Você está na página 1de 1623

Sobre Ontens

www.revistasobreontens.site
ISSN 2176-1876

Editorial
EDITORES
Prof. André Bueno [UERJ]
Prof. Dulceli Tonet Estacheski [UFMS]
Prof. Everton Crema [UNESPAR]

COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Carla Fernanda da Silva [UFPR]
Prof. Carlos Eduardo Costa Campos [UFMS]
Prof. Gustavo Durão [UFRRJ]
Prof. José Maria Neto [UPE]
Prof. Leandro Hecko [UFMS]
Prof. Luis Filipe Bantim [UFRJ]
Prof. Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP]
Prof. Maytê R. Vieira [UFPR]
Prof. Nathália Junqueira [UFMS]
Prof. Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER]
Prof. Thiago Zardini [Saberes]
Prof. Vanessa Cristina Chucailo [UNIRIO]
Prof. Washington Santos Nascimento [UERJ]

COMISSÃO EDITORIAL
Prof. Aristides Leo Pardo [UNESPAR]
Prof. Caroline Antunes Martins Alamino [UFSC]
Prof. Jefferson Lima [UDESC]

Periódico produzido e promovido pelo


“BOLANDO UM SOM”: ENSINANDO HISTÓRIA COM
MÚSICA
Adauto Santos da Rocha
Míriam de Lima Cabral
1

Resumo: A música é um proveitoso instrumento para o ensino de História,


visto que funciona como meio de difusão de conteúdos através de uma
justa harmonia entre sons, o que em síntese é tratado como eficiente no
que diz respeito ao campo de ensino da História. Com o intuito de
apresentar possibilidades de ensino através da música, esse trabalho
norteia-se na busca e na análise de composições dos mais variados estilos
musicais, fundamentadas no repasse de conteúdos históricos, implícita ou
explicitamente. No decorrer do texto serão apresentadas ao leitor
algumas composições, a fim de fomentar uma discussão subjetiva sobre
possíveis diálogos entre música e história, visando como as composições
podem ser aplicadas no espaço educacional.
Palavras-chave: Ensino. Escola. História.

Abstract: Music is a useful tool for the teaching of History, since it works
as a way to broadcast content through a fair harmony between sounds,
which in essence is treated efficiently in regards to the teaching field of
History. In order to provide teaching opportunities through music, this
work guides itself in the search and analysis of compositions of various
musical styles, based on the transfer of historical contents, implicitly or
explicitly. Throughout the text, there will be presented to the reader some
compositions in order to foster subjective discussions about possible
dialogues between music and history, aiming how these compositions can
be applied inside the educational system.
Keywords: teaching. school. history.
Por séculos a escola foi vista como um local de ensino estático, na
qual o poder sempre esteve centrado nas mãos do professor, este por vez,
convencionalmente, sempre estava posicionado “acima dos alunos”, como
um ser autoritário, munido de artifícios que o transformava em um
profissional provocador de exclusão do aluno em relação às aulas. Embora 2

esse método autoritário de ensino permaneça em vigor dentro de várias


escolas nos dias de hoje, o profissional do ensino de história deve por si só
procurar novos métodos de repasse dos conteúdos que deveram ser
tratados no decorrer das aulas como descrito a seguir por Maria
Auxiliadora:

“As transformações da sociedade contemporânea, bem


como as novas perspectivas historiográficas, como as
relações entre história e memória, têm estimulado o
debate sobre a necessidade de novos conteúdos e novos
métodos de ensino de história”. (Maria Auxiliadora, 2004,
p. 24).

Nessa perspectiva a escola atua como espaço social, e o professor


de história como instrumento de ensino, no sentido de utilizar de outros
meios de instrução fora dos artifícios convencionais para colaborar com a
produção do conhecimento, nesse processo, o trabalho do professor está
centrado em cobrar do aluno a leitura das fontes musicais, a fim de
estimular o gosto pela leitura, tão quanto a formação de um senso crítico
e analítico que será posto em prática pelo aluno através da análise das
letras de determinadas músicas, enquadrando-as no contexto social
vivenciado por cada aluno, buscando fazer um relação entre a música ali
tratada e sua realidade.
A grande jogada na utilização de composições para o ensino de
história do Brasil, por exemplo, é evidenciar o período da ditadura militar
no país, como uma forma de mostrar que nem mesmo a censura e os 3

métodos de repressão dos militares fez com que as músicas deixassem de


ser produzidas, basta pensar apenas nas fortes composições abrolhadas
na época por artistas que acabaram virando ícones da produção musical
do Brasil até os dias de hoje, como Chico Buarque e Milton Nascimento
por exemplo. A grande maioria da produção musical do Brasil em torno do
Golpe de 64 esteve ligada ao feitio de denúncias metafóricas proliferadas
contra o estado e suas práticas em relação à repressão, tortura e
silenciamento da população.
A musicalidade serve como uma fonte inesgotável quando se trata
de ditadura militar no país, é importante ressaltar ainda, que o ensino de
História através da música engloba questões que vão além do quadro
político, tais como: aspectos culturais, religiosos, além de tratar de
expressões artísticas singulares de cada povo, como descrito por David no
trecho a seguir:

“Como função cultural, o exercício da música possibilita


vivenciar sentimentos pretéritos e presentes de uma
época, pela percepção de como o compositor diz o que diz.
Como código musical envolve a ideologia e a “maneira de
ser” de determinada época, sua vivência estimula formas
de pensamento distintas do rotineiro, o que significa dizer
que a música possibilita ao educando atentar para seus
sentimentos, alimentando-os com experiências vivenciadas
e ressignificadas em novas relações. E se a obra musical
aponta determinada direção aos sentimentos do educando
(ouvir música é ouvir direções), ela também descortina
novas possibilidades de que ele se sinta e se conheça, pois
a maneira de vivenciá-la é exclusivamente pessoal, é
exclusivamente função do receptor. Expressando sentidos 4
irredutíveis a palavras, a música cria um espaço em que os
sentimentos dos educandos acabam por encontrar novas e
múltiplas possibilidades de ser.” (DAVID, p. 133, 1990).

O ensino de história que explora o campo das mentalidades e das


musicalidades faz da música um novo paradigma para o ensino da história,
para tanto é necessário que o professor conheça características do
período historiográfico ao qual a música está inserida e/ou será
relacionada, a fim de evitar equívocos em relação à transparência dos
conteúdos propostos, para que se possa fazer a analogia com o assunto
indicado, sempre lembrando muito bem de fazer um recorte temporal ao
que será apresentado aos alunos no decorrer das aulas.
É importante ressaltar que a ludicidade está invadindo os ambientes
escolares, e é nesse sentido que a música entra no local de ensino,
engendrada nos smartphones, tablets, e quaisquer outros objetos
portáteis que permitam o armazenamento dos conteúdos musicais. Para
Élia Santos:

“O lúdico é uma estratégia insubstituível para ser usada


como estímulo na construção do conhecimento humano e
na progressão das diferentes habilidades operatórias, além
disso, é uma importante ferramenta de progresso social e
alcance de objetivos institucionais” (SANTOS p.2, 2001).
Partindo do pressuposto de Santos, a música enquadra-se no vasto campo
da ludicidade, ao tempo em que há uma harmonia entre aprender e
brincar, nota-se que através da música o aluno absorve conteúdos se
divertindo, estimulando além da capacidade de aprendizagem o prazer. 5

O uso dessa ferramenta no ensino de história visa desenvolver a


percepção auditiva e a memória musical dos alunos, uma vez que a
utilização das composições musicais nas aulas implicará em uma leitura
acurada e árdua, para que seja possível uma proveitosa extração de
informações dos textos propostos. A metodologia de ensino mostrará aos
alunos como conhecer, apreciar e adquirir posturas de respeito frente às
várias manifestações culturais do país e além dele, se for utilizada uma
composição estrangeira, uma vez que a diversidade cultural está presente
dentro e fora do ambiente de ensino, sendo necessário que o aluno
desperte o senso de curiosidade frente ao contato com as mais variadas e
distintas culturas.
Além de tudo, o aluno deve tomar partida de usos e funções da
música em épocas e sociedades em distinção, visando a projeção de
analogias, uma vez que a sociedade em que vivemos encontra-se
mergulhada em uma espécie de eterna transformação e modernização, a
música consequentemente acompanha essa modernização. Conforme
descrito na parte inicial deste texto, apresentaremos a seguir algumas
composições musicais brasileiras, em seguida serão feitos comentários
que abriram horizontes para que os leitores e professores interessados
pelo assunto pensem e repensem a música como instrumento no ensino
de história.

Música: “Camelô”.
Compositor: Edson Gomes 6

Sou camelô, sou do mercado informal


Com minha guia sou profissional
Sou bom rapaz, só não tenho tradição
Em contra partida sou de boa família
Olha doutor, podemos rever a situação
Pare a polícia, ela não é a solução não
Não sou ninguém nem tenho pra quem apelar
Só tenho meu bem que também não é ninguém
Quando a polícia cai em cima de mim, até parece que sou fera (2x)
Até parece (6x)
Sou camelô, sou do mercado informal
Com minha guia sou profissional
Sou bom rapaz, só não tenho tradição
Em contra partida sou de boa família
Olha doutor, podemos rever a situação
Pare a polícia, ela não é a solução não
Não sou ninguém nem tenho pra quem apelar
Só tenho meu bem que também não é ninguém
Quando a polícia cai em cima de mim, até parece que sou fera (2x)
Até parece (6x)

Nesta música o compositor baiano Edson Gomes tenta mostrar as


dificuldades enfrentadas pelos profissionais que dependem do comércio
informal para sobreviverem, sobretudo nas periferias dos grandes centros
urbanos. É importante notar, que no desenrolar da música pode ser
notado o enfoque em torno das dificuldades que circundam os
vendedores de rua, dentre as dificuldades enfrentadas pelos camelôs, a
repressão fiscal e a pressão policial estão entre as mais latentes, pois,
fazem com que estes trabalhadores sejam excluídos do mercado de
trabalho e fiquem a mercê da sorte, levando em consideração a venda
informal como único meio de subsistência dos trabalhadores informais. 7

Música “Roda viva”


Composição: Chico Buarque

Tem dias que a gente se sente


Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A gente vai contra a corrente


Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
Roda mundo (etc.)

A roda da saia, a mulata


Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá
Roda mundo (etc.) 8

O samba, a viola, a roseira


Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá
Roda mundo (etc.)

A música Roda Vida de Chico Buarque é passível de fazer o ouvinte


adentrar ao contexto social que o Brasil estava inserido durante o período
da ditadura militar, no que diz respeito ao âmbito cultural da época, essa
música acabou metaforicamente representando o fim da liberdade de
expressão. “Roda-viva” faz alusão aos representantes da ditadura, na
segunda estrofe quando Chico Buarque fala de destino, no sentido de
lutar pela liberdade pessoal e artística, ele cita que “a roda viva carrega o
destino pra lá e pra cá”, refere-se à censura imposta às pessoas que
dilacerava os planos de liberdade social. No sentido formal do termo, a
expressão Roda-Viva é, conforme os dicionários, movimentos incessantes;
corrupio; cortado; é ainda confusão e barulho, termos que implicitamente
são percebidos na genial composição acima descrita.
A letra fala em dois momentos, um que manifesta o trabalho
sistemático enfrentado pela população, e outro relacionado ao desejo das
pessoas serem sujeitos de sua própria história, a isto está ligado a vontade
de ter voz ativa, de ir contra a ditadura. Para ajudar na compreensão da
letra e no contexto social em que foi escrita pode-se ler o nome da 9

composição de “trás para frente”, e o termo se tornará: Viva a dor,


manifestando todo o sentimento envolvido durante a ditadura, período
em que a música foi escrita e amplamente difundida.
Conforme planejado no corpo deste trabalho, nós dispomos de
composições distintas relacionadas a temas históricos que podem ser
trabalhadas em sala de aula, com uma análise da letra da música
abordada em aula, tecendo desta maneira, parte dos conteúdos que
devem ser apresentados pelo professor no decorrer das aulas.

