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Conselho editorial
Alvaro Ferreira
Carlos Walter Porto-Gonçalves
João Rua
Marcelo Badaró Mattos
Marcos Saquet
Ruy Moreira
Sandra Lencioni
Timo Bartholl
Coordenação editorial e projeto gráfico
Consequência Editora
Revisão
Priscilla Morandi
Capa e diagramação
Letra e Imagem
Imagem da capa
Paul Klee, In the current six thresholds, 1929.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
G345 Geografia urbana: cidades, revoluções e injustiças: entre espaços privados, públi-
cos, direito à cidade e comuns urbanos / organizado por Ana Maria Leite de Barros,
Cláudio Luiz Zanotelli, Vivian Albani. - Rio de Janeiro : Consequência, 2020.
512p. ; 16x23cm.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-87145-00-6
CDD 910
2020-752 CDU 911.3
Do espaço ao contraespaço
A luta antirracista decolonizando1 o urbano carioca
Introdução
Neste trabalho buscamos construir uma genealogia do que tem sido cha-
mado por ativistas e movimentos sociais no Brasil de genocídio negro.
Nossa hipótese é que a ideia do negro foi inventada como um problema
espacial pelo imaginário moderno-colonial desde o início de nossa for-
mação, justificando o extermínio.2 O projeto racial (MOREIRA, 2019) em
curso, promovido pela colonialidade do poder, definiu o negro com um
problema espacial (QUIJANO, 2000; OLIVEIRA, 2019) ao estabelecer
uma hierarquia da diversidade humana pela ideia de raça instituindo usos
do espaço por critérios raciais (QUIJANO, 2000; OLIVEIRA, 2019). Esse
padrão de poder mobiliza um projeto bionecropolítico, definindo uma po-
1 Seguimos a sugestão de Oliveira (2018, p. 101-102) quando afirma que “Decolonizar sig-
nificaria, então, no campo da educação, uma práxis baseada numa insurgência educativa
propositiva – portanto não somente denunciativa – por isso o termo ‘DE’ e não ‘DES’ –
em que o termo insurgir representa a criação e a construção de novas condições sociais,
políticas e culturais e de pensamento. Em outras palavras, a construção de uma noção
e visão pedagógica que se projeta muito além dos processos de ensino e de transmissão
de saber, uma pedagogia concebida como política cultural, envolvendo não apenas os
espaços educativos formais, mas também as organizações dos movimentos sociais. DE-
colonizar na educação é construir outras pedagogias além da hegemônica. DEScoloni-
zar é apenas denunciar as amarras coloniais e não constituir outras formas de pensar e
produzir conhecimento”. Tal proposta extrapola o campo da educação e nos permite o
reconhecimento das agências negras diaspóricas produzindo contraespaços (MOREIRA,
2007; OLIVEIRA, 2019).
2 Mbembe (2014) diferencia a palavra negro em maiúsculo e minúsculo para afirmar uma
lógica emancipadora e protagonista (Negro) frente uma lógica de submissão e humilha-
ção (negro). Aqui negro em minúsculo será o projeto de espaço hegemônico e Negro, em
maiúsculo, o projeto de contraespaço.
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3 Fanon (1969) afirma que o foco do racismo não é apenas um indivíduo, mas um modo
de ser. Logo, a dimensão ontológica da luta antirracista envolve uma práxis insurgente de
modos de ser ancestrais invisibilizados pelo eurocentrismo.
4 A epistemologia criada na modernidade foi inerente à dimensão colonial. Para Gros-
foguel (2016, p. 40): “Nas Américas os africanos eram proibidos de pensar, rezar ou de
praticar suas cosmologias, conhecimentos e visão de mundo. Estavam submetidos à um
regime de racismo epistêmico que proibia a produção autônoma de conhecimento. A in-
ferioridade epistêmica foi um argumento crucial, utilizado para proclamar uma inferio-
ridade social biológica, abaixo da linha da humanidade. A ideia racista preponderante
no século XVI era a de ‘falta de inteligência’ dos negros, expressa no século XX como ‘os
negros apresentam o mais baixo coeficiente de inteligência’.”
