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O MÉTODO DO MATERIALISMO CULTURAL E A MÚSICA POPULAR

BRASILEIRA
Álvaro Neder
O MÉTODO DO MATERIALISMO CULTURAL E A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA © 2024
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ALIENAÇÃO
"[...] A sociedade capitalista foi fundada sobre formas de exploração que são ao mesmo
tempo econômicas, morais e culturais. Se tomarmos a relação produtiva definidora (a
propriedade privada dos meios de produção, e a produção visando lucro) e a
observarmos de vários ângulos, ela se revelará cada hora em um aspecto, uma vez em
um (o do trabalho assalariado), outra vez em outro (o do ethos aquisitivo), ainda outra
vez em outro (a alienação do trabalhador das faculdades intelectuais que não são
necessárias para seu papel de produtor)" (THOMPSON, 1965, p. 356).
INTRODUÇÃO
ENSINO CONSERVATORIAL
O ensino superior de música, em todo o planeta, é, em geral, tecnicista e não
relacionado às questões que interessam os estudantes enquanto membros da classe
trabalhadora. Ou seja, os e as estudantes são estimulados/as a analisar melodia,
harmonia, ritmo, instrumentação, arranjo, forma e outras questões específicas do fazer
musical, mas não são estimulados/as a entender essa música do ponto de vista da
sociedade em que vivem. Argumento aqui que as questões técnicas são fundamentais,
mas não podem ser desvinculadas das questões relativas ao significado social. A
Educação que deveríamos almejar seria aquela que fornecesse a melhor formação no
plano técnico, mas ao mesmo tempo que permitisse a compreensão e o posicionamento
crítico perante a sociedade.
Para se chegar a tal formação crítica, seria preciso começar fazendo perguntas e
suscitando inquietações. Por exemplo, qual é a situação do/a musicista no contexto
dessa sociedade? Ele/a tem a liberdade de escolher as músicas com as quais deseja
trabalhar, ou estas lhe são impostas? As condições de trabalho são adequadas? E a
remuneração? É suficiente para o sustento digno de uma família? O emprego é seguro
e estável, ou sazonal e incerto? Assim, do ponto de vista do músico, muitas perguntas
poderiam ser feitas no âmbito da história da música popular brasileira que, no entanto,
ficam sem resposta dentro do ensino tradicional de música nos cursos superiores.
Mas há muitas outras perguntas que poderiam ser feitas sobre as diferentes
músicas, e que afetam não apenas os músicos mas todas as pessoas. Poderíamos
perguntar, por exemplo, se existe ou não racismo nessa sociedade, e, caso existente,
como ele se manifesta na valorização ou desvalorização dos diferentes gêneros
musicais, espaços de execução, instrumentos musicais, e assim por diante. As mesmas
perguntas podem ser feitas com relação a gênero (masculino, feminino, outros) e
sexualidades.
Todas estas questões perpassam as músicas que tocamos todos os dias, os
lugares onde essas músicas são executadas ou consumidas, e nos afetam a todos/as,
quer tenhamos consciência disso ou estejamos distraídos no mundo, reproduzindo
essas práticas de maneira inconsequente. Você já parou para pensar nisso?
Mas há outras questões ainda. De que maneira os interesses econômicos
organizam a sociedade, e, consequentemente, a música? Em uma sociedade de classes,
todos são iguais, ou essa sociedade se divide entre os que dominam e os que são
dominados? Essa divisão teria relação com a valorização ou desvalorização social de
músicas, gêneros musicais, práticas musicais e pessoas? As músicas que achamos
culturalmente importantes têm livre trânsito nos meios de comunicação de massa, nas
novelas, no rádio, ou apenas as que geram maior lucro para os setores dominantes?
Nada disso é, em geral, considerado relevante para um ensino tecnicista
desvinculado de preocupações com a relação entre sociedade e cultura. No cerne desta
questão está o chamado “ensino conservatorial”, um problema não apenas para a
disciplina de História da Música Popular Brasileira, mas para a concepção como um todo
dos cursos superiores de música, envolvendo a formação das e dos estudantes como
futuros profissionais (sendo que, eles mesmos, são ou serão formadores de outros
estudantes). Esta modalidade de ensino de música é, ainda, predominante nos cursos
superiores, apesar de décadas de críticas (ver, por exemplo, ESPERIDIÃO, 2002; PEREIRA,
2014; QUEIROZ, 2017; PEREIRA, 2020; PENNA e SOBREIRA, 2020; MARINO, 2017). Em
outro trabalho (NEDER, 2023), propus uma síntese dos problemas relacionados ao
ensino conservatorial, a partir das investigações que, com meu grupo de pesquisa
LaboraMUS - Observatório do Trabalho em Práticas Musicais do PPGM/UNIRIO – venho
realizando com estudantes do IVL:
Reducionismo idealista: insistência em tratar a música como consistindo apenas de sons
musicais e suas representações. Ao contrário, a música é um todo de relações sociais
