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Re- editados por: Dr. Ângelo Matusse (Fev.

2019)
@ Dr. Fernando Amado Couto (1992)

UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE


FACULDADE DE DIREITO

DIREITOS DOS TRANSPORTES

PARTE III
TRANSPORTE TERRESTRE

CAPÍTULO I
TRANSPORTE FERROVIÁRIO

1.- ENQUADRAMENTO LEGAL DO TRANSPORTE FERROVIÁRIO

Até à reforma de 2005, o transporte ferroviário não era tratado no Código Comercial, à
semelhança do que sucede na maioria das legislações, mas sim, em legislação avulsa. Isto porque,
salvo excepções como dos Estados Unidos da América, o transporte ferroviário apareceu
posteriormente ao movimento codificador e, ainda, porque foi conceitualmente considerado
sempre como um serviço público.

O Código comercial de 20051 consagra disposições de carácter geral para os diferentes modos de
transportes, incluindo o transporte ferroviário.

O regime legal especial do transporte ferroviário encontra-se, essencialmente, no


REGULAMENTO PARA A FISCALIZAÇÃO, POLÍCIA E EXPLORAÇÃO DOS CAMINHOS
DE FERRO, aprovado pelo Decreto nº 47.043, de 2 de Julho de 1966.2

Antes de entrarmos no estudo específico deste diploma legal, detenhamo-nos sumariamente sobre
alguns aspectos históricos relativos aos caminhos-de-ferro de Moçambique, que foram e
continuam a ser um instrumento importante no desenvolvimento do país.

2.- O TRANSPORTE FERROVIÁRIO: ASPECTOS HISTÓRICOS

Os caminhos-de-ferro, em Moçambique, estendem-se por mais de 2.000 Km, servindo,


essencialmente, a ligação dos países do interland aos portos de Maputo, Beira e Nacala. O papel
social e económico das linhas ‘exclusivamente’ nacionais é hoje diminuto, como sucede com o
ramal de Xai-Xai a Xinavane, de Mocuba, do Niassa, apesar de algum esforço por parte do
Governo, no sentido de lhes devolver a sua real importância. Por este facto, a nossa breve análise
vai centrar-se na prespectiva histórica dos três corredores de trânsito internacional – de Maputo,
da Beira e de Nacala. Assinale-se, desde já, que adiante será analisada a questão dos corredores
de trânsito na sua concepção institucional.

1
Aprovado pelo Decreto-Lei nº 2/2005, de 27 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-
Lei nº 2/2009, de 24 de Abril, e pelo Decreto-Lei nº 1/2018, de 4 de Maio.
2
Publicado no BO nº 27, I Série, de 2 de Julho de 1966.

Apontamentos ao 4° Ano do curso de Direito 1


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2.1.- O corredor de Maputo

O corredor de Maputo é servido pelo Porto de Maputo e da Matola, e três linhas férreas – de
Ressano Garcia, Goba e Limpopo, esta última, também, conhecida por linha de Chicualacuala. A
primeira serve o trânsito da África do Sul, com uma distância de 88 km; a segunda, a
Swazilândia, com um percurso de 74 km, e a última parte do Zimbabwe, com uma distância de
528 km.

2.1.1.- A linha de Ressano Garcia

A história dos caminhos-de-ferro em Moçambique inicia-se com a ligação, em Julho de 1895,


entre as cidades de Lourenço Marques e Pretória. A construção desta via-férrea aparece,
estreitamente, ligada às relações comerciais entre Moçambique e a África do Sul, ao
desenvolvimento da cidade de Johannesburg e à descoberta do ouro e, consequentemente, ao
desenvolvimento da àrea então chamada por Transval, hoje Gauteng.

A ideia da construção da actual linha férrea de Ressano Garcia surge em 1870, tendo o seu
primeiro traçado sido feito pelo Eng. G.P. Moodie, que assinou, em Novembro de 1870, um
contrato de concessão com o Governo Português. A posição contratual de Moodie foi adquirida
no mesmo ano pelo presidente sul-africano Burgers. O Governo Português retira então a
concessão a Moodie.3 Entretanto, regista-se um facto de importância política capital – a
arbitragem de Mac-Mahon que reconhece os direitos de Portugal sobre Lourenço Marques,
Catembe e Inhaca contra as pretensões inglesas.4

Em face do delicado problema político que se desenhava, o Governo de Lisboa decide contratar o
Eng. Joaquim José Machado5.

O General Machado viria a ser o homem chave do Governo português para concluir a construção
da linha. Enviado a Moçambique em 1882, concluiu os estudos do projecto que entusiasmam o
presidente Kruger. Faltava, então, obter os meios financeiros para a execução da obra. Esta
omissão veio, aparentemente, a ser suplantada com o surgimento na cena, do empresário norte-
americano, de nome Edward McMurdo6.

McMurdo, personagem controversa, assina, a 14 de Dezembro de 1883, um tratado com Lisboa


para a construção da linha férrea, para o que fora constituída uma sociedade anómina para
exploração da linha, cujas acções McMurdo negoceia nas bolsas de valores, tendo desta forma
obtido fundos de que não dispunha.

3
Nos melindres diplomáticos, Portugal assina, em Maio de 1879, um Tratado político com a Grã-Bretanha, em que se
reconhecem direitos comerciais e de acesso aos portos de Moçambique e, ainda, de estudarem conjuntamente a
construção da linha férrea de Lourenço Marques. Por razões do conflito político entre monárquicos e republicanos, esse
tratado nunca foi aprovado pelas Cortes Portuguesas.
4
Foi a 24 de Julho de 1875 que o Presidente da República francesa, o marechal Mac-Mahon, produziu a decesão
arbitral.
5
A figura de Machado tornou-se marcante. Os seus planos foram fundamentais para a execução da linha. Reconhecido
pelos seus serviços o presidente Kruger pretende recompensá-lo com uma quantia fabulosa para a época – 10 000 libras
de ouro ao que ele recusa, pois já tinha recebido pagamento pelo mesmo serviço de Lisboa. Em sua homenagem Kruger
dá o nome de Machadodorp, a uma das estações da via-férrea, que se mantêm ainda hoje.
6
McMurdo, foi um combatente da guerra da secessão nos EUA. Tratou-se de indivíduo habilidoso, sem capitais, mas
que conseguiu à custa de manobras políticas, atrair investidores para a sociedade anónima que controlava.

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As atribuições que seguem de McMurdo, e as suas maquinações legais constituem um


interessante caso de estudo histórico-juridico. Os trabalhos de construção interrompem-se, tudo
indicando para a má utilização dos meios financeiros obtidos e, devido a este facto, aliado à
pressão dos meios locais coloniais, o Governo Português, por Decreto assinado por Ressano
Garcia, cancela o contrato que havia celebrado com o norte-americano.7 Portugal termina, com
enormes dificuldades financeiras, o troço que faltava, de oito quilómentros, sendo a linha férrea
entre Lourenço Marques e Pretória inaugurada a 8 de Julho de 1895.

2.1.2.- A linha de Goba

O projecto de construção de uma ligação ferroviária entre Moçambique e a Swazilândia nasce em


1903 e a parte da construção do lado moçambicano é interrompida em Goba, em 1912, por falta
de resposta do outro lado da fronteira. Da mesma forma, a política regional, reflectida nos
transportes se faz sentir.8 As obras de finalização só tiveram lugar em 1964. A sua inauguração
teve lugar a 5 de Novembro de 1964, presidida pelo monarca Suazi, Sobhuza II.

2.1.3.- A linha do Limpopo

Desde 1902 que se ventilava, por parte das entidades da então Rodésia, a possibilidade de
construção de uma via-férrea que ligasse a região de Bulawayo a Lourenço Marques. Mas só em
1951 foi a empreitada iniciada na parte moçambicana, cujas obras terminaram em 1954, sendo
aberta ao tráfego a 13 de Fevereiro.

2.2.- O corredor da Beira

O corridor da Beira, para além do porto, é formado por duas linhas férreas – a de Machipanda,
operacional, que faz a ligação entre a capital de Sofala e Machipanda, na fronteira com o
Zimbabwe, e ainda a de Sena que, partindo da vila do Dondo, liga o porto ao Malawi,
indirectamente, à Zâmbia e à República Democrática do Congo.

A história da Cidade da Beira e a razão da sua existência interlig-se directamente com o porto e
com a linha férrea de Machipanda9. A dinâmica para a construção desta via deve-se,
fundamentalmente, aos esforços e à visão do Comissário Régio, António Enes e aos trabalhos
técnicos do militar Renato Baptista, a partir de 1891, cujas construções se iniciaram em 1893 e se
completaram em 1897.

A exploração do Caminho de Ferro da Beira foi atribuída, desde o seu início, a uma sociedade
britânica, denominada “The Beira Railway Company”, criada em 1892, cuja concessão foi
resgatada pelo Governo Português, em 1 de Outubro de 1949.10 O Porto da Beira foi, igualmente,
resgatado em Janeiro do mesmo ano. Em 1994 foram concluidas as obras do corredor da Beira

7
Assinale-se que os interesses polícos se manifestam neste jogo pela construção da linha férrea. Assim, o
presidente Paul Kruger, obtêm financiamentos para a parte da linha no Transval da Holanda, excluindo os
ingleses. Ora estes que tinham a moior parte das acções da sociedade comercial controladas por McMurdo.
8
A construção de ramais na RSA, desviava o tráfego swázi, sob dominação britânica, para os portos sul-
africanos.
9
De tal forma era estratégica a saida para o mar, que promovida por Cecil Rhodes, uma expedição inglesa
tentou em 1891, a tomada militar da Beira.
10
Publicado no Boletim Oficial no18, de 1949.

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que não só reabilitaram o porto e parte da componente ferroviária, como o apetrecharam


tecnicamente para os novos desafios.

2.3.- O Corredor de Nacala

A construção de uma linha férrea que ligasse a costa à região do Niassalândia era um velho sonho
português, até como forma de consolidar o seu domínio territorial contra as pretensões britâncas.

A linha do norte conheceu múltiplas etapas, e apenas em 1937 se coloca a hipótese de a “testa da
linha”, ou seja o seu ponto de saída para o mar, ser Nacala, pelas razões de ser um porto de águas
profundas. Nos meados de 1950 terminam as obras e a ligação por mar, de Nacala a Entre Lagos,
permitindo a ligação com o Malawi, passando a constituir a saída mais próxma para o mar deste
país sem litoral.

De 1830 em que se iniciam as construções das linhas férreas na Europa e no continente


americano, passando por 1860, data do primeiro troço férreo construido na região austral,11 uma
longa história foi decorrida. Os caminhos-de-ferro foram um dos factores que mais contribuiu
para o desenvolvimento e cooperação regional, ao ligar espaços e mercados nacionais.12

3.-E NQUADRAMENTO INSTITUCIONAL DO TRANSPORTE FERROVIÁRIO

3.1.- A administração ferroviária

O actual enquadramento institucional da estrutura pública ferroviária encontra-se consagrado no


Decreto nº 40/94, de 13 de Setembro13, que no âmbito da reestruturação do sector empresarial do
Estado transforma a Empresa Nacional de Portos e Caminhos de Ferro, enquanto empresa
estatal14, em empresa pública, com a designação do Portos e Caminhos de Ferro, EP,
abreviadamente CFM.

Dado que a maior parte da legislação interna dos CFM resulta de diplomas anteriores importa
traçar, de forma resumida a história desta empresa. Em 1931, pelo Diploma Ministerial nº 31515,
foram instituídos os Serviços dos Portos e Caminhos de Ferro, como uma empresa do sector
produtivo do Estado, gerida por princípios híbridos entre a gestão privada e pública, dotada de
personalidade juridica e autonomia financeira. Dentro deste contexto institucional, foi elaborada a
maior parte das normas da administração ferroviária e portuária ainda hoje vigentes,
nomeadamente, o documento legal fundamental - o Regulamento para a Fiscalização, Polícia e
Exploração dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo Decreto nº 47. 043, de 7 de Junho de 1966.

11
Tratou-se do percurso de dois quilómetros entre Durban e a localidade “Point”.
12
Na execução deste trabalho, foi utilizada a seguinte bibliografia: “História dos Caminhos de Ferro de
Moçambique”, de Pereira de Lima-3 volumes; “Caminhos de Ferro de Moçambique – um projecto colonial
ou de cooperação regional” de Maria Luisa Norton Pinto Teixeira e o trabalhe Margaret Elisabeth Northey,
intitulado “General Joaquim José Machado – a selective bibliography”.
13
Publicado no Boletim da República no 36 – 4o Suplemento.
14
Criada através do Decreto nº 6/89, de 11 Maio. Publicado no BR no19 – 2oSuplemento.
15
Publicado no Boletim Oficial no 34.

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Após a independência, o Ministro dos Transportes e Comunicações, através da Portaria nº 82/76,


de 6 de Abril,16 cria a Direcção Nacional dos Portos e Caminhos de Ferro, à qual fora atribuída
a continuação da personalidade jurídica dos Serviços dos Portos e Caminhos de Ferro. Como já
foi assinalado, em 1989, foi instituída a empresa nacional dos Portos e Caminhos de Ferro, que
se sucedeu à Direcção Nacional do mesmo nome, quanto à personalidade jurídica, tendo mantido
a continuação legal do regime administrativo.