Referências
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3.Ed.- Rio de Janeiro, RJ:
Editora FGV, 2005.
ALVES, Hilana Oliveira de; SANTOS Maele dos. O lúdico e o ensino de
história. XVII Simpósio nacional de história. Conhecimento histórico e
diálogo social, 2013.
DAVID, Célia Maria; FAGUNDES, Gustavo Henrique Godoy; JANUARIO,
André Alves. Música: uma ferramenta para o estudo da História. Franca -
SP: CAMINE, 2010.
DAVID, Célia Maria. Criação e interpretações musicais em França: palco e
plateia (1872-1964). São Paulo: Unesp, 2002 (Dissertações e teses, v.6).
DAVID, Célia Maria. Música e ensino de história: uma proposta.
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2009
GUIMARÃES, Márcia Noêmia. Os diferentes tempos e espaços do homem:
atividades de geografia e história para o ensino fundamental / Márcia
Noêmia Guimarães. – 2ed.- São Paulo: Cortez, 2006. 10

LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão – 5ªed. –


Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.
PINSKY, Jaime. O ensino de história e a criação do fato. – 14 ed –São
Paulo : Contexto, 2012.
SCHIMIDT, Maria Auxiliadora. Ensinar História/ Maria Auxiliadora
Schimidt, Marlene Cainelli.- São Paulo: Scipione, 2004.
SILVA, Marcos A. da. Repensando a História. -1° Ed- Rio de Janeiro, RJ:
Editora Marco Zero, 1984.
VICENTIN, Carolina; REBELLO, Bernardo. Balada dos Deuses. Darcy. UnB,
Brasília, (2), p. 50-53, 2009.
RPG, OS PROCESSOS COGNITIVOS E A COMPLEXIDADE:
METODOLOGIA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA

Alexandre Silva da Silva 1


Sara Schneider de Bittencourt 1

Resumo
O Presente artigo visa refletir sobre o ensino da História nas instituições
formais, tendo como base um processo lúdico e temporalmente
contemporâneo, o Role Playing Game (RPG), um jogo de interpretação
que propicia múltiplas interações, o qual tem sua aplicação incentivada
pelo MEC (Ministério da Educação). Para desenvolver tal tarefa
lançaremos mão de revisão bibliográfica relações sistêmicas, sob a luz da
teoria da complexidade de Edgar Morin.
Palavras Chave: RPG, Complexidade, Ensino

Resumen
Este artículo pretende reflexionar sobre la enseñanza de la historia en las
instituciones formales, basadas en un proceso lúdico y el tiempo
contemporáneo, papel jugar juego (RPG), un juego de la interpretación
que proporciona múltiples interacciones, que tiene su aplicación por el
MEC (Ministerio de educación). Para desarrollar tal tarea te suelte la mano
de la literatura revisar relaciones sistémicas, bajo la luz de la teoría de la
complejidad de Edgar Morin.
Palabras Chave: RPG, Complejidad, Enseñanza

1
Mestrando em Educação Ambiental, Bacharel em História com ênfase em Patrimônio Histórico e
Cultural, Prof. Designer Gráfico e Hardware. Universidade Federal do Rio Grande - FURG – Brasil;
http://lattes.cnpq.br/0556531449117799 / Graduanda em História Universidade Federal do Rio Grande
- FURG - Brasil
INTRODUÇÃO
Desde os primórdios das atividades Humana, passando pelos
filósofos Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes e Rousseau, as reflexões
promovidas tendo como base a compreensão do “ambiente”, do Ator
Social humano e das relações sistêmicas presente entre os mesmos se 2

fazem constantes no processo ensino/aprendizagem. Tendo como


elementos base de tal processo a percepção e a experimentação, pois a
mesma propícia uma relação de compreensão sistêmica funcional
valorada que pode ser utilizada na construção da práxis. Pois como
apresenta Morin:

As noções de práxis, trabalho, transformação, produção


não são unicamente interdependentes na organização que
as comporta: transformam-se também umas nas outras e
produzem-se mutuamente, visto que a práxis produz trans-
formações, que produzem actuações, seres físicos,
movimento. (Morin,1997, p152)

Neste contexto o RPG apresenta-se como metodologia de


abordagem pertinente na resolução da demanda ensino/aprendizagem,
pois tem seu fundamentos baseados em linhas de interação relacionadas
por uma narrativa de convergência, onde tal, ao mesmo tempo em que
constrói o caminho a ser “trilhado” pelo jogador, constrói também suas
ações, ocorrendo de maneira dialética e “vibrante”. Pois cada um dos
jogadores deve criar seu personagem, o qual dispõe de características
especificas, complexas e interdependentes. O Jogo é composto também
pela figura do Narrador/Mestre (Mediador) o qual desenvolve a função de
mediar as relações dos jogadores no ambiente da narrativa, propiciando
as informações estruturais ricas em detalhes para os mesmos. O que em
2008 é apresentado por Schmit, o qual evidencia a relevância que as
interações do RPG, promove por:
3

Ser uma contação de histórias interativa, quantificada,


episódica e participatória, com uma quantificação dos
atributos, habilidades e características das personagens
onde existem regras para determinar a resolução das
interações espontâneas das personagens. Além disso a
história é definida pelo resultado das ações das
personagens e as personagens dos jogadores são as
protagonistas. (SCHMIT, 2008, p, 48)

Dispondo de cinco classificações fundamentais, o Live-Action,


aventuras solo, RPG eletrônico solo, Massive multiplayer online Role
Playing Game, mais conhecido como MMORPG e o RPG de mesa, este jogo
interativo pode adequar-se as mais variadas simulações. Dentre as quais o
“RPG de mesa” será o sistema referenciado neste trabalho, objetivando a
possível compreensão e interação do aluno com a História, mais
especificamente o “período Medieval”, onde o jogo desenvolve a função
de uma “ferramenta” mediadora no processo de aprendizagem. Buscando
propiciar ao discente uma possibilidade de compreender a história através
de uma abordagem lúdica, completamente interativa, por meio de uma
imersão o mais profunda possível proveniente das práxis resolutivas das
demandas que se apresentam no decorrer da narrativa (jogo), por
assimilação. Pois como apresenta PIAGET:
Se o ato de inteligência culmina num equilíbrio entre assimilação e
acomodação, enquanto a imitação prolonga última por si mesma, poder-
se-á dizer, inversamente, que o jogo é essencialmente assimilar, ou
assimilação predominando sobre a acomodação. (PIAGET, 1994, p, 115).
Estando estes processos presentes com características diferenciadas 4

nas várias fases da vida do ator social, promovendo as mais variadas


possibilidades de interação como apresenta Piaget:

Quando interrogamos crianças de diferentes idades sobre


os principais fenômenos que as interessam
espontaneamente, obtemos respostas bem diferentes
segundo o nível dos sujeitos interrogados. Nos pequenos,
encontramos todas as espécies de concepções, cuja
importância diminui consideravelmente com a idade: as
coisas são dotadas de vida e de intencionalidade, são
capazes de movimentos próprios, e estes movimentos
destinam-se, ao mesmo tempo, a assegurar a harmonia do
mundo e servir ao homem. Nos grandes, não encontramos
nada mais que representações da ordem da causalidade
adulta, salvo alguns traços dos estágios anteriores. Entre os
dois, de 8 a 11 anos mais ou menos, encontramos, pelo
contrário, várias formas de explicações intermediárias
entre o animismo artificialista dos menores e o mecanismo
dos maiores; é o caso particular de um dinamismo bastante
sistemático, do qual várias manifestações lembram a física
de Aristóteles, e que prolonga a física da criança enquanto
prepara as ligações mais racionais. (PIAGET, 1982, p,173)

Sendo assim, se objetivamos um adulto reflexivo que disponha de


múltiplas “ferramentas” que possibilitem a resolução de um numero de
demandas cada vez mais complexas, devemos possibilitar que “respostas
bem diferentes” não sejam substituídas por uma formatação sociocultural
que perpetua simplesmente o Poder de elites minoritárias em uma
relação de exploração da maioria em uma sistêmica não sustentável.
Neste contexto, uma possibilidade para tal se apresenta na utilização de
um dos mais conhecidos sistemas de jogo do RPG de mesa que é o 5

Sistema D20. Sistema que tem como seu mais conhecido representante o
Dungeons and Dragons (D&D) (Schick, 1991, p.19), lançado em 1974.
O D&D trabalha com uma composição básica de 6 modelos de
poliedros, ou seja, figuras geométricas formadas por vértices, arestas e
faces, são os dados de RPG, chama-se esse sistema de D20 (dado de 20
faces, sendo os mais utilizados os D4, D6, D8, D10, D12 e D20, o ‘D’
correspondendo a palavra ‘dado’ e o número correspondendo a quantia
de faces que ele tem, sendo assim, por exemplo o D4 é um Dado de 4
faces). Onde a utilização de um dado de 20 lados possibilita uma escala
mais ampla numericamente, que quando relacionada aos demais dados,
traduz um número de possibilidades elevadas que controlam as ações do
jogador, com isso buscando uma representação cada vez mais próxima do
“real”.
É através do lance de dados, e tendo como quesito necessário as
fichas de personagens que são montadas antes de qualquer partida, com
características já pré-definidas pelos livros de regras, como os dois livros
básicos usados para esse jogo, que são “O Livro do Jogador”, onde
encontra-se todas as regras de jogo e de criação de personagem, forma de
jogar, materiais e roupas para utilizar e “O Livro do Mestre”, que é
utilizado pelo narrador da história, que será decidida se determinada
jogada irá ou não ser bem sucedida, ou seja, não dependendo apenas da
intenção do jogador, mas também do “rolar de dados” e regras do jogo.
Como é um jogo de mesa, além dos dados, consta-se também a ficha de
cada personagem, incluindo formas físicas, conhecimentos, ofícios (o que
ele faz de acordo com a época medieval, se é um ferreiro, um rei, um 6

camponês, um guerreiro, etc), e sua história será montada por cada


jogador individualmente e de acordo com sua posição na aventura. A
relação de possibilidades que se apresenta constitui atividade que
possibilita múltiplas interações do discente com “autonomia” de
reflexão/ação, propiciando um número elevado de processos cognitivos
por meio das interações com as demandas.
Outro aspecto essencial para o jogo de RPG é o narrador/mestre. É
ele quem guia(media), ou seja, narra toda a história do jogo, desde o
processo de ambientação de cada jogador, quanto toda a fantástica e
detalhada descrição de cada cena ao longo da aventura, sendo assim, a
responsabilidade de montar, estruturar e organizar o ambiente do RPG é
desse indivíduo. Pode-se, portanto, confiar tal papel ao professor, no
momento em que o jogo está a ser introduzido em ambiente educacional,
e partindo do pressuposto de que é ele, o professor é o mediador do
conhecimento, o qual busca partilhar com os dissentes de forma dialética,
por meio de uma “Realidade Virtual”. Todo esse universo pode utilizar
como lugar de partida para a compreensão das mais variadas práxis,
qualquer localização geoespacial e temporal.
A possibilidade de uma maior interação e compreensão da História
através de tal processo lúdico pode fazer com que o indivíduo necessite de
uma gama maior de leitura e entendimento de regras, além é claro de lhe
ser essencial o estudo de inúmeros quesitos voltados a períodos
específicos da História Humana, presente. Por exemplo, nas práxis
medievais, não apenas para que a compressão do ambiente de jogo torne-
se mais eficiente, como também para que cada personagem torne suas 7

características únicas e impares a cada jogador. Percebe-se que ao


trabalhar esses exercícios, muitas características acabam por tomarem
“corpo” durante o processo, desde a leitura, a escrita, a pesquisa
aprofundada e a extrema criatividade e imaginação, quanto as peculiares
informações contidas em determinada estrutura de tempo, a
compreensão mais complexa da sociedade da época até mesmo as formas
de domínio e obediência, além de estratégias. Dessa forma, propiciando
inúmeras relações resolutivas para as demandas apresentadas, o que
pode possibilitar o desenvolvimento da velocidade relativa para a
resolução de demandas (raciocínio rápido) e até mesmo trabalhar com a
compreensão de certas regras cotidianas de ética e moral, já que os
jogadores estarão o tempo todo interagindo uns com os outros em
situações diversas, mantendo assim um convívio social mais profundo.
Pois o dissente, ao se sentir fazendo parte de tal ambiente, pode adquirir
um processo reflexivo mais claro de tempo histórico que está inserido, de
uma maneira que apenas as leituras “conservadoras e convencionais” das
bibliografias propostas em sala de aula poderiam não suprir.
No Brasil o MEC tem incentivado a utilização do RPG no ensino em
sala de aula para distintas situações, como incentivo à linguística, leitura,
história e até mesmo geografia e química, pode-se encontrar no perfil do
professor, no site do próprio MEC, alguns dos modelos de aula que tem
surtido efeitos ao longo dos anos desde 2008. Ocorrem também no Brasil
Simpósios de Educação e RPG, o primeiro deles foi em 2002 na cidade de
São Paulo, com o título “I Simpósio de RPG & Educação – Palavra:
Transformação e Conhecimento”, realizada pela LUDUS CULTURALIS 8

(Associação civil sem fins lucrativos/Organização não Governamental,


fundada na cidade de São Paulo em julho de 2002, que tem como
intenção promover qualidade educacional por meios lúdicos), com apoio
de Devir Livraria (Também é a editora dos mais famosos livros de RPG,
como todas as linhas de Dungeons and Dragons – D&D), da Terra média (É
a loja oficial da Devir e é especializada na venda de RPGs, card games,
jogos de tabuleiros e histórias em quadrinhos.), APEOESP (Sindicato dos
Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) e SINPEEM
(Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São
Paulo), e o último evento organizado no Brasil, também sediado em São
Paulo foi “IV Simpósio de RPG & Educação – RPG: educação,
entretenimento ou violência?” em 2006. O Brasil é o país que está na
vanguarda das discussões a respeito do uso do RPG atrelado à educação.
Desta forma compreendemos que, tem sido de vital importância
estabelecer e retomar distintas formas educacionais de apropriação do
saber, podendo ter na ludicidade um dos elementos chave para o
processo de reflexão e de maior absorção cognitiva dos atores sociais, por
meio das experimentações. Pois mesmo sendo como demonstrada uma
metodologia que potencializa as capacidades cognitivas dos discente,
ainda hoje, mesmo com todo o contexto tecnológico contemporâneo de
múltiplas interações, a implementação de metodologias não formais de
ensino/aprendizagem, mais especificamente o RPG, mesmo dispondo de
algumas colaborações como as apresentadas, ainda compreende um
número razoavelmente pequeno de implementações.
9

Referências
MORIN, Edgar. O método 1. A natureza da Natureza. 3.ed. Trad. Maria
Gabriela de Bragança. Portugal: Publicações Europa-América Lda, 1997.
PIAGET, J. O juízo moral na criança. Tradução Elzon L. 2. ed. São Paulo:
Summus, 1994.
_________. O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1982.
SCHMIT, Wagner Luiz. RPG e Educação: Alguns Apontamentos Teóricos.
Londrina: 2008.