em que os sujeitos estão mergulhados, envolvendo centralmente o trabalho e o sentido
com que as práticas são investidas pela sociedade.
Falta de organicidade dos conteúdos: os conteúdos não dialogam entre si e com a prática
concreta do trabalho, que consiste de músicas de matriz afro-brasileira e outras músicas
étnicas não admitidas nos cursos de música.
Ênfase desproporcional das disciplinas de percepção musical, leitura, escrita e teoria
musical, descontextualizadas, mais uma vez, em relação à prática profissional. Como é
o uso concreto, na prática, de tais competências, por parte dos músicos populares? Ou
seja, qual a relação entre os conteúdos ensinados e os materiais sonoros encontrados
no mundo do trabalho?
Ausência de articulação entre aspectos técnicos e o mundo do trabalho. Os cursos
superiores de música, em geral, se caracterizam por uma abordagem tecnicista. [No
entanto], [...]as dificuldades para a inserção no mercado de trabalho não são
exclusivamente um problema de qualificação individual, subordinando-se à condição
estrutural imposta pelo modo de produção. Este absorve uma quantidade sempre
insuficiente de trabalhadores, de tal forma que o desemprego e o subemprego
estruturais constituam um exército de reserva permanente, cuja função será a de
manter rebaixado o preço da força de trabalho.
O tecnicismo é economicista: reduz o trabalho à sua dimensão econômica e nega
ao educando o direito de compreender criticamente a sociedade em que está inserido,
e, portanto, de intervir sobre ela, transformando-a. Portanto, aliena o direito de os
sujeitos encontrarem no trabalho fonte de autorreconhecimento e plena realização
como seres humanos.
A discussão sobre opressões de raça, gênero, sexualidade e outras, bem como a
fundamentação histórica e sociológica, a partir de uma perspectiva crítica sobre as
relações entre capital e trabalho, é inexistente ou insuficiente.
Uma outra síntese sobre os problemas causados pelo ensino conservatorial é
proposta pelo músico e pesquisador Victor Neves, dizendo respeito “à fragmentação
dos conteúdos; ao tratamento da representação gráfica desvinculado da prática musical
e do manejo consciente do material sonoro; ao enfoque no desenvolvimento técnico
como finalidade em si mesma; ao apego a noções como dom ou talento inato; à
acentuada submissão do estudante ao professor; à seletividade em relação aos
estudantes; à prisão a valores do passado; à tendência a preservar o cânon da música
erudita europeia como referência central; a sua resiliência à mudança; à ausência de
sintonia entre tal modelo e a prática musical majoritária efetiva.” (NEVES, 2022, p. 2).
O ensino conservatorial está na contramão de todos os documentos legais e
administrativos referentes à Educação. Da Constituição de 1988 aos projetos
pedagógicos dos cursos superiores, passando pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB), diretrizes nacionais e Planos Institucionais das instituições de ensino superior (IES)
(incluindo a Unirio), todas as normativas vigentes prescrevem uma educação para a
cidadania – não um treinamento tecnicista, descontextualizado, acrítico. Segundo, por
exemplo, a LDB, a educação “tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando,
seu preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1996,
art. 2º).
Ao fazer referência à obrigação das Instituições de Ensino quanto à formação
para a cidadania, a Constituição, as leis infraconstitucionais e os documentos
institucionais estão se referindo à obrigação dessas instituições de formarem cidadãos
e cidadãs críticos, conscientes de seus direitos e deveres (inclusive o dever de participar
criticamente na sociedade buscando transformá-la). Ao prescreverem a qualificação
para o trabalho, as normativas em vigor referem-se ao mundo do trabalho, e não ao
“mercado de trabalho”. Todas e todos nós da classe trabalhadora precisamos trabalhar,
no sentido de sermos úteis socialmente, e desse trabalho obtermos nosso sustento.
Mas, enquanto o “mercado de trabalho” nos impõe trabalhos alienantes, precarizados,
explorados, o mundo do trabalho nos acena com a possibilidade de um trabalho
humanizador, criador, voltado para o desenvolvimento da subjetividade, para a cultura.
Não é acidental que os cursos superiores de música neguem os conhecimentos
emancipadores aos sujeitos das classes trabalhadoras. O educador Demerval Saviani
analisa esta negação nos termos de uma contradição entre a necessidade de
fornecimento, pela educação pública, de um mínimo de conhecimentos necessários
especificamente para a execução do trabalho produtivo ao capital, de um lado, e, de
outro, pelo fato de que, ultrapassando este mínimo, coloca-se em perigo a dominação
de classe. O saber é força produtiva, é potência material, e, como tal, deve ser exclusivo
da classe dominante:

A sociedade capitalista é baseada na propriedade privada dos meios


de produção. [...]. Se o saber é força produtiva, deve ser propriedade
privada da burguesia. Na medida em que o saber [...] é apropriado por
todos, então os trabalhadores passam a ser proprietários de meios de
produção. Mas é da essência da sociedade capitalista que o
trabalhador só detenha a força de trabalho. Aí está a contradição que
se insere na essência do capitalismo: o trabalhador não pode ter meio
de produção, não pode deter o saber, mas, sem o saber, ele também
não pode produzir, porque para transformar a matéria precisa
dominar algum tipo de saber. Sim, é preciso, mas "em doses
homeopáticas", apenas aquele mínimo para poder operar a produção.
É difícil fixar limite, daí por que a escola entra nesse processo
contraditório: ela é reivindicada pelas massas trabalhadoras, mas as
camadas dominantes relutam em expandi-Ia. (SAVIANI, 1996, p. 11-
12).

Sendo assim, a definição de Educação que seguiremos em nossas aulas serão


aquelas preconizadas na Constituição, na LDB, nos documentos orientadores da Unirio
e nos PPCs do IVL: todos eles fazem menção à educação para a cidadania e para o mundo
do trabalho. Portanto, nossas aulas não estarão voltadas ao ensino acrítico e
descontextualizado, mas às relações de mútua influência entre música e sociedade.
Levando a sério o que diz Saviani sobre os interesses da classe dominante em
limitar o conhecimento da classe trabalhadora ao mínimo necessário para que se torne
simplesmente mão de obra passiva, não um coletivo humano emancipado, farei todo o
esforço para estimular os estudantes a ler, dialogar e debater, aprofundando seu
conhecimento. Estou ciente de que a massa da classe trabalhadora assimilou o lugar
subalterno que lhe foi destinado pela ideologia dominante. Mas estarei sempre pronto
e entusiasmado para dialogar com quem deseja assumir o controle de sua própria vida
a partir da compreensão crítica da sociedade, através de um debate aprofundado,
indicações de leituras e tudo o que puder contribuir para esse objetivo.
Vamos compreender a música como uma prática social humana, que se
desenvolve nos contextos reais das relações sociais, ou seja, econômicas, políticas,
culturais, abrangendo questões como gênero, raça, classe social. É na interdependência
entre todos esses fatores que poderemos entender o lugar, o papel e o valor da música
como um todo – e de cada música em particular – na sociedade.
Em suma, cada música, cada produção cultural é um documento de sua época –
até mesmo as expectativas, desejos, fantasias e ficções de um dado tempo e lugar
indicam o que as relações de poder próprias desse tempo-espaço permitem às pessoas
esperar, desejar, fantasiar e ficcionar. Porém, o processo de imposição de relações de
poder não implica em dominação absoluta. A própria luta da classe dominante para
impor sua dominação (luta que é sempre contínua, incessante, justamente por enfrentar
oposição constante das classes subalternas) produz, em um movimento inverso,
contradições, antagonismos. Como consequência, o estágio de consciência dos e das
agentes culturais (compositores/as, executantes e, inclusive, seu público) pode ser
inferido pela forma como as músicas e demais produções culturais respondem a estas
relações de poder exploradoras e opressivas e a essas contradições – se de maneira
opositiva ou submissa.
É para este assunto que passamos agora.

MATERIALISMO CULTURAL
O tipo de ensino e compreensão das chamadas modalidades artísticas (música,
literatura, teatro, artes visuais, etc.), até o final do século XIX (mas que continua até
nossos dias), era, predominantemente voltado para uma elite, e, certamente,
comprometido com a reprodução dos valores dominantes. Baseado em um modelo
humanista liberal, buscava em uma concepção elitista de arte uma espécie de fuga da
realidade criada pela ascensão do capitalismo industrial, com sua realidade de poluição,
exploração e submissão à miséria de massas de trabalhadores.
Herdamos dessa concepção a maneira dominante com que a música é analisada
até a contemporaneidade. É denominada de idealista, ou seja, algo puramente mental,
um domínio separado da vida cotidiana e sem relação com ela, uma criação pura do
terreno das ideias e sem influência das dificuldades do mundo material onde vivemos.
Junto dessa concepção romântica surge a figura do gênio, a pessoa supostamente
tocada pelo Divino, e, portanto, capaz de realizações sobre-humanas por si só,
individualmente.
Mais do que isso, o próprio gosto musical, que comumente é reduzido, de
maneira simplista, a uma livre escolha baseada puramente em preferências
estéticas, é, ele mesmo, consequência de uma gama muito complexa de fatores,
entre os quais classe social (que envolve oportunidades de aprendizado,
repertório cultural familiar e do meio sociocultural, a conexão tão evidente entre
a música que se consome e a realidade socioeconômica que se vivencia...).
Não é que essa conexão entre gosto e realidade material impeça alguém
de gostar de uma música completamente diferente da sua realidade de classe.
Mas até mesmo essa escolha pode ser situada em termos dos desejos de
ascensão social e pertencimento a uma classe mais aquinhoada, e, em última
análise, a uma ideologia. O fato de que os hábitos culturais brasileiros (e de outros
países periféricos e dependentes) variaram, buscando acompanhar as modas dos
países dominantes em cada período histórico (a Inglaterra, depois os EUA), são
evidência bastante forte disso. Porque hoje em dia as modas vêm dos EUA e não
mais da Inglaterra ou França? Você já parou para pensar nisso?
Todo este conjunto conflui para a formação de uma ideologia poderosa que,
apesar de não habitarmos mais um mundo de castelos e princesas, ainda é dominante
no imaginário dos músicos: um mundo onde os gênios, também chamados de artistas,
“incompreendidos” em sua “grande arte” pelo “povo ignorante”, habitam sótãos em
completa miséria, mas com a compensação moral de estarem acima daquilo que
consideram, isso sim, a suprema miséria, a realidade brutal com suas exigências
materiais, povoada por “pessoas mesquinhas” que gastam inutilmente sua vida
correndo e trabalhando para sobreviverem. Portanto, para evitar confusões com esse
imaginário, prefiro utilizar o conceito de “cultura” ao conceito de “arte”. Poderia
explicar as razões históricas desta diferença, mas para evitar me alongar demais, farei
isso em outra ocasião.
Contra esta concepção idealista/ elitista de arte, surge a noção materialista.
Pensando a produção cultural a partir do materialismo, diversos pensadores marxistas
(Gramsci, Lukács, entre outros) desenvolveram uma multiplicidade de abordagens da
cultura. Vamos utilizar aqui a abordagem criada por Raymond Williams1, denominada
de materialismo cultural. Para o materialismo cultural, tudo o que criamos de mais
“sublime”, como a música, a literatura, todas as formas de “arte”, os sentimentos
(solidariedade, justiça, paz, amizade, etc.), e assim por diante, são impensáveis sem
considerarmos o plano material em que são produzidos e reproduzidos. Se as produções
culturais são tradicionalmente pensadas pelo idealismo como ideias criadas do nada,
frutos que surgem espontaneamente da mente do “artista”, para o materialismo
cultural a cultura é a expressão simbólica da realidade material de uma dada sociedade.
A epígrafe de nosso trabalho, tomada do historiador Edward Palmer Thompson
(contemporâneo, colega, colaborador e com muitas identidades em relação a Williams),
é de uma clareza impactante nesse sentido:

"[...] A sociedade capitalista foi fundada sobre formas de exploração


que são ao mesmo tempo econômicas, morais e culturais. Se
tomarmos a relação produtiva definidora (a propriedade privada dos
meios de produção, e a produção visando lucro) e a observarmos de
vários ângulos, ela se revelará cada hora em um aspecto, uma vez em
um (o do trabalho assalariado), outra vez em outro (o do ethos
aquisitivo), ainda outra vez em outro (a alienação do trabalhador das
faculdades intelectuais que não são necessárias para seu papel de
produtor)" (THOMPSON, 1965, p. 356).

Em outras palavras, o materialismo cultural se opõe às noções que entendem a cultura


como um espaço separado das condições materiais que a geraram (muitas vezes até
mesmo propondo a cultura, romanticamente, como uma espécie de refúgio, um
"espaço sagrado", protegido da sanha implacável do capitalismo). Em vez disso, para o
materialismo cultural de Williams, assim como para Palmer, a cultura é indissociável da
sociedade que a produz. Em vez de um reino abstrato, produzido de maneira livre e
imotivada pela mente, para o materialismo cultural a cultura é um ângulo diferente de
onde se pode observar a lógica interna que rege cada sociedade (determinada por uma
base econômica formada pelas forças produtivas e pelas relações de produção). Se a
base econômica, nas sociedade capitalistas, é baseada na exploração do trabalho não

