do objeto de uma
proposição observacional implica estar equivocado
quanto à ciência e não quanto ao que alguém afirma.
É nossa ciência que comprova que estamos sendo
estimulados, e não o nosso relato.

„„ A Epistemologia colocada como um capítulo da


Psicologia poderá fazer uso dos resultados experimentais
desta ciência para estudar nosso conhecimento. As
explicações e descobertas científicas são descobertas
universais, válidas para toda a espécie humana. Sendo
assim, segundo Quine, nada devemos temer quanto
ao fato de que usamos a ciência para comprovar
nossas afirmações sobre objetos do mundo, pois as
descobertas científicas tratam exatamente desses objetos
enquanto estimuladores de nossa percepção. Ora, sem
estimuladores não há, em estado normal, estímulo.
Portanto, o fato de que o sujeito percebe é comprovado
pela estimulação de seu aparelho perceptivo.

„„ Um sujeito constrói seu mundo exterior a partir de suas


estimulações perceptivas. Estas estimulações poderão
ser conferidas experimentalmente. Assim, perceber
um objeto de tal ou tal forma não depende do relato
pessoal, e sim daquilo que o sujeito constrói a partir de
suas estimulações.

Por exemplo, se alguém nos diz que um objeto é


pontiagudo, ele está construindo uma hipótese a
partir de suas estimulações. É possível estudar essas
percepções. Se nós tivermos as mesmas estimulações
perceptivas, então o sujeito está afirmando algo que é
verdadeiro. Por conseguinte, é possível afirmar que as
disputas quanto ao que é percebido, ou não, ocorrem,
pois a ciência decidirá se uma determinada estimulação
existe, ou não, através dos experimentos adequados.

Unidade 5 125
Universidade do Sul de Santa Catarina

Por fim, dados estes argumentos de Quine, parece que uma


Epistemologia naturalizada apresenta maiores vantagens teóricas
do que as reconstruções racionais, baseadas ou na lógica ou nas
percepções. Ao mesmo tempo, podemos concluir que dúvidas
céticas não têm lugar no estudo da Epistemologia, pois qualquer
dúvida que um cético possa elaborar é apenas possível dentro
do marco da própria ciência e, portanto, resolvida pelo próprio
estudo científico.

Por exemplo: se levanto uma dúvida quanto à cor de


um objeto, minha dúvida apenas faz sentido caso se
refira a determinadas proposições observacionais.
Estas, por sua vez, são normatizadas pelo estudo
empírico da ciência. Logo, toda dúvida é científica e a
resposta a esta dúvida também deverá ser científica.
Se não for desta forma, dentro dos parâmetros
estabelecidos pela argumentação de Quine, é uma
pergunta exagerada ou sem sentido.

Esta é, em resumo, a posição filosófica de Quine quanto ao


estudo do conhecimento. Vamos conferir, na próxima seção, se
os seus argumentos respondem a dúvida levantada pelo cético.
Está pronto(a)?

Seção 5 – O cético contra Quine: uma avaliação final


Vamos iniciar esta seção refletindo sobre algumas questões.

O que você acha? Será que a argumentação de Quine


derrubou a dúvida cética? O cético irá conceder alguma
razão aos argumentos de Quine?

Bem, como sempre ocorre em filosofia, todos os argumentos


fornecidos possuem seus desenvolvimentos e contra‑argumentos.
No presente caso, o cético deverá conceder que há verdade

126
Teoria do Conhecimento I

nos argumentos de Quine, se estes argumentos se mostrarem


resistentes a possíveis questionamentos. Vamos analisar mais
detidamente a força dos argumentos de Quine frente ao que pode
lhe contra‑argumentar um cético.

Primeiro, vamos nos lembrar de que o argumento cético é


construído a partir da premissa de que o nosso conhecimento
do mundo exterior baseia-se em nossos cinco sentidos.
Assim, sabemos o que é um objeto – e que, portanto, ele
existe – devido a uma inferência que nos leva daquela premissa
inicial até a afirmação de que o objeto existe, por ser percebido.
Consequentemente, o argumento cético recebe sua força por
meio de inferências, isto é, primeiro sabemos que algo atinge
os nossos sentidos e, após isto, conferimos tais sensações com
algum objeto exterior.

O cético argumenta que, tendo em vista todo o nosso


conhecimento dos objetos exteriores a nós prover de nossos
sentidos, então não é possível comprovar de forma independente
dos sentidos se existem objetos exteriores, ou não. Lembre‑se
de que o cético busca meios de impugnar nossas afirmações de
conhecimento, pedindo justificativas. Ele perguntaria:

Como você justifica seu conhecimento de


objetos exteriores?

Nossa resposta imediata é argumentar que nós os percebemos.


Contudo, se a pergunta prossegue: “Como você justifica que
percebe?”, neste caso, teremos de alegar que nos baseamos na
verdade de nossa percepção. Ou seja: teríamos de conferir o que
é percebido com algo mais que não seja o objeto, mas que atribua
verdade à percepção daquele objeto específico. Ora, este “algo
mais” é o que não conseguimos encontrar até agora.

Bem, diante do que até agora foi explicitado, temos de avaliar


o ponto de vista de Quine. Um primeiro passo já foi dado no
parágrafo inicial desta seção: Quine fornece provas “internas”
quando o cético pede provas “externas”, isto é, ele questiona toda
possibilidade de conhecimento, e não uma determinada parte do
que conhecemos.

Unidade 5 127
Universidade do Sul de Santa Catarina

Um segundo aspecto importante é o seguinte: quando Quine


alega que a Epistemologia deveria incorporar os resultados
das investigações científicas sobre nossa percepção, estaria ele
fornecendo uma reposta ao cético?

Veja bem: Quine alega que devemos investigar a maneira pela


qual nosso aparato perceptivo é estimulado, pois é a partir desta
estimulação que “construímos” o corpo ou objeto externo das
proposições observacionais através de hipóteses.

Mas é esta resposta que pede a pergunta do cético?

Parece que Quine se propõe a tratar de outro assunto, qual seja:


como formamos nossa crença na existência de objetos exteriores
a nós. Neste caso, a resposta poderia ser: “Através da estimulação
de nosso aparato perceptivo”.

Contudo, isto não responde ao que o cético questiona.

Pode ser que estejamos sendo céticos demais quanto à


argumentação de Quine, isto é, não estamos admitindo que
ele apresente uma boa resposta. Mas, se você pensar bem, verá
que Quine “escapa” da questão: se você reler a história que está
nas páginas iniciais deste livro, verá que a questão de Harry é
saber se ele é, ou não, um cérebro em uma cuba. Ele busca por
justificativas para o que “percebe”. Caso Quine encontrasse Harry,
responderia para ele: “Bem, Harry meu caro, se você se submeter
a alguns testes cognitivos, veremos que você tem seu aparato
perceptivo estimulado, e isto a ciência poderá comprovar”.

Ou seja: para Quine, o problema com que Harry se defronta


é uma questão de maiores conhecimentos científicos. Mas, ao
mesmo tempo e segundo argumenta Quine, este conhecimento
não diz respeito à realidade, e sim à estimulação de nosso aparato
perceptivo, e a ciência garantiria o mundo.

128
Teoria do Conhecimento I

Muitos dos investigadores na área de Teoria do Conhecimento


ou Epistemologia não aceitam esta “redução naturalista” proposta
por Quine. O filósofo inglês Jonathan Dancy, em sua obra
de Introdução à Epistemologia (ainda não traduzida para o
português), alega que os argumentos de Quine investem no
estudo do input de dados através de nosso aparato perceptivo.
Contudo, argumenta Dancy (1985, p. 237 e seguintes), o output
alegado por Quine – as teorias sobre o mundo – são muito mais
complexas do que o “magro input” de nossos sentidos.

Ainda restaria explicar como podemos construir teorias


altamente elaboradas sobre objetos, a partir de dados tão restritos
(mesmo que sejam dados verdadeiros obtidos pela ciência).
Contudo, o que se deseja é a justificação das teorias em confronto
com a realidade. A resposta de Quine aponta para a relação
causal entre o input e os estados cognitivos cerebrais, isto é: tal
estado é causalmente originado por tais e tais estimulações.

Quanto a isto não incidem dúvidas.

Novamente, o problema dá‑se entre estados cerebrais e a


construção das afirmações sobre o comportamento do mundo.
Afirmar que todos que sabem falar uma língua concordarão
quanto aos objetos a que as palavras se referem não é argumento
suficiente, pois o cético irá questionar: “Como todos sabem que
falam sobre objetos externos, e não sobre miragens que todos
afirmam serem objetos?”. O cético não foi conclusivamente
respondido. Mudar de assunto, como faz Quine, não é uma
resposta aceitável – se é que se pode considerar uma resposta!

Unidade 5 129
Universidade do Sul de Santa Catarina

Síntese

Como você pôde ver, enfrentamos mais uma batalha contra as


exigências do cético. A proposta de Quine parecia simpática, isto é,
utilizar os estudos científicos para fundamentar o conhecimento.

Contudo, percebemos que Quine subestimou a argúcia do cético.


Quine sugere dois argumentos paralelos: aceitar as contribuições
da ciência natural quanto ao que compõe nossa realidade e, junto
a isto, propõe que a Epistemologia seja um capítulo da Psicologia
Empírica. Entretanto, seu argumento falha ao não perceber que
o questionamento cético pode pôr toda a ciência em questão e,
ao mesmo tempo, que estudar nosso aparato perceptivo não é
fornecer provas da existência de objetos exteriores a nós.

Atividades de autoavaliação

1) Diferencie o ponto de vista interno sobre o conhecimento do ponto


de vista externo do conhecimento. Elabore resposta explicativa e
forneça exemplos.

130
Teoria do Conhecimento I

2) Explique a seguinte afirmação, considerando o ponto de vista da


Epistemologia Naturalizada de Quine: “Estudar o conhecimento
humano é uma tarefa igual a de qualquer ciência natural”.

3) Explique qual a vantagem, alegada por Quine, se adotarmos o ponto de


vista da Epistemologia Naturalizada. Forneça exemplos e os explique.

Unidade 5 131
Universidade do Sul de Santa Catarina

Saiba mais

Apesar da importância dos estudos sobre Epistemologia


naturalizada, tanto nos EUA quanto em outras partes do mundo,
estes estudos não são frequentes no Brasil. Assim, a bibliografia
disponível é escassa. A seguir, apresentamos alguns materiais que
você pode consultar sobre este asunto:

QUINE, Willard. Epistemologia naturalizada. São Paulo:


Abril Cultural, 1975. Trata‑se de um de seus ensaios traduzidos
para o português, na coleção Os Pensadores da Editora Abril
Cultural. O texto de Quine não é complicado, mas exige atenção.

QUINE, W. V. O. Epistemologia naturalizada. Tradução de


Andréa Loparié. São Paulo: Abril Cultural, 1975 (Coleção os
Pensadores).

BASTOS, Cleverson Leite; CANDIOTO, Kleber. Filosofia da


Ciência. Petrópolis: Vozes, 2008. No capítulo final da obra, você
encontra comentários sobre o ponto de vista de Quine (página
155 em diante).

Outro ensaio de Willard Quine na coleção Os Pensadores da


Editora Abril Cultural. Você encontra este e outros ensaios
de Quine no volume da coleção intitulado Austin, Strawson,
Ryle e Quine.

132
6
UNIDADE 6

Filosofia da linguagem e o
problema do conhecimento

Objetivos de aprendizagem
„„ Conhecer a História do Círculo Positivista de Viena.

„„ Compreender o princípio de verificação.

„„ Fazer a relação entre nossa linguagem e o conhecimento.

„„ Compreender a crítica do Círculo de Viena ao ceticismo.

„„ Saber avaliar a resposta fornecida ao questionamento cético.

Seções de estudo
Seção 1 Positivismo e linguagem

Seção 2 O princípio de verificação

Seção 3 Verificacionismo

Seção 4 Verificacionismo e ceticismo


Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Nesta unidade, estudaremos o problema filosófico do
conhecimento como um problema sobre o que faz, ou não,
sentido perguntar. Este argumento está inserido no denominado
“giro linguístico”, isto é, o ponto de vista em que as respostas aos
problemas filosóficos são linguísticas.

Iremos considerar o problema filosófico do conhecimento a


partir de um ponto de vista do estudo filosófico da linguagem,
isto é, a partir da consideração de que nossa linguagem
possui regras que não podem ser violadas e que muitas
questões formuladas na Filosofia são construções linguísticas
equivocadas. Vamos tentar responder à questão: “Há um
problema filosófico quanto ao conhecimento, ou trata‑se
apenas de um uso equivocado da linguagem?” Estudaremos
o argumento denominado “Princípio de Verificação”, isto é, o
princípio que busca distinguir, na linguagem, as proposições
que podem ser verificadas na realidade, e quais não.

Este princípio foi utilizado na Filosofia pelo Círculo Positivista de


Viena. Estudaremos a possibilidade de que a metafísica, que seria o
pano de fundo da linguagem, garanta a existência de objetos.

Seção 1 – Positivismo e linguagem


No início do século XX, surgiu um movimento de renovação
da Filosofia baseado nos recentes sucessos das ciências naturais.
As descobertas científicas e a necessidade de compreender
as estruturas da ciência instigavam as mentes da época. Na
Europa, eram criados grupos de estudos filosóficos. Destes
grupos, alguns se salientavam mais que outros. Os que mais se
salientaram foram o Círculo de Berlim (Sociedade para o Estudo
da Filosofia Empírica) e o Círculo Positivista de Viena. Ambos
eram compostos por matemáticos, físicos, filósofos, lógicos,
economistas e historiadores. Estes grupos floresceram no período
anterior ao predomínio do Nazifascismo na Europa.

134
Teoria do Conhecimento I

A maioria desses estudiosos teve de emigrar para outros


países, e outros foram capturados e assassinados em campos
de concentração. Alguns dos que sobreviveram foram para
universidades norte‑americanas ou da Inglaterra. Com isto,
as ideias que estes filósofos partilhavam foram espalhadas
pelo mundo todo. Um dos frequentadores assíduos do Círculo
Positivista de Viena foi Willard Quine, outro foi Karl Popper.

Se desejar, visite o site do Instituto Círculo de


Viena, instituição que conta hoje com a parceria da
Universidade de Viena. Veja a Figura 6.1.

Figura 6.1 ‑ Imagem do site do Instituto Círculo de Viena


Fonte: Institute Vienna Circle (2011).

Tanto o Círculo de Viena quanto o Círculo de Berlim tiveram


membros que, já antes da Segunda Grande Guerra, eram
conhecidos e reconhecidos no mundo filosófico: de Viena, temos
Moritz Schlick (assassinado por militante Nazista em Viena),
Rudolf Carnap (imigrou para os EUA), Hans Hann (morto
em 1934), Otto Neurath (fugiu para a Holanda e, logo após,
para a Inglaterra) e Herbert Feigl (imigrou para os EUA); de
Berlim, temos Carl Hempel (imigrado para os EUA) e Hans
Reichenbach (imigrado para os EUA).

Unidade 6 135
Universidade do Sul de Santa Catarina

Assim, a diáspora causada pelo Nazismo fez com que os


princípios filosóficos do Círculo de Viena e de Berlim
encontrassem terra fértil para se desenvolver, considerando que
tanto em Berlim quanto em Viena a filosofia predominante
era o Idealismo de Friedrich Hegel (idealismo especulativo).
Em 1936, foi publicado o que ficou conhecido como “Manifesto
George Wilhelm Friedrich Hegel,
filósofo alemão. Aos 18 anos de
do Círculo Positivista”, mas que, na época, levava o título de
idade, ingressou no seminário “Escritos sobre a Concepção Científica do Mundo”.
protestante de Tubingen, para
estudar Teologia. Lá conheceu Apesar de conter vários pontos predominantes no Círculo de
Schelling (1775-1854) e Holderlin Viena, nem todos os membros concordavam completamente
(1770-1843) e tornou-se amigo
em todos os pontos. Seja como for, esta publicação deu início a
deles. O pietismo, uma das correntes
gnósticas do protestantismo, uma série de outras, nas quais os membros do Círculo de Viena
influenciou profundamente o seu tornavam públicas suas ideias sobre filosofia.
pensamento. Hegel iniciou a sua
atividade de professor em Berna, As doutrinas do Círculo de Viena estavam ligadas ao ponto de
na Suíça, entre 1793 e 1796, e, vista empirista, isto é, à concepção de que experiência oriunda
depois, em Frankfourt, de 1797
a 1800. Foi professor e reitor em
dos sentidos ou neles fundamentada é um critério de obtenção de
um colégio de Nuremberg (1808), conhecimento. A própria significação linguística deveria seguir
depois professor em Heidelberg e, esse critério.
finalmente, em Berlim (1817-1831),
onde permaneceu até a morte.  O interesse principal do Círculo de Viena era o estudo da
filosofia da ciência. O acordo básico entre todos os membros
era a tentativa de livrar as ciências empíricas das exigências das
ciências formais. Faziam uma separação clara entre ciências
formais, como a matemática, e a lógica das ciências empíricas,
tais como física, química e psicologia. Em outras palavras,
eles diferenciavam as afirmações a priori – afirmações que são
verdadeiras unicamente em razão das definições dos termos que
utilizam – daquelas afirmações a posteriori – afirmações que
dizem algo sobre objetos da realidade e que serão verdadeiras
apenas a partir de verificação.