Referências Digitais
http://www.rpgeduc.com/old/congressos.htm
http://portaldoprofessor.mec.gov.br/buscaGeral.html?q=rpg
http://loja.devir.com.br/anais-do-1-simposio-rpg-educac-o.html
A DOCÊNCIA E SUAS IMPLICAÇÕES: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR
Ana Luiza de Vasconcelos Marques 1

Resumo: Este artigo pretende refletir sobre a ação de ensinar, considerando a


docência enquanto prática social, sobretudo no que tange aos objetos de ensino e 1
sujeitos envolvidos. Para isso, apresento como ponto de partida um relato de
experiência que vise esmiuçar as Diretrizes Psicopedagógicas de uma determinada
instituição privada de ensino superior, a fim de evidenciar por meio das metodologias,
práticas e fundamentos por ela adotados, os limites e críticas que envolvem os
docentes e, consequentemente, os discentes no exercício do ensinar. Desta forma,
conclui-se que pensar na formação do professor no Ensino Superior é atentar para a
necessidade da criação de políticas públicas e institucionais que possibilitem uma
abordagem que, antes de se respaldar no plano mercadológico, valorize o caráter
institucional, individual e coletivo da formação. Não obstante, para além do elemento
da formação docente, espera-se também que as Instituições de Ensino Superior (IES),
em sintonia com a gestão pedagógica e professores do curso, juntos, comprometam-se
em prol da construção do conhecimento, seja no âmbito de planejarem as disciplinas,
seja na perspectiva de escolher as metodologias ou mesmo na definição dos critérios
avaliativos.
Palavras-chave: Relato. Docência. Ensino Superior.

Abstract: This article aims to reflect on the action of teaching, considering teaching as
a social practice, especially with respect to education and subjects of objects involved.
For this, I present as a starting point an experience report that aims to scrutinize the
Psychopedagogical Guidelines of a particular private institution of higher education in
order to show through methodologies, practices and rationale adopted by it, the limits
and criticism involving teachers and, consequently, the students in the exercise of
teaching. Thus, it is concluded that thinking in teacher education in Higher Education is
to consider the need for the creation of public and institutional policies that enable an
approach that, prior to endorse the marketing plan values the institutional character,
individual and collective of formation. Nevertheless, in addition to the teacher training
element, it is also expected that the Higher Education Institutions (HEIs) in line with
the pedagogical management and teachers of the course, together, commit
themselves for the construction of knowledge, whether in scope of planning
disciplines, is the prospect of choosing the methods or even the definition of the
evaluation criteria.
Keywords: Reporting. Teaching. Higher Education.

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba. E-mail:
aniiinha@msn.com
Tem-se constatado que, independentemente da instituição em que
o aluno esteja vinculado, ainda é pouca a preparação dada ao estudante
na fase que compreende a sua transição para a profissão de professor.
Afinal de contas, não há uma fórmula prática para a socialização no
exercício de ensinar. Ao atravessar os portões de uma instituição de 2

ensino, este já se depara com suas normas, valores, regras, assumindo


todas as tarefas que os experientes já executam. Assim, conforme
evidencia Lortie (1975), o professor inicia o seu ofício na perspectiva do
"aprendizado por observação". Para o autor, o aprendizado por
observação é a experiência de todos aqueles que entram na carreira de
professores, iniciando-se no processo de socialização na profissão de uma
forma particular. Neste sentido, as histórias diversas de professores vão
ter um papel importante na sua atividade diária, de forma que a
aprendizagem por observação se torna uma aliada da continuidade e não
da mudança (LORTIE, 1975, p. 67).
Por outro lado, Ferenc (2005) atenta que a "aprendizagem por
observação" também tem seus limites no que diz respeito à compreensão
dos "bastidores" da profissão, a exemplo de apreender os procedimentos,
bem como as estratégias utilizadas pelos professores quando da seleção
de um conteúdo ou mesmo para lidar com a diversidade na sala de aula.
Além disso, "a convivência com professores, por longos anos, pode acabar
por subestimar as dificuldades da profissão, contribuindo para a
elaboração de um quadro de referência sobre essa que não possui
conexões reais com a mesma" (FERENC, 2005, p. 50).
Eu, particularmente, passei por algumas dificuldades na perspectiva
da prática docente quando conclui o curso de licenciatura em história. Na
graduação foquei nos grupos de pesquisa, fui bolsista em projeto de
iniciação científica e dei pouca importância ao exercício de ensinar. Só
procurei uma monitoria quando estava no último semestre do curso, dado 3

que minha maior preocupação se pautava na perspectiva da publicação de


artigos científicos, sobretudo, porque já fazia planos em galgar um
mestrado no futuro. Só tive a experiência em "aprender enquanto se faz",
literalmente, durante o estágio supervisionado, na graduação, e,
posteriormente, no estágio docência, já no decorrer da pós-graduação.
Quanto tive oportunidade de realizar o meu primeiro concurso
público me dei conta que tinha uma boa base teórica, mas que
necessitava me debruçar com mais afinco na questão prática,
mergulhando de fato no exercício da docência. Paralelamente, comecei a
direcionar o meu saber para o ensino, buscando na mediação à distância,
enquanto tutora do curso de pedagogia, meus primeiros passos para a
atuação em sala de aula, tanto no ambiente virtual quanto ambiente
presencial. Aparentemente deu certo em termos de aprimoramento em
experiência, porém quando busquei trilhar meu segundo concurso público
tive êxito na prova didática, mas fui infeliz na prova de títulos devido à
razoável experiência em termos de prática de ensino, além da ausência de
um diploma de doutorado em história, o que diminuía vastamente minhas
vantagens em relação aos outros concorrentes "doutores".
A partir de então busquei conciliar nas "coxias da profissão" a linha
tênue entre a teoria e a prática enquanto principais aliadas no processo de
ensino-aprendizagem. Desde então tenho ministrado aulas
continuadamente e buscado a sincronia entre teoria e prática, sem perder
de vista o foco no âmbito da pesquisa e na produção de saberes técnico-
científico-metodológicos. Por vezes, tem sido uma tarefa árdua conciliar o
ensino e a pesquisa, mas faz parte da profissão. 4

Foi durante essa jornada de experiências enquanto docente que me


deparei com uma instituição que, consequentemente, incentivou-me a
escrever este relato. Localizada em um bairro de classe média, a faculdade
oferecia cursos de graduação a baixos custos, atraindo principalmente
pessoas com menor poder aquisitivo, especialmente indivíduos residentes
em comunidades carentes. No caso, o curso de pedagogia contava com
cerca de 50 alunos por turma, sendo majoritariamente composta por
mulheres, na faixa etária entre 18 a 45 anos. As aulas ocorriam somente
aos sábados, no horário das 8h às 18h, com intervalo para almoço das 13h
às 14h. O espaço físico das salas de aula pode ser considerado mediano,
contando com ar-condicionado e alguns recursos didáticos como quadro e
pincel e, quando necessário, disponibilizava-se o data show e/ou
televisão.
Após ficar a par das Diretrizes Institucionais Psicopedagógicas
oferecidas pela instituição, tive acesso à ementa do Plano de Curso da
Componente Curricular a qual fui destinada. A disciplina de Ensino da
História I constava de 60 horas de carga horária total e 24 horas de carga
presencial, devendo ela ser ofertada em 3 sábados. Quanto à sua ementa,
delimitava-se em seguimento aos primeiros ciclos dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN's), reiterando em ipsis litteris os objetivos
gerais de História para o ensino básico, bem como o conteúdo e os
critérios de avaliação de História para o primeiro ciclo. Neste sentido,
organizei o Plano de Curso apresentando como objetivo geral a
necessidade de se compreender os conteúdos e métodos curriculares no
ensino de história, instituídos no contexto da modernidade, 5

problematizando as rupturas e permanências.


No entanto, apesar das várias possibilidades de planejar e ministrar
as aulas, era preciso seguir todas as diretrizes sugeridas pelas faculdades.
Dentre elas, destaco primeiramente a exigência para que os professores
preparassem um Material Didático, contendo até dez páginas por semana,
e encaminhassem à Coordenação Acadêmica com antecedência para
confecção. Acostumada a trabalhar com materiais bem mais extensos em
outras instituições, questionei sobre o nível de leitura e complexidade do
conteúdo que ali seria empregado, dado o limite de páginas imposto pela
Coordenação. Não obstante, apesar da dificuldade em "condensar" um
conteúdo programático de suma importância ao alunado - trazia dentre
eles uma exposição sobre "os Conteúdos e Conceitos Básicos do Ensino de
História" - em poucas laudas, fui orientada a seguir à risca o que estava
nas Diretrizes Psicopedagógicas da instituição e assim o fiz. Dado os
limites estipulados ao material, foi um desafio conduzir a aula com o
material didático solicitado, uma vez que a maioria dos alunos não estava
acostumada a um determinado ritmo de leitura e interpretação textual,
conforme evidenciarei no ponto a seguir. A saída válida para suprir a
limitação do material foi a adoção de outras linguagens na ação educativa
que puderam dinamizar o ensino-aprendizagem da história e tornar as
aulas mais atrativas ao alunado, a exemplo do uso de documentários,
imagens e dinâmicas criativas.
Em segundo lugar, enfatizo também a exigência da faculdade em se
realizar um estudo dirigido, ao final do módulo, composto de 25 questões
objetivas com indicação de página para obtenção das respostas, 6

abrangendo todo o conteúdo do módulo. Para além da problemática de se


trabalhar com as questões objetivas no ensino de história - que quando
não bem elaboradas e/ou discutidas podem trazer o risco de servirem
apenas para memorizar/decorar/reproduzir datas ou fatos - estimulava-se
os alunos a continuarem na cômoda posição de expectador/repetidor do
conhecimento na lei do "menor esforço", uma vez que teriam a indicação
da página para a obtenção das respostas. À contrarregra, entreguei para a
Coordenação do Curso as questões sem o indicativo de respostas,
reafirmando a necessidade de construção do conhecimento e da
importância do papel da criticidade e autonomia dos alunos. Na sala de
aula, conforme esperado, as questões não foram muito bem
recepcionadas pela maioria dos alunos. Contudo, eu entendia aquele
momento como fundamental para a "quebra de paradigmas" em uma
suposta transição que não seria fácil, mas que se fazia necessária.
Em terceiro e último lugar, destaco as avaliações e atividades
pedagógicas decorrentes da instituição. Nas Diretrizes Institucionais
Psicopedagógicas salientava-se ser imperativo que todos os docentes
aplicassem uma avaliação por semana, acompanhada de algumas
atividades pedagógicas, a exemplo de debates, dinâmicas, resenhas, etc.
Recomendava-se também que não fosse aplicada mais de uma avaliação
por dia, assim como era obrigatório que uma das avaliações fosse
individual (prova). Não obstante, quando aplicada à prova individual e
subjetiva, muitos alunos reclamaram, ressaltando que as avaliações -
quando transcorriam - costumeiramente eram aplicadas em dupla e/ou
com consulta. 7

No final do módulo, ao corrigir as provas, algumas constatações:


insegurança nas respostas, dificuldade ao lidar com a subjetividade do
conteúdo e, notoriamente, falta de estímulo ao pensamento crítico.
Ademais, quando se abria o debate sobre o entendimento acerca do
ensino de história, logo eles faziam alusão à história dita tradicional, a qual
foi disseminada durante a vida escolar de boa parte dos alunos, isto é,
uma história factual, memorialista e voltada para os "grandes homens".
Portanto, "desprender-se" de tão apregoado método - quiçá "positivista" -
demandava esforço e, especialmente, tempo. E um tempo que, ao olhar
daqueles que, em maioria, admitiam ter pressa pelo papel timbrado do
diploma, deveria ser breve. Por isso a opção de um curso "sucinto" e
focado na perspectiva de entrecruzar a teoria e a prática, sendo essa
última já empregada ao magistério, ao passo que parte considerável da
turma estava ministrando aulas no ensino fundamental. Portanto, isso
explica a pressa de alguns em concluir o ensino superior.
As mudanças na educação superior brasileira, implantadas a partir
da Lei n° 9.394/96, de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), estão
inseridas em um contexto econômico maior, no qual as universidades são
pressionadas a se tornarem mais autônomas e cada vez mais voltadas às
exigências do mercado. Portanto, não se pode negar que as Instituições de
Educação Superior (IES) privadas no Brasil estão buscando estratégias de
marketing e procurando se posicionar no mercado de forma diferenciada,
além de interferirem na construção de projetos pedagógicos e em sua
consecução. De modo geral, como é o caso da instituição acima relatada,
buscam o ensino de massa, tendo seu diferencial nos preços acessíveis das 8

mensalidades.
No que diz respeito ao considerado ensino de massa no Brasil, de
acordo com Rogerio Tineu (2010), pode-se afirmar que é um novo
paradigma segundo as concepções mais ortodoxas da educação. Para o
autor, é preciso levar em consideração que, no caso do Brasil, não houve
tempo hábil para a formação de novos professores bem qualificados para
atuarem em salas de aula lotadas. Portanto, pensar na formação do
professor no Ensino Superior é atentar para a necessidade da criação de
políticas públicas e institucionais que possibilitem uma abordagem que,
antes de se respaldar no plano mercadológico, valorize o caráter
institucional, individual e coletivo da formação. Logo, para além do
elemento da formação, espera-se também que as IES, em sintonia com a
gestão pedagógica e professores do curso, juntos, comprometam-se em
prol da construção do conhecimento, seja no âmbito de planejarem as
disciplinas, seja na perspectiva de escolher as metodologias ou mesmo na
definição dos critérios avaliativos.
REFERÊNCIAS

FERENC, A. V. F. Como o professor universitário aprende a ensinar? Um


estudo na perspectiva da socialização profissional. Tese (Doutorado em
Educação) - Universidade Federal de São Carlos, SP, 2005.

LORTIE, D. C. Schoolteacher: a sociological study. Chicago: University of 9


Chicago, 1975.

TINEU, R. A universidade e o professor em um ensino superior em


transformação no Brasil. Revista Belas Artes, v. 3, p. 1-11, 2010.
OS DESAFIOS DA HISTORIOGRAFIA CHINESA
NA MODERNIDADE

André Bueno1

Resumo
Neste breve ensaio, examinaremos algumas concepções historiográficas chinesas pós-
comunistas, na China contemporânea. Tentaremos entender as possibilidades
interpretativas na história chinesa atual, em relação aos métodos tradicionais e as
mudanças no panorama político e social.

Palavras-chave
China - Historiografia Chinesa - Teoria e Metodologia da História

Abstract
In this short essay, we will examine some post-communist Chinese historiographical
concepts in contemporary China. We will try to understand the interpretive
possibilities in the current Chinese history, compared to traditional methods and
changes in the political and the Social Panorama.

