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Universidade do Sul de Santa Catarina

Discurso Filosófico I

Disciplina na modalidade a distância

Palhoça
UnisulVirtual
2012
Créditos
Universidade do Sul de Santa Catarina | Campus UnisulVirtual | Educação Superior a Distância
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Ana Luísa Mülbert Paulo Lisboa Cordeiro Schenon Souza Preto Mayara Pereira Rosa
Vice-Reitor Ana Paula R.Pacheco Paulo Mauricio Silveira Bubalo Luciana Tomadão Borguetti
Sebastião Salésio Heerdt Artur Beck Neto Rosângela Mara Siegel Gerência de Desenho e
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Chefe de Gabinete da Reitoria Charles Odair Cesconetto da Silva Vanessa Pereira Santos Metzker Didáticos Bruno Lucion Roso
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Pró-Reitor de Ensino e Horácio Dutra Mello Gestão Documental Desenho Educacional
Lamuniê Souza (Coord.) Cristina Klipp de Oliveira (Coord. Grad./DAD) Rafael Bavaresco Bongiolo
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Pós-Graduação e Inovação Jairo Afonso Henkes Clair Maria Cardoso Roseli A. Rocha Moterle (Coord. Pós/Ext.) Portal e Comunicação
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Acadêmica José Gabriel da Silva Josiane Leal Daniela Siqueira de Menezes Rafael Pessi
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Miriam de Fátima Bora Rosa José Humberto Dias de Toledo
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e Inovação Institucional Marciel Evangelista Catâneo Financeira Flavia Lumi Matuzawa Francini Ferreira Dias
Renato André Luz (Gerente) Geovania Japiassu Martins
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Gerência de Ensino, Pesquisa e Marina Melhado Gomes da Silva Diogo Rafael da Silva
Secretária-Geral de Ensino Vice-Coordenadores Graduação Extensão Marina Cabeda Egger Moellwald Edison Rodrigo Valim
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José Gabriel da Silva Reconhecimento de Curso
José Humberto Dias de Toledo Acessibilidade Multimídia
Diretor Adjunto Maria de Fátima Martins Vanessa de Andrade Manoel (Coord.) Sérgio Giron (Coord.)
Moacir Heerdt Luciana Manfroi
Rogério Santos da Costa Extensão Letícia Regiane Da Silva Tobal Dandara Lemos Reynaldo
Secretaria Executiva e Cerimonial Rosa Beatriz Madruga Pinheiro Maria Cristina Veit (Coord.) Mariella Gloria Rodrigues Cleber Magri
Jackson Schuelter Wiggers (Coord.) Sergio Sell Vanesa Montagna Fernando Gustav Soares Lima
Marcelo Fraiberg Machado Pesquisa Josué Lange
Tatiana Lee Marques Daniela E. M. Will (Coord. PUIP, PUIC, PIBIC) Avaliação da aprendizagem
Tenille Catarina Valnei Carlos Denardin Claudia Gabriela Dreher Conferência (e-OLA)
Mauro Faccioni Filho (Coord. Nuvem)
Assessoria de Assuntos Sâmia Mônica Fortunato (Adjunta) Jaqueline Cardozo Polla Carla Fabiana Feltrin Raimundo (Coord.)
Internacionais Pós-Graduação Nágila Cristina Hinckel Bruno Augusto Zunino
Coordenadores Pós-Graduação Anelise Leal Vieira Cubas (Coord.) Sabrina Paula Soares Scaranto
Murilo Matos Mendonça Aloísio José Rodrigues Gabriel Barbosa
Anelise Leal Vieira Cubas Thayanny Aparecida B. da Conceição
Assessoria de Relação com Poder Biblioteca Produção Industrial
Público e Forças Armadas Bernardino José da Silva Salete Cecília e Souza (Coord.) Gerência de Logística Marcelo Bittencourt (Coord.)
Adenir Siqueira Viana Carmen Maria Cipriani Pandini Paula Sanhudo da Silva Jeferson Cassiano A. da Costa (Gerente)
Walter Félix Cardoso Junior Daniela Ernani Monteiro Will Marília Ignacio de Espíndola Gerência Serviço de Atenção
Giovani de Paula Renan Felipe Cascaes Logísitca de Materiais Integral ao Acadêmico
Assessoria DAD - Disciplinas a Karla Leonora Dayse Nunes Carlos Eduardo D. da Silva (Coord.) Maria Isabel Aragon (Gerente)
Distância Letícia Cristina Bizarro Barbosa Gestão Docente e Discente Abraao do Nascimento Germano Ana Paula Batista Detóni
Patrícia da Silva Meneghel (Coord.) Luiz Otávio Botelho Lento Enzo de Oliveira Moreira (Coord.) Bruna Maciel André Luiz Portes
Carlos Alberto Areias Roberto Iunskovski Fernando Sardão da Silva Carolina Dias Damasceno
Cláudia Berh V. da Silva Rodrigo Nunes Lunardelli Capacitação e Assessoria ao Fylippy Margino dos Santos Cleide Inácio Goulart Seeman
Conceição Aparecida Kindermann Rogério Santos da Costa Docente Guilherme Lentz Denise Fernandes
Luiz Fernando Meneghel Thiago Coelho Soares Alessandra de Oliveira (Assessoria) Marlon Eliseu Pereira Francielle Fernandes
Renata Souza de A. Subtil Vera Rejane Niedersberg Schuhmacher Adriana Silveira Pablo Varela da Silveira Holdrin Milet Brandão
Alexandre Wagner da Rocha Rubens Amorim
Assessoria de Inovação e Jenniffer Camargo
Gerência Administração Elaine Cristiane Surian (Capacitação) Yslann David Melo Cordeiro Jessica da Silva Bruchado
Qualidade de EAD Acadêmica Elizete De Marco
Denia Falcão de Bittencourt (Coord.) Jonatas Collaço de Souza
Angelita Marçal Flores (Gerente) Fabiana Pereira Avaliações Presenciais
Andrea Ouriques Balbinot Juliana Cardoso da Silva
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Carmen Maria Cipriani Pandini Juliana Elen Tizian
Juliana Cardoso Esmeraldino Ana Paula de Andrade
Secretaria de Ensino a Distância Kamilla Rosa
Maria Lina Moratelli Prado Angelica Cristina Gollo
Assessoria de Tecnologia Samara Josten Flores (Secretária de Ensino) Simone Zigunovas
Mariana Souza
Osmar de Oliveira Braz Júnior (Coord.) Cristilaine Medeiros Marilene Fátima Capeleto
Giane dos Passos (Secretária Acadêmica) Daiana Cristina Bortolotti
Felipe Fernandes Adenir Soares Júnior Tutoria e Suporte Maurício dos Santos Augusto
Felipe Jacson de Freitas Delano Pinheiro Gomes Maycon de Sousa Candido
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Priscila da Silva Djeime Sammer Bortolotti Maria Eugênia F. Celeghin (Núcleo Pólos) Sabrina Mari Kawano Gonçalves
Rodrigo Battistotti Pimpão Lisdeise Nunes Felipe Scheila Cristina Martins
Douglas Silveira Andreza Talles Cascais Marcelo Ramos
Tamara Bruna Ferreira da Silva Evilym Melo Livramento Daniela Cassol Peres Taize Muller
Marcio Ventura Tatiane Crestani Trentin
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Coordenação Cursos Fabricio Botelho Espíndola Ednéia Araujo Alberto (Núcleo Sudeste) Thais Bortolotti
Coordenadores de UNA Felipe Wronski Henrique Francine Cardoso da Silva
Diva Marília Flemming Gisele Terezinha Cardoso Ferreira Janaina Conceição (Núcleo Sul) Gerência de Marketing
Marciel Evangelista Catâneo Indyanara Ramos Joice de Castro Peres Eliza B. Dallanhol Locks (Gerente)
Roberto Iunskovski Janaina Conceição Karla F. Wisniewski Desengrini
Jorge Luiz Vilhar Malaquias Kelin Buss Relacionamento com o Mercado
Auxiliares de Coordenação Juliana Broering Martins Liana Ferreira Alvaro José Souto
Ana Denise Goularte de Souza Luana Borges da Silva Luiz Antônio Pires
Camile Martinelli Silveira Luana Tarsila Hellmann Maria Aparecida Teixeira Relacionamento com Polos
Fabiana Lange Patricio Luíza Koing Zumblick Mayara de Oliveira Bastos Presenciais
Tânia Regina Goularte Waltemann Maria José Rossetti Michael Mattar Alex Fabiano Wehrle (Coord.)
Jeferson Pandolfo
Carlos Euclides Marques

Discurso Filosófico I

Livro didático

Design instrucional
Marina Cabeda Egger Moellwald

Palhoça
UnisulVirtual
2012
Copyright © UnisulVirtual 2012
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição.

Edição – Livro Didático


Professor Conteudista
Carlos Euclides Marques

Design Instrucional
Marina Cabeda Egger Moellwald

Projeto Gráfico e Capa


Equipe UnisulVirtual

Diagramação
Edison Valim

Revisão
Letra de Forma

ISBN
978-85-7817-422-4

100
M31 Marques, Carlos Euclides
Discurso filosófico I : livro didático / Carlos Euclides Marques ; design
instrucional Marina Cabeda Egger Moellwald. – Palhoça : UnisulVirtual,
2012.
210 p. : il. ; 28 cm.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7817-422-4

1. Filosofia – Redação técnica. 2. Filosofia – Interpretação de texto. I.


Moellwald, Marina Cabeda Egger. II. Título.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul


Sumário

Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Palavras do professor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9
Plano de estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

UNIDADE 1 - Preâmbulos da Leitura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17


UNIDADE 2 - Um percurso pelo Livro I de A República. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
UNIDADE 3 - Resumindo os Livros de II a V de A República. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
UNIDADE 4 - Um percurso pelos Livros VI e VII de A República . . . . . . . . . . . . . . . 133
UNIDADE 5 - Resumindo os Livros VIII a X de A República e algumas
repercussões da obra platônica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171

Para concluir o estudo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199


Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
Sobre o professor conteudista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
Respostas e comentários das atividades de autoavaliação. . . . . . . . . . . . . . 207
Biblioteca Virtual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
Apresentação

Este livro didático corresponde à disciplina Discurso Filosófico I.

O material foi elaborado com vista a uma aprendizagem


autônoma e aborda conteúdos especialmente selecionados e
relacionados à sua área de formação. Ao adotar uma linguagem
didática e dialógica, objetivamos facilitar seu estudo a distância,
proporcionando condições favoráveis às múltiplas interações e a
um aprendizado contextualizado e eficaz.

Lembre que sua caminhada nesta disciplina será acompanhada


e monitorada constantemente pelo Sistema Tutorial da
UnisulVirtual. Nesse sentido, a distância fica caracterizada
somente como a modalidade de ensino pela qual você optou para
sua formação, já que professores e instituição estarão sempre
conectados com você na relação de aprendizagem.

Então, sempre que sentir necessidade, entre em contato. Você


tem à disposição diversas ferramentas e canais de acesso,
tais como telefone, e-mail e o Espaço Unisul Virtual de
Aprendizagem, que é o canal mais recomendado, pois tudo o
que for enviado e recebido por ele fica registrado para seu maior
controle e comodidade. Nossa equipe técnica e pedagógica terá
o maior prazer em lhe atender, pois sua aprendizagem é o nosso
principal objetivo.

Bom estudo e sucesso!

Equipe UnisulVirtual

7
Palavras do professor

Caro(a) estudante,

A sua escolha foi por um curso que exige muito leitura e escrita.
Entretanto, tanto uma como outra não podem ser feitas de
qualquer forma. Nesse espírito, o presente Livro Didático (LD)
busca lhe dar subsídios para acompanhar a leitura de uma obra
clássica. A obra escolhida foi A República, de Platão.

Um conselho que será repetido exaustivamente ao longo deste


LD é que você deve ter sempre um olho no LD e o outro no
diálogo A República. Isso porque a proposta que se apresenta
é de um instrumental de leitura. De certo, poderíamos
tomar outro texto da Antiguidade ou da Idade Média,
mas acreditamos que você pode dar conta de uma obra do
potencial de A República. E mais, acreditamos no seu espírito
disciplinado, afinal essa é uma das grandes condições para um
estudante que pretende estudar a distância.

Sendo presencial ou a distância, o processo de ensino e


aprendizagem da Filosofia não pode e não deve prescindir da
leitura aprofundada, onde palmeamos o texto, descobrindo, a
partir dele mesmo, as estratégias de escrita (argumentativas)
utilizadas por um dado autor.

Nosso esforço (meu e seu) será de trilhar uma caminhada


que ofereça bases para fortalecer seu processo de formação,
apresentando e solidificando, por um exercitar constante,
habilidades de leitura filosófica. Foi esperando tocá-lo(a) para
certas estratégias e abordagens quanto ao texto filosófico
que este LD foi escrito. O trabalho pode parecer árduo, mas
só o venceremos na labuta, usando, disciplinadamente, as
ferramentas que nos são apresentadas.

Então, avante filosofante!

Professor Carlos Euclides Marques


Plano de estudo

O plano de estudos visa a orientá-lo no desenvolvimento da


disciplina. Ele possui elementos que o ajudarão a conhecer o
contexto da disciplina e a organizar o seu tempo de estudos.

O processo de ensino e aprendizagem na UnisulVirtual leva


em conta instrumentos que se articulam e se complementam,
portanto, a construção de competências se dá sobre a
articulação de metodologias e por meio das diversas formas de
ação/mediação.

São elementos desse processo:

„„ o livro didático;

„„ o Espaço UnisulVirtual de Aprendizagem (EVA);

„„ as atividades de avaliação (a distância, presenciais e de


autoavaliação);

„„ o Sistema Tutorial.

Ementa
Leitura orientada, análise e interpretação de textos filosóficos
da filosofia antiga e medieval. Redação de textos filosóficos.
Projeto de prática da disciplina.
Universidade do Sul de Santa Catarina

Objetivos da disciplina

Geral
Desenvolver a leitura e a interpretação textual para a formação e
inserção na tradição filosófica textual.

Específicos

„„ Conhecer a obra estudada a partir dos critérios que


nela podem ser encontrados conforme a interpretação
rigorosa.

„„ Identificar os critérios da lógica interna das obras


segundo regras previamente estabelecidas e
fundamentada.

Carga horária
A carga horária total da disciplina é 60 horas-aula.

Conteúdo programático/objetivos
Veja, a seguir, as unidades que compõem o livro didático desta
disciplina e os seus respectivos objetivos. Estes se referem aos
resultados que você deverá alcançar ao final de uma etapa de
estudo. Os objetivos de cada unidade definem o conjunto de
conhecimentos que você deverá possuir para o desenvolvimento
de habilidades e competências necessárias à sua formação.

Unidades de estudo: 5

12
Discurso Filosófico I

Unidade 1 – Preâmbulos da Leitura


Aqui, você conhecerá algumas noções sobre leitura de texto. De
forma sintética, passará pelas abordagens da leitura filosófica: a
abordagem dogmática, a abordagem historicista e a abordagem
genético-historicista. Verá, também, a diferença entre comentar e
explicar texto.

Será apresentado(a) a alguns aspectos biográficos de Platão e do


ambiente histórico de produção da obra a ser lida – A República.
Verá as características da dialética e outros aspectos da estrutura
musical dos textos platônicos.

Unidade 2 – Um percurso pelo Livro I de A República


Nesta unidade, você fará uma leitura pontual do Livro I de A
República, de Platão, identificando as estratégias discursivas
utilizadas no texto, o tema central, as teses defendidas pelos
interlocutores de Sócrates e a refutação socrática.

Unidade 3 – Resumindo os Livros de II a V de A República


Aqui, você fará um percurso resumindo partes do Livro II ao
Livro V de A República, passando pela fundação da cidade a
partir das necessidades básicas, o crescimento dessa cidade e o
aparecimento dos governantes.

Verá algo sobre a educação desses governantes e como eles


viveram. No aspecto educacional, serão apresentadas regras
para o cuidado com a música e com a ginástica. Entre outros
aspectos, vislumbrará o aparecimento da definição de justiça, as
qualidades necessárias para ser governante e as características
de sua vida, a divisão de trabalho e a harmonia das partes que
compõem a cidade ideal.

13
Universidade do Sul de Santa Catarina

Unidade 4 – Um percurso pelos Livros VI e VII de A República


Nesta parte, você percorrerá os Livros VI e VII, conhecendo e
interpretando três alegorias (imagens) de grande importância
para a Teoria das Formas e a Teoria Política de Platão. São elas: a
do olho e o Sol, a da linha dividida e a da caverna. Aliado a isso,
será apresentado(a) aos lugares (tópoi) do conhecimento nesta
obra de Platão.

Unidade 5 – Resumindo os Livros de VIII a X de A República e algumas


repercussões da obra platônica
Nesta unidade, você passará pelos três últimos livros de A
República. Você retomará o ponto sobre as constituições (formas
de governo) e estabelecerá relações entre os tipos de constituições
e as formas das almas. Retomará, também, as questões sobre
a necessidade de distinguir o estilo dramático do dialogal na
poesia, em virtude da busca da verdade, rediscutindo o papel
educativo da poesia e das artes imitativas, no geral. Dando o
tom para a parte final deste Livro, verá o retorno do tema da
imortalidade da alma, culminando no Mito de Er, sua última
imagem.

14
Discurso Filosófico I

Agenda de atividades/Cronograma

„„ Verifique com atenção o EVA, organize-se para acessar


periodicamente a sala da disciplina. O sucesso nos seus
estudos depende da priorização do tempo para a leitura,
da realização de análises e sínteses do conteúdo e da
interação com os seus colegas e professor.

„„ Não perca os prazos das atividades. Registre no espaço


a seguir as datas com base no cronograma da disciplina
disponibilizado no EVA.

„„ Use o quadro para agendar e programar as atividades


relativas ao desenvolvimento da disciplina.

Atividades obrigatórias

Demais atividades (registro pessoal)

15
1
UNIDADE 1

Preâmbulos da Leitura

Objetivos de aprendizagem
„„ Resumir uma leitura e refletir sobre algumas
perspectivas suas.

„„ Avaliar as referências do leitor e suas relações com o


texto.

„„ Contextualizar historicamente a obra de Platão.

„„ Refletir sobre a dialética e o uso de imagens com


estratégias da escrita de Platão.

Seções de estudo
Seção 1 Algumas perspectivas de leituras

Seção 2 O leitor e o texto

Seção 3 Platão: seu tempo e sua obra

Seção 4 A dialética, muito mais que um método


Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Olá, caro(a) estudante!

Ao receber este Livro Didático, seu título já deve ter levado você
a uma diversidade de especulações como “O que é um discurso
filosófico?”. Muito, muito resumidamente, para começarmos
nossa caminhada, diria a você que discurso filosófico é o texto
produzido pelo filósofo. Evidentemente, não se trata de qualquer
texto produzido pelo filósofo, mas aquele que procura dar conta
de uma visão de mundo, da definição conceitual de determinada
noção ou conjunto de noções. Tais textos têm, conforme o autor e
a época, variações estilísticas. Você pode encontrar longos textos
dissertativos, conjuntos de aforismos (textos curtos), alguns que
mais parecerão romances literários... Há uma gama tão grande de
estilos que pode parecer, para alguns, que certos textos não são
propriamente filosóficos.

Dito isso, cabe lhe esclarecer que, embora o que se segue comece
com uma apresentação sobre tipos de leituras, não é, ao menos
neste momento, o objetivo principal deste LD fazer um longo
debate sobre a teoria da leitura ou a teoria do texto – algo que
mereceria, certamente, um lugar na sua trajetória de estudante de
Filosofia, particularmente se você optar por desenvolver temáticas
na linha da Filosofia da Linguagem. Ainda assim, algumas
fontes indicadas poderão lhe ser úteis caso queira ir mais a fundo
nesse aspecto.

Mas, então, o que pretende esta disciplina?

Nesta disciplina, procuramos acompanhar um dado texto


filosófico para identificar certo procedimento de leitura e,
consequentemente, dar conta, ao menos inicialmente, da
estratégia (ou das estratégias) utilizada(s) pelo autor tomado. A
pretensão é levar você a fazer uma leitura de uma obra filosófica,
mesmo que de forma iniciática, por completo, exercitando
certas estratégias de leitura. Leitura feita, preferencialmente,
acompanhando a obra em questão.

18
Discurso Filosófico I

Assim, para já pôr as naus a navegar, cabe lhe indicar qual será a
obra a ser tomada.

A República, de Platão (1987), será nosso começo e nosso fim.


Bem, você deve ter notado que vai precisar dessa obra de Platão.
No mercado editorial brasileiro e português há uma variedade de
edições com preços variados dessa obra platônica.

Ao final desta unidade, será apresentada uma lista com algumas


dessas publicações com breves comentários. Infelizmente,
pelo tamanho da obra e por questões legais, não é possível
disponibilizar, em anexo, a obra por completo; mas, você
encontrará ao final desta unidade algumas indicações de
traduções que estão no mercado editorial em português e dois
links com uma edição mais antiga (dois volumes) em .pdf, que
poderá utilizar.

As citações diretas de A República de Platão seguiram o texto


da tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, em sua quinta
edição, de 1987. Entretanto, para efeito de referenciação, será
adotada a numeração clássica, convencionada internacionalmente.
Essa numeração clássica será utilizada sempre que a obra a ser
citada for da Antiguidade Grega.

Ao final desta unidade, você terá um esclarecimento maior sobre


o significado dessa forma de referenciação. Contudo, para que
você entenda como ela funciona, deve ter em mente o seguinte:
em primeiro lugar, aparece o nome do autor; depois, o título da
obra; posteriormente, se a obra for subdividida, como é o caso
de A República, aparece, em algarismos romanos, o número do
livro ou capítulo; segue a numeração arábica, que indica a página
estabelecida a partir dos manuscritos “originais”, acompanhada de
letras, que indicam os parágrafos; ainda, podem aparecer, ao final,
outros números arábicos, indicativos das linhas do parágrafo.

Veja o seguinte exemplo: PLATÃO, A República, II, 357a1-


3, significa que o autor da obra é Platão, a obra em
questão A República, em seu livro II, no parágrafo a,
linhas 1 a 3 desse parágrafo. Essa notação é utilizada
em bons manuais e, principalmente, por textos
especializados. Dessa forma, é importante que você se
acostume com ela.

Unidade 1 19
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para reforçar o que foi dito acima sobre as pretensões dessa


disciplina, cabe retomar algumas observações:

O conteúdo deste texto destina-se a tratar do discurso


filosófico. Nele, o aluno encontrará questões, digressões,
problemas etc., em suma, descrições de discursos
canonizados na história da filosofia. Mas também
encontrará algo um tanto distinto desse modo comum
ou ordinário de apresentá-la. Deve-se esclarecer ao
aluno que o intuito central dessas lições não é tanto
aprender esta ou aquela teoria, o que este ou aquele
filósofo pensou, tão pouco o que disseram os intérpretes
sobre certas passagens das obras filosóficas. Tudo isso
é importante, mesmo indispensável para caracterizar o
filosofar, e disto o aluno não poderá se esquivar durante
seu contato com a filosofia, seja neste trabalho ou em
outros lugares.
Porém, aqui não são os diversos discursos dos diferentes
filósofos e épocas que estão em questão, mas sim a
produção mesma dos seus discursos. Dessa forma, ainda
que venhamos a tomar algum texto de filosofia para
exercitar nossa tarefa, será esta tarefa que estará em
questão e não o texto primariamente. A tarefa é ler e
interpretar um discurso filosófico. (SILVA, 2009, p. 16)

Vamos começar?

Seção 1 – Algumas perspectivas de leituras

Esta expressão, aqui, está sendo Talvez alguns dos aspectos prenunciados anteriormente tenham
usada em um sentido mais lhe deixado ansioso(a) e você já se pôs a pensar em dicionários e
coloquial, sem a carga filosófica comentadores especializados de Platão. Mais ainda, tenha pensado
que tem. Embora, mesmo o sentido nas questões sobre a tradução e o fato de você não saber grego para
coloquial carregue, em parte, o
dar conta de uma boa leitura do texto platônico. Restará, também,
sentido filosófico.
aquela imagem de que o discurso filosófico é, por natureza,
hermético, de difícil penetração. Todas essas especulações têm
sentido; contudo, podem carregar os seguintes preconceitos:

20
Discurso Filosófico I

„„ Que você não é, nem será capaz de ler o texto de


Platão sem uma prévia bagagem especializada:
comentadores e dicionários. Se você pensar assim estará
se menosprezando.

„„ Que só poderá compreender plenamente o texto se


souber a língua em que foi escrito. Bem, isso será de
fundamental importância para alguém que, mais tarde,
pretenda ser um leitor especializado em Filosofia Grega
Antiga. Mas, lembre-se: a proposta, aqui, é fazer uma
leitura iniciática. Embora isso não signifique fazer a
leitura de qualquer jeito, não será preciso saber grego
para dar conta dessa proposta de leitura. Além disto,
mesmo grandes especialistas em Platão não consideram
que compreendem plenamente os escritos de Platão.

„„ Se os discursos filosóficos são mais herméticos, isso não


quer dizer que sejam, em sua totalidade, inacessíveis a
um neófito. Se isso fosse uma verdade absoluta, como
seria possível começar a leitura de um discurso filosófico?
Desfeitos alguns preconceitos e acreditando que você – e eu como
seu companheiro de viagem – pode(mos) fazer um percurso por
essa monumental obra de Platão, vamos, muito brevemente,
passar a algumas estratégias de leitura. Há aquela estratégia de
leitura preliminar, a saber, a leitura rápida.

Em que consiste a leitura rápida?

Em fazer uma leitura rápida da obra como um todo. Em tal


estratégia, você não deve se deter, aqui e ali, a algum tipo
de problema que surja: vocabulário, entendimento de certos
raciocínios etc. Trata-se de uma leitura rápida, que serve para
você, minimamente, se dar conta da temática do texto e de um
ou outro argumento central.

Tal leitura tem suas utilidades para uma rápida revisão da


bibliografia de uma disciplina ou temática que você esteja
pesquisando, por exemplo. Contudo, não é essa, ainda, a leitura
filosófica.

Unidade 1 21
Universidade do Sul de Santa Catarina

Mas o que seria, então, a leitura filosófica?

A leitura filosófica é aquela que Folscheid e Wunenburger (1997)


chamam de leitura aprofundada. Nela, esclarecem os autores
supracitados, nossa atenção é intensa, esquadrinhamos o texto, “as
palavras para nelas descobrir as noções, as frases para evidenciar
as teses, os parágrafos para esclarecer os objetos de discussão, dos
pressupostos, a argumentação e as implicações”. (p. 21).

Para esta leitura, você deve organizar bem seu tempo. Quando
ele for curto, detenha-se em uma ou duas páginas, sempre
com uma ficha de leitura, uma folha pautada ou um bloco
de anotações ao lado para tomar notas. Tomar notas é de
fundamental importância, pois nelas você:

„„ selecionará palavras cujo significado desconhece –


posteriormente o descobrindo, preferencialmente com a
consulta a um dicionário especializado;

„„ destacará as teses centrais, as secundárias e as estruturas


argumentativas; e

„„ anotará questões que lhe inquietam, levando proposições


para dialogar com o texto.
É recomendável que você busque algumas orientações sobre a
organização dos estudos, principalmente quanto à organização
dos dados obtidos na pesquisa bibliográfica ou documental.
Já para as especificidades do trabalho com textos filosóficos,
você pode consultar os livros Elementos para a Leitura dos Textos
Filosóficos, de Frédéric Cossutta (2001) e Metodologia Filosófica,
de Dominique Folscheid e Jean-Jacques Wunenburger (1997).
Tais indicações são para você relembrar e fixar melhor aspectos já
estudados ou para avançar um pouco mais na instrumentalização
para a leitura de textos filosóficos.

Cabe lembrar, ainda, que tais estratégias são instrumentais


para sua vida acadêmica e apreendê-las – tornando-as habituais
no seu trabalho com textos – não é “perda de tempo”. Muito
pelo contrário, se inicialmente tais estratégias vão lhe tomar
certo tempo, posteriormente, com as anotações em mãos e o
entendimento do funcionamento de certas estratégias de leitura,
ficará mais fácil escrever seus trabalhos.
22
Discurso Filosófico I

Portanto, se é preciso inclinar-se sobre as questões


metodológicas colocadas pelos textos, não é em primeiro
lugar para aprender a se sair bem em certas provas, mas
Mais uma vez, cabe
para facilitar uma atividade que todos devem realizar
ressaltar que este LD não
por conta própria, sem que ninguém possa agir em seu
entrará em polêmicas
lugar. Uma vez cumprida essa missão, o êxito nas provas
sobre a identidade
de avaliação será dado por acréscimo – o contrário
filosófica de cada texto.
não é nem viável nem verdadeiro. (FOLSCHEID;
Até porque, para efeito
WUNENBURGER, 1997, p. 8).
de exercício, tomaremos
um texto consagrado pela
Muitas vezes, no processo de leitura, fazemos um misto de tradição como de teor
leitura rápida e leitura aprofundada. Mas, é a leitura aprofundada filosófico – embora, possa-
se discutir se seu estilo é
que importa aqui. E, dentro de suas possibilidades, os tipos de
filosófico ou literário.
abordagens que você pode tomar mediante um texto filosófico.

Basicamente, podemos falar de três tipos de abordagens do texto


filosófico quanto à leitura:

„„ a historicista;

„„ a dogmática; e

„„ a genético-historicista.
Para esta disciplina, adotaremos, predominantemente, a estratégia
dogmática, sem desprezar, entretanto, as outras abordagens. Você
poderá encontrar outras nomenclaturas para essas abordagens, ou
mesmo outras opções; contudo, para não ficar com detalhismos
que poderiam levar a digressões muito longas, afetando seu
acompanhamento do que é essencial, levaremos em consideração as
três citadas. Vejamos, resumidamente, as características básicas de
cada um desses tipos de leitura.

1.1 – A leitura historicista


A leitura historicista é aquela que parte do contexto em que o
autor e sua obra estão; procurando, a partir de uma biografia,
de uma contextualização histórica, dar conta do que levou o
pensador a produzir determinado texto. Tal perspectiva parte da
tese de que há uma relação intrínseca de causa e efeito entre fatos
e ideias: o autor e, consequentemente, suas obras são fruto de um
contexto. Partir desse contexto é, para essa perspectiva, o mais
importante para um bom entendimento do sentido da obra que se
toma para leitura.
Unidade 1 23
Universidade do Sul de Santa Catarina

Assim, se o autor escreveu algo para responder a certo


interlocutor, é preciso saber, antes de qualquer coisa, quais
circunstâncias deram origem a tal debate, quais são os
antecedentes históricos disso, qual é o contexto em que ambos
se encontram e assim por diante. Há, também, o aspecto
psicológico do autor: seu caráter e que influências tal caráter tem
sobre seu estilo de escrita, ou, ainda, quais foram seus mestres e
até que ponto os seguiu e/ou os negou.

Esse é o tipo de abordagem predominante nos livros de História


da Filosofia. Para efeito de exemplificação, tome um manual de
filosofia. Bem, que seja o de Danilo Marcondes (1998), Iniciação
à História da Filosofia. Para sermos coerentes, vamos à parte que
apresenta Platão. Qual é o primeiro tópico, subitem, do manual?
“A. O contexto de surgimento da filosofia de Platão.”.

Ah! Você pode estar a pensar: “Ora, professor, este é um


manual de História da Filosofia e não poderia ser diferente!”.
Sim, sim, é pertinente o que você aponta. Então, tome um
texto mais especializado, que pretende apresentar uma parte
da obra A República, de Platão (1987), certamente a parte mais
divulgada: o Livro VII, onde está a Alegoria da Caverna. Que
tal o livro de Bernard Peittre, Platão – A República: Livro VII?
Basta olhar o sumário:

Prefácio Pierre Aubenque....................................................2


I A Grécia Antiga .............................................................5
II — Platão, um filosofo em luta contra a decadência...12
III — O Pensamento de Platão........................................22
IV — Resumo do VII.......................................................39
V — A República, Livro VII (Texto)...............................46
VI — Documentos.............................................................87
VII— Julgamentos.............................................................96
— Notas......................................................................105
— Glossário................................................................107
— Indicações biográficas...........................................112
(1985, p. 1).

Quantas expectativas e especulações podemos ter e fazer ao ler


esse sumário!

Esses dois exemplos bastam para nosso objetivo. Entretanto, por


curiosidade e como exercício, você pode tomar alguns livros de
Filosofia e se atentar para isso, a partir de seus sumários, índices...

24
Discurso Filosófico I

Esse tipo de leitura – a historicista – prima pelo uso do


comentário; lê um texto pelo seu contexto histórico, ou
seja, parte do que vem de fora do texto para dar conta
de seu significado: do contexto ao texto.

1.2 – A leitura dogmática


A leitura dogmática, diferente da leitura historicista, não se
preocupa, fundamentalmente, com o contexto histórico, mas com
a estrutura do texto e a “lógica argumentativa” interna a este.
Nesse procedimento, é a explicação que se faz mais presente.
Não há, aqui, um debate com o autor, e sim a aceitação de
suas teses, tomando o texto como propagador de uma verdade
interna. Nessa abordagem, você deve acreditar naquilo que o
autor defende. É nesse sentido que esse procedimento recebe a
denominação de dogmático.

Aqui cabe uma distinção entre:

„„ comentário de texto; e

„„ explicação de texto.
Para tanto, Dominique Folscheid e Jean-Jacques Winenburger
(1997, p. 30), em Metodologia Filosófica, são esclarecedores.

Para dizer em poucas palavras, a explicação de texto


busca saber o que um autor verdadeiramente disse
numa dada passagem, enquanto o comentário é uma
interrogação armada (de referências, sobretudo) sobre o
que ele disse de verdadeiro.
A explicação é uma tarefa bem delimitada, portanto
estritamente limitada.
Distinguiremos dois casos. Se o texto é apresentado como
ocasião de um exercício de análise de um pensamento
filosófico, deve-se excluir qualquer erudição relacionada
com o contexto (que não se supõe conhecido) ou com
a obra da qual é extraído. Pode acontecer, porém, que
o conhecimento geral de um autor ou de uma época
facilite, sem condicioná-la, a boa interpretação [...].

Unidade 1 25
Universidade do Sul de Santa Catarina

Em contrapartida, quando o extrato de texto vem


complementar o estudo de um autor, é aconselhável situar
o texto na obra, e fazer ambos dialogarem. Convém,
no entanto, não confundir os dois casos e de maneira
nenhuma permitir que conhecimentos exteriores ao texto
retardem ou sobrecarreguem inutilmente a explicação do
texto apresentado.

Note que os autores indicam ser a erudição, em alguns casos,


problemática à explicação. Isso combina, em parte, com a
abordagem dogmática, pois, para ela, o contexto do texto não é
de fundamental importância. Assim, um grande conhecimento
das circunstâncias históricas, sociais e psicológicas relacionadas
ao autor afastaria o leitor do próprio texto, do ponto de vista da
leitura dogmática.

Para essa abordagem, o texto se revela por si só,


bastando uma leitura atenta.

Mais a frente, Folscheid e Winenburger (1997, p. 32) indicam os


princípios da explicação de texto:

Em seu princípio, a explicação de texto é a operação mais


simples que existe. Consiste, como seu nome indica,
em enunciar o que há num texto dado, nem mais nem
menos. Explicar é desdobrar, mostrar o que está exposto,
pressuposto, implicado, subentendido ou calado por um
autor preciso, num lugar bem circunscrito.

1.3 – Leitura genético-historicista


O procedimento genético-historicista é uma mistura dos dois
procedimentos previamente citados: historicista e dogmático.
Entretanto, ele parte do procedimento dogmático e, tomando
certos momentos do texto, que façam alusões a pessoas, fatos
históricos ou teses, vai aos aspectos historiográficos, biográficos,
psicológicos e assim por diante.

Como exercício, você pode tomar uma passagem da obra que


vamos ler. Algo visível de imediato é se tratar de um diálogo e
que, como tal, apresenta personagens. Essas figuras nominadas

26
Discurso Filosófico I

são vistas por alguns estudiosos como personagens históricos e


não simplesmente como personagens literários.

Aqui cabe uma pequena ressalva. Como indica José Trindade


Santos (2008b, p. 12),

Logo aí se nota o erro de assimilar a empresa da


composição de textos na Antiguidade ao modo como
tem sido vista nestes dois últimos séculos. “Verdade” e
“Falsidade” não permanecem como categorias intocáveis
ao longo dos séculos; nem sequer são encaradas em
literatura como costumam ser em filosofia. A pergunta
implícita a essas objeções é se, lendo os diálogos como
obras ficcionadas, poderemos buscar verdade neles.
Um segundo erro muito comum consiste em encarar
esses diálogos como reportagens de conversas reais, a que
Platão teria assistido. Não há dúvida de que a oralidade se
acha bem viva nessas brilhantes peças dramáticas, onde
não falta pirotecnia sofística. Boa parte do texto pode
ter sido inspirada por debates e confrontos reais. Nada
nos obriga, contudo, a aceitar a historicidade dos eventos
relatados. Nem vemos razões que obriguem a atribuir
a personalidades históricas as opiniões expressas pelas
personagens homônimas do diálogo.

Ao se deparar com estas figuras literárias ou históricas, você pode


buscar informações sobre elas e, com isso, encontrar maiores
detalhes sobre as teses que estão sendo debatidas no diálogo.

O mesmo valeria para uma descrição do ambiente, de rituais da


época. Note, você não fez antes uma pesquisa sobre o ambiente
ou os personagens dessa época para, depois, na leitura do
texto, levantar as relações de causa e efeito entre fatos e ideias
apresentadas no texto em questão.

Adotando esse procedimento genético-historicista, você primeiro


toma o estrato do próprio texto e, ao encontrar elementos que
referenciam o contexto histórico, você sai do texto. Ainda assim,
essa saída do texto pede, após a pesquisa de informações do
contexto, que você volte ao texto. Adotando tal procedimento,
evita-se ler o texto como pretexto para outras coisas que não
sejam a interpretação do próprio texto em questão.

Unidade 1 27
Universidade do Sul de Santa Catarina

Como o objetivo aqui não é se aprofundar nas teorias da leitura ou


do texto, o que se apresenta é suficiente para que você tenha uma
ideia das bases de algumas formas de leitura do texto filosófico. O
mais importante é tomar um texto e procurar praticá-las.

Seção 2 – O leitor e o texto


Mesmo com as observações ao final da seção anterior, é bom
especular sobre as condições de leitura e as características do
texto filosófico.

Bem, para refletir sobre as condições de leitura de um texto


filosófico, retome o que foi escrito sobre os preconceitos
apresentados no início da seção 1. Volte lá e releia esta parte; só
depois retome a sequência da seção 2.

Mesmo que se tenha indicado que não é preciso ter uma bagagem
anterior sobre Platão, seu contexto histórico e sobre a obra em
questão, você já deve ter trabalhado ou conhecido esse texto
por outras vias. Mesmo que o plano seja a retomada de textos
previamente lidos a respeito dessa obra platônica, a recomendação
é que isso seja feito apenas depois da leitura da obra em questão
e quando as dificuldades quanto ao entendimento de certas
passagens surgirem.

Algumas abordagens recomendam que você leia o texto deixando


de lado sua bagagem. Isso é, no fundo, muito difícil. E, pensando
nos textos de Platão, muito mais.

Por quê?

Porque a mentalidade ocidental cristã está carregada de


elementos da tradição platônica, mesmo que, por vezes, aquilo
que utilizamos (ou interpretamos) de Platão esteja, há muito,
descontextualizado e, em função disso também, distante do que
“originalmente” Platão queria dizer. Contudo, utilizando a Teoria

28
Discurso Filosófico I

das Formas de Platão, de alguma maneira essas noções diluídas


participam das ideias como cópias da cópia da cópia (...).

Aqui surgem dois conceitos que podem ser abordados mais


detalhadamente:

„„ a Teoria das Formas; e

„„ as ideias.

Como salienta José Trindade Santos, em Para Ler Platão – O


Problema do Saber nos Diálogos sobre a Teoria das Formas,

A expressão ‘Teoria das Formas’ (TF) não se encontra


uma única vez na obra de Platão. É responsável por ela a
tradição aristotélica, que, prosseguindo a crítica iniciada
pelo Estagirita, em textos como os da Metafísica A6 e 9,
constitui indiretamente a ‘teoria’ platônica aí exposta como
objeto das críticas da escola. [e continua o comentador]
Por sua vez, o termo Forma (no singular, eidos, idea)
aparece com frequência nos diálogos platônicos, menos
vezes com sentidos não-técnicos (ou seja, quando se
pensa não manifestar qualquer associação à teoria),
como o de ‘vulto’, ou quase técnico, como o de ‘aspecto’
ou ‘característica’ [...] Mas também aparece em alguns
diálogos com o que pode ser visto como um outro sentido
técnico, traduzido por ‘gênero’, ‘classe’ ou mesmo por
‘forma’. (2008b, p. 59).

É a leitura aristotélica que remete à noção de que Platão


estabelece uma separação entre o mundo dos sentidos e o mundo
inteligível (ou das ideias, formas).

E o que seria o mundo das ideias?

Devemos abrir um parêntese e comparar o vocabulário


grego utilizado por Platão com aquele que é usualmente
empregado para expressar o seu pensamento. Em geral,
considera-se que a palavra ‘forma’ traduz o grego eídos, e
‘ideia’ o grego idea. E, efetivamente, pode-se traduzir às
vezes essas palavras por ‘forma’ e ‘ideia’. [...]

Unidade 1 29
Universidade do Sul de Santa Catarina

De fato, a palavra grega eidos designa o aspecto exterior


de uma coisa, é o aspecto físico, o look. No Banquete,
Alcibíades diz que Sócrates tem a aparência física de
um Sileno. Diríamos, realmente, que, com o seu nariz
achatado e seus olhos saltados, ele tem uma “cara” (eidos)
de Sileno. É o sentido primeiro da palavra eidos.
Eidos designa, ainda, as “figuras” geométricas. Há três
“espécies” de ângulos, três eidê.
Definitivamente, Platão vai ampliar o sentido da palavra:
eidos designará o que aparece, qualquer que seja o modo
de aparecer. E a realidade, o ser que se dá a ver, a ousia,
pode tomar um aspecto inteligível; é, ainda, um eidos e
traduzimos essa palavra por ‘forma’ ou ‘ideia’.
Idea não tem exatamente o mesmo sentido. Essa
palavra designa uma realidade que não tem contornos
materializáveis ou visíveis. Por exemplo, a ideia, ídea, de
ímpar. O algarismo três é um ‘eidos’, o ímpar é uma idea.
Mas a alma também, que não tem contornos visíveis ou
determináveis, é uma idea.
Essas observações de vocabulário são importantes, nem
que seja apenas para mostrar o perigo que existe em
substituir a reflexão de Platão sobre a linguagem e o
conhecimento por uma ‘teoria das ideias’, ao passo que a
palavra “ideia”, correspondendo ao sentido que ela toma
nessa fórmula, não existe em Platão.
Na apreensão do inteligível, trata-se realmente de
“formas inteligíveis”, daquilo que chamamos “ideias”;
logo, é normal e legítimo empregar essa palavra, mas
sem, sistematicamente, caricaturá-la com uma maiúscula.
Não se deve esquecer que a palavra “ideia” não designa
um estado mental, mas aquilo que, da realidade, nos
aparece na linguagem. (JEANNIÈRE, 1995, p. 64).

Aqui, cabe recuperar outra passagem de Silva (2009, p. 22-23):

Façamos um exercício: leio a passagem de Platão “Todo


discurso deve ser constituído como um ser vivo. Ter um
corpo próprio de modo a não ser nem sem pés nem sem
cabeça, mas a ter um meio e extremidades que sejam
escritos de maneira a serem convenientes entre si e o todo”
(Platão, Fedro, 264c). O que ocorre de particular quando
lemos esse discurso de Platão? A expressão “sem pés e
cabeça” já nos é popularmente conhecida. Mas de onde
o popular conhece essa expressão? Ora, justamente da
popularização dessa passagem ou de alguma que o valha.

30
Discurso Filosófico I

Quando lemos esse trecho em Platão somos


imediatamente levados para um mundo grego
imaginário, imagem esta constituída a partir do fato de
reconhecermos entre nós e os gregos algo de comum,
registrado na expressão “sem pés nem cabeça”. Assim, o
que reconhecemos não é o texto de Platão, mas algum
parentesco e, neste sentido, ainda não o estamos lendo.
A leitura está por começar, ela está se solicitando. Diante
dessa solicitação você pode se perguntar:
I ‘Em que contexto do livro Platão disse isso, por que essa
expressão ali ocorreu?’
Esta atitude que prepara a leitura, em que você se torna
solícito ao ler, nada mais é que a constatação de que o uso
popular que fazemos da expressão “sem pés nem cabeça”
deve guardar algo de semelhante com o uso de Platão,
mas também não deve ser o mesmo. Ocorre então ao
leitor que é o próprio texto que lhe está fazendo exigência
de compreender-lhe o sentido e que o sentido prévio que
o leitor nesse caso traz consigo, apesar de certamente ter
parentesco com o discurso quanto às letras, talvez não
tenha o mesmo parentesco quanto ao seu uso e sentido
dado originariamente por Platão. Será preciso afastar o
sentido da expressão popular e aproximar-se do sentido
que a le-itura do discurso platônico permite, para tentar
le-cionar ou retirar dela o que permite compreender por
meio do discurso.