3.2.- Os caminhos de ferro e o domínio público

Nos termos do no 3 do artigo18 do Decreto nº 40/94, de 13 de Setembro, a empresa pública CFM


integra bens próprios e bens do domínio público. A este propósito, o nº 2 do artigo 38 da Lei nº
3/2018, de 19 de Junho (que estabelece os princípios e regras aplicáveis ao Sector Empresarial do
Estado – SEE), estabelece que a Empresa Pública administra os bens do domínio público do
Estado afectos às actividades a seu cargo, devendo manter o respectivo cadastro actualizado.
Analisemos as seguintes disposições normativas do artigo 18 do Decreto nº 40/94, de 13 de
Setembro:

“Nº 3.- A empresa administra ainda os bens de domínio público do Estado afectos às actividades
a seu cargo.”

“Nº 4.- Os bens do domínio público do Estado afectos à empresa são inalienáveis e
emprescriptivieis”.

Em face destas disposições, importa determinar se as linhas férreas integram ou não o domínio
público. A resposta a esta questão deve encontrar-se a dois niveis de análise:

• no que toca aos terrenos em que as linhas se estendem;


• no que concerne às vias férreas, enquanto bens móveis propriamente ditos. Anote-se que
as linhas férreas são coisas compostas, porque são formadas por diversas outras coisas-
travessas, balastros, juntas, carris, etc., formando uma unidade funcional intrínseca.

Sobre a dominalidade pública, ensina, a doutrina, que no regime dos bens públicos verificam-se
os seguintes traços:

• Os seus sujeitos são pessoas de direito público – no caso em apreço é indubitável, pois os
CFM - E.P., são uma pessoa colectiva de direito público.
• É a lei que cria os bens de domínio público, que “define a sua extensão e atribui a sua
titularidade”, no dizer do ilustre Mestre do Direito Administrativo, prof. Marcello
Caetano. Ou seja, as linhas férreas, em qualquer das suas ópticas, só serão qualificáveis
de domínio público quando tal resultar de comando legal escrito.
• Trata-se de bens sujeitos ao Direito Administrativo e fora do alcance do Direito Privado.
Trata-se mais de uma consequência, do que uma característica propriamente dita, isto é,
se as linhas férreas forem efectivamente, domínio público a sua regulamentação legal é
do Direito Público e a sua jurisdição será a dos Tribunais Administrativos.

A questão deve antes de tudo ser analisada à luz da legislação constitucional. O art.98 no2 da
Constituição da República, contém uma enumeração dos bens que constituem o domínio público
do Estado, de entre os quais as vias-férreas. Não se acham, porém, referidos os terrenos sobre os

16 81
Publicado no Boletim da República no 40.

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quais repousam as linhas férreas. Note-se que o legislador constitucional deixa aberta a
possibilidade de a qualificação como parte do domínio público se encontrar nos “demais bens
como tal classificados”- (artigo 98, no 2, alínea g).

Relativamente aos terrenos em que assenta a linha férrea, há que encontrar a resposta em
legislação especial. Destaca-se assim, a Lei de Terras – Lei nº 19/97, de 7 de Outubro, que
enumera como zona de protecção parcial “os terrenos ocupados pelas linhas férreas de interesse
público e pelas respectivas estações, com uma faixa confinante de 50 metros de cada lado do eixo
da via”- (artigo 8, alínea f)). Por seu turno, o Regulamento da Lei de Terras, contido no Decreto
nº 66/98, de 8 de Dezembro, estabelece, na sua alínea e), do no 1 do artigo 6, que a aprovação dos
projectos de construção de infra-estruturas públicas tais como as linhas férreas e respectivas
estações, na faixa de terreno de 50 metros confinante, implica a criação automática de zona de
protecção parcial que as acompanham.

No que concerne às linhas férreas, o Regulamento para a Fiscalização, Polícia e Exploração


dos Caminhos de Ferro é peremptório a concluir que as linhas férreas integram o domínio
público, salvo, nos termos do no2 do artigo 1 desse diploma, relativamente aos “caminhos-de-
ferro de interesse privado ou restrito”.

Desta qualificação emergem importantes consequências práticas, como a não possibilidade de


“arresto, penhora, arrolamento, sequestro, ou qualquer outra providência cautelar dos bens
sujeitos ao regime do domínio público” – (artigo 4 no 1 do Regulamento para a Fiscalização,
Polícia e Exploração dos Caminhos de Ferro). De igual modo, constituem bens totalmente
impenhoráveis, nos termos da alínea d) do no 1 do artigo 822 do Código do Processo Civil.

Do exposto, pode-se concluir que a classificação do regime de terrenos sobre os quais assentam
as linhas férreas, parece não ser líquida enquanto bem integrante do dominio público, porquanto
não existe uma expressa qualificação legal nesse sentido, o que permite uma interrogação. Como
articular as linhas férreas, enquanto bens do domínio público, dissociadas do terreno em que se
inserem? Ora, necessariamente, o mais vale ao menos, ou seja, as porções de terreno, aonde
repousam as linhas férreas são igualmente bens de domínio público. Para além disso, existem
vários critérios para determinar a dominialidade dos bens. Um deles é o critério de afectação, ou
seja, destinam-se a uso comum17, critério que será aplicado aos “leitos” da via-férrea.

4.- O ACESSO À ACTIVIDADE DE TRANSPORTADOR FERROVIÁRIO

Não existe nenhum monopólio legal que impeça que entidades privadas exerçam a exploração da
indústria do transporte ferroviário. Na realidade esta assumpção tem como base o Regulamento
para a Fiscalização, Polícia e Exploração dos Caminhos de Ferro, porquanto, no seu no 3 do
artigo 1, lê-se:

“Os serviçps públicos ou as empresas privadas que explorem os caminhos-de-ferro...”

Pelo que, no plano legal, a empresa pública Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique - EP,
não goza de nenhum monopólio estatal. Esta realidade é reafirmada no preâmbulo do Decreto da
sua constituição, quando o legislador menciona os seguintes princípios de política programática

17
Nesse sentido o Prof. Marcello Caetano in “Princípios Fundamentais do Direito Administrativo”, Pág.
427.

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de pendor fortemente desintervencionista: “a nova empresa abrirá espaços para intervenção de


operadores do sector público e privado”.

Aliás, como se teve a oportunidade de analisar, historicamente muitos dos investimentos nas
linhas férreas foram feitas por entidades concessionárias privadas. Nos últimos tempos essa
tendência está a reconquistar o terreno, depois de alguns anos de aparente monopólio dos CFM,
nesta actividade.

CAPÍTULO II

TRANSPORTE RODOVIÁRIO
5.- ENQUADRAMENTO DA ACTIVIDADE DO TRANSPORTE RODOVIÁRIO

A actividade do transporte rodoviário é, basicamente, regulada pelo Regulamento do Transporte


em Automóveis e Reboques, aprovado pelo Decreto nº 35/19, de 10 de Maio18, daqui em diante
designado por RTA. Este diploma revogou o Decreto nº 11/09, de 29 de Maio.

Antes de procedermos à análise do regime juridico do transporte rodoviário, ressalte-se que o


legislador sujeitou o transporte público á legislação comercial, no que respeita aos contratos de
transporte (Cfr. art. 153). Pelo que o Decreto nº 35/19, de 10 de Maio, não derroga, de forma
alguma, o Código Comercial, nesta matéria. Desta forma, haverá que se ter em conta as normas
contidas no LIVRO III, Cap. VII do Titulo II, do Código Comercial.

6.- CLASSIFICAÇÃO DO TRANSPORTE RODOVIÁRIO

O RTA classifica o transporte rodoviário, em Público ou Particular, podendo cada um ser de


passageiros, de mercadorias ou misto, como também ser explorado no âmbito nacional ou
internacional.

O transporte automóvel será, à luz do disposto no nº 1 do artigo 5 do RTA, particular ou por


conta própria quando efectuado sem fins lucrativos ou comerciais por entidade singular ou
colectiva em que:

• O transporte constitua apenas uma actividade acessória da sua actividade principal;

• Os veículos sejam propriedade de uma pessoa singular ou colectiva, por sua exclusiva
conta e sem direito a qualquer remuneração directa ou indirecta.

Enquadra-se, ainda, no transporte particular ou por conta própria, nos termos do nº 2 do artigo
5 do RTA, designadamente, os transportes de hóspedes quando realizados pelos respectivos
estabelecimentos hoteleiros, de alunos, pelo estabelecimento de ensino e de trabalhadores ou
funcionários de uma instituição publica ou privada.

Já o transporte público ou por conta de outrem é, nos termos do nº 1 do artigo 7, do mesmo


Diploma, o transporte realizado em veículos automóveis da propriedade de pessoas singulares ou
colectivas, habilitadas a exercer a actividade, com fins lucrativos (cfr. para. 62 do glossário).

18
Publicado no Boletim da República no90 –I Série.

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O transporte público ou por conta de outrem pode ser explorado em regime de aluguer ou
colectivo, conforme dispõe o artigo 8 do RTA.

Os transportes públicos de aluguer são, nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 18 d RTA, transportes
por conta de outrem, destinados ao serviço comercial de interesse público, em que os veículos são
alugados no conjunto da sua lotação ou da sua carga e postos ao exclusivo serviço de uma só
entidade, segundo itinerário da sua escolha. É equiparado ao transporte de aluguer o transporte de
(i) mercadorias acompanhadas ou não pelos respectivos proprietários, desde que efectuado em
veículos de mercadoria ou misto, ou (ii) serviço funerário (cfr. alíneas a) e b) do nº 3 do artigo 18
do RTA).

O transporte público colectivo é aquele que é efectuado por meio de veículo automóvel utilizado
por lugar da respectiva lotação ou fracção da capacidade de mercadoria do veículo, obedecendo a
itinerários e horários previamente estabelecidos, podendo servir varias pessoas simultaneamente
sem ficar sem ficar exclusivamente ao serviço de nenhuma delas (cfr. para 46 do glossário).

Num outro plano, o destaca-se o transporte internacional, que é o que estabelece a ligação entre
o território nacional e o estrangeiro, com rotas previamente definidas (cfr. para 55 do glossário).

7.- CONDIÇÕES DE TRANSPORTE

O transporte público ou por conta de outrem deve, nos termos do nº 2 do artigo 7 do RTA, ser
efectuado em veículos automóveis de matricula nacional registados em nome do titular da licença
ou de quem tenha autorização de uso, gozo ou fruição. O nº 2 da mesma disposição legal, dispõe
que todas as licencas de veículos pertencentes à mesma empresa individual ou colectiva constam
de um único alvará titulado à empresa beneficiária.

É , nos termos do artigo 9 do RTA, vedado o transporte de passageiros em veículos automóveis


de mercadorias e de mercadorias em veículos automóveis de passageiros, exceptuando-se:

• O transporte de caçadores nos veículos de mercadorias em que se transportem cães,


durante a época venatória, desde que previamente autorizados pela entidade que
superintende a área de transporte rodoviário;
• O transporte de passageiros em veículos de mercadorias de caixa aberta, não basculante,
até ao máximo de 4 pessoas;
• O transporte de passageiros, em veículos de caixa aberta, não basculante, com peso bruto
ate 7000 kg, dos locais em que outras alternativas não se ofereçam, servindo de
alimentadores para os principais corredores e terminais, devendo reunir determinadas
condições, previstas no Regulamento.

A entidade licenciadora pode, ainda, autorizar, mediante uma licença ocasional, o transporte de
passageiros quando solicitado pelo proprietário do veiculo para efectuar serviços de casamento,
funeral, desporto, cultura, cerimonias oficiais, somente para uma viagem de ida e volta.

É vedado o transporte de animais em veículos de passageiros, excepto os de estimação quando


devidamente acondicionados.

8.- O LICENCIAMENTO DA ACTIVIDADE DO TRANSPORTE RODOVIÁRIO

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A matéria de licenciamento da actividade de transporte rodoviário público encontra-se tratada, do


ponto de vista do rigor jurídico, um tanto qunto confusa. Primeiro, pela sua dispersão, e segundo,
por impressão conceitual. O tratamento desta matéria tem como ponto de partida o nº 2 do artigo
10 do RTA, que dispõe: “A pessoa colectiva que pretenda obter licença para exploração da
atividade de transporte de passageiros e de mercadorias deve fazer prova de estar constituída
sob forma de sociedade comercial e registada na respectiva Conservatória.”

Esta estipulação presta-se a alguma confusão, na medida em que parece afastar a possibilidade de
as empresas públicas ou estatais - pessoas colectivas, indiscutivelmente, de Direito Público,
puderem obter licenças. Poder-se-á entender que a criação destas entidades, por entidade pública,
será suficiente para que o processo de licenciamento seja dispensado? Estamos inclinados a
concluir que sim, já que, por um lado, o nº 1 do artigo 10 daquele Diploma contempla a
exploração do transporte colectivo, uma das modalidades do transporte público, por “… pessoas
singulares ou colectivas…” e, por outro, o conceito de empresário comercial à luz do Art. 2 do
Código Comercial19, de 2005, inclui as pessoas singulares e colectivas, estas podendo ser públicas
ou privadas, bem como as sociedades comerciais. Ou seja, as empresas públicas ou estatais
exercem a actividade transportadora à luz do nº 1 do artigo 10 do RTA, e do nº 1 do artigo 2 do
Código Comercial.