1
O teórico e escritor galês Raymond Williams (1921-1988) foi o criador do método do
materialismo cultural (que teve forte influência de Antonio Gramsci). Um dos fundadores dos cultural
studies (estudos culturais) e da New Left Review, Williams foi uma das figuras mais influentes e
inovadoras da cultura crítica inglesa do século XX (LOWY, 2023, p. 1).
pago, a partir da apropriação privada dos meios de produção originariamente coletivos,
sua expressão econômica é o trabalho assalariado (ou seja, forma de remuneração que
oculta a exploração produzindo a aparência de que o trabalho está sendo remunerado,
quando, na verdade, está remunerando apenas a força de trabalho comprada, ou o
tempo de trabalho necessário). Do ponto de vista moral (ou seja, o caráter daquilo que
essas sociedades impõem como o dever de todos, como o objetivo a ser alcançado pelos
cidadãos dignos), a expressão da lógica determinante dessa sociedade será uma
racionalidade baseada na aquisição privada e individualista de bens e serviços por cada
um (não o fornecimento coletivo para suprir todas as necessidades de todas e todos). E,
finalmente, o ângulo cultural vai se apresentar, da mesma maneira, obedecendo à lógica
interna dessa sociedade: o/a trabalhador/a será alienado do conhecimento
emancipador produzido pelo coletivo humano em toda sua história. Para esse/a
trabalhador/a, será fornecido um ensino básico de péssima qualidade, que o habilitará
a ser mão de obra passiva, descartável e substituível. Com relação às produções
culturais, o que será fornecido a esse/a trabalhador/a será a indústria cultural: música e
vídeos com estrutura infantil, uma fórmula simples, feita para não exigir esforço
interpretativo, cujo propósito será gerar passividade e uma satisfação apática. Como se
vê, os aspectos econômico, moral e cultural se complementam, atuando em diferentes
faces do ser humano, com o objetivo final de fortalecer a lógica interna da sociedade
capitalista.
Ou seja, para o materialismo cultural, embora devamos diferenciar os diversos
níveis que constituem uma formação social – os níveis econômico, político, ideológico-
cultural, etc. – um não é compreensível se separado de maneira estanque do outro. O
nível econômico é constituído em seu cerne pela cultura de seu período sócio-histórico:
as transformações materiais e tecnológicas com evidentes consequências econômicas
produzidas desde os primórdios da era burguesa (os instrumentos de navegação, os
mapas, os navios, etc., e depois todos os desenvolvimentos teóricos do Iluminismo,
voltados para o domínio da natureza e para a organização da vida social), apenas para
dar um exemplo, eram fundadas em concepções culturais – uma oposição à cultura
teocêntrica da Idade Média, uma crença na racionalidade, na objetividade, na
materialidade.
Da mesma maneira e inversamente, a cultura deste período – como de qualquer
período – precisa responder ao seu tempo histórico, e também precisa colocar questões
a ele. Não apenas as concepções mais gerais que circulam entre as pessoas na produção
e reprodução de seu modo de vida – ou seja, cultura no sentido antropológico – mas
também a cultura no sentido de produções ditas “artísticas” (músicas, peças de teatro,
literatura, etc.). Todas essas produções estavam dialogando com sua época, e, para além
de um exercício de aprofundamento da sensibilidade (que também é histórica, e
também é parte e função do desenvolvimento das forças produtivas), constituíam um
meio específico para a colocação de questões relativas ao que constitui a experiência de
sua época.
No caso, uma das perguntas importantes dizia respeito à natureza, condições de
possibilidade, novos modos de ser e existir do novo agente histórico colocado em ação:
a classe burguesa. Tais questões foram mobilizadas nas diversas artes, a partir da criação
de novas formas. Na música, a forma-sonata (MACHADO e MONTEIRO, 1994). Na
literatura, o romance. No teatro, o “drama novo” ou “drama moderno” de Tchékov.
Assim, a cultura como um todo, e a arte como parte desta, eram (e continuam sendo)
um laboratório de experimentação e criação de ideias que buscam responder a questões
colocadas por seu tempo e, assim, reorientá-lo continuamente. Nesse processo, como
não poderia deixar de ser, a cultura é um terreno conflituoso, em que as contradições
de um determinado período social-histórico são encenadas, promovendo
transformações concretas sobre a vida produtiva. Em suma, não se pode falar de uma
economia e uma política que não estejam indissoluvelmente constituídas pela cultura
de seu tempo, da mesma maneira que não há sentido em se falar de uma cultura em
cujo sangue não circulem a economia e a política de sua conjuntura sócio-histórica.
A relação entre música e materialidade é bastante evidente: basta pensar que os
sons musicais dependem da materialidade do ar para se propagar. Mas dependem
também de instrumentos musicais, que são, eles mesmos, materiais (se você estiver
pensando na voz humana, sua materialidade é evidente: o corpo humano). Isso implica
que temos que pensar concretamente quando falamos de música: não é possível
entender música em um sentido abstrato, como algo que seja válido para todo tempo e
lugar. Se estamos falando de música no período medieval, por exemplo, temos que falar
dos instrumentos musicais que eram usados naquele momento (e também da lógica
econômica que regia a sociedade feudal, lógica essa diferente daquela da sociedade
capitalista). Isso implica em falar da tecnologia que era disponível para a fabricação de
instrumentos musicais (por exemplo, ainda não existia o piano, com suas tremendas
possibilidades de dinâmica. Isso influenciou decisivamente a música orquestral, e
mesmo a não-orquestral daquele tempo, em que não havia crescendo e diminuendo da
forma como conhecemos hoje, mesmo que os demais instrumentos da orquestra
pudessem realizá-los.) Mais ainda, se estamos falando da fabricação de instrumentos
que tornam a música possível, temos que considerar que é imprescindível haver um
conjunto de profissionais que constroem esses instrumentos, os luthiers (e, mais uma
vez, a forma de remuneração desses profissionais, que obedecerá à lógica econômica
dessa sociedade). Mas esses luthiers não surgem como mágica. É preciso que passem
por um processo de aprendizagem de seu ofício, um processo que dura décadas (em
que a lógica econômica é determinante: quem paga, quem recebe, onde se estuda,
quais os materiais necessários para o aprendizado, etc.). Para isso precisam de mestres,
e também de oficinas, de serras e outros instrumentos que permitam a fabricação de