Se essa passagem apresentou dificuldades para você, antes de Muitas vezes, Platão, assim
avançar, é interessante que você a leia novamente. Lembre-se: na como outros filósofos,
leitura aprofundada, esse movimento de ir e vir deve ser constante. toma termos que têm
uma gama semântica
É como um atleta de salto a distância: antes de dar seu pulo ele
bem variada e dá a estses
faz movimentos pendulares, que o impulsionarão mais distante. termos um teor bem
específico ou lhes atribui
A que cabe se atentar, aqui? uma nova definição; há,
ainda, os momentos em
Atente-se ao fato de que, embora você possa utilizar sua que o filósofo constrói
palavras – é sua atitude
bagagem, deve desconfiar dos sentidos que atribui a certas noções
nomotética.
que aparecem no texto filosófico. Mas, você pode estar a pensar:
“Então, agora vou a um dicionário especializado?”. Não vá de
imediato a um dicionário especializado. Antes, procure no
próprio texto se não há elementos que lhe dão condições de
preencher determinadas noções. Essa estratégia, primeiro,
caracteriza sua autonomia; segundo, sua paciência perante as

Unidade 1 31
Universidade do Sul de Santa Catarina

adversidades da leitura. Só depois, caso a dificuldade permaneça,


vá a uma literatura especializada.
Um dicionário que lhe pode ser útil é
Não entraremos na questão da vasta celeuma sobre os textos
Vocabulário de Platão, de Luc Brisson
e Jean-François Pradeau (2010). “originais”, pois avaliar e se posicionar nesse campo exigiria
um domínio muito grande da língua grega em suas diferentes
formulações. Contudo, uma ou outra palavra grega já é sua
conhecida e um vocabulário mínimo lhe será oferecido. Isso lhe
propiciará, no futuro, avançar em leituras mais especializadas.

A questão do hermetismo do discurso filosófico leva a refletir


sobre a especificidade desse tipo de texto e as dificuldades de
penetrá-lo. Já na introdução do livro de Frédéric Cossutta,
Elementos para a Leitura dos Textos Filosóficos, você pode encontrar
aspectos que apresentam as dificuldades relacionadas à leitura
do texto filosófico e algumas possibilidades de transpor tais
dificuldades. Para tanto, o autor apresenta algumas características
do texto filosófico que são importantes destacar:

Com efeito, por definição, parece que toda obra filosófica


– esta é uma característica do gênero – elabora ou
pretende elaborar as condições de sua própria validade, e
portanto enuncia as próprias regras da leitura que se pode
fazer. (2001, p. 3).

Isso implica dizer, também, como garante o texto de Cossutta,


que, ao escrever um texto filosófico, o filósofo constrói uma visão
de mundo. Assim sendo, ler um texto filosófico é reconstruir tal
visão e, como tal, (re)construir sobre ou a partir dela a sua visão de
mundo. Tiramos desse texto a seguinte lição:

Compreendemos que a aprendizagem da leitura só pode ser


filosófica; nada pode dispensar a reflexão. Entretanto, isso
não significa que se deva concluir pela inutilidade de uma
tentativa metodológica. (Id., Ibid., p. 4).

Mas, o que o autor quer indicar com isso?

Simples. Que, embora devamos prestar muita atenção nas


recomendações dadas pelo próprio filósofo sobre como se
conduzir em sua apresentação textual de uma visão de mundo
No sentido de exteriores ao texto
(texto filosófico), há certa aplicação se tomarmos um ou outro
que se toma para leitura.
procedimento de leitura estipulado por outros autores que
escrevem sobre estratégias e técnicas de leitura do texto filosófico.
32
Discurso Filosófico I

Contudo, tais estratégias ou técnicas não são receitas prontas para


a leitura filosófica, pois tal leitura se dá no próprio processo de leitura.
Dessa forma, aquilo que vale para o processo de aprendizagem da
leitura de outros tipos de textos, basicamente também vale para o
filosófico, a saber, de que aprendemos a ler lendo.

Mas o que é esse ler?

Certamente não se trata de um soletrar, ou seja, de um processo


de sonorização de grafos. Evidentemente, essa primeira etapa
do aprendizado da leitura já deve estar superada e não é
propriamente o que você deve tomar aqui como leitura.

Pense em algo similar à noção de alfabetizado. Estar alfabetizado


não é, simplesmente, saber sonorizar os grafos de um texto e
usá-los em um processo de escrita, mas poder entendê-los e se
expressar com o uso de um dado código gráfico aprendido – em
nosso caso, o abecedário.

Esse “se expressar” não pode ser entendido como um memorizar,


decorar ou um mero transcrever textos ou falas. Como você já
deve saber, a mera cópia das ideias dos outros não é um indicativo
de sua habilidade reflexiva. No máximo, pode ser entendida
como um exercício mecânico de “estudo dirigido”, que até
pode ser útil na leitura rápida e em alguns momentos de seus
apontamentos de leituras para um exercício com texto. Entretanto,
o resultado de um exercício filosófico não deve ser só isso, pois
isso é muito pouco, quase nada, no processo desse exercício.

É nesse sentido, que podemos entender a noção de analfabeto


funcional, aquele que sabe sonorizar o código escrito e escrever
o sonorizado, mas, ao ser questionado sobre algo do escrito, que
exige uma compreensão mais elaborada do texto, no máximo,
repete o texto.

Voltemos às características do texto filosófico, indicadas por


Cossutta (2001, p. 4-5):

[...] trata-se de um texto que visa a universalidade e que,


para atingir seu objetivo, deve apagar as marcas de sua
particularidade, a qual, no entanto, todo olhar dirigido
a história atesta com evidente. [...] Isso nos encoraja a

Unidade 1 33
Universidade do Sul de Santa Catarina

procurar os mecanismos gerais pelos quais a filosofia se


produz como tal através dos textos: parece que, apesar
da diversidade dos gêneros, das teses, dos modos de
exposição, pode-se apreender funções bastante gerais que
determinam aquilo que torna um texto propriamente filosófico.
De fato, um leitor atento percebe intuitivamente que, para
além de opções ideológicas, de tipos de textos (diálogo,
tratado, resumo, carta) ou de contextos sociais e históricos,
pode-se detectar fenômenos gerais. Já encontramos dois
deles: todo texto filosófico tenta mediatizar a relação do
particular ao universal, e o que torna as filosofias contrárias
é o que as aproxima. Mas muitos outros fenômenos
gerais se oferecerão a nós. Por exemplo, toda filosofia
deve, implícita ou explicitamente, validar sua própria
possibilidade enunciativa, [...]. Toda filosofia deve efetuar
escolhas em face da tripla exigência que comanda sua
ordenação: ordem da descoberta, ordem lógica (ordem das
“razões”) e ordem de exposição. Cada filosofia resolve de
modo diverso esse problema de organização. Entretanto,
na medida em que cada uma deve resolvê-la, podemos
construir uma tipologia das formas de resolução. Em cada
fragmento reencontraremos uma dosagem entre conceitos,
metáforas, argumentos. As operações que os articulam são
também reveláveis.

Tudo isso pode levar você a pensar que há grande variedade de


possibilidades interpretativas da leitura filosófica. Isso é correto,
pois o leitor, assim como o escritor, fará escolhas no processo
interpretativo da leitura. Como estamos diante de textos
que, por vezes, estão incompletos ou se inter-relacionam, sob
determinados pontos de vista, com outros do mesmo autor, isso
se torna mais pertinente. Entretanto, não podemos concluir que
qualquer tipo de leitura ou interpretação sejam válidas a partir
disso. Se a filosofia pode dar diferentes respostas a determinada
questão, não significa que ela dê qualquer resposta ou que
qualquer resposta valha para tal questão.

Dessa forma, no processo de leitura filosófica, você pode, com


certo cuidado, recompor o texto, tomando o próprio texto. Tenha
isso em mente, sempre que se deparar com um texto filosófico.

34
Discurso Filosófico I

Embora tenha dito anteriormente que não trabalharemos


predominantemente com a leitura historicista, uma breve
contextualização do tempo e da obra de Platão é pertinente.

Então, vamos a ela?

Seção 3 – Platão: seu tempo e sua obra


Platão, alcunha de Aristócles, foi um ateniense, que nasceu
aproximadamente em 428 a.C. e morreu por volta de 348
a.C.. Viveu entre o apogeu e o declínio de Atenas, que serviu
como cidade centro por sua superioridade político-cultural
e foi contemporâneo do enfraquecimento de Esparta, outra
importante cidade grega e principal adversária de Atenas.

Os dados biográficos de Platão compreendem


informações de vários textos e comentários. Alguns
são: Sir Ernest Barker (1878), Teoria Política Grega; Maria
Helena da Rocha Pereira (1987), na introdução de A
República; Bernard Piettre (1985), Platão – A República:
Livro VII.

Dez anos após a morte de Platão, Filipe da Macedônia dominou


a Grécia, que nunca mais se recuperou. Platão era filho de família
influente:

„„ seu pai era Ariton, descendente do rei Codro, último


rei de Atenas, amigo de Péricles, grande figura política
ateniense do século V a.C.; e

„„ sua mãe, Perictíone, prima de Crítias, membro do


Governo dos Trinta, irmã de Carmides.

Unidade 1 35
Universidade do Sul de Santa Catarina

Observe a seguinte figura, com a representação da árvore genealógica


da mãe de Platão:

Figura 1.1 – Árvore geneológica da família materna de Platão (segundo J. BURNET).


Fonte: Pombo ([200-]).

Platão, por sua origem, tendia para a vida política. Entretanto,


a Grécia vivia em guerra. Após o domínio de Esparta sobre as
cidades gregas, foi instaurado um regime tirânico em Atenas,
denominado o Governo dos Trinta, do qual participavam
parentes e amigos de Platão. Esse governo impopular foi
derrubado pela democracia. Essa democracia – que não era mais
aquela dos tempos de Péricles – veio a condenar Sócrates, de
quem Platão era discípulo.

Esses fatores fizeram com que Platão viesse a desistir da carreira


política, o que deixou claro na Carta VII (324b-326b):

Quando eu era jovem, senti o mesmo que muitos: pensei,


mal me tornasse senhor de mim mesmo, ir direto à
política. Tinha o projeto de imediatamente abordar a
política tão logo pudesse dispor de mim mesmo. E eis
como alguns eventos das coisas políticas me atingiram.
Como o governo era detestado por muitos, nasceu uma
revolução, e da revolução foram propostos alguns homens
como magistrados, cinquenta e um, onze na cidade
alta, dez no Pireu — cada um dos dois grupos deveria

36
Discurso Filosófico I

dirigir a assembleia popular nas cidades — e, de todos,


estabeleceram trinta magistrados com plenos poderes.
Destes, alguns que me eram por acaso familiares e
conhecidos logo me convidaram para também participar
dos trabalhos que me convinham. E eu não senti que
fosse coisa espantosa, devido à minha juventude. Pois,
pensei que haveriam mesmo de dirigir conduzindo a
cidade de uma vida injusta para um modo justo; por isso,
prestei atenção ao que fariam.
E logo vi que esses homens em pouco tempo mostraram
que a antiga constituição era como de ouro. — Além
disso, um amigo meu, mais velho, Sócrates, que eu
certamente não me envergonharia de dizer ser então o
mais justo de todos, mandaram-no com outros contra um
dos cidadãos, conduzindo-o à força para a morte, a fim de
que fosse cúmplice dos negócios deles, querendo ou não.
Mas ele não se deixou persuadir e arriscou-se a suportar
tudo, em vez de se tornar cúmplice deles em atos ímpios.
— Considerando então todas essas coisas e ainda outras
tais não pequenas, desgostei-me e afastei-me dos males
de então.
Em não muito tempo, caíram os trinta e todo o governo
dessa época; de novo, mas mais lentamente, arrastava-me
o desejo de administrar a coisa pública e o governo.
De fato, havia também nessas agitações muita coisa
acontecendo com a qual alguém poderia se desgostar, e
não era de espantar que nessas revoluções acontecessem
vinganças pessoais. Contudo, os que então chegaram
usaram de muita equidade.
Mas calhou que alguns que detinham o poder levassem
ao tribunal esse nosso companheiro, Sócrates, lançando
a mais injusta acusação, que se aplicava menos do que
tudo a ele. Pois, uns acusaram-no como ímpio, outros
condenaram e mataram este que não quis participar de
uma ímpia condução ao tribunal de um dos amigos deles,
então exilado, quando, exilados eles próprios, tinham
caído em desgraça.
A mim, que observava essas coisas e os homens que
faziam política, quanto mais examinava as leis e os
costumes e avançava em idade, tanto mais me parecia
difícil ser correto ou dedicar-me à política.
Pois, sem amigos e companheiros fiéis, não é possível
agir. — Ora, não era fácil achar quem tomasse a
iniciativa, uma vez que nossa cidade não era administrada
mais nos costumes e usos dos ancestrais, e não era
possível conseguir com facilidade outros novos amigos e
companheiros. — A corrupção dos artigos das leis e dos

Unidade 1 37
Universidade do Sul de Santa Catarina

costumes alastrava tão espantosamente, que eu, que de


início estava pleno de ímpeto para realizar o bem comum,
olhando para eles e vendo-os sendo completamente
levados de qualquer modo, acabei em vertigem. Não
deixei, contudo, de esperar um momento adequado, se,
na verdade, a situação e todo o governo melhorassem,
para ainda aproveitar qualquer ocasião de realizar o
bem comum. Acabei por entender que todas as cidades
de agora são mal governadas, pois têm legislação quase
incurável, e falta uma preparação extraordinária aliada
à fortuna. Fui obrigado a dizer, louvando a verdadeira
filosofia, que a ela cabe discernir o politicamente justo
em tudo dos indivíduos, e que a espécie dos homens
não renunciará aos males antes que a espécie dos que
filosofam correta e verdadeiramente chegue ao poder
político, ou a espécie dos que têm soberania nas cidades,
por alguma graça divina, filosofe realmente.

Após a morte de Sócrates, Platão deixou Atenas e fez diversas


viagens; cogita-se que tenha ido ao Egito, à Ásia Menor, à Creta,
ao Sul da Itália e à Sicília. Numa dessas viagens, é provável que
tenha encontrado Arquitas, governador de Tarento, da escola
pitagórica. Voltando à Atenas, em torno de 387 a.C., fundou a
Academia, com o objetivo de formar o autêntico filósofo, através
dos estudos científicos. Mais ou menos nessa época teria escrito a
maior parte dos livros que compõem A República.

Uma leitura interessante, caso você queira ter mais


dados sobre o ambiente que antecede Platão,
particularmente a Guerra do Peloponeso, que
provocou profundas transformações na Grécia Antiga,
é a de Donald Kagan (2006), A Guerra do Peloponeso:
Novas Perspectivas sobre o Mais Trágico Confronto da
Grécia Antiga.

Diversas vezes, Platão tentou fazer com que as ideias


apresentadas em A República se fizessem cumprir. Também se
decepcionou: a primeira decepção iniciou durante sua viagem
à Sicília, em 387 a.C., aproximadamente. Durante essa visita,
conheceu Díon, um cunhado de Dionísio I, que se converteu às
suas ideias.

38
Discurso Filosófico I

Mais tarde, por volta de 367 a.C., morreu Dionísio. Díon apressou-
se em fazer com que Platão fosse a Siracusa. Na realidade, tratava-
se, para Díon, de associar o jovem Dionísio II ao sonho de Platão,
de que ele, fiel discípulo, compartilhava: ver um rei-filósofo.
Mas, ao que parece, Dionísio II não era dado aos estudos e logo
desconfiou que Platão e Díon estavam a conspirar contra ele. Por
essa desconfiança, Dionísio II separou os dois amigos; assim, Díon
foi banido e Platão forçado a permanecer na corte.

Logo, o jovem tirano, levado a empreender uma campanha militar


na Itália, permitiu que Platão voltasse para Atenas e à Academia,
não sem antes exortá-lo a retornar a Siracusa. Novo convite foi
feito por Dionísio II, por volta de 361 a.C. e Platão aceitou, mas
a contragosto. Novamente, Dionísio II se revelou inflexível,
certamente porque Platão havia reclamado, com muita insistência,
que Díon retornasse do exílio. Dionísio II confiscou os bens de
Díon e obrigou Platão a permanecer em Siracusa, de onde, não
sem dificuldade, o filósofo consegue partir ao fim de um ano,
graças à intervenção de Arquitas de Tarento. Mais tarde, Díon e
outros membros da Academia tomaram o poder em Siracusa.

Entretanto, Platão viu aquele que considerava um possível


filósofo não resistir às intempéries políticas internas e externas,
se tornar inflexível e autoritário e ser assassinado por um amigo.
Essas questões provocaram em Platão, já com uns 75 anos, uma
revisão em suas ideias – é o que defendem alguns comentadores,
ao compararem os diálogos A República e As Leis.

Esse é um aspecto importante, pois demonstra a obra de


Platão como sendo uma obra aberta e não, propriamente, um
sistema fechado. Nela, o filósofo tenta rever, ir e vir em grandes
temas e inquietações de sua época, que também são temas e
inquietações do Ocidente como um todo até hoje.

E a educação da época? Como era feita?

Havia, basicamente, dois grandes modelos educacionais:

„„ o ateniense; e

„„ o espartano.

Unidade 1 39
Universidade do Sul de Santa Catarina

O modelo ateniense era privado, ou seja, cabia à família a


educação do jovem. Dispunha de três fases:

„„ a primeira compreendia letras, ginásticas e músicas, que


servia para acompanhar a poesia lírica;

„„ a segunda, religião e ética, relacionada às letras, dos seis


aos 14 anos; e

„„ a terceira era retórica e política, ministrada pelos sofistas,


dos 14 aos 18 anos.
Esparta tinha um modelo rígido, militar. Aos sete anos os jovens
eram tirados de suas famílias e entregues ao Estado. Passavam
por treinamento atlético militar rigoroso, com a finalidade
de modelar os espíritos à coragem. Os educandos viviam em
comunidade e passavam por diversas provas semelhantes às
Aquilo que se baseia nos costumes, militares de hoje – ou piores do que elas.
em leis não escritas, em normas
usuais dadas pelos costumes.
Havia, em Esparta, leis consuetudinárias, que se mantiveram
por muito tempo, mantendo as tradições, enquanto, em Atenas,
Palavra grega que podemos traduzir por as leis escritas produziram uma burocracia ineficiente. Os poetas,
educação, formação em pleno sentido:
nessa época, eram os grandes educadores morais e religiosos. A
físico, moral, intelectual, estético.
poesia tinha na paideia um valor muito grande.

Os poemas épicos homéricos constituíam um conjunto de


escritos invisíveis impressos no cérebro da comunidade.
Eles representavam um monopólio exercido pela
técnica épica sobre a língua culta. Um semelhante
controle, para ser eficaz, precisava estar ligado à atuação
funcional. O fato de que a língua homérica não fosse a
vernácula apenas acentuava seu poder de controle. As
épocas e as condições exatas nas quais os vernáculos
gregos se separaram ainda são obscuras. Porém durante
toda a Grécia arcaica e clássica ainda se diziam as
coisas homericamente e se tendia a pensar sobre elas
homericamente. Aqui, não se tratava apenas de um estilo
poético, mas de um estilo internacional, um idioma
superior de comunicação.
O controle sobre o estilo do falar de um povo, não
obstante indireto, significa controle igualmente sobre o
seu pensamento. As duas tecnologias da comunicação
conservada conhecidas da humanidade, isto é, o estilo
poetizado, com sua organização acústica, e o estilo
prosaico visual, com sua organização visual e material,

40
Discurso Filosófico I

cada um dentro de seus respectivos domínios, controla


também o conteúdo do que é comunicável. Sob um único
conjunto de circunstâncias, o homem organiza a mesma
experiência de maneiras diferentes, com diferentes
palavras e com uma sintaxe diferente e talvez, quando
assim o faz, a própria experiência se transforma. Isso
significa que os padrões de seu pensamento correram
historicamente por duas trilhas distintas, a oral e a
escrita. As razões desse fato ainda não foram esclarecidas.
Mas de qualquer modo, Platão, se nos permitem
voltar agora a ele, parece ter estado convencido de que
a poesia e o poeta haviam exercido um controle não
apenas sobre o estilo verbal grego, mas também sobre
a disposição mental e a consciência gregas. O controle,
segundo ele, havia sido fundamental; ele o descreve
como monopolizador. Isso está de acordo com a nossa
própria análise da posição do poeta na Idade das Trevas
grega. Se Platão estiver correto, essa posição permaneceu
virtualmente a mesma durante o período clássico grego.
(HAVELOCK, 1996, p. 160-161).

Todos esses elementos históricos têm influência na formação


da educação em A República: a educação voltada para
a formação de um guardião perfeito era resposta a um
contexto onde a corrupção e a ganância tomavam a cena.
Com elementos de Esparta e de Atenas, Platão compôs sua
paideia, mantendo elementos da velha, como a ginástica e a
música, mas radicalizando no que se referia às artes plásticas
e, principalmente, à poesia. Os poetas, para Platão, eram os
corruptores da alma, incutiam virtudes inadequadas. Mas isso
você verá melhor a partir da própria leitura de texto de Platão.

Para complementar, não se pode esquecer a tradição sofística:


pensadores itinerantes que prometiam ensinar qualquer coisa
mediante um pagamento – notórios professores de retórica e
oratória – consideravam as artes demasiadamente importantes
para a democracia ateniense e pregavam o relativismo ético
e epistemológico, ou seja, que não haveria um valor absoluto
que fundamentasse a ética ou o conhecimento, e, sem pudores,
ensinavam como defender uma tese e sua posição contrária.
Muitos dos diálogos platônicos receberam como título o nome de
alguns dos mais ilustres sofistas.

Unidade 1 41
Universidade do Sul de Santa Catarina

Uma leitura introdutória sobre a educação na Grécia


Antiga é o Capítulo 4 – Antiguidade Grega: A Paideia,
do livro História da Educação, de Maria Lúcia de Arruda
Aranha (1996). Se você desejar se aprofundar nesse
tema, não deve deixar de ler o clássico de Werner
Jaeger, Paideia: A Formação do Homem Grego (2003).

Platão, assim como Sócrates, não tinha grande apreço pela


escrita, pois ela era imitação da linguagem oral. No entanto,
Platão, diferentemente de Sócrates, nos deixou obras escritas,
mas optou por um estilo literário que se mostra o mais próximo
possível das conversas que tinha na Academia. Por isso, escreveu
em forma de diálogo. O significado deste “método” platônico
cabe apresentar a seguir.

Seção 4 – A dialética, muito mais que um método


As primeiras obras de Platão, os denominados escritos socráticos
ou aporéticos, têm uma característica negativa, ou seja, não
chegam a uma conclusão. Podemos observar isso no Livro I,
de A República, de Platão, que alguns estudiosos colocam neste
grupo. Mas, em sua totalidade, o diálogo A República, de Platão,
é classificado como uma obra intermediária da maturidade.

Para dar conta das dificuldades quanto à classificação


dos diálogos platônicos, procure Para Ler Platão, de
José Trindade Santos (2008a), particularmente as
páginas de 30 a 34. Também vale a pena ler Victor
Goldschmidt, Os Diálogos de Platão: Estrutura e Método
Dialético (2002).

A metodologia de perguntas e resposta – o elencho – serve para


fazer com que os interlocutores descubram a debilidade de sua
doxa (opinião, juízo, argumento). Assim, Sócrates derruba os
argumentos de Céfalo, Polemarco e Trasímaco, sobre o tema
discutido – a justiça, mostrando a eles as contradições dos

42
Discurso Filosófico I

próprios argumentos e fazendo com que seus interlocutores


admitam ignorar o assunto. Mas não se chega a nenhuma
conclusão no final do Livro I (Cf. PLATÃO, A República,
I, 354bc). Sócrates admite que tenha havido muita confusão
(desvios) no caminho tomado, ficando, ainda, ao final desse livro,
incerto o que seria “justiça”.

No entanto, A República não mantém essa característica por


todo o livro. Tem-se, mais adiante, outro caminho, onde são
estabelecidas comparações, como entre as letras maiores e
as menores (Cf. PLATÃO, A República, II, 368d) e, com o
caminhar da conversa, vão sendo tiradas conclusões que todos
acabam aceitando. Esses dois caminhos são empregados na
própria forma escrita de A República (Id. Ibid.), que tenta
“reproduzir” os diálogos que Platão tinha com seus discípulos.

Reproduzir vai entre aspas porque, tratando-se de uma obra


escrita num estilo literário, fica difícil, conforme salienta
José Trindade Santos (2008a, p. 12), tomar como “falsos” ou
“verdadeiros” os fatos descritos:

Um segundo erro muito comum consiste em encarar


esses diálogos como reportagens de conversas reais, a que
Platão teria assistido. Não há dúvida de que a oralidade se
acha bem viva nessas brilhantes peças dramáticas, onde
não falta pirotecnia sofistica. Boa parte do texto pode
ter sido inspirada por debates e confrontos reais. Nada
nos obriga, contudo, a aceitar a historicidade dos eventos
relatados. Nem vemos razões que obriguem a atribuir
a personalidades históricas as opiniões expressas pelas
personagens homônimas do diálogo.

Na questão dos diálogos escritos por Platão, ele é muito criticado


por ter feito diversas considerações contrárias à escrita.

Impõe-se uma última observação ao leitor dos diálogos


de Platão. São obras escritas, destinadas ao público
estranho à Academia, com vista a assegurar a difusão
das ideias platônicas. Como tais, caem sob o escopo da
crítica que o seu autor formulou muitas vezes contra a
‘coisa escrita’ (Fedro, 274 e sqq.; Protágoras, 329 a; Carta
VII, 341 a sqq.): o texto escrito é um intermediário entre
o autor e aquele que quer atingir a Verdade contactando
com ele; portanto, contém em si o risco de impedir o

Unidade 1 43
Universidade do Sul de Santa Catarina

diálogo, a comunicação entre pessoas vivas e presentes,


sem os quais não há verdade possível […]. A leitura
da obra de Platão supõe primeiramente, portanto, a
vontade de atingir o autor através daquilo que escreveu.
(MAIRE, 1966, p. 27-28).

Esse é o método utilizado por Platão e, ao mesmo tempo, a


própria filosofia, a busca do saber, indo das opiniões (a escuridão)
às essências (luzes, ideias). Esse caminhar prático/teórico é a
dialética, a única forma em que o filosofar é possível para Platão.

O método da dialéctica é o único que procede, por meio


da destruição das hipóteses, a caminho do autêntico
princípio, a fim de tornar seguros os seus resultados, e
que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da
espécie do lodo bárbaro em que está atolada e eleva-os às
alturas. (PLATÃO, A República, VII, 533cd).

O falar (oralidade), para Platão, está muito ligado ao raciocínio,


à construção dos conceitos, ao ser como essência. O homem é o
único animal que fala, tem uma linguagem, produz conceitos,
juízos e assim por diante.

Apanhar o homem na cilada de sua palavra, obrigá-lo


a convir que esta é outra coisa que o simples reflexo do
interesse, da paixão e do capricho, convencê-lo de que
falando, experimente uma realidade que ultrapassa seu
estatuto empírico, construir o sistema de enunciados
irrecusáveis aos quais nenhum indivíduo de boa fé possa
recusar sua adesão, em suma, construir um saber que seja
reconhecido como juiz de todas as práticas, tal é, em seu
primeiro movimento, o projeto platônico. (CHÂTELET,
1973, p. 87).

Assim, importa dizer: Platão aposta que o homem consegue


vislumbrar as coisas em si, consegue ir além das opiniões (doxa).
Isso é decisivo e merece ser acentuado. Novamente: da mesma
forma que Platão acredita na possibilidade humana de vislumbrar
algo seguro, irrecusável, e finalmente seguro para todos enquanto
todos são racionais, também é possível para ele vislumbrar o bem
moral, a cidade perfeita (política e ética são coincidentes, e não
conflitam, como em Maquiavel). Conhecer surge para Platão
como um reconhecimento (anámnēsis), a alma em busca de sua

44
Discurso Filosófico I

origem, da essência. Ao tomar um corpo, essa, antes, bebe na


fonte do esquecimento. e, nesse corpo, precisa novamente ser
encaminhada para a luz.
Alusão ao Mito de Er, que
você verá em A República,
[...] a dialética é o instrumento próprio para chegar ao Livro X, 614b-621b.
conhecimento dos objetos do pensamento – as Ideias
puras – e, finalmente, ao seu objeto último, a Ideia do
Bem. Podemos chamar a dialética de lógica e metafísica,
ou simplesmente de filosofia; mas, qualquer que seja
denominação, ela é não apenas o estudo de objetos
percebidos pela mente (mathémata); mas o exame dos
primeiros princípios do ser, e sobretudo daquele que é o
primeiro e o último, a Ideia do Bem, causa do ser e objeto
final do conhecimento. (BARKER, 1978, p. 194).

E na “grade curricular” – que aparecerá no Livro VII de A


República – de Platão (1987), a dialética ocupa o último nível.
Depois da música, artes e ginástica, matemática e ciências
afins, está a dialética, que dará ao guardião a condição de ver
além, de conseguir ver a justiça, o bem, as ideias e se tornar o
verdadeiro filósofo. Esse método, a dialética, será empregado pelo
“professor” na escola, de quem podemos dizer:

[...] o professor ‘extrai’ do aluno o que ele tem de melhor;


na verdade, seria mais próprio dizer que este ‘melhor’
aparece por si, reagindo a presença de certos fatores
externos, e que a arte do professor consiste justamente
em expor tais fatos diante do aluno. (BARKER, 1978, p.
183-184).

Assim, através do diálogo, o próprio caminhar da obra A


República mostra isso: o “professor”, no caso, Sócrates, faz
seus “alunos” descobrirem, ou reconhecerem, o significado de
“justiça” em sua essência. Recebendo estímulos, por assim dizer,
desvelarão o que está escondido no seu “interior” e, aí, conhecer-
se a si mesmo equivale a conhecer o mundo, as ideias.

A dialéctica, cume da educação filosófica, é caracterizada


por duas imagens: supõe uma marcha regular que é
uma ascensão, e dá uma visão, isto é, uma instituição.
Quando Platão diz que é necessário fazer realizar à alma
inteira uma evolução para a desviar da visão obscura do
dever para o ser, é na educação científica que ele pensa.

Unidade 1 45
Universidade do Sul de Santa Catarina

Mas, feito isto, trata-se de fazer incidir sobre esse ponto


luminoso, o Bem, o órgão que na alma é feito para
produzir semelhante conversão, e é a dialéctica (518c-d).
Neste acto decisivo, as especialidades científicas limitam-
se a colaborar; dão à alma a atitude necessária para essa
visão de conjunto, de que só a dialéctica é capaz (537c).
Dum lado e outro o método será pois diferente, embora
permaneça na esfera da inteligibilidade pura e sem
nada pedir aos sentidos. (…) Na dialéctica é apenas um
ponto de apoio para se elevar gradualmente até um termo
anipotético, servirá em seguida de princípio a partir do
qual se fará a mesma operação descendente que se faz
no outro caso (VI, 510b e seg.; VII, 533c e seg.); é a
verificação da tese pelo acordo das consequências entre si
e com ela. (BRUN, 1985, p. 38-39).

O diálogo é um caminhar semelhante àquele feito na Alegoria da


Caverna (PLATÃO, 1987): das sombras (opiniões), passamos
por imagens (entendimento) até chegarmos às luzes (ideias). Esse
caminho é feito através da dialética. Na construção de uma lei
científica, tem-se uma hipótese; aqui, um argumento.

Podemos falar em argumentos Por exemplo: Trasímaco, no Livro I, considera a justiça como
falaciosos e coerência lógica se “o que está no interesse do mais forte” (PLATÃO, A República,
usarmos a linguagem lógica, que I, 338c). Nesse sentido, fazem-se experiências. Aqui temos que
não deixa de ter uma grande relação tornar a própria linguagem (conceitos) objeto de estudo. Então,
com a dialética, se não for ela a
se tratará de experimentar os argumentos usados para sustentar a
própria origem da lógica.
hipótese: se na linguagem não há contradições ou incoerências.
Experimentada a hipótese, chegamos a uma lei. Por ser lei,
portanto, universal, podemos tirar várias outras conclusões e
perceber a conversão entre as próprias essências, o que nos faz
falar de uma meta-hipótese.
Que alguns chamam de mitos ou
alegoria ou, ainda, símile.
Dentro do diálogo, o texto apresenta várias imagens. Há certas
coisas que são difíceis de explicar. Por isso, Platão apela para as
imagens (mitos), que são, como se diz na obra em dado momento,
uma espécie de fábula. Há algumas fábulas que podemos manter,
pois, embora no conjunto elas sejam mentiras, não deixam de
conter alguma verdade. (PLATÃO, A República, II, 377a). Por
sua vez, as narrativas míticas facilitam a compreensão, pois têm
uma linguagem poética, sem distorções, como as de Homero e
outros poetas, o que anima o espírito e provoca a imaginação.

46
Discurso Filosófico I

Assim, é possível entender o uso de imagens (mitos) no diálogo:

O método platônico é demonstrativo e seu instrumento


é a “arte” dialética. Entretanto, frequentemente, o
discurso lógico busca apoio em imagens ou alegorias,
frequentemente também desemboca em narrações
míticas. Às técnicas indutiva e dedutiva ajuntam-se, pois,
procedimentos que repousam sobre o valor expressivo da
analogia ou da metáfora. … Nos dois casos, a linguagem
do saber é, ela também, parcialmente inapta para dizer
o que é. Duplamente inapta: demasiado envolvida no
sensível, ela não consegue dizer completamente a mais
alta realidade; demasiado desligada dela, tem dificuldade
em fazer entender o que, “lá em cima”, aprendeu.
A imagem, o mito compensam essa insuficiência;
compensam-na mas num sentido positivo, se se pode
dizer: a narração lendária enriquece a dialética, aumenta
seu vigor, acrescenta uma lógica metafórica à lógica da
demonstração. (CHÂTELET, 1973, p. 113).

Para avançar, no sentido da dialética, é importante você ter em


mente, como atenta Goldschmidt (2002, p. 3), que as questões
metodológicas em Platão se encontram dispersas em sua obra.
Uma dessas passagens é a seguinte:

Há em cada um dos seres três [elementos], a partir dos


quais é necessário que o saber surja, sendo o quarto
ele mesmo; em quinto lugar, há que pôr o que é em si
cognoscível e verdadeiramente é. Um é o nome, o segundo,
a definição, o terceiro, a imagem, o quarto, o saber.
Demos um exemplo a quem quiser aprender o que
digo agora e pensemo-lo em relação a todas as coisas:
o circulo é o que é dito, que tem esse mesmo nome que
agora enunciamos; a sua definição é o segundo elemento,
composta de nomes e de verbos: aquilo que mantém das
extremidades ao meio igual distância em toda parte. A
definição valeria para o mesmo que tenha esse nome
“redondo e circular e círculo”.
Terceiro é o que é desenhado e o que é apagado, o que é
torneado e o que se perde. Mas o circulo em si, o mesmo
em relação com tudo isso, em nada é afetado, porque é
diferente deles.

Unidade 1 47
Universidade do Sul de Santa Catarina

O quarto é o saber, a inteligência e opinião verdadeira sobre


ele. Ora, essa unidade deve ser posta não em sons, nem em
formas de corpos, mas deve ser presente nas almas; o ser
destes é manifestamente diferente da natureza do próprio
circulo e dos três elementos ditos antes.
Desses, o que mais se aproxima por parentesco e semelhança
é a inteligência, avizinhada do quinto elemento; os outros
se afastam mais. Há em cada um dos seres três [elementos],
a partir dos quais é necessário que o saber surja, sendo o
quarto ele mesmo; em quinto lugar, há que pôr o que é em si
cognoscível e verdadeiramente é. Um é o nome, o segundo, a
definição, O terceiro, a imagem, o quarto, o saber.
Há em cada um dos seres três [elementos], a partir dos quais
é necessário que o saber surja, sendo o quarto ele mesmo;
em quinto lugar, há que pôr o que é em si cognoscível e
verdadeiramente é. Um é o nome, o segundo, a definição, o
terceiro, a imagem, o quarto, o saber.
Demos um exemplo a quem quiser aprender o que digo agora
e pensemo-lo em relação a todas as coisas: o circulo é o que
é dito, que tem esse mesmo nome que agora enunciamos; a
sua definição é o segundo elemento, composta de nomes e de
verbos: aquilo que mantém das extremidades ao meio igual
distância em toda parte. A definição valeria para o mesmo
que tenha esse nome “redondo e circular e círculo”.
Terceiro é o que é desenhado e o que é apagado, o que é
torneado e o que se perde. Mas o circulo em si, o mesmo
em relação com tudo isso, em nada é afetado, porque é
diferente deles.
O quarto é o saber, a inteligência e opinião verdadeira sobre
ele. Ora, essa unidade deve ser posta não em sons, nem em
formas de corpos, mas deve ser presente nas almas; o ser
destes é manifestamente diferente da natureza do próprio
circulo e dos três elementos ditos antes.
Desses, o que mais se aproxima por parentesco e semelhança
é a inteligência, avizinhada do quinto elemento; os outros
se afastam mais. Há em cada um dos seres três [elementos],
a partir dos quais é necessário que o saber surja, sendo o
quarto ele mesmo; em quinto lugar, há que pôr o que é
em si cognoscível e verdadeiramente é. Um é o nome, o
segundo, a definição, O terceiro, a imagem, o quarto, o saber.
(PLATÃO, Carta VII, 342a-343a).

Pulando as exemplificações e alguns detalhes de cada um desses


“modos de conhecimento”, mais à frente encontramos outra
passagem significativa:

lnumeráveis são os discursos acerca da obscuridade de


cada um dos quatro modos de conhecimento. Mas o
mais importante é o que dissemos ainda há pouco, que

48

Sem título-1 48 07/07/15 09:29


Discurso Filosófico I

– sendo o ser e a qualidade dois entes, e procurando a


alma conhecer não a qualidade de algo, mas o ser, cada
um desses quatro modos estende se à alma, por palavras
e fatos, cada um mostrando-se tanto pelo que diz, quanto
pelo que indica, facilmente refutável pelas sensações –
cada um deles enche todo homem, para dizer em uma
palavra, de aporia e obscuridade.
Nessas coisas não estamos acostumados a procurar o
que é verdadeiro, por má educação; aceitamos a primeira
dentre as imagens que foi apresentada. Não somos
ridicularizados uns pelos outros, os que são interrogados
pelos que interrogam, enquanto pudermos descartar e
contestar os quatro modos.
Mas, quando nos obrigamos a responder e declarar sobre
o quinto modo, dentre os que podem, qualquer um que
queira subverter domina e faz com que aquele que ensina,
em discursos ou por escrito ou por respostas à maioria dos
que ouvem, pareça nada saber do que pretenda escrever
ou ler, ignorando algumas vezes que não é a alma do que
escreveu ou leu que é contestável, mas a natureza de cada
um dos quatro modos, defeituosa por natureza.
Contudo, transcorrendo por todos eles, mudando cada
um para acima e para baixo, a custo se engendra o saber,
quando a boa natureza do que conhece se alia à boa
natureza do que é conhecido Caso seja de má natureza
para aprender e para os chamados bons costumes, por
natureza, como é a condição de alma da maioria, tudo se
corrompe, nem Linceu faria com que esses vissem.
Numa palavra, quem não tem afinidade com o assunto
não compreenderá nem pela facilidade nem pela memória,
pois por principio este não nasce em condições adversas.
Assim, quantos não são de natureza afim e familiares
das coisas justas e de outras quantas belas, e outros – de
natureza afim, mas familiares de outras coisas –, dóceis
em aprender e ao mesmo tempo de boa memória, nem
quantos são familiares, mas indóceis em aprender e não de
boa memória, nenhum desses jamais poderá aprender na
medida do possível a verdade sobre virtude e vicio; pois, ao
mesmo tempo, é necessário aprender tanto o falso como o
verdadeiro de tudo que é, com todo esforço e muito tempo,
como eu dizia no principio.
De modo que, forçando [destaque nosso] cada um
desses uns contra os outros, nomes e definições, visões
e percepções, refutando com refutações cordiais,
perguntando sem inveja e usando bem da pergunta,
brilham a sabedoria e a compreensão de cada um, tanto
quanto é possível a força humana suportar. (PLATÃO,
Carta VII, 343b-344b).

Unidade 1 49
Universidade do Sul de Santa Catarina

No último parágrafo da citação acima, encontramos o verbo


forçando, tradução do verbo grego tribô, utilizado no particípio.
Na tradução de Silva e Melo (1989, p. 77), essa passagem fica
assim: “Só quando fizermos chocar uns contra os outros”. Logo,
tribómena – particípio médio-passivo de tribô – foi traduzido
por fazermos chocar. Outra tradução dessa passagem que você
pode encontrar está em Goldschmidt (2002, p. 7): “Só depois de
esfregarmos, por assim dizer, uns nos outros”.

Cabe salientar que o particípio é um modo verbal muito


empregado em grego, mas com dificuldades de tradução ao
português, pois corresponde a muitas possibilidades em nossa
língua. Pode assumir:

„„ uma forma nominativa: substantivo, atributo ou


predicativo do sujeito, variando em gênero, número e
caso; ou

„„ uma forma verbal (variando em tempo e voz).


O verbo tribô no modo particípio também pode formar
orações subordinadas participiais ou um substantivo quando
acompanhado de artigo. No geral, traduz-se como infinitivo
flexionado ou gerúndio.

De acordo com as traduções tomadas aqui, o campo semântico do


verbo tribô pode ser: esfregar, triturar, moer, macerar, raspar, coçar,
gastar etc. Esfregar é interessante, pois leva à imagem de que as
hipóteses levantadas ao longo do diálogo, para dar conta de certas
definições, são colocadas em xeque no processo dialético.

Assim, nesta etapa “esfregatória” da dialética, tem-se um duplo


movimento, como indica Silva (2009, p. 70):

[...] entre os elementos epistêmicos (desce-se e sobe-se


entre eles) e os discursivos (colóquio entre perguntas e
respostas), é um dos pilares do método platônico, a fazer
par com um segundo que se encontrará a propósito da
dialética das opiniões.

50
Discurso Filosófico I

A outra etapa é a “purgatória”, cujo procedimento seguiria os


seguintes passos:

1. Propor ao interlocutor questões, mas esse interlocutor,


acreditando resolver algo valioso, não apresenta
uma resposta de real valor. Essas questões têm por
característica insistir na indagação sobre o ser de um
objeto de forma a especificar exaustivamente as posições
contrárias possíveis, o que normalmente termina por
confundir, admirar ou cansar o interlocutor.

2. Após verificar a variedade de opiniões, elas são postas


à prova, aproximando os raciocínios e as confrontando
umas com as outras. Trata-se de verificar que duas teses,
até então concebidas isoladamente sem problemas, são
contraditórias: passa-se a demonstrar que a propósito
do mesmo objeto, sob os mesmos pontos de vista e
nas mesmas relações, as opiniões são mutuamente
contraditórias. É desse modo que se chega à colocação
por princípio da não contradição.

3. O efeito sobre o interlocutor em perceber a contradição


em termos é colocá-los contra si mesmos, tornando-os
conciliadores com os outros, libertando-os das opiniões
arrogantes.

As passagens em questão foram esquematizadas abaixo.

Estádios Elementos Lugares Exemplo


Nome “círculo”
‘o que tem sempre a mesma
Definição Sons e distância entre as extremidades e
I figuras materiais o centro’
a forma que se pode desenhar ou
Imagem apagar ou que se fabrica no torno
e pode ser destruída
Ciência
II Inteligência Alma referem-se aos três modos acima
Opinião
O círculo em si
III Objeto real diferencia-se de todos os a inteligência é o mais próximo
por semelhança
casos acima

Quadro 1.1 – Quadro sobre os estádios do conhecimento


Fonte: Silva (2009, p. 62).

Unidade 1 51
Universidade do Sul de Santa Catarina

Silva explica o esquema da seguinte maneira:

O nome é convencional, pois “nada impede de darmos


o qualificativo de retas às coisas que presentemente
denominamos circulares ou de circulares às que
chamamos de retas, pois os nomes não veem a ficar
menos fixos após a mudança de suas aplicações”
(PLATÃO, Carta VII, 343 b1-4).
A definição é o que participa da instabilidade de seus
componentes de modo comum.
A imagem concreta de algo “é cheia de elementos
contrários ao quinto”, como o círculo desenhado que
“toca em todos os seus lados a linha reta”, a definição que
consiste no círculo em si mesmo “não contém nem muito
nem pouco da natureza contrária da sua” (PLATÃO,
Carta VII, 343 a6-9.).
A ciência, inteligência e opinião são também modos
imperfeitos porque somente podem oferecer a qualidade
do objeto, nunca sua essência: assim como o nome e a
definição se inscrevem na matéria verbal e a imagem
nas figuras corporais, a ciência se inscreve na alma, mas
todos esses modos são exteriores ao objeto, pois podem
descrevê-lo, referi-lo, tocá-lo, em suma, copiá-los, mas
não substituí-lo. (PLATÃO, Carta VII, 343 8-c2.).
O objeto real não é algo que se possa enunciar ou
discorrer de qualquer modo. Sobre ele, o elemento
cognitivo que mais pode se aproximar é a inteligência.
Portanto, somente por aproximação intelectual pode-se
tratar do objeto em si, e esta modalidade de discurso é
o mito como recurso de imagem que se sabe imagem.
Assim, o conhecido mito da caverna é exemplo de um
mito intelectual e não imagético.
Se é verdade que esses cinco elementos constituintes dos
estádios do conhecimento não são níveis, entretanto,
também é verdadeiro que eles podem ser valorados
segundo um critério hierarquizante. Ontologicamente
há hierarquia e epistemologicamente não. Isso quer dizer
que somente considerando e partindo do ser podemos
iluminar a verdade dos nossos estádios de conhecimentos,
porém, o conhecimento nunca se encontra além desses
momentos de início. Por isso, Platão pode falar em ascese
da alma na direção do ser metaforizado pela imagem
da luz do Sol. Assim, existem quatro elementos no
conhecimento, mas não suficientes para atingir o ser,
por serem todos cópias possíveis do objeto. A hierarquia
que existe em Platão é entre o que é cópia e o que é
modelo, por isso ontológica e não epistemológica. Do
ponto de vista do conhecimento, os quatro elementos são
todos imitações e prelúdios da alma escravizada no amor

52
Discurso Filosófico I

próprio e no amor sensível. Inclusive as ciências listadas


na primeira parte do Livro VII da República (ou seja da
página 525 a 528 do original grego) são chamadas de
“meros prelúdios”. (SILVA, 2009, p. 62-64).

Aliado a isso, conforme o autor, você deve perceber uma


estrutura musical no discurso filosófico de Platão, que pode ser
dividida em três aspectos:

„„ preparação inicial do problema;

„„ secundariedade do objeto; e

„„ demora do discurso: a) um processo de repetição das


perguntas e teses e b) a parada, a repetição, o desvio e o
retorno da questão dialética em seus desdobramentos.
Mas o que significa dar ao discurso uma estrutura musical?