Keywords
China - Chinese Historiography - Theory and History of Methodology

Apresentação

1
Prof. Dr. André Bueno; Prof. Adjunto de História da UERJ, Rio de Janeiro.
Compreender a tradição histórica chinesa é um desafio para a
mente ocidental. A China é a única civilização cuja produção
historiográfica data – no mínimo – do século - 6 , quando o sábio Confúcio
fez a primeira edição organizada de seis antigos clássicos chineses, dos
quais dois – “O Tratado dos Livros” (Shujing) e as “Primaveras e Outonos” 2

(Chunqiu, escrito pelo próprio Confúcio) – são obras de história.


Desde essa época, se delinearam, na mentalidade chinesa, dois
aspectos conceituais fundamentais para a história:

 Ela é construída a partir de fragmentos de memória, e mais do que


afirmativa, ela seria propositiva; ou seja, ela ofereceria um modelo
moral e ético para a posteridade, um retrato conscientemente
escolhido e construído com as fontes possíveis;
 Com isso, a história se transformava num meio de redenção moral e
intelectual, um dos modos mais apropriados para o ensino da
cultura e afirmação de valores sociais.

A compreensão da história como um elemento decisivo na


articulação da cultura foi notado pelos chineses desde esses tempos
antigos. Pensadores como Hanfeizi (280 a 233 AEC), interessados na
formação de um regime totalitário, propunham a abolição do passado
como condição indispensável para a criação de uma nova cultura e de uma
“nova história” – e em sua visão, era necessário destruir o antigo para
inventar o moderno. Contudo, Hanfeizi era uma exceção, cuja visão
restrita era compartilhada por poucos adeptos entre os historiadores
chineses. Já no século 3 AEC, com a ascensão da dinastia Han (206 AEC até
220 EC), a história foi alçada a condição de disciplina especial para o
aperfeiçoamento humano, e referência básica para a condução dos
negócios políticos. Sima Qian (145 a 85 AEC), o maior historiador desse
período, inaugurou um novo modelo histórico em que congregou 3

biografias, cronologias e ensaios, definindo um padrão para os textos


oficiais posteriores.
A absorção da produção histórica pela instituição imperial chinesa
manifestou, por conseguinte, o desejo do Estado de controlar a cultura e a
sociedade. Depois de Sima Qian, agências especiais foram organizadas
pelas dinastias subsequentes para redigir as Histórias Oficiais. Esses textos
nasciam contaminados pelas “omissões necessárias” que caracterizam
tradicionalmente os documentos políticos; mas, se por um lado elas
deixavam de fora informações cruciais sobre a formação dos contextos ou
das tensões intelectuais e sócias de uma época, por outro, elas ensejaram
a construção de uma historiografia crítica que se preocupava, justamente,
em fornecer visões alternativas aos discursos oficiais.
No texto “A tradição do anti-tradicionalismo na historiografia
chinesa”2, Ursula Richter aponta que a construção de uma crítica histórica
atuante foi importante para manter o dinamismo teórico e metodológico
da história chinesa. Para todos os escritos oficiais, um grande volume de
obras contestatórias (por vezes perseguidas e reprimidas) surgiu e
construiu o contraponto necessário para a reformulação contínua da

2
RICHTER, Ursula. “La tradition de l’antitraditionalisme dans l’historiographie chinoise”
in Extreme Orient, Extreme Occident. V.9, n.9, 1987, p.55-89.
disciplina. O resultado disso é que até 1911, contava-se mais de cem mil
textos históricos (livros, capítulos, ensaios), o que caracteriza um
fenômeno único na história mundial. 3
Um fator decisivo para o enorme tamanho dessa produção foi a
continuidade lingüística. O chinês clássico se manteve essencialmente o 4

mesmo da antiguidade até o início do século 20, permitindo que as obras


mais antigas fossem lidas de modo atual pelos estudiosos. Por analogia,
seria como se o português tivesse sido inventado em Roma, e pudéssemos
ler Cícero ou Tito Lívio no original, como Machado de Assis, sem traduzi-
los ou ter de aprender outro idioma. Isso facilitava – e ainda facilita –
incrivelmente o acesso aos textos mais antigos, permitindo sua re-
atualização constante.
Tal continuidade impôs um peso enorme aos chineses no final do
século 19. Submetida à dinastia Qing, que durou de 1644 a 1911, e cuja
origem (Manchu) era estrangeira, a China foi praticamente imobilizada em
seus avanços intelectuais e científicos, e muitos historiadores se
refugiaram num passado ideal, buscando em vão uma resposta para o
contexto de crise. O final da época imperial significou uma profunda crise
na historiografia tradicional chinesa. Aparentemente, a história não teria
sido mais capaz de educar os chineses, de assegurar-lhes a continuidade
cultural e protegê-los das invasões estrangeiras.
A saída encontrada foi procurar as teorias de origem ocidental, das
quais o Marxismo parecia a mais simpática e adequada ao caso chinês. As

3
VANDERMEERSCH, Leon. “Vérité historique et language de l’histoire” en Chine in
Extreme Orient, Extreme Occident. V.9, n.9, 1987, p.13.
propostas de Marx encontravam ressonância em vários anseios chineses:
o respeito internacional, o avanço tecnológico, a sociedade comunal e
universal. Porém, dois pontos se destacavam nessa proposta: primeiro, a
questão do materialismo histórico, que se aproximava da ideia de
materialidade que os chineses possuíam em relação a sua própria história; 5

segundo, alguns intelectuais chineses estavam convictos de que a dialética


marxista era idêntica ao sistema yin-yang, mas que havia sido
desenvolvido no contexto ocidental e industrial, o que permitiria sua fácil
adaptação ao caso chinês.
O grande líder comunista Maozedong (ou Mao Tse-tung, numa
grafia mais conhecida) foi um dos principais redatores dessa nova história
chinesa comunista. No entanto, ele fez questão de fundir o marxismo às
doutrinas tradicionais chinesas. Adepto de Hanfeizi, Mao tentou também
abolir a história da China – ou ao menos, reescrevê-la – de um tal modo
que o passado perdesse toda e qualquer significância em relação ao
mundo contemporâneo comunista. Sua busca o levou a realizar a
Revolução Cultural (1966 a 1973), na qual uma parte substancial do
patrimônio histórico foi destruída, e depois (1973-74) a excêntrica
campanha contra Lin Biao (seu ex-sucessor e depois, inimigo mortal)
e...Confúcio!4 Em seu entendimento, o atraso da China se devia as
reminiscências de uma cultura arcaica, que só sobrevivia graças às
tradições arraigadas na sociedade e a historiografia confucionista antiga,
cujos discursos provocavam a presença de um reincidente passado
imperial.
4
YANG, Jungkuo. (org.) A Crítica Contra Lin Piao e Confúcio. Lisboa: Moraes, 1976.
Novamente, o projeto de acabar com a história fracassou, e a
ascensão de Deng Xiaoping ao poder modificou novamente esse
panorama. A figura de Confúcio começou a ser reabilitada, e em 1987 um
congresso oficial sobre confucionismo foi organizado pela República
Popular da China. H. Hermann5 identifica aí uma crise profunda na 6

historiografia chinesa – antes radicalmente comunista, e agora tentando


explicar esses movimentos intelectuais tão contraditórios da década de
80, que culminam com a crise de 89 e o incidente da Praça da Paz Celestial
– e, no entanto, terminam logo, uma década depois, com a consolidação
de uma das economias mais poderosas e concorrenciais do planeta, mas
que continuava a afirmar-se, paradoxalmente, como comunista.

Os desafios da história tradicional chinesa na China moderna


Uma coisa não mudou no imaginário chinês; que sua história os
ensinou a “serem chineses”, e que ela os conecta com uma vasta tradição
cultural que sustentou essa civilização durante milênios até os dias de
hoje. Além disso, o sustentáculo dessa “sinidade” – a História – não é uma
doutrina religiosa, e nem clamou por qualquer tipo de vínculo do gênero.
Ela é um discurso de continuidade, uma busca de sentido no “Mundo da
Mutação” (“Mundo Material”) ou “Tudo-abaixo-do-Céu” (ou, “Natureza”),
que distingue o modo chinês de olhar as coisas em relação ao das outras
culturas.

5
HERRMAN, Hans. “Aspects théoriques de l’historiographie chinoise des années 1980”
in Études chinoises, v.X, n. 1-2, Paris, 1991.
A durabilidade dessa visão é considerada uma prova substancial,
para os chineses, de sua eficácia como um meio de defesa e manutenção
da Cultura. Contudo, como não se atolar em versões arcaizantes de um
moralismo antigo e inadequado para enfrentar as várias questões sociais e
tecnológicas atuais? 7

Por outro lado, a admissão de que a História é um discurso


construído fez com que os chineses fossem “pós-modernos”, de certa
forma, desde a antiguidade. Na ausência de uma busca por “verdades
unificantes” na História, o debate amplo e a desconstrução foram
condições fundamentais da própria imposição (ou não) de certas versões
históricas. Então, o que se propor agora? O governo chinês manteve seu
interesse em produzir Histórias oficiais, do mesmo modo que já existe
uma crítica atuante; o que esse panorama indica, pois? Quais versões
historiográficas, e como, elas serão produzidas? Por fim, uma terceira
questão é: como fazer dialogar o conceitual da história tradicional com o
aparato teórico do comunismo maoísta?
Esses desafios se refletem na maneira como a própria Sinologia
ocidental enxerga os movimentos intelectuais chineses.6 Oscilando entre
uma sinofobia reincidente e uma sinofilia inconsciente, os especialistas
ocidentais desenvolveram uma dificuldade tremenda em lidar com essas
reviravoltas da academia chinesa. Se até o início do século 20 a Sinologia
nutria-se de seus próprios expedientes, que se assentavam basicamente
em um “olhar distanciado” e eurocêntrico, o sucesso do comunismo
chinês transformou-se em modelo para vários regimes espalhados pelo
6
WILL, Pierre. “Chine moderne e sinologie” in Annales, v. 49, n. 1, 1994.
mundo, criando uma dicotomia quase insolúvel para se compreender o
mundo chinês. Entre a repulsa ou a admiração a China, os estudiosos
ocidentais projetavam sobre esse país seus esquemas conceituais e
teóricos, sem encontrar soluções satisfatórias. No entanto, com a
transformação gradual do regime a partir da década de 90, no qual se 8

inclui a sobrevivência do Comunismo e sua dissensão, uma confusão


completa instalou-se na cabeça desses observadores: como tratar a
História chinesa? São os eventos de agora um breve espaço no monólito
dessa civilização? A historiografia tradicional chinesa é, de fato, uma
ampla observação desses acontecimentos, ensinando a quem quiser como
funciona realmente a mente chinesa?

Os diálogos entre a historiografia tradicional e o marxismo


Para compreender como funciona esse diálogo entre a tradição e a
reinterpretação do Marxismo chinês, vejamos alguns dos conceitos
fundamentais que estão em discussão nas “novas” propostas históricas da
China.

a) A função da história
Desde a época de Confúcio, a história é considerada um dos pilares
da educação, sendo responsável pela manutenção das tradições culturais
e pela exemplificação dos desafios humanos. A revolução socialista de
Maozedong tentou destruir as estruturas culturais antigas presentes na
historiografia, mas reconheceu a importância fundamental que a História
tinha de operar as transformações necessárias na sociedade. Por conta
disso, a cientifização marxista da história chinesa tratou de incorporar
esse princípio interpretativo da história sob uma nova teoria,
apresentando-a como um roteiro da luta de classes que permeou a
humanidade ao longo de sua existência. O objetivo comunista era
reeducar a sociedade, mas o Confucionismo arraigado na cultura forçou, 9

nos tempos de Deng Xiaoping, uma flexibilização do discurso estatal.


Zhang Yanguo7, historiador importante do período, já admitia que “sem
dúvida a historiografia deve estar a serviço da sociedade. Mas ela não
pode ser separada de uma teoria histórica dotada de uma rigorosa
significação científica”, implicando aí uma transferência do debate
ideológico engajado acerca da História para a construção de um novo
discurso que conjugasse as necessidades da modernidade, sem perder um
certo rigor teórico. A História, porém, continua a servir a sociedade,
educando-a, o que formalizaria o seu papel fundamental.

b) A questão dos ciclos dinásticos e da análise sistêmica


Do mesmo modo, a história da China organizou-se nos chamados
ciclos dinásticos, que formalizaram sua cronologia chinesa e
estabeleceram sua periodização histórica. Os intelectuais chineses
comunistas tentaram, de todos os modos, adequar a periodização
marxista ao caso chinês, mas tiveram uma extrema dificuldade em fazê-lo.
Para se ter um exemplo, um dos principais manuais históricos chineses,

7
ZHANG, Yanguo. “A crise da historiografia e a escolha da modernização” in Shehui
kexue pinglun, n. 11, 1986, p.16.
“Um esboço da História da China” de Bai Shouyi8, tentou congregar a
transição do esquema marxista “escravismo-feudalismo-mercatilismo...”
com as dinastias chinesas, afirmando que a revolução comunista
promoveu uma transição direta do “feudalismo escravagista” (um termo
absolutamente chinês) para o Comunismo, superando as etapas históricas. 10

Para além dessa construção pouco factível, a questão é que Bai não foi
capaz de superar o esquema dinástico da cronologia chinesa,
apresentando-o dentro das formas tradicionais. As obras mais recentes
não apenas resgataram a cronologia tradicional como ainda, tentam – por
meio da arqueologia – confirmá-la ou mesmo esticá-la cada vez mais em
direção ao passado.9

c) A ecologia cosmológica confucionista e a cibernética


Confúcio defendia que vivíamos um sistema regido por leis naturais,
as “leis do Céu”, um Céu entendido aí não como entidade pessoal, mas
como um princípio operacional que hoje poderíamos denominar
apropriadamente como “ecologia”. O objetivo da cultura era manter uma
série concêntrica de estados de equilíbrio entre os indivíduos, a sociedade
e essa natureza, evitando assim desastres naturais - que podem ser
compreendidos como desastres ecológicos causados por fatores naturais,
sociais e políticos.10 Assim, o “Mandato do Céu” (Tianming), conceito que