Os campos do saber que não usavam nem afirmações a priori,


tampouco a posteriori, possuíam afirmações que não faziam
sentido. As especulações metafísicas e teológicas não poderiam
ser verdadeiras, ou falsas, pois não faziam sentido. Além disto,
uma das doutrinas básicas era a rejeição a qualquer forma
de intuição racional, isto é, a possibilidade de que se possa
ter conhecimento apenas através da “observação interna”.
O empirismo era o único critério de verdade.

136
Teoria do Conhecimento I

Ora, a combinação entre Empirismo e a rejeição da intuição


racional permitia como critério único para o conhecimento
a observação empírica ou a verdade lógica; com a ressalva de
que a lógica possuía verdades a priori, enquanto que as ciências
possuíam afirmações que poderiam ser verdades a posteriori. Tal
critério proposto pelo círculo obviamente mudou a compreensão
das questões filosóficas.

Além disto, o Círculo ficou impressionado com a obra


de Ludwig Wittgenstein denominada Tractatus Logico
Philosophicus, a qual afirmava que toda filosofia é, de fato, crítica
Ludwig Josef Johann
da Linguagem. Esta combinação de pressupostos básicos fez com Wittgenstein foi um
que o Círculo de Viena considerasse a Filosofia como um saber pensador da modernidade,
de segunda ordem, o qual retirava sua validade do trabalho de filósofo da Matemática,
esclarecimento das proposições das ciências empíricas. Cabia à integrante do Círculo de
Filosofia elaborar uma linguagem de segunda ordem, a partir da Viena, que contribuiu para
a renovação da Lógica na
qual as proposições das ciências seriam construídas de maneira década de 1920, sendo
clara e logicamente correta. Esta tese determina consequências considerado um dos pais
terríveis para a Filosofia, pois elimina a possibilidade de que da Filosofia Analítica.
existam questões filosóficas legítimas.

Seja como for, O Círculo de Viena obteve reconhecimento


mundial nos anos 30 do século XX. A ideia de uma concepção
científica que unificasse todas as ciências foi desenvolvida em várias
publicações. Em um primeiro momento, eles criaram os Anais de
Filosofia. Após algum tempo, o nome é mudado para Erkentniss,
o qual ainda hoje é publicado. As conferências eram organizadas
por Otto Neurath e, no total, foram quatro conferências, a última
acontecendo em 1941. Com a morte de Otto Neurath, e a pressão
nazista mais forte, muitos membros imigraram ou foram presos e
enviados para campos de concentração.

O mentor do Círculo, Moritiz Schlick, foi assassinado por


um militante nazista. O mais revoltante neste episódio com
Schlick é que o assassino foi libertado devido a argumentos
dominantemente ofensivos à memória da família Schlick, e não
a fatos que inocentavam o assassino. Por fim, o acusado ficou
alguns meses na prisão e foi libertado. O partido realizou uma
festa para recebê‑lo.

Unidade 6 137
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para finalizar esta seção, vamos fazer a ligação entre


as ideias filosóficas gerais do Círculo de Viena e sua
relação com a linguagem.

Esta ligação entre o projeto filosófico do Círculo e a preocupação


com a análise da linguagem ocorre devido à concepção de que a
filosofia é uma tarefa de esclarecimento das proposições usadas
pela ciência e, junto a isto, a ideia de que nossa linguagem
comum deve ser especializada para o uso das explicações
científicas. Esta especialização se daria através da análise lógica
das proposições.

Segundo Moritz Schlick, a filosofia deveria ser a clarificação e


o aprofundamento da compreensão de nossas práticas cognitivas
que são empregadas na linguagem do dia a dia. Rudolf Carnap,
outro influente membro do Círculo de Viena, defendia a ideia
de que a filosofia deveria investigar, reconstruir e desenvolver
A expressão “positivismo” deve‑se
uma nova estrutura lógico‑linguística que sugerisse convenções
à doutrina filosófica do círculo e de formais para a ciência.
seus membros de que a verdade
das proposições da ciência está Na esteira deste ponto de vista, a grande questão da Filosofia
ligada à realidade dos objetos a era a de determinar uma clara significação para o discurso
que se referem. A mesma doutrina
empregado pela ciência; e isto, por sua vez, faria com que a
vale para as questões que são
significativas, isto é, elas são
linguagem se tornasse a preocupação principal da filosofia do
significativas por se referirem Círculo e da filosofia que se derivou de suas ideias.
a algum objeto perceptível e
existente na realidade exterior à Por fim, alguns esclarecimentos quanto à denominação
mente do indivíduo. Palavras e usada normalmente para o Círculo de Viena: você encontrará
proposições que não cumpram
vários textos denominando as doutrinas do Círculo como
este critério são sem sentido.
“positivismo”. Assim, é muitas vezes chamando de “Círculo
Positivista de Viena”.

Obviamente, os membros do círculo apenas aceitavam a


possibilidade de conhecermos objetos exteriores a nós, isto
é, objetos empíricos. Afora esta possibilidade, sobrariam as
proposições da Lógica e da Matemática. Estas, contudo, não
dizem respeito à realidade e, sim, às definições que utilizamos
e à simbologia que é criada.

138
Teoria do Conhecimento I

Seção 2 – O princípio de verificação


Bem, como você pôde observar na seção anterior, os membros
do Círculo de Viena estavam interessados em investigar a
estrutura de significação de nossa linguagem. Também dissemos
que essa proposta era consequência da crença de que apenas
possuem sentido aquelas afirmações que possam ser verificadas
através da experiência.

Assim, chegamos ao denominado Princípio de Verificação.


Segundo este princípio, qualquer oração afirmativa,
aparentemente bem formada, que não seja verdadeira por meio
de uma verificação de experiência sensorial, é sem sentido:
não diz nada que possa ser verdadeiro, ou falso. Uma oração
interrogativa, aparentemente bem formada, é significativa, se
existe alguma experiência sensorial que possa responder a ela de
maneira verdadeira; caso contrário esta oração não faz sentido.

Deste modo, o Princípio de Verificação vincula o sentido e o


sem‑sentido de nossas afirmações e questões diretamente à
experiência de verificação daquilo que a afirmação diz ou de uma
possível resposta à questão. Vamos explorar mais essas distinções.

A ideia desenvolvida pelos membros do Círculo era a


de que a ciência utiliza afirmações que são descritivas
da realidade. Por exemplo: a afirmação “Existe uma
montanha em Florianópolis” é uma afirmação com
sentido apenas se, e somente se, for possível verificar,
através de nossos sentidos, a existência dessa
montanha. Se as afirmações dizem respeito a objetos
que não são passíveis de alguma experiência sensorial,
então são afirmações que não possuem sentido.
Tomemos outro exemplo. A afirmação “Existem ideias
verdes” não faz sentido algum, pois o que ela afirma
não poderá ser verdadeiro, ou falso, tendo em vista
que é uma afirmação mal construída. Não existe
possibilidade de verificarmos as cores das ideias.
Considerando tudo que sabemos sobre ideias, elas
não são objetos que possam ter, ou não, cor. Assim,
é estabelecido um critério bem nítido de tipos de
afirmações que podemos verificar, ou não. As que não
podem ser verificadas não fazem sentido.

Unidade 6 139
Universidade do Sul de Santa Catarina

Uma distinção importante que devemos fazer quanto ao princípio


de verificação é que ele nos fala de afirmações e questões que
não fazem sentido, pois são mal construídas. Entretanto, é
necessário que separemos aquelas afirmações que são falsas das
que não fazem sentido. Pode parecer complicado, mas de fato
não é. Veja: quando alguém diz que elefantes brancos voam, ele
está elaborando uma afirmação mal construída. A construção da
afirmação viola as regras lógicas da gramática.

Uma afirmação como “Existe uma montanha coberta de pedras


verdes em Florianópolis” pode ser verdadeira, ou falsa, pois,
mesmo que não acreditemos em pedras verdes, é possível que
façamos uma expedição a uma montanha de Florianópolis para
verificar o que a afirmação diz. Caso não existam pedras verdes
em nenhuma das montanhas de Florianópolis, então a afirmação
é falsa. Veja bem, a falsidade está ligada à não‑existência do que
é afirmado existir. Por outro lado, a atribuição de falta de sentido
está ligada à violação de leis lógico‑gramaticais.

Por exemplo, atribuir cor a uma ideia é infringir leis


lógicas, logo não é possível averiguar a cor de uma ideia.

Assim, a noção de falsidade e de verdade tornam‑se dependentes


da verificabilidade do que é afirmado. Este critério permite que
a ciência possua uma estrutura conceitual totalmente controlável
e, ao mesmo tempo, que nossas afirmações de conhecimento
possam ser verificadas.

Por exemplo: quando, numa empresa, os


administradores fazem afirmações sobre o estado
precário de alguma estrutura da empresa, é possível
que você verifique se a afirmação de precariedade
é, de fato, verdadeira. O que o administrador está
afirmando, se tem a pretensão de ser conhecimento,
deve ser verificável segundo o ponto de vista do
Círculo de Viena. Isto significa que é preciso ir ao local
examinar a precariedade da estrutura em questão.
Mesmo que o administrador faça uma afirmação sobre
toda uma seção da empresa, você poderá adotar
algumas medidas verificacionistas quanto ao que ele

140
Teoria do Conhecimento I

afirma. Você pode, por exemplo, tabular dados sobre


a produtividade daquela seção da empresa. O mesmo
pode ocorrer naquelas reuniões da empresa ou da
escola, por exemplo.

As afirmações que são lançadas nestas reuniões


podem ser classificadas como (a) falsas, (b) verdadeiras
ou (c) sem sentido. As afirmações do tipo (a) e (b)
são verificadas pela realidade, isto é, dizer verdade
e falsidade são relações entre a realidade e o que
é dito. Se o que é dito é verificado pela realidade,
então é o caso (a), verdadeiro. O mesmo vale para
o caso (b): se o que é dito não é verificado pela
realidade, então, temos uma afirmação falsa. Quanto
ao caso (c), ele deve ser compreendido como uma
violação das regras lógico‑sintáticas da linguagem,
isto é, são afirmações que não fazem sentido.

Este critério permite que as afirmações de conhecimento


sejam construídas a partir de um parâmetro de significação
linguística, isto é, as afirmações poderão conter determinados
tipos de conceitos que são significativos em relação com a
realidade, ou não. Por outro lado, algumas afirmações não são
gramaticalmente bem construídas e, quanto a estas, nenhuma
resposta significativa é possível.

Por exemplo: entre duas afirmações como “Existem objetos


externos” e “Não existem objetos externos”, não podemos decidir
qual é verdadeira e qual é falsa, pois ambas são afirmações
que, apesar de mostrarem uma gramática adequada, não são
verificáveis. Ambas as afirmações dizem respeito a toda uma
classe, e não apenas a determinados objetos. Ora, uma afirmação
como “Existem cadeiras” é verificável através da experiência, o
mesmo para “Existem quadros‑negros”. Contudo, a afirmação
de que os objetos existem, ou é verificável através da experiência
com qualquer objeto, ou não faz sentido, pois ela ultrapassa a
possibilidade de verificação.

Unidade 6 141
Universidade do Sul de Santa Catarina

Seção 3 – Verificacionismo
O Círculo de Viena apresentou variantes do Princípio de
Verificação. Inicialmente, temos uma versão “estrita”, isto é, uma
adesão irrestrita ao princípio. Este período inicia‑se com Moritz
Schlick, em 1922, até 1935. De 1935 em diante, algumas críticas
fazem com que se adote uma versão menos restrita.

A crítica mais amplamente feita é a que questiona a aceitabilidade


do Princípio de Verificação em suas próprias bases. Assim,
caberia ao verificacionista demonstrar a verdade de seu princípio
com base no que estabelece o próprio princípio. Ou seja, qual a
possibilidade de que o Princípio de Verificação seja verificado
através da experiência? Além disso, muitas leis da ciência fazem
afirmações que vão além da própria verificabilidade empírica.

Um exemplo desse tipo seria a lei da queda universal dos corpos,


a qual apenas pode ser atribuída à natureza, ainda que não seja
“observada”. Creio que não é difícil perceber que não observamos
a lei, e sim uma experiência de um corpo caindo ou subindo (no
caso de um balão cheio de gás). Mas nenhum destes casos “é” a
lei da queda universal dos corpos. Considerando estes problemas,
é necessário amenizar a força do Principio de Verificação.

Neste contexto, surge a obra de Rudolf Carnap, Testabilidade


e Significado, que foi publicada na revista oficial do círculo,
em 1936. Carnap substitui “verificação” por “confirmação”.
O raciocínio de Carnap aceita algumas das críticas que foram
feitas ao princípio e formula uma concepção de confirmação
em que as condições de verdade de uma proposição aceitam a
confirmação das leis da ciência.

142
Teoria do Conhecimento I

Rudolf Carnap viveu em Praga, Tchecoslováquia


(1931‑1935), fugindo em seguida do nazismo para os
Estados Unidos, onde lecionou nas universidades de
Chicago e Harvard. Com o sociólogo Otto Neurath,
seu contemporâneo no Círculo de Viena, e com
o filósofo Charles Morris, fundou a International
Encyclopedia of Unified Science (1938). Ainda
participou do Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de Princeton (1952‑1954) e esteve na
Universidade da Califórnia (1955‑1956), onde estudou
a lógica indutiva. Estudioso dos problemas da
linguagem, mostrou especial interesse pelas línguas
artificiais, e defendeu a utilização do esperanto e
da interlíngua, desenvolvida pelo matemático e
linguista Giuseppe Peano. Morreu em Los Angeles.

A verificação de uma lei científica deveria ser elaborada através


do exame de cada caso particular, para que fosse possível afirmar
que a lei é verdadeira. Contudo, verificar cada caso particular
implica uma tarefa infinita, pois todos os casos da lei seriam
instâncias de sua verificação e, assim, qualquer caso que não
fosse verificado poderia ser um caso em que a lei não se verifica.
Logo, ou a verificação é total, ou não funciona. Carnap resolve
introduzir a noção de confirmabilidade.

Uma afirmação é totalmente confirmável se cada predicado


contido nesta afirmação puder ser reduzido a uma classe de
predicados observáveis. Ou seja, as afirmações sobre uma
classe de indivíduos (por exemplo, corvos negros) é confirmável
se essas afirmações puderem ser reduzidas a determinadas
afirmações sobre um indivíduo particular da classe e observável
(por exemplo: um corvo negro específico).

Por outro lado, é possível que uma afirmação não seja totalmente
confirmável, mas confirmável apenas tendo em vista que não é
possível reduzi‑la a um indivíduo em particular, a não ser através
de uma serie infinita de etapas. Em um terceiro caso, dizemos
que uma afirmação é completamente confirmável se cada
predicado usado na afirmação puder ser reduzido a um ou outro
indivíduo, isto é, neste caso a afirmação poderá ser verificada
através de método empírico.

Unidade 6 143
Universidade do Sul de Santa Catarina

Consequentemente, os critérios oferecidos por Carnap serão


quatro, cada um com um grau menor de exigência. Observe.

O mais exigente dos quatro critérios exige uma comprovação


completa: “toda afirmação sobre a realidade deverá ser verificada
rigorosamente”. Para que tal critério seja levado adiante, é
necessário que tenhamos um método de verificação em cada
caso da afirmação, para sabermos se os predicados usados são
empiricamente verificáveis.