Dizer que essa estrutura é musical não alude apenas à


passagem do Livro VII da República, mas antes ao fato
de que ‘música’ entre os gregos designava toda forma
de arte sonora, incluindo o canto, a literatura, a poética
e toda forma de ‘letras’ que guardavam seu caráter
harmônico. A forma literária platônica é mais um caso,
apesar de seu estilo revolucionário. (Id., Ibid., p. 76).

Tudo isso demonstra que você deve ter muita atenção no


processo de leitura e apontamento da obra A República, de Platão,
pois, diferentemente de um texto dissertativo da Academia
contemporânea, o texto platônico não lhe dá de imediato o tema
a ser trabalhado. A proposta é justamente esta: que você vá
descobrindo o tema a partir da própria leitura.

Para finalizar, aqui vai uma lista de edições de A República que


você pode encontrar no mercado em português.

Unidade 1 53
Universidade do Sul de Santa Catarina

A República – Edições sugeridas


Uma das melhores traduções é a de Maria Helena da Rocha
Pereira, editada pela fundação Calouste Gulbenkian, que já está
na 12ª edição, sendo que as edições mais recentes apresentam
revisões e atualizações bibliográficas. Trata-se de uma tradução
feita a partir do texto em grego estabelecido por John Burnet
(1814-1901), apresentando, nas laterais do texto, a numeração
clássica.
Outra tradução em português é a de Edison Bini, pela EDIPRO.
Essa também tem a numeração clássica e, segundo indicações na
nota do tradutor, segue os textos estabelecidos por John Burnet
e Benedictus Gotthelf Teubner (1784-1856). Entretanto, diferente
da tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, não apresenta
grandes detalhes sobre os procedimentos para a tradução.
Outra edição com a numeração é a da editora Martin Claret,
traduzida por Pietro Nascetti, mas algumas notícias dão conta
de se tratar de uma adaptação da tradução de Maria Helena da
Rocha Pereira. Você encontra essa edição on-line.
A coleção Os Pensadores, da editora Nova Cultural, também
apresenta um volume com o texto de A República, traduzido por
Enrico Corvisieri. Essa tradução não tem a numeração clássica,
nem indicações de quais fontes foram tomadas para a tradução.
A editora da Universidade Federal do Pará lançou, entre 1973
e 1980, uma coleção, sob coordenação do professor Benedito
Nunes e tradução de Carlos Alberto Nunes, com obras completas
dos diálogos e cartas de Platão. Tal projeto editorial teve uma
retomada parcial com a publicação de alguns volumes entre
1986-1988 e 2000-2007. A terceira edição, agora acompanhada do
texto em grego, foi lançada no ano de 2011 com os três primeiros
volumes: O Banquete, Fedon e Fedro; o quarto volume, ainda a sair,
será o de A República. Fazendo uma pesquisa em sebos virtuais,
você pode encontrar alguns volumes da primeira edição.

Se desejar comprar o diálogo, opte por uma tradução direta do


grego para o português – há no mercado traduções de traduções,
ou seja, traduções que originariamente foram feitas do grego
para o inglês, por exemplo, e, posteriormente, vertidas para o
português – e que tenha a numeração clássica. É bom lembrar
que um estudante de filosofia deve ir montando sua biblioteca
pessoal e alguns títulos são fundamentais: A República, de Platão,
é um deles!

54
Discurso Filosófico I

Mas, você deve estar se perguntando: o que é, afinal, uma


numeração clássica? A passagem abaixo esclarece:

A obra de Platão foi revelada à Europa ocidental, em


sua integralidade, pela tradução latina feita por Marsílio
Ficino em 1483-1484. A primeira edição moderna do
texto grego data de 1534, e foi em 1578, em Genebra,
onde Henri Estienne tinha se refugiado para escapar
das perseguições católicas contra os protestantes, que ele
publicou a edição a partir da qual estamos acostumados
a citar Platão. Essa edição completa das Obras de
Platão compreende três tomos com uma paginação
contínua. Em cada página há duas colunas: na coluna da
direita está impresso o texto grego, e, na da esquerda,
encontramos uma tradução latina realizada por Jean de
Serres. No meio, entre as duas colunas, aparecem cinco
letras (a, b, c, d, e), que dividem mecanicamente em
cinco parágrafos as duas colunas de cada página. Essa
disposição explica o modo de citar Platão. Menciona-
se primeiro o título da obra. Em seguida, depois de ter
assinalado o número do livro (no caso da República ou
das Leis), indica-se a página da edição de Henri Estienne
(sem precisar o tomo); por fim, especifica-se o parágrafo
a que se está fazendo referência, ou mesmo a linha. Por
exemplo, Timeu 35a (página 35, parágrafo a) ou República
VII, 514b2 (livro VII, página 514, parágrafo b, segunda
linha). (BRISSON; PRADEAU, 2010, p. 5).

Agora, é hora de tomar o diálogo A República e seguir adiante.

Unidade 1 55
Universidade do Sul de Santa Catarina

Síntese

Nesta unidade, você começou com algumas noções sobre


leitura de texto. Viu que podemos fazer uma leitura rápida, para
reconhecimento básico do texto, e uma leitura aprofundada,
que exige maior atenção e um “ir e vir” na leitura, além de
ser acompanhada de apontamentos. Depois disso, de forma
sintética, passou pelas abordagens da leitura filosófica, conhecendo
a abordagem dogmática, que se fixa na estrutura argumentativa
do texto e considera o texto com uma verdade em si; a abordagem
historicista, que lê o texto por seu contexto, considerando-o como
consequência de sua época; e a abordagem genético-historicista,
que consiste em um meio termo entre as duas abordagens
anteriormente apresentadas. Viu, também, a diferença entre
comentar e explicar texto.

Em um momento posterior, você foi apresentado(a) a alguns


aspectos biográficos de Platão e do ambiente histórico de
produção da obra a ser lida – A República. Dados esses aspectos,
você viu as características da dialética e outros aspectos da
estrutura musical dos textos platônicos.

Tudo isso foi apresentado com a ressalva de que você deverá


encontrar tais elementos partindo da própria leitura do texto em
questão, solicitando, então, que você tenha sempre em mãos,
doravante, a obra escolhida para o exercício de leitura. Em função
disso, ao final, lhe foi apresentada uma lista de publicações da
obra A República, de Platão.

56
Discurso Filosófico I

Atividades de autoavaliação

1) Pautando-se nas características da leitura rápida e da leitura


aprofundada, leia atentamente as situações da primeira coluna e
indique, na segunda coluna, a qual tipo dessas leituras se refere cada
situação.

SITUAÇÕES TIPO DE LEITURA


a) Um especialista em Platão se detém na análise de determinada passagem de A
República, compilando e comparando as traduções dessa passagem e fazendo seus
apontamentos para elaboração de um artigo para uma revista especializada da
Sociedade Brasileira de Estudos Platônicos.
b) Você está fazendo um levantamento sobre determinada temática para um trabalho
nos diálogos socráticos de Platão, ainda não leu todos e está no começo de sua
pesquisa.
c) O professor lhe solicitou um rastreamento das questões centrais de determinado
texto. Você ainda não conhece tal texto. Então, começa a leitura...

2) Agora, pautando-se nas características das abordagens filosóficas de


leitura, responda:

a) Qual abordagem prioriza o texto em detrimento do contexto do


texto?

b) Qual abordagem parte do texto e, encontrando elementos que


remetam às situações históricas, vai ao contexto do texto para, na
sequência, retornar ao texto?

Unidade 1 57
Universidade do Sul de Santa Catarina

Saiba mais

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação. 2.


ed. rev. e atual. São Paulo: Moderna, 1996.

BARKER, Sir Ernest. Teoria Política Grega. 2. ed. Trad.


Sérgio Bath. Brasília: Ed. UnB, 1978. (Coleção Pensamento
Político, v. 2)

BRISON, Luc; PRADEAU, Jean-François. Vocabulário de


Platão. São Paulo: Martins Fontes, 2010. (Coleção Vocabulário
dos filósofos)

BRUN, Jean. Platão. Lisboa: Dom Quixote, 1985.

CHÂTELET, François. A Filosofia Pagã: Do Século VI a.C.


ao Século II d.C. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

COSSUTTA, Frédéric. Elementos para a Leitura dos Textos


Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FOLSCHEID, D.; WUNENBURGER, J-J. Metodologia


Filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

GOLDSCHMIDT, Victor. Os Diálogos de Platão: Estrutura e


Método. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2002.

HAVELOCK, Eric. Prefácio a Platão. Campinas: Papirus,1996.

JAEGER, Werner. Paideia, a Formação do Homem Grego.


São Paulo: Martins Fontes, 2003.

JEANNIÈRE, Abel. Platão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

MAIRE, Gaston. Platão. Lisboa: Edições 70, 1966. (Biblioteca


Básica de Filosofia, v. 4)

PETERS, F. E. Termos Filosóficos Gregos: Um Léxico


Histórico. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

58
Discurso Filosófico I

PLATÃO. Carta VII. Trad. e notas de José Trindade dos Santos


e Juvino Maia Jr. Rio de Janeiro: Ed.PUC-RJ; São Paulo: Loyola,
2008.

. A República. 3. ed. Intr., trad. e notas de Maria


Helena da Rocha Pereira. Porto-Portugal: Fund. Calouste
Gulbenkian, 1987.

SANTOS, Trindade José. Para Ler Platão. Tomo I – A


Ontoepstemologia dos Diálogos Socráticos. São Paulo: Loyola,
2008a.

. Para Ler Platão. Tomo II – O Problema do Saber


nos Diálogos sobre a Teoria das Formas. São Paulo: Loyola,
2008b.

. Para ler Platão. Tomo III – Alma, Cidade, Cosmo.


São Paulo: Loyola, 2009.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho


Científico. 21. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cortez, 2000.

SILVA, Fernando Maurício da. Discurso Filosófico I – Livro


Didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2009.

Unidade 1 59
2
UNIDADE 2

Um percurso pelo Livro I de


A República

Objetivos de aprendizagem
„„ Identificar o tema central e as teses defendidas no Livro
I de A República.

„„ Analisar as estratégias refutativas de Sócrates.

Seções de estudo
Seção 1 A cena inicial e a posição de Céfalo

Seção 2 A posição de Polemarco

Seção 3 A posição de Trasímaco

Seção 4 Outras considerações


Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Nesta unidade, faremos uma leitura pontual do Livro I de A
República, de Platão, identificando as estratégias discursivas
utilizadas no texto, seu tema central, as teses defendidas pelos
interlocutores de Sócrates e a refutação socrática.

Tal percurso começará com a caracterização da cena inicial do


diálogo, remetendo a certas características da demora quanto à
apresentação da temática no texto platônico, passando à análise
das teses defendidas por Céfalo, Polemarco e Trasímaco e
finalizando com algumas reflexões complementares. Tudo isso
procurando seguir a ordem do texto platônico.

Assim sendo, leia o Livro I de A República e vamos começar.

Seção 1 – A cena inicial e a posição de Céfalo


É importante que, antes de iniciar a leitura desta unidade, você
faça a leitura do Livro I do diálogo platônico A República. Essa
primeira leitura pode ser uma leitura rápida, ou seja, aquela
leitura de reconhecimento.

Agora que você fez essa primeira leitura, podemos continuar.

Já nessa leitura rápida, você deve ter notado que o


tema central é a justiça, ou seja, a pergunta central do
Livro I é: “O que é a justiça?”.

É importante notar, posteriormente, com o caminhar da leitura


dos outros livros que, no fundo, essa pergunta não desaparece;
entretanto, outras se juntam a ela. Isso indica bem que o Livro I
pode ser tomado com um “prelúdio”, uma “introdução”. Algo que,
aliás, o início do Livro II parece deixar bem claro, indicando uma
marca intratextual: “Ditas, portanto, estas palavras, julgava eu que
estava livre da discussão. Mas, de fato, era apenas o prelúdio, ao
que parece.” (PLATÃO, A República, II, 357a).
62
Discurso Filosófico I

As citações diretas de A República de Platão seguiram


o texto da tradução de Maria Helena da Rocha Pereira,
em sua quinta edição, de 1987. Entretanto, será
adotada, para efeito de referenciação, a numeração
clássica, convencionada internacionalmente. Essa
numeração clássica será utilizada sempre que a obra a
ser citada for da Antiguidade Grega.

Como marcas de referenciação, você pode encontrar as:

„„ intratextuais; e

„„ extratextuais.

As marcas intratextuais referenciam o próprio texto em questão


e são indicativos de que você deve voltar na leitura ou mesmo
do que esperar mais adiante do texto. Alguns termos que
marcam esses momentos são:

„„ como havia dito;

„„ resumidamente;

„„ assim sendo; e

„„ voltaremos a isso mais adiante.

Já as marcas extratextuais são aquelas que remetem ou a outros


textos do próprio autor – quando seu estudo estiver circunscrito em
apenas uma dada obra – ou a textos de outros autores. As marcas
mais características desse tipo são as citações diretas ou indiretas.
No uso da abordagem de leitura filosófica genético-historicista,
você deve prestar bastante atenção nessas marcas. Já as marcas
intratextuais são muito significativas para a abordagem dogmática.

Após essa breve explicação a respeito das marcas nos textos, voltemos ao
Platão.

Você deve ter percebido que o diálogo não aponta, de imediato,


qual será a temática a ser trabalhada. Primeiramente, há uma
ambientação que aparenta ser de caráter puramente retórico. Essa
parte inclui:

Unidade 2 63
Universidade do Sul de Santa Catarina

„„ o relato de Sócrates descrevendo alguns aspectos de sua


ida ao Pireu, porto de Atenas, com seu irmão Gláucon
(ou Glauco) para dirigir suas preces à deusa;

„„ a interprelação do menino escravo enviado por


Polemarco, filho de Céfalo, solicitando que aguardassem;

„„ a ida à casa de Polemarco, onde o restante do diálogo


ocorrerá;

„„ o diálogo com Céfalo (PLATÃO, A República, I, 327a-


331); e

„„ a passagem da fala de Céfalo para Polemarco, que fecha


dizendo: “Eu por mim faço-vos entrega da discussão
– disse Céfalo –. Pois tenho que de ir já tratar os
sacrifícios.” (PLATÃO, A República, I, 331e).

Na nota 2 da tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, você


pode encontrar uma informação que parte de um elemento do
texto e nos leva a aspectos da cultura da época:

Para um Ateniense, ‘a deusa’ era usualmente Atena. Mas


a referência aos Trácios, que vem a seguir, e a menção
expressa da celebração das Bendideias em 354a, levam os
comentadores a identificá-la como Bêndis, deusa trácia que
se confundia com Ártemis [deusa grega da vida selvagem,
filha de Zeus e Letó e irmã de Apolo.]. (1987, p. 1).

Tal indicação feita aqui lembra o que foi dito sobre a abordagem
genético-historicista de leitura filosófica, na qual você parte do
próprio texto para rastrear elementos do contexto do autor.

No seu procedimento de apontamentos, poderia


colocar, lateralmente ao texto original, perguntas como
“Quem é a deusa em questão?”, “Qual é seu significado
para a cultura grega?”.

Dependendo do tipo de exercício solicitado ou do foco que


você deseja dar para um escrito feito a partir da leitura, tais
informações podem ser importantes ou não.

64
Discurso Filosófico I

Aqui, os personagens do diálogo são apresentados. Além dos


personagens que têm maior participação no diálogo, a saber,
Sócrates, Polemarco, Trasímaco e Gláucon (ou Glauco), temos
figuras que pouco falam: Céfalo, pai de Polemarco, que só
aparece no Livro I; Clitofonte, talvez discípulo de Trasímaco;
e Adimanto, irmão de Platão e Gláucon (ou Glauco). Existem,
também, aqueles que não falam: Carmantidas, também discípulo
de Trasímaco, e Micerato, filho de Nícias.

Como já foi dito, figuras do diálogo podem ser vistas como simples
expressões ideais de certos princípios ou como figuras reais.

Conforme indica Silva (2009, p. 88), a fala inicial do diálogo,


que trata da velhice, parece “desconectada do restante da obra,
implica a condição mortal de todo humano em uma cidade, no
que se situa a justiça”. Para Céfalo, a questão de ser vantajoso ou
não levar uma vida justa, é dada pela velhice e morte. Assim, a
velhice é tratada a partir de quatro critérios:

1. o prazer (paixões);

2. o bem-estar (felicidade);

3. a utilidade (riqueza); e

4. o caráter.

Estes, ao longo da República, se desdobrarão como


(a) objeto de amor do corpo e da alma, (b) virtudes,
(c) economia da cidade e (d) o problema da natureza e
educação da alma. E isto de tal maneira que em Céfalo a
velhice é compreendida como uma libertação, tema que irá
advir na obra após a definição de Justiça. (Id., Ibid., p. 88).

Sócrates quer convencer Polemarco de que não pode acompanhá-


lo. Contudo, Polemarco insiste, apelando para o argumento da
força. Sócrates aventa outra possibilidade: a de persuadi-lo pelo
discurso. Então, Polemarco diz: “Porventura sereis capazes [...]
de nos persuadir, se nos recusarmos a ouvir-nos?” (PLATÃO, A
República, I, 327e).

Unidade 2 65
Universidade do Sul de Santa Catarina

O que se quer com essa passagem?

Indicar as possibilidades do próprio diálogo, que só pode ocorrer


se houver um falante e um ouvinte. E mais: que o ouvinte deve se
persuadir do prazer do dialogar. E tal prazer, muito mais do que
o de obter conhecimento, se torna mais significativo na velhice.

Pense no seguinte: é possível que você avance no seu estudo se


não estiver, de alguma forma, persuadido (motivado) de que a
leitura de Platão lhe levará a questões que contribuam para sua
autorreflexão? E mais, que isso lhe propiciará uma troca com
outros, aprimorando um coletivo?

Se sua atitude for a de apenas dar conta de uma obrigação


acadêmica, é até possível alcançar um resultado razoável.
Contudo, não haverá um aprendizado de consistência, aquele que
ultrapassa as obrigações burocráticas da Academia.

Mas, voltemos para A República.

Céfalo indica alguns aspectos que podem incomodar na velhice,


que estão ligados aos prazeres físicos, a saber:

„„ saudades dos prazeres da juventude;

„„ gozos do amor, da bebida e da comida; e

„„ outros bens corporais.

Outros estão ligados à disposição dos ânimos e envolvem as


relações com os parentes, que, por vezes, insultam os mais velhos.

A ocorrência da noção de “saudade” é importante por


implicar uma relação com o passado na velhice, ou seja,
na ação de um homem em sua vida pública. O mesmo
vale para os insultos, porém, quanto ao próprio presente
da velhice. Em todo caso, o problema é o mal-estar que
essa etapa da vida acarreta. (SILVA, 2009, p. 88).

66
Discurso Filosófico I

A libertação dessas paixões à sensatez e à moderação, serão, para


Céfalo, os remédios para esses males da velhice.

Quando as paixões cessam de nos repuxar e nos largam,


acontece exactamente o que Sófocles disse: somos libertos
de uma hoste de déspotas furiosos. Mas, quer quanto a
estes sentimentos, quer quanto aos relativos aos parentes,
há uma só e única causa: não a velhice, ó Sócrates,
mas o carácter das pessoas. Se elas forem sensatas e
bem dispostas, também a velhice é moderadamente
penosa; caso contrário, ó Sócrates, quer a velhice,
quer a juventude, serão pesadas a quem assim não for.
(PLATÃO, A República, I, 329cd).

É aventada a possibilidade de a riqueza tornar a velhice mais


aprazível e sem males, já que Céfalo era um homem rico.
Algo que fica claro quando Sócrates questiona Céfalo sobre
como conquistou sua riqueza. Da resposta de Céfalo, Sócrates
constata que ele parece não ser tão ligado à riqueza. E indica
que, geralmente, é difícil conviver entre homens que adquiriram
riqueza por si mesmos, pois eles se apegam em demasia a ela.

Tais constatações levam à valoração da riqueza a partir do


próprio problema da mortalidade. Céfalo apresenta (Id., Ibid.,
330d-331b) as preocupações com injustiças a serem espiadas no
Hades como temores que acometem a velhice face à proximidade
da morte.
Aqui há referência ao reino
de Hades, deus grego,
Tais temores produzem afetações da alma, sonhos perturbadores irmão de Zeus, soberano
e medos de desgraças provocadas por atos injustos cometidos do mundo subterrâneo,
anteriormente. Ponderando, Céfalo considera que nada disso para onde iam as sombras
afeta o homem comedido e prudente, que não encontra injustiça dos mortos.
em si. Assim, tomando uma passagem de Píndaro, poeta grego,
Céfalo parece formular uma definição de justiça, tornando a
riqueza uma auxiliar da velhice, por torná-la mais tranquila e
Observe que nem sempre
honrosa. Atente para a fala de Céfalo em questão: a tese do interlocutor
de Sócrates aparece de
imediato ou é explícita.
Porém aquele que não tem consciência de ter cometido
qualquer injustiça, esse tem sempre junto de si uma doce
esperança, bondosa ama da velhice, como diz Píndaro.
São cheias de encantou aquelas suas palavras, ó Sócrates,
de que quem tiver passado uma vida justa e santa,

Unidade 2 67
Universidade do Sul de Santa Catarina

A doce esperança
que lhe acalenta o coração acompanha-o, qual ama
da velhice — a esperança que governa, mais que tudo
os espíritos vacilantes dos mortais.
Palavras certas, e muito para admirar. Em face disto,
tenho em grande apreço a posse das riquezas, não para
todo o homem, mas para aquele que é comedido e
prudente. Não ludibriar ninguém nem mentir, mesmo
involuntariamente, nem ficar a dever, sejam sacrifícios
aos deuses, seja dinheiro a um homem, e depois partir
para o além sem temer nada — para isso a posse das
riquezas contribui em alto grau. Tem ainda muitas outras
vantagens. Mas, acima de tudo, ó Sócrates, é em atenção
a este fim que eu teria a riqueza na conta de coisa muito
útil para o homem sensato. (Id., Ibid., 331ab).

Nas explicações de Céfalo (Id., Ibid., 331b) sobre as vantagens


da riqueza, encontramos seu conceito de justiça: “Não ludibriar
ninguém nem mentir, mesmo involuntariamente, nem ficar a
dever, sejam sacrifícios aos deuses, seja dinheiro a um homem.
[Resumindo,] dizer a verdade e restituir aquilo que se tomou.”.

Eis a introdução da música: o prelúdio.

Como você pode constatar, a temática central está apenas


aparentemente deslocada do que foi apresentado desde o encontro
dos amigos até a conversa com Céfalo, que pauta o problema da
justiça em função da mortalidade, derivado do debate sobre a
velhice. Mas, é bom você ter em mente que aspectos como o da
vida comedida, o da utilidade da riqueza e o da relação entre os
membros da cidade, que apenas despontaram nesse movimento
inicial do texto (música) platônico, estarão presentes em outros
momentos do diálogo.

Sócrates questiona essa imagem de justiça, considerando-a


muito simples. Para tanto, apresenta um exemplo: um amigo lhe
empresta armas, fica louco e depois vem requerer sua posse.

“Devolver é justo?” (Id., Ibid., 331d).

Note, ainda, que junto à questão da justiça está também a da


injustiça.

68
Discurso Filosófico I

Seção 2 – A posição de Polemarco


Céfalo se retira e, em seu lugar, coloca-se Polemarco, pondo
sua hipótese: “restituir a cada um o que lhe deve” (PLATÃO, A
República, I, 331e), lembrando Simónides, outro grande poeta
grego. Para Sócrates, isso é muito vago. Define-se melhor:
devolver aos amigos o bem, aos inimigos, o mal. Entretanto,
mesmo assim, Sócrates não se convence, pois os sentimentos
são enganosos: há amigos e inimigos aparentes, podendo ser o
contrário do que se pensa.

Essa primeira hipótese, a de Céfalo-Polemarco, e sua refutação


por parte de Sócrates, com as imagens nela implicadas, foi
esquematizada da seguinte maneira:

HIPÓTESES OBJEÇÕES IMAGEM QUESTÕES

Hipótese 1 1ª objeção segundo Se alguém recebesse armas de um amigo em Como restituir o devido a
o critério da razão perfeito juízo e depois, tomado de loucura, alguém privado de razão?
(sanidade). as reclamasse, não seria justo restituí-la nem
(Polemarco) consentir em dizer-lhe toda a verdade.

“Justiça é dizer
a verdade e 2ª objeção segundo Assim como a medicina dá ao corpo os Se para quem não está doente
restituir o que se o critério da remédios, a comida e a bebida, e a culinária o médico é inútil, do mesmo
recebeu” utilidade. dá aos alimentos o tempero, também a justiça modo a justiça seria inútil
deve dar ajuda aos amigos e prejuízo aos durante a paz.
inimigos.

3ª objeção segundo O que parece, mas não é, aparenta ser amigo, Ainda que se diga que a justiça
o critério da sem o ser. é um dever relativo aos amigos,
amizade. alguém pode parecer amigo
quando não o é realmente.

Quadro 2.1 – Quadro sobre os momentos dialéticos da investigação sobre a justiça


Fonte: Silva (2009, p. 108).

Esse esquema mental pode lhe ajudar a recuperar toda a parte do


debate entre Polemarco – e o finalzinho da fala de Céfalo, que
transferiu para o filho seu papel no debate – e Sócrates. Assim
sendo, antes de avançar, analise atentamente o esquema acima e
localize cada momento na obra em questão. Trata-se de um olho
neste LD e outro no diálogo A República, como de resto deverá
ser seu movimento de estudo.

Unidade 2 69
Universidade do Sul de Santa Catarina

Mentalizado o esquema e a localização das partes em A República I,


vamos a uma digressão maior.

Note que, para cada objeção, Sócrates toma um critério e constrói


uma imagem. Essa estratégia leva a questionamentos, colocando
em xeque a hipótese defendida pelo interlocutor. Sócrates, até
aqui, não propõe nenhuma resposta (definição) para a questão,
apenas pondera se a hipótese apresentada pode ser tomada como
válida universalmente. E, mais que isso, coloca seu interlocutor
em contradição, impulsionando-o para uma nova hipótese ou um
polimento da hipótese anterior.

Na primeira objeção, utilizando o critério da razão, temos,


conforme aponta Silva (Ibid., p. 90), duas suposições:

Suposição 1: O justo consiste na verdade e segundo esta


restituir aquilo que se tomou de alguém.
Suposição 2: Dessas mesmas coisas, algumas vezes é
justo, outras, injusto fazê-las.

Ora, conforme a imagem estabelecida, concorda-se que não é


justo restituir a arma a alguém que não esteja em seu adequado
uso da razão, ou seja, em sã consciência. Mas, você continuaria
devendo algo – a arma – para esse alguém. Logo, se tomada a
hipótese de Polemarco, tem-se um dilema: o que é justo e o que é
injusto nesse caso?

A segunda suposição é ainda mais problemática, face àquilo que


busca Sócrates, pois uma definição universal pode ser verdadeira
em dada situação e, em outra, não. Se assim fosse, não seria
universal, mas particular.

Porém, aventa Sócrates, talvez Simónides, donde Céfalo e


Polemarco partem, poderia querer dizer outra coisa com seu
enunciado. Isso força Polemarco a, respondendo as questões de
Sócrates, “aprimorar” a hipótese, chegando à noção de que “a
justiça consistia em restituir a cada um o que lhe convém, a isso
chamou ele [Simónides] restituir o que é devido” (PLATÃO,
A República, I, 332bc) e, mais a frente, à noção de que “a justiça
consiste em fazer bem aos amigos e mal aos inimigos.” (Id.,
Ibid., 332d). Em uma sequênca de analogias com a medicina
e a culinária, aponta-se que tal qual “a medicina dá ao corpo

70
Discurso Filosófico I

os remédios, a comida e bebida, e a culinária dá aos alimentos


o tempero, a justiça deve dar ajuda aos amigos e prejuízo aos
inimigos” (SILVA, 2009, p. 91).

Entretanto, ao dar crédito a tal analogia, chega-se à inquietante


questão de que a justiça seria inútil durante a paz. E,
acrescentando outras analogias, Sócrates faz aparecer mais uma
contradição no pensamento de Polemarco:

— Logo o homem justo revela-se-nos, ao que parece,


como uma espécie de ladrão e isto é provável que o tenhas
aprendido em Homero. Efectivamente, ele tem grande
estima pelo avô materno de Ulisses, Autólico, e afirma
que ele excedia todos os homens em roubar e fazer furas.
Parece, pois, que a justiça, segundo tua opinião, segundo
a de Homero e a de Simónides, é uma espécie de arte
de furtar, mas para a vantagem de amigos e dano de
inimigos. (PLATÃO, A República, I, 334ab).

É notável, nessa passagem, a crítica ácida à tradição homérica –


algo que será retomado em outros momentos da obra em questão:
ora claramente, ora de forma velada ou amenizada.

Polemarco reconhece que parece não saber o que diz. Mesmo


assim, ainda crê ser a justiça “auxiliar os amigos e prejudicar os
inimigos” (Id., Ibid., 334c). Resta, então, refutar o critério da
amizade – o que Sócrates faz a partir da imagem daquele que se
diz amigo e age como se fosse, mas, no fundo, deseja seu mal;
logo, é aparentemente um amigo. Nesse caso, você faria o bem
ao inimigo, pensando ser ele seu amigo. E quando seu verdadeiro
amigo viesse lhe alertar, você pensaria ser o verdadeiro amigo seu
inimigo e o trataria mal – dessa forma, fazendo mal ao amigo.
Aqui, o dilema é: “Ainda que se diga que a justiça é um dever
relativo aos amigos, alguém pode parecer amigo quando não o é
realmente.” (SILVA, 2009, p. 108).

Há algo mais complicado, na defesa dessa hipótese, pois mesmo


quando a noção de amigo é melhor delimitada, fica o problema
de que ao justo cabe fazer o mal, pois é justo fazê-lo ao inimigo.
Sócrates não concorda que fazer o mal, seja qual for a situação,
seja algo justo e sábio. Logo, há aí, na formulação defendida por
Polemarco, uma contradição.

Unidade 2 71
Universidade do Sul de Santa Catarina

— Logo, ó Polemarco, fazer o mal não é a acção do


homem justo, quer seja a um amigo, quer a qualquer
outra pessoa, mas pelo contrário, é a acção de um homem
injusto.
— Parece-me inteiramente verdade o que dizes, ô
Sócrates.
— Portanto, se alguém disser que a justiça consiste em
restituir a cada um aquilo que lhe é devido, e com isso
quiser significar que o homem justo deve fazer mal aos
inimigos, e bem aos amigos – quem assim falar não é
sábio, porquanto não disse a verdade. Efectivamente,
em caso algum nos pareceu que fosse justo fazer mal a
alguém. (PLATÃO, A República, I, 335de).

Atente para o seguinte: “em caso algum” remete para uma


proposição negativa universal. Isso pode parecer banal, contudo,
se você converter o enunciado a uma afirmativa universal que
mantenha o sentido do enunciado, terá algo do tipo “fazer o bem
é sempre justo”. Logo, é o critério da universalidade do bem que
está no fundo dessa refutação. Segure esse critério, pois ele será
retomado logo, logo.

Veja o esquema da refutação da hipótese de Polemarco:

REFUTAÇÕES IMAGEM QUESTÃO

Refutação da hipótese 1: Um músico não torna os outros Portanto, referindo-se


definição de homem ignorantes na música por meio a justiça à perfeição
justo segundo o critério de sua arte ou os tratadores não humana, fazendo mal
universal de bem. tornam os outros incapazes de aos homens, eles se
montar; também os justos não tornam mais injustos.
poderiam tornar os outros injustos
ou os bons tornarem os outros
maus por meio de sua perfeição.
E assim como a ação do calor
é aquecer e não refrescar, a do
homem bom é fazer o bem e
nunca o mal, seja ao amigo seja ao
inimigo.

Quadro 2.2 – Momentos dialéticos sobre a justiça em referência à refutação da hipótese de Polemarco
Fonte: Silva (2009, p. 109).

Na sequência, Sócrates parece amenizar sua crítica a Simónides,


indicando que tal afirmação – a de que a justiça é fazer bem
ao amigo e mal ao inimigo – não poderia vir de um homem
reconhecidamente sábio. Não só Simónides é citado, mas

72
Discurso Filosófico I

também outros bem-aventurados da Grécia Antiga. Cabe, aqui,


um pequeno desvio em nosso roteiro. Tomando os alertas dados
por José Trindade Santos (2008a) em diversas passagens, vemos
certa ambiguidade na posição de Platão, pois:

„„ ora aparenta uma ácida crítica;

„„ ora ameniza essa crítica.

Tal característica leva a uma diversidade de interpretações do


texto platônico e do que seria a posição de Platão nesse contexto,
o que remete à advertência que você deve ter em mente quanto
à leitura que estamos fazendo: por mais escorado no texto que
você esteja, a leitura interpretativa é sempre uma escolha do leitor
e, como tal, deve estar bem fundamentada. Mas, ainda assim,
é uma possibilidade de leitura. Ao que parece, Platão já aponta
para isso, ao indicar que o discurso, por mais polido que seja,
nunca será o objeto real.

Bem, voltemos ao texto em questão.

Seção 3 – A posição de Trasímaco


Refutado Polemarco, coloca-se a tese de Trasímaco: “Afirmo que
a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte.”
(PLATÃO, A República, I, 338c).

Antes de seguirmos adiante, vale um parênteses para explicar


quem é Trasímaco, ou, ainda, a relação que Platão tem com ele.
Trasímaco é um representante dos sofistas, aos quais Platão faz
grandes críticas.

Eles vinham pregando (é o que parecia a Platão) uma


nova ética. Uma noção de ‘justiça’ de caráter hedonista;
e procuravam assim revolucionar a política tornando a
autoridade governamental um meio para assegurar a
autossatisfação dos governantes. (BARKER, 1978, p.149).

Unidade 2 73
Universidade do Sul de Santa Catarina

Se você quiser saber um pouco mais sobre a figura de


Trasímaco e sua posição no diálogo de Platão, uma boa
referência é o ensaio A Figura de Trasímaco no Livro I da
República de Platão, de Ivanildo Oliveira dos Santos, na
revista Akrópolis, volume 17, número 1, jan./mar. 2009,
p. 21-29, que pode ser encontrado on-line.

Note a descrição por parte de Sócrates, o narrador, de como


Trasímaco entra efetivamente no debate:

Ora, muitas vezes, mesmo enquanto conversávamos,


Trasímaco tentara assenhorar-se da argumentação, mas,
formando salto, lançou-se sobre nós como uma fera, para
nos dilacerar.
Tanto eu como Polemarco ficamos tomados de pânico. E
ele, voltando-se para todos, exclamou: — Que estais para
aí a parlar há tanto tempo, ó Sócrates? Por que vos mostrais
tão simplórios, cedendo alternadamente o lugar um ao
outro? Se na verdade queres saber o que é a justiça, não te
limites a interrogar nem procures a celebridade a refutar
quem te responde, reconhecendo que é mais fácil perguntar
do que dar a réplica. Mas responde tu mesmo e diz o que
entendes por justiça. E vê lá, não me digas que é o dever,
ou a utilidade, ou a vantagem, o proveito ou a conveniência.
Mas, o que disseres, diz-mo clara e concisamente, pois, se
te exprimires por meio de frivolidades desta ordem, não as
aceitarei. (PLATÃO, A República, I, 336bd).

Eis um momento em que a estratégia utilizada por Sócrates tem sua


validade questionada. E mais, Trasímaco, categoricamente, solicita
O élencho, procedimento
interrogativo.
um posicionamento por parte de Sócrates. Mas, Sócrates, como você
pode detectar na sequência, apesar de um pouco temeroso da atitude
brusca de Trasímaco, solicita compaixão e que Trasímaco não se
irrite em face da falta de “habilidade” apresentada até agora para dar
conta da definição de justiça. Trasímaco não se faz de rogado e alerta
para a ironia socrática, que, para ele, é uma forma de se esquivar de
dar respostas e de fingir ignorância.

Não é raro encontrar momentos como esse nos diálogos


platônicos, prova de que o procedimento interrogativo de
Sócrates incomodava muito ou de que, como o próprio Sócrates

74
Discurso Filosófico I

indica em outro diálogo (Teeteto, 151cd), alguns não suportam as


dores do parto e que ele (Sócrates) procura ajudar e faz isso por
benevolência e não por maldade.
Lembrando que Sócrates
compara sua atitude à de
Opa! Estamos a tomar outros diálogos. Nosso propósito é outro, portanto, sua mãe, parteira.
devemos ficar mais no diálogo A República. Então, voltemos a ele.

Ao admitir a possibilidade de haver questões que não tenham


uma definição imediata por parte de alguém que é questionado,
Sócrates diz que está ali mais para aprender do que para ensinar
e reitera que está em busca de uma resposta para a questão
da justiça. Trasímaco diz ter uma resposta melhor do que as
anteriores e solicita algo em troca.

— Ora, pois – continuou –, se eu te revelar outra resposta


melhor do que essas, para além de todas as que deste
sobre a justiça? Que pena mereces?
— Que outra pena – respondi eu – senão aquela que deve
sofrer o ignorante? Devo aprender junto de quem sabe. É
isso, portanto, o que julgo merecer.
— És muito engraçado. Terás de pagar em dinheiro.
(PLATÃO, A República, I, 337cd).

Mais uma vez encontramos uma passagem que remete a um


costume da cultura grega. Era costume, como você pode
constatar, também, na Defesa de Sócrates (PLATÃO, 36b-37a),
dar ao réu, em alguns julgamentos, a escolha de uma pena para
si. Outro aspecto claro é a acusação de que os sofistas cobram por
seus ensinamentos – algo bastante criticado, negativamente, nos
diálogos platônicos.

Sócrates alega que só poderá pagar quando tiver dinheiro. É


sabido que Sócrates não era rico e isso aparece em sua própria
fala (PLATÃO, A República, I, 338c). Mas, para resolver logo o
problema, assim como na Defesa de Sócrates, Gláucon (ou Glauco),
em nome dos amigos de Sócrates, diz estar disposto a pagar pelos
ensinamentos de Trasímaco. Apelando ao ego de Trasímaco,
Sócrates obtém a hipótese de que “a justiça não é outra coisa
senão a conveniência do mais forte” (Id., Ibid., 338c).

Unidade 2 75
Universidade do Sul de Santa Catarina

Num rápido pedido de esclarecimento, o termo “forte” não se


refere à força física, e sim aos governantes, aos mais fortes, que
fazem as leis, enquanto os governados as cumprem. Assim, os
governantes, segundo Trasímaco, governam em seu benefício.
Logo é refutado, pois, segundo Sócrates, ninguém governa em
benefício próprio, mas em função do que convém aos governados.

Dessa discussão surge outra sobre as vantagens da justiça ou da


injustiça, que parte da seguinte observação de Trasímaco:

Mas se um homem, além de se apropriar dos bens dos


cidadãos, faz deles escravos e os torna seus servos, em vez
destes epítetos injuriosos, é qualificado de feliz e bem-
aventurado, não só pelos seus concidadãos, mas por todos
os demais que souberam que ele cometeu essa injustiça
completa. É que aqueles que criticam a injustiça não a
criticam por recearem praticá-la, mas por temerem sofrê-
la. Assim, ó Sócrates, a injustiça, quando chega a um certo
ponto, é mais potente, mais livre e mais despótica do que
a justiça, e, como eu dizia a princípio, a vantagem do mais
forte é a justiça, ao passo que a injustiça é qualquer coisa de
útil a uma pessoa, e de vantajoso. (Id., Ibid., 344bc).

Depois de uma longa contenda que apela a comparações com


outras atividades, construindo imagens e questionamentos que vão
colocando a hipótese de Trasímaco em contradição, Sócrates começa
a conduzir a questão para tomar a justiça como uma virtude.

— Portanto, a injustiça parece ter uma força tal, em


qualquer entidade que se origine – quer seja um Estado
qualquer, nação, exército ou qualquer outra coisa – que,
em primeiro lugar, a incapacita de actuar de acordo
consigo mesma, devido às dissensões e discordâncias; e,
além disso tornam-na inimiga de si mesma e de todos os
que lhe são contrários e que são justos. Não é verdade?
(Id., Ibid., 351e-352a).

Em que sentido a injustiça a incapacita de agir de


acordo consigo mesma?

Para ter a resposta, é importante que você esteja acompanhando


o debate por meio do próprio diálogo – lembre-se: um olho no

76
Discurso Filosófico I

nosso Livro Didático, outro no diálogo em questão. Atente,


como pede Sócrates, para a relação entre ladrões. Certamente,
ser roubado por alguém é ser sujeito de uma injustiça. Logo, não
há dúvidas de que os ladrões são injustos em relação a outrem.
Contudo, quando agem em bando, é necessário que entre eles
haja respeito a certos acordos, uma justa divisão daquilo que foi
roubado. Ora, tais aspectos demonstram que mesmo os ladrões
não são totalmente injustos.

E mais, se o critério da universalidade da justiça fosse utilizado,


isso implicaria na impossibilidade de um roubo em grupo, pois
cada membro do grupo desconfiaria do outro e, sem a mínima
confiança, o conluio não seria possível. Outro aspecto que
invalida a hipótese de que a injustiça é mais vantajosa do que
a justiça é o fato que o injusto estará sempre com medo de ser
penalizado por sua injustiça, pois um ato injusto que ele tenha
cometido contra alguém pode suscitar, por parte do injustiçado, o
ódio e a vingança.

Nesse contexto, Sócrates também traz a noção de que nenhum


indivíduo, assim como nenhum Estado, deve agir injustamente,
sob pena de gerar a desordem. Dessa forma, a justiça é mais
vantajosa tanto em tempos de guerra como em tempos de paz.

Em uma passagem pouco antes da supracitada, Sócrates descreve


a concordância de Trasímaco:

— Logo, o justo revela-se-nos como bom e sábio, e o


injusto como ignorante e mau.
Trasímaco, então, concordou com tudo isto, não
com facilidade com que agora estou a contá-lo, mas
arrastadamente e a custo, suando espantosamente,
tanto mais que era no verão. Foi então que vi uma coisa
que nunca antes vira: Trasímaco corar. Assim, pois,
que concordamos que a justiça é virtude e sabedoria,
a injustiça maldade e ignorância, exclamei: — Bem,
deixemos este ponto assente! Mas afirmamos também
que a injustiça era força. Ou não te recordas, ó
Trasímaco? (Id., Ibid., 350cd).

Esse questionamento aponta a contradição da hipótese de Trasímaco.


O sofista é, a contragosto, levado a concordar com o restante:

Unidade 2 77
Universidade do Sul de Santa Catarina

— Far-te-ei, portanto, exatamente a mesma pergunta


de há pouco, a fim de levarmos metodicamente ao fim
a argumentação: que é a justiça em relação à injustiça?
Disse-se a certa altura que era mais poderosa e mais forte
do que a justiça. Agora – prossegui – se, na verdade,
a justiça é sabedoria e virtude, julgo facilmente se
demonstrará que é mais forte que a injustiça, uma vez
que a injustiça é ignorância – ninguém deixara de o
reconhecer. (Id., Ibid., 350e-351b).

Para melhor convencer Trasímaco, entra-se na questão da


virtude. Conforme salienta Goldschmidt (2002, p. 125), há aí
uma exigência geral: “Cada coisa tem uma função própria, que
ela só ‘desempenha bem’ pelo exercício de uma virtude própria”.
Disso, Goldschmidt enumera, com base em A República, logo
na sequência, exigências próprias: “1) A alma tem uma função
própria, que, é cuidar, governar, deliberar. 2) A alma tem uma
virtude própria que é a Justiça.” (Id., Ibid, p. 125).

Decorre disso algo que Goldschmidt (2002, p. 125) chama de


exigência conferida e que já apontamos anteriormente: “a alma, ao
exercer a Justiça ‘faz o bem’, ‘vive bem’ (a justiça, portanto, é mais
vantajosa que a injustiça)”.

Se a alma tem a função de governar, de libertar, e outras


semelhantes, suas virtudes também se referem a estas:

Logo, é forçoso que quem tenha uma alma má governe


e dirija mal, e, quem tem uma alma boa, faça tudo isso
bem. […] concordamos que a justiça é uma virtude da
alma e a injustiça um defeito? Logo, a alma justa e o
homem justo viverão bem, e o injusto mal. (PLATÃO, A
República, I, 353e).

Além disso, é dito também que o governante justo não governa


por riquezas ou honrarias, apontando para o que virá mais a
frente quanto à necessidade de os governantes terem espírito
filosófico (A República, II, 375e-376c), sendo isso o maior bem
para a cidade (A República, V, 473d). Isso porque o homem
justo não deseja exceder a outros homens justos, ao contrário do
homem injusto que deseja superar a todos. Logo, o justo deseja o
bem comum – a finalidade do Estado – e o injusto, o seu próprio
proveito – desejo privado.