8
BAI, Shouyi. An outline History of China. Beijing: Foreign Language Press, 1986.
9
Como por exemplo, XIA, Nai (org.) New archeological finds in China: discoveries
during the Cultural Revolution. Beijing: Foreign Language Press, 1974.
10
Ver TUCKER, Marilyn. (org.) Confucianism and Ecology. Harvard: Harvard University
Press, 1998.
designava a função do soberano de promover esse estado de harmonia,
não era essencialmente um conceito transcendente, mas uma
interpretação formalizadora do papel do mesmo na administração da vida
pública e sua relação com o meio ambiente.
Essa ideia converteu-se, principalmente no período imperial, 11

durante a dinastia Qing (1644 a 1911), num preceito esotérico, com ajuda
significativa de um Budismo interessado em manter-se junto ao poder.
Com a proclamação da República, o conceito caiu em desuso e
praticamente desapareceu, só sendo retomado como uma teoria
interessante pelos ecologistas nas décadas de 80-90 do séc. 20. Contudo,
em 1984, Liu Qingfeng11, intelectual ligado a renovação histórica chinesa,
propôs um novo modelo de “harmonia universal” do sistema através de
uma interpretação sociológica cibernética. Segundo ele, o estudo da
história marxista chinesa mostrava, de fato, uma série de estados de
equilíbrio (Harmonia) manifestados no estabelecimento das dinastias,
períodos caracterizados por uma relação estável entre as forças
produtivas, a sociedade com o governo e com o meio ambiente. No
entanto, essas épocas foram submetidas, inexoravelmente, a ação das
“leis históricas” de ascensão e declínio, cabendo ao estudo histórico
evidenciar as causas de declínio e os possíveis modelos de ajuste para
compreensão sistêmica das transições. As “leis históricas”, portanto,
foram “ecologizadas” na teoria de Liu, e a sociedade humana é um
desdobramento da natureza. Embora Liu não tenha obtido um sucesso
significativo como teórico da história, ainda assim seu trabalho chamou a
11
Ver HERRMAN, Hans, ibid., p.176-78.
atenção das autoridades ao problema da relação humana com a poluição,
tratada agora na China como uma questão social, política e econômica. É
indubitável que o caráter do conceito de “Harmonia” transparece nesse
ideal de ajuste social.
12

d) O problema da dialética
Um dos motivos pelos quais os chineses ficaram vivamente
interessados na dialética marxista era a sua forte impressão de que essa
teoria era praticamente idêntica a teoria yin-yang de oposição
complementar, que caracteriza o pensamento chinês. Dominados pela
concepção de que a tensão dos opostos enseja o equilíbrio, a atração e a
repulsão, os intelectuais chineses entenderam que as descobertas
dialéticas de Marx eram significativas porque ele “teria compreendido” os
modos pelos quais a Natureza opera no contexto industrializado da
Europa, dando-lhe as vantagens tecnológicas e sociais na modernidade
que a China não possuía. O pensamento comunista tentou durante algum
tempo abandonar essas tradições, mas elas resistiram e hoje estão
presentes em diversos campos do conhecimento chinês, sendo a história
um deles. De fato, a interpretação em curso tende a inverter os
paradigmas: primeiro, colocou-se que os chineses teriam “aprendido”,
mas sem saber exatamente como, as leis da dialética, atrasando-se num
estado “pré-socialista” de pensamento dialético. No entanto, a distensão
do discurso comunista tem feito com que se retome a idéia original
chinesa, ou seja, de que foram os chineses que criaram realmente as leis
da dialética e que Marx, na verdade, teria compreendido-as estudando a
civilização chinesa e suas estratégias de permanência.

e) O Novo Confucionismo
Na incerteza sobre a continuidade do comunismo na China, alguns 13

autores têm proposto a reformulação do sistema ético e político chinês a


partir de uma retomada, justamente, da antiga doutrina confucionista. É o
movimento do “Novo confucionismo” (Xin Rujia), liderado por Jiang
Qing12, que afirma que o marxismo é apenas um momento na história
chinesa, e que em breve as teorias de Confúcio serão retomadas nos
projetos educativos e políticos do estado, reconstruindo o cerne da
“sinidade” que manteve a China unida por séculos. Jiang defende que a
análise da história – incluindo aí os propósitos de Mao de aproximar-se de
Hanfeizi – permite-nos compreender, justamente pelo viés tradicional, o
movimento das idéias chinesas. Mao, assim como a dinastia Qin (séc. 3
AEC), unificou a China por meio de revoluções, mas seus “reinados” foram
efêmeros por conta dos exageros ideológicos que levaram o país a crises
econômicas e sociais. Nesse contexto, pois, a retomada do confucionismo
é o ajuste, o ponto de equilíbrio que irá reconstituir a sociedade chinesa
por meio de uma educação nacionalista e tradicional. A reabilitação de
Confúcio na China contemporânea tem comprovado em parte sua tese,
mas ele mesmo admite que o resgate completo de uma China
confucionista só será feito de modo demorado, como ocorre, justamente,

12
JIANG, Qing. Zhengzhi ruxue. Yucheng: Harvard University press/Yusheng academy,
1991.
na visão da história tradicional. Não haverá volta do império, mas o
governo comunista marcará um período, um ciclo – tal como foram as
dinastias – cuja transformação política ensejará uma recolocação de sua
civilização no quadro político e intelectual do mundo contemporâneo.
14

Conclusão
Por esses breves apontamentos, vemos que a tendência
generalizada da atual historiografia chinesa é tentar sair de uma crise na
qual a mesma se instalou por conta das ficções do socialismo marxista.
Não houve a vitória do proletariado, nem o mundo converteu-se a
revolução como Marx previra; contudo, o comunismo chinês mostrou-se
um sistema eficaz de recuperação econômica, a partir do momento em
que criou um modelo próprio, conjugando planificação e economia de
mercado, principalmente depois de Deng Xiaoping. Como, portanto,
justificar a existência de um regime cuja teoria central era futurista? Nesse
ponto, a salvação para os chineses encontra-se na sua mentalidade
histórica adaptativa, que justifica as transformações do comunismo chinês
como sendo os ajustes necessários a sua sobrevivência. Posto diante de
sua oposição complementar, o sistema chinês conseguiu adaptar-se e
vencer seus desafios, lançando-se, porém, a reformulação de si mesmo.
A história chinesa acompanha esse movimento, e justifica então,
fantasticamente, que o marxismo só deu certo porque, de certo modo,
“sinizou-se”; que essa “sinização” é identificada pela cultura tradicional,
contada e discutida copiosamente pela historiografia pré-marxista; e que
o marxismo, embora necessário atualmente para a manutenção de uma
ordem pública, virá a ser superado, no futuro, pelo próprio passado! Tais
afirmativas parecem incríveis, ainda mais quando lembramos que há trinta
anos atrás, falar de Confúcio na China comunista era praticamente um
crime. Hoje, porém, o instituto de línguas e cultura chinesa com mais de
mil filiais espalhadas pelo mundo (incluso no Brasil), e com patrocínio 15

oficial do Estado, chama-se Instituto Confúcio; do mesmo modo, o


governo está promovendo uma grande obra de tradução de seus
principais clássicos literários para divulgação no mundo.
Isso implica, portanto, que a escrita da história da China atual deve
ser entendida como uma produção autóctone, com suas próprias fontes,
teorias e métodos, lançando-nos então a constatação de que o ocidente
está longe de deter o monopólio das teorias historiográficas. A China é um
desafio em vários âmbitos da atualidade, e a História é uma delas; calcada
numa tradição milenar, como encarar sua continuidade, suas
transformações e sua originalidade, que se desenvolveram de modo
alheio a nossa forma de fazer história? E se por um lado a experiência
chinesa mostra que o estudo histórico é fundamental na formação social e
cultural, a ponto de institucionalizá-lo como um dos pilares da sabedoria,
quem se dispõe a entender o mundo chinês para além das superficiais e
transitórias discussões de âmbito economicista? A China e sua história são
questões fundamentais para a historiografia atual.

Bibliografia
BELL, Daniel A. China’s new Confucianism: politics and everyday life in a
changing society. Princeton: Princeton University Press, 2008.
CHEN, Yan. O despertar da China: as mudanças intelectuais pós-Mao.
1976-2002. Lisboa: Piaget, 2002.
HERRMAN, Hans. “Aspects théoriques de l’historiographie chinoise des
années 1980” in Études chinoises, v.X, n. 1-2, Paris, 1991.
JIANG, Qing. Zhengzhi ruxue (Confucionimo político). Yucheng: Harvard 16

University press/Yusheng academy, 1991.


MARTI, Michael. A China de Deng Xiaoping. São Paulo: Nova Fronteira,
2007.
RICHTER, Ursula. “La tradition de l’antitraditionalisme dans
l’historiographie chinoise” in Extreme Orient, Extreme Occident. V.9, n.9,
1987
SANJUAN, Teo. China contemporânea. Lisboa: Ed. 70, 2010.
TUCKER, Marilyn. (org.) Confucianism and Ecology. Harvard: Harvard
University Press, 1998.
VANDERMEERSCH, Leon. “Vérité historique et language de l’Histoire” en
Chine in Extreme Orient, Extreme Occident. V.9, n.9, 1987
WILL, Pierre. “Chine moderne e sinologie” in Annales, v. 49, n. 1, 1994
ZHANG, Yanguo. “A crise da historiografia e a escolha da modernização” in
Shehui kexue pinglun, n. 11, Beijing, 1986.
ENSINAR HISTÓRIA: ANOS INICIAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL: DESAFIOS NA FORMAÇÃO DO
PEDAGOGO

Andréa Giordanna Araújo da Silva1


1

Resumo
O construto apresenta os resultados da pesquisa sobre a formação do professor-
pedagogo que leciona história nos anos iniciais do ensino fundamental e do trabalho
de elaboração de arquétipos de programas curriculares para o ensino de história.
Considerando as diretrizes oficiais para o ensino da disciplina no Brasil e as demandas
sociais e culturais das escolas públicas e privadas da região metropolitana de Maceió, o
estudo foi desenvolvido no período de 2012 a 2013 e teve como coautores os
estudantes do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Palavras-chave: Ensino de História; Pedagogo; Ensino Fundamental.

Resumen
El texto presenta los resultados de la investigación sobre la formación del maestro-
educador que enseña la historia en los primeros años de la escuela primaria y del
trabajo de preparación de los arquetipos de los planes de estudio para la enseñanza de
la historia. Teniendo en cuenta las directrices oficiales para la enseñanza de la
disciplina en Brasil y las demandas sociales y culturales de las escuelas públicas y
privadas en el área metropolitana de Maceió, el estudio fue llevado a cabo en el
período 2012-2013 y tuvo como coautores a los estudiantes del curso de Pedagogía de
la Universidad Federal de Alagoas (UFAL).
Palabras clave: Enseñanza de la historia; Pedagogo; Enseñanza fundamental.

1
Mestre em Educação – UFAL
Introdução
O texto discorre sobre a experiência de formação e trabalho
desenvolvido com professores da Educação Básica, que eram graduandos
do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Apresenta os resultados do trabalho de elaboração e vivência de 2

arquétipos de programas curriculares para o ensino de história nos anos


iniciais do Ensino Fundamental. Desenvolvido nos anos de 2012 e 2013, o
estudo teve como interesse evidenciar a importância da formação teórica
sólida do pedagogo a respeito dos fundamentos teóricos e natureza do
conhecimento histórico, com o objetivo de instrumentalizar o professor
para selecionar e criar, respectivamente, os conteúdos e práticas
necessárias ao contexto e experiência sociocultural dos estudantes dos
anos iniciais do ensino fundamental – sejam eles crianças, adolescentes,
jovens, sejam adultos e idosos.
Logo, como referência oficial, para o desenvolvimento das
atividades de pesquisa e para a elaboração dos arquétipos curriculares,
utilizaram-se os seguintes documentos: Lei n.º 11.645/03, Lei n.º 11.
645/08 e Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino de História (nos
anos iniciais do Ensino Fundamental).
Na elaboração dos programas curriculares “experimentais”
consideraram-se, ainda, como subsídios teóricos, metodológicos e
práticos, os saberes e as práticas apreendidos pelos graduandos nas
disciplinas de Educação e Diversidade Étnico-Racial, Tópicos de História da
Educação em Alagoas e Estágio Supervisionado. Essas disciplinas se
caracterizam como vivências concomitantes ou estudos anteriores às
práticas das disciplinas Saberes e Metodologias do Ensino de História I e II,
em que estavam matriculados os estudantes de Pedagogia participantes
da pesquisa, que também já atuavam como professores, ou estagiários,
em escolas públicas e privadas de Alagoas.
Como o estudo teórico e a criação apresentaram-se como atos 3

associados, a pesquisa seguiu três movimentos: primeiro realizou-se o


estudo de textos acadêmicos que tratavam da constituição da História
como disciplina-escolar no Brasil, das correntes historiográficas e
pedagógicas que têm influenciado o ensino de história na Educação Básica
e das especificidades do conhecimento histórico escolar. Por conseguinte,
realizou-se a análise das propostas de ensino de história expressas nos
projetos político-pedagógicos das instituições de ensino onde os
estudantes atuavam como professores ou em que estavam realizando o
estágio supervisionado; também, a análise de coleções de livros didáticos
e de “Sistemas de Ensino”, que funcionavam como se fossem o currículo
escolar. No último momento, com a criação de grupos de estudo,
discussão e produção, os estudantes elaboraram protótipos de programas
curriculares para o ensino de história, nos cinco primeiros anos do Ensino
Fundamental, considerando a realidade sociocultural das comunidades
escolares em que atuavam como professores ou estagiários.
Ao contrário de ser um modelo-padrão ou uma prescrição para as
escolas, a elaboração do arquétipo curricular teve por objetivo propiciar
ao graduando participar, mesmo de forma simulada, do processo de
discussão, aprofundamento e confronto teórico e político necessário à
elaboração das práticas pedagógicas no interior das escolas.
É importante salientar que, no campo da Pedagogia, o trabalho do
professor configura-se como uma atuação de caráter polivalente, na
Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Logo, para
esse profissional em formação, as disciplinas que tratam de questões
metodológicas e didáticas são fundamentos indispensáveis à realização 4