Um segundo critério será: “toda afirmação sobre o mundo


deverá ser completamente confirmável”. Este critério não exige
a verificação passo a passo, mas a possibilidade de que todos os
predicados envolvidos na afirmação possam ser verificados, mas
não que sejam comprovados.

Um terceiro critério é: “toda afirmação sobre o mundo deve ser


comprovável”. Neste caso, a comprobabilidade é uma exigência de
longo prazo, isto é, espera‑se que a afirmação seja comprovável.

Por fim, o quarto critério, e o mais liberal de todos, exige que


“toda afirmação sobre o mundo deve ser confirmável”.

Como você pode ver, o Verificacionismo do Círculo de Viena


foi sendo amenizado aos poucos para dar conta dos casos
surgidos na compreensão científica, e não em casos de estudos
do conhecimento. Esses critérios podem ser empregados na
compreensão de nossas afirmações sobre o mundo e sobre os
objetos do mundo. Vejamos, agora, como o Verificacionismo
trabalha seus argumentos diante de uma proposta filosófica como
a do ceticismo.

144
Teoria do Conhecimento I

Seção 4 – Verificacionismo e ceticismo


Bem, você já percebeu que o ponto de vista do Círculo de Viena
e seu critério de verificabilidade possuem dois princípios básicos,
quais sejam: por um lado, apenas admitem que conhecemos
objetos através de nossas experiências sensoriais, o que significa
aceitar apenas o ponto de vista empirista quanto à possibilidade
do conhecimento; por outro lado, o critério de verificabilidade
fornece significado às afirmações empregadas. Estes dois critérios
fornecem a base a partir de onde o Círculo de Viena avaliava
todos os outros pontos de vista filosóficos.

O ponto de vista cético é concebido como sem sentido, pois, ao


afirmar que “não conhecemos objetos externos a nós”, o cético
elabora uma afirmação que não permite verificação. Mesmo que
você apresente um caso de conhecimento, isto não será válido, pois
o verificacionista exige que você prove que falar da impossibilidade
de todo conhecimento é uma afirmação que poderia ser verificada
por alguma instância da realidade. Ora, é complicado entender esta
exigência, por ela implicar a impossibilidade da verificação, isto é,
não se sabe como seria possível verificá‑la.

Quando comparamos o cenário da primeira meditação de


Descartes com o que argumentam os verificacionistas, percebemos
que para eles o cenário é impossível. Não é concebível que se
duvide da “existência de objetos” sem que, ao mesmo tempo, esta
expressão possa ser significativa. Ora, para que a expressão seja
significativa, ela deve dizer respeito a alguma coisa da realidade.
Contudo não é possível verificar a expressão “existência de
objetos”. Tudo que você poderia mostrar seriam objetos (não
esqueça que os verificacionistas são empiristas), mas, no caso dessa
expressão (existência de objetos), não há objeto que a verifique.

Ao mesmo tempo, podemos dizer que a expressão em questão


não é logicamente bem construída, pois, quando falamos de
objetos, a existência destes deve estar pressuposta. Mas, como se
vê, não é o caso da expressão: quando digo “existem cadeiras”,
não estou atribuindo existência às cadeiras, e sim informando
algo (as cadeiras) a alguém. O caso do cético – segundo os
verificacionistas – deve ser interpretado da mesma forma.
Concluindo, o ceticismo não faz sentido.

Unidade 6 145
Universidade do Sul de Santa Catarina

Se retomarmos agora a estória que está no início do


livro‑texto, teremos de adequar estes argumentos
verificacionistas com a situação de Harry. Se Harry
fosse um verificacionista, estaria ele em uma posição
melhor do que aquela em que se encontra no final
da estória? Bem, o ponto central é: se Harry adotar
o verificacionismo, ele poderá provar que não é um
cérebro em uma cuba? A resposta poderá ser afirmativa
se as afirmações de Harry sobre o mundo puderem ser
verificadas. A única forma de verificação admitida é a
experiência direta com os objetos dos sentidos. Ora,
mas este é o problema de Harry (e o nosso quando
enfrentamos o Ceticismo), isto é, como provar que os
objetos que estamos percebendo estão na realidade, e
não em nossa imaginação?

A resposta do verificacionista não ajudará Harry


(nem a nós), pois ele insiste que se deve averiguar
o que se passa ao nosso redor para confirmar a
afirmação de existência de objetos. Com isto, vemos
que o questionamento cético ainda triunfa sobre o
verificacionismo. Harry não estaria em boa companhia,
se o verificacionista fosse ajudá‑lo.

Outro problema acompanha a tese verificacionista, qual seja, o


problema quanto ao que o verificacionista deseja que aceitemos.
Vejamos o caso: estamos tentando encontrar uma resposta ao cético
que afirma que não temos conhecimento de objetos exteriores a
nós. Ou seja, segundo o desafio cético, não temos justificativas
para afirmar que percebemos objetos exteriores a nós.

O cético não está afirmando que não atribuímos significado


às nossas palavras ou que não as podemos verificar. Antes seu
desafio é o de que devemos provar que temos conhecimento
de um mundo exterior à nossa mente ou à nossa imaginação.
A resposta do verificacionista é afirmar que esta questão não
faz sentido, porque as palavras com as quais foi formulada e a
questão como um todo não são verificáveis. Contudo, esta não
é uma boa resposta, pois o cético poderá contra‑argumentar,
dizendo que suas palavras não estão em questão, e sim a realidade
que descrevem.

146
Teoria do Conhecimento I

Ou seja, a acusação lançada pelo verificacionista apenas teria


algum efeito se o cético admitisse que há uma realidade exterior
a nós, mas que não conseguimos atingir. Contrariamente a isto, o
cético afirma que não há como determinar uma realidade exterior.

Além disto, o verificacionista não parece estar respondendo


adequadamente, pois ele exige que o cético “construa afirmações
que possam ser verificadas pela experiência”, mas é exatamente a
experiência que o cético está colocando em questão. Ele poderia
perguntar “que realidade? Como provar que há uma realidade
que forneça sentido às nossas afirmações?”. Assim, vemos que a
proposta verificacionista não surte o efeito desejado e, por mais
atrativa que possa ser, não é uma resposta legítima. O postulado
do princípio de verificação deve ser provado para o cético como
estando além de suas dúvidas, isto é, o princípio deveria ser
inquestionável por constituir‑se na base da própria questão do
Ceticismo. Mas este não é o caso, como podemos ver.

Por fim, mais uma vez analisamos uma resposta internalista


ao questionamento cético. Você deve lembrar que esta
distinção é muito importante, quando se trata de justificar
nosso conhecimento.

Muitas das respostas que estudamos aqui cometiam o erro de


ver no questionamento cético uma pergunta mal construída ou
logicamente incoerente. A partir disto, forneciam respostas que
se constituíam em exemplos de conhecimentos particulares.
Mas a questão do cético é externa, isto é, é uma questão que põe
em dúvida todo e qualquer conhecimento. Responder ao cético,
mostrando‑lhe que sua pergunta não faz sentido, ou que existe
determinado objeto e, portanto, não há dúvida, não se constitui
numa boa resposta.

Imagine que você é Harry, que vivenciou aquela experiência


tenebrosa, que agora está buscando uma resposta a sua questão:
“Estarei sentido o que sinto agora em minhas mãos e pés? Estas
percepções são minhas ou são geradas pelo neurocirurgião
maligno?” A resposta que você deseja não é uma informação de
que suas palavras não fazem sentido ou de que, para fazer esta
pergunta, você deve ter alguma forma de verificar se a pergunta
pode ser respondida. Ora, é justamente isto que está em questão!

Unidade 6 147
Universidade do Sul de Santa Catarina

Este é o caso da proposta do Círculo de Viena. Para eles, o


ceticismo é apenas um entrave que herdamos de uma era passada
da Filosofia tradicional (lembre‑se de Quine tentando fazer
da epistemologia uma parte da ciência, ao naturalizá‑la); um
questionamento que está superado pela ciência e pela construção
correta de nossas afirmações.

Bem, tais argumentos não percebem que o cético filosófico é, de


fato, nosso companheiro de investigação. Ele nos força a justificar
os passos de nossa argumentação, mostrando a pertinência de
cada afirmação e a firmeza de seus fundamentos.

Assim, segundo o ponto de vista filosófico do Círculo de


Viena, as questões filosóficas devem acompanhar as descobertas
científicas e as necessidades do pensamento científico. A Filosofia
torna‑se um esclarecimento da linguagem da ciência.

Com isto, várias questões tradicionais da investigação filosófica


são colocadas de lado, ora como sendo sem sentido, ora como
sendo problemas de construção lógica. Este tratamento é
dispensado ao ceticismo. Contudo, a argumentação do cético é
bem mais coerente que uma mera troca de palavras ou alguma
espécie de erro nas inferências lógicas.

O cético está questionando os fundamentos de nosso


conhecimento, e não uma parte dele. Quando os filósofos do
Círculo de Viena tomaram o Ceticismo como uma questão não
digna de investigação, caíram vitimas do próprio ceticismo.
Quando Sexto Empírico publicou as hipóteses pirrônicas,
construiu a explicação da diferença entre o ceticismo e
o dogmatismo. Os filósofos dogmáticos são aqueles que
acreditam que a verdade só poderá ser estabelecida quando
obtivermos certezas quanto às essências dos objetos e ideias
que investigamos. Para um filósofo dogmático, segundo esta
classificação de Sexto Empírico, alcançamos a verdade e
acreditamos que ela é alcançável.

O filósofo cético, ao contrário, não é o que nega a possibilidade


da verdade. Antes, o cético acredita que a verdade não poderá
ser alcançada, mesmo que ela exista. Isto, contudo, não o impede
de continuar investigando as bases a partir das quais poderemos
construir a verdade.

148
Teoria do Conhecimento I

Síntese

Nesta unidade, aprendemos mais um pouco sobre o problema


lançado pelo Ceticismo frente ao conhecimento. Ficamos
sabendo que o Círculo de Viena possuía uma resposta ao
problema do conhecimento, e que tal resposta ligava as
afirmações de conhecimento com a verificação do que é dito na
realidade. Aprendemos também a relacionar nossas afirmações
com a realidade através do estudo do Princípio de Verificação.
Por fim, avaliamos a resposta que o cético forneceria à proposta
do Círculo de Viena quanto ao conhecimento.

Atividades de autoavaliação

Para aprofundar seus estudos, resolva as seguintes questões.

1) Segundo a doutrina principal do Círculo Positivista de Viena, todo


conhecimento é adquirido através da experiência. Assinale, dentre as
afirmações abaixo, quais as que estão de acordo com este princípio geral.
(  ) A Lógica é uma ciência que nos fornece conhecimentos
fundamentados nas experiências obtidas através de nossos
sentidos perceptivos.
(  ) A Lógica é uma ciência formal, pois lida apenas com as
formalizações da estrutura de nosso raciocínio, tal como na
Matemática. Portanto, a Lógica não trabalha com a experiência.
(  ) A Física é uma ciência natural que necessita trabalhar com
objetos do mundo e, portanto, exige que nossos conhecimentos
baseiem‑se em nossa experiência perceptiva.
(  ) A Psicologia poderá ser uma ciência que trabalhe com nossas
experiências com objetos do mundo se ela apenas se dedicar
a estudar os aspectos empíricos do ser humano, isto é: seu
comportamento e seu cérebro.
(  ) Todas as ciências humanas são interpretações da ação do ser
humano e, portanto, são ciências naturais que lidam com a
experiência obtida através de nossos sentidos.

Unidade 6 149
Universidade do Sul de Santa Catarina

2) Forneça cinco distinções entre “ciências formais” e “ciências naturais”.

3) Explique com suas palavras qual a vantagem oferecida pelo critério


de verificação elaborado pelo Círculo Positivista de Viena, para a
linguagem científica.

150
Teoria do Conhecimento I

Esta diferença é histórica


Saiba mais na Filosofia e remonta
a aceitação da obra do
Imanuel Kant. O Reino
Unido (a ilha) não aceitou
O ponto de vista do círculo de Viena é bem documentado na muito bem a filosofia de
literatura filosófica brasileira. Assim, você encontrará várias obras Kant e apegou-se ao estilo
sobre o tema desta unidade. Empirista do David Hume
e criou o estilo de filosofia
mais voltado para a lógica
STEGMULLER, Wolfgang. História da Filosofia
e a experiência. No início
Contemporânea. São Paulo: EPU/EDUSP 1878 (volume 1 e 2) do séc. XX surgiu o nome
É uma ótima obra de referência para tudo que discutimos nesta Filosofia Analítica. Por outro
unidade e nas anteriores. Stegmüller não tratou diretamente do lado, Filosofia Continental
tema do ceticismo, mas fornece muitas análises importantes sobre é o nome da filosofia que
segue a obra de Kant e seus
o Positivismo.
“subprodutudos” como
Nietszche, Schoppenhauer,
NORRIS, Christopher. Epistemologia. São Paulo: Artmed Hegel, Schelling... Assim,
Editora, 2008. Neste livro, este professor da Universidade de o mundo filosófico ficou
Cardiff trata do tema da possibilidade do conhecimento em vários dividido entre a filosofia
capítulos. O interessante da obra de Norris (apesar das críticas da Ilha (filosofia analítica)
e a filosofia Continental (o
quanto a sua correção epistemológica) é que tenta fazer uma ponte
resto da Europa).
entre a tradição analítica da Filosofia e a tradição continental.

Unidade 6 151
7
UNIDADE 7

Fundacionalismo

Objetivos de aprendizagem
„„ Compreender os principais argumentos do
Fundacionalismo em Teoria do Conhecimento.

„„ Analisar os principais problemas, do ponto de


vista fundacionalista.

„„ Compreender como surge o problema das


outras mentes.

„„ Entender os argumentos fundacionalistas frente ao


desafio cético de nosso conhecimento.

Seções de estudo
Seção 1 Argumentos fundacionalistas

Seção 2 Problemas no fundacionalismo

Seção 3 Fundacionalismo sem infalibilidade

Seção 4 Outras mentes

Seção 5 Possíveis respostas ao problema das


outras mentes

Seção 6 Fundacionalismo e ceticismo


Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Nesta unidade, você estudará o ponto de vista fundacionalista em
Teoria do Conhecimento. Vamos analisar o ponto de vista de que
nosso conhecimento se fundamenta em algumas crenças básicas
e infalíveis. Você analisará o que significa esta infalibilidade que
exigimos de nossas crenças básicas e quais as consequências para
nosso conhecimento diante da possibilidade de que não tenhamos
crenças tão firmemente fundamentadas. Compararemos o
ponto de vista fundacionalista com as exigências que faz o
ceticismo quanto à existência do mundo exterior. Encerraremos
esta unidade estudando um pouco a argumentação de Ludwig
Wittgenstein e as conclusões a que ela nos conduz, quanto ao
nosso conhecimento.

Muito bem, preparado(a)? Então vamos em frente.

Seção 1 – Argumentos fundacionalistas


Todas as unidades que você estudou até agora se
posicionam dentro de um determinado ponto de vista
sobre o conhecimento. Este ponto de vista é denominado
Fundacionalismo. Todos os outros pontos de vista sobre nosso
conhecimento partem de uma crítica ao Fundacionalismo, ou
de uma tentativa de superar suas dificuldades.

De qualquer forma, se você compreender adequadamente os


argumentos fundacionalistas, sua compreensão dos outros pontos
de vista ficará mais fácil.

Gostaria de salientar que, estudamos o desafio cético ao ponto


de vista fundacionalista. Nesta unidade, vamos estudar alguns
problemas identificáveis no fundacionalismo e, ainda, a sua
relação com o ceticismo no que remete ao nosso conhecimento.

O fundacionalismo possui uma ideia básica, qual seja, a de que


nossas crenças são divididas em dois grupos: no primeiro grupo,

154
Teoria do Conhecimento I

temos as crenças básicas, as quais não necessitam de base em outras


crenças; no segundo grupo, temos as crenças que são derivadas
destas, isto é, crenças que são constituídas com base em outras.

As primeiras crenças são o que podemos denominar


fundamento epistemológico, enquanto que as segundas são
uma superestrutura montada sobre estas primeiras crenças.
De acordo com o ponto de vista fundacionalista, a distinção
entre crenças básicas e crenças da superestrutura é elaborada
a partir do seguinte critério: as crenças básicas são aquelas
que dizem respeito à natureza de nossos estados sensoriais
ou perceptivos: nossa experiência imediata. Essas crenças
não necessitam suporte de outras: elas se mantêm por si
mesmas. Já as crenças que fazem parte da superestrutura
necessitam de apoio dessas primeiras crenças. Vamos
analisar um exemplo, a fim de fixar estes argumentos.