78
Discurso Filosófico I

Vale a pena analisar os seguintes esquemas, úteis aqui como


forma de resumir e mapear o andamento do debate. Assim sendo,
fixe-os e localize os procedimentos na obra em questão:

HIPÓTESES OBJEÇÕES IMAGEM QUESTÕES


Os governantes prescrevem atos A imagem de “mais forte” como
1ª objeção segundo o aos súditos e, às vezes, se enganam aquele que teme a lei implica
critério das leis. quanto ao que é melhor para eles, na presença de duas qualidades
mantendo-se justo que os súditos contraditórias.
lhes façam o prescrito.
Não se chama de médico aquele
que se engana quanto ao paciente
por se enganar, nem de matemático A conveniência do mais forte pode
1.1ª contraobjeção. aquele que se engana nos cálculos, ser entendida não como o que
mas assim os chamamos quando esse julga ser sua conveniência, na
não erram, de onde artífice, artesão, medida em que pode errar.
governante não se enganam
quando cumprem a sua função.
O objeto de uma arte pode
O verdadeiro médico é o que busca ser sujeito a defeitos, mas não
tratar o doente e não ganhar a própria arte, que não pode
2ª objeção segundo o dinheiro, o piloto é chefe dos carecer de outra para procurar
critério do governante. marinheiros e não marinheiro, o que o conveniente à sua própria
não muda se ele está dentro ou fora imperfeição. Assim, todo
do navio. governante busca a conveniência
do governado.
Hipótese 2 Os pastores velam pelas ovelhas, O justo e a justiça são um bem
(Trasímaco): 2.1ª contraobjeção as engordam e as tratam não com alheio, consistindo na vantagem
“A justiça é a segundo o máximo outro fim senão eles próprios, dos que governam, sendo próprio
conveniência valor da injustiça. não sendo diferente a disposição de quem obedece ter prejuízos.
do mais daqueles que governam Estados.
forte”. 3ª objeção segundo o Cada arte se diferencia de outra por
critério do prazer como ter potência específica. Assim, a Questão: sendo o lucro um efeito
expressão prática da medicina não se chamará arte dos e não a essência de uma arte, o
essência de uma arte. lucros se alguém, ao curar alguém, governante governa por prazer?
lucrar com isso. O lucro lhe é efeito
possível, mas não em específico.
Enquanto a justiça é ingenuidade,
3.1ª contraobjeção Não o conceito de dever (na a injustiça (que não é mau caráter)
segundo as hipótese 1), mas o de virtude, seria é prudência, sendo sensatos e
qualificações do justo o critério da tese da “lei do mais bons os perfeitamente injustos
e injusto. forte”, porém, de modo invertido. (os que submetem autoridade aos
Estados).
O músico, ao afinar a lira, não
pretende superar outro músico na
tensão das cordas, nem se considera
4ª objeção segundo a digno
músico
de ultrapassá-lo, mas um não
sim (tal como nas outras
O justo não quer exceder o
semelhante, mas seu oposto e
relação entre o homem artes). Logo, o homem bom e sábio o injusto quer exceder tanto ao
justo e o injusto. não quer exceder o semelhante, semelhante quanto ao seu oposto.
mas o diverso e oposto, e o mau e
ignorante quer prevalecer sobre seu
semelhante e seu contrário.
Quadro 2.3 – Momentos dialéticos da investigação sobre a justiça em referência à hipótese de Trasímaco
Fonte: Silva (2009, p. 108).

Unidade 2 79
Universidade do Sul de Santa Catarina

REFUTAÇÕES IMAGEM QUESTÃO


Refutação Em todo lugar que a injustiça se origina (Estado,
à hipótese nação, exército e no indivíduo), incapacita A injustiça sempre
2 quanto a de atuar de acordo consigo mesma devido à leva à discórdia
“injustiça é discórdia, tornando-se inimiga de si mesma e do interna e externa.
força”. seu contrário (o justo).
A função de um cavalo é aquela que se pode
Refutação à exercer só por meio dele ou com a maior Aquilo que tem
hipótese 2 perfeição; do mesmo modo, não é possível ver uma função tem
quanto a “o senão pela visão, pode-se podar uma vide com também uma
injusto tem vida faca, lanceta ou outros instrumentos, mas não virtude (o fazer
melhor”. perfeitamente senão pelo instrumento feito perfeito).
para isso, que tem tal função.

Quadro 2.4 – Momentos dialéticos da investigação sobre a justiça em referência às refutações de Trasímaco
Fonte: Silva (2009, p. 108).

Apesar de todo o debate, Sócrates considera que a discussão


não caminhou de forma adequada, não seguiu uma metodologia
adequada.

Mas parece-me que fiz como os glutões, que agarram


numa prova de cada um dos pratos, à medida que
os servem, antes de terem gozado suficientemente
o primeiro; também eu, antes de descobrir o que
procurávamos primeiro – o que é a justiça – largando esse
assunto, precipitei-me para examinar, a esse propósito,
se ele era um vício e ignorância, ou sabedoria e virtude;
depois, como surge novo argumento – que é mais
vantajosa a justiça que a injustiça – não me abstive de
passar daquele assunto para este; de tal maneira que daí
resultou agora para mim que nada fiquei a saber com esta
discussão. Desde que não sei o que é a justiça, menos
ainda saberei se se dá o caso de ela ser uma virtude ou
não, e se quem a possui é ou não feliz. (PLATÃO, A
República, I, 345bc).

Eis uma passagem que pode reforçar o caráter aporético deste


primeiro livro.

80
Discurso Filosófico I

Seção 4 – Outras considerações


Você viu como o diálogo passa de uma discussão sobre as
vantagens ou desvantagens da velhice para chegar à questão
central sobre a justiça. Notou que tal passagem não ocorre de
modo imediato, em face da demora do discurso. Isso apontou para
características do texto platônico, complementadas com o uso do
procedimento élenchos, ou seja, do procedimento interrogativo que
predominará na sequência do texto, que remete a ver tal livro de
A República como um texto mais antigo. Para reforçar essa tese,
muitos estudiosos tomam o início do Livro II como um prelúdio.
Note que se trata de se apoiar numa marca intratextual, ou seja,
numa remissão que o texto faz sobre si mesmo.

É bom que você atente para essas marcas no seu processo de


leitura. Elas podem caracterizar remissão ao que vem antes ou ao
que vem depois. Face às marcas de remissão ao que vem antes, é
bom você fazer uma pequena parada – principalmente na leitura
aprofundada e se você está utilizado a abordagem dogmática ou
genético-historicista – e ver se você se lembra do que a parte em
questão trata.
1 - Algo remete,
concomitantemente,
Se a marca remeter a algo que virá, você deve anotar isso na sua
a uma ontologia e a
ficha de leitura, ou outro tipo de estratégia de apontamento de uma epistemologia, ou
leitura que esteja usando, para ficar atento(a) ao momento em que seja, a uma “teoria do
o tema ou a questão será retomada. ser” e a uma “teoria do
conhecimento”.
Como foi salientado, o Livro I apresenta uma série de questões 2 - Palavra grega que pode
que serão retomadas mais adiante, embora não apareça ser traduzida por educação,
claramente nenhum enunciado que diga isso. Dos temas mas que deve ser entendida
em um sentido amplo de
apontados, um, mais claramente, lhe foi indicado, a saber, sobre a
educação física, moral e
educação do governante, que deverá ser sábio e justo. intelectual, como formação
completa, que carrega um
Mas, por trás dessa proposta, também está uma concepção ideal de homem.
ontoepistemológica1 e uma paideia 2 que remete tanto à
questão do ser como à da possibilidade de conhecer o ser. E,
correlacionados a essas questões, os problemas da virtude, das
“divisões” da alma e da educação.

Certamente você já tem elementos para inferir possibilidades


interpretativas a partir da leitura do Livro I. Assim sendo, deixe
essas possibilidades em mente, procurando confirmá-las, ou não,

Unidade 2 81
Universidade do Sul de Santa Catarina

no próprio processo de leitura da obra de Platão. Reforçando: esta


é a oportunidade que você tem de fazer uma leitura mais atenta
de uma obra clássica da Antiguidade Grega.

A continuidade da investigação dialética consistirá em


considerar as hipóteses geradas pelas imagens diversas
até aqui analisadas. E A República nos dá a dica de
como fazê-lo no modo como demonstra a contradição
nas qualidades das imagens: “Segundo o teu raciocínio,
não só é justo fazer aquilo que convém ao mais forte,
mas também, inversamente, aquilo que lhe é prejudicial”.
(PLATÃO, República I, 339d, destaque do comentador).
Platão já havia aludido a essa inversão (prostheké) do
discurso anteriormente no mesmo Livro República I
(PLATÃO, República I, 335a), bem como em outras
obras como Menon (PLATÃO, Menon, p. 78d) e Fédon
(PLATÃO, Fédon, 100d6): é sobre a prostheké que a
desconstrução dialética pode fazer ver-se a contradição e
estabelecer qual hipótese lhe sintetiza enunciativamente.
O Livro II da República começa, então, por avaliar as
hipóteses que estariam assim estruturadas. (SILVA,
2009, p. 107).

No movimento dialético, paradas são necessárias. Elas servem


para revisar o que já foi dito e avançar no debate. Por vezes, você
mesmo terá de fazer essas paradas em sua leitura aprofundada,
tendo que retomar o texto. Tais paradas podem variar conforme
sua habilidade de leitura. Nesse caso, é bom que você resuma ou
monte um esquema mental das ideias revisadas. Isso facilitará sua
revisão posterior do texto como um todo.

Lembre-se: isso pode ser, em um primeiro momento, demorado.


Porém, em momentos posteriores, lhe fará ganhar bastante
tempo na recuperação do texto. Foi nesse espírito que esta
unidade se ateve mais a um ou a outro passo do Livro I de A
República. Mesmo quando seguir ao conjunto de livros desta
obra, seu exercício de leitura deve tomar algumas das dicas dadas
neste momento. Dessa forma, você não terá apenas um resumo
de ideias ou uma elaboração de esquemas mentais que, no fundo,
são reducionismos em relação ao texto original. O papel de uma
leitura filosófica de um texto não é resumi-lo, mas dissecá-lo e
avançar nas questões por ele apresentadas. Seja persistente e
continue na leitura.

82
Discurso Filosófico I

Síntese

Nesta unidade, orientado(a) por algumas pistas metodológicas,


você fez uma leitura pontual do Livro I de A República,
identificando as estratégias discursivas utilizadas no texto, seu
tema central, as teses defendidas pelos interlocutores de Sócrates
e a refutação socrática.

Tal percurso começou com a caracterização da cena inicial do


diálogo, remetendo a certas características da demora quanto
à apresentação da temática no texto platônico. Trabalhado
esse aspecto, passou-se para a análise das hipóteses defendidas
por Céfalo - primeiramente sobre a condição da velhice e
depois sobre ser a justiça “restituir a cada um o que lhe deve”
(PLATÃO, A República, I, 331e), seguida da defesa de Polemarco
em continuidade ao que havia apresentado seu pai, Céfalo.

Por fim, você viu a hipótese de Trasímaco: ser a justiça “a


conveniência do mais forte.” (Id., Ibid., 338c).

Além disso, você pôde acompanhar como funciona a dialética e o


procedimento elenchos, sendo alertado sobre paradas, retomadas,
subidas e descidas próprias do movimento deste texto, fechando
com algumas reflexões complementares – tudo isso procurando
seguir a ordem do texto platônico.

Unidade 2 83
Universidade do Sul de Santa Catarina

Atividades de autoavaliação

1) Dado o que você estudou nesta unidade, assinale V para as afirmações


verdadeiras e F para as falsas:
a) ( ) A cena inicial nada tem a ver com aquilo que será tratado como
tema central do Livro I.
b) ( )Todos os personagens apresentados no início do texto têm
hipóteses sobre o que é justiça e, ao longo do Livro I, as deixam bem
claras.
c) ( ) Céfalo é o pai de Polemarco e um homem de posses.
d) ( ) Apenas Trasímaco, por ser um sofista, tem sua hipótese refutada
por Sócrates.
e) ( ) Um dos critérios utilizados por Sócrates para colocar em xeque a
hipótese de Polemarco é o da amizade.
f) ( ) Ao final do Livro I se tem uma noção do que não seja a justiça.
Entretanto, sua definição ainda não foi, pelo ponto de vista de Sócrates,
adequadamente estabelecida.
g) ( ) Sócrates, ameaçado por Trasímaco, apresenta uma definição de
justiça já no Livro I.
h) ( ) A narrativa é feita de forma direta, ou seja, como se os
acontecimentos estivessem se dando no exato momento em que são
contados.
i) ( ) O uso de imagens complementa o procedimento dialético.
j) ( ) O procedimento de Sócrates, ao interrogar seus interlocutores,
os coloca em contradição, invalidando suas hipóteses sobre o que é
justiça.
2) Em certo momento do debate, o procedimento socrático é
negativamente criticado. Quem faz tal crítica? Que características a
atitude desse interlocutor de Sócrates revelam sobre sua imagem?

84
Discurso Filosófico I

Saiba mais

BARKER, Sir Ernest. Teoria Política Grega. 2. ed. Trad.


Sérgio Bath. Brasília: Ed. UnB, 1978. (Coleção Pensamento
Político, v. 2)

BRISON, Luc; PRADEAU, Jean-François. Vocabulário de


Platão. São Paulo: Martins Fontes, 2010. (Coleção Vocabulário
dos Filósofos)

COSSUTTA, Frederic. Elementos para a Leitura dos Textos


Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FOLSCHEID, D.; WUNENBURGER, J-J. Metodologia


Filosófica. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

GOLDSCHMIDT, Victor. Os Diálogos de Platão: Estrutura e


Método. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2002.

JAEGER, Werner. Paideia, a Formação do Homem Grego.


São Paulo: Martins Fontes, 2003.

JEANNIÈRE, Abel. Platão. Trad. Lucy Magalhães. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

PETERS, F. E. Termos Filosóficos Gregos: Um Léxico


Histórico. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

PLATÃO. A República. 3. ed. Intr., trad. e notas de Maria


Helena da Rocha Pereira. Porto-Portugal: Fund. Calouste
Gulbenkian, 1987.

. Carta VII. Trad. e notas de José Trindade dos


Santos e Juvino Maia Jr. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RJ; São Paulo:
Loyola, 2008.

. Fedro. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém:


Ed. UFPA, 2011.

. Ménon. Trad. Maura Iglésias. Rio de janeiro: Ed.


PUC-RJ; São Paulo: Loyola, 2001.

Unidade 2 85
Universidade do Sul de Santa Catarina

. Teeteto e Crátilo. Trad. Carlos Alberto Nunes.


Belém: Ed. UFPA, 1988.

. Defesa de Sócrates. Trad. Jaime Bruna. 4. ed. São


Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores)

SANTOS, Trindade José. Para Ler Platão. Tomo I – A


Ontoepstemologia dos Diálogos Socráticos. São Paulo: Loyola,
2008.

SOARES, Antônio Jorge. Dialética, Educação e Política: Uma


Releitura de Platão. São Paulo: Cortez, 1999.

86
3
UNIDADE 3

Resumindo os Livros de II a V de
A República

Objetivos de aprendizagem
„„ Resumir os livros II a V de A República.

„„ Identificar os temas centrais destes livros e as


estratégias argumentativas utilizadas.

Seções de estudo
Seção 1 Livro II
Seção 2 Livro III
Seção 3 Livro IV
Seção 4 Livro V
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Nesta unidade, pretende-se fazer um percurso, resumindo
partes, que vai do Livro II ao Livro V de A República. Nesse
percurso você passará pela fundação da cidade a partir das
necessidades básicas. Verá que, conforme esta cidade cresce,
suguem novas ocupações até o aparecimento da classe dos
guardiões, governantes. Em seguida, verá algo sobre a educação
desses guardiões e como eles viveriam. No aspecto educacional,
serão apresentadas regras para o cuidado com a música e com a
ginástica, indicando que ambas são educação para alma.

Você será apresentado, também, às qualidades dos governantes,


de que modo sua vida será feliz e como essa cidade idealizada
será harmônica. Desta discussão, brotará a definição de justiça,
baseada na natureza de cada um, na divisão de trabalho e na
harmonia das partes que compõem a cidade ideal.

Verá a retomada da questão da vida comunitária dos guardiões.


Neste aspecto, a polêmica hipótese de que as mulheres podem
viver como soldados e governar. A defesa de que o governante
deve ser um filósofo, culminando na diferenciação entre o “amigo
das opiniões” e o “amigo do saber”.

Todos esses aspectos devem ser acompanhados do diálogo


platônico A República, de forma que também os aspectos
estilísticos sejam identificados no correr da leitura.

Então, avante leitor!

88
Discurso Filosófico I

Seção 1 – Livro II
Não é descabido que você relembre, mais uma vez, a remissão
feita, no início do Livro II de A República, ao Livro I e seu
significado, principalmente quanto ao aspecto estrutural do texto,
pois as marcas de intratextualidade apontam, também, para uma
coerência textual, dando às várias partes do texto continuidade e
movimento. As abordagens dogmática e a genético-historicista, por
partirem do estrato do texto, de sua urdidura, devem atentar para
estes pontos do ir e vir, procurando recompor as sequências de
raciocínios.

Para avançar é bom, então, retomar alguns momentos já tratados.


Dois momentos apresentados anteriormente foram os da hipótese
de Polemarco e o da hipótese de Trasímaco que, relembrando
os esquemas retirados do LD anterior (SILVA, 2009), foram
denominados como Hipótese 1 e Hipótese 2.

Assim, conforme recomenda Silva (2009, p. 110), a comparação


desses dois momentos das imagens pode levar à identificação
daquilo que o movimento dialético conquista no essencial.

Na Hipótese 1, a primeira questão exige a razão, a


segunda, a função ou finalidade (utilidade, o para quê
algo é), e a terceira prescreve a importante diferença
entre realidade e aparência. Por sua vez, a discussão da
Hipótese 2 leva os seguintes critérios em consideração:
primeiro reconhece-se o princípio de contradição,
depois, distinguindo-se entre a causa e o efeito (a arte
e seu objeto), mostra-se como a perfeição (que prepara
a essência) somente pode estar ao lado da causa, segue-
se mostrando que o lucro também é efeito e, apesar de
possível, não é necessário, mas ocasional, e, por fim,
quando a última contraobjeção se executa pela noção de
virtude, conclui-se mostrando que a justiça é chamada de
virtude porque seu valor está nela própria (valor absoluto)
e não é relativa nem depende de outros valores nem de
seu inverso (é um bem em si mesma). Serão esses critérios
que o Livro II irá perseguir, partindo diretamente do
último, conquistado na conclusão e refutação final.
(SILVA, 2009, p. 110).

Unidade 3 89
Universidade do Sul de Santa Catarina

Logo depois da referência, feita por Sócrates, ao Livro I como


prelúdio, outro interlocutor se apresenta para o debate sobre a
questão da justiça: Gláucon (ou Glauco), que toma uma nova
perspectiva.

Que perspectiva é esta?

Uma perspectiva que parte da existência de três tipos de bens, a saber:

„„ o bem estimado por si mesmo;

„„ o bem estimado por si e por suas consequências;

„„ o bem estimado pela utilidade ou consequência.

Com base nisto, qual a hipótese apresentada por Gláucon (ou


Glauco)? A de que a justiça é um tipo de bem “que devemos
estimar por si só e pelas suas consequências”. (PLATÃO, A
República, II, 358a). Importante notar que a hipótese de Gláucon
(ou Glauco) está apontando para a essência da justiça, do ponto
de vista de Sócrates, a saber, a justiça como um bem.

Mesmo assim, Sócrates não se dá por contente. Então, Gláucon


(ou Glauco) propõe um encaminhamento para o debate:

— Vamos então! – prosseguiu ele –. Presta atenção


a mim também, a ver se ainda chegas a ter a mesma
opinião. Afigura-se-me, na verdade, que Trasímaco ficou
fascinado por ti, mais cedo do que devia, como se fosse
uma serpente. Quanto a mim, a argumentação de um e
de outro não me satisfez. Desejo ouvir o que é cada uma
delas, e que faculdade possui por si, quando existe na alma,
sem ligar importância a salários nem a consequências.
Farei, pois, da seguinte maneira, se também achares bem:
retomarei o argumento de Trasímaco, e, em primeiro lugar,
direi o que se afirma ser a justiça, e qual a sua origem;
seguidamente, que todos os que a praticam, o fazem contra
vontade, como coisa necessária, mas não boa; em terceiro
lugar, que é natural que procedam assim, afinal de contas,
a vida do injusto é muito melhor do que a do justo, no
dizer deles. Porque a mim, ó Sócrates, não me parece que
seja desse modo. Contudo, sinto-me perturbado, com
os ouvidos azoratados de ouvir Trasímaco e milhares de

90
Discurso Filosófico I

outro; ao passo que falar a favor da justiça, como sendo


superior à injustiça, ainda não o ouvi de ninguém, como
é meu desejo – pois desejava ouvir elogiá-la em si e por si.
Contigo, sobretudo, espero aprender esse elogio. Por isso,
vou fazer todos os esforços por exaltar a vida injusta; depois
mostrar-te-ei de que maneira quero, por minha vez, ouvir-
te censurar a injustiça, e louvar a justiça. Mas vê se te apraz
a minha proposta. (PLATÃO, A República, II, 358bd).

A retomada da Hipótese 2 (a de Trasímaco) é reconsiderada,


como aponta a proposta de Gláucon (ou Glauco)
metodologicamente, tomando-se os seguintes critérios:

„„ o da investigação genética, que pergunta o que é a justiça


e qual a sua origem;

„„ se a justiça é praticada por todos contra a vontade, como


necessária e não como boa; e

„„ se isto é natural em função de ser melhor a vida do injusto.

Vale resgatar um comentário de Silva (2009, p. 111) a respeito da


investigação genética:

É importante notar que a investigação genética é


reconhecida dentro do método platônico de um modo
não fortuito, mas faz parte importante de sua reforma
filosófica perante a tradição. Com efeito, os pensadores
pré-socráticos davam a pergunta “desde onde algo é?” ou
“qual a origem de algo?”, bem como “qual o princípio de
algo?”, o mesmo valor que Platão dará a pergunta “o que
algo é?”. Porém, a dialética platônica não está a indicar
um erro naquelas formas de interrogação aos entes,
mas sim a situá-los em outro lugar. Se o conhecimento
hipotético é tão somente apoio, mas nem por isso
rejeitável, do mesmo modo o conhecimento genético é
o trampolim importante para julgar adequadamente as
Hipóteses e se conquistar posteriormente a essência por
meio dos princípios alcançados.

Nesta perspectiva, aparece a história de Giges. Quem é este?


Aquele que encontra um anel mágco. Qual o poder desse
anel? Tornar seu possuidor invisível. Como? Com o simples
movimento de rodar a pedra desse anel para dentro. Com este
poder, Giges passa a reger sua vida por suas vontades.

Unidade 3 91
Universidade do Sul de Santa Catarina

Conforme esclarece a nota 1, da tradução de Maria Helena da


Rocha Pereira (In; PLATÃO, A República, II, 360b),

Giges foi rei da Lídia, c. 587-651 a.C., depois de ter


assassinado o monarca anterior, Candaules, e de ter
despojado a esposa deste. As circunstâncias romanescas
da história foram narradas por Heródoto (I. 8-12) e
serviram também de tema a uma tragédia, de que se não
sabe datar. A parte relativa ao anel de Platão.

Com esta história, Gláucon (ou Glauco) quer mostrar que, se


tanto um homem justo quanto um injusto adquirissem esse
Metodologicamente, trata-se
poder, ambos deixariam de seguir o caminho da justiça. Tal
de uma imagem, um mito.
imagem pretende reforçar a hipótese – muito difundida, como
o próprio Gláucon (ou Glauco) já indicou que a justiça vem do
constrangimento e não da vontade própria.

Werner Jaeger (1989) destaca como, nesta passagem, Platão


simboliza a concepção naturalista do poder e das aspirações
humanas. Note que esta imagem (mito) do anel de Giges,
apresentada por Gláucon (ou Glauco), assim como a imagem
apresentada na Hipótese 1, apela à autoridade. Você deve lembrar
que, na Hipótese 1, foi utilizada a autoridade do sábio Simônides.
De forma semelhante, desta feita recuperando a Hipótese 2,
uma história (mito) comum é tomada, evocada. “Não estamos
ainda diante da ‘boa imagem’, mas já se está prenunciando o
uso do mito na imagética metodológica.” (SILVA, 2009, p.
112). Observe, também, que houve uma passagem do problema
da natureza da justiça para o da vontade. Implicando, agora,
questionar as consequências da vontade.

Na sequência, sempre no espírito de tomar a hipótese


predominante, Gláucon (ou Glauco) caracteriza a vida do homem
injusto e do homem justo. Com tal caracterização, chega à noção
de que a vida do homem injusto é melhor do que a do justo.

Logo, se você está com um olho cá e outro na sequência de A


República, notará que a contenda não para por aí. E, antes que
Sócrates comece sua estratégia refutativa, Adimanto, irmão de
Gláucon (ou Glauco), sugere que também as afirmações daqueles
que honram e elogiam a justiça sejam postas no debate. Entre
as passagens 362e e 367e de A República, Adimanto debulha

92
Discurso Filosófico I

referências a grandes poetas e outras figuras que elogiam a


justiça. Um dos argumentos mais forte que apresenta é o de que
ninguém pode enganar – aparentar ser justo – constantemente a
todos. E mais, que os deuses não podem ser enganados.

Importante: faça o exercício de leitura aprofundada


dessa parte, identificando as figuras citadas por
Adimanto e os argumentos que ele toma para defender
a justiça.

Ao final, Adimanto solicita que Sócrates apresente as razões de a


justiça valer mais do que a injustiça.

Já que eu poderia aceitar de outras pessoas que honrassem


desse modo a justiça e censurassem a injustiça, elogiando e
vituperando, a propósito de cada uma, a sua fama e lucros,
mas não de ti, a menos que a tal me obrigasses, porque
tens passado toda a tua vida a examinar esta questão, e
só esta. Portanto, não nos demonstre apenas, com tua
argumentação, que a justiça vale mais do que a injustiça,
mas também por que motivo, pelos efeitos que cada
uma produz por si mesma em que a posssui, quer passe
despercebida a deuses e homens, quer não, uma é um bem,
e a outra um mal. (PLATÃO, A República, II, 367de).

Você percebeu que, até este ponto, no percurso da discussão sobre


a justiça, principalmente sobre a sua natureza, as argumentações
ainda se apresentavam confusas. Assim, para melhor entendê-la,
Sócrates atenta para dificuldade da tarefa e propõe que se parta
do macro para, depois, se voltar ao micro:

Ora, uma vez que nós não somos especialistas, entendo


– prossegui – que devemos conduzir a investigação da
mesma forma que o faríamos se alguém mandasse ler de
longe letras pequenas a pessoas de vista fraca, e então
alguma delas desse conta de que existiam as mesmas
letras em qualquer outra parte, em tamanho maior e
duma escala mais ampla. Parecer-lhes-ia, penso eu, um
autêntico achado que, de ler em primeiro estas, pudessem
então observar as menores, e ver se eram a mesma coisa.
(PLATÃO, A República, II, 368d).

Unidade 3 93
Universidade do Sul de Santa Catarina

Conforme apontou Silva (2009, p. 116), neste momento é


enunciado explicitamente o método, que consiste na observação
da semelhança do maior na forma do menor. Nota, ainda, Silva
que tal relação é o critério para chegarmos a uma definição,
segundo Sócrates. “Portanto, estamos lendo o momento do
Diálogo em que, após a parada na analítica da imagem, dá-se um
desvio investigativo na direção da definição.”

Fazendo essa analogia, Sócrates mostra que a cidade, maior que


o indivíduo (PLATÃO, A República, II, 368e), é onde podemos
ver mais claramente – pois está em letras grandes – na sua forma
também a justiça e a injustiça a surgir. (PLATÃO, A República,
II, 369a). Lembre-se da imagem em 368d:

Ora, uma vez que nós não somos especialistas, entendo


– prossegui – que devemos conduzir a investigação
da mesma forma que feríamos, se alguém mandasse
ler de longe letras pequenas a pessoas de vista fraca,
e então alguma delas desse conta de que existiam as
mesmas letras [...] em tamanho maior [...]. (PLATÂO, A
República, II).

Aceita a analogia, são apresentadas as causas que originaram as


cidades. Estas, indica Sócrates, se originariam das necessidades
dos homens, quais sejam:

„„ alimento;

„„ moradia;

„„ vestuário; e

„„ outras.

Desta forma, para fundar uma cidade seriam necessários,


basicamente, quatro ou cinco homens:

„„ um lavrador;

„„ um pedreiro;

„„ um tecelão;

94
Discurso Filosófico I

„„ um sapateiro; e

„„ um médico.

Esta cidade chegaria à perfeição “quando cada pessoa fizer


uma só coisa, de acordo com sua natureza e na ocasião própria
deixando em paz as outras.” (PLATÃO, A República, II, 370c).
É bom você ter em mente que este “fundar uma cidade” é, a
Aqui, aparece escondida
pedido de Sócrates, um exercício de imaginação, ou seja, uma uma noção de justiça
abstração. E, mais, como observa Silva (2009, p. 119), ou a definição a que se
pretende chegar.

ainda se permanecerá no modo da imagem, mas esta sofrerá


uma modificação fundamental: a imagem agora é a de
uma cidade justa construída imaginária e hipoteticamente.
Agora, enfim, o recurso dialético à imagem torna-se
definitivamente um uso intelectual com fins a alcançar o
princípio de algo e, então, chegar-se à definição.

Mas a cidade começa a aumentar, conforme vão surgindo outras


necessidades. Aparece o comércio e chegam o lucro e a riqueza,
que não são necessidades fundamentais, conforme aquelas que
Talvez aqui surja o conceito
deram origem à cidade. de injustiça. Atente para a
passagem 372e-373a, de
Com a ampliação da cidade, seu espaço físico torna-se limitado A República II. Ademais,
para o desenvolvimento de suas atividades. Sobre isto, Sir Ernest entre a aristocracia grega
Barker (1978, p. 163) diz: as atividades comerciais
são desprezadas. E o
texto de Platão parece
reproduzir tal desprezo.
A lógica interna da REPÚBLICA exige que Platão
considere dois outros elementos da mente humana, mais
elevados, e o papel que exercem na Constituição do Estado.
Ele continua sua exposição, assim, falando sobre o “espírito”.
Os homens não se contentam com o atendimento das suas
necessidades fundamentais, mas precisam satisfazer certos
desejos mais refinados: a pintura e a poesia, a música e a
moda são “necessidades”; muitas pessoas precisam trabalhar
para atender a essa demanda, que exige certo território
adicional. Uma das funções do Estado é pois a guerra (373d)
objetivando a aquisição e a defesa desses novos territórios;
e o “espírito” (que inspira o guerreiro) se manifesta na
organização da forma militar a serviço do Estado (374d).
Nesta síntese lógica baseada em fatores psicológicos, o
Estado platônico aparece agora como uma estrutura militar
baseada no “espírito”, e não mais como uma organização
econômica fundada no apetite.

Unidade 3 95
Universidade do Sul de Santa Catarina

Assim, a conquista de novas terras se faz necessária, mas também


outras cidades têm esta necessidade. Eis a origem das guerras e
de uma classe que defenderá as cidades (Estados): os guardiões.
Que aparecem ou como
soldados, guerreiros; ou como
administradores; ou, ainda, como
E não digamos seja o que for – declarei – se a guerra faz
os dois.
qualquer bem ou mal, mas somente isto, que descobrimos
a origem da guerra, de onde derivam sobretudo as
desgraças particulares e públicas para as cidades, cada vez
que ela se origina. (PLATÃO, A República, II, 373e).

Numa leitura historicista, esta passagem poderia ser tomada


como, entre outras coisas, uma alusão a própria experiência grega
tão recente da Guerra do Peloponeso – entre Atenas e Esparta,
de 431 a 404 a.C. –, devastadora para muitas cidades gregas,
principalmente Atenas.

E quanto aos guardiões... Ora! Estes precisam ter características


especiais:

Portanto é tarefa nossa, segundo parece, e se na verdade


formos capazes disto, proceder à escolha daqueles de
qualidade e naturezas apropriadas para custódia da
cidade.( PLATÃO, A República, II, 374e).

Por conseguinte, será por natureza filósofo, fogoso, rápido e forte


quem quiser ser um perfeito guardião da cidade. (PLATÃO, A
República, II, 376c).

E mais, este intervalo entre 374a e 376c apresenta a imagem do


“cão de guarda”. As funções desta imagem foram bem esclarecidas e
esquematizadas por Silva (2009). Diz ele tratar-se de uma analogia,
uma imagem-intelectual que orientará a investigação, procurando
encaminhar o discurso à definição. Silva (2009, p. 126-127)
apresenta os desdobramentos dessa imagem da seguinte forma:

1) A relação primeira submetida a exame é aquela entre


natureza e educação do guardião (PLATÃO, República
II, 374e).
2) Coloca-se primeiro a questão pelas disposições
naturais do guardião, “como eles deverão ser quanto

96
Discurso Filosófico I

as qualidades psíquicas” (PLATÃO, República II,


375c), mas envereda-se imediatamente para a avaliação
da educação, pois ainda não há condições de se tratar
explicitamente da alma, pois as qualidades naturais
imediatamente exigidas parecem contraditórias. Será a
própria investigação sobre a educação que abrirá espaço
definitivo para isso.
3) Do mesmo modo como se partiu da necessidade e
avançou-se progressivamente em suas divisões, agora
começa-se a investigação propriamente dita pela educação
pela opinião comum da educação tradicional e, com elas,
suas divisões (PLATÃO, República II, 376-412).
4) Só assim se poderá passar ao modelo de escolha dos
guardiões conforme os critérios pedagógicos conquistados
(PLATÃO, República II, 412b).

Na sequência, Silva (2009, p. 127) apresenta um esquema


que pode ser interessante para você fixar, sinteticamente, os
desdobramentos desta parte.

Vejamos:

Figura 3.1 - Esquema sobre as imagens maior e menor referentes à investigação sobre a justiça
Fonte: Silva (2009, p. 127).

As qualidades necessárias para ser guardião passam a ser


observadas(A República, II, 375) Na referida analogia do “cão de
guarda”, a diferença entre o cão de guarda de boa índole e um
jovem bem nascido parece não haver. Silva (2009, p. 127-128)
ainda observa:

Unidade 3 97
Universidade do Sul de Santa Catarina

Mas essa imagem parece implicar na necessidade de


uma natureza com ânimos contrários, aparentemente
simultaneamente impossíveis: ânimo brando com o
compatriota e acerbo com o inimigo, feitio doce e
impetuoso ao mesmo tempo. Assim se coloca a analogia
com um cão de raça, manso com os conhecidos ainda
que estes nunca lhes tenham feito qualquer benefício
e o inverso aos desconhecidos ainda que estes não lhes
tenham feito qualquer mal. Trata-se de uma natureza
amiga do saber: não se pode distinguir a visão amiga e
inimiga senão na circunstância de conhecê-la. Do mesmo
modo o homem: para ser brando com os familiares e
conhecidos necessita de natureza filosófica, além de ser
fogoso e forte.

Eis, então, que o problema da educação daqueles que serão os


guardiões da cidade é apontado com maior clareza, exigindo uma
investigação mais aprimorada do tema. “Então que educação
há de ser? Será difícil achar uma que seja melhor do que a
encontrada ao longo dos anos – a ginástica para o corpo e a
música para a alma?” (PLATÃO, A República, II, 376e).

Primeiro deve-se ensinar a música. Nesta, Sócrates se detém


a analisar, inicialmente, a literatura, que se compõe de duas
espécies:

„„ a verdadeira; e

„„ a falsa.

A primeira a ser ensinada é a falsa, a fábula. Entretanto, deve-se


tomar cuidado: não são todas as fábulas que devem ser contadas:
O caráter da censura começa a
aparecer.

Logo, devemos começar por vigiar os autores de fábulas,


e selecionar as que forem boas, e proscrever as más. As
que forem escolhidas, persuadiremos as amas e as mães a
contá-las às crianças, e a moldar as suas almas por meio
das fábulas, com muito mais cuidado do que os corpos
com as mãos. Das que agora se contam, a maioria deve
rejeitar-se. (PLATÃO, A República, II, 377c).

Sócrates vê problemas se dermos aos deuses e aos heróis


características humanas, pois estaremos possibilitando com
que as pessoas usem isso como justificativa para suas fraquezas.

98
Discurso Filosófico I

Afinal, se os deuses e heróis têm fraquezas, também podemos tê-


las. Isto é natural! Assim,

a primeira das leis e dos moldes relativos aos deuses,


segundo a qual deverão falar os oradores e poetar os
vates: que Deus não é a causa de tudo, mas só dos bens.
(PLATÃO, A República, II, 380c).

Outra recomendação que aparece no texto é que devemos escrever,


em prosa ou em verso, de maneira que não façamos dos deuses
feiticeiros, ilusionistas ou mentirosos. Aqui, Sócrates faz uma
crítica aos grandes escritores: Homero, Ésquilo e outros, pois estes
deram aos deuses a metamorfose, o ódio, e outros sentimentos
que não são próprios da perfeição, mas sim, da imperfeição. Esses
exemplos, maus exemplos, incutidos nos menores, crianças, e
mesmo nos adultos, podem desviar seus “espíritos” para o mal,
para a imperfeição, para o erro, para a injustiça; conclui-se, daí, que
os poetas não são bons mestres da juventude.

Esse aspecto se apresenta como uma contraposição à cultura


tradicional dos gregos, que viam nos deuses produtores tanto
do bem como do mal, e nos poetas, os educadores, o que era
defendido pelos sofistas e outros. Lembre-se que “no começo
do já haviam citações de versos que sugeriam que os deuses não
eram garantia de justiça.” (PEREIRA, 1987, p. XXII-XXIII.).
A sequência do diálogo reforçará tal acusação aos poetas e ela
reaparecerá, também, no Livro X.

Antes de avançar no Livro III, é importante que você entenda o


significado da música na tradição grega. A importância da música
é ressaltada no próprio texto que estamos estudando, pois os sons
“afetam” a alma. Você já deve ter estudado algo sobre a escola
pitagórica e lembrar a noção de harmonia das esferas e da relação
entre matemática, música, ética e política nos pitagóricos. Platão
é um herdeiro desta tradição.

Uma sugestão de leitura para entender mais aspectos


da posição pitagórica e da platônica, leia a primeira
parte do capítulo Harmonia das Esperas, do livro O
som e o sentido: uma outra história das músicas, de José
Miguel Wisnik (1989, p. 99-105).

Unidade 3 99
Universidade do Sul de Santa Catarina

Assim, você não pode entender a música, como a tratam


os gregos antigos, como uma atividade de mero deleite ou
passatempo, aos moldes de como geralmente a vemos hoje. A
musicalidade está na própria sintaxe da língua grega; aquilo
que tomamos como poesia – Homero, Hesíodo entre outros
—, não se manifesta neste mundo grego sem apropriado
acompanhamento musical – instrumental ou vocal. Mesmo o
início da tradição filosófica ainda canta suas novas visões de
mundo.

A musicalidade é um elemento fundamental na paideia grega.


Platão não despreza isso. Muito pelo contrário, como salienta
Havelock (1996), busca dar à Música um novo papel.

Desde há muito ela [a Música] tem sido a amante do ator


homérico, esse pensador de imagens, e ele lhe disse o que
dizer e como fazê-lo. Agora o jovem Platão dela exige
sua afeição e lhe oferece a sua. Mas se ela o ouvir deverá
abandonar os maneirismos arcaicos que a tornaram
tão agradável a Homero e em vez disso aprender uma
nova dicção que agrade a Platão; deve não apenas falar
uma nova linguagem mas pensar novos pensamentos.
Isso porque, se vai viver com Platão em sua Academia,
essa casa nova que ele está construindo para ela, precisa
aprender novos hábitos de administração doméstica.
Para Platão, essa competição pela sua mão é uma questão
contemporânea; ainda está sendo decidida no início do
século IV a.C. e ele lhe pede apaixonadamente, e através
dela aos helenos aos quais ele dirige sua República, que
eles e ela olhem com bons olhos e compreendam a nova
linguagem empregada por ele e, portanto, vejam sua corte
com bons olhos.

Cabe reforçar, ainda, a relação entre dialética e musicalidade.


Para Platão, a investigação dialética é o ato de escutar essa
musicalidade, distinguindo seu prelúdio e árias e, nestes:

„„ o coro, ou seja, a narrativa dramática da discussão;

„„ os deuses, ou seja, a verdade;

„„ os personagens, ou seja, as teses dos interlocutores; e

„„ o palco, ou seja, a cidade, o ambiente.

100
Discurso Filosófico I

Então, você deve ler/ouvir o texto/música com o tempo necessário


e o cuidado/paciência da leitura/audição.

Muito lindo isto, não?!

Seção 2 – Livro III


O livro III segue apresentando outros pormenores censuráveis
das letras (dos poetas, das fábulas), são esses:

„„ os gemidos;

„„ os lamentos;

„„ os risos;

„„ os sons de animais e do tempo.

Do ponto de vista de Sócrates, tais narrativas só deveriam


mostrar a coragem, a firmeza, em vez da ambição, da ganância.
Atributos dos justos em oposição aos dos injustos.

Ressurge, então, a questão da mentira. Esta só cabe àqueles que


governam:

Portanto, se alguém compete mentir, é aos chefes da


cidade, por causa dos inimigos ou dos cidadãos, para
benefício da cidade; todas as pessoas restantes não devem
provar deste recurso. Mas, se um particular mentir a tais
chefes, diremos que isso é um erro da mesma espécie, mas
maior ainda do que se um doente não dissesse a verdade ao
médico, ou um aluno não revelasse ao mestre de ginástica
os seus sofrimentos físicos ou um marinheiro não referisse
a verdade ao piloto sobre o navio e a tripulação, quanto
à sua situação e à dos seus companheiros de viagem.
(PLATÃO, A República, III, 389bc).

Sendo assim, faz-se necessário punir os que mentem, para servir


como exemplo e para que não ponham a perder a cidade.

Unidade 3 101
Universidade do Sul de Santa Catarina

Na linha de indicar quais são os procedimentos mais adequados


para uma cidade justa, as letras (poesia) e o papel dos poetas,
contadores de fábulas, vão sendo moldados. Assim, cada um deve
usar um só estilo; não devem ser usados estilos narrativos muito
complexos, pois estes apresentam muitas variações; com isso, ao
imitar muitos, não é possível se aproximar do perfeito. Portanto, é
melhor usar narrativas simples. A tragédia e a comédia, ou mesmo
a narrativa, tendem a caracterizar algo prejudicial ao espírito.

Há dois tipos de narrativas:

„„ a adequada; e

„„ a não adequada.

O homem que julgo moderado, quando, na sua narrativa,


chegar à ocasião de contar um dito ou feito de uma
pessoa de bem, quererá exprimir-se como se fosse o
próprio, e não se envergonhará dessa imitação, sobretudo
ao reproduzir actos de firmeza e bom senso do homem
de bem; querê-lo-á em menos coisas e em menor grau,
quando essa pessoa tiver tergiversado, devido à doença
ou à paixão, ou mesmo à embriaguez ou qualquer outro
acidente. Quando, porém, se tratar de algum exemplo
indigno dele, não quererá copiá-lo afanosamente quem
lhe é inferior, a não ser ao de leve, quando ele tiver
praticado algum acto honesto; e, mesmo assim, sentir-
se-á envergonhado, ao mesmo tempo por não ter prática
de imitar seres dessa espécie e por se aborrecer de se
modelar e de se formar sobre um tipo de gente que lhe é
inferior, desprezando-o no seu espírito, a não ser como
entretenimento.
[...] o orador que não for dessa espécie, quanto maior for
a sua mediocridade, mais imitará tudo e não considerará
coisa alguma indigna de si, a ponto de tentar imitar tudo
com grande aplicação e perante numeroso auditório, (…).
Todo o discurso deste homem será feito por meio de
imitação, com vozes e gestos, e conterá pouca narração.
(PLATÃO, A República, III, 396c-397b).

Assim sendo, os poetas, mesmo os melhores, não têm lugar na


cidade, e devem ser expulsos.

102
Discurso Filosófico I

Você deve procurar as dicas no próprio texto de Platão para a


questão do papel das narrativas míticas na educação. É nítido que
Platão procura um tipo de purificação das autoridades gregas,
“razão pela qual a poética de Homero é fortemente criticada e
muitíssimo exemplificada, disso não se segue que o mito não
tenha valor para a dialética.” (SILVA, 2009, p. 125).

Mas, é preciso distinguir os tipos de mito: uns encaminham para


a verdade, sendo aceitáveis no processo cognitivo. Como já foi
dito, você pode encontrar em A República, diversas passagens
que desprezam o mito (as narrativas fabulares), contudo, não
podemos tornar isto uma generalização. Assim, são apresentados,
no Livro III (396), três tipos de narrativas segundo o grau de
imitação e de veracidade. Tal classificação ocorre juntamente
com a crítica à imitação. Algo que você deve tomar com muita
atenção. Isso acontece em função da preocupação de Platão com
os valores pedagógicos e teóricos. Projetando, quanto ao valor
pedagógico, uma nova forma literária, da qual seu próprio texto
seria o paradigma. Conforme Silva (2009, p. 126),

como exemplo de uma literatura desse tipo, a própria


obra República seria o melhor caso. Com efeito, o
diálogo tem por forma o drama, não a tragédia pura.
Possivelmente é o primeiro texto literário em que a
narrativa é feita em primeira pessoa (pelo personagem
de Sócrates), em conformidade com aquilo que Platão
chamou de “narrativa verdadeira”: “Se o poeta não
se ocultasse em ocasião alguma, toda a sua poesia
e narrativa seria criação sem imitação” (PLATÃO,
República III, 393c); “O homem que julgo moderado,
quando, na sua narrativa, chegar à ocasião de contar um
dito ou feito de uma pessoa de bem, quererá exprimir-se
como se fosse o próprio” (PLATÃO, República, 396d).
Além disso, a República é o Diálogo que mais claramente
se utilizou do modo mítico da imagem com fins teóricos,
já que “há uma maneira de falar e narrar pela qual se
exprime o verdadeiro homem de bem” (PLATÃO, A
República, 396c).

Vejamos a tipologia das narrativas segundo a imitação:

a) por simples narrativa: até Ilíada I, 15-16, é o poeta


quem fala sem levar o leitor para outro lugar, como se

Unidade 3 103
Universidade do Sul de Santa Catarina

outra pessoa estivesse a falar. Se o poeta não se ocultasse


em momento algum, toda sua narrativa seria simples sem
imitação. Exemplo deste caso são os ditirambos.
b) por imitação: após a Ilíada I 16, o poeta (Homero) fala
como se posse o próprio personagem Crises, tirando-se
a voz do poeta e ficando só o diálogo, onde seu estilo
deve o mais possível assemelhar-se ao da pessoa que fala,
tornando-se semelhante a alguém na voz e na aparência –
imitação. Assim, a tragédia e a comédia são pura imitação.
c) por narrativa e imitação. O poeta imita umas coisas e
outras não, a questionarem-se as espécies destas coisas a
serem imitadas. Exemplo, a epopeia, sempre composta.
(SILVA, 2009, p. 132).

Pautado no princípio de verdade, nosso filósofo classifica as


formas literárias segundo os graus de imitação. Assim, você
encontra a base da função da imagem para a dialética, já que é
a própria imitação que passa a ser examinada, ou seja, próprias
imagens-sensíveis que sempre são modos da imitação.