das práticas didático-pedagógicas nos diferentes campos disciplinares


(língua portuguesa, matemática, ciências, história, geografia, arte e, em
alguns casos, educação física), especialmente durante a realização das
atividades de estágio. Por conseguinte, o estudo partilhado e as
experiências de pesquisa de campo, voltadas à identificação e
compreensão das práticas e problemáticas que corporificam o ensino da
História, possibilitam ao futuro pedagogo analisar, refletir e intervir na
constituição dos conhecimentos escolares.
Porém, a forma como a produção do conhecimento histórico
escolar é tratada tem forte influência na atuação do Pedagogo no interior
das escolas. Assim, existem duas formas de apreciação do conhecimento
histórico escolar. A primeira seria observá-lo como a simplificação e
vulgarização do conhecimento histórico acadêmico e a segunda seria
caracterizá-lo como uma produção cultural (campo de conhecimento)
autônoma e específica (FONSECA, 2004; BITTENCOURT, 2009).
Segundo a primeira vertente explicativa, o corpo de saberes
constitutivos da disciplina de História, integrante do currículo escolar,
seria resultante de uma transposição didática. Ou seja, o conhecimento
histórico escolar seria um tipo de reestruturação dos saberes científicos,
mediada por instrumentos didáticos. Essa percepção do conhecimento
disciplinar posiciona a escola como receptora e reprodutora passiva de
conhecimentos externos (científicos). Tal prepositiva serve de respaldo
teórico e metodológico para configuração de programas curriculares
elaborados por especialistas e legitima a hierarquização de funções e
poderes no campo educacional. Sendo assim, os professores universitários 5

são apresentados como pesquisadores, produtores de conhecimento, e


como grupo sociopolítico e intelectual qualificado para definir os rumos da
escola. Já o corpo docente da Educação Básica, estaria condicionado à
categoria de reprodutores de saberes e executores de tarefas didático-
pedagógicas (aplicadores de métodos e técnicas de ensino).
A percepção do professor como receptor, reprodutor e executor de
tarefas se agrava na constituição das propostas curriculares para os anos
iniciais do Ensino Fundamental e na educação Infantil. Como os
professores polivalentes não participarem de um processo de formação
específica, por campo disciplinar, sua capacidade de vivenciar, de forma
qualitativa, os saberes do campo da História é apresentada como limitada
(BITTENCOURT, 2009). Tal constatação acaba por legitimar as intervenções
realizadas por especialistas (e editoras) na constituição dos currículos
escolares, sem a participação efetiva do conjunto de profissionais que
trabalham diretamente com os estudantes – crianças, adolescentes,
jovens, adultos e idosos. Consequentemente, as intervenções e
orientações técnicas, efetivadas por especialistas, acabam servindo como
instrumentos silenciadores de um problema maior: a falta de qualidade da
formação inicial dos professores polivalentes para o trabalho com saberes
e práticas de diversos campos disciplinares. A interferência de especialista
na composição do currículo atenua, ou silencia, as discussões conflituosas
em torno da formação sociocultural, intelectiva, ético e política dos
professores polivalentes a ser ofertada nas universidades.
A segunda tendência explicativa apresenta o conhecimento
histórico escolar como uma produção cultural autônoma e específica. Ou 6

seja, as disciplinas escolares “não são nem uma vulgarização nem uma
adaptação das ciências de referência, mas um produto específico da
escola, que põe em evidência o caráter eminentemente criativo do
sistema escolar” (JULIA, 2001, p. 33).
A ação docente é um ato coletivo delineado por contribuições
culturais, históricas, econômicas, políticas e pedagógicas. Como um
microssistema, funcionando dentro de um macrossistema (a sociedade), a
escola se estrutura por uma rede tensionada de relações que originam a
negociação de objetivos, sentidos e significados entre os sujeitos da escola
e os dispositivos oficiais (diretrizes curriculares oficiais).
Desse modo, mais que uma simplificação ou reprodução, os
conteúdos e práticas constitutivos do conhecimento histórico escolar são
recriações de sentidos e de significados, mediadas pelo mundo físico
(natural) e social (cultural) em que se inserem alunos e professores. Assim,
os conhecimentos disciplinares escolares distanciam-se do currículo
prescrito (oficial) e dos conhecimentos acadêmicos (ciências de
referência) porque sofrem a interferência de objetivos, necessidades,
interesses e posicionamentos políticos da comunidade escolar.
Destarte, as propostas curriculares prescritas constituem-se pela
idealização de um tipo específico de professor e de escola (BITTENCOURT,
2009), logo não abarca a pluralidade de contextos socioprodutivos,
culturais e étnicos da sociedade. Ainda, temáticas e práticas normatizadas,
usualmente, tomam como referência a existência e atuação de um corpo
docente com habilidades intelectivas e investigativas que não
correspondem ao tipo de instrumentalização recebida nos espaços de 7

formação de professores de História, tampouco dos pedagogos.


De fato, a História torna-se conhecimento histórico escolar após
passar por dois filtros político-culturais: um acadêmico, em que se
constitui como parte do acervo cultural a se transmitir de forma oficial e
sistemática, e o outro circunscrito pelo contexto e pelas demandas
formativas das instituições de ensino.
Nessa via de argumentação, observa-se que o conhecimento
disciplinar escolar resulta de duas formas de intervenção político-
pedagógica imprimida ao conhecimento acadêmico: uma oficial e outra
local. A primeira corresponde à mediação didática efetivada aos
conhecimentos acadêmicos, por dispositivos oficiais e pedagógicos, para
que eles se tornem ensináveis e consensuais às diretrizes oficiais. A
interferência local corresponde às reelaborações efetivadas coletivamente
na organização do programa curricular escolar e nas práticas de sala de
aula. Seleções e recriações que negam, silenciam, omitem e/ou
substituem os conhecimentos e práticas estruturantes dos currículos
prescritos. São esses movimentos que fazem do currículo de História um
espaço flexível e de possibilidades, que se transforma de acordo com os
contextos socioculturais.
É importante esclarecer que, embora o conhecimento histórico
acadêmico e o conhecimento histórico escolar apresentem características
específicas e funções sociais distintas, ambos têm seu valor social e
político definido por seu caráter científico. Tal condição independe da
corrente historiográfica a que vincula o saber produzido e disseminado, 8

pois a escola, que oferta o ensino básico ou superior, caracteriza-se como


um canal objetivado de acesso ao conhecimento científico.
Nesse sentido, o papel da escola é garantir o acesso ao
conhecimento sistematicamente produzido utilizando-se de processos
metodológicos e instrumentos didáticos que provoquem discussão,
análise, crítica, reflexão e criação. Logo, é fundamental que os professores
tenham conhecimentos teóricos sobre as diferentes correntes
historiográficas e abordagens pedagógicas (AZEVEDO; STAMATTO, 2010) a
fim de realizar o trabalho de seleção de conteúdos e das metodologias de
forma articulada e coerente com o objetivo formativo geral da escola: tipo
de sujeito que se deseja formar. A definição do tipo de formação a ser
ofertada pela escola está diretamente ligada ao tipo de projeto societário
que a escola acolhe como ideal político, econômico e cultural.
É esse ideal que funciona como elemento indicativo dos critérios a
serem definidos na seleção dos conteúdos e dos procedimentos de
ensino. Por isso, na produção (simulada) do programa curricular,
desenvolvido com graduandos do Curso de Pedagogia, algumas ações
foram imperativas:
 Conhecer, interagir e dialogar com os sujeitos da unidade de
ensino (professores, alunos, diretor(a), coordenadores(as),
cozinheiros(as) e secretários(as) e com a comunidade onde se
insere a escola, para “inventariar” e classificar a ordem de
prioridades das demandas sociais; necessidades e interesses 9

formativos da comunidade escolar.


 Definir que tipo de sociedade se desejava construir e como a
escola poderia colaborar com esse ideal futuro, atuando no
presente dos estudantes.
 Estudar com profundidade as correntes historiográficas, as
teorias pedagógicas e os saberes históricos definidos nos
documentos oficiais como necessário à formação dos estudantes
(crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos), a fim de
realizar relações objetivas entre os ideais formativos da
instituição de ensino e os conteúdos a serem selecionados como
objeto de ensino e as práticas didáticas a serem desenvolvidas.

Considerações Finais
Ao selecionar conteúdos conectados com as relações socioculturais
vividas pelos educandos e criar práticas pedagógicas que buscam o
desenvolvimento da “compreensão da realidade mais racional e
argumentativa, permanentemente submetida à reflexão a ao debate”
(SANTOMÉ, 2013, p. 11), os graduandos ampliam suas habilidades técnicas
e passam a refletir de forma mais sistemática sobre os interesses políticos
e valores sociais fundamentais ao trabalho docente. Assim, a criação dos
arquétipos curriculares como técnica pedagógica põe em movimento
processos formativos que: estimulam o estudo dos conhecimentos
específicos dos campos disciplinares; instigam a criatividade e a
participação do professor na constituição do currículo escolar; possibilitam
conhecer as reais demandas das escolas em relação à formação do 10

professor e, também, promovem a interação das práticas de ensino


desenvolvidas na universidade com as produções pedagógicas das escolas.
Referências
AZEVEDO, Crislane; STAMATTO, Maria Inês. Teoria historiográfica e prática
pedagógica: as correntes de pensamento que influenciaram o ensino de
história no Brasil. Antíteses, v. 3, n. 6, p. 703-728, jul.-dez. 2010.

BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. 3. ed. 11


São Paulo: Cortez, 2009.

BRASIL. Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n.º 9.394, de
20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá
outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Poder Executivo, Brasília, DF, 18 jan. 2003.

BRASIL. Lei n.º 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de


20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro
de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 mar.
2008.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares


Nacionais: história e geografia. Brasília: MEC/SEF, 1997.

FONSECA, Thais Nívia. História e ensino de história. Belo Horizonte:


Autêntica, 2004.

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista


Brasileira de História da Educação, n. 1 jan.-jun. 2001.

SAMTOMÉ, Jurjo. Currículo e justiça social: o cavalo de tróia da educação.


Porto Alegre: Penso, 2013.
UMA ALEGORIA DO PROCESSO COLONIAL NA AMÉRICA
PORTUGUESA ATRAVÉS DO FILME AVATAR: UMA
EXPERIÊNCIA COM AULA OFICINA NO ENSINO
FUNDAMENTAL II
André Moreira da Silva 1 1

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar e discutir a experiência de concepção e
prática de uma aula oficina em uma escola pública na cidade de Vitória da Conquista –
BA. Discutir-se-á a prática metodológica da oficina e do desenvolvimento das
discussões e atividades que objetivaram observar alguns aspectos da colonização
europeia na América através de vários textos, incluindo a obra cinematográfica Avatar
(2009), de James Cameron, como uma alegoria do processo colonial ocorrido na
América portuguesa, a partir do século XVI. Através destas conexões a aula oficina
pretendeu estabelecer conexões entre as experiências pessoais dos alunos e o tema
proposto a fim de gerar debates e instigar a desconstrução de preconceitos e erros
sobre esse processo.
Palavras-chave: período colonial brasileiro; história indígena; aula-oficina.

Abstract: This paper has the purpose to analyze and discuss the design and practical
experience of a workshop class in a public school in the city of Vitória da Conquista -
BA. It point the methodological practice of the workshop and the develop of the
discussions and activities with the main motif of observe some aspects of the
European colonization in America through several texts, including the cinematographic
work Avatar (2009), from James Cameron, as an allegory of the colonization processes’
occurred in Portuguese America, starting from the XVI Century. Through these
connections the workshop intended to establish between the students' personal
experiences and the theme proposed to generate debates and to instigate the
deconstruction of prejudices and mistakes about that process.
Key-words: Brazilian colonial period; native history; workshop.

1
Licenciado em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e professor de História
do Ensino Fundamental II da rede privada em Vitória da Conquista – BA.
A experiência relatada e discutida aqui foi elaborada e executada na
cidade de Vitória da Conquista – BA em uma turma do 8º ano do Ensino
Fundamental de um colégio público, a saber, o Centro Integrado Navajo
de Brito. A atividade foi realizada num total de cinco aulas, cada uma com
50 minutos e consistiu no desenvolvimento de painéis considerando o 2

conhecimento dos alunos a partir de discussões prévias acerca da


temática indígena e do processo de colonização na América portuguesa e
diante da exibição e contextualização do filme Avatar (2009), de James
Cameron.
A aprendizagem de história desenvolvida ao longo da experiência de
aula oficina apresentada pretendeu permitir aos alunos modificar
opiniões, paradigmas e preconceitos comumente evidenciados a partir da
problematização da questão indígena na sala de aula, na formação cultural
na América e também propôs-se a lançar um olhar sobre os processos
coloniais no continente.
Partimos, para tal, da concepção da sala de aula como espaço de
interatividade e troca mútua de conhecimentos pensando-a como um
ambiente propício para o desenvolvimento do diálogo professor/aluno em
função de uma melhor estruturação e construção de visões e significações
que permeiem a realidade de cada indivíduo social não apenas ao
estabelecer tais conexões, mas, e especialmente, em seu convívio no
cotidiano, nos mais variados contextos sociais nos quais transita.
De acordo com Terezinha Azerêdo Rios (2008), a aula é uma
construção realizada tanto pelos professores quanto pelos alunos,
estabelecendo um diálogo entre as diferentes partes, sob a premissa
básica de que, apesar das diferenças, todos, indistintamente, são capazes
de ensinar/aprender algo novo com o outro, a propósito, é esta mesma
diferença que nos possibilita conhecer e ampliar os horizontes. Conforme
nos lembra Freire:
3

Não há docência sem discência [sic], as duas se explicam e


seus sujeitos apesar das diferenças que os conotam, não se
reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina
aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.
(FREIRE, 1996, p. 23), grifo meu.