Para além da condição essencial para a exploração da indústria de transporte público, prevista no
nº 2 do artigo 10, o RTA prevê requisitos específicos para o licenciamento de cada tipo de
transporte. Tais são os previstos no artigo 21 e seguintes, relativamente ao transporte
personalizado; do artigo 34 e seguintes, quanto ao transporte escolar; do artigo 47 e seguintes,
relativamente ao transporte turístico; do artigo 58 (2), relativamente ao transporte de aluguer sem
condutor; do artigo 61, relativamente ao transporte de aluguer de pronto-socorro; do artigos 64 e
65, relativamente ao transporte de mercadorias em automóveis pesados; dos artigos 69 e 70,
quanto aos transportes colectivos de passageiros; e do artigos 113 e 114, quanto ao transporte
internacional.

Em geral, os requisitos para o exercício da atividade de transporte rodoviário publico estão


previstos no artigo 12 do RTA.

O RTA consagra, no seu nº 2 do artigo 7, o princípio do registo nacional dos veículos, no


exercício da indústria de transporte público: “O transporte público deve ser efectuado em
veículos automóveis de matrícula nacional registados em nome do titular da licença ou de quem
tenha autorização, gozo, ou fruição”.

O RTA prevê, ainda, no seu artigo 11, a emissão de alvará, com validade de 10 anos, renováveis
por iguais períodos, às entidades singulares ou colectivas que se proponham dedicar-se à
exploração da actividade de transporte, devendo o respectivo pedido de emissão conter os
documentos referidos nas alíneas a) a e).

8.1- CLASSIFICAÇÃO DE LICENÇAS E SUA EMISSÃO

O artigo 14 do RTA classifica as licenças para a exploração da indústria de transporte rodoviário


de passageiros e de mercadorias em:

19
Aplicável subsidiariamente ao Direito dos Transportes.

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• Tipo A – Transporte Internacional de passageiros e de mercadorias; transporte inter-


provincial; transporte inter-urbano, abrangendo duas ou mais províncias; transporte
turístico e transporte de aluguer de veículos sem condutor;

• Tipo B – Transporte interdistrital de passageiros cuja exploração circunscreve-se a uma


província, transporte nacional de mercadorias, transporte escolar, transporte turístico e
transporte de pronto socorro;

• Tipo C – Transporte urbano, escolar, turístico, personalizado, e o transporte misto cuja


exploração se circunscreva à área sob jurisdição de uma autarquia local;

• Tipo D – Transporte colectivo, praça e misto cuja exploração se circunscreva à área sob
jurisdição do distrito; e

• Tipo E – Transporte ocasional de passageiros e mercadorias.

8.2- O TRANSPORTE RODOVIÁRIO COLECTIVO COMO SERVIÇO PÚBLICO

O artigo 70 do RTA estabelece que o transporte colectivo é efectuado por pessoas singulares ou
colectivas em benefício social, e o nº 1 do artigo 74, que os concessionários de carreiras
regulares, quando o interesse público o justifique, podem celebrar contratos de combinação de
serviço com outros concessionários. Por outro lado, o artigo 76 sujeita a concessão de carreiras a
concurso público.

Este quadro permite-nos equacionar se o transporte colectivo é ou não, a nível do Direito


constituído, um serviço público. Adiante-se que o RTA não trata, expressamente, o transporte
colectivo como um serviço público.

Aplicando alguns dos ensinamentos da doutrina estaremos diante de um serviço público de


carácter formal, pois respeita a uma actividade exercida no interesse geral, independentemente do
tipo de organização que a exerce. Como se sabe, nada impede que o serviço público seja gerido
por entidade privada.

No presente caso, importa acrescentar que o exercício da actividade de transporte colectivo, ao


estar sujeito ao licenciamento, afasta-se do acesso ao livre mercado e sujeita o concessionário a
deveres relativos à administração pública.

Assim, entendemos que, no quadro legislativo actual, o transporte rodoviário colectivo se integra
no serviço público, tendo carácter industrial e comercial.

O regime das concessões funciona na base das carreiras que são “as ligações entre diferentes
locais estabelecidos por colectivo com itinerários, horários e tarifas previamente aprovadas pela
entidade licenciadora” (cfr. para 15 do glossário). Essas carreiras podem ser regulares, expresso,
eventuais, e provisórias, podendo ser, quanto às localidades servidas, urbanas, inter-urbanas, e
inter-provinciais (cfr. artigo 75).

9.- A DESREGULAMENTAÇÃO LEGISLATIVA: O caso dos transportes semi-colectivos

Apontamentos ao 4° Ano do curso de Direito 10


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“A actual crise no transporte de passageiros a nível urbano deve-se à reduzida capacidade de


prestação de serviços pelo Sector Público, causando extraordinárias dificuldades à normal
circulação dos cidadãos e em particular dos trabalhadores. È devido a esta situação que os
Transportes Semi-Colectivos de passageiros têm vindo a desempenhar um papel de relevo,
constituindo uma alternativa válida.”
Preâmbulo do Diploma Ministerial n°15/95, de 7 de Fevereiro, de 1995, do Ministro do
Plano e Finanças.

Como foi assinalado, o transporte rodoviário, nos seus diferentes tipos, encontra-se profusamente
regulado com um marcante grau de intervenção do Estado na actividade.

O pormenor legislativo vai ao ponto de regular aspectos tais como, uniforme dos condutores,
cobradores e outros empregados dos concessionários. Por exemplo, quando em serviço, os
condutores de transporte personalizado não deverão tomar refeições dentro do veículo (cfr. alínea
f) do artigo 127).

Assinale-se que o Governo de Moçambique, a partir de 1976, viu-se na necessidade, voluntária


ou não, de intervir, não só a nível da regulamentação legal, como na gestão directa do sector do
transporte rodoviário. De facto, a maioria das empresas privadas que tinham como objecto da
actividade o transporte público de pessoas e mercadorias, actuando como concessionárias, foram
intervenciondas, ao abrigo das disposições do Decreto – Lei nº 16/75, de 13 de Fevereiro e dos
seus pressupostos. Parte do seu património reverteu para o Estado.

Algumas das empresas intervencionadas serviram de base para a constituiçãode empresas estatais,
como a ROMOS; a ROMOC; a ROMON e a CAMIONAGEM DE MOÇAMBIQUE20; outras
criadas de novo, como a RÁDIO TAXI.21 Outras ainda, resultaram da transformação de serviços
públicos geridos pelas autarquias locais, como os SMV, em empresas estatais, como o TPU-
TRANSPORTES PÚBLICOS URBANOS. Assiste-se mesmo à “nacionalização” dos táxis,
através da revogação das suas praças e licenças, por decisão dos Conselhos Executivos.
Restavam, é certo, alguns operadores privados22 que se sujeitavam ao plano central nas
importações de veículos e sobressalentes, em maifesta situação de desigualdade com o sector
público.

Este quadro permite concluir que o Estado, tanto por mecanismos resultantes da legislação, como
através dos instrumentos operativos das empresas estatais operadoras, controlava o mercado do
transporte rodoviário de forma quase monopolista.

Por razões diversas, empresários privados, empreedem a partir de 1984, nas margens da
legalidade, uma actividade de transporte de passageiros nos meios urbanos. Nascia assim um dos
mais importantes núcleos da indústria dos transportes o “chapa cem” que, eufemísticamente,
passa a ser designado como “semi-colectivo”.

Foi um fenómeno espontâneo, que pode ser apontado como um exemplo mais claro da outra
característica legal dos anos oitenta a “desregulamentação”, ou seja, a desintervenção legislativa
do Estado na vida económica. Os operadores do “chapa-cem” determinam, através das regras de
mercado, as suas tarifas, os seus percursos, etc.

20
Herdeira basicamente da Camionagem Automóvel dos CFM.
21
Que teve duração efémera.
22
Casos das empresas Oliveiras e Manuel Antunes.

Apontamentos ao 4° Ano do curso de Direito 11


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CAPÍTULO III

CONTRATO DE TRANSPORTE
CARACTERÍSTICAS GERAIS

1 - ENQUADRAMENTO JURÍDICO DO CONTRATO COMERCIAL DE TRANSPORTE

O contrato de transporte pode ser de passageiros, de mercadorias ou misto. Poderá assumir


diversas modalidades consoante o meio de transporte utilizado, nomeadamente, terrestre,
marítimo, fluvial, lacustre, ferroviário e aéreo – (Cfr. Art. 558 do Código Comercial23).

Nos termos do artigo 559 do mesmo Diploma o contrato de transporte é regulado pelas normas
legais que lhe sejam directamente aplicáveis em virtude do meio de transporte utilizado e pelas
disposições aplicáveis do respectivo Capítulo VII do Título II, do Livro III. Ou seja, as diferentes
modalidades de transporte estão sujeitas, primariamente, às normas legais especiais em virtude do
modo de transporte e, por conseguinte, às disposições aplicáveis do Código.

Assim, o quadro legal do contrato de transporte integrará, primariamente, entre outros Diplomas,
o RTA (Decreto nº 35/19, de 10 de Maio), quanto ao transporte rodoviário; o Regulamento para a
Fiscalização, Policia e Exploração dos Caminhos de Ferro (Decreto nº 47.043, de 7 de Junho de
1966), quanto ao transporte ferroviário; as disposições do Livro III do Código comercial de 1888,
relativamente ao transporte marítimo, que continua em vigor, em virtude do artigo 2 do Decreto –
Lei nº 2/2005, de 27 de Dezembro.

Como qualquer outro contrato comercial, importa ter em linha de conta que as normas pertinentes
do Direito Civil, nomeadamente, sobre teoria geral do negócio jurídico e dos contratos em geral,
ser-lhe-ão, subsidiariamente, aplicáveis.

1.1.-O carácter comercial do contrato de transporte

O contrato de transporte será um contatato civil ou comercial? O Código Civil não comporta
qualquer norma relativa ao transporte, no âmbito dos contratos em especial. Portanto, para a
legislação, civil trata-se de um contrato inominado e atípico, na medida em que não tem nome
próprio, nem qualquer regulamentação específica24.

Já o Código Comercial de 2005 enquadra-o no Cap. VII, do Título II, do Livro III (arts.557 e
seguintes), dando-lhe a seguinte definição:

“O contrato de transporte é aquele pelo qual uma pessoa se obriga a conduzir pessoas ou bens
de um lugar para o outro, mediante retribuição”.

23
Aprovado pelo Decreto – Lei nº 2/2005, de 27 de Dezembro.

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Nos termos do Art. 558, o contrato de transporte pode efectuar-se por via terrestre, marítima,
fluvial, lacustre, ferroviária e aérea.

Definindo o contrato mercantil, o Art. 458 do Código Comercial estabelece:

“É considerado como contrato mercantil, aquele que é celebrado pelos empresários comerciais,
entre si ou com terceiro, desde que no exercício da actividade empresarial”.

1.1.1.- O transportador como “empresário comercial”

O que é Empresário Comercial?

Nos termos do artigo 2 do Código Comercial, “são empresários comerciais:

a) as pessoas singulares ou colectivas que, em seu nome, por si ou por intermédio de terceiros,
exercem uma empresa comercial;

b) as Sociedades comerciais”.

O transportador, que quer pode assumir a forma de pessoa singular, assim como colectiva, é, na
verdade, um Empresário Comercial, porquanto, reúne os requisitos do Art. 2, conjugado com o
Art. 3, ambos do Código Comercial.

Articulando o regime comercial do transportador com o normado no RTA, as pessoas colectivas


privadas, titulares de licenças de transporte colectivo, assumem obrigatoriamente a forma de
sociedades comerciais (vide o já citado no 2 artigo 10).

Sabendo-se, porém, que a actividade de transporte é exercida pelo Estado e outras pessoas
colectivas de Direito Público, resta saber qual é o seu enquadramento, a nível daquele Diploma.
Como vimos supra, no ponto 8, este aparente desenquadramento legal tem a sua resposta no
próprio artigo 10 (1), pois, contempla a exploração do transporte colectivo por “… pessoas
singulares ou colectivas…” atraindo assim, para o seu âmbito, o Estado e outras pessoas
colectivas públicas.

2.- PRESSUPOSTOS DO CONTRATO DE TRANSPORTE

2.1.- Os Sujeitos: O transportador

Já se observou que o transportador num contrato mercantil é, verdadeiramente, um empresário


comercial. O que o caracteriza é operar por si próprio, ou através de terceiros uma empresa
comercial, a empresa de transporte. Veja-se, neste sentido, o artigo 2 do Código Comercial:

“O transportador pode fazer efectuar o transporte directamente por si, ou por intermédio de
terceiros.
§ Único: No caso previsto na parte final deste artigo, o transportador que primitivamente
contratou com o expedidor, conserva para com este a sua originária qualidade...”

Ou seja, independentemente de utilizar seus meios, ou de terceiros a sua qualidade de sujeito


permanece para com as outras partes.

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Note-se que a regra geral do artigo 2 do Código Comercial, sofre um desvio quanto ao transporte
público de passageiros, para o exercício do qual, o artigo 7 (2) do RTA impõe que deve ser por
veículos registados em nome de do titular da licença ou de quem tenha autorização de uso, gozo,
ou fruição.