Quando falamos a respeito de “saber que horas são


nós estamos envolvidos por dois tipos de estruturas
diferentes. Uma primeira estrutura é nossa percepção.
Ou seja: primeiro, temos de saber que estamos
vendo um relógio, que estamos acordados, que não
estamos sonhando, que sabemos as cores do relógio
e assim por diante. Sobre estas crenças básicas,
erguemos a superestrutura de outras crenças, quais
sejam, saber o que é “ver” as horas, as diferenças
entre ponteiro dos minutos e ponteiro dos segundos
(se for um relógio analógico), o significado dos
números que aparecem no display ou tela do relógio,
o significado daqueles dois pontos um sobre o
outro e que separam os números, o significado das
letras “AM” e “PM” (se for um relógio digital) etc...

Assim, você percebe que o fundacionalismo separa em cada


conhecimento aquilo que pertence à experiência e o que é
baseado ou fundamentado na experiência. Sendo assim, o
fundacionalismo dá expressão a um dos principais argumentos
do empirismo: de que todo nosso conhecimento é derivado
da experiência. Segundo argumenta o fundacionalista,
qualquer crença que não for sobre nosso aparato sensório ou
nossa percepção, deverá ser justificada através das crenças da
experiência imediata.

Unidade 7 155
Universidade do Sul de Santa Catarina

Resumindo estes argumentos, poderíamos afirmar


que, para um fundacionalista, você consegue
dizer que horas são neste momento, porque
seu conhecimento sobre as horas poderá ser
fundamentado em sua experiência imediata. Ainda,
seu conhecimento dos significados dos símbolos
exibidos pelo visor ou display do relógio deverá ser
baseado em suas crenças da experiência imediata.

Retomando o caso de Harry na estória anteriormente contada:


para que Harry saiba que não é um cérebro em uma cuba, deve
ter certeza de estar vendo, sentindo, percebendo algo real, e não
uma ficção criada em sua mente pelo cientista maligno.

Mas você poderá indagar‑se por qual razão as crenças


da experiência imediata não são justificáveis através
de outras crenças; por qual razão estas crenças não
necessitam do suporte de outras.

Ora, estas suas questões trazem à tona o terceiro elemento


do fundacionalismo tradicional, qual seja: o de que, para o
fundacionalismo, nossas crenças sobre nossas experiências
sensoriais são infalíveis. É devido a este argumento que as
crenças da experiência imediata podem servir de base ou suporte
para outras crenças: elas se mantêm por si mesmas.

Veja, dado que este ponto de vista tenta explicar nosso


conhecimento, então, qual a tarefa que ele atribui à Teoria do
Conhecimento ou Epistemologia? Claro, você dirá, a tarefa da
Epistemologia é demonstrar como nossas crenças sobre o mundo
exterior, a ciência, sobre o passado e o futuro, sobre outras
mentes além da nossa, podem ser justificadas (ou reduzidas
a) pelas crenças infalíveis sobre nossos estados sensoriais. Se
conseguirmos fazer isto, então as exigências de conhecimento
correto estariam satisfeitas, se não, cairíamos no ceticismo.

Creio que agora você deve ter‑se dado conta de


que o questionamento do cético, o qual estamos
estudando neste texto, é extremamente perigoso
para a Epistemologia Fundacionalista.

156
Teoria do Conhecimento I

Quais seriam os motivos que levaram os epistemólogos ou


filósofos que estudam a teoria do conhecimento a adotar este
tipo de ponto de vista? Bem, existem alguns argumentos que
justificam sua adoção. Ainda que possamos discordar desses
argumentos ou encontrar algumas falhas quando os analisamos,
o certo é que os fundacionalistas possuem razões para adotar seu
ponto de vista. Vejamos.

Probabilidade
Bem, você deve saber que a probabilidade de algo ocorrer não
corresponde a uma certeza, isto é, nós sempre queremos saber
qual a probabilidade de que algo ocorra, e não a probabilidade
absoluta. Ou seja, a probabilidade é sempre relativa segundo
determinadas evidências. Por exemplo: se perguntarmos ao
probabilista “Qual a probabilidade absoluta de que Red Lady
ganhe o terceiro páreo desta tarde?”, ele redarguirá, afirmando
que não poderá nos fornecer uma probabilidade absoluta, e
sim uma probabilidade aproximada. Ou seja, dados os páreos
anteriores, as corridas anteriores e as posições de chegada e
partida de Red Lady, é provável que ganhe a corrida. Mas não
é absolutamente certo que será assim. Que tal colocar isto em
símbolos para visualizar melhor?

P = probabilidade
h = hipótese (que Red Lady ganhe o páreo desta tarde)
e = evidência

Assim, escrevemos P(h/e) e lemos “a probabilidade de que


Red Lady vença o páreo desta tarde, dadas as evidências
disponíveis”. Essas probabilidades são normalmente expressas
através de uma escala de 0 a 1 (zero até 1). Logo, se P(h/e)=1,
então é provável que Red Lady vença o páreo, mas se P(h/e)=0,
então é provável que Red Lady não vença. Contudo, se P(h/e) for
igual a 0,5, então é tanto possível que Red Lady ganhe o páreo,
quanto que o perca.

Unidade 7 157
Universidade do Sul de Santa Catarina

Nosso ponto central aqui é o seguinte: calculamos as


probabilidades de que algo venha a ocorrer a partir de algumas
evidências que temos à mão. Contudo, estas evidências, por sua
vez, devem ter alguma probabilidade anterior.

Ora, “e” é uma evidência com base em outras evidências, e assim


por diante, indefinidamente. Necessitamos de alguma coisa
certa, que funcione como uma base inquestionável, a partir da
qual possamos construir nossas probabilidades. Necessitamos
de evidências cuja probabilidade seja “1”. Essa base deverá ser
constituída pelas proposições de nossa evidência imediata.

Um dos mais eminentes fundacionalistas, C. I. Lewis, afirmou


certa vez: “A não ser que alguma coisa seja certa, nada mais
poderá ser provável”.

Bem, este é um dos argumentos elaborados para que aceitemos a


necessidade do Fundacionalismo. Existem outros, veja na sequência.

Argumento do regresso ao infinito


Chamamos de “regresso ao infinito” a atitude de buscar uma
prova para a prova que se está fornecendo, e assim por diante.
Assim, se eu tento provar para uma pessoa que o automóvel tipo
1.000 cilindradas gasta mais combustível que um automóvel de
2.000 cilindradas, terei de fornecer provas que satisfaçam o que
afirmo (estatísticas, casos passados, investigações científicas etc.).

Contudo, se a pessoa a quem pretendo provar minha afirmação


pedir uma prova para cada prova que lhe forneço, ela me estará
fazendo entrar em um regresso ao infinito. E assim, a não ser que
eu lhe forneça uma prova definitiva.

O ponto de vista fundacionalista busca fornecer este tipo de


prova final quando baseia todas as nossas crenças em crenças
mais básicas, retiradas de nossa experiência sensorial. Bem,
vamos ver como este argumento de regresso ao infinito serve
como motivador do Fundacionalismo.

Concordamos que nossas crenças são justificadas por meio do


apelo a outras crenças. Normalmente dizemos, nos estudos de

158
Teoria do Conhecimento I

epistemologia, que estas crenças são obtidas de forma inferencial,


isto é, através de crenças básicas inferimos outras crenças que
constituirão a superestrutura.

Por exemplo, quando acredito que, “ao tocar no


interruptor a luz acenderá”, estou justificado em
minha crença de maneira inferencial. Ou seja,
inferi de outras crenças ‑ que, por sua vez, não
foram adquiridas através de inferências ‑ que
já tive em ocasiões similares no passado com o
mesmo tipo de experiência de acender a luz.

Ora, segundo o argumento do “regresso ao infinito”, essas crenças


“passadas” deveriam ser provadas. Mas esta exigência faz com
que não consigamos elaborar nenhuma crença Assim, a ideia
do fundacionalista é que nossas crenças devem ser justificadas
inferencialmente, e, para tanto, algumas crenças não serão obtidas
através de inferências, elas serão crenças básicas e justificadas
por si mesmas. Se não admitirmos a necessidade dessas crenças
“não inferenciais”, nosso raciocínio não fará progressos. Não
conseguiremos elaborar nenhuma inferência justificada.

Bem, que isto é assim fica fácil de perceber por meio do seguinte
raciocínio: imagine que você possui uma crença A. Você a
justifica através de duas outras crenças B e C. Ora, você ainda
não provou que A é justificada. Você apenas disse que B e C são
justificadas, e que por isto A também é justificada. Sendo assim,
a justificação por inferência é condicional (depende da verdade de
outras crenças).

No caso que estamos analisando, A é condicionada à verdade


de B e C. Mas, se todas as crenças são justificadas da mesma
forma que A, então todas as nossas justificativas são condicionais,
pois cada uma depende de uma inumerável série de crenças
anteriores a ela. O argumento do regresso ao infinito deixa‑nos
na situação paradoxal de que nossas crenças inferenciais são todas
condicionais. Não existiriam crenças básicas, não condicionais.
Entraríamos num círculo vicioso, caso admitíssemos somente
crenças não inferenciais. Logo, a base principal do argumento
fundacionalista é que os dois tipos de crenças devem coexistir.

Unidade 7 159
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Infalibilidade e justificação
Os dois argumentos anteriores podem ser combinados para
que se forneça outro argumento favorável ao Fundacionalismo.
Assim, o argumento é que toda crença infalível é justificada
de maneira não inferencial. Uma crença infalível poderá ser
justificada, mas não retira sua justificação de outra crença
qualquer, ela não necessita de nenhum suporte inferencial.
Ao mesmo tempo, nada poderá minimizar a probabilidade de
que uma crença infalível seja verdadeira, pois ela é justificada, isto
é, não temos nenhuma razão para colocá‑la em questão, ou supor
que ela é falsa. Isto faz com que a ameaça do regresso ao infinito
seja afastada.

Vamos analisar mais um pouco este argumento


conjunto, a fim de compreendê‑lo bem.

Vamos trabalhar com o seguinte exemplo: alguém afirma que A é


uma crença verdadeira, pois está apoiada em B e C. As crenças B
e C devem ser consideradas crenças retiradas de nossa experiência
sensorial. Considerando este fato, B e C também são justificadas
sem recurso a nenhuma inferência, pois não temos motivos para
duvidar tanto de B quanto de C.

Nós teríamos motivos para duvidar de B e C se aceitássemos


que estas crenças são obtidas através de inferências. Neste
caso, exigiríamos provas de cada inferência. Entretanto, o
fundacionalista assume que B e C são crenças infalíveis, logo,
justificadas e, portanto, indubitáveis. A infalibilidade elimina o
regresso ao infinito.

160
Teoria do Conhecimento I

Seção 2 – Problemas no fundacionalismo


Bem, creio que você já conseguiu entender qual o objetivo do
fundacionalista e como ele elabora seus argumentos. Como já foi
dito mais acima, este ponto de vista na Epistemologia é o que
dá origem a todos os outros pontos de vista que tentam explicar
nosso processo de conhecer.

Contudo, o fundacionalismo apresenta muitos flancos, por


assim dizer, que podem ser questionados. Vamos nos concentrar
agora em um desses questionamentos, depois apresentaremos
mais alguns.

O fundacionalista exige que algumas de nossas crenças devem


ser infalíveis e justificadas. Segundo ele, estas crenças são
aquelas fundamentadas em nossa percepção ou em nosso aparato
sensório. Todas as crenças que forem assim fundamentadas
possuem o caráter de serem infalíveis. Entretanto, qual o
propósito de buscar este tipo de crenças? Sabemos que nossas
inferências, mesmo que baseadas em premissas infalíveis, podem
nos conduzir a conclusões falsas.

É interessante, a este respeito, um exemplo criado


pelo filósofo inglês Bertrand Russell para demonstrar
que, de premissas verdadeiras, podemos chegar a
conclusões que são falsas. O exemplo elaborado por
Russell é um pouco dramático: certa vez, um peru foi
comprado por uma família algumas semanas antes
do Dia de Natal.

Ocorre que esse peru era extremamente lógico e,


como não sabia o que iria ocorrer com ele, passou
a anotar cada dia que era alimentado. Depois de
algumas semanas, o peru havia construído uma
quantidade de premissas verdadeiras e elaborou
uma inferência cuja conclusão era “Amanhã serei
alimentado às 10 horas”. Contudo, naquele dia, o
peru foi para a mesa da família: era noite de Natal...

Unidade 7 161
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Ou seja, premissas verdadeiras podem nos conduzir a conclusões


falsas. Assim, é possível questionar o fundacionalista quanto à
necessidade das premissas infalíveis, uma vez que o raciocínio
inferencial poderá conduzir à falsidade.

Outro problema para o fundacionalismo são as crenças baseadas


em nossa percepção. Segundo o fundacionalista, estas crenças
são infalíveis. Contudo, por qual razão cometemos erros de
percepção? É certo que, muitas vezes, nossos sentidos nos
enganam, logo mesmo as crenças pretensamente infalíveis
poderão conter erros.

Os grandes fundacionalistas argumentam quanto a


isto o seguinte: não são nossas crenças oriundas da
percepção que estão erradas, e sim a maneira como
descrevemos nossas percepções.

O filósofo inglês Alfred J. Ayer (1910‑1989) argumenta que,


quando nos enganamos quanto à cor de um determinado objeto,
não é nossa crença quanto à cor que está errada, e sim a maneira
como descrevemos esta cor. Por exemplo: posso estar enganado
quanto à cor da fruta que está sobre a mesa, ela me parece laranja,
mas poderá ser uma fruta de certo tom de vermelho.
Ora, argumenta Ayer, este engano poderá ser creditado ao uso
das palavras “laranja” e “vermelho”, mas não à crença quanto à
fruta. Escolhi a palavra errada para descrever a fruta e, neste caso,
pode‑se argumentar que eu – que tenho a crença – ainda posso ter
uma crença infalível quanto à fruta que está sobre minha mesa,
mas não tive sucesso nas palavras escolhidas. Podemos corrigir
erros no uso das palavras de uma maneira padrão: você poderá me
lembrar ou mostrar a diferença entre as duas cores através de uma
carta de padronização de cores, por exemplo.

Outra forma de responder a esta questão seria argumentar


que, ainda que eu esteja errado quanto à cor do objeto sobre
minha mesa, devo estar certo de minha percepção. Ou seja:
quando você corrige, eu devo poder comparar minha crença
atual – errada – com o que você me diz – que a cor é vermelha.
Contudo, o que muda não é minha crença básica, e sim a
maneira de expressá‑la: seria um caso banal de troca de palavras.

162
Teoria do Conhecimento I

Uma terceira resposta seria argumentar que, ainda que eu possa


estar errado quanto à cor do objeto que está sobre minha mesa,
pode ocorrer que eu tenha cometido um engano na comparação
entre minha experiência passada e a minha experiência presente.
Ou seja: fiz uma comparação errada, pois a memória pode estar
errada. Mas minha percepção atual não pode estar errada:
percebo um objeto. Meu erro é atribuir, à experiência presente,
algo que foi passado.

Uma quarta resposta poderia ser a seguinte: se eu me engano


quanto à cor do objeto e você me corrige, então é necessário que
exista a possibilidade de comparação entre duas coisas diferentes.
Ou seja: minha crença atual é uma ocorrência e minha crença
passada também deve ser uma ocorrência, para que eu possa
compará‑las. Eu as comparo não para ver suas diferenças, mas
sim para saber em quais aspectos uma é igual à outra, pois foi
este o engano que cometi.

Bem, estas são respostas possíveis do fundacionalista ao


questionamento da infalibilidade das crenças baseadas em nossa
percepção. O contra‑argumento a estas respostas é: “Qual o
conteúdo de uma crença infalível?” Vejamos.

Como foi alegado mais acima – e o fundacionalista concordou


com isto – é possível que nos enganemos numa crença baseada
em nossa percepção. O exemplo é o caso do uso inadequado de
uma palavra. Ora, se posso me enganar desta forma, então a
crença infalível perde sua base. O que pode ser infalível, então, é
a crença de que algo parece laranja para meus sentidos.