instrumentos (tudo de maneira coerente com a organização econômica). Durante todo
esse tempo, precisarão alimentar-se, vestir-se, um lugar para dormir, meios de
transporte, e assim por diante (o aspecto econômico é evidente). Por sua vez, a
fabricação de instrumentos precisará de madeira, metal, filamentos, e todo tipo de
matéria prima, que também necessita de toda uma estrutura e cadeias produtivas
materiais (pessoas que derrubam e plantam árvores, que retiram os minérios do solo,
que os beneficiam, e assim por diante). Também os próprios músicos precisam
alimentar-se, vestir-se, precisam de moradia, de cuidados médicos, odontológicos, e
tudo isso é material e ao mesmo tempo econômico. Tudo isso influencia como a música
é imaginada, composta, arranjada, executada. Precisam também formar-se como
músicos, e na Idade Média isso se dava em confrarias e conventos, portanto precisavam
de existência material, instituições, móveis, bibliotecas, tudo coerente com a
organização econômica da época. A execução da música, sempre pensando num
período muito antigo, necessitava de espaços propícios para isso, em geral igrejas, cuja
acústica influenciava as composições e execuções, bem como os comportamentos dos
ouvintes, e tudo isso é material e, ao mesmo tempo, econômico.
Nos nossos dias, toda essa cadeia material e econômica necessária para a
existência da música se ampliou de maneira vertiginosa. Falando de uma das muitas
maneiras de formar um músico, temos a universidade onde você estuda, que precisa de
prédios, energia elétrica, móveis, computadores, internet, água, material de limpeza,
manutenção, e assim por diante (financiada por impostos, de acordo com a lógica
econômica capitalista). Para que a música seja ouvida para além de um pequeno grupo
de amigos, é preciso um bar, uma casa noturna, uma sala de concerto, um teatro (todos
eles organizados pelas relações sociais capitalistas). Cada um desses espaços articula
uma cadeia de diretores artísticos, donos de estabelecimentos, cada um com seus
interesses materiais e econômicos também conformando a música criada e executada,
escolhendo que música será tocada a partir de critérios que sempre vão ser, em alguma
medida, econômicos (onde e com que frequência se programa e se escuta uma música
que não interessa a ninguém, e, por conseguinte, não gera nenhum tipo de valor
econômico?). Afinal, todas estas milhões de pessoas que tornam a música possível em
todo o planeta, ao longo de toda a cadeia produtiva da música, que como vimos, é
vastíssima, precisam alimentar-se, vestir-se, precisam de moradia, de cuidados médicos,
odontológicos, precisam de lazer, de ler, precisam criar seus filhos, educá-los, alimentá-
los, vesti-los, e assim por diante, e tudo isso custa dinheiro, não é algo que se faça
puramente no mundo da idealidade. Enfim, fica claro que imaginar a música (ou
qualquer outra prática humana) excluindo a consideração de sua materialidade é um
exercício estéril, em grande parte circunscrito a pessoas privilegiadas em uma torre de
marfim, afastadas do corre-corre diário em que vivem os e as trabalhadores/as.
Os pensadores que deram expressão científica a esta constatação óbvia foram
Karl Marx e Friedrich Engels. Não nos deteremos, aqui, a comentá-los, mas é preciso
dizer que os muitos críticos materialistas da arte e da cultura que surgiram após Marx e
Engels se colocam como devedores e continuadores de sua obra em algum grau. Entre
eles, estamos focalizando Raymond Williams e seu método do materialismo cultural.
No Brasil, mesmo que não tenham influências de Williams, podem ser citados
como figuras de primeira grandeza da crítica materialista o falecido professor de
literatura da USP Antônio Candido e o crítico literário Roberto Schwarz. Um breve exame
de um de seus trabalhos pode dar uma ideia prática de o que se entende por crítica
materialista na cultura.
De acordo com a professora Maria Elisa Cevasco, a análise de Candido sobre o
romance Memórias de um Sargento de Milícias contraria a noção de que ordem e
desordem são dois universos opostos. Na análise (Cevasco refere-se à cena em que o
sargento aparece vestido da cintura para cima com a farda militar, e da cintura para
baixo com roupa de casa, ceroula e tamancos), Candido evidencia que nós, brasileiros e
brasileiras, somos estruturados por uma dialética (ou interdependência) entre os
universos da ordem a da desordem. A isso Candido deu o nome de dialética da
malandragem, apresentando-se como nosso primeiro exemplo da análise materialista
da cultura (CEVASCO, 2007, p. 4).
Por sua vez, Schwarz detectou, em Machado de Assis, uma crítica social
pungente sobre a maneira como, no Brasil, os ideais capitalistas recém-implantados se
apresentam como “ideias fora do lugar”, uma vez que precisam ser filtrados pela
ideologia patriarcal de um país escravagista e autoritário. Em outras palavras, na leitura
de Schwarz da obra de Machado, no Brasil, por sua condição de país periférico e
dependente do capitalismo central, os valores capitalistas não se manifestam da mesma
maneira que nos países dominantes, pois precisam ser mediados pelo favor do patriarca.
A noção de “trabalho livre”, imprescindível para o sistema capitalista, seria, segundo
Schwarz, defeituosa no país escravagista, onde tudo precisa passar pelo favor pessoal
do senhor (SCHWARZ, 1992).
Por estes dois exemplos, tirados da literatura, podemos ter uma ideia simples e
básica do diferencial de uma crítica materialista. Em vez de pensar na chamada “obra
literária” como algo que surge desmotivadamente da imaginação livre de gênios
iluminados, essa crítica busca ver como a arte é uma produção material da sociedade,
e, como tal, expressa essa sociedade (e também pode funcionar como uma crítica dessa
sociedade, como vimos nos dois exemplos acima, e, nessa condição, atuar para
transformá-la). Toda arte é arte de um tempo e lugar específico, e responde a esta
condição – que, em seu sentido mais amplo, denominamos de condições de produção.
Portanto, nossa produção é condicionada pelo período histórico, bem como pelo lugar
geográfico em que vivemos. História e lugar determinam as tecnologias e materiais a
que temos ou não acesso, e isso tem papel determinante sobre nossas produções. Por
sua vez, os significados, o domínio do simbólico, os sentimentos, as emoções também
fazem parte desta ordem social-histórica, e, são, portanto, igualmente materiais, já que
vão constituir a carne dos processos sociais e artísticos. No caso das Memórias..., a
dialética entre ordem e desordem que se apresenta no plano cultural em que vivia o
autor se materializa em processos, instituições, etc., o que a faz materializar-se em um