2.1.1.-Os transportes sucessivos

A possibilidade de intervenção de vários transportadores numa deslocação, em face do artigo 2 do


Código Comercial, apresenta uma complexidade particular, essencialmente convergente com a
responsabilidade do transportar. Enunciemos o quadro jurídico possível do transporte sucessivo:

O Transporte por correspondência, em que os transportadoras se sucedem, no percurso total do


passageiro ou da mercadoria, formando-se novos contratos. Nesta eventualidade haverá tantos
contratos, quantos os modos de transporte utilizados25;

O transporte cumulativo, quando o transporte se efectua pelo mesmo modo de transporte, a


coberto do mesmo contrato, mantendo nesta situação o primeiro transportador a responsabilidade
para com o passageiro ou expedidor/destinatário da meracadoria;

O transporte multimodal ou intermodal. Nesta modalidade são pelo menos utilizados dois modos
diferentes de transporte, a coberto do mesmo contrato de transporte.

O transporte multimodal é relativamente recente. Nasce nos princípios dos anos setenta, com a
necessidade de se assegurar um sistema integrado de transporte. Permite, com o mesmo
documento de transporte, que uma determinada mercadoria seja transportada “porta a porta”,
assegurando redução de custos, de tempo e uma maior segurança. É essencialmente utilizada no
transporte de mercadorias. O documento emitido no transporte multimodal ou intermodal chama-
se “documento combinado”.

Para regular as questões emergentes do Direito Internacional Privado, nos contratos de transporte
multimodal, foi adoptada a CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE O TRANSPORTE
MULTIMODAL INTERNACIONAL DE MERCADORIAS26, assinada em Genebra, a 14 de Maio
de 1980. Este tratado multilateral aplica-se, nos termos do no1 do art.1 na:

“Deslocação de mercadorias utilizando, pelo menos, dois modos diferentes de transporte, em


virtude de um contrato de transporte multimodal, desde um lugar situado no país em que o
operador de transporte multimodal toma a mercadoria sob a sua custódia, até outro local
designado para a sua entrega, situado em país diferente”.

No escopo da referida Convenção as mercadorias têm que estar unitizadas, ou seja, contidas em
contentor ou em palete, ou outra unidade de transporte. Aliás, a razão histórica da facilitação e do
sucesso do transporte multimodal resulta da introdução dos contentores, como forma de
embalagem das mercadorias a transportar.

25
A doutrina italiana aponta que no transporte por correspondência, os transportadores têm a obrigação de
cooperar entre si, por forma a dar continuidade à cadeia da deslocação. P. ex.- e por todos VIVANTE.
26
Moçambique não é parte e ela própria ainda não entrou em vigor, em virtude de não ter reunido até aqui
o nr. De ratificações necessárias para o efeito.

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2.1.2.- As empresas Públicas e estatais como transportadoras

O sector empresarial do Estado assumiu importante peso económico, pelas coordenadas políticas
definidas na Constituição.

No quadro legislativo, a Lei nº 2/81, de 30 de Setembro, ora revogada pela Lei nº 3/2018, de 19
de Junho, criou o Estatuto Tipo das Empresas Estatais. Ao abrigo dessa Lei-tipo, algumas
empresas de transporte foram constituídas, e outras regiam-se por forma pouco clara, por essa
mesma legislação, através do recurso a uma figura conhecida por empresa estatal (em
formação)27.

As empresas estatais, muito embora o legislador não afirme expressamente, eram pessoas
colectivas de Direito Público, sujeitas ao Direito Público. Esta conclusão resulta do seu regime
legal (criação administrativa dos órgãos do Estado, não sujeição à falência, incompetência dos
tribunis comuns em dirimir litígios entre si, entre as principais características).

Dentro das grandes alterações constitucionais introduzidas com a revisão da Constituição em


1990, foi aprovada a Lei nº 15/91, de 3 de Agosto, visando a restruturação do aparelho
empresarial do Estado, de que resultaram diferentes alternativas de saída:

• transformação das empresas estatais em empresas públicas, quando se situassem em


sectores estratégicos da economia nacional;

• privatização, através da transformação em sociedades comerciais;


• alienação28.

Este quadro sofreu algumas alterações, em virtude da Resolução nº 11/92, de 5 de Outubro. Com
a revogação da Lei nº 2/81, de 30 de Setembro, deixaram de existir as Empresas Estatais. No
entanto, ao longo de todo o período da sua existência, foram sujeitos de direito público.

As empresas públicas são pessoas colectivas de Direito Público? Qual o regime jurídico aplicável
às suas actividades?

Diz o art. 4 da Lei nº 3/18, de 19 de Junho (que revogou a Lei nº 6/2012, de 8 de Fevereiro):

“O Sector empresarial do Estado, [contidas as empresas públicas, por força do artigo 1 do


mesmo diploma legal], rege-se pelo direito privado, pelas normas da presente Lei, pelos
diplomas legais de criação, de constituição e demais legislação aplicável.

Ou seja, às empresas públicas, o Direito Privado será, subsidiariamente, aplicado para as matérias
que não se encontrem reguladas na Lei nº 3/18, de 19 de Junho, e no diploma de sua criação.

27
Devido a estas irregularidades o legislador, através do Decreto N° 14/93, de 14 de Setembro, publicado
no BR N°36 – Suplemento, determinou que “as unidades económicas de propriedade do Estado que
careçam de personalidade juridica… poderão ser transformadas em sociedades comerciais de capitais
públicos .”
28
Será discutível se a extinção da empresa estatal será ou não possível. Defendemos que sim e que trata-se
de alternativa contida implicitamente na Lei-Tipo das Empresas Estatais. Algumas Empresas Estatais,
ligadas ao sector dos transportes, foram extintas. É o caso da ANAVIA, ESOF e EMAP.

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Reduzindo a temática genérica às especialidades dos transportes, retenha-se, antes de mais que, o
contrato de transporte comercial é, não só de um acto de comércio objectivo, como ainda d’um
acto de comércio absoluto29.

Importa ainda lembrar o artigo 5 do Código Comércial, que consagra a teoria da unidade, aos
actos bilaterais, em que uma parte é comerciante e outra não. Os actos mistos sujeitam-se á
legislação comercial relativamente a ambas as partes.

Retenha-se ainda que a empresa de transportes é considerada comercial - cfr. artigo 3. Retenha-
se, igualmente, e por último, que o legislador comercial considera como transportadoras as
“pessoas colectivas”, que não se limitam às sociedades comerciais.

Este enquadramento permite-nos equacionar algumas questões com implicações para o Direito
dos Transportes. Assim,

• quando uma empresa pública, que seja transportadora, formule um contrato de transporte
com outra empresa pública a Legislação aplicável será o Direito Comercial, se o contrato
tiver a natureza mercantil e não actuarem imbuidas de jus imperii.
• quando o transportador seja uma empresa pública e o expedidor um comerciante, o acto
será, de igual modo, regulado pela legislação comercial, por força do artigo 5 se se tratar
de um acto misto.
• o mesmo se aplica à situação inversa, comerciante, transportador e expedidor, empresa
pública.

É comumente aceite na doutrina que as empresas públicas possam ser comerciantes, se bem que
as bases da sua fundamentação sejam diferentes30. Mas esse facto não significa que o quadro de
direitos e obrigações, tal como definido pelo Código Comercial, seja aplicado na sua plenitude,
como a não sujeição á falência.

2.2.-Os sujeitos: passageiro, expedidor/ destinatário

No contrato de transporte de passageiros, para além do transportador o outro sujeito será,


obviamente, o passageiro.

No contrato de Transporte de mercadorias, a situação é mais complexa. Quem entrega a


mercadoria chama-se Expedidor, (ou Remetente) e ainda por vezes de Carregador. A pessoa a
quem é enviada, toma o nome de Destinatário.

Mesmo que o expedidor e destinatário se confundam na mesma pessoa singular ou colectiva, não
se verifica qualquer alteração na posição dos sujeitos do contrato de transporte. A cada um
pertencem direitos e deveres específicos. Nem se verifica qualquer confusão, no sentido de
extinção da obrigação.

29
Cite-se, a este propósito, o dr. Miguel Pupo Correia “a mais importante dessas actividades (de prestação
de serviços) é a de transporte que, intervindo em todas as actividades humanas e em todos os estádios de
evolução económica e social, tem relevantíssima importância functional para outros ramos económicos.
Daí que a actividade transportadora seja, desde sempre, considerada como comercial” – in “Direito
Comercial” – pag. 63 – 64.
30
Posição de Lobo Xavier, Menezes Cordeiro, Oliveira Ascenção, Simões Patrício, entre outros, na
doutrina portuguesa.

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2.2.1.-A posição particular do destinatário

Que existe de sui generis no contrato de transporte de mercadorias, ao estabelecer-se uma


triângulação de direitos e deveres entre os sujeitos indicados? Detalhe-se:

• Em primeiro lugar, na formação do contrato apenas intervêm o expedidor e


transportador.
• Em segundo lugar, a relação jurídica que existe entre o expedidor e o destinatário é, em
princípio, do desconhecimento do transportador. Trata-se, para ele, de res inter alios
acta.
• Acresce – se que da formação deste contrato emergem direitos e obrigações para o
Destinatário. A ele compete, nomeadamente, proceder ao levantamento da mercadoria,
reclamar sobre danos ou perdas verificados durante o transporte, exercer judicialmente os
direitos de acção contra o transportador.

Várias posições doutrinárias pretendem explicar este particularismo.

a) Contrato em favor de terceiro. Recorde-se que este tipo de acordo é uma das fontes das
obrigações, encontrando-se regulada no artigo 443 e seguintes do Código Civil.
Genericamente, num contrato a favor de terceiro verifica-se a formação de um acordo
entre duas partes, para proporcionar, directamente, uma vantagem a um terceiro, que
consiste normalmente num direito de crédito31. Este direito constitui-se,
independentemente, da aceitação do terceiro, mas este pode rejeitar a promessa,
conforme estipula o no 1 do artigo 447 do Código Civil.
Seria o que se verificava no contrato de transporte. O Expedidor e Transportador
formulam o contrato, que se irá repercutir na esfera jurídica do destinatário.

Crítica: Esta tese comporta vários senãos. Assim, em primeiro lugar, a execução do
contrato de transporte não fica na dependência da aceitação ou rejeição do destinatário.
Este assume as suas obrigações desde que a guia de transporte é emitida32. Acresce-se,
também, que não é só o destinatário que tem um direito sobre o transportador. Este
possui, de igual modo, direitos de crédito sobre o destinatário.

Como tal não deve ser aceite.

b) Cessão de créditos. Para esta corrente o que se verificaria seria depois da formação do
contrato, o expedidor ceder os seus direitos de crédito ao destinatário, que assumiria a
posição de cessionário. A cessão de créditos é uma das formas de transmissão das
obrigações, prevista no art. 577 do Código Civil.

Crítica: A cessão de créditos pressupõe um negócio jurídico para efectuar a


transmissão, ex vi no 1 do artigo 578. Ora, no contrato de transporte, tal negócio é
inexistente. A indicação do destinatário é um elemento essencial do contrato e deve,
desde logo, ser conhecida pelo transportador.

31
Seguindo os ensinamentos do Prof. Inocêncio Galvão Telles, in “Direito das Obrigações – Súmula”, pág.
83.
32
Adiante-se que a Guia de Transporte, de que falaremos mais adiante, é o documento que evidencia as
condições do contrato de transporte de mercadorias.

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c) Direito próprio dos transportes. Esta é a posição dominante que encontrou eco na
jurisprudência francesa e italina. Sustenta-se que a explicação da posição particular do
destinatário, enquanto sujeito da relação jurídica, se deve ao próprio direito dos
transportes, sendo um dos seus institutos particulares33. O destinatário terá um direito
directo contra o transportador, mercê do próprio contrato.

2.2.2.- O consignatário

Por vezes, fica estipulado que a mercadoria não é enviada directamente ao destinatário, mas sim
a outra entidade denominada- consignatário. Este actua por conta do destinatário na recolha das
mercadorias.

A relação jurídica entre o destinatário e o consignatário não se estabelece no contrato de


transporte, mas num contrato diferente, designado por contrato de consignação.

Perante o transportador, o consignatário é um mandatário do destinatário. Todos os direitos e


obrigações que incumbem ao destinatário são assumidos, por inteiro, pelo consignatário. Se, por
exemplo, o consignatário não reclamar junto do transportador, os danos resultantes de perda total
ou parcial da mercadoria transportada, no prazo legal- artigo 590, neste caso o transportador fica
exonerado das suas responsabilidades.

2.3.- O objecto: deslocação

A deslocação é o elemento mais determinante e mais característico do contrato de transporte. A


deslocação constitui o objecto do contrato. Da deslocação, emergem os seguintes efeitos práticos
e vínculos jurídicos:

• Define-se o modo de transporte;


• Define-se o ponto da partida e ponto de chegada;
• Determina-se o itinerário;
• Determina-se a duração da execução do contrato.

2.3.1.- Distinção de contratos similares

O elemento deslocação permite distinguir o contrato de transporte de outros contratos similares.