Estes processos geravam um monopólio do conhecimento masculino, branco, hetero-
normativo, das classes superiores e ocidental na leitura de mundo. Desta forma, a univer-
sidade, tributária deste processo, foi sendo marcada por privilégios epistêmicos de definir
o que é verdade e o que é a realidade, gerando injustiças cognitivas e desqualificação de
outras formas de conhecimento.
[…] para o Estado imperial brasileiro, o escrav[izad]o não era apenas mais
um infrator. Era considerado um inimigo, visto como um problema de se-
gurança pública nacional: “Em todos os países, […], o escrav[izad]o não é
só reputado um inimigo doméstico, mas ainda um inimigo público, pronto
sempre a rebelar-se, a levantar-se”.5 (CAMPELLO, 2018, p. 176).
não recebiam pretos. Onde recebiam eu ia, onde não recebiam não ia. Nós sabíamos desses
lugares proibidos porque um contava para o outro. O Guinle muitas vezes me convidava
para eu ir a um lugar. Eu sabia que o convite era por delicadeza e sabia que ele esperava
que eu não aceitasse. E assim, por delicadeza, eu não aceitava. Quando eu era convidado
para tocar em tais lugares, eu tocava e saía. Não abusava do convite” (VIANNA, 1998, gri-
fos nossos). A fala de Pixinguinha é elucidativa do negro como lugar, pois, explicita o seu
habitus expresso numa espécie de pedagogia tácita da dominação racista que busca incutir
através de rituais, normas, valores e discurso (verbais e não verbais) que estigmatizam,
subalternizam, constrangem, restringem e/ou impedem o acesso, o uso e apropriação de
determinados espaços e escalas
finem o branco como o paradigma, aquele que tem confiança e que rece-
be salário público psicológico, como afirma Du Bois (apud SCHUCMAN,
2012); ou seja, o branco pobre possui um capital racial que lhe permite usar
os espaços dos brancos ricos sem sofrer qualquer tipo de interdição e/ou
constrangimento racial. O negro não possui esse capital, mesmo o negro
rico.7 Logo, precisa sempre de cartão de visita (OLIVEIRA, 2011). A tute-
la é o destino esperado para os negros. Esses falsos complexos instituem
formas de subjetivação, ou seja, maneiras de produzir autoconhecimento,
viver, ser, interpretar a vida engendrando formas condicionadas de produ-
ção, apropriação e uso do espaço.
7 “Há um disseminado desconforto, irritação, talvez medo e apreensão quanto aos negros
que ascendem. São considerados arrogantes, agressivos, e frequentemente aparecem ex-
pressões que revelam que esses negros invadiram um território que o branco considera
seu. Pode-se levantar a hipótese de resistência à mudança da situação das relações raciais,
bem como de defesa de espaços de poder e privilégio” (BENTO, 2002, p. 156).
O negro foi “[…] o único de todos os seres humanos cuja carne foi trans-
formada em coisa, e o espírito, em mercadoria – cripta viva do capitalismo”
(MBEMBE, 2014, p. 19). Expressa uma vida vazia aprisionada na rede de
dominação da raça que está em constante movimento para o nada. O nome
negro foi inventado para significar exclusão, embrutecimento e degradação,
expressando um poço de alucinações (MBEMBE, 2014, p. 19). Para Mbembe
(2014), a origem do termo negro é carregada de três dimensões mescladas e
indissociadas: 1) negro como marca de um símbolo para morte (um jazigo);
2) o negro como marca de um continente destituído de humanidade (negro
e África são termo coproduzidos), em suas formas disformes, da não estética,
o antípoda do branco europeu; 3) o termo negro está relacionado a um esta-
do pré-civilizatório, animal, instintivo e sem razão.
uma longa jornada até o mar”. Ou seja, o controle da mobilidade é uma das
marcas do processo de desreterritorialização (HAESBAERT, 2014). Ain-
da nos portos na África, outro dispositivo espacial que inventava o negro
como o problema é o confinamento.