No novo modelo, proposto por Platão, será valorizada a narrativa


em primeira pessoa, pois esta seria a única forma que não oculta
o narrador. Tal aspecto encaminha o debate – você verá isto mais
a frente – para a formação da alma e suas disposições tipológicas.

Tal tipologia da narrativa, apresentada em A República, levanta a


questão quanto a que tipos de coisas podem ou não ser imitadas
na formação do guardião. E mais, se cabe imitar os guardiões.

Já foi indicado, em A República, II, que cada um deve exercer


sua profissão de acordo com sua natureza. Desta forma, não é
aconselhável que alguém exerça muitas funções, pois não se pode
imitar bem muitas coisas. É por sua natureza (e não dever) que os
guardiões não imitarão os vícios, mas as virtudes, como:

„„ coragem;

„„ sensatez;

„„ pureza;

„„ liberdade e outras do gênero.

104
Discurso Filosófico I

Se estimulados a imitar tais virtudes desde cedo, se tornarão


hábitos e natureza para o próprio corpo, a voz e a inteligência.

Terminada, em parte, a análise quanto às letras, passa-se à


música (som e melodia), que terá as mesmas restrições. Os
instrumentos, melodias e harmonias serão eliminados em função
de levarem ao delírio, ao prazer em excesso, à cólera e a outras
sensações que desvirtuam o espírito, pois a música penetra
profundamente no espírito e, bem usada, consta como elemento
fundamental na educação. Além das letras e da música, também
as artes em geral devem mostrar apenas o Belo e não o feio.

Depois da música (literatura e música), a proposta apresenta


a educação física. Esta deve ser simples e combinada com a
música, pois:

Para estas duas faces da alma, a corajosa e a filosófica,


ao que parece, eu diria que a divindade concedeu aos
homens duas artes, a música e a ginástica, não para
a alma e o corpo, a não ser marginalmente, mas para
aquelas faces, a fim de que se harmonizem uma com a
outra, retesando-se ou afrouxando até onde lhes convier.
(PLATÃO, A República, III, 411e-412a).

Como a ginástica tem a ver, também, com a saúde do corpo, dois


aspectos complementares são analisados, quais sejam:

„„ a alimentação, que deve ser simples, sem muitos


exageros; e

„„ a medicina, que só deve ser ministrada aos homens


comumente sadios.

De imediato, você pode entender – assim como a tradição grega


– que a ginástica está para a educação do corpo, como a música
está para a da alma. Não se deve ver em Platão, entretanto, a
simples continuidade da tradição grega. Para Sócrates, no fundo,
tanto ginástica como a música educam a alma. Como?

Simples. A ginástica gera, por analogia, impulsos e movimentos,


que, ritmados, exercem um esforço investido para o bem-estar.
Assim como o esforço exaustivo provoca, em nossa mente, um
momento de parada e quebra do fluxo do pensamento, Platão, em
seus discursos, consegue essa inversão.
Unidade 3 105
Universidade do Sul de Santa Catarina

E nesses instantâneos segundos, conseguimos vislumbrar coisas


que, mesmo que por tênues deslizes, tornam-se formas originais
e inspiradoras, como um caminho limpo e puro de oxigênio
para nossos pulmões. Não há descrição do quê vimos, pensamos,
sentimos ou intuímos. Só conseguimos, ainda por analogia,
transbordar e deixar-nos guiar pelo ritmo e pelo movimento, em
um frenesi de consciência e entendimento... Mas é a alma que
torna um corpo bom e não o contrário, sustenta Sócrates.

Devem pois ser educados nela (na ginástica)


cuidadosamente desde crianças, e pela vida afora. Será
mais ou menos assim, segundo penso. (…) A mim não
me parece ser o corpo, por perfeito que seja, que, pela sua
excelência, torne a alma boa, mas, pelo contrário, a alma
boa, pela sua excelência, permite ao corpo ser o melhor
possível. (PLATÃO, A República, III, 403cd).

Recuperando alguns aspectos. A partir da analogia do “cão de


raça”, adentra-se em um sistema de educação. Inicialmente,
pretendia-se analisar música e ginástica separadamente, supondo
que uma era para o corpo, outra para a alma. Porém, tal hipótese
não é aceita em sua totalidade, já que também a ginástica refere-
se à alma. Disto surge o problema da alma em A República. Toda
esta caminhada foi esquematizada por Silva (2009, p. 145):

Figura 3.2 -Desdobramentos da imagem do “cão de raça”


Fonte: Silva (2009, p. 145).

106
Discurso Filosófico I

Sócrates mostra como devem ser os juízes, que olham pela alma,
e os médicos: os primeiros, idosos, que tenham vivido longe das
almas más, pois já tendo a experiência com os bons, também
sabem distinguir os vícios e não serão ludibriados como os jovens;
os segundos, deverão viver sempre entre a doença, para cada
vez mais aprimorar a sua arte. Os dois têm o papel de manter a
cidade, apenas para os bons, seletivamente:

Portanto, estabelecerás na cidade médicos e juízes


da espécie que dissemos, que hão de tratar, dentre os
cidadãos, os que forem bem constituídos de corpo e
alma, deixarão morrer os que fisicamente não estiverem
nessas condições, e mandarão matar os que forem mal
conformados e incuráveis espiritualmente? (PLATÃO, A
República, III, 409e-410a).

Dentro da análise estrutural do texto, tem-se outro desvio.


Conforme indica Silva (2009), recuperando um movimento
anterior do texto, você deve lembrar que a investigação sobre o
valor da ginástica leva a crer que todo ensino dirige-se à alma
e não ao corpo. Chegando a esta conclusão, o diálogo fecha
um desvio, retomando-se a questão de como escolher aquele
verdadeiramente formado para governar. É desse aspecto que
derivará um segundo desvio, agora de ordem psicológica. Silva
(2009) esquematizou todo este movimento do texto, partindo da
formação da cidade ideal, passando pelo:

„„ primeiro desvio, o da imagem do “cão de raça”, de ordem


pedagógica; e

„„ pelo segundo desvio, que apresenta o mito do nascimento


pela terra.

Unidade 3 107
Universidade do Sul de Santa Catarina

Atente para o esquema em questão:

Figura 3.3 - Desdobramentos da imagem maior da cidade


Fonte: Silva (2009, p. 151).

A sequência 410 a 411, de A República, apresenta o argumento


conclusivo desta questão. Em um primeiro momento, supõe-
se que a ginástica educa o corpo e a música educa a alma.
Verifica-se, também, que, se aqueles que se dedicam somente
à ginástica ficam mais grosseiros e rudes, os que se dedicam
somente à música, moles e doces. Sem o devido cultivo, moleza
e doçura dão lugar à grosseria e ao mau humor. Já se fossem bem
cultivadas, dariam lugar à coragem.

A doçura é natural no filósofo. Entretanto, afrouxada em


demasia vira moleza inconveniente, mas, quando dirigida, resulta
em doçura e ordenação. É preciso que os guardiões conciliem
ambas as naturezas e o resultado desta harmonia será uma alma
moderada e corajosa; do contrário, a desarmonia, produzirá uma
alma grosseira e covarde. Assim, ginástica e música estão ligadas
a duas partes da alma:

„„ a corajosa; e

„„ a filosófica, que devem se harmonizar.

Destaca-se, aqui, a harmonia das partes da alma e não de corpo e


da alma, em última instância.

108
Discurso Filosófico I

Tendo isso em vista, surge a questão: quem governará


a cidade?

Entre aqueles educados na proposta apresentada, serão os


melhores os mais velhos, com inteligência, autoridade e
sentimento patriótico. Deverão ser acompanhados desde
pequenos e postos a provações, para ver se, assim como o ferro,
resistem ao fogo, ou vacilam e deixam desvairar o seu espírito.
As provas são testes de
Há também um apontar de eugenia, quando, ao questionar habilidade para comprovar
sobre os malformados fisicamente e incuráveis espiritualmente, suas tendências à filosofia,
a resposta curta é parecer ser melhor, tanto para a cidade como quase no último estágio
para estes, sua eliminação. (Ver A República, Livro
VII); serão despojados de
tudo, prestando serviço
Cabe ressalvar que, aos nossos olhos, tal proposta parece
à comunidade. Os que
absurda e, não raro, alguns fazem analogias com políticas de resistirem serão guardiões.
genocídio adotadas em nossa época, mais claramente o nazismo.
Entretanto, à luz da época de Platão, tal tese não é tão estranha.
Entre os espartanos, tal prática era comum e legal.

Reforçando alguns aspectos apresentados, Silva (2009, p. 152)


aponta para a definição de coragem no livro seguinte:

A definição de “coragem” no livro IV da República


(PLATÃO, República, IV, 429) de Platão é a capacidade da
alma em manter-se na verdade. Isso permite compreender
perfeitamente que em ambos os casos estamos diante
do amor ao saber, como a imagem do cão de raça havia
indicado. Seja como for, está colocada a exigência de
investigar se a alma tem realmente parte ou se é simples.
Mas os passos metodológicos da República indicam que
a pergunta “o que é a justiça?” não exige o esgotamento
do problema da alma, mas tão somente sua suposição.
Isto será exigido para responder não à questão inicial,
mas à primordial (enunciada secundariamente na ordem
cronológica do texto), “se a vida justa é mais vantajosa que
a injusta?”. Essa investigação permite chegar à definição
de justiça porque dá o primeiro passo concludente no
processo analógico, em que as divisões dos tipos humanos
e as divisões da alma se tornam correspondentes, a serem
incluídas posteriormente na divisão do conhecimento e das
classes sociais de uma cidade.

Unidade 3 109
Universidade do Sul de Santa Catarina

Mas como fazer com que a cidade de hoje, seus governantes e


seus cidadãos se convençam de ser essa a melhor maneira de
chegarmos à perfeição, ou, pelo menos, bem próximo dela?

Envergonhado, Sócrates defende:

não sei de que coragem nem de que palavras me servirei


para me exprimir – e tentarei persuadir, em primeiro
lugar, os próprios chefes e os soldados, e seguidamente
também o resto da cidade, de que quanta educação e
instrução lhes demos, todas essas coisas eles imaginavam
que as experimentavam e lhes sucediam como em sonhos,
quando, na verdade, tinham sido moldados e criados
no interior da terra, tanto eles, como as suas armas e
o restante equipamento; e que, depois de eles estarem
completamente forjados, a terra, como sua mão que era,
os deu à luz e que agora devem cuidar do lugar em que
se encontram como de uma mãe e ama, e defendê-la, se
alguém for contra ela, e considerar os outros cidadãos
como irmãos, nascidos da terra.
[...] “Vós sois efetivamente todos irmãos nesta cidade”
– como diremos ao contar-lhes a história – “mas o deus
que nos modelou, àqueles dentre vós que eram aptos
para governar, misturou-lhes ouro na sua composição,
motivos por que são mais preciosos; aos auxiliares, prata;
ferro e bronze aos lavradores e demais artífices. Uma
vez que sois todos parentes, na maior parte dos casos
gerareis filhos semelhantes a vós, mas pode acontecer
que do ouro nasça uma prole argêntia, e da prata, uma
áurea, e assim todos os restantes, uns dos outros. Por isso
o deus recomenda aos chefes, em primeiro lugar e acima
de tudo, que aquilo em devem ser melhores guardiões e
exercer mais aturada vigilância é sobre as crianças, sobre
a mistura que entra na composição das almas, e, se sua
própria descendência tiver qualquer porção de bronze ou
de ferro, de modo algum compadeçam, mas lhe atribuam
a honra que compete à sua conformação, atirando com
eles para os artífices ou os lavradores; e se, por sua vez,
nascer destes alguma criança com uma parte de ouro
ou de prata, lhes deem as devidas honras, […]como
se houvesse um oráculo segundo o qual a cidade seria
destruída quando um guardião de ferro ou de bronze a
defendesse. (PLATÃO, A República, III, 414d-415d).

110
Discurso Filosófico I

Essa é a mentira – e Sócrates se envergonha de mentir – que


servirá para justificar a hierarquia da cidade e o acompanhamento
constante dos governantes (guardiões) na educação. Sendo esses
os melhores, não poderão errar.

Mas, o que carrega essa mentira, além da necessidade


de convencer outros da proposta apresentada por
Sócrates?

Tal mentira, a do mito do nascimento humano a partir da terra,


faria parte da literatura falsa (fábulas) e seria contada na infância
É perceptível, nesta
do governante. narrativa, a semelhança
com o mito das cinco raças,
que narra o nascimento dos
Mas estamos diante de uma mentira necessária: os homens, na obra do poeta
guardiões e suas armas foram moldados e criados no Hesíodo Os trabalhos e os
interior da terra e, uma vez forjados, a terra como sua dias, versos 109 a 201.
mãe os deu à luz, devendo cuidar e defender o lugar em
que se encontram como a uma mãe. Todos são irmãos
nessa terra, mas o deus moldou com ouro os aptos ao
governo, sendo mais preciosos; prata aos auxiliares; ferro
e bronze aos lavradores e demais artífices, gerando-se
filhos na maior parte das vezes semelhantes, embora seja
possível a ocorrência de alterações nesse sistema, de onde
o deus recomendar aos chefes exercer vigilância sobre as
crianças quanto a composição e mistura de suas almas em
sua descendência. (SILVA, 2009, p. 152-151).

É apresentada, ainda, no final do Livro III, a comunidade dos


guardiões. Esses, desde sua condição de soldados, deverão ter uma
vida em comum, com habitações próprias (de campanha), não
terão propriedades, nem riquezas, e cabe à cidade (os cidadãos)
sustentá-los, para que esses não tenham outras ocupações, pois
tais preocupações poderiam levá-los a fazer o mal a outros;
viverão frugalmente com apenas o suficiente para viver. São essas
características que levaram Adimanto, logo no início do Livro IV,
a questionar sobre como poderão viver felizes esses guardiões.

É isso que você acompanhará na sequência.

Unidade 3 111
Universidade do Sul de Santa Catarina

Seção 3 – Livro IV
Adimanto questiona Sócrates sobre a felicidade dos guardiões
por estarem privados de bens, riquezas etc. A resposta vem logo:
essas coisas produzem a discórdia e outros males semelhantes.
Um bom governante, bem educado, não se preocupará com elas,
pois é de sua natureza governar bem, e disto depende toda a
cidade; com isso, será feliz, e toda cidade será feliz em função
de sua boa administração.

Sócrates demonstra que tanto a riqueza como a pobreza pode


levar um homem a se degenerar. Tal degeneração afeta a
produtividade de cada trabalhador e, consequentemente, toda a
cidade, pois seu serviço – o produto de seu trabalho – não será de
qualidade. Se enriquecer, deixa de lado seus afazeres tradicionais
para se dedicar à luxúria, à preguiça e ao gosto por novidades
(modismos); se for pobre, tende à maldade, à baixeza e ao gosto
por novidades (modismos).

Isto revela que os cidadãos dessa cidade, não só os


guardiões e governantes, devem ser comedidos.

Sócrates ainda indica que a felicidade não deve ser vista


como a felicidade de uma dada classe social em detrimento
de outra. Dessa forma, na cidade ideal, imaginada aqui, os
guardiões e governantes serão felizes, por reinar a harmonia e,
consequentemente, a justiça. Isto fica bem claro na passagem de
420b a 421c, do Livro IV, de A República:

Seguindo pelas mesmas veredas, encontraremos, julgo


eu, a resposta a dar. Diremos que não seria nada para
admirar, se estes homens fossem muito felizes deste
modo, nem de resto tínhamos fundado a cidade com o
fito de que esta raça, apenas, fosse especialmente feliz,
mas que o fosse, tanto quanto possível, a cidade inteira.
Supúnhamos, na verdade, que seria numa cidade desta
espécie que se encontraria mais a justiça, e na mais mal
organizada que, inversamente, se acharia a injustiça;
observando-as, determinaríamos o que há muito estamos
a procurar. Ora, presentemente estamos a modelar,

112
Discurso Filosófico I

segundo cremos, a cidade feliz, não tomando à parte


um pequeno número, para os elevar a esse estado, mas
a cidade inteira. Seguidamente, examinaremos o caso
contrário. Era como se estivéssemos a pintar uma estátua
e alguém nos abordasse para nos censurar, dizendo que
não aplicávamos as tintas mais belas nas partes mais
formosas do corpo (de facto, os olhos, sendo a coisa mais
linda, não seriam sombreados com cor de púrpura, mas a
negro). Parece que nos defenderíamos convenientemente
replicando: “Meu caro amigo, não julgues que devemos
pintar os olhos tão lindos que não pareçam olhos, nem
as restantes partes, mas considera se, atribuindo a cada
uma o que lhe pertence, formamos um todo belo. E
em particular neste caso, não nos forces a atribuir aos
guardiões uma ventura tal que os transforme em tudo
quanto há, excepto em guardiões. Bem sabemos como
revestir os lavradores com trajes sumptuosos, coroando-
os de ouro, e mandando-os lavrar a terra conforme lhes
apetecer; e como reclinar os oleiros na devida ordem,
junto do fogo, a beberem regalados, com a roda ao
lado, para quando desejarem trabalhar o barro; e como
tornar felizes todos os restantes de maneira idêntica, a
fim de que toda a cidade esteja contente. Mas não nos
aconselhes a tal. De maneira que, se te obedecêssemos,
nem o lavrador será lavrador, nem o oleiro, oleiro, nem
ninguém mais ocupará o seu lugar; e nessa ordenação é
que a cidade se origina. Mas dos outros faremos menor
conta, porquanto, se os sapateiros se tornarem negligentes
e se estragarem, aparentando ser o que o não são, não é
desgraça nenhuma para a cidade; porém, se os guardiões
das leis e da cidade só o forem na aparência, vês bem que
a deitam toda a perder de lés a lés, e que, inversamente,
só eles detêm o poder de a administrarem bem e de a
fazerem feliz”. Portanto, se somos nós que formamos
guardiões a valer, que de modo algum façam mal ao
Estado, quem vier cá falar daquela história dos lavradores
e dos que se banqueteiam como se estivessem a gozar
numa festa, e não numa urbe, poderá estar a falar de
outra coisa, mas não de uma cidade. Deve, portanto,
observar-se, se estabelecemos os guardas tendo em vista
propocionar-lhes o máximo de felicidade, ou se se deve
ter em consideração a cidade inteira, para que ela a
alcance, e forçar os auxiliares e os guardiões a proceder
assim e persuadi-los, a fim de que sejam os melhores
artistas no seu mester, e assim em todas as profissões; e
deste modo, quando toda a cidade tiver aumentado e for
bem administrada, consentir a cada classe que participe
da felicidade conforme a sua natureza.

Unidade 3 113
Universidade do Sul de Santa Catarina

Vale a pena prestar atenção a alguns trechos específicos desta


citação. “Supúnhamos, na verdade, que seria numa cidade
desta espécie que se encontraria mais a justiça, e na mais mal
organizada que, inversamente, se acharia a injustiça”. Eis mais
uma daquelas passagens intratextuais, ou seja, que remetem a
algo já apresentado ou proposto no texto. Como exercício, seria
bom a localização da parte ou partes anteriores a tal proposição.

O trecho “de maneira que, se te obedecêssemos, nem o lavrador


será lavrador, nem o oleiro, oleiro, nem ninguém mais ocupará
o seu lugar; e nessa ordenação é que a cidade se origina” remete
à noção de justiça. “Quando cada pessoa fizer uma só coisa,
de acordo com sua natureza e na ocasião própria deixando em
paz as outras.” (PLATÃO, A República, II, 370c). Tal atitude
harmoniosa que se tem da justiça, pois a justiça é, como já
foi indicado, a harmonia das partes que compõem o todo: na
cidade, a harmonia entre as classes sociais, com cada um fazendo
seu papel de acordo com sua natureza e sem afetar outros; no
indivíduo, a harmonia das partes da alma, conforme o texto
apontou e, ainda, desenvolverá mais.

Mais um trecho que podemos destacar:

Deve, portanto, observar-se, se estabelecemos os guardas


tendo em vista propocionar-lhes o máximo de felicidade,
ou se se deve ter em consideração a cidade inteira, para que
ela a alcance, e forçar os auxiliares e os guardiões a proceder
assim e persuadi-los, a fim de que sejam os melhores artistas
no seu mester, e assim em todas as profissões.

Como já foi indicado, aqueles que fazem por natureza têm prazer
em fazer o que fazem, dedicando-se, cada vez mais a qualificar
seu trabalho. Resultando disso um produto dos melhores e esse
melhor produto será distribuído para a cidade. Assim, cada um
receberá e dará o que é melhor e será feliz.

Voltamos, então, a sequência do texto.

114
Discurso Filosófico I

Adimanto ainda questiona Sócrates sobre a possibilidade desse


tipo de cidade – sem riqueza – enfrentar uma cidade rica. Além
de demonstrar que os soldados e guardiões desta cidade ideal
estarão melhor preparados, pois não se deixam corromper pela
riqueza ou pela pobreza, Sócrates levanta o ardil de se fazer uma
aliança com outra cidade. Desta forma, a cidade rica enfrentaria
não uma, mas duas cidades.

Como convencer outra cidade a se aliar à cidade ideal?

Simples. Aproveitar-se-ia da ganância, do desejo de conquistar


riqueza, comum a muitas outras cidades. Eis o que diria o
embaixador da cidade ideal para convencer o aliado: “Nós não
nos servimos do ouro nem da prata para nada, nem isso nos é
lícito, mas a vós é-o. Combatei, pois, ao nosso lado e ficai com o
que é dos outros.” (PLATÃO, A República, IV, 423d).

Há, ainda, a caracterização das outras cidades – aquelas que não


a que se está a fundar imaginariamente – como mistas: “São pelo
menos duas, inimigas uma da outra, uma dos pobres e outra dos
ricos.” (PLATÃO, A República, IV, 422e-423a).

Na sequência, fala-se sobre a questão dos limites “geográficos” da


cidade, pois estes podem produzir a guerra, ou seja, a desarmonia
externa ou interna. A cidade deve crescer apenas o necessário,
para não se destruir, ou seja, para não perder sua harmonia.

Conforme dito, não sendo a cidade dada a riquezas, mais


facilmente terá aliados, pois poderá oferecer aos outros, se caso
ganhar, as riquezas da cidade vencida. Além do mais, seus
soldados são os melhores, pois lutam com gosto, sendo esta a
função que deriva de sua natureza.

E as leis?
Estão incluídos, aí, o respeito
aos mais velhos, o corte
Para Sócrates, nessa cidade não convirá legislar por muitas coisas,
de cabelo, a postura etc
mas sim por coisas pequenas, costumes e tradições, pois disto
depende a harmonia, e cada cidadão é sabedor de que deve fazer
a sua parte, sem prejuízo aos outros. Lembrando que isso é o
princípio da divisão de trabalho e será mantido por uma Educação:

Unidade 3 115
Universidade do Sul de Santa Catarina

devem os encarregados da cidade apegar-se a este sistema


de educação, a fim de que não lhes passe despercebida
qualquer alteração, mas que a tenham sob vigilância em
todas as situações, para que não haja inovações contra as
regras estabelecidas. (PLATÃO, A República, IV, 424b).

Prescritas as leis e suas condições na relação com o luxo e


com a medicina, é retomado o processo definicional de justiça
(PLATÃO, A República, IV, 427c- 433d). A fundação da cidade,
já dada, era a condição para avançar. Põe-se, então, o princípio do
Bem para ir mais a frente.

Desta forma, segundo Silva (2009), partindo-se das virtudes que


são imagens intelectuais do modelo de bem. É esta ideia de Bem
que servirá de critério para o processo de definição, embora só
mais a frente ela – a ideia de Bem – seja melhor trabalhada.

Na procura pela justiça, Sócrates vai dando a cada classe que


compõe a cidade, uma virtude principal:

„„ aos guardiões, a sabedoria;

„„ aos soldados, a coragem; e

„„ ao povo, a temperança.

Esta última é a virtude que mantém a harmonia da cidade, pois


quando ausente, não é possível manter a boa relação entre as três
classes:

„„ administradores;

„„ soldados; e

„„ povo.

Destas, chega-se à quarta virtude, que nada mais é do que a justiça.

Entretanto, dela se falou sem se perceber, quando “cada pessoa


fizer uma só coisa, de acordo com a sua natureza e na ocasião
propícia deixando em paz as outras” (PLATÃO, A República, II,
370e). O não cumprimento desta norma será um grande prejuízo
para a cidade: logo, nisto está a injustiça.

116
Discurso Filosófico I

Para recuperar todo um movimento feito até agora, tenha


em mente que quando Platão define a justiça, o que faz,
primeiramente, é colocar a hipótese de ela ser uma virtude, desde
onde pergunta: o que é uma virtude e quantas são as virtudes.
Depois de responder esta pergunta, o autor chega a definir
finalmente a justiça.

O problema da definição de justiça em Trasímaco e Polemarco


– que se encontra no Livro I – estava no fato destes procurarem
a justiça a partir do individual e não do geral, o que lembra
a analogia das letras. O geral seria a justiça na cidade (letras
grandes), de modo que este é o passo que permite à dialética
geral, uma hipótese teórica.

Que hipótese é esta?

A de que a cidade perfeita se mostra fundada em quatro virtudes,


pois é sábia, corajosa, sensata e justa. A partir disso, trata-se de
“distinguir a justiça das outras três virtudes, definindo cada uma
e eliminando-as segundo seus critérios, ‘até que reste a essência
daquilo que procuramos’.” (SILVA, 1999, p. 198). Definição da sabedoria, da
temperança e da coragem.
Nas três definições de virtudes que Platão oferece, o que é
comum é a presença do conhecimento, seja como:

„„ “reta ciência” (sabedoria);

„„ “opinião reta e legítima” (coragem); ou

„„ “raciocínio conjugado pelo entendimento e reta opinião”


(temperança).

As duas primeiras pertencem ao governante e à cidade, em sua


totalidade, e a terceira, pertence também aos indivíduos e à sua
massa (população).

Com o conceito de “conhecimento” funcionando agora como


princípio do raciocínio, Platão pode chegar à definição final de
justiça: a justiça é o que dá a todas essas qualidades da cidade -
sabedoria, coragem e temperança - a força para se constituírem
e o fato de cada indivíduo desempenhar a sua tarefa, sem afetar

Unidade 3 117
Universidade do Sul de Santa Catarina

o outro. Essa formulação é o princípio da cidade e, uma vez


que expressa a justiça na cidade, então a justiça é o princípio
da cidade que, sendo uma das virtudes ao lado das outras três,
também é o que dá unidade a essas três virtudes da cidade.

Tinha-se proposto com a alegoria


das letras maiores e menores; ver Trata-se do princípio de unidade.
a semelhança das maiores para
deduzir as menores. (PLATÃO, A
República, II, 368d). Depois de achar a justiça e a injustiça na cidade, cabe analisar
como isso se reflete no indivíduo. Assim, a justiça no indivíduo
estará na relação de cada uma de suas partes:

„„ a racional (razão);

„„ a concupiscível (apetites); e

„„ a irracional (espiritual).

A harmonia resultaria da razão que domina com auxílio do


irracional sobre a maior parte, que são os apetites; do contrário,
teremos um indivíduo injusto, desequilibrado. Eis alguns
aspectos da análise inicial da natureza da alma, que você
encontra entre 435b e 444c.

Esta parte sobre a teoria da alma (psicologia) de Platão é bem


explicada por Marilena Chauí (2002, p. 293-294):

- a parte ou função apetitiva ou concupiscente, situada


“entre o diafragma e o umbigo”, ou baixo ventre, busca
comida, bebida, sexo, prazeres, isto é, tudo que é
necessário para a cons e para a geração de outros corpos.
Essa parte é irracional e mortal, terminando com a morte
do corpo;
- a parte ou função colérica ou irascível, situada “acima
do diafragma na cavidade do peito”, se irrita ou se
enraivece contra tudo quanto possa ameaçar a segurança
do corpo e tudo quanto cause dor e sofrimento, incitando
a combater os perigos contra vida, Protetora do corpo,
essa parte também é moral e irracional;
- a parte ou função racional, situada na cabeça (face e
cérebro), é a faculdade do conhecimento. Parte espiritual
e imortal, é a função ativa e superior da alma.

118
Discurso Filosófico I

A autora esclarece um pouco mais:

Após apresentar, na República, a divisão da psykhé em duas


funções passionais, irracionais e mortais e uma função
ativa, racional e imortal, Platão indaga se é possível um
homem ser virtuoso, isto é, praticar o bem e as virtudes,
se for comandado pela concupiscência ou pela raiva.
Responde negativamente. O primeio motivo para a
negativa decorre da ideia de justiça, desenvolvida no Livro
IV, ou seja, a justiça exige que o melhor comande o pior
e que o superior comande o inferior. Visto que a parte
melhor e superior da alma é a parte racional, haveria
injustiça se o comando das ações estivesse a cargo das
partes concupiscente e colérica. A areté é a excelência de
alguma coisa, o melhor realizado no grau máximo e não
pode haver aretésob sob o comanda das partes de menos
excelência. O segundo motivo é de origem socrática: as
paixões do desejo e da cólera fazem com que os apetites
e impulsos violentos de nosso corpo obscureçam nossa
inteligência, impedindo-a de conhecer e de realizar sua
atividade própria, e o vício e a ignorância; portanto, quem
não exerce a razão não conhece a virtude e não pode ser
virtuoso. Assim sendo, a vida ética ou virtuosa dependerá
exclusivamente da alma racional.
Há ainda um terceiro motivo, a gora histórico e cocial,
para Platão haver respondido negativamente à pergunta
se um homem virtuoso se comandado pelo prazer
concupiscente ou pela ira. De fato, numa sociedade
predominantemente aristocrática, como foi a grega, o
ideal aristocrático é agonístico, isto é, o valor na guerra
e nos combates,, a coragem do guerreiro. Nas epopeias
de Homero, A Ilíada e a Odisseia, que serviram durante
século para a educação dos jovens gregos, a areté mais
alta, [...], é a coragem do jovem guerreiro para a morrer
no campo de batalha na flor da idade. Ora, o sentimento
responsável pela coragem é a coleta ou a ira, que julga
desonroso não revidar uma ofensa ou uma afronta [...].
Assim ao dizer que um homem em quem a raiva ou a ira
é mais poderosa que a razão não é um homem virtuoso,
Platão diz aos gregos que eles ignoram a ideia da virtude e
que não sabem o que é a verdadeira excelência.
Qual a tarefa ética ou moral da alma racional? Dominar
as outras duas partes, e harmonizá-las com a razão. O
domínio da razão sobre a concupiscência é uma virtude e
seu nome é temperança (sophrosýne) – a moderação. A alma
temperante ou moderada é aquela que não cede a todos os
impulsos e prazeres, e sim modera seus apetites, impondo-
lhes a medida oferecida pela razão. O domínio da razão

Unidade 3 119
Universidade do Sul de Santa Catarina

sobre a parte irascível ou colérica é decisivo. De fato, Plaão


considera que a parte racional não xerce diretamente seu
poder sobre a parte concupiscente, mas age sobre ela por
intermédio da parte irascível ou colérica, pois somente
o sentimento de autoproteção e de defesa da vida pode
dominar os impulsos cegos da concupiscência. Sob o
domínio da razão, a parte irascível saberá discernir o que
é bom e mau para a vida de seu corpo, não só deixará de
lançar-se indiscriminadamente a todo e qualquer combate
que imagine importante para sua vida corporal (saberá
quando e por que um combate deve ser travado e quando
deve ser evitado), como ainda guiará a função apetitiva
ou concupiscente na escolha do que é bom para a vida,
impedindo-a de entregar-se a prazeres que a destruirão.
A virtude própria da alma colérica guiada pela razão é a
honra ou coragem (thymós) ou prudência (phrónesis).
Finalmente, a alma será virtuosa se a parte racional for
mais forte e mais dominadora do que as outras duas, se
não sucumbir aos apelos do apetite e da cólera, isto é, se
não ceder aos apelos irracionais das paixões. Sua virtude
própria é o conhecimento. Assim, um homem é virtuoso
ou excelente quando vive a vida justa: aquela em que cada
função da alma realiza sua própria excelência ou virtude
sob a conduta e a direção da parte superior, a razão. Sob a
direção da parte racional, a parte raivosa se torna prudente e
domina os impulsos cegos do apetite, tornando a temperante
a parte concupiscente. (CHAUÍ, 2002, p. 295-296).

Na continuidade a autora explica que a viciosa é resultante da


desarmonia, ou seja, do conflito entre as diferentes partes ou
funções da alma.

Resta investigar o que é mais proveitoso: se é a justiça ou a


injustiça. Mas Glauco considera isso já ultrapassado, diante de
tudo o que se falou: para ele está claro que é a justiça.

Sócrates conclui que há uma só forma de virtude e variadas de


vícios e que há tantas formas de constituição quantas as há de
almas. Passam, então, a discutir as formas de constituição. Assim
como na alma, são cinco as formas: uma perfeita, que pode ser
apresentada em dois aspectos, a monarquia, “se surgir entre os
governantes um só homem que se distingua – e a aristocracia – se
forem mais.” (PLATÃO, A República 445b).

120
Discurso Filosófico I

Neste momento, Sócrates não lista todas as formas de


constituição, a penas apontado a perfeita, que dependem
do número de governantes pode ser a monarquia ou a
aristocracia. Eis mais um daqueles momentos que você
deve deixar suspensa uma questão, pois ela será retomada
mais a frente, no Livro VIII.

Sócrates reforça, ao final do Livro IV, a importância da educação


do governante:

Contudo, isso considero-o eu como uma só forma de


constituição, portanto, quer haja vários, quer um só,
não abalarão as leis da cidade, desde que tenham a
educação e instrução que expusemos. (PLATÃO, A
República, IV, 445de).

Seção 4 – Livro V
Logo de início, interrompe-se a discussão sobre as constituições.
É a ocasião em que Polemarco combina com Adimanto de
interromper Sócrates para forçar que ele explique melhor a
comunidade de mulheres e filhos anunciada. Tal tema foi
apontado rapidamente nos Livros III (416de) e IV (424a). Mais
uma vez, aparece, no diálogo, uma digressão, um desvio. A
questão da justiça e da formação da cidade pareciam estar sendo
bem encaminhadas; restava, na sequência lógica, dar conta dos
tipos de constituição.

Entretanto, o autor, no ardil de fazer o leitor voltar a algo que


poderia não ter sido muito bem trabalhado anteriormente,
insere a cena que leva à interrupção da avaliação dos tipos de
constituição. Você deve ficar atento a este movimento e esperar
a retomada do mesmo em outro momento da obra em questão.
Em alguns casos, a questão só será retomada em outro diálogo.

Unidade 3 121
Universidade do Sul de Santa Catarina

Eis um dos critérios para certos estudiosos estabelecerem


agrupamentos de diálogos e suas cronologias.

Para seguirmos adiante, leia a passagem 449ac do diálogo A


República, que, conforme orientações, deve estar ao seu lado.
Note que Adimanto levanta o tom da voz, solicitando maiores
satisfações a Sócrates. Adimanto chega mesmo a insinuar que
Sócrates perdeu a coragem de enfrentar a temática sobre a
comunidade das mulheres. Maria Helena da Rocha Pereira
(1987, p. XXIV-XXV), em seu ensaio introdutório à tradução que
está sendo utilizada neste livro, indica que tal “digressão” tem
sido vista, por vezes, como uma parte tardia do diálogo. Salienta,
ainda, a autora, que Platão se utiliza de uma estratégia muito
própria da tradição literária grega.

Na nota 65 (PEREIRA, 1987, p. XXIV), a autora levanta alguns


exemplos clássicos do uso da interrupção na narrativa. E, mais,
a estudiosa indica que o agrupamento dos personagens retoma
o do Livro I. É sempre bom lhe alertar, como já foi feito em
outras seções, que esse ir e vir, esse subir e descer, fazem parte do
movimento pendular da própria dialética.

Mas, vamos avançar?

Sócrates, cauteloso, considera essa uma discussão muito


complicada, entretanto, como há uma insistência, essa questão é
apresentada como uma sequência de grandes vagas, ou sejá, de
grandes ondas que vão colocar em xeque certos valores vigentes,
cada uma maior que a outra e mais difíceis de serem aceitas.
Como você já deve ter notado, na
leitura de A República, as imagens
marítimas são recorrentes no texto
de Platão. Quais são essas vagas?

Primeira vaga: as mulheres devem participar da comunidade dos


guardiões, nas mesmas atividades dos homens; em comum terão
a mesma educação. À primeira vista, parecem coisas contrárias
aos costumes: as mulheres deverão, assim como os homens,
exercitarem-se nuas e participar das guerras.

Mas como dar espaço às mulheres se essas dispõem de uma


natureza diferente da do homem?

122
Discurso Filosófico I

se se evidenciar que, ou o sexo masculino, ou o feminino,


é superior um ao outro no exercício de uma arte ou de
qualquer outra ocupação, diremos que se deverá confiar
essa função a um deles. Se, porém, se vir que a diferença
consiste apenas no facto de a mulher dar à luz e o homem
procriar, nem por isso diremos que está mais bem
demonstrado que a mulher difere do homem em relação
ao que dizemos, mas continuaremos a pensar que os
nossos guardiões e as suas mulheres devem desempenhar
as mesmas funções. (PLATÃO, A República, V, 454de).

Conclui-se:

Logo, não há na administração da cidade nenhuma


ocupação, meu amigo, própria da mulher, enquanto
mulher, nem do homem, enquanto homem, mas
as qualidades naturais estão distribuídas de modo
semelhante em ambos os seres, e a mulher participa
de todas as actividades, de acordo com a natureza, e o
homem também, conquanto em todas elas a mulher seja
mais débil do que o homem. (PLATÃO, A República, V,
455de).

Assim, aquelas mulheres que tiverem aptidão natural para


guardar a cidade, deverão acompanhar os homens. Passada a
primeira vaga, vem a segunda:

Que estas mulheres todas serão comuns a todos os


homens e nenhuma coabitará em particular com nenhum
deles; e, por sua vez, os filhos serão comuns, e nem os
pais saberão quem são os seus próprios filhos, nem os
filhos os pais. (PLATÃO, A República, V, 457d).

E o casamento?

Deve-se unir os melhores com os melhores, para a melhoria


da espécie (eugenia), como se dá com os animais. Com isto, os
governantes deverão tomar bastante cuidado, regulamentado e
estabelecendo rituais para os casamentos. Mais ainda, quando
necessário os governantes devem utilizar algumas mentiras e
sutilezas:

Unidade 3 123
Universidade do Sul de Santa Catarina

Portanto temos de instituir festas, nas quais juntaremos


as noivas e os noivos, e de executar sacrifícios, e os nossos
poetas hão de compor hinos apropriados à celebração
dos esponsais […] devem fazer-se, julgo eu, tiragens à
sorte engenhosas de modo que o homem inferior acuse
em cada união a sorte, e não os chefes. (PLATÃO, A
República, V, 459e - 460 a).

Os mais jovens e valentes terão mais oportunidades de escolhas


quanto a seus pares. Os filhos dos melhores serão separados dos
pais e criados longe destes, e os filhos dos inferiores, os
defeituosos, serão ocultados. As mulheres guardiãs, quando no
período de amamentação, receberão, por artifícios, várias
Aqui não se diz diretamente,
mas dá-se a entender que serão
crianças, não podendo ficar muito tempo com elas, apenas o
eliminados. suficiente para alimentá-las.

Você pode encontrar até recomendações quanto ao período


propício para procriação:

A mulher dará filhos à cidade começando aos vinte anos


até os quarenta; o homem, depois de ter ultrapassado
a meta mais fogosa da vida, a partir de então pode
gerar filhos à cidade até aos cinquenta e cinco anos.
(PLATÃO, A República, V, 460e).

É ilustrativo o que Werner Jaeger, em sua monumental obra sobre


a formação do homem grego, Paideia (1989, p. 161-162) apresenta:

Mas esta intrusão da mulher na esfera profissional do


homem não estará porventura em contradição com o
princípio platônico de que, num Estado construído
organicamente, a justiça consiste em cada um cumprir a
função que lhe é distribuída pela natureza? Segundo este
princípio, parece que indivíduos de constituição diferente
por natureza não deviam desempenhar as mesmas funções.
Platão considera erro dialético semelhante aplicação do
seu princípio, uma vez que o conceito de constituição
igual ou diferente é aqui usado em sentido absoluto, sem
levar em conta o tipo especial de atividades em relação
ao qual se fala de igualdade ou diferença de constituição.
Quem não tiver dotes de sapateiro é indubitável que
não deverá abraçar esta profissão, como quem os tem.
Mas o fato de uma pessoa ter cabelo em abundância e
outra, ao contrário, tender para a calvície, não quer dizer

124
Discurso Filosófico I

que, apesar desta diferença imposta pela natureza, não


sejam ambos aptos para exercer o oficio de sapateiro. E
certo que a diferença natural entre o homem e a mulher
tem mais profundidade vital que a diferença assinalada
no exemplo anterior, mas apesar disso podem ambos
possuir as mesmas aptidões para o desempenho de uma
profissão. As valiosas realizações do homem apresentam,
sem dúvida, uma certa superioridade sobre as da mulher
dentro da mesma especialidade, mesmo sem excluir
aquelas que os representantes do ideal da mulher caseira
consideram especificamente femininas, como cozinhar e
tecer; mas não existem profissões só acessíveis ao homem
ou à mulher. Se a mulher é capaz de fazer grandes coisas
em matéria de medicina ou de música, por que não as faria
também na ginástica ou no manejo das armas? Portanto,
não é a educação musical e ginástica da mulher que vai
contra a natureza, mas sim o atual estado de coisas, que a
impede de desenvolver os dons que lhe foram concedidos.
Com este postulado, Platão tira as consequências de
uma evolução que vem já do tempo de Péricles e de
Eurípides. É sabido que na antiga Atenas a mulher vivia
quase sempre num estado de incultura física e espiritual,
inteiramente dedicada as lides da casa. A partir de
então, descobrimos vestígios cada vez mais frequentes da
participação da mulher nas manifestações espirituais do
seu tempo, principalmente nas tarefas educacionais. Na sua
riqueza, cada vez mais abundante, de figuras importantes
de mulher, a tragédia revela-nos que ela fora descoberta
como ser humano; e o seu direito à cultura é também
objeto de debates. No quadro que Platão traça da cultura
intelectual da mulher figuram também alguns trabalhos
de cariz predominantemente espartano. Se tirarmos dos
seus preceitos aqueles que tendem a converter as mulheres
dos “guardiões” em autênticas amazonas, veremos que
o resto corresponde mais ou menos ao ideal que a nova
cultura feminina se esforça por realizar. A aplicação deste
programa à natureza feminina não só é possível, segundo
Platão, mas é, além disso, muito conveniente, uma vez
que este tipo de educação fortalece a unidade do Estado,
ao estabelecer uma completa unidade entre a cultura do
homem e a da mulher; e, além disso, confere, aos que são
chamados a governar, a superioridade sobre os governados,
que a sua missão exige deles.

Sócrates indica, também, que todos os nascidos no mesmo


período serão filhos e filhas, irmãos e irmãs, netos e netas,
sobrinhos e sobrinhas e assim por diante. Com isto, teremos
uma cidade sempre bem protegida, pois, ao defender a cidade, os
guardiões estarão defendendo os seus. O particular estará diluído

Unidade 3 125
Universidade do Sul de Santa Catarina

no público. Tal aspecto imputa caráter psicológico à política: a


cidade passa a ser uma grande família. Todos terão respeito uns
pelos outros:

„„ para os governantes, os governados serão distribuidores


de alimento e salário;

„„ para os governados, os governantes serão os salvadores;

„„ entre si os governantes se tratarão como amigos, não


havendo motivo para discórdia.

Deve-se levar os filhos aos combates, como parte de sua


educação, para que eles tomem gosto e vejam de perto os pais
a combater. Entretanto, recomenda-se escolher os combates
em que a possibilidade de vencer é maior. Será ensinada a eles,
primeiro, a arte de montaria, para que, caso não estejam indo
bem no combate, possam fugir logo. Recomendam-se honrarias
aos valentes e louvaremos aos mortos. Durante o combate, será
permitido traças de caricias – beijos e abraços – para aumentar os
ardores das paixões no combate.

Também, os inimigos mortos serão tratados com honras,


deixando-os para que sejam levados os corpos e os utensílios de
guerra, pelos seus. Quanto à escravatura: apenas se escravizará os
bárbaros (não helenos). Neste momento, o diálogo apresenta uma
distinção entre “guerra civil”, ou melhor, discórdia civil, pois é
feita entre irmãos, os gregos, e guerra que se dá entre diferentes
povos, gregos e bárbaros.

Parece-me que assim como se dão a estas coisas dois


nomes, guerra e discórdia civil, assim também são duas
realidades, pois são aplicadas à discordância entre dois
objetos. Esses dois objetos que eu digo são, por um
lado, o que é nacional e aparentado, por outro o alheio e
estrangeiro. Por conseguinte, a designação de discórdia
civil aplica-se ao nacional, e a de guerra ao estrangeiro.
(PLATÃO, A República, V, 470b).

Chega-se à maior de todas as vagas:

Enquanto não forem, os filósofos reis nas cidades, ou os


que agora se chamam reis e soberanos, filósofos genuínos
e capazes, e se dê esta coalescência do poder político
126
Discurso Filosófico I

com a filosofia, enquanto as numerosas naturezas que


atualmente seguem um desses caminhos com exclusão
do outro não forem impedidas forçosamente de o prazer,
não haverá trégua dos males, meu caro Glaucón, para as
cidades, nem sequer, julgo eu, para o gênero humano,
nem antes disso será jamais possível e verá a luz do
sol a cidade que a pouco descrevemos. (PLATÃO, A
República, V, 473cd).

A esta altura cabe perguntar: quem é o filósofo?

Eis a resposta: “aquele que deseja prontamente provar de todas


as ciências e se atira ao estudo com prazer e sem se saciar, a esse
chamaremos com justiça filósofo.” (PLATÃO, A República, V,
475cd). No processo desta etapa, há uma distinção entre o “amigo
do saber” (philosophos) e o “amigo das opinões” (philodoxos). A
nota 58, à tradução de Maria Helena da Rocha Pereira (1987, p.
XXV), é esclarecedora:

Em grego, a oposição dos dois conceitos é mais clara, pois


exprimem ambos por composto, cujo primeiro elemento
é comum (philo-). Não é demais acentuar a importância
dessa definição de filósofo, tanto mais que há boas razões
o composto não ascende a Pitágoras, como uma tradição
numerosa, mas tardia, fazia crer até a pouco tempo, mas
que se originou no ensino da Academia.

