físicas do som como tais, mas sim da relação do homem com o som"
Definir, afinal, é explicitar uma concepção de musicalização, como uma
proposta que revela uma visão de mundo.
Musicalização: ato ou processo de musicalizar.
Musicalizar(-se): tornar(-se) sensível à música, de modo que, internamente, a pessoa reaja, mova-se com ela (cf. Gainza, 1988, p. 101).
1a reavaliação: a música como linguagem
socialmente construída
Como uma forma de arte - cuja especificidade é ter o
som como material básic02 -, caracteriza-se como um meio de ex- pressão e de comunicação. Meio de expressão, por objetivar e dar forma a uma vivência humana, e de comunicação por revelar essa experiência pessoal de modo que possa alcançar o outro e ser com- partilhada (cf. Vasquez, 1978).
Sendo uma linguagem artística, culturalmente construída, a
música - juntamente com seus princípios de organização - é um fenômeno histórico e social
outros grupos e outras culturas criaram modelos distintos para a
organização dos sons.
Com essas afirmações, toma-se mais claro que o "ser sensível à
música" não e uma questão mística ou de empatia, não se refere a uma sensibilidade dada, nem a razões de vontade individual ou de dom inato. Trata-se, na verdade, de uma sensibilidade adquirida, construída num processo - muitas vezes não consciente - em que as potencialidades de cada indivíduo (sua capacidade de discriminação auditiva, sua emotividade etc.) são trabalhadas e preparadas A condição para que o indivíduo possa apreender a obra, dando-lhe sentido, é o domínio prévio dos instrumentos de percepção - isto é, de referenciais intemalizados, construídos a partir de sua experiência, que lhe sirvam como esquemas de interpretação. Assim, a sua "competência artística" está diretamente vinculada ao grau desse domínio e ao refinamento desses esquemas de interpretação} (Bourdieu; Darbel, 2003, p. 71-74).3 Na falta desses instrumentos específicos, o indivíduo se orienta por referenciais emprestados da vida cotidiana, aplicando às obras de arte aqueles mesmos referen- ciais que lhe permitem apreender os objetos de seu ambiente diário como dotados de sentido (Bourdieu; Darbel, 2003, p. 80).
<Na perspectiva abordada, portanto, musicalizar é desenvol-
ver os instrumentos de percepção necessários para que o indivíduo possa ser sensível à música, apreendê-Ia, recebendo o material sono- ro/musical como significativo.Pois nada é significativono vazio, mas apenas quando relacionado e articulado ao quadro das experiências ~cumuladas, quando compatível com os esquemas de percepção desenvolvidos:
2° reavaliação: O acesso socialmente
diferenciado à música, à arte e à cultura
Forma "espontânea" ou informal de se musicalizar
Isso porque nem todos têm, socialmente, acesso à imensa
riqueza que é a música no momento atual, sob a forma de diferentes manifestações. Visto que essas manifestações musicais diferencia- das carregam significações sociais diversas, cabe indagar qual é a música que nos serve de referência para musicalizar.
Estaremos, ainda, desconhecendo que a música só existe
concretamente sob a forma de expressões culturais diferenciadas, que refletem - não de modo mecânico, vale lembrar - modos de vida e concepções de mundo.
o entanto, a música tonal ainda é um padrão bastante forte
no processo educativo.
visão etnocêntrica
historicamente, a música erudita configurou-se como uma música de
elite, de modo que, sendo ela o padrão (educacional) a alcançar ou mesmo a venerar, é. ao mesmo tempo, um ideal tornado inacessível.
Não são fatores do tipo pobreza de espírito ou de inteligência
que mantêm a grande maioria da população brasileira distante da música erudita; esse tipo de argumento só esconde as reais determinações.
"A obra de arte considerada
enquanto bem simbólico não existe como tal a não ser para quem detenha os meios de apropriar-se dela"
'úm imenso número de pessoas se encontra, portanto, numa situação
sociocultural tal que dispõe de parcos instrumentos para exercer a crítica da realidade musical em que vive, dificilmente tendo condições de romper com os padrões difundidos pela indústria cultura Nesse quadro, portanto, concertos gratuitos não são garantia suficiente para um acesso democrático à música erudita
3a reavaliação: a escola e seus limites
O ensino da música, especificamente, não
escapa do quadro geral do sistema de ensino brasileiro, que ainda é excludente e elitista o aluno que é levado a fracassar interioriza "as razões da culpa como de- vidas à sua própria incapacidade e falta de motivação"
E a condição para o sucesso na escola, tanto no campo da
música como no desempenho global, é uma competência prévia, ge- rada por experiências culturais que são desigualmente distribuídas na sociedade, a escola acaba por reproduzir essas desigualdades ini- ciais. Se a instituição escolar se dispensa de promover metodicamen- te esta cultura que ela pressupõe, "ao [se] omitir de fornecer a todos o que alguns recebem da família" - como dizem Bourdieu e Darbel (2003, p. 108) -, estará perpetuando e legitimando as desiguald~des sociais, não sendo capaz de quebrar o círculo vicioso que condena ao fracasso as ações de educação cultural (dentro e fora da escola, como os concertos gratuitos, por exemplo)
Musicalização: o tema redescoberto
Não cabe tomar a musicalização, portanto, como um trabalho "pré- musical", uma preparação para um aprendizado nos moldes tradicionais (o estudo de "teoria musical", de um instrumentoetc.). Tampoucoa entendemos como dirigidasomentea crianças (o que é uma visão bastantecomum) "Se a educação e a arte devem estar a serviço do homem, sua estratégia deve partir de sua própria cultura, ainda que seja a cultura do oprimido".
Dessa base, o projeto de musicalização deve apontar, como
meta ideal, para a apropriação da música erudita como um bem sim- bólico, no sentido de deselitizar o seu acesso. A proposta é que o aluno seja capaz de apreender essa música como significativa, esco- lhendo se lhe convém ou não - o que é bastante diferente de estar destinado, por condições sociais, a ficar alheio a ela.
o objetivo específico da educação musical consiste em
colocar o homem em contato com seu ambiente musical e sonoro, descobrir e ampliar os meios de expressão musi- cal, em suma, "musicalizá-lo" de uma forma mais ampla
concluindo concebemos a musicalização como um pro-
cesso educacional orientado que, visando promover uma participa- ,<10mais ampla na cultura socialmente produzida, efetua o desen- volvimento dos esquemas de percepção, expressão e pensamento necessários à apreensão da linguagem musical, de modo que o in- divíduo se torne capaz de apropriar-se criticamente das várias mani- festações musicais disponíveis em seu ambiente - o que vale dizer: IIlscrir-seem seu meio sociocultural de modo crítico e participante. Esse é o objetivo final da musicalização, na qual a música é o mate- nal para um processo educativo e formativo mais amplo, dirigido para o pleno desenvolvimento do indivíduo, como sujeito social.