Mas onde isto nos leva? Qual o conteúdo desta crença


assim modificada?

Pensemos no caso: você me pergunta qual a cor da fruta que está


sobre minha mesa e eu lhe respondo “Me parece que é laranja”.
Ora, você me dirá que não está interessado em como me parece,
e sim em saber qual a cor da fruta.

Mesmo assim, o fundacionalista poderá alegar que não se pode


estar errado quanto a como as coisas aparecem para nós, ainda

Unidade 7 163
Universidade do Sul de Santa Catarina

que eu possa estar enganado no que eu penso ser o que aparece


para mim. Há uma boa diferença entre as palavras aqui usadas.

Veja: eu afirmo que a fruta sobre a mesa é laranja e você me


corrige – acertadamente – que a cor da fruta é vermelha. Bem,
o argumento fundacionalista é que eu posso ter a crença correta,
mas usar uma palavra errada para descrever como as coisas
aparecem para mim. Seria um mero “erro verbal”.

Contudo, existem vários tipos de erro em questão. Você poderá


alegar que, quando estamos conversando distraidamente,
podemos cometer erros quanto ao nome das pessoas de
quem falamos. Outro caso é quando estamos com toda nossa
atenção voltada para o que estamos percebendo no momento
e cometemos o erro de escolher uma palavra que expressa essa
percepção de maneira errônea.

Neste último caso, você poderia não aceitar que apenas utilizei
uma palavra inadequada; você poderá argumentar que não sei
o que estou percebendo, pois se trata de um erro substancial.
Então, não apenas utilizei a palavra errada, mas também quanto
a o que é uma cor. Logo, cometo dois tipos de erros, quais sejam,
conceitual e substancial.

Ora, essas explicações fundacionistas para o erro quanto a uma


crença infalível produzem mais uma objeção: a de que uma
crença com menor conteúdo é menos passível de engano. Logo,
quanto menos uma crença contém, mais infalível ela é.

Em outras palavras: quando afirmo “o objeto x é laranja”,


comprometo‑me com a verdade desta crença de maneira
inequívoca, isto é, ela é ou verdadeira ou falsa. Se o objeto não for
laranja, minha crença estará errada e, portanto, não será infalível.

Contudo, considerando os argumentos fundacionistas que visam


solucionar esse problema, posso dizer que, quando me enganei
na atribuição de cor ao objeto, meu erro foi na escolha da palavra
“laranja” e não na crença perceptiva. Assim, o fundacionista
“salva” seu argumento de que as crenças perceptivas são infalíveis.

Qual o custo deste salvamento, entretanto?

164
Teoria do Conhecimento I

Ora, se em vez de me comprometer diretamente com a verdade


da crença, eu me comprometo apenas com o “assim me parece”,
então não estou pondo em jogo o conteúdo total da crença.
Responsabilizo‑me com apenas uma parte da crença, a atribuição
por mim de uma determinada palavra. O erro seria meu, e não
na crença básica.

Contudo, com este movimento, eu diminuí a quantidade de


conteúdo da crença: ela agora trata não do que algo é (esta é
a parte substancial da crença), mas do que me parece que é.
Bem: se levarmos este argumento mais longe, teremos de dizer
que uma crença sem conteúdo é mais infalível, pois está menos
predisposta ao engano. Isto, obviamente, é absurdo. As crenças
que geram conhecimento são informativas.

As crenças infalíveis são a base de onde construímos as


nossas outras crenças. Elas constituem nossos fundamentos
epistemológicos. Logo, devem possuir conteúdo suficiente para
apoiar nossas outras crenças, pois são a fonte da qual derivamos a
superestrutura de crenças.

Lembra o exemplo do saber dizer as horas?

Pois é: imagine que você pergunte a uma pessoa qual é a hora


e a pessoa responde-lhe: “me parece que são aproximadamente,
sem muita certeza e apesar de possíveis enganos, 16 horas”.
É perceptível que a pessoa deu-lhe uma resposta que não
a compromete totalmente com a certeza da hora exata. Ao
agir desta forma, a pessoa retirou conteúdo da crença, pois,
independentemente do que você pretende fazer ao saber as horas,
ficará em dúvida quanto ao momento apropriado de fazer o que
pretendia. Ao retirar conteúdo substancial da crença, a pessoa
retira-lhe conteúdo informativo ao mesmo tempo.

Este ponto é importante, pois lida com dois aspectos que são
necessários para que obtenhamos conhecimento:

„„ que o conhecimento deve ser capaz de conduzir ou


orientar para a construção de outros conhecimentos
baseados nele; e

Unidade 7 165
Universidade do Sul de Santa Catarina

„„ que afirmar que nosso compromisso com a realidade é


apenas limitado ao “assim nos parece” que é a realidade,
não é assumir compromisso nenhum com a informação.

Quando você compara esses argumentos fundacionistas,


percebe que são respostas fracas aos problemas que lhe são
apontados. Sendo assim, não se pode falar em crenças infalíveis.
O programa fundacionista não consegue manter seu equilíbrio
e tende a degenerar. Talvez se possa construir uma espécie de
fundacionismo sem a exigência das crenças básicas infalíveis.

Ufa: quantas informações, não é mesmo? Por isto, antes de


exploramos este aspecto do fundacionismo epistemológico, que
tal fazer um resumo de nosso percurso até aqui?

„„ O ponto de vista fundacionista nos diz que possuímos


dois tipos de crenças: básicas e não básicas;

„„ A diferença entre crenças básicas e crenças não básicas é


que as primeiras são obtidas de maneira direta, a partir
de nossa percepção, enquanto que as crenças não básicas
são obtidas através de inferências que usam as crenças
básicas como seu fundamento (ou premissas);

„„ A necessidade de admitirmos crenças básicas


fundamenta‑se nos seguintes argumentos: (i) argumento
da probabilidade – algo é provável se, e somente se,
existir algum tipo de evidência básica incorrigível. Se
nada é certo ou incorrigível, então nem o provável poderá
ser pensado; (ii) argumento do regresso infinito – se não
existem crenças básicas incorrigíveis, então toda crença
é fundamentada em outra crença, a qual se fundamenta
em outra crença, e assim por diante ad infinitum.
Para evitar este regresso ao infinito, é necessário que
algumas crenças tenham a característica fundamental
de serem incorrigíveis ou infalíveis; e (iii) argumento
da infalibilidade e da justificabilidade – toda crença
básica é não apenas infalível mas também justificada
não inferencialmente. Ou seja, uma crença básica
infalível deve ter a capacidade de eliminar qualquer tipo
de dúvida quanto à sua verdade. Se não for assim, uma
crença infalível poderá ser inferencial. Mas isto nos lança
no argumento do regresso ao infinito.

166
Teoria do Conhecimento I

Então, uma crença infalível não admite razões para que


duvidemos dela. Por esta razão, uma crença infalível não pode
ser justificada inferencialmente, isto é, ela não tem por base
outra crença. A base de uma crença infalível é a verificação
direta, não inferencial.

Você lembra que lançamos uma série de contra‑argumentos


sobre estas teses básicas do fundacionismo. O principal até agora
é que o fundacionismo exige uma característica das crenças
(terceiro marcador, citado acima) que não se pode fornecer, qual
seja, não conseguimos construir crenças básicas completamente
imunes ao erro. O fato é que seria muito importante que
conseguíssemos construir crenças infalíveis, imunes ao erro ou ao
questionamento. Contudo, também é fato que não conseguimos,
em todas as circunstâncias, cumprir com esta exigência.
Sendo assim, a melhor estratégia é abrir mão da exigência de
infalibilidade. Mas, se o fundacionista abrir mão dessa exigência,
seu programa epistemológico degenera. Até aqui nós chegamos.

Que tal, agora, traçar um paralelo entre esses


argumentos fundacionistas e o caso de Harry?

Você lembra do problema de nosso amigo Harry: ele sofreu um


abalo em sua confiança quanto ao que sabe sobre a realidade e
sobre si próprio. A experiência que ele presenciou no laboratório
mais o que lhe disse Margot sobre ele já ter sido submetido a uma
operação de retirada do cérebro fizeram‑no questionar‑se sobre
o que conhecia de fato. Bem, vamos supor que Harry, com todas
estas dúvidas, encontre um fundacionista clássico.

Harry lhe perguntaria: “Qual a base que tenho para inferir que
não sou um cérebro em uma cuba neste momento?”

O fundacionista responderia a Harry, afirmando que ele deveria,


antes de tudo, elaborar uma quantidade de crenças básicas
infalíveis, para, só então, construir uma superestrutura de crenças
derivadas dessas primeiras. Para elaborar estas crenças básicas,
Harry deveria recorrer aos seus sentidos, pois estes lhe dão crenças
infalíveis e todo seu sistema de crenças se derivaria destas.

Unidade 7 167
Universidade do Sul de Santa Catarina

Ora, você deve estar percebendo que há um grave engano


aqui. Lembre‑se da argumentação do cético: nossos sentidos já
nos enganaram uma vez e, sendo assim, não podemos confiar
neles novamente, logo necessitamos de uma base indubitável
para construir nosso conhecimento. E esta base não pode ser
fundamentada em nossa percepção.

Ainda mais: Harry não tem dúvida quanto a quais são suas
crenças, sua dúvida é quanto à verdade delas. O cientista maligno
eliminou a sua certeza em crenças infalíveis, ao lhe revelar que ele
já havia sido um cérebro em uma cuba. Harry não sabia se agora
estava, ou não, com seu cérebro em uma cuba.

A sugestão do fundacionista não acrescenta nada para solucionar


o problema de Harry, pois Harry não consegue construir crenças
que sejam infalíveis. Considerando este tipo de argumento, o
fundacionista poderá fornecer uma solução, eliminada a exigência
de crenças infalíveis.

Mas que tipo de fundacionismo seria este? Vejamos na próxima seção.

Seção 3 – Fundacionalismo sem infalibilidade


Chegamos ao ponto em que o fundacionalista não possui
mais argumentos para manter sua exigência de crenças básicas
infalíveis e não inferenciais. Entretanto, ele ainda poderá
argumentar o seguinte:

— Muito bem, você demonstrou que minha exigência


era exagerada. Contudo, continuará ele, o fato de você ter
problematizado minha ideia de que existem crenças básicas
infalíveis, a ponto de eu ter de abrir mão delas, não provou que
não existem crenças básicas! Ainda mais: você argumentou que
sempre é possível reduzir a justificação de uma crença básica,
mas, em nenhum momento, provou que não é possível aumentar
a possibilidade de justificação de uma crença básica. Logo,
argumentará o fundacionalista, ainda posso manter meu programa
epistemológico em funcionamento.

168
Teoria do Conhecimento I

Ora, parece que o fundacionalista apresentou um argumento


forte. Contudo, se você notar, ele foi obrigado a fazer um grande
esforço argumentativo e abriu mão de um aspecto importante
de seu programa. Você conseguiu ver qual? Bem, mesmo que
este ponto já lhe esteja claro, é sempre bom esclarecer mais.
O fundacionalista alegava o seguinte:

„„ existem duas formas de justificação das crenças:


inferencial e não inferencial. A justificação inferencial
é elaborada a partir de outras crenças; a justificação
não inferencial é elaborada de maneira direta pelos
nossos sentidos (ou percepção); e

„„ crenças básicas não são justificáveis, mesmo em parte,


por apelo a outras crenças. Crenças básicas devem ser
justificadas de outra forma.

Assim, ele deseja manter tanto (a) quanto (b). Porém, a mudança
que ele operou em seu programa, a fim de mantê‑lo de pé,
implicará o fato de já não termos crenças básicas não inferenciais.

Vamos entender melhor: você lembra de um dos argumentos


básicos do Fundacionalismo, discutido na seção anterior? Eis
aqui: “o fato de não conseguir estabelecer crenças não inferenciais
de forma alguma elimina a possibilidade de se construírem
crenças básicas.

Entretanto, ao fazer isto, o fundacionalista abriu mão de sua


exigência (b). Agora crenças básicas podem ser justificadas. Ao
mesmo tempo, quando admite que crenças básicas podem ser
justificadas através de outras crenças, ele também deve abrir mão
de seu argumento do regresso ao infinito.

Você deve estar lembrado de que este argumento era lançado


como base para a necessidade de elaborar o Fundacionalismo.
Desta forma, ele claramente cai no círculo da justificação da
justificação, e assim por diante.

Lembra‑se de que este era o argumento que


fundamentava a necessidade do Fundacionalismo?

Unidade 7 169
Universidade do Sul de Santa Catarina

Entretanto, o fundacionalista ainda mantém a ideia de que


existem crenças básicas, que as crenças fundadas em nossos
estados perceptuais presentes ou atuais são mais estáveis que
aquelas crenças derivadas de outras crenças.

Bem, isto mantém a exigência empirista de que todo nosso


conhecimento é proveniente da experiência. Mas abriu mão da
infalibilidade das crenças básicas; com isto abriu a porta para o
argumento do regresso infinito.

Assim, deverá fornecer uma resposta à seguinte questão: “Se


eliminamos a infalibilidade das crenças básicas, não estamos
permitindo que uma crença básica fundamente‑se em outras
crenças, e assim ao infinito?”. Se o programa fundacionalista
pretende manter o argumento de que seu programa elimina
o regresso ao infinito, deverá fornecer uma resposta à questão
acima, ou terá de abandonar o argumento do regresso ao infinito
como sendo um perigo (para o conhecimento) e que torna
necessário o Fundacionalismo. Vejamos:

O fundacionalista deve estar pensando nas seguintes exigências


para que uma crença elimine o regresso ao infinito:

I – crenças que são justificadas por algo que não seja outra crença;

II – crenças que justifiquem a si mesmas; e

III – crenças que não necessitam justificação.

Estas exigências são necessárias para suprir a eliminação da


infalibilidade. O fundacionalista que aceitar (I) e (II) estará
aceitando (III), considerando que pode ser derivada de (II).

Por outro lado, qualquer crença que não possua as características


anteriormente descritas deve ser tomada como não sendo uma
crença básica. Ainda, qualquer uma dessas características permite
que eliminemos o argumento do regresso ao infinito.
Crenças que se comprometem
diretamente com a verdade da
Considerando que o fundacionalista apenas admite crenças
informação que enunciam.
que possuam propriedade epistêmica substancial e
considerando que a infalibilidade é uma destas propriedades,
então o fundacionalista admitirá apenas a característica (II).

170
Teoria do Conhecimento I

A característica (I) poderia ser cumprida por meio de nossa


experiência, mas ainda não foi provado que toda experiência é
incorrigível. Ao mesmo tempo, a característica (III) é derivada de
(II). Logo, ao aceitar (II), também poderá aceitar (III). Mas, e se
não dispusermos de nenhuma crença com a característica (II), o
que restará da infalibilidade?

Ora, sejamos tolerantes.

Talvez o fundacionalista esteja dizendo o seguinte: por


infalibilidade eu quero dizer “certeza” e “incorrigibilidade”.
Assim, ele afirma que a certeza é uma qualidade de uma crença
básica e que, junto a isto, elimina qualquer questionamento. Por
exemplo: se é certo que são 11 horas, não há por que duvidar
(supondo que existam crenças com este grau de certeza).

Ao mesmo tempo, se não há como duvidar de uma crença que


tem a característica da certeza, então não é possível corrigi‑la.
Bem: não é de todo claro se estes dois conceitos são sinônimos de
infalibilidade ou se podem substituir a infalibilidade (será que o
“certo” e “incorrigível” também é infalível?).

De qualquer modo, para entendermos estas novas definições,


basta lembrarmos o que nos disse Descartes: a afirmação “penso,
logo existo” é indubitável e certa, isto é, é uma afirmação
incorrigível (veja esta discussão na Unidade 2). Não se pode
afirmar, contudo, que os fundacionalistas aceitariam a verdade
de Descartes, pois suas verdades são oriundas da razão, e não da
experiência. Ou seja: para o fundacionalista, apenas são crenças
básicas aquelas oriundas dos estados perceptuais, enquanto
Descartes fundamenta toda sua argumentação em verdades que
não têm fundamento em nossas experiências.

Os filósofos que investigam temas da Epistemologia ou Teoria


do Conhecimento forneceram algumas alternativas ao ponto de
vista fundacionalista, visando resolver os problemas ainda sem
resposta. Não é o caso de traçar aqui essas alternativas. O que se
pode dizer dessas alternativas é que diminuíram (mitigaram) as
exigências da argumentação fundacionalista, numa tentativa de
mantê‑lo (o ponto de vista).