Resta, então, a distinção entre o conhecimento verdadeiro (saber)


e as opiniões (sensações). O esquema que segue resume a longa
discussão:
ignorância
Conhecimento existente
não existente
ser absoluto opinião
não ser absoluto
coisa
nada

Figura 3.4 - Conhecimento verdadeiro x Opiniões


Fonte: Elaborada pelo autor (2012).

Como você pode observar,, há coisas que estão em posição


intermediária; aparentam estar no domínio do saber, em um
momento, e, em outro, sob o domínio da ignorância.

Unidade 3 127
Universidade do Sul de Santa Catarina

Como, por exemplo, a sensação de felicidade: uma pessoa


pode achar que você está feliz pelo seu comportamento.
Entretanto você, interiormente, está triste.

Podemos dizer que essa pessoa tem uma opinião sobre a sua
felicidade, pois ela só vê aquilo que você aparenta ser, mas na
realidade não é.

Mas assentamos previamente em que, se uma coisa


desta nos aparecesse teríamos de considerar do domínio
da opinião e não da ciência, pois, como objeto errante
no espaço intermediário, é apreendida pela potência
intermediária.
Por conseguinte, dos que contemplam a multiplicidade
de coisas belas, sem verem a beleza em si, nem serem
capazes de seguir outra pessoa que os conduza até junto
dela, e sem verem diremos que tem opiniões sobre tudo,
mas não conhecem nada daquilo sobre que as emitem.
Por conseguinte, devemos chamar amigos da sabedoria,
e não amigos da opinião, os que se dedicam ao ser em si.
(PLATÃO, A República, V, 479d – 480a).

O filósofo é, então, aquele que procura o saber sobre o ser absoluto


e não sobre as aparências. Aquele que busca a perfeição, que saiu
da caverna. Esta questão é o grande paradoxo de A República, pois
o filósofo, para ser rei, tem, através de uma mentira justificada
anteriormente, de convencer as pessoas de que ele dispõe do saber
absoluto; caso contrário, essas pessoas não o seguirão.

Mas ele não dispõe desse saber absoluto, e sim do gosto pelo
saber, quer dizer, da vontade de estar sempre buscando a
sabedoria, sempre se questionando, descobrindo novas respostas,
às quais passará adiante. E mesmo dessas novas respostas, surgem
perguntas novas, no caminho de toda a vida. A República deixa
ambígua a seguinte questão: se o filósofo é o sábio ou aquele que
busca o saber, “amigo da sabedoria”, embora possamos dizer que,
certamente, para uma pessoa acomodada, que não se preocupa
em refletir muito, que “vive a sua vidinha”, os questionadores,
os pesquisadores, os incomodados, os homens e mulheres dos
livros, são vistos como pessoas que têm um pouco mais de
conhecimento, entretanto, é óbvio que não sabem tudo.

128
Discurso Filosófico I

Você consegue responder todas as perguntas do mundo?


Responda uma: Quais são as perguntas? Não sabe? Mas por não
saber isso você é um completo ignorante? Aqui reside o paradoxo.

Síntese

Nesta unidade, você fez um percurso, resumindo partes, do Livro


II ao Livro V de A República. Nesse percurso, entre outras coisas,
você passou pela fundação da cidade a partir das necessidades
básicas: alimentação, moradia, vestiário e saúde. Você se deu conta
de que, conforme essa cidade cresce, surgem novas ocupações até
o aparecimento da classe dos guardiões, governantes. Vislumbrou,
também, aspectos da educação desses guardiões (governantes) e
como eles viveriam. No aspecto educacional, foi apresentado(a) às
regras para o cuidado com a música e com a ginástica, indicando
que ambas são educação para alma.

Deu-se conta das qualidades dos governantes, de que modo sua


vida será feliz e como a cidade imaginada será harmônica. Desta
discussão, brotou a definição de justiça, baseada na natureza de
cada um, na divisão de trabalho e na harmonia das partes que
compõem a cidade ideal.

Estudou, ainda, a natureza da alma e como aquela harmonia


das partes proposta para a cidade imaginária deveria ser seguida,
analogamente, no âmbito individual, deixando a parte racional
comandar as outras.

Na retomada da questão da vida comunitária dos guardiões,


tomou conhecimento da polêmica hipótese de que as mulheres
viveriam como soldados e poderiam governar. A defesa de que
o governante deve ser um filósofo, culminando na diferenciação
entre o “amigo das opiniões” e o “amigo do saber”.

Todos esses aspectos foram apresentados com a constante


recomendação do acompanhamento da leitura do diálogo
platônico A República, de forma que também os aspectos
estilísticos foram identificados no correr da leitura.

Unidade 3 129
Universidade do Sul de Santa Catarina

Atividades de autoavaliação

1) Complete as cruzadas. Esta atividade pretende exercitar sua capacidade


de identificação e capacitação dos aspectos estudados nesta unidade.

Na analogia
com as
letras ela
representa a Palavra grega que significa
cidade. opinião.

Ele tem um anel que o faz ficar invisível.

A principal virtude do soldado.

Para Platão, tanto ginástica como música a educam.


Cabe a estes sustentar
os governantes com
alimentação, vestuários e
ferramentas. A educação das
mulheres segue, em
parte, o modelo...

O mito da origem da humanidade a


partir da terra remete às narrativas
de um poeta da Beócia. Quem é ele?

2) Qual a definição de justiça apresentada por Sócrates?

130
Discurso Filosófico I

Saiba mais

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação. 2.


ed. rev. e atual. São Paulo: Moderna, 1996.

BARKER, Sir Ernest. Teoria política grega. 2. ed. Trad. Sérgio


Bath. Brasília: Ed. UnB, 1978. (Coleção Pensamento Político, 2)

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: Dos


Pré-Socráticos a Aristóteles. 2. ed. rev., ampl. e atualizada. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.

FOLSCHEID, D.; WUNENBURGER, J-J. Metodologia


Filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

GOLDSCHMIDT, Victor. Os Diálogos de Platão: Estrutura e


Método. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2002.

HAVELOCK, Eric. Prefácio a Platão. Campinas: Papirus,1996.

JAEGER, Werner. Paideia, a Formação do Homem Grego.


São Paulo: Martins Fontes, 1989.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Introdução. In: PLATÃO.


A República. 3. ed. Intr., trad. e notas de Maria Helena da
Rocha Pereira. Porto-Portugal: Fund. Calouste Gulbenkian,
1987, p. V-LXI.

PETERS, F. E. Termos Filosóficos Gregos: Um Léxico


Histórico. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

PLATÃO. A República. 3. ed. Intr., trad. e notas de Maria


Helena da Rocha Pereira. Porto-Portugal: Fund. Calouste
Gulbenkian, 1987.

SANTOS, Trindade José. Para Ler Platão. Tomo I – A


Ontoepstemologia dos Diálogos Socráticos. São Paulo: Loyola,
2008a.

Unidade 3 131
Universidade do Sul de Santa Catarina

. Para Ler Platão. Tomo II – O Problema do Saber


nos Diálogos sobre a Teoria das Formas. São Paulo: Loyola,
2008b.

. Para Ler Platão. Tomo III – Alma, Cidade,


Cosmo. São Paulo: Loyola, 2009.

SILVA, Fernando Maurício da. Discurso Filosófico I – Livro


Didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2009.

SOARES, Antônio Jorge. Dialética, Educação e Política: Uma


Releitura de Platão. São Paulo: Cortez, 1999.

132
4
UNIDADE 4

Um percurso pelos Livros VI e


VII de A República

Objetivos de aprendizagem
„„ Identificar os temas centrais dos Livros VI e VII.

„„ Analisar a Alegoria da caverna e as imagens que a


antecedem.
„„ Refletir sobre o currículo proposto em A República.

Seções de estudo
Seção 1 O Livro VI como preâmbulo da Alegoria da Caverna

Seção 2 O Livro VII: a Alegoria da caverna e suas implicações


Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Nesta unidade, você verá uma das partes mais conhecidas da obra
platônica: a Alegoria da caverna. Mas, antes de chegar a ela, verá
imagens que, pode-se dizer, a prenunciam ‒ a do olho e do sol
e a da linha dividida. Tais imagens servem, entre outras coisas,
para a reflexão sobre a formação do filósofo-rei, ou rei-filósofo.
Nesse sentido, tem implicações na Teoria do Conhecimento que
podemos vislumbrar nos textos de Platão, sendo A República um
dos textos em que a Teoria das Formas (TF) começa a aparecer
mais claramente.

Aliado a isso, você compreenderá melhor que o caminho do


conhecimento é voltado para o Bem e que embora o discurso seja
uma forma de aproximar-se desse Bem, ele (o discurso) não é o
Bem, ou seja, que um discurso sobre dado objeto não é o referido
objeto.

Nesse aspecto, você tomará conhecimento de certas tipologias


quanto aos lugares (tópoi) dos objetos de conhecimento, das
ciências e dos próprios objetos do conhecimento.

Você também verá o sentido das disciplinas que compõem o


currículo proposto em A República para a educação do filósofo-
rei, ou rei-filósofo. Perceberá como a grade curricular, que
até então parecia focar na ginástica e na música, será alargada
incluindo matérias (ciências, conhecimentos) que estavam
surgindo naquele contexto histórico da Grécia Antiga.

Mais uma vez, recomenda-se que antes de começar a leitura deste


livro didático você faça uma leitura rápida dos Livros VI e VII de
A República e que ao longo da leitura desta unidade, tenha sempre
por perto este diálogo.

Avante filosofante!

134
Discurso Filosófico I

Seção 1 – O Livro VI como Preâmbulo da Alegoria da


Caverna
Antes de começar a apresentação mais detalhada do Livro VI de
A República, cabe apontar a importância desses dois Livros (VI e
VII), que são objetos de estudo desta unidade, alertando para o
papel que ocupam dentro da obra. Para tanto, veja o que escreve
Antônio Jorge Soares em Dialética, Educação e Política: Uma
Releitura de Platão (1999, p .95-96):

Os Livros VI e Vll da República [...] não dão


continuidade à discussão a nenhum dos temas relevantes
que foram ventilados nos Livros precedentes, nem dão
início a algum tema que irá se desenvolver nos Livros
posteriores, de modo que poderiam ser suprimidos sem
prejuízo da estrutura da obra. De fato, a discussão acerca
da justiça, iniciada a partir do indivíduo, estende-se à
cidade e, passando pelo exame da vida comunitária, até
que venha alcançar o preceito máximo de que o filósofo
deve ser colocado à frente do governo, quer convertendo-
se em rei, quer quando o rei tornar-se filósofo, atinge, já
no Livro VIII, as relações que existem entre as formas da
alma e as formas de constituições. Tema, aliás, anunciado
no Livro IV. É como se Platão abrisse um parêntese na
discussão em curso para atender ao pedido de Adimanto
acerca da natureza do verdadeiro filósofo, de como
distingui-lo dos demais e de como garantir que ele
proceda correta e justamente.
Mas, se é assim, então por que Platão viu a necessidade
de inserir na obra tais Livros? A razão disso, para nós,
parece residir no fato de que, embora estes Livros não
progridam na análise, objetivam explicitar, colocando-
se no mesmo patamar atingido pelo final do Livro V,
a natureza do filósofo como o único capaz de conceber
o Bem, e propor uma nova forma de educação para
os candidatos a filósofo, bastante diferente daquela
apresentada no Livro II. Ali, bastavam a música e a
ginástica para a alma do guardião tornar-se harmônica;
aqui, porém, o estudo sério e metódico visa capacitar o
guardião a ver não com os olhos do corpo, mas com os
da mente, condição extremamente relevante ao exercício
ao comando da cidade. Em consequência, tais Livros
terminam por reforçar a tese de que, sendo o filósofo o
mais apto, mediante uma rigorosa educação, ele deve,
mais do que ninguém, assumir o comando da cidade.
Entretanto, estes Livros, por detalharem em que consiste

Unidade 4 135
Universidade do Sul de Santa Catarina

o que o filósofo almeja alcançar (a forma do Bem), por


oferecerem um paralelo entre o método geométrico e
o dialético e, por fim, por conterem os passos de uma
educação adequada a um governante concebido em lógos
para uma cidade concebida em lógos, manifestam-se
como extremamente ilustrativos do que Platão entendia
por “filósofo”, “dialética” e por “educação adequada a um
verdadeiro governante”.

Podemos destacar partes desse trecho selecionado para frisar


algumas considerações importantes. No primeiro parágrafo,
quando o autor escreve “[...]Livros posteriores, de modo que
poderiam ser suprimidos sem prejuízo da estrutura da obra.”, há,
evidentemente, a ênfase no ponto de vista estrutural.

Ao citar o Livro VIII, vemos que acompanhando o raciocínio


do autor, você passaria do Livro V para o VIII de A República.
De fato, isso faz certo sentido, pois, como você viu, o Livro V,
ao final, aponta para a relação entre as formas da alma e as das
constituições. Eis um tipo de rearranjo do texto que depende da
leitura dogmática, que toma a estrutura do texto como elemento
central para a leitura filosófica.

Por fim, no terceiro parágrafo, destacamos a palavra lógos, que


consta como um dos mais importantes vocábulos da filosofia
grega e pode significar, entre outras coisas: palavra, discurso,
relato, faculdade racional.

Voltemos, então, ao livro VI.

Nas primeiras páginas deste livro, Sócrates mostra as qualidades


do filósofo:

„„ gosto pelo saber;

„„ capacidade de aprendizagem;

„„ aversão à mentira;

„„ moderação;

„„ justiça e sensatez;

136
Discurso Filosófico I

„„ persistência e memória; e

„„ coragem.

Essas qualidades serão aperfeiçoadas pela educação: “— Ora não


seriam as pessoas assim, aperfeiçoadas pela educação e pela idade,
e só esses, que gostarias de entregar a cidade?” (PLATÃO, A
República, VI, 487a).

Relembrando: as citações diretas de A República de


Platão seguirão o texto da tradução de Maria Helena
da Rocha Pereira, 5ª edição, de 1987. Entretanto, será
adotada, para referenciação, a numeração clássica,
convencionada internacionalmente. Essa numeração
será utilizada sempre que a obra citada for da
antiguidade grega.

É nesse momento (PLATÃO, A República, VI, 487b) que


Adimanto interrompe a discussão colocando a questão sobre
pessoas desse tipo (filósofos) serem frequentemente vistas com
maus olhos pelos cidadãos e que, em alguns casos, usam de suas
habilidades para o mal e para seu benefício próprio, o que os
torna inúteis à cidade.

A constatação de Adimanto pauta-se na observação do que


costumeiramente acontece. Tome a passagem de sua fala como
um todo:

— Ó Sócrates — interrompeu Adimanto — ninguém


seria capaz de contraditar os teus argumentos. Mas de
facto, a impressão que experimentam aqueles que de
tempos a tempos ouvem o que acabas de expor é mais
ou menos esta: supõem que, pela sua inexperiência em
interrogar e responder, a cada pergunta a discussão os
desvia um pouco, e que, depois de terem acumulado esses
pequenos desvios, ao chegarem ao fim da argumentação,
surge um erro grande e contrário à posição inicial; e, tal
como, no gamão, os jogadores hábeis cercam as pedras
dos outros e não os deixam chegar ao fim, nem ter para
onde mover as pedras, também eles acabam por ficar
cercados e sem ter que dizer nesta outra espécie de jogo,
feito não com pedras, mas com argumentos. O certo
é que a verdade não adianta nada por esse modo. Falo

Unidade 4 137
Universidade do Sul de Santa Catarina

com os olhos postos no caso presente. De facto, poder-


se-á objectar que uma pessoa não tem argumentos
para contraditar cada uma das tuas perguntas, mas que
os factos mostram que todos quantos se dedicaram à
filosofia, para se cultivarem, quando eram novos, e não a
abandonaram, mas persistiram mais tempo nesse estudo,
na maior parte dos casos se tornam bastante excêntricos,
para não dizer perversos, e aqueles que parecem mais
equilibrados, mesmo assim se ressentem dessa aplicação
que tanto elogias, tornando-se uns inúteis para a cidade.
(Platão, A República, VI, 487bd).

Sócrates indica que tais constatações são verdadeiras. Então,


Adimanto aponta uma contradição no que até o momento
tivera sido acertado. Do seu ponto de vista, se o que disse é
verdade, não seria “certo afirmar que as cidades não cessarão de
sofrer calamidades, antes de serem governadas por filósofos”.
(PLATÃO, A República, VI, 487e). Sócrates alega que para
responder tal questão é preciso tomar uma metáfora, ou seja, o
uso de imagens. Sócrates tece, assim, a imagem da nau.

Imagina, pois, que acontece uma coisa desta espécie,


ou em vários navios ou num só: um armador, superior
em tamanho e em força a todos os que se encontram
na embarcação, mas um tanto surdo e com a vista a
condizer, e conhecimentos náuticos da mesma extensão;
os marinheiros em luta uns contra os outros, por causa
do leme, entendendo cada um deles que deve ser o piloto,
sem ter jamais aprendido a arte de navegar nem poder
indicar o nome do mestre nem a data do seu aprendizado,
e ainda por cima asseverando que não é arte que se
aprenda, e estando prontos a reduzir a bocados quem
declarar sequer que se pode aprender; estão sempre a
assediar o dono do navio, a pedir-lhe e a fazer tudo
para que lhes entregue o leme; algumas vezes, se não
são eles que o convencem, mas sim outros, matam-
nos, a esses, ou atiram­nos pela borda fora; reduzem à
impotência o verdadeiro dono com a mandrágora, a
embriaguez ou qualquer outro meio; tomam conta do
navio, apoderam-se da sua carga, bebem e regalarn-se de
comer, navegando como é natural que o faça gente dessa
espécie; ainda por cima, elogiam e chamam marinheiros,
pilotos e peritos na arte de navegar a quem tiver a
habilidade de os ajudar a obter o comando, persuadindo
ou forçando o dono do navio; a quem assim não fizer,

138
Discurso Filosófico I

apodam-no de inútil, e nem sequer percebem que o


verdadeiro piloto precisa de se preocupar com o ano,
as estações, o céu, os astros, os ventos e tudo o que diz
respeito à sua arte, se quer de facto ser comandante do
navio, a fim de o governar, quer alguns o queiram quer
não — pois julgam que não é possível aprender essa arte
e estudo, e ao mesmo tempo a de comandar uma nau.
Quando se originam tais acontecimentos nos navios, não
te parece que o verdadeiro piloto será realmente apodado
de nefelibata, palrador, Inútil, pelos navegantes de
embarcações assim aparelhadas? (PLATÃO, A República,
VI, 488a-489a).

Antes de avançar, você deve pensar no movimento do texto.


Depois de estabelecer as qualidades do filósofo e o porquê do “ter
que governar a cidade justa”, Sócrates é posto em xeque e uma
aparente contradição toma lugar. Para resolvê-la, Sócrates usa uma
imagem: a da nau em que todos se acham no direito de governar.
Note que estamos, mais uma vez, perante o movimento pendular
da dialética, dessa vez auxiliado pelo uso de imagens. Bom lembrar
que tal movimento pendular ‒ ou de ir e vir ‒ serve como artifício
para, em um momento posterior, avançar no debate.

Analogias a atividades náuticas são recorrentes na Antiguidade e


Platão inclui-se na lista dos que usam tais analogias. Essa tradição,
segundo Pereira (1987, p. 274, nota 4), remete ao poeta grego
Arquíloco, que viveu na primeira metade do século VII a.C.

Certamente, essa metáfora (imagem) compara a nau ao Estado


e, mais, à situação de muitos considerarem que podem tomar
o governo e que governar não é uma atividade passível de
aprendizagem e ensinável. Isso remete, como lembra J.
Guinsburg (Cf.1965, v. II, p. 63, nota 10), ao ataque que Platão
faz aos atenienses, pois estes não consideravam ser a política
objeto de uma ciência verdadeira.

Assim como os políticos demagogos, esses “usurpadores da nau”


na metáfora apresentada levam a cidade (o Estado) à perdição.
O fato de muitos arrogarem o direito de governar aponta para
a crítica à democracia. É nesse contexto que a constatação de
Adimanto é pertinente, pois nele o filósofo não tem importância
ou não é visto como importante.

Unidade 4 139
Universidade do Sul de Santa Catarina

Também o comentário de Werner Jaeger (1989, p. 581) sobre esta


metáfora é esclarecedor:

A imagem do piloto foi escolhida com acerto para esclarecer


duas coisas: a necessidade inadiável para a coletividade
do saber que o caracteriza e a incapacidade do resto da
tripulação para compreender a superioridade da sua arte.
Embora o seu saber seja indispensável para dirigir o
barco, os outros o têm como um sonhador e um charlatão,
porque o seu trabalho requer mais teoria e mais método
que aquilo que os outros navegantes conseguem imaginar.
Nesta comparação, chama a atenção a insistência com que
se bate na tecla de que a arte de navegar é suscetível de
aprendizagem, em oposição com a crença dos marinheiros,
que a julgam fruto da simples rotina. Com isto, Platão volta
ao conceito de techne política que formulara no Górgias,
e isso nos lembra ao mesmo tempo as dúvidas iniciais
apontadas por Sócrates no Protágoras sobre a possibilidade
de ensinar a virtude política. E claro que as suas dúvidas se
esvaíam no final do diálogo, no momento em que a virtude
se revelava como o conhecimento do Bem. Na República,
Platão já não deixa Sócrates albergar nenhuma dúvida. Com
a comparação da verdadeira arte de navegar, suscetível de
aprendizagem, prepara-nos para nos desvendar em seguida
a sua própria arte da navegação política, ou seja, a educação
filosófica dos “regentes” do Estado.

Para marcar sua posição de que tal inutilidade do filósofo no


governo é aparente, Sócrates estabelece uma analogia entre a
medicina e filosofia, ou melhor, entre o médico e o filósofo. Veja:

A verdade é que quem estiver doente, seja rico ou pobre é


forçoso que vá bater à porta do médico, e que todo aquele
que precisa de ser dirigido, à de quem puder governá-
lo, e não ser o combatente que suplica aos súditos que
consintam em ser mandados, quando na verdade é dele
que lhes vem auxílio. Se comparares os chefes políticos
actuais com os marinheiros a que há pouco nos referimos,
não errarás; e bem assim aqueles que eles qualificam de
inúteis e de pessoas que falam no ar, com os verdadeiros
pilotos. (PLATÃO, A República, VI, 489bc).

Ao que parece, aquele que vai governar não deve fazer isso
simplesmente por desejo próprio, mas por um tipo de obrigação
para com os outros.

140
Discurso Filosófico I

Resta, ainda, avaliar a constatação apresentada por Adimanto


de que aqueles dados à filosofia, geralmente, se corrompem,
imputando maldades aos outros. Sobre a maldade do “filósofo”,
afirma-se que, embora dispondo de qualidades (potencialidades)
de excelência, ele pode ser desviado por um meio ruim, uma
educação não adequada. Eis que se aponta outra analogia para
dar conta disso:

— A respeito de toda a semente ou rebento, de planta


ou animal, sabemos nós que aquele que não obtiver o
alimento que convém a cada um, ou a estação, ou o lugar,
quanto mais forte ele for, tanto mais sente a falta dessas
vantagens, porquanto o mal é, de algum modo, mais
oposto o que é bom do que ao que não é bom. [...]
— É lógico então, me parece, que a natureza melhor,
sujeita a uma alimentação diversa da que lhe compete,
resulte numa coisa pior do que a natureza medíocre. [...]
— Logo, ó Adimanto, diremos que as amas mais bem
dotadas, se se lhes deparar uma educação má, se tornam
extremamente perversas? Ou julgas que os grandes
crimes e a maldade imoderada tema sua origem numa
natureza medíocre, e não numa natureza estuante,
pervertida pela educação, e que uma natureza débil nunca
será causa de grandes males? (PLATÃO, A República,
VI, 491de).

Há homens que se desviam. Podemos dar como exemplo


os sofistas, que têm a maioria das qualidades apresentadas,
entretanto, usam-nas para seus benefícios, cobrando suas aulas;
ou, outro exemplo, um pequeno comerciante que, ficando rico
de uma hora para outra resolve apresentar-se como um grande
homem, um político, pagando aulas de retórica e comprando
vestes mais caras.

Ambos confundem o povo, que os veem como se fossem


filósofos, ressalta Sócrates, no diálogo em questão. Assim, nesse
meio em que há ganância, disputa de poder, luxúria e diversos
outros desvios (vícios), os bons não são muito bem-vistos e,
consequentemente, os filósofos também tendem a não serem
bem-vistos.

Unidade 4 141
Universidade do Sul de Santa Catarina

É nítida a crítica de Sócrates aos sofistas, pois estes preocupam-se


com opiniões, falam o que é de interesse das multidões e usam
mal a dialética, tornando-se apenas retóricos. Eis um aspecto que
São os “amigos das opiniões”, os
philodoxos.
voltará no Livro VII, em que terá um tratamento mais
consistente e que também já foi apontado em momentos
anteriores. Mesmo assim, atente para a acidez do retrato que
Sócrates faz dos sofistas:

— Que cada um desses particulares mercenários, a quem


essa gente chama Sofistas e considera como rivais, nada
mais ensinam senão as doutrinas da maioria, que eles
propõem quando se reúnem em assembleia, e chamam
a isso ciência. É como se uma pessoa, que tenha de criar
um animal grande e forte, aprendesse a conhecer as
suas fúrias e desejos, por onde deve aproximar-se dele
e por onde tocá-lo, e quando é mais intratável ou mais
meigo, e porquê, e cada um dos sons que costuma emitir
a propósito de cada coisa, e com que vozes dos outros se
amansa ou irrita, e, depois de ter adquirido todos estes
conhecimentos com a convivência e com o tempo, lhes
chamasse ciência e os compendiasse, para fazer deles
objecto de ensino, quando na verdade nada sabe do que,
destas doutrinas e desejos, é belo ou feio, bom ou mau,
justo ou injusto, e emprega todos estes termos de acordo
com as opiniões do grande animal, chamando bom
aquilo que ele aprecia, mau ao que ele detesta, mas sem
ter qualquer outra razão para tanto, antes designando
por justo e belo o inevitável, porquanto nunca viu qual é
a diferença essencial entre a natureza da necessidade e a
do bem, nem é capaz de a apontar a outrem. Uma pessoa
assim não te parece, por Zeus, um mestre estranho?
(PLATÃO, A República, VI, 493ab).

Para Sócrates, nos governos de então não havia constituição


que colaborasse para com o filósofo, o que difere da cidade de
Sócrates, aquela construída por um exercício de imaginação,
a cidade idealizada, na qual o Estado se preocupará com a
educação. É bem clara a crítica ao modelo de educação vigente,
em que cedo se introduz a dialética, fazendo um mau uso dela.

Sócrates propõe algo diferente:

Quando são adolescentes e crianças, deve empreender-


se uma educação filosófica juvenil, cuidando muito bem

142
Discurso Filosófico I

dos corpos, em que se desenvolvam e em que adquiram a


virilidade, pois eles são destinados a servir a filosofia. À
medida que avançam na idade em que o aluno começa a
atingir a maturidade, devem intensificar os exercícios que
lhe dizem respeito; quando as forças os abandonarem,
e os puserem a margem da política e da guerra, então
devem deixar-se pastar em liberdade, como os animais
sagrados, e não fazem mais nada, a não ser como passa-
tempo, se se quiser que vivam felizes se que, depois de
alcançarem o termo da vida que lhes coube, entrem
na posse do destino no além que está à sua altura.
(PLATÃO, A República, VI, 498bc).

Para convencer a multidão, os falsos filósofos devem ser


apontados, desmascarados, e a utilidade das qualidades do
filósofo reforçada. Tomando esses procedimentos, o filósofo será
colocado em seu devido lugar, o de governante do Estado, o de
filósofo-rei, ou rei-filósofo.

Adiante desenvolve-se o caminho do filósofo, das opiniões ‒ a


dialética. Esse caminho retoma o Livro V quando são explicados
os conceitos de opinião, entendimento e razão.

Lembrando como chegamos até aqui, você deve ter em mente


que o mote foi a busca de uma definição para justiça. Nessa
busca, você viu o surgimento da cidade idealizada e as razões
que levam as cidades a se corromper. A partir da fundação da
cidade imaginada, engendrou-se sua composição, com suas
classes sociais, às quais foram atribuídas determinadas virtudes.
Revelou-se que a justiça está ligada à harmonia das diferentes
partes da cidade (classes sociais). De forma semelhante, também
a harmonia entre as partes da alma gera justiça no indivíduo.
Você teve assim uma pista de que a justiça é um bem.
Algo de fundamental
Além disso, foram esclarecidos a importância e o papel da
importância para este
educação na formação dos governantes. E mais, que tal ponto de sua caminha no
governante deveria ser filósofo, diferenciando-se o filósofo Livro VI, de A República.
do “amigo das opiniões”. Tudo isso remete ao problema do Portanto, lembre-se disso.
conhecimento. Contudo, tal caminho ao conhecimento, à
filosofia, não é fácil e também não é para qualquer um, como
indicam as seguintes passagens: “Por conseguinte — prossegui
eu — é impossível que a multidão seja filósofo.” (PLATÃO, A
República, VI, 494a). “— Bem poucos são então — prossegui
eu — ó Adimanto, os que nos restam, dignos de conviver com a
filosofia.” (PLATÃO, A República, VI, 49ab).
Unidade 4 143
Universidade do Sul de Santa Catarina

Algumas outras características do filósofo são reforçadas:

„„ maturidade;

„„ aproximação à divindade; e

„„ ambição pelo Bem.

É um homem maduro, pois os jovens não têm a capacidade de


entender a dialética e aplicam procedimentos básicos desta de
forma inadequada. O filósofo aproxima-se do divino, conforme
indica a passagem 500cd: “‒ Ora certamente o filósofo, convivendo
com o que é divino e ordenado, tornar-se-á ordenado e divino até
onde é possível a um ser humano.” (PLATÃO, A República, VI). O
filósofo também tem como ambição a forma do Bem.

Se o caminho não é fácil, o que podemos fazer?

Dar conta do que é o Bem parece ser um passo para tanto. Eis,
então, que o foco do diálogo centra-se, nas passagens seguintes,
nessa tarefa.

— De modo algum. Mas interroga tu mesmo. De


resto, já o ouviste não poucas vezes, e agora, ou não te
lembras, ou então estás disposto a reter-me causando-me
dificuldades. Julgo que é mais por esta razão, uma vez
que já me ouviste afirmar com frequência que a ideia do
bem é a mais elevada das ciências, e que para ela é que a
justiça e as outras virtudes se tornam úteis e valiosas. E
agora já calculas mais ou menos que é isso que vos vou
dizer, e, além disso, que não conhecemos suficientemente
essa ideia. Se a não conhecemos, e se, à parte essa ideia,
conhecermos tudo quanto há, sabes que de nada nos
serve, da mesma maneira que nada possuímos, se não
tivermos o bem. Ou julgas que vale de muito possuir
qualquer coisa que seja, se ela não for boa? Ou conhecer
tudo o mais, excepto o bem, e não conhecer nada de belo
e bom? (PLATÃO, A República, VI, 504e-505a).

Você pode notar que Sócrates deparou-se com algo maior que
a justiça, algo que pode servir como critério e princípio para tal
definição. Em um primeiro momento são mostradas as confusões

144
Discurso Filosófico I

que muitos fazem ao identificar completamente o Bem e o prazer


e de outros que tomam prazer pelo saber.

Aqui se explicita inteiramente a relação entre


conhecimento e desejo antes considerada, distinguindo-se
desejo de prazer e desejo ideal. Para a maioria é o prazer
que se identifica com o bem e para os mais requintados
é o saber. Porém, enquanto estes últimos são incapazes
de dizer o que é o saber e por força dizem ser o “saber
do bem” como se todos entendêssemos o que significa
“bem”, aqueles se encontram na mesma dificuldade na
medida em que precisam admitir que existem prazeres
maus. Que o mesmo possa ser considerado bom ou mau,
sem a distinção entre a ideia de bem e suas possíveis
participações em outras ideias e coisas seria a razão das
frequentes discussões. (SILVA, 2009, p. 179).

Logo à frente, encontramos mais uma alfinetada nos sofistas:

— Pois então! E não é evidente que, quanto ao justo


e ao belo, muitas pessoas escolherão as aparências e,
ainda que não tenham realidade, mesmo assim é isso
que querem praticar, possuir e aparentar; ao passo que,
quanto ao bem, a ninguém basta já possuir a aparência,
mas procuram a realidade, e, nesse ponto, já toda a gente
despreza a aparência? (PLATÃO, A República, VI, 505d).

Ainda assim, no vai e vem do apontar para o Bem, Sócrates


parece esquivar-se ou, ao menos, trilhar muitos atalhos, o que
faz com que mais uma vez um de seus interlocutores cobre uma
definição sua.

— É forçoso. Mas agora tu, ó Sócrates, que é que tu


afirmas que seja o bem: a ciência ou o prazer, ou qualquer
outra coisa?
— Olá amigo! Há muito que eu estava mesmo a ver que
não te servia a opinião dos outros a este respeito.
— É que também não me parece justo, ó Sócrates, que se
saiba expor as doutrinas alheias e as próprias não, quando
uma pessoa se ocupa destas questões há tanto tempo.
— Ora essa! — exclamei eu —. Parece-te justo que uma
pessoa fale sobre aquilo que ignora, como se o soubesse?
— Não é como se soubesse, mas como se entendesse
consentir em dizer aquilo que pensa. (PLATÃO, A
República, VI, 506bc).

Unidade 4 145
Universidade do Sul de Santa Catarina

E, mais uma vez, quando Sócrates vai se arranjar na noção de


pouco saber, entrando em novos floreios, Gláucon (ou Glauco)
intervém:

— Por Zeus, ó Sócrates — interveio Gláucon —, não te


detenhas, como se tivesses chegado ao fim! Basta que nos
faças uma exposição sobre o bem, tal como a fizeste sobre
a justiça, a temperança e as outras qualidades.
—Também me bastará a mim, e por completo, meu
amigo. Todavia, com receio de não ser capaz, pode o meu
zelo desajeitado chegar a causar o riso. Mas, meus caros,
vamos deixar por agora a questão de saber o que é o bem
em si; parece-me grandioso de mais para, com o impulso
que presentemente levamos, poder atingir, por agora, o
meu pensamento acerca dele. O que eu quero é expor-vos
o que me parece ser filho do bem e muito semelhante
a ele, se tal vos apraz; caso contrário, deixaremos isso.
(PLATÃO, A República, VI, 506d).

Para avançar, Sócrates solicita que entrem em acordo e que lhes


relembre algo já dito, a saber:

— Que há muitas coisas belas, e muitas coisas boas e


outras da mesma espécie, que dizemos que existem e que
distinguimos pela linguagem.
— Dissemos, sim.
— E que existe o belo em si, e o bom em si, e, do
mesmo modo, relativamente a todas as coisas que então
postulamos como múltiplas, e, inversamente, postulamos
que a cada uma corresponde uma ideia, que é única, e
chamamos-lhe a sua essência.
— É isso.
— E diremos ainda que aquelas são visíveis, mas não
inteligíveis, ao passo que as ideias são inteligíveis, mas
não visíveis. (PLATÃO, A República, VI, 507b).

Note o esboçar da Teoria das Formas de Platão, que estabelece


a distinção entre o mundo dos sentidos e o mundo das ideias ou
mundo inteligível. Ainda assim, isso é apenas um apontar para o
Bem, pois o recurso utilizado são duas alegorias (ou imagens). A
primeira faz um tripé entre:

„„ o Sol ‒ a luz absoluta (ideia, essência), origem das coisas;

146
Discurso Filosófico I

„„ a visão ‒ pela qual vemos as coisas do mundo


(entendimento), poderíamos dizer; e

„„ as opiniões.

Cada estágio tem como sustentáculo o anterior, como se pode


ver melhor na segunda alegoria, que tem o objetivo de esclarecer
melhor essa primeira.

Para acompanhar essas imagens (alegorias) que


prenunciam a famosa Alegoria da Caverna, antes de
avançar, leia atentamente a passagem de 507b a 513e.
É importante que você faça isso antes de avançar na
leitura do livro didático para que não seja contaminado
pelo recorte que se segue. E mais, que você mesmo(a)
possa fazer a interpretação a partir do texto de Platão.

Agora, tomaremos o texto palmo a palmo. Assim, não estranhe


a quantidade de citações diretas de A República para dar conta do
percurso seguinte.

— Por que meio vemos o que é visível?


— Por meio da vista.
— Ora bem! Não percebemos o que é audível por meio
da audição e tudo o que é sensível graças aos outros
sentidos?
— Pois então!
— Porventura reflectiste como o demiurgo que fez os
sentidos modelou com muito mais esmero a faculdade de
ver e ser visto?
— Não.
— Mas repara. A audição e a voz precisam de qualquer
coisa de outra espécie para, respectivamente, ouvir e
fazer-se ouvir, de tal modo que, se esse terceiro factor não
estiver presente, a primeira não ouvirá e a segunda não
será ouvida?
— Não precisam de nada.
— Julgo que não há muitas outras faculdades, para não
dizer nenhuma, que necessitem de tal coisa. Ou podes
mencionar alguma?
— Eu, não — respondeu ele.
— Mas quanto à de ver e de ser visto, não pensas que
necessite disso?
— Como assim?

Unidade 4 147
Universidade do Sul de Santa Catarina

— Ainda que exista nos olhos a visão, e quem a possui


tente servir-se dela, e ainda que a cor esteja presente
nas coisas, se não se lhes adicionar uma terceira espécie,
criada expressamente para o efeito, sabes que a vista nada
verá, e as cores serão invisíveis. (PLATÃO, A República,
VI, 507cd).

Nessa passagem, revela-se o privilégio da visão sobre os outros


sentidos, por sinal, algo bastante comum na tradição grega. Há
muitas referências visuais nas obras de Platão para dar conta
de aproximações com o saber. Entretanto, é bom que você não
confunda a vista com aquilo que propicia o conhecimento das
coisas, caso contrário, ficaria numa abordagem sensorialista. O
que está acima dos olhos e da visão é a luz e aquele que nos dá a
luz é o sol, tomado, aqui, como algo divino.

— Qual é, dentre os deuses do céu, aquele a quem


atribuis a responsabilidade deste facto, de a luz nos fazer
ver da maneira mais perfeita que é possível, e que seja
visto o que é visível?
— O mesmo que tu e os restantes; pois é evidente que
estás a perguntar pelo Sol.
— Acaso a vista não se encontra na seguinte relação para
com o deus?
— Qual?
— A vista não é o Sol; nem ela nem o sítio onde se
forma, a que chamamos os olhos.
— Pois não.
— Mas são, segundo creio, de todos os órgãos dos
sentidos os mais semelhantes ao Sol. (PLATÃO, A
República, VI, 508a).

Assim, não são os órgãos dos sentidos que nos dão o


conhecimento, mas algo maior ‒ mais que esses órgãos ‒ e
os olhos, a visão, são os exemplos mais claros dessa relação.
Provavelmente já está parecendo que há uma analogia entre o
Sol e o Bem, entre as coisas vistas e as coisas do mundo sensível.
Logo, entre o mundo sensível e o mundo inteligível.

Leia mais algumas passagens.

— Podes, portanto, dizer que é o Sol, que eu considero


filho do bem, que o bem gerou à sua semelhança, o qual

148
Discurso Filosófico I

bem é, no mundo inteligível, em relação à inteligência e ao


inteligível, o mesmo que o Sol no mundo visível em relação
à vista e ao visível. (PLATÃO, A República, VI, 508bc).

Um interlocutor não entendeu muito bem e solicita um


esclarecimento maior. Ao que Sócrates atende:

— Sabes que os olhos ‒ prossegui eu ‒ quando se voltam


para objectos cujas cores já não são mantidas pela luz do
dia, mas pelos clarões nocturnos, veem mal e parecem
quase cegos, como se não tivessem uma visão clara.
[...]
— Mas, quando se voltam para os que são iluminados
pelo Sol, acho que veem nitidamente e torna-se evidente
que esses mesmos olhos têm uma visão clara.
[...]
— Portanto, relativamente à alma, reflecte assim: quando
ela se fixa num objecto iluminado pela verdade e pelo Ser,
compreende-o, conhece-o e parece inteligente; porém,
quando se fixa num objecto ao qual se misturam as
trevas, o que nasce e morre, só sabe ter opiniões, vê mal,
alterando o seu parecer de alto a baixo, e parece já não ter
inteligência.
[...]
— Fica sabendo que o que transmite a verdade aos objectos
cognoscíveis e dá ao sujeito que conhece esse poder, é a ideia
do bem. Entende que é ela a causa do saber e da verdade,
na medida em que esta é conhecida, mas, sendo ambos
assim belos, o saber e a verdade, terás razão em pensar que
há algo de mais belo ainda do que eles. E, tal como se pode
pensar correctamente que neste mundo a luz e a vista são
semelhantes ao Sol, mas já não ć certo tomá­las pelo Sol, da
mesma maneira, no outro, é correcto considerar a ciência e a
verdade, ambas elas, semelhantes ao bem, mas não está certo
tomá-las, a uma ou a outra, pelo bem, mas sim formar um
conceito ainda mais elevado do que seja o bem. (PLATÃO,
A República, VI, 508c-509a).

É da ideia de Bem que todas as outras brotam.

— Reconhecerás que o Sol proporciona às coisas visíveis,


não só, segundo julgo, a faculdade de serem vistas, mas
também a sua génese, crescimento e alimentação, sem
que seja ele mesmo a gênese.
— Como assim?
— Logo, para os objectos do conhecimento, dirás

Unidade 4 149
Universidade do Sul de Santa Catarina

que não só a possibilidade de serem conhecidos lhes é


proporcionada pelo bem, como também é por ele que o
Ser e a essência lhes são adicionados, apesar de o bem
não ser uma essência, mas estar acima e para além da
essência, pela sua dignidade e poder. (PLATÃO, A
República, VI, 509b).

O que significa dizer que o Bem não é uma essência?

A ideia do Bem é definida por Platão como a mais elevada das


ciências, de modo que todas as virtudes só têm utilidade e valor
para elas. Não porque “ser virtuoso” reduz-se a “ser bom”, mas
porque a ideia de Bem, ainda mais por ser ideia de um valor,
oferece um sentido próprio. Se não conhecemos suficientemente
uma ideia, é porque todo conhecimento e tudo o que possuímos
de nada serve se não for bom e belo.

Tal argumento insere-se no contexto da pergunta pela definição,


que, como lhe é próprio, exige a enunciação da essência. Porém,
para que Platão possa valer-se do critério da essência, precisa
antes mostrar em que se funda o valor desta. Assim, surge, em A
República, o argumento sobre a ideia de Bem, que não poderia ser
uma essência por dar valor a todas as outras ideias.

Voltando às analogias possíveis entre Sol e vista, ideia de Bem/


Mundo Inteligível e Mundo sensível, o esquema mental de Adam,
na nota 38 da tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, é útil
para você ter uma noção geral do que foi apresentado.

Figura 4.1 – Equivalências entre o Sol e o Bem


Fonte: Pereira (1987, p. 311).

150
Discurso Filosófico I

Apresenta-se, então, a segunda imagem (alegoria): a da linha


dividida. Acompanhe:

— Imagina então — comecei eu — que, conforme


dissemos, eles são dois e que reinam, um na espécie e no
mundo inteligível, o outro no visível. Não digo “o céu”,
não vás tu julgar que estou a fazer etimologias com o
nome. Compreendeste, pois, estas duas espécies, o visível
e o inteligível?
[...]
— Supõe então uma linha cortada em duas partes
desiguais; corta novamente cada um dos segmentos
segundo a mesma proporção, o da espécie visível e o
da inteligível; e obterás, no mundo visível, segundo a
sua claridade ou obscuridade relativa, uma secção, a
das imagens. Chamo imagens, em primeiro lugar, às
sombras; seguidamente, aos reflexos nas águas, e àqueles
que se formam em todos os corpos compactos, lisos e
brilhantes, e a tudo o mais que for do mesmo género, se
estás a entender-me.
[...]
— Supõe agora a outra secção, da qual esta era imagem,
a que nos abrange a nós, seres vivos, e a todas as plantas e
toda a espécie de artefactos.
[...]
— Acaso consentirias em aceitar que o visível se divide
no que é verdadeiro e no que não o é, e que, tal como a
opinião está para o saber, assim está a imagem para o
modelo?
— Aceito perfeitamente.
— Examina agora de que maneira se deve cortar a secção
do inteligível.
[...]
— Na parte anterior, a alma, servindo­se, como se fossem
imagens, dos objectos que então eram imitados, é forçada
a investigar a partir de hipóteses, sem poder caminhar
para o princípio, mas para a conclusão; ao passo que, na
outra parte, a que conduz ao princípio absoluto, parte da
hipótese, e, dispensando as imagens que havia no outro,
faz caminho só com o auxílio das ideias. (PLATÃO, A
República, VI, 509d-510b).

Fala-se em um seguimento de reta AB. Em um primeiro


momento subdividido — de forma que uma parte seja maior
do que a outra — em dois seguimentos: AC e CB. Cada
subdivisão será mais uma vez subdividida de igual forma. Assim,

Unidade 4 151
Universidade do Sul de Santa Catarina

do seguimento AB surgirão AD e DB. Já do seguimento BC


surgirão BE e EC. Veja a linha:

Figura 4.2 – Alegoria da linha dividida


Fonte: Piettre (1981, p. 35).

Na sequência, foram copiladas três formas semelhantes


de interpretação, mas escritas diferentemente, com
elementos das três. Tais interpretações encontram-se
em: Bernard Piettre (1981, p. 35-36); Maria Helena da
R. Pereira (1987, p. XXIX-XXX); ou ainda, José A. M.
Pessanha (1987, p. XIX-XXI).

O segmento de reta AB representa o mundo visível, das opiniões,


e sua primeira subdivisão (AD) é o campo das imagens; a
segunda, DB, o campo dos objetos reais, conhecidos pela
fé, suposição, ilusões. O segmento BC representa o mundo
inteligível (objeto das ciências): sua primeira subdivisão (BE)
representa o campo dos objetos matemáticos, entendimento, da
inteligência pensante ou discursiva; e a segunda (EC) representa
o campo das ideias, da razão indutiva.