Apontem-se alguns exemplos:

• Contrato de aluguer de viaturas sem condutor. Trata-se de um contrato de locação e


não de transporte, porque neste, o itinerário é previamente determinado, ao passo que
no aluguer de viatura a escolha desse mesmo itinerário pertence ao condutor da
viatura, que tem inclusivamente o arbítrio de decidir sobre o uso ou não da viatura.

• Contrato de depósito, pois o depositante recebe uma coisa e obriga-se a entregá-la,


no mesmo local, não lhe competindo efectuar a sua deslocação. Por vezes pode,
através de uma união de contratos, coexitir com o contrato de transporte.
33
Esta teoria é aplicada aos diferentes modos de transporte, já que a formulação teórica é igual, o que
sustenta uma vez a autonomia substancial do Direito dos Transportes.

Apontamentos ao 4° Ano do curso de Direito 18


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• Contrato de mudança de mobiliário. Neste convénio, verifica-se uma união de


contratos34. A deslocação, ou o transporte é parte acessória do contrato principal, o
qual terá a natureza de um contrato de locação de serviços.

• Contrato de venda ao domicílio. Trata-se de igual modo de uma união de contratos,


em que o contrato principal reveste a natureza de compra e venda. O transporte será
um elemento acessório.

• Contrato de reboque. A destrinça entre este contrato e o de transporte nem sempre é


fácil. O critério a utilizar depende de quem tem a direcção do veículo utilizado no
reboque. Assim será contrato de transporte quando o veículo que efectua o reboque
tenha o controlo da operação. Determina a deslocação, tal como definida. Se as partes
apenas convencionam a contratação da força de tracção, mantendo o rebocado a
direcção do itinerário, estaremos perante um contrato de locação de serviços.

3.-NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO DE TRANSPORTE

Pelos elementos menciondos estamos em posição de dar uma definição ao contrato comercial de
transporte.

Contrato de transporte é a convenção pela qual uma pessoa se obriga a conduzir pessoas ou bens
de um lugar para o outro, mediante remuneração.

Desta definição podem-se demarcar alguns elementos, quanto á sua natureza jrídica dentro da
classificação dos contratos.

3.1.-Contrato consensual

É um contrato consensual porque a sua formação não depende de forma especial prescrita por lei.
A sua celebração depende apenas do acordo de vontades entre as partes contratantes.

3.2.- Contrato sinalagmático

“Os contratos dizem-se sinalagmáticos quando derem lugar a obrigações recíprocas, ficando as
partes, simultaneamente, na situação de credores e devedores e coexistindo prestações e
contraprestações”, afirma o Prof.Menezes Cordeiro35. O transportador encontra-se vinculado a
uma pesrtação no contrato de transporte de passageiros ou mercadorias - deslocá-los. O
passageiro e/ou o expedidor têm para com o transportador uma contraprestação, o pagar - o
bilhete, ou o frete. É por isso um contrato sinalagmático.

3.3.- Contrato oneroso

34
No sentido em que os dois contratos mantêm a sua individualidade, mas encontram-se interligados na sua
execução. Neste sentido o Prof. Inocêncio Galvão Teles, in “Dos contratos em geral”.
35
In “Direito das Obrigações” vol I, pág. 422.

Apontamentos ao 4° Ano do curso de Direito 19


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Estaremos perante um contrato oneroso, citando o Prof. Menezes Cordeiro “quando implique
esforços económicos para ambas as partes, em simultâneo, e com vantagens correlativas36”.

Efectivamente, estes pressupostos verificam-se no contrato de transporte. O utente ao remunerar o


transportador sofre uma diminuição do seu património. O transportador ao deslocar a pessoa ou
mercadoria, suporta igualmente custos económicos.

3.4.- Contrato real “quoad constitutionem”

É matéria aparentemente controvertida a inclusão do contrato de transporte dentro da


classificação dos “contratos reais quoad constitutionem” (como são exemplos o penhor, o
contratos de comodato, o contrato de mútuo, dependendo a sua eficácia de entrega da coisa).

Há quem defenda que não se concebe o transporte sem pessoa ou coisa a transportar. Para os
defensores da inculsão do acordo deste transporte nesta categoria, a celebração do contrato teria
apenas efeitos de um “contrato promessa”.

Ora esta posção, afigura-se-nos que não deve ser aceite, porquanto:

• a entrega da mercadoria refere-se ao momento da execução do contrato e não á sua


formação;

• Não se explica como o expedidor pode ser obrigado a pagar o frete por inteiro ou em
parte - designado por frete morto, quando não apresenta a mercadoria em devido tempo
ou no local acordado. O frete morto não é uma cláusula penal de um contrato promessa,
mas sim uma indemnização resultante do contrato de transporte, o que indca que o
contrato produziu efeitos logo após a sua conclusão37. O mesmo se deve aplicar ao
passageiro que não se apresenta ao embarque no tempo acordado. Normalmente esta
figura é conhecida como “no-show”, sendo vulgar no mercado da aviação comercial.

• Nem, por último, se permite uma explicação de como se processa a “entrega do


passageiro” ao transportador. O passageiro pode ser reduzido á categoria da “coisa”.

2.- O CONTRATO DE TRANSPORTE COMO CONTRATO DE ADESÃO

Estando a validade da celebração de um contrato dependente da manifestação livre de duas


vontades, é legítimo inquirir se os contratos de transporte podem ser integrados neste tipo de
negócio jurídico. Isto porque, por via de regra o seu contéudo encontra-se previamente fixado,
limitando-se a outra parte a aderir ao contrato tipo.

Esta temática interliga-se á problemática dos contratos de adesão que se caracterizam por existir
um conteúdo pré-fixado, dirigido a uma generalidade de pessoas. O mundo actual, sobretudo no

36
In “Direito das Obigações” vol I, pág. 426 e igualmente em “Teoria Geral do Direito Civil”, Vol I, pág.
536.
37
O frete morto ou o no-show do passageiro só podem ser aplicados quando as condições de transporte o
expressem.

Apontamentos ao 4° Ano do curso de Direito 20


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que toca ao transporte urbano de passageiros não se compadece com uma livre e prévia discussão
das condições do transporte. O contrato de transporte, salvo excepções, é um contrato de adesão
que “é uma manifestação fatal da sociedade de massas e... corresponde à racionalidade técnica da
sociedade actual”, no entender do Prof.Oliveira Ascensão.38

Os contratos de adesão têm suscitado uma larga controvérsia doutrinária, não só pela sua natureza
jurídica, como pelos seus efeitos, ao consagrar o domínio de uma parte sobre a outra, mercê da
sua posição de domínio no mercado, ou poderio económico. Como forma de se defenderem os
interesses da parte mais desfavorecida, ou seja, daquela cuja vontade se manifesta por aceitar ou
rejeitar em bloco a proposta contratual, alguns ordenamentos jurídicos têm produzido normas no
sentido de proteger as condições elementares para que a liberdade contratual e o princípio da
equidade se manisfestem. A forma usual da produção dessas normas é através das claúsulas
contratuais gerais.39

Assinale-se que é usual nos diferentes contratos de transporte as condições gerais serem escritas
em letras minúsculas e impressas a cores que dificultem a sua leitura, com prejuízo manifesto
para as outras partes contratantes.

CAPÍTULO IV

TRANSPORTE DE PASSAGEIROS
1- CONTRATO DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS

1.1.- Características gerais

1.1.1.- Definição e âmbito

O contrato de transporte de passageiros é a convenção pela qual o transportador se obriga a


conduzir um passageiro até um local, precisamente, determinado, são e salvo – Vide artigo 565
do Código Comercial.

O requisito são e salvo pode parecer uma redundância, mas importa ser reafirmado na medida em
que indica de forma peremptória que o transportador deve ter o seu equipamento em estado de
manutenção adequado e os seus condutores habilitados de forma a assegurar que a deslocação do
passageiro não esteja sujeito a riscos desnecessários. Por outro lado, este requisito, denota que
serão irrelevantes as cláusulas que o transportador introduza, derrogando a responsabilidade por
danos causados ao passageiro e bagagem, em caso de acidente por causas imputáveis á empresa
transportadora – Vide nº 5 do artigo 565 do Código Comercial.

O contrato de transporte de passageiro abarca também o transporte de bagagens do viajante,


condicionado a um determinado peso ou volume. O transporte de bagagens do passageiro não é

38
In “Teoria Geral do Direito Civil” - 3° Vol. Pag.369.
39
“As cláusulas contratuais gerais surgem como um instituto à sombra da liberdade contractual … As
padronozações negociais favorecem o dinamismo do tráfego jurídico, conduzindo a uma racionalização …
mas não se deve esquecer que o predisponente pode derivar do sistema certas vantagens que signifiquem
restrições, despesas ou encargos menos razoáveis para os particulares”, citando o Prof. Menezes Cordeiro/
Almeida Costa In “Cláusulas contratuais gerais”, pág.11.

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um outro contrato, nem um contrato acessório, mas um acto emergente do próprio contrato de
transporte do passageiro – Vide o artigo 116 e seguintes do RTA e o artigo 561 do Código
Comercial.

1.1.2.- Requisitos formais

O contrato de transporte de passageiros segue na sua celebração as regras do direito civil quanto á
formação dos contratos. Como se disse, trata-se de um contratual consensual, evidenciado por um
meio de prova - o bilhete.

Em que momento se pode considerar como celebrado o contrato? Na entrada do passageiro no


veículo, ou aquando da aquisição do bilhete?

Se existe uma compra antecipada do título de transporte, por parte do passageiro, o contrato é
celebrado na aquisição desse bilhete e os seus efeitos jurídicos são produzidos a partir desse
momento. Se o título for adquirido no próprio veículo, o contrato inicia a produção dos seus
efeitos a partir desse acto.

1.1.2.- A capacidade jurídica: casos especiais

A capacidade jurídica das partes intervenientes no contrato de transporte é condição da sua


validação. Esta afirmação não merece qualquer contestação, porque emana dos princípios gerais
do Direito Civil. A sua tradução, para o plano prático, no Direito dos Transportes, levanta alguns
problemas específicos.

O transporte urbano de passageiros é um transporte de massas. Menores, surdos-mudos, invisuais,


utilizam diariamente essa forma da deslocação. Pergunta-se se havendo incapacidade de exercício
podem os incapazes de exercício celebrar um contrato de transporte legalmente válido?

Entendemos que a resposta se deve situar a diferentes níveis. Assim,

• em relação aos menores: o negócio será válido se recair dentro dos pressupostos da alínea
b) do no 1 do artigo 127 do Código Civil, que consagra a validade dos negócios dos
menores decorrentes da sua vida normal que impliquem despesas de pequena
importância.

• caso o contrato de transporte tenha sido celebrado por um menor sem autorização, com
um valor mais avultado40, o negócio poderá ser anulável - artigo125 do Código Civil,
salvo havendo dolo, nos termos do artigo 126.

• mutatis mutandi quanto aos interditos, por força do disposto no artigo 139 e aos
inabilitados artigos 156, todos do Código Civil.

Mas o puro plano dos rigores normativos encontra-se definitivamente confrontado, com a vida
prática. Autores apontam que o interesse colectivo se sobrepõe aos princípios individualistas,
tentando desta forma explicar a prática neste domínio.

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2.- Autómatos na formação dos contratos

Nas grandes cidades no transporte urbano, a venda de bilhetes feita por empregados do
transportador tem sido substituida por máquinas em que a escolha do trajecto é ordenada pelo
passageiro à máquina, e esta produz o respectivo título, aceitando o pagamento e efectuando, em
determinadas circunstâncias, os respectivos trocos.

Este automatismo tem colocado problemas de enquadramento jurídico. Em primeiro lugar, para
se determinar se é legítima a celebração de um negócio jurídico entre uma pessoa jurídica e uma
máquina - autómato ou computador - Já que por mais que a inteligência artificial exista, não são
consideradas por nenhum ordenamento jurídico como pessoas jurídicas. A resposta a esta
primeira questão resulta, nesta fase do desenvolvimento da sociedade, de que a máquina foi
programada pelo homem, donde que ela reproduz a vontade humana.

Em segundo lugar, como classificar essa actividade jurídica, dentro da formação dos contratos.
Parece-nos que a doutrina defendida por LARENZ, tratando-se de uma oferta ao público, o
declarante (no nosso caso o passageiro) limita-se a aceitar as condições genéricas que a máquina,
actuando de acordo com o programa introduzido lhe oferece.

3.- Particularismo do transporte quanto ao contrato de adesão

Estando o contrado de transporte de passageiros regulamentado, como se irá analisar, em


questões tarifárias e de alguns devedores genéricos dos passageiros e transportadores, e sabendo-
se que um contrato aprovado por regulamento não entra na categoria de contratos privados, pode
suscitar-se a dúvida, em face da regulamentação actual sobre a natureza jurídica, sobre esses
contrados.

Ora, o contrato de transporte de passageiro, nas suas modalidades rodoviárias e ferroviária, não
deixa de estar no âmbito privado e na categoria de contratos de adesão. Isto porque os termos do
contrato não são aprovados por imposição da lei, mas existe uma margem (miníma é certa) da
liberdade contratual, e nem o facto de poderem ser aprovados os transforma em contratos
administrativos. Cite-se, a este propósito, prof. Oliveira Ascensão: “Não há, porém, ainda
regulamento, se as cláusulas forem objecto de uma aprovação administrativa. Não obstante a
aprovação, continuam a ser autónomos”41 .