Unidade 7 171
Universidade do Sul de Santa Catarina

Desta forma, como você já pôde observar, qualquer mudança


nos argumentos básicos do Fundacionalismo parece
eliminá‑lo. Ou, por outras palavras: manter a argumentação
fundacionalista com algumas mudanças é, ainda, uma espécie
de Fundacionalismo? Alguns autores dirão que sim, outros
autores preferem dar outro nome.

Mas, mesmo que os argumentos acima possam ser minimizados,


existe outra fonte de problematização para o Fundacionalismo.
Vamos examinar este problema na seção seguinte.

Seção 4 – Outras mentes


Nosso tema nesta seção é a investigação de um problema que o
Fundacionalismo traz consigo. Para compreender a origem do
problema, vamos relembrar alguns dos argumentos básicos do
Fundacionalismo. Nós já tratamos destes argumentos, mas é
sempre bom mantê‑los sob nossa visão.

Vimos que o fundacionalista é alguém comprometido com um


programa epistemológico que visa garantir nosso conhecimento
objetivo do mundo que nos cerca. Para tanto, o fundacionalista
lista os seguintes argumentos:

„„ todo conhecimento provém da experiência;

„„ nossas crenças sobre a ciência, o mundo externo, passado


e presente, outras mentes, devem ser fundamentados em
nossas experiências sensoriais;

„„ é necessário que algumas crenças sejam certas


e inquestionáveis, para que se possa conceber a
probabilidade de que algo ocorra, ou não;

„„ nossas evidências que servem de base para afirmações de


conhecimento devem ser infalíveis;

172
Teoria do Conhecimento I

„„ nossas crenças são divididas em dois grupos: crenças


básicas infalíveis e crenças derivadas de crenças básicas.
As crenças derivadas compõem a superestrutura de
nosso conhecimento;

„„ é necessário que existam crenças infalíveis sobre as quais


baseamos nossas crenças derivadas, as quais são obtidas
por inferências;

„„ se não existirem crenças básicas infalíveis, caímos num


regresso infinito de crenças baseadas em outras crenças,
e assim por diante; e

„„ portanto, é necessário que o conhecimento seja


fundamentado em crenças básicas infalíveis, obtidas
por meio de nossos sentidos, as quais servem de base
para inferirmos outras crenças, e assim construir uma
superestrutura de conhecimento.

A partir destes argumentos, o fundacionalista elabora


seu programa epistemológico. Contudo, vimos que
estes argumentos se tornam problemáticos devido ao
questionamento da existência de crenças infalíveis.
Vimos também que manter o Fundacionalismo sem
essa exigência é mitigar seu propósito, ainda que não
desestruture completamente o programa fundacionalista.

Agora, vamos apontar o problema ligado mais especificamente


ao ponto de partida do fundacionalismo: a ideia de que obtemos
crenças através de nossas experiências sensoriais. Segundo
raciocina o fundacionalismo, cada pessoa é capaz de ter
experiências sensoriais iguais às outras demais pessoas.

Este é o princípio básico do Empirismo. Entretanto, há um


grave problema aqui, e, talvez, o maior problema que enfrenta o
programa fundacionalista, qual seja, se conhecemos a partir de
nossas próprias experiências, então cada pessoa possui as suas
próprias experiências sensoriais. Além disto, as experiências
sensórias de cada pessoa serão experiências privadas, pois apenas
ela as tem. Sendo assim, como saber que outras pessoas sentem,
pensam e têm sensações, umas iguais às outras.

Unidade 7 173
Universidade do Sul de Santa Catarina

Como saber se as pessoas que vemos possuem, ou não,


uma mente que recebe as experiências?

Para responder a estas questões, o fundacionalista deverá mostrar


que tem um método de conferir quem tem, ou não, uma mente e,
além disto, como as experiências, sendo pessoais e intransferíveis,
podem ser iguais para todas as pessoas.

Certamente que este argumento cético só pode se elaborado


devido à insistência do fundacionalista de que nossas crenças
básicas infalíveis são obtidas de nossas experiências sensoriais.

O cético, a princípio, não se oporia a determinadas exigências


do fundacionalista. Por exemplo, as exigências que indicamos
nos itens (c), (d), (e), (f) e (h) acima. Também não se oporia
à necessidade de crenças infalíveis, pois parte do pressuposto
de que temos conhecimento somente se dispusermos de bases
não inferências e não fundamentadas nas experiências sensoriais.
Contudo o cético exigiria maiores esclarecimentos, quando o
fundacionalista retira suas crenças infalíveis dos dados sensoriais.

Este é um problema que já estudamos nas unidades


anteriores, ao abordarmos o ponto de vista do
Círculo Positivista de Viena e alguns aspectos da
argumentação de George Moore e John Austin.

Nosso problema agora é com o seguinte aspecto do argumento


fundacionalista: como saber que outras pessoas possuem as
mesmas experiências sensoriais que nós? Este problema é
tradicionalmente denominado “problema das outras mentes”.

O problema surge de dois argumentos básicos do empirismo:


primeiro, de que formamos nossas crenças básicas através de
nossos sentidos; e, junto a este, do argumento de que nosso
conhecimento inicia por meio de experiências particulares de
cada pessoa que conhece.

O primeiro argumento já é nosso conhecido; quanto ao segundo


argumento, ele é formulado pela primeira vez por Descartes

174
Teoria do Conhecimento I

em suas Meditações Filosóficas. Nesta obra, Descartes insiste


que “eu sei que existo, pois sei que eu penso” ou “mesmo que
o gênio maligno tente me enganar, sei que duvido e, portanto,
sei que penso”.

Estas afirmações cartesianas marcam um ponto de vista de


primeira pessoa na Epistemologia, isto é, nosso conhecimento
é oriundo das experiências que cada um de nós possui, e não
de uma espécie de “estoque” de conhecimento da cultura ou
de nossos antepassados. Neste caso, não é possível falar de
conhecimento partilhado, mas sim de conhecimento pessoal.

Pois bem, este é o ponto básico para o problema das outras


mentes: como sei que os outros possuem mentes como eu? Creio
que você compreendeu de onde surge esta questão e qual a sua
amplitude. O fato é que necessitamos responder a uma questão
que coloca toda nossa vida em comum em dúvida, isto é, sabemos
que existem outras pessoas ao nosso redor, sabemos que elas
têm comportamentos parecidos com os nossos, que demonstram
amizade e sentimentos como nós.

Todavia, não temos provas para afirmar que estas pessoas não
são autômatos, robôs treinados para agirem de uma determinada
forma, a saber, a forma como seres humanos agem. Sabemos
por nós o que é agir como um ser humano, ter sentimentos e ter
experiências, mas não podemos atribuir “mente” a outras pessoas
apenas com base em nosso caso pessoal.

Parece que necessitamos de provas mais contundentes do que


apenas afirmar que as pessoas têm mente por se comportarem
como nós nos comportamos. Vamos analisar algumas respostas
que foram fornecidas a este problema.

Mas, antes disto, vamos entender por qual razão – ou


quais razões – este problema é importante.

Em primeiro lugar, como em todo questionamento filosófico,


nos é exigido que apresentemos argumentos, e não fatos. Por
exemplo: afirmar que nosso(a) colega de trabalho não é um
autômato apenas porque sabemos o que são autômatos, não é

Unidade 7 175
Universidade do Sul de Santa Catarina

uma resposta suficiente. Esta é uma resposta que apela ao senso


comum. Mas já estudamos os argumentos que se baseiam no
senso comum e percebemos que eles não fornecem boas respostas
filosóficas por não serem argumentos filosóficos, e sim propostas
de práticas do dia a dia. Ou seja: o fato de eu tratar meus amigos
como pessoas não é uma prova filosófica de que são pessoas, mas
sim uma maneira de agir para com eles.

Em segundo lugar, a importância do problema também reside


no fato de que tratamos pessoas que estão ao nosso redor como se
elas fossem iguais a nós, mas a única prova que temos é o nosso
próprio caso. Por exemplo: sei que meu vizinho está com dor,
porque ele se comporta tal como eu, quando estou com uma dor.
Da mesma forma, sei o que significa a tristeza que meu colega
alega ter, por eu também já ter sentido tristeza.

Em terceiro lugar, como sei o que se passa na mente de outra


pessoa? Não pensamos muito nesta questão, apenas agimos com
as pessoas de uma maneira “padrão”. Entretanto, quando nos é
pedido que fundamentemos a nossa maneira de agir, parece que
o único fundamento que conseguimos apresentar é o de que estas
pessoas se parecem tanto com nós mesmos, que seria difícil dizer
que “não” são pessoas de fato.

Mas isto, como você já viu, não é uma prova suficiente. Não me
é permitido extrapolar o meu caso pessoal para todos os outros
casos. Por exemplo: se sinto uma dor no pé e meu colega também
alega ter uma dor no pé no mesmo instante, nada nos garante que
estamos falando da mesma dor: meu colega fala da dor que ele
sente e eu falo de minha dor.

Em quarto lugar, se vivemos em um mundo em que o


comportamento das pessoas está dissociado de suas mentes,
não encontramos evidências no mundo atual de que as coisas
não são dessa forma. Ou seja: conversamos, nos divertimos,
compreendemos e somos compreendidos pelas pessoas, mas isto
em nada aponta para uma diferença entre elas, a de terem uma
mente ou não terem uma mente. Por exemplo: o fato de meu
colega contar‑me que sonhou e descrever seu sonho não é uma
prova de que ele tem uma mente.

176
Teoria do Conhecimento I

Pode ser visto simplesmente como um caso de comportamento


igual ao comportamento de um ser humano, mas não uma prova
de que ele é um ser humano. Logo, o problema das outras mentes
também atinge nossa compreensão do que faz com que um ser
seja um ser humano.

Você deve se lembrar do filme Blade Runner.

O filme conta‑nos a estória de um caçador de


androides, isto é, de autômatos que foram usados para
trabalhos e guerras como soldados e que se revoltam
com o fato de que teriam de ser “desligados”, por já não
terem utilidade para o ser humano.

O problema que o filme levanta é este: seria possível


construir um androide tão parecido com o ser humano
que fosse quase indistinguível deste? Então, o que faz
com que um ser humano seja o que é? Seu corpo? Seu
comportamento? Mas tudo isto não pode ser simulado
por uma máquina?

Como você pode perceber, não se trata de um problema tão simples.

Seção 5 – Possíveis respostas ao problema das


outras mentes
Uma tentativa de resposta ao problema das outras mentes
pode ser encontrada no clássico texto de John Stuart Mill, de
1889, intitulado Uma Análise da Filosofia de Sir Hamilton.
O argumento é denominado “argumento da analogia” e sua base
é a seguinte: realmente, não temos provas de que as pessoas que
nos cercam sejam de fato pessoas. Nada nos fornece uma razão
contundente a favor disto. Contudo também não parece ser o
caso que tenhamos provas suficientes do contrário, isto é, de
que não sejam pessoas. O argumento de Mill, em suas próprias
palavras, diz o seguinte:

Unidade 7 177
Universidade do Sul de Santa Catarina

Eu concluo que outros seres humanos têm sentimentos como


eu, pois, em primeiro lugar, eles têm corpo como eu, o qual
eu sei ser o antecedente de ter sentimentos; e porque, em
segundo lugar, eles exibem os mesmo atos e outros sinais
exteriores, os quais em meu próprio caso sei por experiência
serem causados por sentimentos. Estou consciente em
mim mesmo de uma série de fatos conectados através de
uma seqüência uniforme, a qual o início é a modificação
em meu corpo, o termo médio é o sentimento e o termo
final é o comportamento exterior. Para o caso de outros
seres humanos, eu tenho a evidência de meus sentidos para
o primeiro caso e para o último, mas não para o termo
intermediário. Vejo, de fato, que a seqüência entre o primeiro
e o último termo é tão regular quanto no meu próprio caso.
No meu próprio caso sei que o primeiro termo produz o
último através de um elo intermediário e não o poderia
produzir sem ele. A experiência, portanto, obriga‑me a
concluir que deve haver um elo intermediário, o qual deve ser
o mesmo nos outros, tal como é em mim [...] Devo, portanto,
crer que eles são ou humanos ou autômatos. Contudo creio
que são seres humanos e que estão vivos, isto é, por supor que
neles há o mesmo elo que existe em mim e do qual eu tenho
experiência e que em todos os outros aspectos é similar em
outros seres humanos. Stuart Mill apud David Cockburn,
An Introduction to the Philosophy of Mind, Houndmills,
Basingkstokes, 2001, p. 81.

Ora, você pode perceber que este argumento de Stuart Mill parte do
caso pessoal para o caso de outras pessoas. Mill admite não saber se
as outras pessoas possuem os mesmos sentimentos que ele, contudo,
devido ao fato de apresentarem o mesmo comportamento exterior,
conclui que devem ter os mesmos sentimentos. O argumento parte
do princípio de que o meu caso pessoal constitui uma base sólida
para inferir o caso dos outros.

O raciocínio é construído em forma de analogia. Ao mesmo tempo,


o argumento é uma indução, isto é, parte do caso particular para o
caso geral – de uma pessoa para o caso de todas as pessoas – e, neste
caso, é um argumento fraco, pois um caso é pouca evidência para
inferir algo com validade para todos os casos iguais.

Por outro lado, o argumento parte do princípio de ser possível – diante


do fato de as pessoas agirem tal como nós –, elaborarmos a hipótese
de que também tenham mentes tal como nós.

Se temos pouca evidência para aceitar o caso de Stuart


Mill, também temos poucas evidências – dadas as premissas

178
Teoria do Conhecimento I

de Mill – para dizer que ele está enganado em sua hipótese.


Não é tão difícil aceitar a hipótese de Mill. O problema com seu
argumento está no seguinte:

a) separar o mental (inobservável) do comportamento


(observável); e

b) assumir que, dada esta separação, seja possível saber o


que significa outras pessoas terem mentes como eu.

Podemos denominar estes argumentos,


resumidamente, de (a) argumento da separação e
(b) argumento da compreensão.

Quanto a (a), podemos dizer que faz concessões ao ceticismo, ou


seja, afirma que o mental e o comportamental estão relacionados
de maneira contingente. Seria dizer: o mental poderia existir
sem o comportamental e, pelo que podemos saber, é assim que as
coisas são.

Contudo, Mill concede no primeiro passo – que a relação entre


mente e corpo é contingente –, mas nega uma segunda etapa,
isto é, que não exista nenhuma ligação. Por tudo que podemos
observar de outros seres humanos parece haver alguma ligação,
pois não temos provas conclusivas do contrário. Por este ponto de
vista, o argumento da analogia é necessário, por não possuirmos
nenhuma ligação entre comportar‑se como quem tem uma
mente e ter uma mente.

Quanto a (b), o argumento assume que é possível


compreendermos o que significa para outras pessoas que tenham
estados mentais. Segundo o argumento, eu sei o que é alguém
estar com dores no corpo, pois eu mesmo já as senti em meu
corpo, isto é, eu já as senti. Assim, sei o que é ter determinados
sentimentos a partir de um ponto de vista privilegiado: o meu
próprio. Mas este ponto de vista privilegiado também pode ser
o motivador de uma impossibilidade: de que eu possa atribuir a
outros algo que apenas eu sinto ou senti. Mesmo assim, ainda é
possível argumentar – mantendo o argumento da analogia – que
nada existe contrário a afirmar que outras pessoas tenham
mentes, a partir do fato de se comportarem tal como eu.

Unidade 7 179
Universidade do Sul de Santa Catarina

Contudo, os problemas com o argumento de Mill estão


escondidos nas inferências que podemos retirar dos passos (a) e
(b). Assim, a partir do momento que aceitamos que o mental está
separado do corporal ou do comportamento (a), vemo‑nos na
estranha situação de conceber uma dor que não é nossa, com base
na nossa dor. Ora, a dor no joelho do outro não é a dor no meu
joelho, logo a dor dele não é minha. Assim, não posso dizer que
ele tem uma dor como eu tenho, pois a dor dele não dói em mim
(obviamente). Então afirmar que a pessoa tem a mesma dor que
eu tenho não é correto, pois a parte (a) do argumento da analogia
afirma que há uma separação entre mente e corpo.