A representação sensível é mais ou menos verdadeira porque:


‒ primeiramente, dos objetos vemos somente suas
sombras, seus reflexos na água ou em superfícies lisas.
Enfim, não vemos senão imagens. Este é o primeiro
estágio da representação sensível, isto é, a imaginação;
‒ posteriormente, vemos os objetos tais como eles
são; seres viventes ou objetos artificiais verdadeiros.
Estamos convencidos de sua existência. Assim, atinge-
se o segundo estágio da representação sensível, a crença
(“pistis”).

152
Discurso Filosófico I

Além disso, é preciso distinguir dois níveis de


conhecimento inteligível: em primeiro lugar, no mundo
inteligível, as sombras e os reflexos das ideias, tais como
elas podem se manifestar nos entes matemáticos, que
concebemos com o auxílio de uma base sensível (por
exemplo, as figuras geométricas). Em segundo lugar, as
próprias ideias, que são objetos da dialética. (PIETTRE,
1981, p. 35-36).

Na primeira apresentação da imagem, ou Alegoria da linha dividida,


um interlocutor de Sócrates parece não ter entendido e pede que o
condutor do diálogo esclareça melhor. No esclarecimento, Sócrates
introduz uma comparação com a matemática.

Suponho que sabes que aqueles que se ocupam da


geometria, da aritmética e ciências desse gênero,
admitem o par e o ímpar, as figuras, três espécies de
ângulos, e outras doutrinas irmãs destas, segundo o
campo de cada um. Estas coisas dão-nas por sabidas, e,
quando as usam como hipóteses, não acham que ainda
seja necessário prestar contas disto a si mesmos nem
aos outros, uma vez que são evidentes para todos. E,
partindo daí e analisando todas as fases, e tirando as
consequências, atingem o ponto a cuja investigação se
tinham abalançado.
[...]
— Logo, sabes também que se servem de figuras
visíveis e estabelecem acerca delas os seus raciocínios,
sem contudo pensarem neles, mas naquilo com que se
parecem; fazem os seus raciocínios por causa do quadrado
em si ou da diagonal em si, mas não daquela cuja imagem
traçaram, e do mesmo modo quanto às restantes figuras.
Aquilo que eles modelam ou desenham, de que existem
as sombras e os reflexos na água, Servem-se disso como
se fossem imagens, procurando ver o que não pode
avistar-se, senão pelo pensamento.
[...]
— Portanto, era isto o que eu queria dizer com a classe
do inteligível, que a alma é obrigada a servir-se de
hipóteses ao procurar investigá-la, sem ir ao princípio,
pois não pode elevar-se acima das hipóteses, mas
utilizando como imagens os próprios originais dos quais
eram feitas as imagens pelos objectos da secção inferior,
pois esses também, em comparação com as sombras,
eram considerados e apreciados como mais claros.
— Compreendo que te referes ao que se passa na
geometria e nas ciências afins dessa.

Unidade 4 153
Universidade do Sul de Santa Catarina

— Aprende então o que quero dizer com o outro


segmento do inteligível, daquele que o raciocínio
atinge pelo poder da dialéctica, fazendo das hipóteses
não princípios, mas hipóteses de facto, uma espécie de
degraus e de pontos de apoio, para ir até aquilo que não
admite hipóteses, que é o princípio de tudo, atingido o
qual desce, fixando­se em todas as consequências que daí
decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em nada
de qualquer dado sensível, mas passando das ideias umas
às outras, e terminando em ideias.
— Compreendo, mas não o bastante — pois me parece
que é uma tarefa cerrada, essa de que falas — que
queres determinar que é mais claro o conhecimento do
ser e do inteligível adquirido pela ciência da dialéctica
do que pelas chamadas ciências, cujos princípios são
hipóteses; os que as estudam são forçados a fazê-lo, pelo
pensamento, e não pelos sentidos; no entanto, pelo facto
de as examinarem sem subir até ao princípio, mas a
partir de hipóteses, parece-te que não têm a inteligência
desses factos, embora eles sejam inteligíveis com um
primeiro princípio. Parece-me que chamas entendimento
e não inteligência, o modo de pensar dos geómetras e de
outros cientistas, como se o entendimento fosse algo de
intermédio entre a opinião e a inteligência.
— Apreendeste perfeitamente a questão — observei eu.
— Pega agora nas quatro operações da alma e aplica-as
aos quatro segmentos: no mais elevado, a inteligência, no
segundo, o entendimento; ao terceiro entrega a fé, e ao
último a suposição, e coloca-os por ordem, atribuindo-
lhes o mesmo grau de clareza que os seus respectivos
objectos têm de verdade.
— Compreendo ‒ disse ele; ‒ concordo, e vou ordená-los
como dizes. (PLATÃO, A República, VI, 510c-513e).

Assim termina o Livro VI. Cabe salientar que o papel de


cada ciência no currículo escolar proposto para a educação do
governante será retomado no Livro VII.

154
Discurso Filosófico I

Seção 2 – A Alegoria da Caverna


Este livro inicia com a terceira alegoria, a do Mito da Caverna.
Vejamos, primeiro, a Alegoria, literalmente, como um todo:

— Depois disto — prossegui eu — imagina a nossa


natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de
acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns
homens numa habitação subterrânea em forma de caverna,
com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o
comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância,
algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só
lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente;
são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões;
serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe,
numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os
prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual
se construiu um pequeno muro, no género dos tapumes
que os homens dos “robertos” colocam diante do público,
para mostrarem as suas habilidades por cima deles.
(PLATÃO, A República, VII, 514a-b).

Dessa citação, podemos analisar algumas questões específicas.


Quanto à educação, seu objetivo, na cidade idealizada, é libertar a
alma da prisão das opiniões comuns (doxa).

Na citação “[...] suponhamos uns homens numa habitação


subterrânea em forma de caverna [...]”, outras traduções consultadas
usam o termo “imagina”. São possibilidades para traduzir idé gar
antrôpous, pois idé é imperativo aoristo (do grego) do verbo horaô,
que tem relação com ver, saber e com as noções de eidos e idéa,
relacionados às formas inteligíveis. Por fim, ao citar “homens
dos ‘robertos’”, o tradutor refere-se aos articuladores de bonecos,
marionetes, adaptando o texto do texto traduzido.

— Estou a ver — disse ele.


— Visiona também ao longo deste muro, homens
que transportam toda a espécie de objectos, que o
ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra
e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural,
dos que os transportam, uns falam, outros seguem
calados.
— Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de

Unidade 4 155
Universidade do Sul de Santa Catarina

que tu falas — observou ele.


— Semelhantes a nós — continuei. —.Em primeiro
lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto,
de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras
projectadas pelo fogo na parede oposta da caverna?
— Como não — respondeu ele —, se são forçados a
manter a cabeça imóvel toda a vida?
— E os objectos transportados? Não se passa o mesmo
com eles?
— Sem dúvida.
— Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os
outros, não te parece que eles julgariam estar a nomear
objectos reais, quando designavam o que viam?
— É forçoso.
— E se a prisão tivesse também um eco na parede do
fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te
parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a
voz da sombra que passava?
— Por Zeus, que sim!
— De qualquer modo — afirmei — pessoas nessas
condições não pensavam que a realidade fosse senão
a sombra dos objectos. (PLATÃO, A República, VII,
514c-515c).

Ao citar “‒ De qualquer modo ‒ afirmei ‒ pessoas nessas


condições não pensavam que a realidade fosse senão a sombra dos
objectos”, trata-se da

[...] ilusão obstinada do senso comum [que] considera


como única realidade a que se vê ou se conhece por meio
dos cinco sentidos e julga “absolutamente” impossível que
existir uma outra [realidade]. (PIETTRE, 1981, p. 47).

Vejamos mais algumas partes do diálogo:

— É absolutamente forçoso — disse ele.


— Considera pois — continuei — o que aconteceria se
eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância,
a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam
deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o
forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a
andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor,
e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objectos
cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se
alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs,
ao passo que agora estava mais perto da realidade e via

156
Discurso Filosófico I

de verdade, voltado para objectos mais reais? E se ainda,


mostrando-lhe cada um desses objectos que passavam, o
forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece
que ele se veria em dificuldades e suporia que os objectos
vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe
mostravam? (PLATÃO, A República, VII, 5151c-d).

Note que, ao citar “regressados à sua natureza” mostra-se a alusão


que pretende Sócrates com seu método: fazer ver aquilo que é
próprio, natural, da alma ‒ o que indica, também, o parentesco
da alma com o divino.

— Muito mais — afirmou.


— Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria
luz, doer-lhe-iam nos olhos e voltar-se-ia, para buscar
refúgio junto dos objectos para os quais podia olhar, e
julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do
que os que lhe mostravam?
— Seria assim — disse ele.
— E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o
caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes
de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele
se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois
de chegar a luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer
pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os
verdadeiros objectos?
— Não poderia, de facto, pelo menos de repente.
— Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver
o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais
facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens
dos homens e dos outros objectos, reflectidas na água, e,
por último, para os próprios objectos. A partir de então,
seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio
céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da
Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho
de dia. (PLATÃO, A República, VII, 515d-516b).

Uma pausa no texto demarca outra questão: atente à progressão


estabelecida à descoberta do mundo superior ao citar “Em
primeiro lugar”.

— Pois não!
— Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol
e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em
qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.

Unidade 4 157
Universidade do Sul de Santa Catarina

— Necessariamente.
— Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que
causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo
visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles
viam um arremedo. (PLATÃO, A República, VII, 516b-c).

De novo, vale a pena retomar: o Sol, imagem do Bem, é a causa


de tudo.

— É evidente que depois chegaria a essas conclusões.


— E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva
habitação, e do saber que lá possuía, dos seus
companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se
regozijaria com a mudança e deploraria os outros?
— Com certeza.
— E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si,
ou prêmios para o que distinguisse com mais agudeza os
objectos que passavam, e se lembrasse melhor quais os
que costumavam passar em primeiro lugar e quais em
último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre
eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer ‒
parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e
poder que havia entre eles, ou que experimentaria os
mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso
desejo “servir junto de um homem pobre, como servo
da gleba”, e antes sofrer tudo do que regressar àquelas
Uma citação de Homero, Odisseia, ilusões e viver daquele modo?
XI, v. 489-490. — Suponho que seria assim — respondeu — que ele
sofreria tudo, de preferência ia viver daquela maneira.
(PLATÃO, A República, VII, 516c-e).

Outra questão interessante de destacar: ao citar “hábil em


predizer o que ia acontecer” parece trata-se de uma alusão ao
conhecimento dado pela experiência, a ciência cultivada na
caverna, pois nela é a repetição de fatos que nos faz inferir algo,
“prever o futuro”, a indução.

— Imagina ainda o seguinte — prossegui eu. — Se


um homem nessas condições descesse de novo para o
seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao
regressar subitamente da luz do Sol?
— Com certeza.

158
Discurso Filosófico I

— E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras


em competição com os que tinham estado sempre
prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado,
antes de adaptar a vista — e o tempo de se habituar não
seria pouco — acaso não causaria o riso, e não diriam
dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a
vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem
tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem
agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?
— Matariam, sem dúvida — confirmou ele. (PLATÃO,
A República, VII, 516e-517a).

O Mito (Imagem ou Alegoria) da Caverna, juntamente com as


duas alegorias anteriores (da visão e o Sol, e da linha dividida), tem
diversas implicações quanto ao conteúdo epistemológico. Vemos o
caminho do conhecimento: suposições/ilusões (eikasia) fé (pístis)
entendimento/razão discursiva (dianoia) razão (noesis).

Aliás, as três alegorias podem ser relacionadas com o caminho


da educação delineado na sequência do Livro VII, na busca pela
ciência para chegar às ideias (Sol, essência, conhecimento). Antes
de passar para esse caminho, cabe perguntar por que se deve
voltar à caverna.

O principal motivo, se levarmos em consideração o que já foi


colocado, é que, tendo esses homens visto as ideias absolutas de
Justiça e do Bem podem, no mundo sensível (caverna), discernir
melhor esses conceitos e, com isso, ir aos poucos convencendo
as pessoas do que seja melhor, dando-lhes noção da Cidade
Ideal, justificando-se como governante desta, pois mesmo com
a possibilidade de ser morto — o que remete ao julgamento de
Embora não seja esse
Sócrates —, deve voltar para dividir seus conhecimentos, tentando o objetivo, mas sua
aproximar os outros para que a cidade seja cada vez mais feliz, e, natureza, habilidade
com isso, mais perfeita. Não cabe ficar só na contemplação, como
vamos ver em um dos últimos estágios da educação.

Se você pensar a complementaridade entre, principalmente, a


Alegoria da Linha dividida e a da Caverna, verá que elas dão
conta dos tipos de conhecimento e dos objetos correspondentes a
cada um desses conhecimentos.

Retomando.

Unidade 4 159
Universidade do Sul de Santa Catarina

Em um primeiro momento, temos dois grandes tipos de


conhecimento:

„„ o sensório; e

„„ o inteligível.

O primeiro corresponde ao seguimento de reta AB, ou seja,


a primeira parte da subdivisão inicial, que representa a parte
de dentro da caverna. O segundo corresponde ao segmento de
reta BC, que representa a parte de fora da caverna. Tome esses
“momentos” como lugares do conhecimento. Em grego, lugar se
diz topos, no plural, tópoi. Grave esta terminologia. Assim, temos
dois tópoi: o tópos horatós ou doxastós e o tópos noetós. Cada um
desses tópoi se subdivide:

„„ o primeiro, em eikasia e pistis; e

„„ o segundo, em dianóia e noésis.

Ademais,

[...] três coisas estão intimamente ligadas na República:


conhecimento, objeto e desejo. Se o conhecimento é o ato
de pensar a realidade, se realidade é a unidade da forma e
se esse ato é um desejo de verdade, então o conhecimento
é desejo de objeto, o que em última instância é desejo
de bem. É preciso ler como Platão explicita o valor dos
objetos e daí chega à distinção dos valores dos tipos de
conhecimento. (SILVA, 2009, p. 170).

Lembrando que há dois tipos de objetos do conhecimento:

„„ os sensíveis; e

„„ os intelectuais.
A do Sol e a vista, a da linha
dividida, a da Caverna. Silva (2009, p. 178) continua caracterizando esses objetos e suas
subdivisões. Acompanhe isso, tendo em mente as três Alegorias:

a) Objetos de sensação que acarretam reflexão, como


se a sensação não produzisse nada de são: aqueles que

160
Discurso Filosófico I

conduzem simultaneamente a sensações contrárias,


como a sensação advinda de perto ou de longe não põe
em evidência quando se trata de um objeto ou do seu
contrário (objetos de sensações contrárias). Assim, esses
objetos que recaem sobre a sensação acompanhada de
impressões contrárias são aqueles que obrigam à reflexão.
b) Objetos de sensação que não acarretam reflexão, como
se ficassem suficientemente avaliados pelos sentidos:
são todos aqueles que não conduzem simultaneamente
a sensações contrárias (objetos de sensações simples), ou
seja, objetos que recaem sobre a sensação sem impressões
contrárias.

Cabe salientar, contudo, na linha esclarecida por Silva (2009),


que cada sentindo distingue a qualidade que é lhe própria: o
tato percebe a dureza, a moleza e outras qualidades táteis; o
paladar, o doce e o azedo, etc. Assim, cada sentido anuncia à
alma certas propriedades que percebe do objeto. “Nesse caso, o
sentido apela ao entendimento, ao intelecto, examinando assim se
a informação diz respeito a uma ou duas coisas.” (SILVA, 2009,
p. 171). É bom que você entenda que, enquanto os sentidos, para
Platão, percebem as qualidades dos objetos de forma misturada, o
entendimento as toma de forma distinta e separada.

Com isso, talvez você possa, em um primeiro momento,


interpretar ingenuamente a investigação de Platão. Como?
Entendendo que “[...] o conhecimento sensível é uma síntese
de qualidades num objeto e o conhecimento intelectual é uma
análise de objetos empiricamente já dados, criando novos objetos
abstratos” (SILVA, 2009, p. 171).

Entretanto, não é tão simples assim:

[...] a distinção entre objetos de sensações simples


e objetos de sensações contrárias é somente um
instrumento (órganon) para mostrar-se a gênese da
questão que inicia efetivamente o conhecimento,
pois é daí que surge primariamente a questão “o que
é a grandeza e a pequenez?”. A questão pelo ser dos
contrários surge do entendimento da diferença e não
da identidade sintética sensível que é então mistura,
não objeto possível para o entendimento. Porém,
esses contrários se explicitam pela afirmação de que
são logicamente contraditórios, pois eideticamente
(idealmente) são participativos. É por isso que Platão

Unidade 4 161
Universidade do Sul de Santa Catarina

necessita admitir que, apesar de todo conhecimento se


dar para a alma, nem todo tem seu princípio nela como
tópos (lugar). (SILVA, 2009, p. 171).

E, na continuidade, Silva (2009, p. 171) destaca que o


“conhecimento empírico é imagético assim como o intelectual,
mas é na participação entre as ideias que se formula princípios
hipotéticos no intelecto.”

Se, como você já estudou, o conhecimento é uma ascese da alma


que na caminhada da caverna à luz, busca o Bem, apresenta-se
uma questão que não pode deixar de ser investigada: os tópoi dos
objetos do conhecimento (sensíveis e inteligíveis) e do discurso
sobre os objetos.

Cabe frisar que uma coisa é o objeto, e outra, o discurso sobre o


objeto. Além disso, vale repetir que “nem todo ‘objeto’ é sensível,
pois se dividem em quatro modos (ciência, inteligência, opinião e
intuição do objeto puro), sendo o último purificado inclusive do
intelecto”. (SILVA, 2009, p. 171).

Recorde que no processo de leitura interpretativa é importante


que haja o ir e vir para avançar. Neste sentido, vale retomar os
estádios do conhecimento, partindo tanto da Carta VII (PLATÃO,
342a-344b) com da leitura de Goldsmidt (2002).

Estádios Elementos Lugares Exemplo


Nome “círculo”
“o que tem sempre a
Definição mesma distância entre as
Sons e extremidades e o centro”
I
figuras materiais a forma que se pode
Imagem desenhar ou apagar ou que
se fabrica no torno e pode ser
destruída
Ciência
II Inteligência Alma referem-se aos três modos
acima
Opinião
O círculo em si a inteligência é o mais
III Objeto real diferencia-se de todos próximo por semelhança
os casos acima

Quadro 4.1 – Quadro sobre os estádios do conhecimento


Fonte: Silva (2009, p. 62).

162
Discurso Filosófico I

Voltando ao percurso anterior, o discurso traz o objeto do


conhecimento como imagem, “pois o objeto puro do qual falamos
é uma imagem lógica aproximada para a qual o mito serve como
expressão discursiva e direcionadora da alma” (SILVA, 2009, p. 172).

Tome outro esquema mental elaborado por Silva (2009) para


fixar, sinteticamente, a topografia platônica do conhecimento,
seus modos e estádios
Tópos
Horatós Noetós
Eikaspia Pístis Dianóia Noésis
(suposição) (fé) (De-monstração) (mostração, intuição)
Objeto Intuitivo
(puro)
Objetos untelectuais Idéia Estádio
(hipotéticos) (Forma Única) da Libertação
Objetos de sensações contrárias
Objetos Inteligência
(pedem reflexão)
Ciência
Objetos de sensações simples Estádio
Definição lógos do Despertar
(não pedem reflexão)
Opinião
Estádio
Imagem mitós da Persuasão
Nome
Elementos da
Momentos
Alma no Método
Discursivos
Esfregatório
do
Método
Purgatório

Figura 4.3 – Topologia platônica


Fonte: Silva (2009, p. 172).

Como trata-se de um esquema mental elaborado por Silva


(2009), que tinha por propósito um percurso semelhante ao que
estou procurando trilhar com você (meu leitor e de Platão).

Para saber mais a respeito da divisão dos objetos no


intelecto, vale a pena ler as páginas 173 a 184 de Silva
(2009). Você também pode fazer uma pesquisa on-line
a respeito do tema.

Retomamos o estudo por meio da busca pela ciência.

Unidade 4 163
Universidade do Sul de Santa Catarina

A busca pela ciência, que nos propicia o conhecimento, mostra


uma grade curricular, uma caminhada escolar, na qual cada
momento tem a sua justificativa. Depois de analisada a grade
curricular, passa-se às idades de estudo.

Para uma melhor explicação, separamos essas fases em itens:

„„ inicia-se logo jovem com a ginástica e a música, em


que terão de dois a três anos de estudo; a iniciação
matemática deverá ser dada nesse período da infância
como brincadeira, pois, diferentemente do corpo, o
espírito não deve ser forçado;

„„ aos vinte anos serão selecionados aqueles que mostrarem


gosto pelo estudo e outras qualidades do filósofo; esses
terão os estudos matemáticos mais aprofundados;

„„ aos trinta, faz-se uma nova seleção e os escolhidos


passarão a estudar a dialética, estudo que é encaixado
nessa idade para não propiciar desvios; esses estudos
durarão cinco anos;

„„ aos trinta e cinco anos deverão voltar à “caverna”, prestar


serviço público, conduzir guerras etc., para ver se os
estudos não os conduziram à indolência, ao gosto pelo
ócio e coisas do gênero;

„„ depois de quinze anos nessa vida, aos cinquenta anos,


estarão aptos a serem governantes (verdadeiros filósofos)
da cidade imaginada;

„„ ao morrerem, serão lembrados e, se possível, venerados


como deuses pelos homens.

Ao falar em uma “caminhada escolar”, podemos fazer uma


analogia (perigosa): nosso caminho das séries primárias à
Universidade, em que estaria, no nosso status escolar, um saber
acadêmico “superior”. Para chegar lá, precisamos passar por
níveis anteriores.

164
Discurso Filosófico I

Ao final do Livro VII, a discussão parece tomar ares de


encerramento. Assim, deixo você com as últimas falas desse Livro:

— Todos aqueles que tenham ultrapassado os dez anos,


na cidade, a esses mandá-los-ão todos para os campos;
tomarão conta dos filhos deles, levando-os para longe dos
costumes actuais, que os pais também têm, criá-los-ão
segundo a sua maneira de ser e as suas leis, que são as que
já analisamos. E assim, da maneira mais rápida e mais
simples, se estabelecerá O Estado e a constituição que
dizíamos, fazendo com que ele seja feliz e que o povo em
que se encontrar valha muito mais.
— Mesmo muito — respondeu. — Como ele poderá
realizar-se, se é que jamais se realizará, é coisa que me
parece que explicaste muito bem, ó Sócrates.
— Não será já bastante a nossa discussão acerca desta
cidade e do homem semelhante a ela? Pois também é
evidente de que maneira determinaremos que seja.
— É evidente — respondeu ele. — E, conforme a tua
pergunta, parece-me que atingimos o termo da discussão.
(PLATÃO, A República, VII, 540e-541b).

Contudo, algumas coisas ainda ficaram suspensas e outras


precisam ser retomadas.

Unidade 4 165
Universidade do Sul de Santa Catarina

Síntese

Nesta unidade, você se deteve em uma das partes mais


conhecidas da obra platônica: a Alegoria da caverna. Viu que, no
Livro VI, há imagens que prenunciam essa alegoria. As imagens
em questão foram a do olho e do Sol e a da linha dividida. Elas
servem, entre outras coisas, para a reflexão sobre a formação do
filósofo-rei, ou rei-filósofo. Nesse sentido, há implicações na
Teoria do conhecimento que podemos vislumbrar nos textos de
Platão, sendo A República um dos textos em que a Teoria das
Formas (TF) começa a aparecer mais claramente. Ademais, você
pôde perceber que entre esas imagens é possível estabelecer um
movimento que vai se tornando mais complexo: de imagens mais
simples para imagens mais elaboradas.

Você compreendeu melhor que o caminho do conhecimento é um


caminho voltado para o Bem e que, embora o discurso seja uma
forma de se aproximar desse Bem, ele (o discurso) não é o Bem,
isto é, um discurso sobre dado objeto não é o referido objeto.

Assim, foi apresentado a certas tipologias quanto aos lugares


(tópoi) dos objetos de conhecimento, das ciências e dos próprios
objetos do conhecimento.

Você também viu o sentido das disciplinas que compõem o


currículo proposto em A República para a educação do filósofo-
rei, ou rei-filósofo. Deu-se conta de como a grade curricular,
que até então parecia ficar na ginástica e na música, alarga-se,
incluindo até mesmo matérias (ciências, conhecimentos) que
estavam surgindo naquele contexto histórico da Grécia Antiga.

Por fim, quanto às matérias da grade curricular, viu em que idade


deveriam ser incluídas na formação do governante. Tudo isso
sempre com um olho tanto neste livro didático como no diálogo
A República.

166
Discurso Filosófico I

Atividades de autoavaliação

1) Como é proposta a divisão das ciências em Platão, segundo o critério do


objeto? Discorra.

2) Platão desenvolve, em A República, Livro VII, o célebre Mito da Caverna.


Eis uma parte dele:

Considera, pois ‒ continuei ‒ o que aconteceria se eles


fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a
ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam
deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o
forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço,
a andar e a olhar para a luz, a fazer tudo isso, sentiria
dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos
cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se
alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs,
ao passo que agora estava mais perto da realidade e via
de verdade, voltado para objetos mais reais? E se ainda,
mostrando-lhe cada um desses objetos que passavam,
o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te
parece que ele se veria em dificuldade e suporia que os
objetos vistos outrora eram mais reais do que os que agora
lhe mostravam? (PLATÃO. A República. 7. ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1993. p. 318-319).

Sobre o Mito da Caverna é correto afirmar:


I. A caverna iluminada pelo Sol, cuja luz se projeta dentro dela, corresponde
ao mundo inteligível, o do conhecimento do verdadeiro ser.
II. Explicita como Platão concebe e estrutura do conhecimento.

Unidade 4 167
Universidade do Sul de Santa Catarina

III. Manifesta a forma como Platão pensa a política, à medida que, ao


voltar à caverna, aquele que contemplou o bem quer libertar da
contemplação das sombras os antigos companheiros.
IV. Apresenta uma concepção de conhecimento estruturada unicamente
em fatores circunstanciais e relativistas.
Assinale a alternativa que indica as proposições corretas:
a) ( ) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
b) ( ) Somente as afirmativas II e III são corretas.
c) ( ) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
d) ( ) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
e) ( ) Somente as afirmativas I, II e IV são corretas.

168
Discurso Filosófico I

Saiba mais

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação. 2.


ed. rev. e atual. São Paulo: Moderna, 1996.

BARKER, Sir Ernest. Teoria Política Grega. 2. ed. Trad.


Sérgio Bath. Brasília: Ed. UnB, 1978. (Coleção Pensamento
Político, 2)

BRISON, Luc; PRADEAU, Jean-François. Vocabulário de


Platão. São Paulo: Martins Fontes, 2010. (Coleção Vocabulário
dos filósofos)

CHÂTELET, François (org.). História da Filosofia: a filosofia


pagã. v. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

COSSUTTA, Frederic. Elementos para a Leitura dos Textos


Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FOLSCHEID, D.; WUNENBURGER, J-J. Metodologia


Filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

GOLDSCHMIDT, Victor. Os Diálogos de Platão: estrutura e


método. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2002.

HAVELOCK, Eric. Prefácio a Platão. Campinas: Papirus,


1996.

JAEGER, Werner. Paideia, a Formação do Homem Grego.


São Paulo: Martins Fontes, 1989.

JEANNIÈRE, Abel. Platão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

PETERS, F. E. Termos Filosóficos Gregos: um léxico


histórico. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

. A República. 3. ed. Trad. Maria Helena da Rocha


Pereira. Porto, Portugal: Fund. Calouste Gulbenkian, 1987.

Unidade 4 169
Universidade do Sul de Santa Catarina

. A República ou da Justiça. Trad. Edson Bini.


Bauru,SP: EDIPRO, 1999.

. As Leis ou da Legislação e Epinomis. Trad. Edson


Bini. Bauru-SP: EDIPRO, 2006.

. Carta VII. Trad. e notas de José Trindade dos Santos e


Juvino Maia Jr. Rio de Janeiro: Ed.PUC-RJ; São Paulo: Loyola,
2008.

. Cartas. Lisboa: Estampa, 1989.

. Fédon. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém:


UFPA, 2011.

. Mênon. São Paulo: Loyola, 2001.

. As Leis ou da Legislação e Epinomis. Trad. Edson


Bini. Bauru-SP: EDIPRO, 2006.

SANTOS, Trindade José. Para Ler Platão. Tomo I – A


ontoepstemologia dos diálogos socráticos. São Paulo: Loyola,
2008a.

. Para Ler Platão. Tomo II – O problema do saber nos


diálogos sobre a teoria das formas. São Paulo: Loyola, 2008b.

. Para Ler Platão. Tomo III – Alma, cidade, cosmo. São


Paulo: Loyola, 2009.

SILVA, Fernando Maurício da. Discurso Filosófico I – Livro


didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2009.

SOARES, Antônio Jorge. Dialética, Educação e Política: uma


releitura de Platão. São Paulo: Cortez, 1999.

170
5
UNIDADE 5

Resumindo os Livros VIII a


X de A República e algumas
repercussões da obra platônica

Objetivos de aprendizagem
„„ Resumir os livros VIII a X de “A República”.

„„ Identificar os temas centrais destes livros e as


estratégias argumentativas utilizadas.

„„ Refletir sobre a importância do pensamento platônico


na tradição filosófica.

„„ Apontar e revisar as possibilidades de leitura


apresentadas.

Seções de estudo
Seção 1 Livro VIII e IX
Seção 2 Livro X
Seção 3 A Repercussão de Platão
Seção 4 Considerações Finais
Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo


Nesta unidade, você passará pelos três últimos livros de A
República. Entendendo que: 1) você já tenha se imbuído da
proposta de leitura suscitada — sempre com um olho no livro
didático e outro no diálogo em questão —; 2) que o tempo de
duração desta unidade não é tão grande quanto o trabalho mais
detalhado exige; 3) acreditando na sua autonomia no processo de
ensino-aprendizagem; 4) e que você retomará esta aprendizagem
quanto à determinada abordagem de leitura do texto filosófico, visto
que esta unidade será bem mais curta, o que não significa que
seja menos importante que as outras.

Dito isso, veja o que você ainda tem pela frente.

Ao passar pelo Livro VIII, você retomará o ponto sobre as


constituições (formas de governo) que foi deixado em suspensão
no final do Livro IV e início do V. Verá que o diálogo estabelece
uma relação entre os tipos de constituições e as formas das
almas, indicando uma leitura político-psicológica da decadência
dos Estados (das Cidades-Estados, póleis). Assim, você passará
das formas perfeitas, que, no fundo, são uma só com variação
de número, Monarquia e Aristocracia, às formas corrompidas,
Timocracia, Oligarquia, Democracia e Tirania.

Ao passar pelo Livro IX, você verá com o tirano é o mais infeliz
dos homens e, consequentemente, na linha de raciocínio do
diálogo, como a cidade tirânica é infeliz. Na sequência, concluir-
se-á a questão das formas de governo e a alma, reintroduzindo
a questão das partes da alma. Esta temática, agora, será focando
mais no aspecto do indivíduo, encaminhando o fechamento da
questão sobre a justiça.

No Livro X, inicialmente são retomadas as questões da necessidade


de distinguir o estilo dramático do dialogal na poesia em virtude da
busca da verdade. Em vista disso, será rediscutido o papel educativo
da poesia e das artes imitativas, no geral. Dando o tom para a parte
final deste Livro, será retomado o tema da imortalidade da alma,
culminando no Mito de Er, a última imagem do Livro.

Tome seu diálogo A República, de Platão, e prepare-se para o


percurso “final”.

172
Discurso Filosófico I

Seção 1 — Livros VIII e IX


Esses dois Livros (VIII e IX) de A República basicamente
trabalham as formas de governo (constituição), as passagens
de uma para outra forma e as respectivas características do
governante. Você pode perceber que é retomada a discussão sobre
as formas de governo, deixada para trás no final na passagem do
Livro IV para o V de A República, onde se via a forma ideal ou,
melhor, duas, de acordo com o número de governantes:

„„ a monarquia, um, o melhor, o filósofo; e

„„ a aristocracia, governo de alguns, os melhores.

Atente para o seguinte: se lembrarmos que, em grego, aristocracia


é uma palavra formada por dois radicais, a saber, áristos e krátos, e
tomarmos seus significados:

Aristói: (plural de áristos): Os melhores, os mais bravos,


os mais excelentes. Áristos é o superlativo derivado do
substantivo aristeús que inicialmente indicava aqueles
que têm os primeiros postos e os primeiros lugares, os
grandes chefes militares que cercavam um rei e formavam
sua corte; a seguir, passou a significar os homens mais
valiosos na guerra e, por extensão, os melhores ou
excelentes. A aristokratía era, portanto, o poder ou krátos
dos melhores, os aristocratas. (CHAUÍ, 2002, p. 495).

Se pensarmos nesse sentido, e não só como de classe social,


descobrimos uma razão interna para o diálogo ter indicado que
ambas as formas são no fundo uma mesma, pois ambas as formas
ideais (monarquia e aristocracia) estão ligadas ao saber. Como você
pôde acompanhar até aqui, muito já se escreveu para justificar
o filósofo (amigo do saber) como rei, por estar mais próximo da
verdade (saber), ou seja, o tipo de homem perfeito, o melhor.

Cabe ainda uma ressalva: diferente da aristocracia homérica que


estabelece laços de consanguinidade, a proposta por Platão se
fundamenta na natureza (physis) da alma do governante. Assim,
é possível, como já foi demonstrado com o mito do nascimento
humano a partir da terra, que almas de excelência surjam de
classes sociais baixas.

Unidade 5 173
Universidade do Sul de Santa Catarina

Bem, as formas perfeitas já foram analisadas anteriormente, então


passa-se para as formas imperfeitas, que são quatro:

„„ a timocracia, onde predomina o gosto pelas honrarias;


é uma forma imperfeita, mas é a mais próxima da
perfeição;

„„ a oligarquia, governo dos ricos (poucos), gananciosos;

„„ a democracia, governo da multidão, caracterizada pela


liberdade e pela multiplicidade, pois todas as formas de
constituição podem ser vistas nesta; e, por fim,
Em princípio, isso é avaliado como
um aspecto positivo, contudo, logo
depois vê-se uma propensão à „„ a tirania, o mais imperfeito dos governos, caracterizado
libertinagem, fonte de corrupção. pela violência.

Entre os comentadores, o tema da democracia é trabalhado de


forma sintética, mas interessante para quem está iniciando, por
Norberto Bobbio, em seu livro Teoria das Formas de Governo,
particularmente no cap. II (1985, p. 45-54), usando basicamente
A República. Também Sir Ernest Barker, em seu livro Teoria
Política Grega, trabalha a teoria política de Platão, de forma mais
pontual, em vários capítulos. Deste autor, aqui, interessa mais o
capítulo XI (1978, p. 231-59).

Cada um desses homens, que representa um tipo de


classe dirigente, e portanto uma forma de governo, é
retratado de modo muito eficaz mediante a descrição da
sua paixão dominante: para o timocrático, a ambição,
o desejo de honrarias; para o oligárquico, a fome de
riqueza; para o democrático, o desejo imoderado de
liberdade (que se transforma em licença); para o tirânico,
a violência. (BOBBIO, 1985, p. 48).

A passagem de uma forma à outra é vista por meio da corrupção,


cada vez maior, até chegar a tirania, na ordem apresentada. Esta
se passa dentro da própria família com a passagem de gerações.

Para descrever essa transformação, o filósofo acentua a


importância do revezamento das gerações. A mudança
de uma constituição para outra parece coincidir com
a passagem de uma geração a outra. É uma mudança

174
Discurso Filosófico I

não só necessária, num certo sentido inevitável, mas


também muito rápida. Parece ser a consequência fatal da
rebelião do filho contra o pai, da mudança de costumes
que ela provoca (mudança que corresponde a uma piora
constante), especialmente na passagem da aristocracia
para a timocracia, da timocracia para a oligarquia. […]
A honra do homem timocrático se corrompe quando se
transforma em ambição imoderada e ânsia de poder. A
riqueza do homem oligárquico, quando se transforma
em avidez, avareza, ostentação despudorada de bens,
Que leva à inveja e à revolta dos pobres. A liberdade do
homem democrático, quando este passa a ser licencioso,
acreditando que tudo é permitido, que todas as regras
podem ser transgredidas impunemente. O poder do
tirano, quando se transforma em puro arbítrio, e violência
pela própria violência. (BOBBIO, 1985, p. 49-50).

Assim, o Estado ideal é analisado dando-se a cada classe uma


característica, na qual a dominante é a racionalidade sobre a
coragem e as paixões (administradores, soldados e cidadãos).
Analisam-se as formas imperfeitas por meio da elevação de
uma das partes sobre a outra, o que indica uma desarmonia da
hierarquia natural, onde o melhor deve dominar o pior e o maior,
o menor. Essa análise orgânica pode se ligar com a dos três tipos
de necessidades:

— Queres então que, para não discutirmos às escuras,


comecemos por definir o que são desejos necessários e o
que o não são?
— Quero.
— Não será justo chamar necessários àqueles que não
seríamos capazes de repelir, e a quantos nos for útil
satisfazer? Porque a ambos foi a necessidade que os
implantou na nossa natureza. Ou não?
— Absolutamente.
— Será justo, então, dizer deles que são necessários.
— Será.
— Ora bem! Mas aqueles de que é possível libertarmo-
nos, senos esforçarmos desde novos, e cuja presença, além
disso, não nos impele para nada de bom, por vezes até
ao contrário — se desses todos dissermos que são não-
necessários, não teremos dito bem?
— Muito bem. (PLATÃO, A República, VIII, 558d-559a).

Unidade 5 175
Universidade do Sul de Santa Catarina

Na sequência, Sócrates apresenta exemplos desses tipos de desejos


para deixar a argumentação mais clara. Bobbio (1985, p. 52-53)
faz um resumo dessa parte:

Há três espécies de necessidades: as essenciais, as


supérfluas e as ilícitas. O homem oligárquico se
caracteriza pelo entendimento das necessidades
essenciais; o democrático, das supérfluas; o tirano, das
ilícitas. […]
Eis alguns exemplos: o desejo de alimentar-se é
necessário; o de comer alimentos refinados é supérfluo.
As necessidades ilícitas são uma modalidade das
supérfluas, próprias dos tiranos, embora aflijam todos os
homens (podem contudo ser extirpadas pela educação). A
diferença entre o homem normal e o tirano está em que
esses desejos ilícitos (“violentos” ou “tumultuosos”, como
também são conhecidos), perturbam o primeiro só em
sonho e o segundo na vigília.

Essas duas formas compostas de três elementos — os desejos —


apresentam-se como a ponte para a interpretação da alegoria,
imagem (Livro IX – 588be), onde Sócrates pede que seus
interlocutores imaginem três formas de alma:

„„ a primeira, como as criaturas mitológicas


(multifacetadas), monstruosas;

„„ a segunda, de um leão; e

„„ a terceira, de um homem.

Cobrindo todas elas, exteriormente, está a forma de homem


“[...] de maneira que, a quem não puder ver-lhe o interior, mas
apenas aviste o invólucro exterior, pareça um só ser animado,
um homem” (PLATÃO, A República, VIII, 588de). Como
as passagens são das formas mais perfeitas (justas) às formas
mais imperfeitas (injustas), essa análise alegórica também
responde àquele que disse que a injustiça era útil a quem fosse
completamente injusto e, em contrapartida, exalta a justiça.

176
Discurso Filosófico I

— Digamos agora a quem sustentar que é útil a esse


homem ser injusto e que não lhe traz vantagem proceder
com justiça, que o que ele faz não é mais do que
declarar que lhe é útil alimentar e fortalecer o monstro
de mil formas, o leão e seu séquito, matando à fome e
enfraquecendo o homem, de maneira que cada um dos
outros o arraste para onde quiser, sem contribuir para
os acostumar um ao outro nem para os tornar amigos;
em vez disso, deixa-os morder-se entre si e devorar-se
reciprocamente na luta.
[…]
— Por outro lado, quem disser que é útil ser justo não
estará a afirmar que se deve fazer e dizer aquilo que
resulte que o homem interior tenha o máximo domínio
sobre o seu todo e cuide da sua cria policéfala, como se
fosse um agricultor, que alimenta e cultiva as espécies
domésticas e impede de crescer as selvagens, fazendo a
natureza do leão sua aliada, preocupando-se com todos
em geral, tornando-os amigos uns dos outros e de si
mesmos e sustentando-os desse modo? (PLATÃO, A
República, IX, 588e-589b).

Essa última passagem é a justificativa do filósofo-rei.

Relembrando: as citações diretas de A República de


Platão seguiram o texto da tradução de Maria Helena
da Rocha Pereira, em sua 5ª edição de 1987. Entretanto,
será adotada para efeito de referenciação a numeração
clássica, convencionada internacionalmente. Essa
numeração clássica será utilizada sempre que a obra a
ser citada for da antiguidade grega.

A cidade tirânica é a mais injusta. Nela, vê-se pobreza em


excesso, violência, muitos ladrões e aproveitadores. Ela nasce da
cidade democrática, que tem um excesso de liberdade. Mas como
o povo é ignorante e em maioria, com o surgimento da discórdia,
é enganado com promessas e mentiras por aquele que se tornará
um tirano logo após “eleito” pelo povo, usando-se de violência
para se manter no poder.

O tirano e a injustiça estão 729 vezes afastados do monarca e da


justiça (Cf. PLATÂO, A República, IX, 587c-e). Esse cálculo –
3.3².3³ – mostra a nítida influência do pensamento pitagórico.

Unidade 5 177
Universidade do Sul de Santa Catarina

O final do livro IX mostra como a cidade imaginária de que


tanto se falou, mesmo em um nível ideal, deve ser perseguida.

Mas talvez haja um modelo no céu, para quem quiser


contemplá-la e, contemplando-a, fundar uma para si
mesmo. De resto, nada importa que a cidade exista em
qualquer lugar, ou venha a existir, porquanto é pelas suas
normas, e pelas de mais nenhuma outra, que ela pautará
seu comportamento. (PLATÃO, A República, IX, 592b).

Seção 2 – Livro X
No último Livro de A República, a discussão sobre a poesia é
retomada, comparando-a com a pintura, também arte da imitação,
da aparência. Sendo a pintura imagem de imagem, ou seja, uma
cópia de outra cópia. Explicando: o pintor “produz” uma imagem
de um objeto (coisa do mundo sensível), que é a aparência da essência
(ideia absoluta, mundo das ideias); assim como o espelho que produz
imagens sem existência, dando uma ilusão do objeto, mostrando
apenas uma parte dele, ou seja, sob a forma de perspectiva, na
pintura, temos a ilusão de todos os lados de um objeto.

No entanto, esses outros ângulos não aparecem. Com isso, a


pintura e as artes, no geral, estão distantes três vezes da ideia
(forma natural). Muito longe da verdade (como absoluto). Sócrates
demonstra que a imitação tende a nos desviar do caráter racional
que deve ser perseguido na educação, pendendo bem mais para as
paixões (doxa, opinião, conjecturas), razão pela qual esses tipos de
artes não são bem-vindos na cidade imaginada, idealizada.

Sobre essas duas imitações — a do pintor e a do poeta —, Werner


Jaeger observa:

Este tipo de imitação que influi no corpo, na voz e no


espírito do imitador, e que faz com que ele assimile em si
o imitado como a segunda natureza (Rep. 395d), aparece
claramente caracterizado por Platão como uma categoria
ética, enquanto que a imitação de qualquer realidade

178
Discurso Filosófico I

num sentido artístico é simplesmente indiferente para


o caráter daquele que o imita. O conceito platônico da
mimesis dramática no sentido da renúncia de si mesmo, é
um conceito paidêutico; o da imitação da natureza pura e
simplesmente técnico. (1989, p. 540, nota 9).

Assim, Sócrates cobra de Homero se sua poesia propiciou


felicidade, vitória ou elogios administrativos à cidade. Não
encontrando essa resposta, vê-se que não se pode tomar a poesia
homérica (e outras similares) como uma forma educativa a não ser
que se esteja “vacinado” contra seus males.

A antítese com a poesia, que era meramente relativa na


fase da educação dos “guardiões”, ganha aqui caráter
absoluto. As forças ordenadoras e normativas da alma,
personificadas na Filosofia, enfrentam o elemento pós-
vivencial e imitativo que nela existe e do qual brota
a poesia, como sendo-lhe simplesmente superiores, e
exigem que abdique ou se submeta aos preceitos do logos.
(JAEGER, 1989, p. 917).

Depois de toda a discussão feita sobre a cidade (perfeita), a


retomada dessa questão serve para esclarecer melhor o porquê de
se colocar tantas restrições à poesia. Esse tema é bem analisado
no que se refere ao Livro X de A República, por Jaeger (1989, p.
670-681) mostrando que, no ataque à poesia, está presente uma
modificação da educação grega, ou seja, sua reestruturação.

Esta condenação da poesia já há muito que foi vista como


tendo um sentido mais profundo que a simples exclusão
do elemento lúdico da psicologia humana e a negação
do valor paradigmático das figuras que retrata. Assim,
J. Adam reconhece que a REPÚBLICA é “em certo
sentido um requerimento para que a Filosofia tome o
lugar que a poesia até aí tinha preenchido na teoria e na
prática educativa”.
Mais recentemente, é esta também a interpretação
de E. A. Havelock, que considera mesmo, que todo
diálogo é um ataque ao sistema educativo grego então
em vigor, ataque esse que ao mesmo tempo constituiu
um melhor documento da crise da cultura grega “que
viu a substituição de uma tradição moral decorada por
um sistema de instrução e educação completamente
diferentes. (PEREIRA, 1987, p. XXXVII-XXXVIII).

Unidade 5 179
Universidade do Sul de Santa Catarina

Após a poesia, aparece a questão da imortalidade da alma


e a transmigração de um corpo para outro depois da morte,
explicada no Mito (ou Alegoria ou imagem) de Er. Esse mito
(imagem), uma escatologia que fecha o Livro X, mostra, por meio
da transmigração das almas, que devemos buscar a justiça para
aprimorarmos a própria alma.