Quando qualquer um de nós se tornava rebelde, sua carne era cortada com
uma faca e no corte era esfregado pimenta e vinagre para torná-lo pacífi-
co (!). Assim como os outros, fiquei muito mareado no início, mas nosso
sofrimento não causou preocupação alguma aos nossos brutais proprie-
tários. Nossos sofrimentos eram da nossa conta, não tínhamos ninguém
para compartilhá-los, ninguém para cuidar de nós, ou até mesmo nos di-
zer uma palavra de conforto. Alguns foram jogados ao mar antes que a
respiração cessasse de seus corpos; quando presumiam que alguém não
iria sobreviver, era assim que se livravam dele. Apenas duas vezes duran-
te a viagem fomos autorizados subir ao convés para que pudéssemos nos
lavar – uma vez enquanto estávamos em alto-mar, e outra pouco antes de
entrarmos no porto. (BAQUAQUA, 2017, p. 53).
8 A crença de que eles estavam fazendo “um bem para os escravizados” revela-se no nome
de inúmeros navios negreiros, um tipo de racismo conhecido como cordial: Amável Don-
zela (1788 a 1806), Boa Intenção (1798 a 1802), Brinquedo dos Meninos (1800 a 1826), Cari-
dade (quatro diferentes embarcações usaram esse nome - 1799 a 1836), Feliz Destino (1818
a 1821), Feliz Dias a Pobrezinhos (1812), Graciosa Vingativa (1840 a 1845), Regeneradora
(três embarcações usaram esse nome - 1823 a 1825) (MANENTI, 2015).
9 Moreira (2019) afirma que ele se constitui com o uso do humor contra negros que ideo-
logicamente se afirma como benigno, mas que: 1) propaga uma hostilidade racial; 2) bes-
tializa os negros; 3) busca produzir um ser programado para servir o branco; 4) afirma
uma forma de degradação do negro, buscando impedir o acesso à comunidade política.
10 Ver o poema “O navio negreiro”, de Castro Alves: “Era um sonho dantesco ... O tom-
badilho / Que das luzernas avermelha o brilho, / Em sangue a se banhar. / Tinir de ferros
... estalar do açoite ... / Legiões de homens negros como a noite, / Horrendos a dançar ...
[…] Presa nos elos de uma só cadeia, / A multidão faminta cambaleia, / E chora e dança
ali! […] No entanto o capitão […] / Diz do fumo entre os densos nevoeiros: / ‘Vibrai rijo o
chicote, marinheiros! / Fazei-os mais dançar!...’”. (N. do T.)
11 Após a terrível viagem, era comum que mulheres escravizadas ficassem estéreis por até
dois anos (JAMES, 2010).
12 “Um fato notório afigura-se na preocupação, em constante evidência nos relatórios de
presidentes de província e nas correspondências das autoridades, a respeito das possíveis
rebeliões e rebeldias escravas, quanto efetivamente, não ocorriam tantas prisões de escra-
v[izad]os como se poderia supor” (CAMPOS, 2007, p. 217).
quanto privada como câmeras de reconhecimento facial vem mobilizando critérios ra-
ciais na averiguação de pessoas como potenciais criminosos para controle do espaço. Os
controladores dos sistemas peritos acreditam-se neutros e não racistas, mas seus alvos são
principalmente negros.
15 Em nossa dissertação de mestrado (OLIVEIRA, 2006), entrevistamos integrantes do
grupo de Hip Hop Elemento Cor Padrão (Rico Zn e Sancho). Assim Rico Zn nos definiu
o significado do nome do grupo:
“[…] Elemento cor-padrão, para quem não sabe, é uma norma criada pelas autoridades para
caracterizar o negro como elemento suspeito. Elemento, pô [sic], é o padrão de abordagem.