4.- Enquadramento legal

4.1.- No Código Comercial

O contrato de transporte de passageiros encontra-se regulado nos artigos 561 e seguintes do


Código Comercial de 2005.

41
In Teoria Geral ... Vol III, pag. 376

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4.2.- Na legislação ferroviária e rodoviária

O Decreto nº 47 043, de 6 de Junho de 1966, que como já se mencionou contêm o


REGULAMENTO PARA A FISCALIZAÇÃO, POLÍCIA E EXPLORAÇÃO DOS CAMINHOS
DE FERRO, enquadra alguns aspectos do regime jurídico do transporte ferroviário de
passageiros.

De igual modo o já citado Decreto n° 11/09, de 29 de Maio, dedica diversas disposições ao


transporte de passageiros.

5.- O transporte ferroviário de passageiros

Neste diploma estão reunidas as normas relativas aos transportes de passageiros por cominhos de
ferro. Analisemos os principais pontos. Nos termos do artigo 39, o passageiro deve munir-se de
um bilhete, que o habilita ao transporte e impõe um vínculo obrigacional ao transportador. O
bilhete é a prova da celebração de um contrato. Caso uma pessoa seja encontrada a viajar “sem
bilhete ou bilhete não válido e se recuse ao pagamento do transporte... será condenado em multa
igual ao décuplo da importância total que lhe for devida pela viagem que fizer” (art. 39 no2).

Existe, assim, um mecanismo de prova que se presume de quem não se encontre na posse do
título de transporte, se encontra em situação irregular.

Em relação á responsabilidade civil do transportador ferroviário o REGULAMENTO estabelece


os seguintes pressupostos, no art.67:

ü A qualidade do passageiro “só se adquire após a obtenção do bilhete;


ü A responsabilidade do transportador inicia-se “no momento em que o passageiro se
confia ao transportador se confia ao transportador e enquanto dura esta situação “.
ü Os actos de subida a descida do passageiro são da sua responsabilidade.
ü O diploma estabelece os seguintes principios gerais sobre a responsabilidade civil, no art.
62 que se transcreve:

“No1 a empresa responde pelas perdas e danos que causar ás pessoas e á proprieda alheia...
“no2 – Em tudo quanto não esteja expressamente previsto neste Regulamento aplicar-se-ão as
normas dos diplomas legais e dos regulamentos especiais sobre a responsabilidade do transporte
que não contrariem o disposto na lei geral sobre a matéria da responsabilidade civil”.

Em seguida, o REGULAMENTO, estabelece regras específicas, no art. 64 que se transcreve,


sobre o regime da responsabilidade do transportador ferroviário:

1.- Cumpre á empresa indemnizar os passageiros de todos os prejuízos que sofrerem nas suas
pessoas em consequência de acidente, salvo se demosnstrar que o acidente foi produzido por
caso fortuito, força maior, culpa da vitíma ou de terceiro.
2.- Quando se trate de danos em valores de mão ou animais que os passageiros levem consigo só
haverá lugar á indemnização na medida em que aqueles danos sejam susceptíveis de avaliação
directa”.

6.- O transporte rodoviário de passageiros

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O Decreto n. 35/19, estabelece de igual modo alguns princípios. O uso do bilhete é obrigatório
(arts. 103 e 104 (2)). Os bilhetes das carreiras terão menções obrigatórias, nomeadamente, o nome
da empresa concessionária: o nome e contactos da empresa concessionaria; a indicação da data da
viagem e período de validade; o percurso, o preço e o número do bilhete (art. 105). Confere ainda
o direito ao transporte gratuito de bagagem no interior dos veículos, desde que pelas suas
dimensões e natureza, não incomodem os restantes passageiros e prejudique ou danifique o
veículo, nas carreiras urbanas (art. 118). Os passageiros que viagem em veículos afectos a
carreiras interprovincial e internacional têm direito ao transporte gratuito de 20kg de bagagem
(art 116). Para além do disposto nos artigos 122 e 123, não estabelece qualquer regime especial
quanto á responsabilidade civil do transportador, pelo que se aplicam, supletivamente, as normas
do Código Civil.

CAPÍTULO V

CONTRATO DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS


1.- CONTRATO DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS:

1.1. ENQUADRAMENTO LEGAL

As bases legais do contrato de transporte terrestre de mercadorias encontram-se reguladas no


Título II, do Livro III do Código Comercial. O legislador admite legislação especial sobre o
transporte, sendo as normas do Código Comercial, aplicáveis desde que compatíveis com as da
legislação especial. Portanto, as normas da legislação especial têm precedência sobre as gerais
contidas no Código Comercial.

No caso particular do transporte rodoviário, já se notou que o art.153 do RTA, faz sujeitar á
legislação comercial os contratos de transporte.

1.2.- A formação do contrato

Para além das capacidades jurídicas das partes intervenientes no acordo, exigindo duas
declarações de vontade de sentido oposta válidas.

No entanto, na maiorea das vezes, a proposta contratual do transportador é uma oferta ao público,
feita pelo transportador ao público em geral. Este oferece os seus serviços a uma generalidade de
pessoas, ou ao mercado.Neste domínio é de ressaltar o art. 230 no3 do Código Civil, em que
estipula que a revogação da proposta ao público só é eficaz “desde que seja feita na forma da
oferta ou em forma equivalente”.

Anote-se que a teoria das relações contratuais de facto,42 que se pode aplicar, no domínio do
transporte de passageiros, será inaplicável no transporte de mercadorias. Não basta um
comportamento social típico, torna-se necessário, a existência de uma mercadoria. Da mesma
forma que, na formação do contrato, a teoria da culpa in contrhendo, aflorada no art.227 do
Código Civil poderá ser aplicada ao convénio de transporte. A título de exemplo serão os casos
de o expedidor não possuir nenhuma mercadoria a fazer deslocar, ou o transportador não operar

42
Foi uma teoria desenvolvida por nomes sonantes da escola juridical germânica, que não encontrou eco
nos trabalhos preparatórios do Código Civil e como tal, não foi consagrada.

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nenhum meio de transporte, se bem que nesta eventualidade, o transportador nem sequer merece
essa qualificação jurídica. Em ambos os casos violam-se os princípios jurídicos. Em ambos os
casos violam - se os princípios da boa-fé e prssupõe-se a culpam do expedidor ou do
transportador.

2.- A guia de transporte

Será o contrato de transporte de mercadorias um negócio formal?

Se tivermos em causa que o legislador comercial enuncia no art. 577, a obrigação do


transportador em entregar ao expedidor “caso este o exija”, e citamos “uma guia de transporte,
datada e por ele assinada”. Assinalando o carácter sinalagmático do contrato de transporte o
legislador prevê a possibilidade de o expedidor, caso o solicite, de assinar cópia da guia de
transporte.

Vejamos ainda o que as legislações especiais nos dizem sobre esta matéria:

O DECRETO N.47.043, de 7 de junho de 1966, determina, no seu art. 1: “O expedidor


deve apresentar com a mercadoria uma declaração de expedição, tendo a empresa o
direito de verificar se essa declaração é inexacta”. A nota de expedição, como
vulgarmente é chamada, no transporte ferroviário, é sinónima da guia de transporte, no
que respeita aos seus efeitos jurídico.

A resposta á questão enunciada é que a entrega da Guia de Transporte diz respeito ao momento
em que o expedidor entrega a mercadoria ao transportar para que este a faça deslocar. Não se trata
de nenhum requisito de forma na celebração do contrato, sendo este consensual por natureza.

2.1.- Requisitos da guia de transporte

Analisemos a matéria respeitante à guia de transporte. Determina a art. 577 do Código Comercial
que a guia deve conter as menções de acordo com o estatuído no n°1 do art. 576. Normalmente,
alguns dos requisitos da guia de transporte são compulsórios por natureza. São os casos que
vamos analisar:

a) Identificação do transportador/expedidor/destinatário
Trata-se da identificação dos sujeitos do contrato. Tratando-se de comerciantes, o nome
será a sua firma.
Sendo a guia emitida “ao portador”o destinatário não será logicamente identificado na
emissão da guia.

b) Identificação da mercadoria a transportar


Designação da natureza, peso, medida, ou número dos objectos a transportar, ou
achando-se estes enfardados ou embalados, da qualidade dos fardos ou malas e do
números, sinais, marcas dos invólucros. Este requisito é fundamental, não só porque
permite a identificação do objecto deslocado, a determinação da sua natureza e vícios
próprios, a qualidade da embalagem e sobretudos porque o preço do transporte irá ser
calculado sobre esse objecto tal como descrito.

c) Identificação do local aonde se efectua a entrega da mercadoria


Vimos que o contrato de transporte tem um ponto de início e um ponto de chegada,
marcada, pela deslocação. Torna-se imperiorso que as partes identifiqem qual o local

Apontamentos ao 4° Ano do curso de Direito 26


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do destino. De igual modo precisa o local de cumprimento de uma das obrigações do


destinatário - recolher a mercadoria transportada.

d) Outras menções
O frete será o preço a pagar pelo transporte que é calculado ou pelo sistema tarifário43
existente ou mediante convenção das partes.

O frete tanto pode ser pago ao transportador pelo expedidor, como pelo destinatário. Na
gíria comercial, na primeira situação - frete pago é inserto na guia de transporte; no
segundo caso insere-se a menção de, frete a cobrar no destino. Neste último caso, o
transportador fica intitulado a reter a mercadoria, até que o pagamento seja efectuado.

A determinação do frete tem consequências legais no caso da declaração da força maior


e da resolução do contrato. É que, em ambos os casos, como adiante se analisará,
importa tomar em conta a boa-fé, que exige que as prestações sejam equitativas, não
podendo corresponder a um sacrifício desproporcionada pela outra parte. Pode ter ainda
repercussões caso o transporte não tenha sido integralmente realizado. A prática
corrente determina, salvo convenção em contrário, que o transportador ficará intitulado
á parte do frete que seja correspondente ao percurso realizado.

O prazo da deslocação, o valor da indemnização. Entendemos que estas menções não


têm caráter injuntivo e podem não constar da guia, sendo superadas através de
mecanismos legais que serão analisados.

2.2.-Emissão da guia de transporte

Aguia de transporte pode ser emitida sob duas formas (art. 577, n°.3):
§ á ordem;
§ ao portador.
No primeiro caso, a sua transmissão faz-se pelo endosso, por força do art. 583, n°1. No segundo
caso por meio da simples tradição, ou seja pela sua entrega, transmite-se o direito que a guia
incorpora, de igual modo ex vi art. 583, n°1.

2.3.- Funções da guia de transporte

Da emissão da guia de transporte emergem as seguintes funções cumulativas:


§ meio probatório;
§ recibo da mercadoria;
§ título de crédito.

2.3.1.-Como meio de prova

43
O Dr. Cunha Gonçalves ensina e correctamente que as tarifas não só indicam o quadro de preços, mas
também as condições do transporte. In op. Citada, pag. 415. Exemplo desta situação é o sistema tarifário
dos CFM.

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Como meio de prova a guia de transporte ocupa uma posição específica, na medida em que todas
questões e disputas emergentes do contrato de transporte, são em primeiro lugar, resolvidas por
recurso á guia de transporte. Cfr. art. 576, n°1 do Código Comercial.

2.3.2- Recibo da mercadoria

A guia serve ainda de recibo da mercadoria por parte do trasportador. Esta função constante do
art.577, n°2. O legislador atesta não só a recepção dos objectos a trasportar, a data da entrega e
ainda do estado da sua aparente qualidade. Permite traçar com exactidão o momento em que a
trasferência do risco é transmitida ao transportador.

2.3.3.- Título de crédito

Por último a guia de trasporte integra-se nos documentos que constutuem títulos de crédito. Não
existe qualquer disposição no Código Comercial que peremptoriamente permita esta conclusão.
Anote-se que a teoria dos títulos de crédito era á data da redacção do Código incipiente.44 Daí que
importa em face da legislação aplicável aos contratos de transporte de mercadorias e dos
princípiso definidores da disciplina jurídica dos títulos de crédito, determinar quais as razões que
nos permitem concluir que a guia de transporte integra a categoria legal dos títulos de crédito.

2.3.3.1.- O documento

Em primeiro lugar para que se verifique um título de crédito é cecessário que exista um
documento. E que o documento tenha forçosamente um título. Ora, no nosso caso, a guia de
transporte é um documento escrito, e para ter a força de título de crédito, deve indicar
obrigatoriamente a designação de “guia de transporte”ou “nota de expedição” (que é
equivalente, como já se afirmou).

Verificada existência do documento importa analisar se se verificam ou não outros requisitos


característicos dos títulos de crédito:

• a incorporação;
• a literalidade;
• a autonomia ou abstracção.

2.3.3.2.- a incorporação

A incorporação resulta da materialização no direito no documento de tal forma que a sua


aquisição determina o direito de exigir a prestação. O jurista italiano Ferri designa esta
característica como a Legitimação, na medida em que o adquirente do título se mostra legitimado
á prestação. Como reverso da situação, sem o documento o seu titular não pode executar o seu
direito.

44
De tal forma que nos trabalhos preparatórios do Código Civil se avançou com uma proposta de incluir
uma rubrica sobre esta materia. Proposta que não foi aceite, pois se concluiu que a sede da matéria seria o
Código Comercial.