A elaboração da aula-oficina pretendeu, dessa forma, estabelecer entre


professor e alunos, amarrações que dessem condições de organizar os
conhecimentos adquiridos não apenas em sala de aula, mas ao longo da
trajetória de vida de cada um dos indivíduos. Desta maneira suas
experiências pessoais, seu modo de pensar o mundo, seus hábitos e
práticas estiveram intimamente conectados àquilo que se pretendia
observar e desenvolver em sala de aula. Este mecanismo de ensino
permite, conforme Isabel Barca (2004), romper a tradição reducionista e
simplificada da observação de fontes históricas e do próprio
conhecimento histórico pelos alunos ao abordar de diversificadas
maneiras questões que os provoque e que os estimule a partir da
elaboração de conexões entre a vivência dos indivíduos envolvidos e o
saber histórico.
O conhecimento histórico objetiva perceber os processos e a ação
dos sujeitos históricos analisando os relacionamentos estabelecidos entre
diversos grupos humanos em diferentes períodos e em diferentes locais.
Essa premissa se fez presente ao longo da prática aqui analisada, pois a
partir dela, foi possível observar diferentes maneiras de, por exemplo,
manifestações culturais de uma nação, povo ou grupo social, num dado
período (ou mais), nesse caso, em específico, permitiu inclusive associar às 4

discussões a questão do silêncio atual acerca dos grupos indígenas que


habitavam a região do Planalto da Conquista na região sudoeste da Bahia.
Foram utilizados previamente diversos mecanismos para este fim como
imagens, músicas, relatos de viajantes, pinturas, material arqueológico,
etc.
Quando devidamente esclarecidos e ponderados os objetivos, as
atividades propostas – pesquisa de fontes históricas, relatos familiares,
uso de relatos da memória local acerca do tema, conhecimentos próprios
adquiridos em vivência – deveriam mostrar-se eficientes na discussão, na
concepção e organização dos textos. Na verdade, a conclusão destas
atividades pretendeu, acima de tudo, levar à desconstrução de
paradigmas e preconceitos que com certa naturalidade se fundamentam
ao longo da vida de cada indivíduo, não pela vontade ou ação exclusiva do
docente, mas a partir do estabelecimento de diálogos que valorizem o
caráter pessoal de cada indivíduo na medida do possível.
Dessa forma, foi elaborada uma análise que aprofundasse o
entendimento da amplitude de possibilidades de análise histórica das
relações humanas enxergadas a partir de uma série incontável de objetos,
quer dizer, no bojo dos estudos acerca dos relatos das atividades e dos
frutos elaborados pelos seres humanos está a sua passividade de
observação historiográfica. Estabelecer relações com outros saberes
permite maior profundidade aos exames históricos sobre as mais variadas
temáticas sejam elas políticas, econômicas, culturais, em âmbitos públicos
ou privados, tratando casos específicos ou amplos é claro, dentro de suas
possibilidades (BURKE, 1992). 5

Dadas as devidas coordenadas e, discutindo com os alunos acerca


dos primeiros contatos entre indígenas e europeus na América e no
Planalto da Conquista, foi proposta a observação do filme Avatar (2009),
de James Cameron. A forma como se pretendeu observar o filme,
construindo paralelos entre ficção e realidade e pontuando estas relações,
permitiu ilustrar relatos históricos e desenvolver suas habilidades de
identificação e concentração diante das propostas de análise da mídia. Ao
relacionar aspectos como as questões econômicas e organicidade política
dos povos nativos, os novos costumes e veículos de padronização cultural
utilizados pelos estrangeiros e os mecanismos de resistência daqueles
primeiros, almejou-se estimular a percepção da classe para estes quesitos
quando aplicados aos nativos da região sudoeste da Bahia, em especial, ao
apresentar narrativas históricas, recortes de periódicos locais, imagens e
narrativas que denunciem estas pontuações.
A obra de ficção científica de Cameron traz a história de um soldado
americano, Jake Sully, num planeta chamado pelos colonizadores
humanos de Pandora. Os humanos transmitem sua cultura para os nativos
ao passo que ambicionam simultaneamente obter lucros utilizando
matéria-prima de uma região considerada sagrada pelo grupo nativo
Na’vi.
Como atividade proposta os alunos tiveram a oportunidade de
montar painéis contendo ilustrações, colagens e texto escrito objetivando
representar desta forma as observações feitas a partir da leitura do filme e
dos relatos históricos examinados. Cada cartaz continha uma confecção
relacionada a uma temática definida previamente e contextualizada ao 6

tema geral. Os alunos foram divididos em dois grandes grupos nos quais
orientados por eixos, tentaram identificar aspectos apresentados no filme
que podem ser relacionados ao processo histórico analisado na aula.
Seguindo o proposto, as ilustrações e colagens foram realizadas
obedecendo seus respectivos agrupamentos e micro temas. Em seguida
foram apresentados à turma. Dessa forma, obtivemos:

Europeus Nativos

Apontar os
interesses e as Apontar a relação dos
Grupo 01 Grupo 04
questões econômicas nativos com a terra
envolvidas

Apontar as tentativas Apontar a diversidade


Grupo 02 de padronização Grupo 05 política/organizacional
cultural dos nativos

As formas de As formas de
Grupo 03 Grupo 06
violência resistência

Conforme o historiador francês Marc Ferro (2010), o cinema pode


proporcionar duas importantes perspectivas históricas, a primeira diz
respeito à análise do filme enquanto resultado das relações estabelecidas
no período de sua produção. Uma vez que o mesmo é construído por um
grupo social e destinado a um público característico dentro de um
contexto histórico específico, as representações feitas por estes grupos de
seus personagens, seu roteiro, suas imagens, etc. são capazes de delinear
muito claramente ideais que se tenham por objetivo enaltecer ou mesmo 7

depreciar. Além disso, trata-se de uma obra realizada por profissionais das
mais diversas áreas, o que pode criar um leque ainda maior de referências
e proposições na sua constituição. Sem dúvida, afirma Ferro,

esses cineastas, conscientemente ou não, estão cada um a


serviço de uma causa, de uma ideologia, explicitamente ou
sem colocar abertamente as questões. Entretanto, isso não
exclui o fato de que haja entre eles resistência e duros
combates em defesa de suas próprias ideias. (FERRO, 2010,
p. 16).

A segunda análise está relacionada com a forma como um dado contexto


é apresentado ao público de um momento histórico diferente. Neste caso,
Ferro chama a atenção para os discursos construídos por um grupo social
a respeito de outro grupo – nos chamados filmes históricos. As
representações são apontadas aqui como uma tentativa de “resgate”, não
do contexto da produção fílmica, mas daquele que se tenta retratar.
Passa, assim, a estabelecer parâmetros que recuperem ou evoquem
representações e práticas de outro contexto. Apesar disto, o total
distanciamento de seu próprio tempo é impossível. As leituras feitas
dependem, imprescindivelmente, do período histórico aos quais aqueles
que o fazem estão inseridos (FERRO, 2010, p. 21).
Compreendemos, dessa forma, que Avatar, ainda que não
pretendesse representar os processos de colonização nas Américas, ou
algum outro período histórico – conforme a segunda proposição de Ferro, 8

o filme é capaz de proporcionar considerações bastante pertinentes como


alegorias ao período colonial na América se forem observadas, é claro, as
devidas orientações.
Os painéis foram expostos à turma e, associando pontuações feitas
no decorrer das aulas anteriores e conhecimentos prévios dos alunos,
foram levantadas questões para discursão. Neste momento, os alunos
expuseram dúvidas, posicionamentos e discursos evidenciados
cotidianamente acerca do tema.
Pensar os espaços, ambientes, as tradições (ou o que delas resistiu
ao tempo), os mecanismos de configuração cultural europeia, as formas
de resistência e o pouco que vemos a respeito da cultura indígena nesta
região abriu uma série de perspectivas relacionadas à temática. A
utilização da metodologia de aula oficina permitiu esboçar de forma clara
e eficiente estas propostas.
Este mecanismo de ensino é capaz de proporcionar um aprofundar-
se maior e mais intenso nos objetivos escolhidos. Por prever a inclusão de
saberes, costumes e práticas das pessoas envolvidas nas atividades, se não
estiverem bem direcionadas e bem fundamentados os objetivos, corre-se
o risco de desnortear o ensino proposto ou simplificar tudo à possibilidade
de transformar as situações históricas a seu bel-prazer ignorando, assim,
as determinações históricas e condições sociais, políticas e econômicas as
quais todos estamos submetidos (SEFFNER, 2013, p.55).
Para a prática desta metodologia, conforme notado acima, é
imperativo que estejam bem delineados os interesses e a constante
ênfase nas competências que se pretendem desenvolver. É possível, a 9

partir da utilização destes métodos, fugir do tradicionalismo ao dispor


diversas fontes históricas e considerar como elemento importante o
conhecimento e as leituras que os alunos fazem em sua vida pessoal. Estes
atributos permitem a discussão de preconceitos, paradigmas e permite
também que os discentes da disciplina de História compreendam em seu
tempo conceituações e fragmentos dos tempos passados.
Referências

AVATAR. Direção: James Cameron. Produção: James Cameron. Estados


Unidos: Twentieth Century Fox Film Corporation, 2009. 162 min. Son.,
Color.
BARCA, Isabel. Aula oficina: do projeto à avaliação. In: Para uma educação 10
de qualidade: Atas da Quarta Jornada de Educação Histórica. Braga,
Centro de Investigação em Educação (CIED). Instituto de educação e
Psicologia, Universidade do Minho, 2004, p. 131-144.
BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola de
Annales (1929-1989). São Paulo: UNESP, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
RIOS, Terezinha Azerêdo. A dimensão ética da aula ou o que nós fazemos
com eles. In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro (org.). Aula: Gênese,
dimensões, princípios e práticas. Campinas, SP: Papirus, 2008.
SEFFNER, Fernando. Aprendizagens significativas em história: critérios de
construção para atividades em sala de aula. In: GIACOMONI, Marcelo
Paniz; PEREIRA, Niltom Mullet. (orgs.). Jogos e ensino de história. Porto
Alegre: Editora Evangraf, 2013, p. 47-62.
MÃE ÁFRICA DESFIGURADA: CONSIDERAÇÕES ACERCA
DA DOCÊNCIA E AS QUESTÕES ÉTNICOS-RACIAIS
Antonio José de Souza1
Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios 2
1

Resumo
Este trabalho visa debater a histórica representação subalterna dos povos negros na
estrutura social brasileira, assim como o descaso que vitima a historiografia, os
conhecimentos e as expressões culturais do continente africano. Essa constatação é
confirmada pelas ideologias que categorizam o negro como uma raça inferior. À vista
disso, a escola também contribuiu com o processo de negação da identidade e cultura
afro-brasileira, permitindo, consciente ou inconscientemente, a presença do
preconceito e da discriminação racial no espaço escolar. Desse modo, o referido
trabalho, que é parte de uma pesquisa em andamento, desenvolve-se no terreno da
educação, alicerçado na perspectiva da pesquisa qualitativa de abordagem
autobiográfica. Trata-se de uma pesquisa-formação atravessada pelos princípios da
fenomenologia e da hermenêutica a fim de investigar, através das histórias de vida-
formação, de que maneira a cultura afro-brasileira emerge das narrativas e práticas
pedagógicas de professoras e professores de classes multisseriadas das escolas rurais
no município de Itiúba-BA.

Palavras-chave: África, relações étnico-raciais, docência.

1
Bacharel em Teologia pela Faculdade Católica de Fortaleza. Licenciado em História pela Faculdade de
Ciências da Bahia. Especialista em Desenvolvimento Sustentável no Semiárido com Ênfase em Recursos
Hídricos (IFbaiano/Senhor do Bonfim). Mestrando em Educação e Diversidade (Universidade do Estado
da Bahia). Professor da Educação Básica do município de Itiúba-BA. Integrante do Grupo de Pesquisa
DIVERSO - Docência, Narrativas e Diversidades e do Grupo de Pesquisa DIFEBA - Diversidade, Formação,
Educação Básica e Discursos. E-mail: tonnysouza@gmail.com.
2
Pós- Doutora em Educação. Professora Titular da Universidade do Estado da Bahia, no Departamento
de Educação - Campus I. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e
Contemporaneidade e Programa de Pós-Graduação em Educação e Diversidade. E-mail:
jhanrios1@yahoo.com.br
2

Abstract
This work aims to discuss the historical subaltern representation of black people in
Brazilian social structure, as well as the indifference that victim historiography,
knowledge and cultural expressions of the African continent. This is confirmed by the
ideologies that categorize the Negro as an inferior race. In view of this, the school also
contributed to the process of denial of identity and african-Brazilian culture, allowing,
consciously or unconsciously, the presence of prejudice and racial discrimination at
school. Thus, the said work, which is part of an ongoing research, develops in the field
of education, based on the perspective of qualitative research autobiographical
approach. This is a research-formation traversed by the principles of phenomenology
and hermeneutics to investigate, through the stories of life-training, how the african-
Brazilian culture emerges from the narratives and pedagogical practices of teachers
and teachers of multigrade classes of rural schools in the municipality of Itiúba-BA.

Keywords: Africa, ethnic-racial relations, teaching.