Qual é a cor? Não precisa nem falar, né [sic], que é o negro. Elemento cor-padrão, o cara fala
assim, pô [sic], o que significa isso ... Já tá [sic] aí Zona Norte, Elemento Cor Padrão, Rico ZN
e Sancho” (Entrevista concedida em 14/8/2003).
16 Fachada e os fundos se construíram, no Brasil, como expressão espacial de nossas relações
raciais. A fachada foi se constituindo como o alvo da branquitude, e a geografia dos fundos
se constituiu como forma espacial de r-existência negra e diaspórica. Lembremo-nos de que
um dos mais famosos grupos de samba no Brasil é chamado de Fundo de Quintal.
19 O projeto Porto Maravilha é de uma das muitas políticas neoliberais voltadas para in-
serir pontos da cidade do Rio de Janeiro no mercado mundial de cidades (SÁNCHEZ,
2004). Ela envolve uma área de mais de 5 milhões de metros quadrados da região portuá-
ria do Rio de Janeiro, abrangendo os bairros Caju, Gamboa, Saúde, Santo Cristo e parte
do Centro da cidade. O projeto é fruto de uma Operação Urbana Consorciada (OUC)
que aportou vultosos recursos públicos e parcerias com a iniciativa privada de renovação
e “revitalização urbana” da região portuária do Rio de Janeiro. Criada no contexto dos
megaeventos (especialmente Copa do Mundo do Brasil e Olimpíadas do Rio de Janeiro),
a paisagem da região portuária tem sido intensamente transformada com a retirada do
viaduto da Perimetral, instalação do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), criação do boule-
vard olímpico, Museu do Amanhã, Museu de Arte do Rio, torres espelhadas voltadas para
empresas privadas, roda gigante, AquaRio, entre outros. Cria-se uma cidade para quem
pode pagar e remove-se a população pobre (majoritariamente negra) da localidade. As
obras do Porto Maravilha têm criado um regime de fachada para o turismo internacional
com reformas urbanísticas pontuais com práticas higienistas de controlar o uso dos cor-
pos nos espaços da cidade.
20 Nome dado por Heitor dos Prazeres (1898-1966), percebendo as marcas espaciais das
tradições africanas e afro-brasileiras nas formas de produção, apropriação e uso do espa-
ço nessa localidade.
Atividade da campanha dos 21 dias de ativismo contra o racismo (2020). Fonte: Acervo pessoal
21 Nas religiões de matriz afro, as pedreiras são campos de ressonâncias do orixá Xangô.
A natureza é aí socialmente produzida pela religião. Vemos aí o antirracismo inscrito nas
religiões de matriz afro no Brasil que expressa a natureza como potência de realidades de
mundos religiosos africanos. Portanto, discursos ocultos como infrapolítica dos grupos
postos como desvalidos (SCOTT, 2004) são transmitidos e cultuados na Pedra do Sal pelos
religiosos da umbanda e do candomblé, que historicamente constituíram a Pedra do Sal
como espaço de encontro, de criatividade e produção de subjetividades negras com as ro-
das de samba e manifestações culturais afro-brasileiras no passado e no presente. São lutas
contra a opressão espiritual e epistêmica que definem ontologias políticas (ESCOBAR, 2015)
como instrumento de preservação e defesa de outros modos de ser-estar no mundo e propõe
direitos territoriais negados e subalternizados pelo eurocentrismo (ESCOBAR, 2015).
22 Lopes (2004, p. 698) afirma que os zungus eram: “Cortiços, coloji, habitações de negros
pobres. O nome designou também cada um dos estabelecimentos comerciais no Rio de
Janeiro colonial, com oferta de música, refeições e pousada, mantidos em geral por negros
minas libertos. Do quicongo nzungu, ‘panela’, ‘caldeirão’”.
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