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Aplicando este princípio à legislação do transporte de mercadorias por guia é patente que este
requisito dos títulos de crédito se verifica, porquanto o transportador tem a obrigação de efectuar
a entrega da mercadoria “imediatamente e sem estorvo”ao destinatário que lhe apresente a guia
em “termos regulares”, não lhe competindo investigar “o título porque o destinatário recebe os
objectos transportados”, de acordo com o art. 578, n°4.

A única diferença que resulta da análise comparativa com outros títulos de crédito, como a
livrança, letra, cheque, é que nestes o direito incorporado é um crédito. Ao passo que na guia de
transporte, como no conhecimento de embarque, ou na carta de porte a prestação incorporada é
um dirito real, confere a propriedade da mercadoria.

2.3.3.3.- a literalidade
Este requisito decorre da conexão entre o documento e o direito, de tal forma que a determinação,
conteúdo e modalidade deste direito se encontram contidos no documento. Como assinala
Vivante45 “o crédito existe nos limites determinados pelo título. Nenhuma excepção, nenhuma
limitação de reduzir o seu alcance, contradizendo o que nele está exarado”.

Esta característica dos títulos de crédito é fundamental para a sua circulação. Pois que os
sucessivos portadores beneficiam da garantia que contra eles não poderão ser invocados acordos
ou estipulações que não constem do título. Pode-se dizer que a literalidade também se verifica.

2.3.3.4.- A autonomia ou abstracção

A autonomia do título de crédito significa que o direito incorporado é autonómo em relação ao


direito subjacente, ou seja aquele que justifica a emissão do título. Significa que o possuidor de
um título de crédito adquire o direito consubstanciado no documento, de forma originária. Ou seja
independentemente da titulariedade. O objecto da transferência é o título e não o direito nele
contido. O que circula é exclusivamente o título, portador de um direito cartular no qual, o titular
ao adquri-lo se investe de modo originário, autónomo e independetemente, usando as palavras de
Ascarelli.

Estas características estão manifestadas na regulamentação da guia. Veja-se os artigos 578 e 580.
Exemplificando: A, expedidor de uma mercadoria, transfere por endosso a guia a B, com que ting
celebrado um contrato de compra dessa mercadoria. Este por seu turno transmite a guia a C. Caso
tenha existido incumprimento no contrato de compra e venda entre A e B (direito subjacente) A,
nada pode opôr a C, quando este proceder ao levantamento da mercadoria.

2.3.4- Classificação da guia de transporte como título de crédito

Existem vários critérios classificativos sobre os títulos de crédito. Neste contexto enuncie-se a
classificação da guia de transporte.

Quanto à emissão
A guia pode ser à ordem e ao portador. A lei não prevê a possibilidade da emissão de guias de
transporte nominativas, em que a circulação se processa por cessão de créditos. A doutrina
divide-se. Na base em que para os conhecimentos de embarque é admissível esta forma de

45
In “Instituições de Direito Comercial”, pág. 137

Apontamentos ao 4° Ano do curso de Direito 29


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emssão, aplicando a analogia, parte da doutrina admite a emissão de guias de transporte sob a
forma nominativa.

Quanto ao conteúdo
Nesta classificação distinguem-se os títulos de crédito propriamente ditos e os títulos
representativos. Os primeiros incorporam um direito de crédito, os segundos representam um
direito real sobre uma coisa. É, nesta última classificação que se insere a guia de transporte.

Quanto à natureza
Dentro da classificação de títulos públicos e privados (“a natureza pública ou privda dos títulos
não resulta da natureza de quem concreta ou incidentalmente os emitiu, mas sim da natureza de
quem típicamente os emitiu”46), a guia de transporte será um título de natureza privada.

Outras classificações
De acordo com a classificação de títulos causais ou abstractos, dependente da natureza do
negócio que os originou, a guia será causal, pois depende sempre de um contrato de transporte.

Por último trata-se de um título individual, contrapondo-se assim aos títulos em série, que são
emitidos em massa e destinados a diferentes pessoas- caso das acções ou obrigações.

2.3.5.- A reforma da guia de transporte


Quanto à reforma da guia de transporte (isto é o sua substituição nso casos de extravio, roubo,
furto ou destruição), é possível quanto ás guias emitidas à ordem. Nos termos do art. 484. O
processo judicial da reforma do título encontra-se regulado no art. 1.070 e segs. do Código do
Processo Civil.

Sobre a reforma dos títulos ao portador é assunto de polémica doutrinária e jurisprudencial, em


face da lacuna de lei. Aposição dominante conduz à sua aceitação.

2.3.6.- A circulação da guia


A circulabilidade do título de crédito é a sua característica fundamental. Sendo a guia emitida à
ordem a sua circulção processa-se por meio do endosso.Entre os vários endossantes forma-se uma
cadeia de responsabilidade sucessiva. Assim, o último endossante ao realizar o acto jurídico do
endosso, garante não só a existência da mercadoria transportada, como a legitimidade do próprio
título. A teoria relativa aos titulos de crédito é integralmente aplicada à circulação da guia de
transporte.

A regra geral de fazer o endoso na guia de transporte é pela inscrição no verso do documento
“entregue-se à ordem de...”, com a assinatura do endossante.

3.- OBRIGAÇÕES DO TRANSPORTADOR

Vínculos obrigacionais emergem da relação jurídica do transporte de mercadorias, para os vários


sujeitos, na medida em como se disse se trata de um contrato sinalagmático.

Alguns desses vínculos encontram-se previstos no Código Comercial, como normas supletivas, e
imperativas. Outros são formulados pelos princípios da liberdade contratal e como tal devem ser

46
Pedro Paes de vasconcelos In ‘Direito Comercial – Títulos de Crédito” – pag. 39

Apontamentos ao 4° Ano do curso de Direito 30


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encontrados na relação jurídica específica. Da formulação normativa do Código Comercial pode-


se dar o seguinte quadro das obrigações do transportador:

Ø a deslocar a mercadoria pela rota convencionada- art. 580. Tem natureza


supletiva;
Ø cumprir os prazos convecionados – art. 580. É de carácter imperativo;
Ø fazer a entrega da mercadoria no local acordado- art. 580. É de caracter
imperativo;
Ø proceder ao carregamento e descarregamento da mercadoria- trata-se de
uma norma de natureza supletiva. As operações de manuseamento só poderão
ser debitadas à parte do frete se constar dos regulamentos ou das cláusulas
contratuais.

4.- OBRIGAÇÕES DO EXPEDIDOR


Por seu turno ao expedidor/remetente incumbem as seguintes obrigações:
Ø entregar a mercadoria ao transportador. Sem essa entrega o transporte não
pode ser executado. art. 576.
Ø declarar o conteúdo das mercadorias, obrigação que merge do principio da
boa-fé e da informação slubjacentes à autonomia privada.
Ø Entregar ao transportador “as facturas e mais documentos necessários ao
despacho das alfândegas”- art. 576;
Ø acondicionar/embalar as mercadorias de forma a garantir o transporte,
trata-se de obrigação de igual implícita, daí que o Código contemple a
possibilidade do transportador colocar reservas na aceitação da mercadoria
art.576.

5.- OBRIGAÇÕES DO DESTINATÁRIO


Ao destinatário incumbirão os seguintes vínculos obrigacionais emergentes do contrato de
transporte:
Ø Reclamar a mercadoria no prazo conveciondado, ou fixados em regulamento,
ou de acordo com usos do comércio-art. 590;
Ø Verificar o estado dos objectos transportados e apresentar, caso seja
necessário, a reclamação por perdas e danos causados aos objectos
transportados-art. 589;
Ø Pagar o frete, quando seja pagável no destino.

6.- DIREITOS DO TRANSPORTADOR/EXPEDIDOR E DESTINATÁRIO

6.1.- Direitos do transportador


O seguinte quadro de direitos do transportador, derivado da regulamentação comercial, pode ser
enunciado:
Ø Escolher o itinerário, caso não haja rota acordada- art. 580;
Ø Usar o direito de retenção das mercadorias transportadas, se o frete for
pagável no destino e o destinatário não efectue o pagamento, (ou outra
prestação, como as obrigações fiscais.

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O direito de retenção encontra-se consagrado no Código Civil e no art. 755 no1 al.a), afirma:
“gozam do direito de retenção-o transportador sobre as coisas transportadas, pelo crédito
resultante do transporte”.
O direito de retenção poderá ser usado caso o original da guia de transporte não seja entregue ao
transportador. Isto devido à qualificação da guia como título de crédito e pelo direito real que
incorpora.
Ø Quando existirem transportadores sucessivos o direito de retenção será
exercido em conformidade com o no2 do art. 755 do Código Civil, ou seja
pelo último transportador, desde que estes se tenham obrigado em comum.
Ø No caso do exercício do direito de retenção o transportador pode pedir o
depósito e venda da coisa transportada, para sim se fazer pagar pelo qual se
efectue a venda e o depósito. O entendimento será que deve ser efecuado pela
via judicial.
Ø O transportador goza do privilégio creditório sobre as mercadorias
transportadas. Esta garantia confere-lhe a faculdade de ser pago
preferencialmente a credores do expedidor ou do destinatário. Como se sabe o
privilégio não carece de registo e pode abranger juros pelo período de dois
anos, caso sejam devidos.

O privilégio do transportador é uma garantia real que lhe assegura o cumprimento da obrigação
do pagamento do frete e outras despesas decorrentes do transporte. Extingue-se com a entrega da
mercadoria.

6.2.- Direitos do expedidor

Quanto ao expedidor o seguinte quadro de direitos pode ser traçado:

Ø Pode, salvo havendo convenção em contrário, variar a consignação dos


objectos até ao momento que cheguem ao destino. - art.578. Este direito
conferido ao expedidor é explicado através da relação júridica subjacente ao
contrato de transporte. Se, pelo instrumento legal existente entre expedidor e
destinatário, a mercadoria só for transmitida no destino, é o expedidor quem
mantém o direito de propriedade sobre os objectos transportados e pode pôr
conseguinte alterá-lo. Esta mudança é indiferente ao transportador, desde que
não provoque desvio do itinerário ou mudança do local do destino.
Ø O expedidor goza ainda de privilégio creditório sobre os meios de transporte e
meios acessóros empregues no transporte, que sejam pertença do
transportador.

6.3.-direitos do destinatário
Antes de enunciarmos o quadro dos direitos do destinatário, assinale-se que o destinatário, dada a
sua posição particular no contrato de transporte, tem um direito dispositivo sobre a mercadoria
deslocada adquirido de modo próprio e directo. Assim,

Ø Fica intitulado a “todos os direitos resultantes do contrato de transporte”- art.


581
Ø Tem o direito a receber a mercadoria – arts. 580 e 581
Ø Tem o direito de verificar o estado da mercadoria-art. 589

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Ø Tem o direito de reclamar contra o transportador por perdas e danos, atrasos,


desvios de rotas, podendo demandar o transportador-art. 581.

7.- REGIME DA RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR TERRESTRE

O regime da responsabilidade do transportador terrestre, emergente do contrato de transporte de


mercadorias, segue os princípios gerais da responsabilidade civil obrigacional. Uma vez
verificados os seus pressupostos o transportador fica constituido como sujeito passivo da
obrigação de indemnização.

7.1.- causas específicas de responsabilidade do transportador


O Código Comercial, contêm algumas especificações que importa ter em conta para se proceder a
um quadro geral da responsabilidade civil do transportador.
São as seguintes as situações específicas:

§ incumprimento do itinerário acordado art. 580;


§ incumprimento do prazo de entrega das mercadorias- art. 580;
§ perdas ou danos verificados na mercadoria durante o período de
execução do contrato-art. 581;

7.1.1- O incumprimento da rota acordada


Havendo-se convencionado em determinada rota para a deslocação, não pode, o transportador
alterá-la. Caso o faça responde ”por qualquer dano causado às mercadoriads transportadas e ainda
no pagamento da indemnização acordada”, nos termos do art. 588.

7.1.2 -atraso na entrega


De acordo com o art. 590, três situações são passíveis de serem enumeradas:
• incumprimento do prazo convencional
• incumprimento dos prazos fixados nos regulamentos do transportador;
• incumprimento dos prazos segundo os usos do comércio.

No primeiro caso, a simples mora, implica o dever de indemnizção, por força do art. 805 no2
al.a) do Código Civil. No segundo caso, depende da exitência ou não do regulamento do
transportador. Por exemplo, no transporte ferroviário, estabele-se que as empresas ferroviárias
fixarão “as durações máximas do transporte ferroviário”. Verificando-se atraso na entrega da
mercadoria transportada. O transportador fica constituído em mora. Por último, não sendo
convencionado prazo, não existindo regulamento ou o mesmo sendo omisso matéria, segue-se os
usos do comércio. É costume aplicar critérios como a velocidade do meio de transporte utilizado
frente à distância a percorrer, bem assim casos precedentes. Havendo-se fixado um prazo
razoável, o transportador constituiu-se em mora.

7.1.3.- perdas e danos


Observe-se o disposto no art. 590 do Código Comercial: “se o destinatário receber os bens sem
reserva e pagar o que for devido ao transportador, perde o direito a qualquer reclamação contra o
transportador, salvo caso de dolo ou culpa grave por parte deste.