livro, que, por sua vez, vai influenciar o imaginário social, tendo a possibilidade de
realizar transformações materiais na realidade social. A mesma concretude se dá no
caso de Machado/Schwarz: a realidade social em um país escravagista produz o filtro
pelo qual vão passar as ideias vindas de fora, ou seja, o liberalismo; esse filtro, além de
ser diretamente material, pois vai influenciar a realidade social concreta em que vivem
as pessoas, suas instituições, a organização da vida pública e privada, etc., também vai
se materializar em uma obra literária, e certamente influenciou muitas pessoas que se
revoltaram contra o escravagismo, produzindo resultados materiais.
Mas há uma distinção importante a ser feita dentro do materialismo: há uma
corrente ligada ao que se chama de marxismo vulgar ou mecanicista que entende a
cultura como um “reflexo” da estrutura material (que corresponde a um dado nível de
desenvolvimento das forças produtivas e a relações de produção). Enquanto o
pensamento de Marx e Engels é extremamente dinâmico, sendo fundado na dialética
(um ramo da filosofia que estuda as relações, enquanto outras escolas filosóficas
altamente influentes, como o positivismo, de onde derivou o chamado “método
científico”, estudam coisas), essa distorção do marxismo deu origem a um pensamento
que entende a cultura como passiva, ou seja, a cultura (ou superestrutura) meramente
“refletiria” a estrutura material. Ao contrário, o materialismo cultural entende as
relações entre cultura/ superestrutura e base material/ estrutura como dialéticas (ou
seja, interdependentes, nunca estáticas, sempre dinâmicas). Em outras palavras, para o
materialismo cultural a cultura é ativa. A partir da ação cultural (da ação que exercemos
na cultura, seja, por exemplo, fazendo música, ou analisando e ensinando música) temos
a possibilidade de transformar a sociedade.
Então, para além da constatação, a esta altura óbvia, de que a cultura é material,
temos duas consequências que precisam ser salientadas: não apenas a cultura é
material porque dá forma a aspectos simbólicos que são produzidos a partir da realidade
material, mas também porque ela mesma, a cultura, é capaz de interferir sobre a
realidade material, a partir da influência que exerce sobre as pessoas, que podem
transformar o mundo. Em outras palavras, a cultura é tanto reprodução da realidade (da
ideologia) quanto possibilidade de produção de outras realidades (contra-ideológicas).
Com essa formulação, fica claro, também, que os críticos do materialismo (que
propõem que uma análise materialista da cultura desvaloriza os elementos da criação
humana em favor de uma determinação mecânica da cultura pela realidade material)
possuem uma compreensão precária do que é a crítica materialista. Nenhuma realidade
material é capaz de explicar, em detalhe, os mecanismos da criação, seja de Bach, seja
de Chiquinha Gonzaga ou de Bezerra da Silva. O que pode dizer, e diz, é que o trabalho
que conhecemos desses compositores não poderia existir fora de seu tempo-espaço (e
mesmo que pudesse ser produzido da mesma forma, não faria sentido para o público
desse outro tempo-espaço: Bach não teria os meios técnicos e tecnológicos para
produzir música eletroacústica – nem mesmo a realidade industrial que suscitou a ideia
de alguém fazer música eletroacústica foi conhecida por Bach. Mas, se por acaso fizesse
música eletroacústica, não seria compreendida pelo seu público. Da mesma maneira,
compor música exatamente à maneira de Bach no século XXI é algo deslocado com
relação à realidade, não responde às exigências e inquietações sociais da maior parte da
população, e, consequentemente, não despertaria interesse do público.)
Assim, por um lado, as tentativas de “explicar” a engenhosidade humana
colocada na criação ou na execução musicais a partir das condições materiais são
grosseiras e reducionistas. A invenção humana não é redutível a esquemas prontos.
Como criação complexa, a criatividade musical precisa ser estudada com todo o
aprofundamento que merece, em seus próprios termos, o que implica na análise de suas
estruturas por meio das e diversificadas metodologias especializadas.
Mas, por outro lado, a crítica materialista também vai dizer que a invenção
humana se materializa em práticas sociais (seja o samba, a música de concerto, etc.),
que produzem efeitos materiais: a criação da roda de samba, dos teatros, das partituras,
dos instrumentos musicais, das tecnologias musicais, das gravações, dos fonogramas,
dos meios de comunicação de massa, e tudo o que existe para que esta música seja
composta, produzida, executada, escutada, ensinada, transmitida, etc.
Da mesma maneira, a roda de samba, o teatro, etc., enquanto efeitos também
materiais, produzem diferentes tipos de sociabilidade (popular, de elite, etc.), e
reforçam ou combatem diferentes ideologias ligadas a questões de poder (qual o
comportamento aceitável para uma dada sociedade com relação a raça, gênero,
sexualidade, etc.? A própria questão da pouca presença de mulheres compositoras é um
indício, entre outros, dessas ideologias). É evidente, assim, que os comportamentos e
ideias produzidos ou reforçados por meio das práticas culturais têm existência e
influência material (por exemplo, fortalecendo ou combatendo ideologias que
constituem as instituições, como o Judiciário, o Legislativo, a Escola, etc.).
Este é o percurso que seguiremos no estudo da história da música popular
brasileira. Procuraremos entender a música de cada tempo não apenas como sons
musicais, muito menos como coisas do passado, mas como documentos que nos levem
a compreender (e, se bem sucedidos, transformar) quem somos hoje e quem podemos
ser amanhã. A história é fundamental para isso, porque tudo o que somos hoje é
resultado de um processo histórico. A análise materialista da música nos leva a entender
a música sem aprisioná-la numa masmorra idealista, separada da realidade do dia a dia.
Busca compreender música e sociedade como uma só, em que qualquer separação pode
ser, no máximo, didática, mas onde sons musicais, ideologias, tecnologias, significados
simbólicos, realidade social, forças produtivas, relações de produção, tudo habita num
só corpo – que engloba e constitui todos os nossos corpos. E, principalmente, a análise
materialista da música mostra o que é essa sociedade em que vivemos, e como ela
constrói a música, as instituições e pessoas de maneira adequada às relações sociais
vigentes (no caso, relações de exploração e opressão). A análise materialista da música
permite um olhar crítico sobre nossa sociedade, que possibilita sua transformação.