Há aqui a questão de propriedade da dor ou do sentimento, isto


é, devo considerar que as dores de uma pessoa estão ligadas a ela,
e não a mim e, com isto, que não posso dizer como é sentir a dor
dela. Apenas posso falar de minhas dores. Assim, se admitirmos
(a), então (b) não se torna possível. De fato, o que o argumento
da analogia faz é uma opção pelo solipsismo, isto é, pela ideia de
que apenas existe a experiência pessoal.

Uma maneira de eliminar este problema seria partilhar do


ponto de vista behaviorista quanto ao mundo mental, que
afirma não ser a dor algo mental, e sim físico, e que consiste no
Pressuposto significa que uma
circunstância ou acontecimento
fato de os eventos mentais serem redutíveis a eventos físicos, a
é antecedente a um outro, sem saber, o comportamento.
que seja explicitado. Também
significa “dar a entender” Assim, estar com dor é comportar‑se de uma maneira
algo sem pronunciá-lo. específica quanto ao corpo. Por exemplo: quem tem dor de
cabeça comporta‑se de maneira diferente de quem não tem
dor alguma, e a dor, de fato, consiste neste comportamento.
Se não pretendemos assumir uma forma de behaviorismo
agudo, podemos aceitar uma forma de disposicionalismo.
O disposicionalismo argumenta que ter uma dor é possuir uma
disposição, neste caso, a disposição de comportar‑se de uma
forma determinada.

Outra resposta seria abandonar a exigência de que temos crenças


básicas infalíveis ou inquestionáveis e afirmar que temos um
sistema de crenças interligadas entre si, no qual uma crença
depende da outra numa rede estruturada. Este ponto de vista
é denominado coerentismo. Não é o caso de entrarmos na
discussão deste ponto de vista aqui.

180
Teoria do Conhecimento I

A argumentação do ponto de vista coerentista envolve o problema


de sabermos como um sistema de crenças possui ligação empírica
com a realidade, ou, em outras palavras: se todas as crenças estão
ligadas entre si, como saber onde a estrutura de crenças inicia?

Bem, não vamos tratar deste ponto aqui. Na próxima seção,


vamos abordar, a saber, a possibilidade lançada por Ludwig
Wittgenstein de que não há separação entre comportamento e
mente. Ou seja: uma resposta possível ao problema das outras
mentes. Por fim, faremos uma análise da argumentação cética
quanto ao fundacionalismo.

Seção 6 – Fundacionalismo e ceticismo


Na seção anterior, apresentamos duas repostas ao problema
das outras mentes. Aprendemos que este problema não é uma
simples dúvida, mas sim uma questão que atinge toda a nossa
vida, nossa relação com as outras pessoas e nossa relação com o
conhecimento que afirmamos ter de outras pessoas. O problema
das outras mentes atinge a nossa concepção de o que é uma
pessoa ou um ser humano.

Concluímos que a resposta a este problema, o argumento da


analogia elaborado por Stuart Mill, parte do princípio que apenas
sabemos que nós somos humanos e que apenas nós sabemos que
temos sentimentos e crenças. As outras pessoas, por tudo que se
sabe, poderiam ser autômatos sem mentes ou “zumbis”.

Mostramos que o erro do argumento da analogia é aceitar que


há uma separação entre comportamento e mente e, a partir disto,
concluir erroneamente que é possível compreender a mente de
outras pessoas apenas com base em seus comportamentos. Assim,
o argumento da analogia concede demais ao cético, a tal ponto que
perde o objetivo na tentativa de fornecer uma solução ao problema.

Terminamos aquela seção com a possibilidade de que ou se


abandona a ideia de crenças básicas e partimos para uma teoria da

Unidade 7 181
Universidade do Sul de Santa Catarina

coerência entre as crenças, ou tentamos eliminar o problema das


outras mentes e manter alguns resquícios do fundacionalismo.

Vamos agora examinar o argumento de Ludwig Wittgenstein


quanto ao problema da separação entre mente e comportamento,
para vermos se é possível salvar algo do Fundacionalismo.

A argumentação de Wittgenstein é elaborada na sua obra


Investigações Filosóficas, publicada em 1952, após sua
morte. Esta obra não é um texto característico da produção
filosófica tradicional, isto é, Wittgenstein escreveu na forma
de seções numeradas, mas não separou as seções por assunto.
Por isto, muitas pessoas leem as Investigações Filosóficas e as
interpretam do seu modo.

Entretanto, é bem difícil manter uma linha direta de raciocínio a


partir do texto. Apesar disto, a obra de Wittgenstein não é longa
e é de fácil leitura, tão fácil que, ao terminá‑la, temos de voltar
ao início, pois parece que entendemos tudo, que não há problema
algum. Bem, Wittgenstein inicia seus argumentos mostrando
que a nossa concepção de linguagem está equivocada.

Mas o equívoco é filosófico, e não do senso comum: para ele, não


há problemas filosóficos no senso comum e, portanto, este não
é uma fonte de respostas aos problemas da Filosofia. Antes, é a
mente do filósofo que deve ser “tratada”, para que possa chegar
até o senso comum e abandonar os questionamentos os quais são
fruto do mau entendimento da linguagem.

Então já temos um primeiro ponto: as questões filosóficas são


fruto de problemas de uso da linguagem. A partir deste primeiro
ponto, Wittgenstein constrói uma argumentação que visa mostrar
as incoerências de admitirmos que nosso uso da linguagem
principia pelo conhecimento ou pela experiência.

Também Wittgenstein estava preocupado com esta questão do


Fundacionalismo, ainda que de maneira indireta. Resumindo
muito rapidamente: em toda a argumentação de Wittgenstein,
ele concluirá que primeiro aprendemos a agir uns para com os
outros, para com a vida e a realidade e, após este aprendizado,
começamos a entrar no mundo da linguagem.

182
Teoria do Conhecimento I

Contudo, quando isto ocorre, esquecemos que, antes de tudo,


aprendemos a agir, e não a construir teorias sobre a linguagem ou
sobre o conhecimento. Por esta razão é que, para ele, a questão
filosófica é posterior ao senso comum.

Você deve estar se perguntando: qual a ligação


de Wittgenstein com todas estas questões
do fundacionalismo?

A ligação é a seguinte: Wittgenstein não aceita a separação de


mente e comportamento elaborada tanto pelo cético, quanto
pelos argumentos da analogia de Stuart Mill. Para ele, não há
separação entre um e outro. E, aqui, está uma das dificuldades
com o pensamento de Wittgenstein: não há perigo de cairmos
no Behaviorismo.

Segundo ele, o Behaviorismo é uma forma extremada de


eliminação do mundo mental humano, mas é fato que temos
comportamentos que expressam nosso mundo mental, logo é um
engano eliminar nosso mundo mental e reduzir todos os verbos
psicológicos (penso, creio, tenho a intenção, desejo etc.) apenas ao
comportamento físico.

Ao mesmo tempo, Wittgenstein argumenta que não podemos


partir para a opção contrária, isto é, eliminar o mundo material e
afirmar que tudo que existe é nossa mente, ou é causado por ela.
Antes, é necessário perceber que aprendemos algo sobre nosso
mundo mental a partir de nosso comportamento.

O argumento de Wittgenstein que tenta mostrar sua ideia quanto


a isto ficou famoso na Filosofia e recebeu o nome de argumento
da linguagem privada, contudo não se pode afirmar que seja
apenas um argumento, mas vários.

Bem, este é um problema de interpretação do texto


de Wittgenstein, e não é nossa intenção discutir este
ponto aqui.

Unidade 7 183
Universidade do Sul de Santa Catarina

Imagine uma pessoa que, por suas razões particulares, resolve


criar uma linguagem só para si. Esta pessoa faz anotações e
cria símbolos que apenas ela pode compreender; outras pessoas,
não. Esta linguagem seria privada, propriedade apenas daquela
pessoa; outros não conseguiriam compreender o que ela escreve.

O interessante neste argumento de Wittgenstein é a


formulação engenhosa que ele fornece de um passo do
argumento fundacionalista, qual seja, o de que nosso
conhecimento inicia coma experiência. Wittgenstein elabora o
seguinte experimento mental:

Ora, quais as consequências deste experimento mental? Se ele


de fato tem sentido, então o que o cético afirma é correto: não
conhecemos nada sobre as outras mentes. Também o que Stuart
Mill afirma é correto: sabemos apenas de nossa mente, mas nada
da mente de outras pessoas.

Ao mesmo tempo, se todo conhecimento inicia pela experiência e


se esta experiência é algo que ocorre na mente do sujeito por meio
dos sentidos, então não conseguimos sair de nossas experiências
pessoais e atribuí‑las a outras pessoas. Com este passo,
Wittgenstein fecha o cerco sobre o argumento fundacionalista e o
torna fechado em si mesmo: se sou fundacionalista, apenas eu sei
que tenho experiências.

Mas as coisas não são desta forma.

Há aqui um grave problema de uso da linguagem, e este uso


incompreendido é que nos leva a formular o argumento da
linguagem privada ou da privacidade da experiência. Vejamos:

Primeiro vamos compreender o uso da linguagem que o privatista


(tanto o cético quanto Mill) utiliza. Ele afirma: “Apenas eu sei
que tenho minhas dores”. Outra afirmação dele é “As dores de N
são particulares a ele, só ele as sente. Eu apenas sei que ele tem
dores por comparar seu comportamento com o meu”.

Estas afirmações são a fonte de onde brota o ceticismo e


a privacidade das mentes. O problema das outras mentes
é compreensível, porque elaboramos nossas experiências e

184
Teoria do Conhecimento I

atribuições de mente com base em afirmações como estas. Tanto


as repetimos em nosso dia a dia que acreditamos que contêm
algum problema filosófico quando as examinamos mais de perto.

Esta é a alegação principal de Wittgenstein estas expressões não


dizem nada sobre o mundo, nem sobre uma pessoa. A não ser
em casos especiais, facilmente imagináveis. Afirmar “só eu tenho
minhas dores” é uma frase gramatical tal como “paciência é um
jogo que se joga sozinho” ou “no jogo de xadrez existem peças
brancas e pretas”.

Ou seja: estas afirmações não dizem nada sobre o mundo, pois


são afirmações sobre a constituição do uso das palavras.

Para entender melhor este argumento de Wittgenstein, pensemos


no seguinte: é verdadeira a afirmação de que apenas eu posso
sentir as minhas dores. Ora, se esta afirmação é verdadeira, então
sua contrária – “não é verdade que apenas eu posso sentir minhas
dores” – deve ser uma afirmação falsa.

Mas como é que você pode provar que é


uma afirmação falsa? Por meio de que meios
eu provo que apenas eu sinto minhas dores?
Mostrando minhas dores? Isto não faz sentido?
Como provo que você não tem as minhas dores?
Como provo que as suas dores são suas?

Estas questões não fazem sentido, afirma Wittgenstein, pois


são afirmações que partem do uso incompreendido de nossa
linguagem. Ou seja: acreditamos que nossa linguagem seja
um instrumento de veicular informações e experiências uns
para os outros. Esta crença está tão arraigada em nós que não
percebemos que nossos problemas não são reais, e sim problemas
de uso das palavras.
Sendo assim, o argumento de Wittgenstein deve ter como
consequência o fato de que nós temos conhecimentos a partir de
outros conhecimentos que não são básicos? Não. Wittgenstein
afirma que nós conhecemos a realidade porque a aprendemos,
porque sabemos como lidar com ela. Após este aprendizado é que
podemos duvidar da realidade.

Unidade 7 185
Universidade do Sul de Santa Catarina

Existem outras mentes? – pergunta o filósofo. Wittgenstein


responde: Esta questão baseia‑se no mal‑entendido de que
“mente” é algo que apenas uma pessoa pode ter, tal como “minha
caneta” ou “meu pé”. Mas a realidade existe? – perguntaria
novamente o filósofo. Wittgenstein lhe diria: Você está
afirmando que a realidade é algo que pode ser identificado com
“uma pedra” ou “uma cadeira” e então você pergunta “a cadeira
existe?”. Não; a separação que você faz entre realidade e mente ou
linguagem não é real.

A linguagem é a realidade e vice‑versa. Você pretende separar


algo que está ligado. Mas, então, os objetos exteriores existem?
Ora, diria Wittgenstein, apenas um filósofo poderia fazer esta
pergunta, pois primeiro afirma que sabe o que é a realidade e,
depois, volta a afirmar que não sabe provar como ela existe.

Creio que você percebeu que os argumentos de Wittgenstein


não são uma resposta direta ao cético. Antes, Wittgenstein
sabiamente não aceita as perguntas que o cético faz. Mais ainda:
afirma que a certeza que o cético busca é um engodo, pois ele
separa de si algo que não pode ser separado, a saber, a realidade
e o mundo.

Além disso, a busca de certeza é um ideal que impomos ao


mundo, mas não existe certeza no mundo. Primeiro aprendemos
a compreender a realidade e o mundo que nos cerca; após este
passo inicial, começamos a construir nossas dúvidas.

Isto significa que a busca por uma certeza não faz sentido, pois o
conhecimento não é uma verdade absoluta e indubitável, antes é
nossa vida que cerca este conhecimento e o faz ser tão certo que
não o podemos negar. Quando um cético pede contas da certeza
de nosso conhecimento, não conseguimos lhe fornecer nenhuma,
pois não obtivemos aquele conhecimento por meio de uma
investigação experimental, mas, sim, pelas nossas vidas.

O erro do filósofo cético ou do epistemólogo que busca a certeza


em cada conhecimento é que eles tratam o conhecimento como se
fosse algo alienado da pessoa; quando os conhecimentos existem
apenas devido às pessoas, aos seres humanos. O que nos leva a
esta separação drástica é a crença de que nosso conhecimento

186
Teoria do Conhecimento I

deve ser construído tal como as descobertas científicas: do mais


básico para o mais complexo.

A argumentação de Wittgenstein demonstra que é o contrário.


Nossa exigência de simplicidade é um ideal que impomos
ao mundo, e não uma realidade. O filósofo cético exige uma
resposta para uma pergunta que inicia com um engano. Não
conseguimos lhe responder, por que sua pergunta não faz sentido.

Síntese

Nesta unidade, vimos que, quando exigimos que o nosso


conhecimento esteja baseado em determinadas crenças básicas,
somos corretamente denominados por fundacionalistas.
O ponto básico do fundacionalista é que ele não deseja um
círculo vicioso de crenças que fundamentam outras crenças,
num círculo infinito. Vimos que a exigência do fundacionalista
sobre as nossas crenças básicas é exagerada. Estudamos ainda
que o problema do Fundacionalismo não é apenas quanto à
exigência de infalibilidade das crenças básicas, mas do seu ponto
de vista empirista. Por fim, vimos com Wittgenstein que nossos
problemas filosóficos podem ser problemas quanto ao uso da
linguagem e que a exigência de certeza sobre nosso conhecimento
é um ideal, e não um fato.

Unidade 7 187
Universidade do Sul de Santa Catarina

Atividades de autoavaliação

1) O principal argumento do fundacionalismo (para que aceitemos a


sua argumentação) é o argumento do regresso infinito. Os outros
dois argumentos decorrentes deste são o da probabilidade e o da
justificação. Explique o argumento da probabilidade e responda
à seguinte questão: “Por qual razão é necessário que aceitemos o
argumento da probabilidade?”

2) A partir do conteúdo estudado nesta unidade, explique a afirmação de


C. I. Lewis: “Se nada for certo, então nem o provável é concebível”.

188
Teoria do Conhecimento I

Saiba mais

Para aprofundar seu conhecimento, consulte os seguintes materiais:

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora


Ática, 1997. Nesta obra, a autora analisa de maneira introdutória
o ponto de vista quanto à possibilidade de fundamentação do
conhecimento.

CHISHOLM, Roderick. Teoria do conhecimento. Rio


de Janeiro: Ed. Zahar, 1980. Neste livro, você encontrará a
fundamentação do ponto de vista fundacionalista.

TEIXEIRA, João de Fernandes. Filosofia da mente e


comportamento. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. Este filósofo
brasileiro discute aqui o problema das outras mentes.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas.


Petrópolis: Editora Vozes, 1998. Os argumentos deste filósofo
podem ser encontrados nesta obra. Existe também uma edição na
Coleção: Os Pensadores, da Editora Abril Cultural, de 1980.