O princípio do art.590 trata-se pois de uma presunção tantum iuris, na medida em que admite
prova em contrário (cf. Art. 350 no2 do Código Civil). O ónus da prova cabe neste caso ao
destinatário, por força do art. 344 do mesmo Código.

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Não havendo reservas, nem prova em contrário, o transportador não responde pela perda ou
deterioração que a mercadoria venha a sofrer durante o tempo em que esteja sob sua guarda, que
como se sabe se incia com a recepção da coisa a transportar e termina com a sua entrega ao
destinatário. Como o carregamento e descarregamento da mercadoria compete ser feita pelo
transportador, salvo estabelecendo-se no contrato, que essas operações de manuseamento são da
conta e risco do expedidor e destinatário.

A perda pode ser parcial ou total, cosnoante se verifique o desaparecimento de toda ou parte da
mercadoria. A este propósito recorra-se aos ensinamentos do dr. Cunha Gonçalves: “há perda, no
sentido legal, não só quando a coisa foi extraviada, furtada ou destruida, mas ainda todas as vezes
qie o tranportador não prova que a entregá-la”. De acordo com o mesmo autor chama-se
deterioração ou avaria “qualquer desgaste e estrago (fermentação, ferrugem) que a cousa sofre
por algum facto exterior, calor, frio, chuva, chuva, choque...de modo que ela já não possa servir
ou tenha menor utilidade para o fim que era destinada ou diminua de valor”.

8.- A OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO

O art. 588 dispõe que as deteriorações verificadas desde a entrega dos bens ao transportador são
comprovadas e avaliadas pela convenção e, na sua falta ou insuficiência, nos termos gerais de
direito, tomando-se como base o preço corrente no lugar e tempo da entrega.

A indemnização é devida pelo transportador ao destinatário. Este entendimento já se encontrava


explícito no art.384 do anterior Código Comercial. No entanto um Acordão, retirou dúvidas
estabelecendo o seguinte:

“o art.384 do Código Comercial apenas é aplicável à relação jurídica da indemnização


estabelecida entre o transportador e o destinatário da mercadoria, não regulando, pois, o
cálculo da indemnização devida pelo transportador ao expedidor por perda ou deterioração das
coisas que lhe entregou”.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Janeiro de 197247

9.- CAUSAS DA EXONERAÇÃO DA RESPONSBILIDADE DO TRANSPORTADOR

Das situações específicas da responsabilidade civil obrigacional, o transportador pode-se exonerar


da sua responsabilidade quando se verifique demora na entrega da mercadoria ou a perda ou a sua
deterioração, conforme se estabelece nos artigos 382 e 383. Para estes dois casos o legislador
comercial estabelece os seguintes caso de exoneração da responsabilidade:

o Caso fortuito;
o Força maior,
o Culpa do expedidor;
o Culpa do destinatário;
o Vício do objecto transportado.

47
Publicado no Boletim do Ministério da Justiça n°213

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Anota-se que não constitui motivo de exoneração a falta de meios suficientes de transporte, nos
termos do art. 2, do C.com.

9.1.- Caso fortuito/força maior

No entanto, o legislador comercial, aptou por não regulamentar o que entende por força
maior/caso fortuito, ou os casos em que se verifica culpa do destinatário ou expedidor. O que
obriga ao trabalho da doutrina.

A determinação e a delimitaçào do caso fortuito e a força maior, apresentam pelas implicações


práticas de extrema importância no ramo do Direito dos Transportes. Isto porque o contrato de
transporte nào é por definição um contrato aleatório. O risco é próprio da natureza do convénio. O
transporte processa-se por um meio que não sob controle do transportador- estradas, vias férreas,
lagos,etc.,48 sujeitando-se aos problemas de tráfego, de intempéries, actos fora do controle do
transportador. Daí o amplo recurso que os transportadores fazem desta impossibilidade
superveniente na execução do contrato.49

9.1.1.-Na Jurisprudência

Recorrendo à jurisprudência, no quadro da actual legislação, pode-se afirmar que existe uma
diferenciação entre caso fortuito e força maior. Citemos dois acódãos a este propósito:
“para que a destruição da coisa transportada possa ser atribuída, a caso fortuito é preciso que
se prove que para ele não concorreram, de nenhum modo o transportador o caso fortuito
diustingue-se da força maior, em que aquele provêm do próprio funcionamento da empresa e este
é exterior à empresa”.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/03/1947

“Consideram-se casos foruitos os que sào produtos das forças da natureza e de força maior, os
factos em que intervêm o homem, mas que não se pode resistir e contra a qual nada vale a
previsão humana. O caso de força maior reveste as características de irrestível, imprevisivel e
impensável e a ele dve ser completamente estranho quem o provoca”.
Acórdão da Relação de Lisboa de 4/03/1953

9.1.2.-Na doutrina

A nível doutrinário pode-se indicar duas tendências. Uma que distingue entre a força maior e o
caso foruito e outra que entende tratar-se da mesma figura.

Assim, para o prof. Marcello Caetano50, que perfilha a primeira tendência, haverá caso de força
maior quando “um facto imprevisível e estrano à vontade dos contrentes que impossibilita
absolutamente de cumprir as obrigações contratuais”. E estaremos perante um caso imprevisto
quando “um facto estranho à vontade dos contraentes que, determinandoa modificação das

48
O que se diz neste capítulo vale, com as devidas adaptações para o transporte maritime e aéreo.
49
Anote-se que o regime legal da força maior é no sistema jurídico românico, ou continental bem mais
restrito do que no direito anglo-saxónico ou “comon Law”, sobretudo na perspectiva americana. A cláusula
da ‘hardship’ é bem mais lata. A influência deste sitema, pelo peso económico, originou a sua adopção em
muits instrumentos contratuais privados.
50
In ‘Manual de Direito Administrativo” – Tomo II

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circunstância económicas gerais, trona a execução muito mais onerosa para uma das partes do
que caberia no risco normalmente considerado”.

Para o prof. Pessoa Jorge, as duas figuras serão sinónimos porqeu os seus efeitos tanto para o
Direito Civil, como para o Direito Comercia sào iguais. Assim o ilustre Mestre acentua três
pressupostos para a sua verificação: inevitabilidade; a insuperalidade e a imprevisibilidade. Para a
primeira, há um obstáculo superior às forças do devedor; na segunda, trata-se “de algo que
irrompe inesperadamente o curso normal dos acontecimentos”e a imprevisibilidade afere-se não
só em relação ao seu agente como ao momento em que o devedor se encontra de evitar a falta de
cumprimento.51

Tenhamo que, independentemente da polémica doutrinária sobre a diferenciação entre caso


fortuito e força maior, as suas consequências legais no nosso caos são idênticas. Eximem o
transportador da sua responsabilidade. A prova da situação maior cabe ao tranportador e tem
que estar de acordo com os princípios da boa fé.

Na eventualidade, de antes de iniciada a deslocação, se verificar a impossibilidade de efectuar o


transporte, ou este se “ achar extraordinariamente demorado”, por caso fortuito ou de força maior,
o trasportador deve, de acordo com o art.579, avisar de imediato o expedidor, ficando este com o
direito de resolver o contrato. A resolução do contrato, encontra-se prevista no art.437 do Código
Civil.

Por último, atente-se ao disposto no art.790 no1 do Código Civil, que se aproxima da figura da
força maior, quando a préstação se torne impossível, devido a causa não imputável ao devedor.

9.2.- A força maior no transporte ferroviário

O regime jurídico da responsabilidade do transporte ferroviário de mercadorias, nos termos do


DECRETO N.47 043. Já anteriormente analisado segue os traços estabelecidos no Código
Comercial. Estipula-se no art.68

“1.- a empresa responde pelos prejuizos sofridos pelas mercadorias desde a recepção até à
entrega, salvo se porvar que o prejuizo resultou de caso fortuito, força maior, vício de objecto,
culpa do expedidor ou do destinatário.
2.-Responde também pelos prejuizos resultantes de demora na entrega, salvo se fizer prova de
que a demora foi consequência da circunstâncias que o caminho-de-ferro não podia evitar nem
estava ao seu alcance remediar”.

9.3.- Culpa do expedidor/destinatário


Qualquer acto imputável ao expedidor ou ao destinatário que impossibilite a prestação do
transportador, constutuem causa de exoneraçào da responsabilidade deste, dando-lhe o direito à
resoulção do contrato, nos termos do art.437 do Código Civil.

Exemplos destas sutuações: caso do destinatário não efectuar o levantamento das mercadorias no
prazo convencionado e verificando-se furto ou deterioração.Será ainda o caso do expedidor não
enviar a guia de transporte original ao destinatário para que este exerça o seu direito.

51
In ‘Direito das Obrigações”- pág. 537 a 539

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9.4.- Vício do objecto


Contempla-se nesta previsão os casos em que a mercadoria se deteriore ou sofre alterações devido
à sua própria natureza como a fermentação, germinação no transporte de cereais, em certa medida
infestação no mesmo produto.

10.- O CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE SUPERFÍCIE

10.1.- Elementos fudamentais

Um contrato de transporte internacional é aquele cujo objecto – a deslocação do passageiro ou


de mercadoria - é iniciado num determinado país e termina num outro país.

10.2.- Regime jurídico

Sendo o transporte internacional uma actividade que implica o trânsito por territórios de mais de
um Estado, implica necessariamente, numa perspectiva jurídica, o intercruzamento de diferentes
ordenamentos jurídicos, dando lugar a conflitos de diferentes leis. A questão de fundo, por isso
mesmo, torna-se a de saber qual dos regimes jurídicos (das leis) que se lhe aplicará.

Conflito de leis
A resposta à questão de qual dos regimes jurídicos (das leis), ora envolvidos se aplicará pode se
encontrar por referência às normas de conflito, no caso vertente, as constantes dos Arts. 41 e 42
do C.C. Como regra de princípio, num contrato internacional de transporte, as próprias partes têm
primáriamente a liberdade de designar a lei que entenderem que melhor poderá reger as suas
relações contratuais (Cfr. Art.41 (1) C.C.).

Na falta de determinação da lei competente, atende-se ... à lei da residência habitual comum das
partes (Cfr. Art. 42 (1)), e na falta dessa, ... a lei do lugar da celebração. (Cfr. Art. 42 (2)).

Legislação Internacional

A dificuldade que as normas de conflitos representam na determinação de qual o regime jurídico


aplicável a um determinado contrato internacional de transporte, impôs a necessidade de os
Estados, embarcarem na harmonização dos diferentes regimes jurídicos através da celebração de
tratados internacionais.

Ainda que a matéria relativa à regulamentação jurídica dos contratos internacionais de transporte
comporte aspectos comuns nas diferentes modalidades que o transporte pode assumir, torna-se
necessária, para uma melhor sistematização, a sua apreciação por modalidade:

a) A nível do Transporte Rodoviário:


A CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE O TRANSPORTE DE
MERCADORIAS POR ESTRADA-CMR, celebrada em Genebra, aos 19 de Maio de
195652, (emendada pelo Protocolo de Genebra de 5 de Julho de 1978).

52
Não se encontra em vigor na RM, nem em qualquer outro Estado da região

Apontamentos ao 4° Ano do curso de Direito 37


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b) A nível do Transporte Ferroviário:


A CONVENÇÃO INTERNACIONAL RELATIVA AO TRANSPORTE
FERROVIÁRIO INTERNACIONAL DE MERCADORIAs - COTIF, de Berne, de 9 de
Maio de 198053 (Emendado pelo Protocolo de Vilnius, de 3 de Junho de 1999).

10.3.- As terminais TIR

O DECRETO N.36/93, de 30 de Dezembro autorizou a constituição de Terminais Internacionais


Terrestres de Mercadorias. Estas terminais, por vezes chamadas de portos secos, têm em vista
agilizar o despacho de mercadorias importadas e exportadas, garantindo ainda os interesses do
Estado na coleta de receitas. Nos termos do diploma tem como fim – art.2 no1:

“garantir a assegurar a recepção e expedição de mercadorias transportadas sob via rodoviária


ou ferroviária, ficando adstritas ao cumprimento dos procedimentos aduaneiros de desembaraço
dos meios de transporte e respectivas cargas e bem assim da armazenagem de mercadorias,
relacionadas com o transporte internacional que estejam sob controlo das Alfândegas”

Essas terminais podem ser relativas ao:

§ TRANSPORTE INTERNACIONAL RODOVIÁRIO;


§ TRANSPORTE INTERNACIONAL FERROVIÁRIO;
§ TRANSPORTE INTERNACIONAL RODO-FERROVIÁRIO.

A matéria relativa às Terminais Internacionais de Mercadorias encontra-se actualmente regulada


pelo Diploma Ministerial nº11/2002, de 30 de Janeiro.54

O Art. 2 daquele Diploma define por Terminais Internacionais de Mercadorias, as àreas fiscais
primárias com instalações adequadas onde as mercadorias, objecto de transporte internacional,
são depositadas sob controlo aduaneiro em regime suspensivo de pagamento das imposições.

0000oooooo0000

53
Entrou em vigor a 1 de Maio, de 1985. Não se encontra em vigor na República de Moçambique, nem em
qualquer outro Estado da região.
54
Publicado no BR nº5, I Série, de 30 de Janeiro, de 2002.

Apontamentos ao 4° Ano do curso de Direito 38

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