Colonialismo e capitalismo: das origens à contemporaneidade


Conforme estou ressaltando, a partir do materialismo cultural entendemos a
cultura como um todo, a música em particular, a estrutura econômica e social e o âmbito
político como partes de um todo; partes que possuem sua autonomia relativa em
relação ao todo, mas que são determinadas, em última instância, pelo econômico (você
não encontrará numa sociedade organizada de acordo com a lógica capitalista uma
prática social ou cultural que coloque em risco real essa ordem sem que os poderes
estabelecidos se manifestem para neutralizá-la). Essa metodologia de análise da música
na cultura implica em enxergarmos a música como um elemento até certo ponto
autônomo em relação à sociedade, para que as práticas musicais possam exercer sua
efetividade real sobre o conjunto social, atuando, em certos casos, para transformá-lo.
Mas também implica em entender que as práticas musicais se formam no interior dessa
mesma sociedade, sendo moldadas por ela. Por isso, não é de se espantar que todas as
relações de poder que existem no âmbito da sociedade também sejam encontradas na
música. O racismo, por exemplo.
Estudando a música popular brasileira (como de qualquer outro lugar),
encontraremos diversas manifestações de preconceito, entre eles o de raça. No período
pós-moderno, moralista e censurado em que vivemos atualmente, existe forte pressão
para “cancelar” e censurar essas músicas. Presume-se que, se as músicas (e livros, e
peças de teatro, e poesias, e esculturas, e pinturas, etc.) de teor racista forem
censurados, o racismo deixará de existir. No entanto, a expressão do racismo é
encontrada em produtos e mercadorias culturais porque, efetivamente, o racismo existe
na sociedade. Censurando as expressões artísticas que tenham teor racista por
expressarem a sociedade em que foram geradas, além de cometer um crime contra a
memória, a história e as artes de um país, perdemos uma oportunidade fundamental
para problematizar esse passado-presente histórico junto a nossos/as estudantes e ao
público. É crucial, em vez de censurar, estarmos preparados teoricamente para
oferecermos uma mediação às produções culturais de teor racista. Se a censura
meramente mascara o fato e reprime a possibilidade de debate e esclarecimento, a
mediação permite lançar uma luz sobre todas as mazelas da sociedade para que, sem
tabus, a classe trabalhadora possa ser esclarecida de uma forma condizente com suas
necessidades e interesses. Não destruiremos o racismo meramente proibindo suas
expressões, sem destruir suas causas. E as causas são o colonialismo e o capitalismo,
nosso próximo assunto.
A história dos povos originários na região que seria o Brasil tem milhares de anos.
Já a história do Brasil começou com o colonialismo e se continua até hoje com o
colonialismo, portanto é impossível falar do passado, presente e futuro do Brasil sem
levar em conta, de maneira central, o colonialismo.
A chamada “era dos descobrimentos” consistiu na acumulação de recursos
econômicos pelas nações europeias na fase comercial do capitalismo (MARX, 2013, p.
963)2, conhecida como capitalismo mercantil, ou mercantilismo. Tratava-se de comprar
produtos baratos, notadamente especiarias, em locais distantes da Europa, para
revendê-las mais caras na Europa, para que, a partir do século XVIII, tivesse início a fase
industrial do capitalismo.
Como parte deste esforço de acumulação de recursos, o colonialismo foi
elemento integrante do capitalismo mercantil desde o princípio. Segundo o eminente
historiador Eric Williams, “A importância da descoberta da América repousa não nos
metais preciosos que ela forneceu, mas no novo e inesgotável mercado que propiciou
às mercadorias europeias” (WILLIAMS, 1975, p. 57). “Um de seus efeitos principais foi o
de ‘elevar o sistema mercantil a um grau de esplendor e glória que de outro modo nunca
teria sido alcançado’” (ADAM SMITH apud WILLIAMS, 1975, p. 57). Para a Grã-Bretanha,
esse comércio era principalmente feito entre ela, África e as colônias, constituindo o que
denomina de um comércio triangular. Esse comércio consistia em que o navio negreiro
saía da Inglaterra carregado de mercadorias manufaturadas, que eram trocadas por
pessoas escravizadas na costa da África. Daí, o navio partia para a América, onde os
africanos eram vendidos para trabalharem na produção agrícola. Os navios eram
carregados com os produtos das colônias, e retornavam para a Europa.
Devido a isso, para Williams, “o comércio triangular proporcionava assim um
estímulo triplo à indústria britânica”:
Os negros eram adquiridos com artigos manufaturados britânicos;
transportados para as plantações, produziam açúcar, algodão, anil,
melaço e outros produtos tropicais, cujo beneficiamento criava novas
indústrias na Inglaterra; enquanto a manutenção dos negros e seus
donos nas plantações propiciava outro mercado para a indústria
britânica [...]. [...] Os lucros obtidos forneceram um dos principais
fluxos dessa acumulação de capital na Inglaterra que financiou a
Revolução Industrial. (WILLIAMS, 1975, p. 78, grifo meu).

Portanto, a relação intrínseca entre capitalismo e colonialismo explica o


surgimento do racismo. Transformados em mercadorias, os e as africanos/as
escravizados tornam-se coisificados, e isso é funcional ao capitalismo: promovendo a
divisão e o conflito entre membros da classe trabalhadora (“brancos” ou quase-brancos

2
"Embora os primórdios da produção capitalista já se nos apresentem esporadicamente, nos séculos
XIV e XV, em algumas cidades do Mediterrâneo, a era capitalista só tem início no século XVI." (MARX, O
Capital, vol. 1, Boitempo, 2013, p. 963).
se sentindo “superiores” em relação a seus irmãos e irmãs negros ou mulatos),
produzindo uma baixa autoestima, rebaixando o valor da força de trabalho de todas e
todos os e as trabalhadores/as (não apenas daqueles/as submetidos ao racismo), etc.
Esta funcionalidade do racismo para o capitalismo faz com que ele permaneça atual em
várias sociedades mundiais (inclusive porque não existe racismo apenas contra o negro
ou os povos originários; asiáticos, árabes e até mesmo europeus são submetidos ao
racismo através do planeta).
E o racismo, estando presente até hoje na sociedade brasileira, também está
presente na música popular brasileira. No entanto, o que a história demonstra, como
vimos, é que o racismo está fundamentado nas relações sociais de produção e
ideologias, que são os pilares da sociabilidade capitalista. Isto implica em que a
continuidade das relações sociais capitalistas é, necessariamente, a continuidade do
racismo. Esta consideração é importante para qualquer diagnóstico ou
encaminhamento referente à luta contra a discriminação racial. O mesmo fundamento
se aplica a todas as demais discriminações, como de gênero, sexualidade, etc.

Referências
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