A referida imagem indica que, com a experiência que tem, a


alma escolhe sua própria vida. Esse aspecto, como você deve
vislumbrar, aponta para algum valor das opiniões – lembre-se
que Sócrates chega a falar de uma boa opinião –, pois, através das
opiniões, desde que bem trabalhadas, podemos caminhar – nos
aproximar – para a verdade, pois elas são, de certa forma, um
reflexo dela.

É possível dizer que, assim como a Alegoria da Caverna, o


Mito de Er também percorre das sombras às luzes, retomando à
Caverna. A alma sai do corpo, vislumbra a luz e volta para um
novo corpo. Embora tenha esquecido como é a luz, temos de
educá-la para recordar sua visão, para que a cada vida se aprimore
mais e mais.

Leia atentamente o Mito de Er, transcrito da tradução de Maria


Helena da Rocha Pereira, das quais se tomou também algumas
das notas por vezes tal e qual, por outras com modificação ou
com acréscimos de outras fontes.

Er o Arménio, Panfílio de nascimento. Tendo ele


morrido em combate, andavam a recolher, ao fim de
dez dias, os mortos já putrefactos, quando o retiraram
em bom estado de saúde. Levaram-no para casa para
lhe dar sepultura, e, quando, ao décimo segundo dia,
estava jazente sobre a pira, tornou à vida e narrou o
que vira no além. Contava ele que, depois que saíra do
corpo, a sua alma fizera caminho com muitas, e haviam
chegado a um lugar divino, no qual havia, na terra, duas
aberturas contíguas uma à outra, e no céu, lá em cima,
outras em frente a estas. No espaço entre elas, estavam
sentados juízes que, depois de pronunciarem a sua
sentença, mandavam os justos avançar para o caminho
à direita, que subia para o céu, depois de lhes terem
atado à frente a nota do seu julgamento; ao passo que,
aos injustos, prescreviam que tomassem à esquerda, e
para baixo, levando também atrás a nota de tudo quanto

180
Discurso Filosófico I

haviam feito. Quando se aproximou, disseram-lhe que


ele devia ser o mensageiro, junto dos homens, das coisas
do além, e ordenaram-lhe que ouvisse e observasse
tudo o que havia naquele lugar. Ora ele viu que ali,
por cada uma das aberturas do céu e da terra, saíam as
almas, depois de terem sido submetidas ao julgamento,
ao passo que pelas restantes, por uma subiam as almas
que vinham da terra, cheias de lixo e de pó, e por
outra desciam as almas do céu, em estado de pureza.
E as almas, à medida que chegavam, pareciam vir de
uma longa travessia e regozijavam-se por irem para o
prado acampar, como se fosse uma panegíria; as que se
conheciam, cumprimentavam-se mutuamente, e as que
vinham da terra faziam perguntas às outras sobre o que
se passava no além, e as que vinham do céu, sobre o que
sucedia na terra. Umas, a gemer e a chorar, recordavam
quantos e quais sofrimentos haviam suportado e visto na
sua viagem por baixo da terra, viagem essa que durava
mil anos, ao passo que outras, as que vinham do céu,
contavam as suas deliciosas experiências e visões de uma
beleza indescritível. Referir todos os pormenores seria, ó
Gláucon, tarefa para muito tempo. Mas o essencial dizia
ele que era o que segue. Fossem quais fossem as injustiças
cometidas e as pessoas prejudicadas, pagavam a pena de
tudo isso sucessivamente, dez vezes por cada uma, quer
dizer, uma vez em cada cem anos, sendo esta a duração
da vida humana — a fim de pagarem, decuplicando-a,
a pena do crime; por exemplo, quem fosse culpado da
morte de muita gente, por ter traído Estados ou exércitos
e os ter lançado na escravatura, ou por ser responsável
por qualquer outro malefício, por cada um desses crimes
suportava padecimentos a decuplicar; e, inversamente,
se tivesse praticado boas acções e tivesse sido justo e
piedoso, recebia recompensas na mesma proporção.
Sobre os que morreram logo a seguir ao nascimento e
os que viveram pouco tempo, dava outras informações
que não vale a pena lembrar. Em relação à impiedade ou
piedade para com os deuses e para com os pais, e crimes
de homicídio, dizia que os salários eram ainda maiores.
(PLATÃO, A República, 614b-615c).

Antes de continuarmos, vale destacar o termo panegíria, que,


conforme a nota de rodapé número 45, diz respeito ao “[...] nome
genérico para os festivais religiosos dos Gregos. A palavra significa
etimologicamente ‘reunião geral’” (PEREIRA, 1987, p. 488).

Voltemos ao texto:

Unidade 5 181
Universidade do Sul de Santa Catarina

Contava ele, com efeito, que estivera junto de alguém a


quem perguntaram onde estava Ardieu o Grande. Este
Ardieu tinha sido tirano numa cidade da Panfília, havia
já então mil anos; tinha assassinado o pai idoso e o irmão
mais velho, e perpetrado muitas outras impiedades,
segundo se dizia. E o interpelado respondeu: “Não
vem, nem poderá vir para aqui. Na verdade, um dos
espectáculos terríveis que vimos foi o seguinte: Depois
de nos termos aproximado da abertura, preparados
para subir, e quando já tínhamos expiado todos os
sofrimentos, avistámos de repente Ardieu e outros, que
eram tiranos, na sua quase totalidade; mas também
havia alguns que eram particulares que tinham cometido
grandes crimes — que, quando julgavam que já iam subir,
a abertura não os admitia, mas soltava um mugido cada
vez que algum desses, assim incuráveis na sua maldade
ou que não tinham expiado suficientemente a sua pena,
tentava a ascensão. Estavam lá homens selvagens,
que pareciam de fogo, e que, ao ouvirem o estrondo,
agarravam alguns pelo meio e levavam-nos, mas, a
Ardieu e outros, algemaram-lhes as mãos, pés e cabeça,
derrubaram-nos e esfolaram-nos, arrastaram-nos pelo
caminho fora, cardando-os em espinhos, e declaravam a
todos, à medida que vinham, por que os tratavam assim,
e que os levavam para os precipitar no Tártaro”. Então
tinham tido terrores múltiplos e variados, mas o maior de
todos era o de cada um deles ouvir o mugido, quando ia a
subir, e foi com o maior gosto que cada um fez a ascensão
ante o silêncio daquele. Eram mais ou menos estas as
penas e castigos, e bem assim as vantagens que lhes
correspondiam. Depois de cada um deles ter passado sete
dias no prado, tinham de se erguer dali, e partir ao oitavo
dia, para chegar, ao fim de mais quatro dias, a um lugar
de onde se avistava, estendendo­se desde o alto através
de todo o céu e terra, uma luz, direita como uma coluna,
muito semelhante ao arco-íris, mas mais brilhante e
mais pura. Chegaram lá, depois de terem feito um dia de
caminho, e aí mesmo, viram, no meio da luz, pendentes
do céu, as extremidades das suas cadeias (efectivamente
essa luz é uma cadeia do céu, que tal como as cordagens
das trirremes, segura firmamento na sua revolução);
dessas extremidades pendia o fuso da Necessidade,
por cuja acção giravam as esferas. A respectiva haste e
gancho eram de aço; o contrapeso, de uma mistura desse
produto e de outros. Quanto à natureza do contrapeso,
era como segue. A sua configuração era semelhante
à dos daqui, mas, quanto à sua constituição, contava
ele que devíamos imaginá-la da seguinte maneira: era
como se, num grande contrapeso oco e completamente
esvaziado, estivesse outro semelhante, maior, que
coubesse exactamente dentro dele, como as caixas que se
metem umas nas outras; do mesmo modo, um terceiro,
182
Discurso Filosófico I

um quarto, e mais quatro. Com efeito, eram oito ao todo,


os contrapesos, encaixados uns nos outros, que, na parte
superior, tinham o rebordo visível com outros tantos
círculos, formando um plano contínuo de um só fuso
em volta da haste. Esta atravessava pelo meio, de lés-a-
lés, o oitavo. Ora o primeiro contrapeso, o exterior, era
o que tinha o círculo de rebordo mais largo; o segundo
lugar cabia ao sexto, o terceiro ao quarto, o quarto ao
oitavo, o quinto ao sétimo, o sexto ao quinto, o sétimo
ao terceiro, o oitavo ao segundo. O círculo do maior era
cintilante, o do sétimo era o mais brilhante, o do oitavo
tinha a cor do sétimo, que o iluminava, o do segundo e
do quinto eram muito semelhantes entre si; um pouco
mais amarelados do que aqueles, o terceiro era o que
tinha a cor mais branca, o quarto era avermelhado, o
sexto era o segundo em brancura. O fuso inteiro girava
sobre si na mesma direcção, mas, na rotação desse todo,
os sete círculos interiores andavam à volta suavemente,
em direcção oposta ao resto. Dentre estes, o que andava
com maior velocidade era o oitavo; seguiam-se, ao
mesmo tempo, o sétimo, o sexto, e o quinto; o quarto
parecia-lhes ficar em terceiro lugar nesta revolução em
sentido retrógrado, o terceiro em quarto, e o segundo em
quinto. O fuso girava nos joelhos da Necessidade. No
cimo de cada um dos círculos, andava uma Sereia que
com ele girava, e que emitia um único som, uma única
nota musical; e de todas elas, que eram oito, resultava um
acorde de uma única escala. Mais três mulheres estavam
sentadas em círculo, a distâncias iguais, cada uma em
seu trono, que eram as filhas da Necessidade, as Parcas,
vestidas de branco, com grinaldas na cabeça — Láquesis,
Cloto e Átropos — as quais cantavam ao som da melodia
das Sereias, Láquesis, o passado, Cloto, o presente, e
Átropos o futuro. Cloto, tocando com a mão direita no
fuso, ajudava a fazer girar o círculo exterior, de tempos
a tempos; Átropos, com a mão esquerda, procedia do
mesmo modo — com os círculos interiores; e Láquesis
tocava sucessivamente nuns e noutros com cada uma das
mãos. Ora eles, assim que chegaram, tiveram logo de ir
junto de Láquesis. Primeiro, um profeta dispô-los por
ordem. Seguidamente, pegou em lotes e modelos de vidas
que estavam no colo de Láquesis, subiu a um estrado
elevado e disse: “Declaração da virgem Láquesis, filha da
Necessidade. Almas efêmeras, vai começar outro período
portador da morte para a raça humana. Não é um gênio
que vos escolherá, mas vós que escolhereis o gênio. O
primeiro a quem a sorte couber, seja o primeiro a escolher
uma vida a que ficará ligado pela necessidade. A virtude
não tem senhor; cada um a terá em maior ou menor grau,
conforme a honrar ou a desonrar. A responsabilidade e de
quem escolhe. O deus é isento de culpa”. (PLATÃO, A
República, 615c-617e).
Unidade 5 183
Universidade do Sul de Santa Catarina

Depois desse longo trecho, vale destacar mais algumas notas


referenciadas pela autora. A primeira diz respeito ao termo
trirremes, que eram “[...] seguras na sua parte inferior por
cordas dispostas horizontalmente” (PEREIRA, 1987, p. 491,
nota 46). Em relação à haste e ao gancho, Pereira (1987, p. 491)
complementa, na nota 47:

Os fusos gregos constavam de uma haste vertical, cuja


extremidade superior terminava num gancho, sob o qual
passava a lã, que depois se ia enrolar na referida haste; na
parte inferior desta, ficava o contrapeso, que facilitava a
rotação, enquanto se fiava.

Ao mencionar o sexto contrapeso, Pereira (1987, p. 492, nota


48), comenta:

Seguindo a interpretação de Cornford, o círculo exterior


é o das estrelas fixas; o sexto, o de Vênus; o quarto, de
Marte; o oitavo, da Lua; o sétimo, do Sol; o quinto,
de Mercúrio; o terceiro, de Júpiter; o segundo, de
Saturno. Quando se diz que ‘o oitavo tinha a cor do
sétimo, que o iluminava’, está-se a explicar a origem do
luar, que, aliás, já fora compreendida por Xenófanes,
Parménides, Empédocles e Anaxágoras. Que o tenha
sido anteriormente a estes, por Anaxímenes, é duvidoso
(Cf. G. S. Kirk and E. Raven and M. Schofield, The
Presocratic Philosophers 1983, p 156, nota 2).

O acorde de uma única escala remete à conhecida harmonia das


esferas, atribuída aos pitagóricos. As parcas também merecem
destaque.

Em grego, as Moirai. Nos Poemas Homéricos, a Moira


representa, para cada um, o seu destino fixo, inamovível.
O número e o nome destas divindades surgem pela
primeira vez em Hesíodo, Teogonia 2I8, 905. A função
de cada uma no texto está em relação com a etimologia
do seu nome (cf. n. 61). Sobre a origem e evolução do
conceito de Moira, veja-se o nosso artigo na Eucícloþédia
Verbo, s. v. (PEREIRA, 1987, p. 492-493, nota 50).

184
Discurso Filosófico I

Para seguirmos adiante no texto, destacamos duas


nomenclaturas, a de profeta e a de gênio. Em relação ao
primeiro, a palavra grega, donde a nossa deriva designa um
intérprete dos deuses. “‘Celebrado profeta das Piérides’ se
intitula Píndaro no Péan VI, v. 6. O mesmo poeta escreveu
(fr, 150 Snell): Dá o teu oráculo, Musa, que eu serei o teu profeta.”
(PEREIRA, 1987, p. 493, nota 51). Quanto à nomenclatura
gênio, conforme atesta Pereira, (1987, p. 493) na nota 53: “No
original está a palavra daimon, que a partir de Hesíodo pode
designar um ser intermédio entre deuses e homens”.

Voltemos ao texto:

Ditas estas palavras, atirou com os lotes para todos e


cada um apanhou o que caiu perto de si, excepto Er, a
quem isso não foi permitido. Ao apanhá-lo, tornara-
se evidente para cada um a ordem que lhe cabia para
escolher. Seguidamente, dispôs no solo, diante deles,
os modelos de vidas, em número muito mais elevado
do que o dos presentes. Havia-os de todas as espécies:
vidas de todos os animais, e bem assim de todos os seres
humanos. Entre elas, havia tiranias, umas duradouras,
outras derrubadas a meio, e que acabavam na pobreza, na
fuga, na mendicidade. Havia também vidas de homens
ilustres, umas pela forma, beleza, força e vigor, outras
pela raça e virtudes dos antepassados; depois havia
também as vidas obscuras, e do mesmo modo sucedia
com as mulheres. Mas não continham as disposições do
carácter, por ser forçoso que este mude, conforme a vida
que escolhem. Tudo o mais estava misturado entre si, e
com a riqueza e a indigência, a doença e a saúde, e bem
assim o meio termo entre estes predicados. É aí que está,
segundo parece, meu caro Gláucon, o grande perigo
para o homem, e por esse motivo se deve ter o máximo
cuidado em que cada um de nós ponha de parte os outros
estudos para investigar e se aplicar a este, a ver se é
capaz de saber e descobrir quem lhe dará a possibilidade
e a ciência de distinguir uma vida honesta da que é má
e de escolher sempre, em toda a parte, tanto quanto
possível, a melhor. Tendo em conta tudo quanto há pouco
dissemos, e o efeito que tem, relativamente à virtude na
vida, o facto de juntar ou separar as qualidades, saberá
o mal ou o bem que produzirá a beleza misturada com
a pobreza ou a riqueza, e com que disposição da alma, e
o resultado da mistura, entre si, do nascimento elevado
ou modesto, da vida particular e das magistraturas, da

Unidade 5 185
Universidade do Sul de Santa Catarina

forca e da fraqueza, da facilidade e da dificuldade em


aprender, e todas as qualidades naturalmente existentes
na alma, ou adquiridas. De modo que, em conclusão de
tudo isto, será capaz de reflectir em todos estes aspectos
e distinguir, tendo em conta a natureza da alma, a
vida pior e a melhor, chamando pior a que levaria a
alma a tornar-se mais injusta, e melhor à que a leva a
ser mais justa. A tudo o mais ela não atenderá. Vimos,
efectivamente, que, quer em vida, quer para depois da
morte, é essa a melhor das escolhas. Deve, pois, manter-
se essa opinião adamantina até ir para o Hades, a fim de,
lá também, se permanecer inabalável à riqueza e a outros
males da mesma espécie, e não se cair na tirania e outras
actividades semelhantes, originando males copiosos e
sem remédio, dos quais os maiores seria o próprio que
os sofreria; mas deve­se saber sempre escolher o modelo
intermédio dessas tais vidas, evitando o excesso de ambos
os lados, quer nesta vida, até onde for possível, quer
em todas as que vierem depois. É assim que o homem
alcança a maior felicidade.
Ora, então, anunciou o mensageiro do além, o profeta
falou deste modo: “Mesmo para quem vier em último
lugar, se escolher com inteligência e viver honestamente,
espera-o uma vida apetecível, e não uma desgraçada.
Nem o primeiro deixe de escolher com prudência, nem o
último com coragem”.
Ditas estas palavras, contava Er, aquele a quem coubera
a primeira sorte logo se precipitou para escolher a tirania
maior, e, por insensatez e cobiça, arrebatou-a, sem ter
examinado capazmente todas as consequências, antes lhe
passou despercebido que o destino que lá estava fixado
comportava comer os próprios filhos e outras desgraças.
Mas, depois que a observou com vagar, batia no peito
e lamentava a sua escolha, sem se ater às prescrições
do profeta. Efectivamente, não era a si mesmo que se
acusava da desgraça, mas à sorte e às divindades, e a
tudo, mais do que a si mesmo. Ora esse era um dos que
vinham do céu, e vivera, na encarnação anterior, num
Estado bem governado; a sua participação na virtude
devia-se ao hábito, não à filosofia. Pode-se dizer que
não eram menos numerosos os que, vindos do céu, se
deixavam apanhar em tais situações, devido à sua falta de
treino nos sofrimentos. Ao passo que os que vinham da
terra, na sua maioria, como tinham sofrido pessoalmente
e visto os outros sofrer, não faziam a sua escolha à pressa.
Por tal motivo, e também devido à sorte da escolha, o
que mais acontecia às almas era fazerem a permuta entre
males e bens. É que, se cada vez que uma pessoa chega
a esta vida, filosofasse sadiamente, e não lhe coubesse
em sorte escolher entre os últimos, teria probabilidades,
segundo o que se conta das coisas do além, não só de

186
Discurso Filosófico I

ser feliz aqui, mas também de fazer um percurso daqui


para lá, e novamente para aqui, não pela aspereza da
terra, mas pela lisura do céu. (PLATÃO, A República,
617e-619e).

Aqui vale fazer um pequeno recorte no texto. Quando Sócrates


diz: “Efectivamente, não era a si mesmo que se acusava da
desgraça, mas à sorte e às divindades, e a tudo, mais do que a si
mesmo.” Aqui, Sócrates está a enfatizar que não são os deuses os
responsáveis pelas escolhas feitas pelos seres humanos, por aquilo
que fazem de sua vida, pois que estas fazem parte da própria vida
que o homem escolhe.

Retornamos ao texto:

Era digno de se ver este espectáculo, contava ele,


como cada uma das almas escolhia a sua vida. Era,
realmente, merecedor de piedade, mas também ridículo
e surpreendente. Com efeito, a maior parte fazia a sua
opção de acordo com os hábitos da vida anterior. [Seguem
exemplos de escolhas e suas razões.] E à distância, entre
as últimas, avistou a alma do bufão Tersites a enfiar-se
na forma de um macaco. Depois, a alma de Ulisses, a
quem a sorte reservara ser a última de todas, avançou
para escolher, mas, lembrada dos anteriores trabalhos,
quis descansar da ambição, e andou em volta a procurar,
durante muito tempo, a vida de um particular tranquilo;
descobriu-a a custo, jazente em qualquer canto, e
desprezada pelos outros; ao vê-la, declarou que faria o
mesmo se lhe tivesse cabido o primeiro lugar, e pegou­lhe
alegremente. Os restantes animais procediam do mesmo
modo, passando para seres humanos ou uns para outros;
mudavam, os que eram injustos, para animais selvagens,
os justos para domésticos, e faziam toda a espécie de
misturas. (PLATÃO, A República, 619e-620d).

Quem seria o bufão Tersites? De acordo com a nota 59


(PEREIRA, 1987, p. 498), “Tersites é a única figura moral e
fisicamente inferior da Ilíada. Para criticar os reis, dizia tudo o que
fizesse rir os Aqueus, o que fez com que Ulisses o castigasse, com
grande aplauso da assembleia (II. 212-277).” Quando procura a
vida de um “particular tranquilo” e a pega, alegremente, Ulisses
nos remete ao que já nos disse Céfalo, no Livro I de A República,
ou seja, da existência de uma vida tranquila na velhice, o que não é
um tema novo na literatura grega.

Unidade 5 187
Universidade do Sul de Santa Catarina

Assim que todas as almas escolheram as suas vidas,


avançaram, pela ordem da sorte que lhes coubera, para
junto de Láquesis. Esta mandava a cada uma o gênio que
preferira para guardar a sua vida e fazer cumprir o que
escolhera. O gênio conduzia-a primeiro a Cloto, punha-a
por baixo da mão dela e do turbilhão do fuso a girar, para
ratificar o destino que, depois da tiragem à sorte, escolhera.
Depois de tocar no fuso, conduzia-a novamente à trama de
Átropos, que tornava irreversível o que fora fiado. Desse
lugar, sem se poder voltar para trás, dirigia-se para o trono
da Necessidade, passando para o outro lado. Quando as
restantes passaram, todas se encaminharam para a planura
do Letes1, através de um calor e uma sufocação terríveis.
De facto, ela era despida de árvores e de plantas. Quando
1 - A palavra grega Lethes significa já entardecia, acamparam junto do Rio Ameles2 , cuja água
“esquecimento”. nenhum vaso pode conservar. Todas são forçadas a beber
2 - Literalmente, “sem cuidados”. uma certa quantidade dessa água, mas aquelas a quem a
reflexão não salvaguarda bebem mais do que a medida.
Enquanto se bebe, esquece-se tudo. Depois que se foram
deitar e deu a meia-noite, houve um trovão e um tremor de
terra. De repente, as almas partiram dali, cada uma para
seu lado, para o alto, a fim de nascerem, cintilando como
estrelas. Er, porém, foi impedido de beber. Não sabia,
contudo, por que caminho nem de que maneira alcançara
o corpo, mas, erguendo os olhos de súbito, viu, de manhã
cedo, que jazia na pira.
Foi assim, ó Gláucon, que a história se salvou e não
pereceu. E poderá salvar-nos, se lhe dermos crédito, e
fazer-nos passar a salvo o rio do Letes e não poluir a alma.
Se acreditarem em mim, crendo que a alma é imortal e
capaz de suportar todos os males e todos os bens,
seguiremos sempre o caminho para o alto, e praticaremos
por todas as formas a justiça com sabedoria, a fim de
sermos caros a nós mesmos e aos deuses, enquanto
permanecermos aqui; e, depois de termos ganho os
prêmios da justiça, como os vencedores dos jogos que
andam em volta a recolher as prendas da multidão, tanto
aqui como na viagem de mil anos que descrevemos,
havemos de ser felizes. (PLATÃO, A República,
620d-621d).

Fechando com essa imagem, o texto platônico revela, do


começo ao fim, seus artifícios estilísticos. E, embora a poesia,
particularmente a homérica, seja por vezes vilipendiada e o
poeta, claramente, tomado como pessoa não grata na cidade
idealizada, Platão, como já foi dito, escreve metaforicamente,
seguindo a trilha dos grandes poetas gregos. Sem contar com as
inúmeras referências à tradição poética anterior a ele, como você
pode visualizar em diferentes momentos do diálogo.

188
Discurso Filosófico I

Seção 3 – A Repercussão de Platão


Você (e eu) caminhou por essa obra cheia de enigmas, luzes e
perspectivas variadas. Caminhada em busca da justiça, de uma
cidade ideal. Cidade onde cada um faria aquilo que sua natureza,
sua habilidade, desde cedo mostrasse ser sua vocação. E, para a
função de governar, você viu a defesa da necessidade do melhor,
o filósofo-rei ou o rei-filósofo: um homem corajoso, bondoso,
sábio, que tenha passado por todas as provações do mundo e,
mesmo assim, se manteve digno de suas qualidades. Educar
esse homem é uma das grandes tarefas indicadas nesta obra de
Platão: mostrar-lhe o caminho, tirá-lo da caverna, fazer com que
seu bom senso venha a se tornar discurso filosófico, sabedoria
alcançada pelo caminho da dialética.

O educando passará pelo estudo da ginástica e da música, que


modelarão seu espírito; pelas ciências matemáticas e outras, que
o farão relacionar o visível com as essências; e finalmente pela
dialética, que o levará às essências mesmas, à própria Justiça, ao
Bem Absoluto. Tal homem merece ser o governante, deve sê-lo,
pois governará por sua sabedoria. Sendo sábio, este poderá ser o
exemplo para a pólis, pois o que temos na maioria das vezes são
homens gananciosos e ignorantes no poder, que não servem como
exemplo, pois, pelas suas atitudes, não educam. O governante da
pólis ideal é o educador: aquele que mostra a Justiça, o Bem. Este,
por ser sábio, almeja a felicidade da pólis, enquanto os que andam
por si almejam sua própria felicidade.

Ora, se assim é, o papel do filósofo aparece, também ele


com uma clareza perfeita. O que ele deve fazer, ou pelo
menos tentar fazer, é educar a Cidade, quer dizer educar
as suas elites, ensinar-lhes, ou voltar a ensinar o respeito
pelos verdadeiros valores. (KOYRÉ, 1984, p. 128).

Como você percebeu, ser governante é um imperativo para o


filósofo, é seu compromisso moral. Mas essa elite de governantes
não é qualquer elite; são os melhores (aristói), os mais próximos
da perfeição, diferentes dos políticos tradicionais, os sofistas, que
são homens dados à retórica, aos enganadores, aos amigos das Evidentemente, se está
opiniões, a meros falsificadores da realidade, aos inimigos da enfatizando o ponto de
verdade, aos gananciosos: esses não são filósofos, embora alguns vista platônico.
os tomem como tais.

Unidade 5 189
Universidade do Sul de Santa Catarina

E é por aí que a educação da própria cidade deveria começar:


aceitando a ideia do filósofo-rei, mostrando à pólis o verdadeiro
filósofo, o verdadeiro sábio. Esse homem, cheio de qualidades,
não será por isso mesmo o melhor governante? Aceito esse
princípio, deve-se tomar outro como modelo, o de que “[...] a
justiça será que cada um exerça uma só função na sociedade,
aquela para a qual, por natureza, foi mais dotado” (PLATÂO, A
República, IV, 433a). Cada um se sentirá feliz se estiver fazendo
aquilo que melhor souber fazer; ao fazer o melhor possível,
dividirá o resultado da realização de sua tarefa com a cidade e a
cidade será, também, feliz. E para manter todos em suas devidas
funções devemos ter um governante que saiba distinguir a justiça
da injustiça, o bem do mal, tenha sabedoria.

Para justificar o filósofo-rei, é necessária uma mentira, pois


este não é completamente sábio, mas sim um homem que tem
bastante conhecimento e, principalmente, que está sempre
buscando sabedoria. Como a própria palavra “filósofo” denota
em sua morfologia: amigo do saber, este é o sábio. Ora, mas
são poucos destinados a serem sábios. Estes poucos devem ser
tomados pelas mãos e educados, libertos dessa educação que há
por aí, a dos sofistas e dos poetas.

Deve-se buscar as ciências que contribuirão para que tais homens


saibam comandar os exércitos nas guerras, fazer acordos e
julgar aquilo que houver para julgar na cidade, em suma, sejam
perfeitos administradores.

Não conseguir realizar este intento aqui no nosso mundo por


todos os problemas que nele enfrentamos é o mais provável.
Contudo, ao concebermos essa cidade perfeita como modelo,
mesmo que utopicamente, devemos tentar convencer ao máximo
as pessoas de que é o melhor modelo que devem seguir. Educá-
los para a justiça, que fiquem longe da usura, da ganância, que
reconheçam os demagogos. Para que não sejam dominados
pelas opiniões (paixões), que avistem a verdade ou venham a
reconhecê-la.

Para que essa cidade se faça, é preciso expulsar ou manter sob


vigilância os falsos educadores (os sofistas e os poetas), que
humanizam os deuses, dando-lhes caracteres imperfeitos, e
depauperam os heróis. Ao fazer isso, homens, que devem ter

190
Discurso Filosófico I

esses deuses e heróis como exemplo, justificam suas fraquezas e


constroem seu caráter a exemplo daqueles. Como se sabe, para
Platão, a imitação é uma arte de terceira categoria, e não deve ser
ensinada, a não ser com muitas restrições, se o objetivo for criar o
homem perfeito para governar a nossa cidade.

Viu-se, assim, que em A República, a educação não tem um


caráter meramente formativo, mas é paideia, elevando o homem à
sua aptidão máxima, à sabedoria, à busca eterna desta, enquanto
estiver vivo. Urge educar para a filosofia, para a contemplação.
Mas essa contemplação não deve fazer com que alguém se
desligue da cidade. Os estudos são financiados pela pólis. Assim,
ao se formar, o estudioso deve à pólis seus serviços: afinal, foi
Desta forma, é afastada
educado para lhe servir. O fim da educação não é apenas um fim totalmente a interpretação
individual, mas político e ético. simplória que atribui a
Platão o idealismo vulgar
de quem simplesmente
Não se tratava de uma ambição, mas sim da renúncia de se afasta do real, do
uma ambição: há algo de ascético na imagem que Platão cotidiano, para se refugiar
nos dá do filósofo que abandona o mundo contemplativo num “mundo das nuvens”!
para se envolver nos assuntos seculares. É como se um
monge tivesse de deixar a cela para sentar-se no trono
papal, protestando e contudo submisso – porque para ele
esta é uma forma mais dura de servir a Deus. (BARKER,
1978, p. 196).

Essa exigência equivale à volta à caverna.

A República mostra um percurso: primeiro, pairam perguntas


do que seja justiça, depois se funda a cidade, vislumbra-
se um governante ideal, mostra-se como este será educado,
apresentando, inclusive, uma “grade curricular”, até chegar ao
Mito de Er, uma escatologia que fecha o Livro, mostrando, entre
outras coisas, que ser justo na terra é adquirir reconhecimento no
“céu”, e que as almas sempre escolhem seus novos destinos por
causa das lembranças que têm da vida anterior.

A obra de Platão foi interpretada de diversas formas. Seria


um revolucionário ou um conservador? Há aqueles que a leem
muito apaixonadamente, outros, severamente. No entanto, pôr-
se nesses extremos não faz muito sentido. Platão foi um homem
como poucos que ficaram na história, um aventureiro na busca
de um ideal de perfeição, por cuja realização ele trabalhou,
produziu e ensinou.

Unidade 5 191
Universidade do Sul de Santa Catarina

Com o que vimos, podemos concluir concordando com Châtelet


(1973, p. 173):

Platão inventou a filosofia: definiu o que a cultura


entenderá doravante por razão. Deste modo, desenhou o
quadro no interior do qual o pensamento “mediterrânico
e ocidental” construirá os seus valores de desenvolverá o
seu progresso. Os conceitos de sentido legitimado, de
universalidade, de verdade, de fundamento de ordem
justa — na dupla significação da justeza e da justiça —,
de correspondência, pelo menos reivindicada, entre
teoria e prática e alguns outros, que são elementos
constituintes da racionalidade, encontram nos diálogos
platônicos a primeira determinação insistente e clara,
da sua compreensão e do seu alcance. Certo, poder-se-á
encontrar sempre, na pré-história da Razão, tal pensador
pré-socrático, tal sábio do Médio Oriente ou do Oriente
que pronunciou frases que fazem luz sobre a situação do
homem contemporâneo e tê-las por revelações. Poder-
se-á, de uma maneira sem dúvida mais pertinente.
Constatar as ‘insuficiências’ do platonismo, sublinhar
as incertezas ou ambiguidades da doutrina, condenar
o idealismo ou o utopismo do fundador da Academia,
pôr em evidência as mutações decisivas que a cultura
teve que levar a cabo para tornar efectiva, humanamente
praticável, a idealidade da Razão.

É certo que muitos séculos se passaram; estamos na era da


tecnologia, era de grandes e cada vez mais avançados meios
de transporte, seja de homens, de ideias e de imagens. Nosso
mundo ainda se pergunta sobre a justiça, ainda busca mais e
mais nesse caminhar da humanidade, o saber. Ainda pensamos
na escola, na relação do saber com o poder, do “voto” com
a ignorância, da retórica (demagogia) com a verdade... E o
legado de Platão pode ser útil para refletirmos, de forma mais
consistente, esses temas universais.

192
Discurso Filosófico I

Seção 4 — Considerações Finais


Para fechar, é bom que você tenha captado que este Livro apenas
um instrumento, entre muitos possíveis, para lhe introduzir em
possibilidades de leitura. A escolha de uma obra de tamanha
envergadura como o diálogo platônico A República, em sua
totalidade, pode ser vista como algo pretensioso em virtude do
tempo e das atribulações da vida contemporânea.

Entretanto, se você se ateve minimamente ao nosso texto,


acompanhando-o, como se recomendou por diversas vezes,
pode vislumbrar aspectos importantes das estratégias de escrita
utilizadas por Platão. Viu que nele método e filosofia, visão de
mundo e construção discursiva não estão dissociados. Percebeu
que o debate, para avançar, precisa que o interlocutor esteja
persuadido de sua importância, sem se importar com o tempo
que tenha de tomar para chegar a uma definição mais consistente.
“Perder tempo” é necessário para avançar no estudo filosófico.

A leitura filosófica, assim como a própria filosofia, não é algo


que se ensina, mas é possível aprendê-la. Tal processo de
aprendizagem exige que você exercite. Desta forma, o presente
Livro não tem a pretensão de esgotar uma leitura de Platão.
Mesmo porque isso não é possível. O que se procurou fazer
foi, tão somente, indicar para você pistas, pontuar e esclarecer
estratégias; enfim, dar-lhe algum instrumental para fazer uma
leitura, pois ler não é, simplesmente, passar os olhos sobre um
conjunto de grafos e sonorizá-los silenciosamente ou não.

Ler filosoficamente é reconstruir uma visão de mundo,


já os filósofos são, por excelência, construtores e
destruidores de mundos. O mundo construído por um
filósofo é exposto, predominantemente, embora não
só, em seus textos.

O texto, por sua vez, é uma trama, um tecido, que pode ser
vislumbrado e apreciado mesmo em uma visão panorâmica. Mas
esse olhar gera, sem a lupa daquele que palmeia cada trama, cada
ponto da urdidura do tecido pode ser apenas apreciado por um
prazer imediato. Não que esse seja de todo um mal. Mas não é
suficiente para você avançar filosoficamente, já que se trata de

Unidade 5 193
Universidade do Sul de Santa Catarina

um juízo de gosto. Ademais, você ficará na superficialidade no


texto e poderá até interpretar equivocadamente certas passagens
ao descontextualizá-las do emaranhado elaborado pelo escritor,
filósofo.

Com você viu, há momentos em que é preciso voltar, primeiro


no próprio texto, procurando chaves de leitura. Só depois para
o contexto do texto ou para comentadores especializados que
lhe ajudarão a esclarecer certas passagens. Mesmo cuidado! Não
deixe de exercitar sua autonomia. Se recorrentemente desistimos
em face de uma dificuldade inicial e tomamos o caminho mais
curto – aqui, recorrer aos comentadores no imediato –, não
estaremos aproveitando a oportunidade para nosso exercício de
aprendizagem de leitura filosófica. Como escreveu o professor
Fernando Maurício da Silva (2009, p. 150):

Com esta unidade, você concluirá sua leitura sobre


a República. Claro que isso não significa que todo
conteúdo filosófico desse livro estará esgotado, pois uma
pretensão como esta não só mereceria ser tachada de
incoerente, bem como de patológica. Entretanto, pode-se
dizer que você alcançará uma boa instrumentalização do
método platônico.
Esse instrumento foi feito até aqui de forma especializada.
É este o modo de iniciar-se no aprendizado da filosofia.
Porém, mais importante que o conhecimento específico
adquirido, é o exercício de leitura que levou a ele. Por isso,
para levar a termo o estudo desta unidade, você deverá
orientar-se conforme a noção de exercitar o processo
argumentativo na direção da definição, quando for o caso,
ou da demarcação dos critérios temáticos em questão.
Tendo em mãos uma síntese de todos os princípios
conquistados até aqui, você passará a aplicar tais
princípios na definição final do tema da República,
sintetizando os argumentos de forma criteriosa com vistas
a demarcar a definição conquistada e concluir o estudo
dessa primeira obra refletindo o valor não da obra, mas
do seu exercício interpretativo e filosófico.

Este foi também o espírito deste Livro que, espero, tenha lhe
alcançado.

194
Discurso Filosófico I

Síntese

Nesta unidade, você passou pelos três últimos livros de A República.

No Livro VIII, você retomou o ponto sobre as constituições


(formas de governo) que foi deixado em suspensão no final do
Livro IV e início do V, viu que o diálogo estabelece uma relação
entre os tipos de constituições e as formas das almas, indicando
uma leitura político-psicológica da decadência dos Estados (das
Cidades-Estados, póleis). Assim, você passou das formas perfeitas,
que, no fundo, são uma só com variação de número, Monarquia
e Aristocracia, às formas corrompidas, Timocracia, Oligarquia,
Democracia e Tirania.

No Livro IX, você viu como o tirano é o mais infeliz dos homens
e, consequentemente, na linha de raciocínio do diálogo, como a
cidade tirânica é infeliz. Na sequência, foi concluída a questão
da relação entre as formas de governo e a alma, reintroduzindo
a questão das partes da alma. Essa temática, nesse momento, foi
focada mais quanto ao aspecto do indivíduo, encaminhando o
fechamento da questão sobre a justiça.

No Livro X, inicialmente foram retomadas as questões da


necessidade de distinguir o estilo dramático do dialogal na poesia
em virtude da busca da verdade. Em vista disso, rediscutiu-
se o papel educativo da poesia e das artes imitativas, no geral.
Dando o tom para a parte final deste Livro, retomando o tema
da imortalidade da alma, culminando no Mito de Er, a última
imagem do Livro.

Por fim, você teve um panorama, procurando reforçar a


importância do pensamento de Platão no contexto da filosofia
ocidental. Tudo isso sem deixar da lhe alertar para a necessidade
do exercício constante das estratégias de leitura propostas.

Unidade 5 195
Universidade do Sul de Santa Catarina

Atividades de autoavaliação

1) Platão indica, na boca de seu personagem Sócrates, que há apenas uma


forma de constituição perfeita. Contudo, essa forma apresenta
variações, quais são? Qual o critério tomado por Platão para indicar que,
no fundo, essas variações são aspectos de uma só forma?

2) O que representam as Parcas no Mito de Er? Identifique cada uma delas.

3) A que parte anterior de A República está ligada (quanto a temática que é


recuperada) o início do Livro VIII?

196
Discurso Filosófico I

Saiba mais

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CHÂTELET, François. A Filosofia Pagã: do século VI a.C. ao


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releitura de Platão. São Paulo: Cortez, 1999.

198
Para concluir o estudo

Tendo findado o percurso feito neste Livro Didático, espero


que você tenha fixado que o processo de leitura filosófica
de um texto é algo que demanda disciplina e tomada de
decisões e que um texto não pode se lido, filosoficamente,
se não tentarmos refazer um percurso dado pelo autor,
procurando partir, primeiro, do extrato do próprio texto,
identificando as marcas textuais que propiciam o ir e vir no
próprio texto e no contexto do texto.

Certamente, essa não foi uma caminhada simples, pois


não avançamos muito ao tomar um texto filosófico
como um todo, ainda mais um da envergadura de A
República, de Platão, a não ser com muita atenção e
disciplina. Contudo, se você entendeu o espírito da
instrumentalização que este LD lhe deu, poderá aplicá-
lo a outros textos filosóficos, dando maior maturidade às
suas leituras.

Lembro que sua escolha por um curso de Filosofia deve


ter levado em conta que este é, predominantemente, um
curso de leituras e escritas. E mais, que leituras e escritas
filosóficas têm ferramentas próprias e, em parte, você foi
apresentado(a) a alguma delas.

Não pense, contudo, que sua tarefa terminou. No fundo,


este é apenas o primeiro passo, mesmo porque demos
maior prioridade a um determinado tipo de leitura.
Mas, como ensinou Platão, “o começo é a metade do
caminho”. E que começo tivemos!

Prof. Carlos Euclides Marques


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202
Discurso Filosófico I

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Palhoça: UnisulVirtual, 2009.
SOARES, Antônio Jorge. Dialética, Educação e Política: Uma
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203
Sobre o professor conteudista

Carlos Euclides Marques

Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Universidade


Federal de Santa Catarina - Ufsc (1991-1992), Mestre
em Literatura (1997) pela mesma universidade e
graduado em Artes Plásticas pela Universidade do
Estado de Santa Catarina – Udesc (2011).

Foi professor substituto no curso de Filosofia da Ufsc entre


1992 e 1995, 1998 e 1999 e, posteriormente, entre 2008
e 2010. De 1998 a 2003, trabalhou na Universidade do
Vale do Itajaí – Univali, onde, entre outras disciplinas,
ministrou Filosofia da Educação I e II no curso de
Pedagogia.

No ano de 1999, teve uma breve passagem pelo curso de


Ciências da Religião, ministrando Filosofia da Educação
na Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. Em
2002, voltou a essa instituição, inicialmente no curso
presencial de Filosofia, onde, entre outras disciplinas,
ministrou História da Filosofia Antiga, Medieval e
Contemporânea, Estética e Filosofia na América Latina.
Foi orientador de vários TCCs e de alguns trabalhos de
iniciação científica pelo artigo 170.

Publicou artigos no campo da crítica literária e da


relação Literatura e Filosofia. Para o curso de Filosofia
a distância na UnisulVirtual, escreveu, em colaboração
com outros autores, os livros História da Filosofia II,
Filosofia Política II e Antropologia Filosófica (revisado e
ampliado por ele na edição de 2011), além de contribuir
em capítulos ou dicas para livros textos de outros cursos.
Universidade do Sul de Santa Catarina

Atualmente, trabalha com as disciplinas de História da Filosofia


I, Antropologia Filosófica, e Discurso Filosófico I e II. Além
dos livros para a modalidade a distância, também já produziu
objetos virtuais de aprendizagem e webaulas. Participa da EaD
na UnisulVirtual desde a constituição do curso de Filosofia nesta
modalidade.

206
Respostas e comentários das
atividades de autoavaliação
UNIDADE 1
1) a) Leitura aprofundada. b) Leitura rápida. c) Leitura rápida.
2) a) Abordagem dogmática. b) Abordagem genético-
historicista.
b) O discurso, segundo Platão, não dá conta do objeto real,
pois é limitado e, no máximo, faz uma aproximação do objeto
real.

UNIDADE 2
1)
a) ( F )
b) ( F )
c) ( V )
d) ( F )
e) ( V )
f) ( V )
g) ( F )
h) ( F )
i) ( V )
j) ( V )

2) O interlocutor que critica negativamente o procedimento


socrático é Trasímaco. Sua atitude, tempestiva e ameaçadora,
além do fato de solicitar um ganho financeiro para dar uma
resposta, revela a imagem que Platão constrói dos sofistas,
em geral, como intempestivos, arrogantes e vendedores de
saberes que não têm.
Universidade do Sul de Santa Catarina

UNIDADE 3
1)
Na analogia L E T R A S G R A N D E S
com as
letras ela Palavra grega que significa
representa a D O X A
opinião.
cidade.
Ele tem um anel que o faz ficar invisível. G I D E S
A principal virtude do soldado. C O R A G E M
Para Platão, tanto ginástica como música a educam. A L M A
Cabe a estes sustentar C I D A D Ã O S
os governantes com
alimentação, vestuários e A educação das E S P A R T A N O
ferramentas. mulheres segue, em
parte, o modelo...
O mito da origem da humanidade a
partir da terra remete às narrativas H E S Í O D O
de um poeta da Beócia. Quem é ele?

2) Quando “cada pessoa fizer uma só coisa, de acordo com a sua natureza
e na ocasião propícia deixando em paz as outras” (PLATÃO, A República,
II, 370e).

UNIDADE 4
1) Uma vez que o objeto de conhecimento pode ser relativo ou absoluto e
a ciência se define por seu objeto, teremos a seguinte divisão:

Ciências empíricas: aquelas fundadas nas opiniões.

Ciências objetivas: aquelas auxiliares da revelação objetual por serem


capazes de raciocinar por imagens de ideias, como são as formas
geométricas ou os números aritméticos.
2) b- ( X ) Somente as afirmativas II e III são corretas.

UNIDADE 5
1) No fundo, há uma só forma perfeita, porque as variantes, monarquia
e aristocracia, se baseiam no saber, variando apenas em relação ao
número dos que ocupam o governo: um ou vários.
2) Elas são a representação da vida. Láquesis representa o passado; Cloto,
o presente; e Átropos, o futuro.
3) Ao final do Livro IV e início do V.

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Biblioteca Virtual

Veja a seguir os serviços oferecidos pela Biblioteca Virtual aos


alunos a distância:

„„ Pesquisa a publicações on-line


<www.unisul.br/textocompleto>
„„ Acesso a bases de dados assinadas
<www.unisul.br/bdassinadas>
„„ Acesso a bases de dados gratuitas selecionadas
<www.unisul.br/bdgratuitas>
„„ Acesso a jornais e revistas on-line
<www.unisul.br/periodicos>
„„ Empréstimo de livros
<www.unisul.br/emprestimos>
„„ Escaneamento de parte de obra*
Acesse a página da Biblioteca Virtual da Unisul, disponível no EVA,
e explore seus recursos digitais.
Qualquer dúvida escreva para: bv@unisul.br

* Se você optar por escaneamento de parte do livro, será lhe enviado o


sumário da obra para que você possa escolher quais capítulos deseja solicitar
a reprodução. Lembrando que para não ferir a Lei dos direitos autorais (Lei
9610/98) pode-se reproduzir até 10% do total de páginas do livro.

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