Unidade 7 189
Para concluir o estudo

Chegamos ao final de nossa caminhada de estudo


sobre Teoria do Conhecimento. Você deve ter notado
que não apresentamos uma resposta direta para o
cético. Esta atitude pode irritar o investigador sério em
Epistemologia e Teoria do Conhecimento. Contudo,
você pode notar, através do conteúdo das unidades que
estudamos, qual a atitude do cético: ele sempre pede
fundamentos das possibilidades de nossos argumentos.

Ora, a única forma de enfrentar um cético é não cair


no jogo argumentativo dele, isto é, não fornecer o
tipo de resposta que ele espera. Assim, em vez de
respondermos apontando um tipo de conhecimento
que não poderia ser posto em dúvida, nossa resposta
foi tentar mostrar ao cético que a sua dúvida só é
possível depois que aprendemos algumas coisas.
Por exemplo: como você poderá duvidar dos anéis
do planeta Saturno, se você nunca o viu em foto ou
pelo telescópio? Assim, só posso duvidar daquilo
de que já tenho algum conhecimento. Paradoxal,
não?! Mas é exatamente isto que o cético esquece.

Bem, você poderá se perguntar “Que tipo de resposta é


esta?”. Afinal não é apresentado nenhum conhecimento
que cale a dúvida do cético. Ora, esta é a questão
central, quando estudamos o conhecimento: qual critério
aplicaremos, para podermos afirmar que temos um
conhecimento fundamentado?

Segundo o cético, só é fundamentado aquele


conhecimento que não for passível de dúvida. Mas,
como vimos, parece que todos os conhecimentos são
criticáveis. Será que deveríamos abandonar nossos
conhecimentos e acompanhar o cético em suas dúvidas?
Ora, claro que isto não é necessário. Nossa atitude deve
Universidade do Sul de Santa Catarina

ser a de compreender que o ceticismo que até agora estudamos


deve servir de “crítico” de nosso conhecimento, e não se tornar
nosso inimigo.

O cético ajuda‑nos a fundamentar melhor o que conhecemos, a


construir de maneira mais clara nossos argumentos e afirmações
e – principalmente – ajuda‑nos a desconfiar de conhecimentos
que são tomados como verdades incontestáveis.

Em sua profissão, você encontrará varias situações em que a


dúvida e o questionamento são saudáveis, ainda que as pessoas
não possuam as respostas certas, ou mais adequadas. O simples
fato de pensar sobre os conhecimentos que empregam, as fontes
destes conhecimentos e os seus fundamentos já servirá de ajuda
para “conhecer” melhor e de forma mais efetiva.

192
Referências

AUSTIN, John L. Outras mentes. São Paulo: Abril Cultural, 1980.


(Coleção Os Pensadores).
A VOLTA da Filosofia. Paróquia de São Sebastião. 7 nov. 2010.
Disponível em: <http://portalapui.com.br/paroquia/?p=814>.
Acesso em: 29 ago. 2011. il.
BANCO de imagem ‑ Gottfried, Leibniz. Can Stock Photo.
11 fev. 2011. Disponível em: <http://www.canstockphoto.com.br/
gottfried‑leibniz‑5569555.html>. Acesso em: 29 ago. 2011. il.
BASTOS, Cleverson Leite Bastos; CANDIOTO, Kleber. Filosofia da
ciência. Petrópolis: Vozes, 2008.
CARNAP, Rudolf. Testabilidade e significado. Trad. Pablo
Rubem Mariconda. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os
Pensadores).
______. Empirismo, semântica e ontologia. São Paulo: Abril
Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores).
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática,
1997.
CHISHOLM, Roderick. Teoria do conhecimento. Rio de Janeiro:
Ed. Zahar, 1980.
CONTE, Jaimir. David Hume. [200‑?]. Disponível em: <http://
www.cfh.ufsc.br/~conte/hume.html>. Acesso em: 29 ago. 2011. il.
COPI, Irving. Introdução à lógica. São Paulo: Ed. Mestre Jou, 1979.
DANCY, Jonatan. Introduction to contemporary epistemology.
London: Blakwell, 1985.
DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Lisboa: Edições 70,
1990.
DESCARTES, René. As paixões da alma. Trad. Bento Prado Junior.
São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores).
______. Discurso do método. Trad. Bento Prado Junior. São
Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores).
______. Meditações de filosofia. Trad. Bento Prado Junior. São
Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores).
Universidade do Sul de Santa Catarina

GALERIA de fotos: Willard Quine. [20‑ ‑?]. Disponível em: <http://


fildalinguagem.no.sapo.pt/quine‑b1.gif>. Acesso em: 29 ago. 2011. il.
GEORGE Berkeley. Philosophy Professor. [200‑]. Disponível em: <http://
www.philosophyprofessor.com/philosophers/george‑berkeley.php>.
Acesso em: 29 ago. 2011. il.
GRECO, John; SOSA, Ernest (Orgs.). Epistemologia. São Paulo: Edições
Loyola, 2007.
INSTITUTE VIENNA CIRCLE. 2011. Disponível em: <http://www.univie.ac.at/
ivc/>. Acesso em: 29 ago. 2011. il.
JOHN Langshaw Austin (1911 ‑ 1960). Filosofia. [200‑?]. Disponível em:
<http://www.filosofia.com.br/bio_popup.php?id=60>. Acesso em: 29 ago.
2011. il.
KANT, Emanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
KOYRE, Alexandre. Considerações sobre Descartes. 2. ed. Lisboa:
Presença, 1981.
LEIBNIZ, W.G. Novos ensaios sobre o entendimento humano. São Paulo:
Abril Cultural, 1999 (Os pensadores).
MOORE, George. Uma defesa do senso comum. São Paulo: Abril Cultural,
1980. (Coleção Os Pensadores).
______. Prova da existência de um mundo exterior. São Paulo, Abril
Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores).
MOORE, G. Prova de um mundo exterior. São Paulo: Abril Cultural, 1999
(Os pensadores).
NORRIS, Christopher. Epistemologia. São Paulo: Artmed Editora, 2008.
NUNES, João. Subtema e.2. Renascimento e Reforma: Reformadores.
Hist8alfandega. 9 nov. 2009. Disponível em: <http://hist8alfandega.
blogspot.com/2009/11/reformadores.html>. Acesso em: 29 ago. 2011. il.
PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. Petrópolis: Editora Vozes, 1980.
POLLOCK, John L. Contemporary theories of knowledge. New Jersey:
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QUINE, W. V. O. Epistemologia naturalizada. Trad. Andréa Loparic. São
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2011. Disponível em: <http://www.notablebiographies.com/De‑Du/
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STEGMULLER, Wolfgang. História da filosofia contemporânea. São
Paulo: EPU/EDUSP, 1878. v. 1 e 2.

194
Teoria do Conhecimento I

SCHLICK, Moritz. Positivismo e realismo. Trad. João Luis Baraúna. São


Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores).
______. Sentido e verificação. Trad. João Luis Baraúna. São Paulo: Abril
Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores).
SCHWEITZER, Jorge. Immanuel Kant, o filósofo da razão e Tontola, o elixir
da clarividência. Táxi em Movimento. 17 jan. 2011. Disponível em: <http://
taxiemmovimento.blogspot.com/2011/01/o‑filosofo‑da‑razao‑immanuel‑k
ant‑e‑o.html>. Acesso em: 29 ago. 2011. il.
SÓCRATES. Biografias y Vidas. [200‑]. Disponível em: <http://www.
biografiasyvidas.com/biografia/s/socrates.htm>. Acesso em: 29 ago. 2011. il.
STROUD, Barry. The significance of philosophical skepticism. Oxford:
Oxford University Press, 1984.
TEIXEIRA, João de Fernandes. Filosofia da mente e comportamento.
Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
THE PHILOSOPHERS (2011). Guild at GSU. Disponível em: <http://
philosophiaguild.blogspot.com/>. Acesso em: 29 ago. 2011. il.
VINTAGE Photographs. First World War. 2009. Disponível em : <http://
www.firstworldwar.com/photos/graphics/nw_koenigsberg_01.jpg>.
Acesso em: 29 ago. 2011. il.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Petrópolis: Editora
Vozes, 1998.

195
Sobre o professor conteudista

Arturo Fatturi é Licenciado em Filosofia pela


Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS),
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), Doutorando em Filosofia
pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
É professor das disciplinas de Filosofia, Filosofia da
Ciência e Filosofia da Educação na Universidade do
Sul de Santa Catarina (UNISUL). É tutor da disciplina
Filosofia na modalidade EaD. Também exerce o cargo
de articulador da disciplina Filosofia junto à Gerência
de Pesquisa e Extensão na UNISUL de Tubarão.
Atuou como professor substituto de Filosofia no
Departamento de Filosofia da UFSC e como Tutor
na disciplina Filosofia da Educação no Laboratório de
Ensino a Distância (LED) da UFSC/Instituto Anísio
Teixeira, Bahia. Foi professor das disciplinas de Teoria
do Conhecimento, Lógica, Metodologia da Pesquisa
em Filosofia e Hermenêutica no Curso de Filosofia da
Fundação Universitária de Brusque (UNIFEBE) em
Brusque, Santa Catarina.
Respostas e comentários das
atividades de autoavaliação

Unidade 1
1) Esta resposta é pessoal mas o aluno poderá indicar que, ainda
que exista um embusteiro sumamente poderoso, sumamente
ardiloso, que empregue todos os seus esforços para
manter – me perpetuamente ludibriado, não pode subsistir
dúvida alguma de que existo, uma vez que ele me ludibria; e,
por mais que me engane a seu bel prazer, jamais conseguirá
que eu não exista, enquanto eu continuar pensando que sou
alguma coisa. Já no que se refere à conclusão, o (a) aluno (a)
poderá indicar que, uma vez ponderados escrupulosamente
todos os argumentos, terá de concluir que, sempre que diz ou
concebe em seu espírito Eu sou, logo existo, esta proposição
tem de ser necessariamente verdadeira. Já a premissa no
que diz respeito ao bem e ao mal, estes termos nada indicam
de positivo nas coisas consideradas por si, nem são mais do
que modos de pensar, ou noções que formamos, a partir da
comparação de uma coisa com outra.

Unidade 2
1) Espera‑se que o(a) aluno(a) elabore sua resposta de maneira
argumentativa, discutindo seu(s) ponto(s) de vista. O objetivo
da questão é fazer o(a) aluno(a) pensar no argumento cético
de que a investigação da verdade não tem um fim. Logo,
buscar a verdade é tornar‑se escravo de uma busca que
apenas traz perturbação ao espírito.
2) As verdades da razão são aquelas verdades que não
necessitam de nossas experiências sensoriais para
estabelecer sua verdade. As verdades da experiência são
possíveis, apenas, devido à capacidade humana de perceber
e, portanto, poderiam ser diferentes. Espera‑se que o(a)
aluno(a) apresente seu(s) ponto(s) de vista de maneira
argumentativa, fornecendo as razões de seu raciocínio.
Universidade do Sul de Santa Catarina

Unidade 3
1) Exemplo de conhecimento “interno”: a ciência mostra que os objetos
do mundo são compostos de partículas unidas através de pequenos
espaços. A afirmação fala apenas de determinada característica
dos objetos. Parte do pressuposto que nós podemos conhecer os
objetos do mundo. Exemplo de conhecimento “externo”: nossa
capacidade de conhecer objetos da realidade. Aqui está em jogo todo o
conhecimento, e não uma parte específica.
2) A resposta mais correta neste caso é argumentar que Moore não
compreendeu corretamente o ceticismo filosófico. O cético questiona
todo conhecimento, e não apenas o conhecimento de objetos
exteriores a nós.
3) A resposta correta a esta pergunta é argumentar da seguinte forma:
a dificuldade em fornecer uma resposta ao cético consiste na
impossibilidade de fornecer um tipo de conhecimento que não seja
baseado em nossa percepção. A resposta que o cético aceitaria é a que
lhe mostra um tipo de conhecimento o qual não pudesse ser colocado
em dúvida.

Unidade 4
1) Kant argumenta que seu Idealismo é uma resposta ao cético pelo fato
de que, em primeiro lugar, o cético não poderia rejeitar a existência
das estruturas a priori do conhecimento, que inclusive o permitem
duvidar. Para duvidar da existência de algo, o cético precisa, antes
de mais nada, ter algumas noções sobre o que este algo é, como lhe
aparece, ou ainda noções básicas sobre o conhecimento, do tipo, “o
que é duvidar”. Esta já seria uma primeira instância do conhecimento,
inatingível pelo questionamento da validade dos sentidos e da
existência do mundo exterior.
2) Kant consegue combinar o Idealismo e o Realismo baseado na distinção
entre fenômenos e “coisas em si”. Em outras palavras, para Kant não
conhecemos diretamente as coisas, mas sim uma síntese dos dados da
percepção elaborada pelas regras do entendimento. Assim, as coisas
de fato existem independentemente de nós (realismo), mas ao mesmo
tempo só as conhecemos mediante a razão pura, isto é, as regras a
priori do entendimento (Idealismo).
3) Resposta subjetiva (As duas posições são possíveis, dependendo
da argumentação.

200
Teoria do Conhecimento I

Unidade 5
1) Ponto de vista interno: o fato de podermos conhecer objetos por
meio de nossa percepção. Ponto de vista externo: somos capazes de
conhecer o mundo que nos cerca.
2) Para Quine, a Epistemologia a partir de sua naturalização faz parte das
ciências naturais e, sendo assim, pode servir‑se das descobertas da
Psicologia Empírica sobre nossa mente e a maneira como interagimos
com o mundo que nos cerca. Assim, segundo o argumento de Quine,
a Epistemologia não é mais a tentativa racional de construir uma
explicação sobre o nosso conhecimento, e sim um ponto de vista
científico sobre o conhecer. A Epistemologia passa a incluir em suas
explicações as descobertas empíricas sobre o cérebro humano.
3) A vantagem é que a Epistemologia passará a estudar o conhecimento
humano como se este fosse um aspecto empírico da natureza do ser
humano, e não mais como uma reconstrução racional apenas, isolada
de qualquer investigação empírica.

Unidade 6
1) Segunda, terceira e quarta afirmação estão de acordo com o
princípio geral.
2) Ciências Formais: são as ciências que lidam apenas com as regras
através das quais elaboramos nossos conhecimentos. Lógica,
Matemática, Sistemas de Informação, Biblioteconomia.
Ciências Naturais: são as ciências que se utilizam do método
experimental de investigação. Seu objeto de estudo é parte
da realidade perceptível, pois apenas desta podemos realizar
experimentos. Física, Química, Ciência Cognitiva, Biologia, Psicologia
Empírica, Medicina.

3) A vantagem é que todos os conceitos utilizados nas teorias científicas


seriam definidos através de sua referência a objetos existentes na
realidade. Portanto, as definições deveriam ser empíricas, e não
meramente formais. Toda teoria científica seria ligada à realidade que
estuda, pois seus conceitos conteriam esta realidade como significado.

201
Universidade do Sul de Santa Catarina

Unidade 7
1) O argumento da probabilidade parte do princípio que algumas
evidências devem ser verdadeiras para que os eventos prováveis
sejam esperados. Sem evidências verdadeiras, não se pode prever o
que irá acontecer, ainda que não seja de todo certo que o previsto vá
ocorrer. A necessidade de aceitarmos o argumento da probabilidade é
que nossas previsões, para serem de todo aceitáveis, devem partir de
algumas evidências aceitas como corretas e indubitáveis.
2) O ponto de vista fundacionalista parte do princípio de que apenas
poderemos obter conhecimento se nossa investigação basear‑se
em verdades primeiras que são indubitáveis. O argumento de
Lewis afirma que, se não tivermos crenças verdadeiras indubitáveis,
também não saberemos distinguir o que é, ou não, provável que
ocorra, pois não teremos conhecimentos seguros. Assim, para
que a probabilidade possa funcionar, é necessário que alguns
conhecimentos sejam indubitáveis.

202
Biblioteca Virtual

Veja a seguir os serviços oferecidos pela Biblioteca Virtual aos


alunos a distância:

„„ Pesquisa a publicações on‑line


<www.unisul.br/textocompleto>
„„ Acesso a bases de dados assinadas
<www.unisul.br/bdassinadas>
„„ Acesso a bases de dados gratuitas selecionadas
<www.unisul.br/bdgratuitas>
„„ Acesso a jornais e revistas on‑line
<www.unisul.br/periodicos>
„„ Empréstimo de livros
<www.unisul.br/emprestimos>
„„ Escaneamento de parte de obra*

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(Lei 9610/98) pode‑se reproduzir até 10% do total de páginas do livro.

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