O Brasil, segundo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) de 2010, tem a maior população negra fora do
continente africano, procedente de uma ruptura populacional imposta,
isto é, somos um agrupamento humano, organizado em sociedade
mantido e sustentado pelo continente negro. Ainda assim, as culturas 3

africanas permanecem desconhecidas para grande parte dos brasileiros e


quando descortinadas ganham uma marca estigmatizada e subjugada,
colocando negros e negras numa posição desigual diante dos demais
grupos étnico-raciais partícipes da identidade e cultura brasileira.
É também obscurecido o estudo de que antes mesmo da chegada
dos negros escravizados ao Brasil, o continente africano manteve com a
Europa um longo acordo. Foram séculos “de amizades e hostilidades
várias, o bom e o mau, lucros e perdas [...], numa tessitura cada vez mais
apertada” (DAVIDSON, 1981, p. 3). O continente africano foi integrado ao
sistema internacional de comércio e colonização desde o século XV,
através de contatos comerciais que faziam crescer vertiginosamente os
interesses capitalistas europeus.
Para tanto, era necessário que sucedessem manobras desonestas e
atrozes com o objetivo de desviar os sentidos dos registros históricos que
narravam um continente africano fidedigno, por esse motivo, mitos e
preconceitos, retiraram das sociedades africanas o direito de terem uma
historiografia notável. Assim, descrições agradáveis e apaziguadoras sobre
o continente negro passaram a ficar nebulosas, afinal de contas só com a
divulgação de cenários horrendos, pestes violentas e uma população
capaz de barbáries, poder-se-ia defender a expedição civilizadora
protagonizada pelos colonizadores ocidentais.
Isto implicou o desenvolvimento espantoso da alva e astuciosa
Europa que, com propósitos imperialistas, expandiu os seus tentáculos
para outras terras, despontando para a História Oficial como sendo o 4

‘Berço da Humanidade’, em detrimento de um continente preto,


empobrecido e degradado. Portanto, a “Europa acreditava ser um povo
superior desde o nascimento: pessoas da raça branca” (COTRIM, 1999, p.
46), irrompendo para o mundo numa perspectiva eurocêntrica, isto é,
uma concepção que entroniza os interesses e a cultura europeia como
sendo as mais respeitáveis e avançadas, colocando-se num patamar
proeminente às demais e, por isso, com direito de conquistar o resto do
mundo. Assim, chegava ao fim o intercâmbio euro-africano, pois,
definitivamente, na ótica eurocêntrica o negro (homem e mulher) tinha o
status de ‘gado humano’, despido das vestes dignas da humanidade.
À vista disso, vários segmentos institucionalizados da sociedade
brasileira (tais como igrejas, Universidades, escolas, cenário político e
midiático) influenciaram a representação e posicionamento vexatório do
negro na estrutura social, afinal, a partir desse lugar de poder e controle,
foi possível, numa articulação de vozes e silenciamentos, construir a
imagem do negro como um ser humano inferior e ‘coisificado’ por meio
de uma engrenagem sistêmica, elaborada para negligenciar os
conhecimentos que são transmitidos desde o nosso nascedouro, no
tocante aos acervos culturais, educacionais, religiosos, dentre outras
questões que envolvem os povos negros.
Lamentavelmente, ainda predomina a insistência em manter o
negro despojado de sua humanidade, assim como foi feito quando o
Atlântico serviu de travessia para as importações contrabandeadas de
africanos que forçosamente foram obrigados a participar da corrente
migratória, intitulada pela história por ‘diáspora’, que vem a ser o 5

deslocamento descontínuo, responsável pela instabilidade populacional e


o rompimento com a população‑ mãe-África. Assim, aportaram no Brasil,
na condição de escravizados, a fim de trabalharem no desenvolvimento da
colônia, imersos num processo de intensa e verdadeira dominação.
Este cenário hostil é reforçado pelas influências advindas das
correntes de pensamento racistas do século XIX, como o Darwinismo
Social, o Racismo Científico, a Antropometria e as Teorias Evolucionistas
que influenciaram no Brasil as reproduções simbólicas pejorativas
atribuídas à figura do negro, como o mito da “vadiagem”, da “preguiça” e
o mito da “mulata sensual” que estiveram arraigadas à estrutura social
brasileira daquela época, a tal ponto de penetrar as estruturas
contemporâneas que permanecem categorizando o negro como uma raça
inferior; portanto, legado deixado pela experiência da diáspora, causadora
da desarticulação dos modelos identitários e culturais dos povos negros
africanos no Brasil colonial.
Sendo assim, o negro é transfigurado num espectro, visto que nas
representações sociais existem elementos determinantes para a
classificação no regime de castas que, para tal, considera o desembarque
pretérito dos africanos, desenvolvendo um imaginário de degenerações
culturais, sociais e também biológicas, por isso a participação na formação
do povo brasileiro com a cor da pele, crenças, costumes e a mestiçagem
com as populações brancas e indígenas significava uma descendência
corrompida, para as já mencionadas doutrinas raciais da segunda metade
século XIX. Com efeito, o afastamento da eminente ameaça viria pelo
branqueamento da sociedade brasileira, por meio da eliminação gradativa 6

do sangue “subalterno”, resolvendo sumariamente a questão da formação


identitária nacional, considerada incômoda por conta da pluralidade
racial.
Por outro lado, no percurso histórico brasileiro, homens e
mulheres negras estiveram resistindo política e culturalmente a toda
forma de opressão e discriminação, de tal modo que ações no intuito de
promover a igualdade de oportunidades entre os grupos étnicos
constituem conquistas reais na atualidade. No entanto, o reconhecimento
dessas genuínas retratações e eventos antirracistas não elimina a
memorável atrocidade diante das bizarras ideologias raciais e
discriminatórias que, na hierarquia conjuntural atual, ainda desloca o
sentido ancestral africano para a centralização do processo estigmatizante
do negro, personificado como o ‘outro’ estranho, escravo, dominado e
vítima permanente de miríades formas de exclusão.
Do âmago dessas reflexões, brota a convicção de que as mudanças
oriundas da contemporaneidade têm, inevitavelmente, respingado nas
velhas e retorcidas estruturas escolares, advertindo-a sobre o surgimento
da diversidade cultural como fundamento estruturante da educação
nacional, rompendo, conforme Macedo (2007, p. 26), com a
despropositada “história de alijamentos e de silenciamentos de vozes
advindas de segmentos socioculturais não hegemônicos *...+”. Neste
ponto, evidencia-se a desigualdade racial, perpassando o arcabouço
educacional brasileiro, gerando disparidades que, no contexto das escolas,
são ainda mais patentes, tendo em vista a lastimável herança de
precariedades no tocante à formação inicial e continuada dos docentes. 7

Recordo do quanto me sentia atraído pela majestosa África, ao


passo que folheava o livro-didático de história. Nessa época, eu era
apenas uma criança estudando no antigo ginasial, sentando na carteira da
frente, vestindo uma farda branca de escudo no peito com o nome do
patrono, emprestado aquele colégio estadual, escrito em azul. Os olhos
curiosos daquele menino pousavam por sobre o mapa-múndi não por que
conheciam os encantos do imponente continente africano e as fascinantes
histórias dos povos negros, nossos ancestrais vindos de lá. Ele apenas
sabia o que via e lia sobre a África, banhada ao norte pelo Mar
Mediterrâneo, ao Oeste pelo Oceano Atlântico e ao Leste pelo Oceano
Índico. Eram imagens estrategicamente ilustrativas que serviam ao
objetivo de “verbalizar” informações acerca das dimensões cartográficas,
relevos, flora e fauna do continente negro, mas que tinha também a tática
de manter desconhecidas importantes visualizações, truncando as leituras
sobre as identidades, as culturas, as existências e a origem da
humanidade.

Vivemos num país com grande diversidade racial e


podemos observar que existem muitas lacunas nos
conteúdos escolares, no que se refere às referências
históricas, culturais, geográficas, lingüísticas [sic] e
científicas que dêem [sic] embasamento e explicações
que possam favorecer não só a construção do
conhecimento, mas também a elaboração de
conceitos mais complexos e amplos, contribuindo para
a formação, fortalecimento e positivação da auto-
estima [sic] de nossas crianças e jovens (ROCHA;
TRINDADE, 2006, p. 55-56). 8

Em vista disso, o meu repertório sobre o continente africano não


recebeu contribuições expressivas da escola, na verdade, foi por meio da
sua antiga ideia de currículo que, erroneamente, “aprendi” a respeito de
uma África aprisionada a um passado forjado por outros e ancorada a um
presente marginalizado. Foi através da prática docente serva e obediente
ao sistema reprodutor da simplificada diversidade africana que eu ‘mordi
a isca’ e subliminarmente foi atribuindo à Europa o que de fato é da
África: o título de berço da humanidade.
Como se pôde ver, o percurso desse trabalho revelou a dívida que
a educação básica brasileira vem acumulando em relação à população
negra, visto que, durante muito tempo, determinou-se a aplicação de um
currículo único, sob o pretexto de oferecer uma educação “igual” para
todos, ignorando os estudantes afrodescendentes, ou indígenas, e se
esses viviam em comunidades rurais ou em grandes centros urbanos. Com
isso, as características singulares de cada grupo ficaram excluídas e ocultas
durante décadas, resultando, entre outras coisas, na aversão do negro a
sua etnia e ancestralidade. Revelando que, de modo geral, quando os
negros (homem e mulher) chegam e permanecem nos bancos escolares,
aprendem uma história brasileira forjada, onde os heróis, ou melhor, os
principais personagens são marcadamente branco-europeus.
Como já se sabe, após a homologação da lei federal nº
10.639/2003, o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
passou a ser obrigatoriamente inclusa no currículo escolar, oportunizando 9

a construção de uma imagem positiva do povo negro a partir da história


brasileira, superando a visão de passividade tão difundida, evidenciando
as muitas formas de resistência negra ao longo dos séculos. No entanto, o
repertório de muitos alunos/as acerca do continente africano continua
sem receber contribuições expressivas da escola, pois ainda vigora o
currículo que, erroneamente, apresenta uma África aprisionada a um
passado adulterado por outros e ancorada a um presente marginalizado.
Assim sendo, como, por exemplo, uma criança negra se enxergará
nesse quadro? Ela se reproduzirá no negro escravizado, marcado e
espancado da senzala ou no branco nobre? É difícil ser descendente de
seres humanos escravizados e forçados à condição de utensílio, assim
como é difícil perceber-se descendente daqueles que, por muitos séculos,
têm sido marginalizados e massacrados. Torna-se importante tal adendo,
pois, certamente, não é fácil estudar em uma escola que por incultura ou
segregação consciente, ignora a descendência negra e se desinteressa
pelo estudo da África, demonstrando descaso por sua história e
persistindo na legitimação da relação tensa, devido às diferenças na cor da
pele e traços fisionômicos que estão atrelados à raiz cultural plantada na
ancestralidade africana.
À vista disso, a escola é impelida a assumir outra proposta, visto
que já não é possível caminhar na contramão da história, restringindo-se
ao aspecto de uma educação mancomunada com os mecanismos de
padronização e homogeneização. Evidentemente, as concepções acima
apresentadas, com relação ao estudo da identidade e cultura afro- 10

brasileira são suscetíveis a críticas. Nesse sentido, o objetivo maior é de


estimular o debate para que se configure uma rede de discussões e
reflexões de forma a enfraquecer ideologias homogeneizantes que
pretendem solidificar o ‘outro’, ameaçando as diferentes identidades.
Posto isto, percebemos que o estudo iniciado já sinaliza a
necessidade de uma política de formação para a diversidade,
contemplando sobretudo a perspectiva da identidade e da cultura afro-
brasileira que historicamente é marcada pelo silenciamento e pela
negação nas escolas brasileiras. Considerando que o estudo se encontra
em andamento, pretendemos ampliar as análises sobre a temática no
cenário da educação, buscando subsídios para o estudo mais aprofundado
acerca da referida temática.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Censo Demográfico 2010. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística. <http://censo2010.ibge.gov.br/>, acessado em 02/05/2015.

COTRIM, G. História e consciência do Brasil. São Paulo: Editora Saraiva,


1999.
11
DAVIDSON, B. Mãe Negra: África: os anos de provação. Lisboa: Livraria Sá
da Costa Editora, 1981.

MACEDO, R. S. Currículo, diversidade e eqüidade: luzes para uma educação


intercrítica. Salvador: EDUFBA, 2007.

ROCHA, R. M. de C.; TRINDADE, A. L. da. Ensino fundamental. In: BRASIL,


Ministério da Educação / Secretaria da Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Orientação e ações para a educação das
relações étnico-raciais. Brasília: SECAD, 2006.
LEPRA, BIOPOLÍTICA E A DISCIPLINARIZAÇÃO DO CORPO
EM CUIABÁ ENTRE OS ANOS DE 1890 E 1900

Ariadne Marinho 1
1

RESUMO
Esta pesquisa visa compreender o discurso biopolítico por detrás da disciplinarização
do corpo empregada pelas políticas sanitaristas do estado brasileiro com relação à
lepra entre o final do século XIX e início do século XX. Buscando informações a partir
de documentação oficial, como decretos de lei e outros impressos da época, procura-
se identificar o tipo de tratamento que os doentes eram submetidos, tendo em conta o
estigma social existente contra o leproso e as vítimas de moléstias semelhantes. Nesse
sentido, percebeu-se que as instâncias político-administrativas adotaram diferentes
estratégias de controle da enfermidade ao implementar medidas profiláticas nos
espaços urbanos que previam a exclusão e o isolamento dos acometidos de lepra,
considerados “impuros”.
Palavras-chave: Lepra, Biopolítica, Cuiabá.

ABSTRACT
This research aims at understanding the bio-political speech behind the
disciplinarization of the body used by the sanitarian politics of the Brazilian state
towards leprosy between the late 19th century and early 20th century. By searching for
information in official documentation, such as law decrees and other print matters of
the time, it aims at identifying the kind of treatment through which the sick ones
underwent, taking into account the social stigma against lepers and other victims of
similar diseases. Hence, one should notice that the political and administrative
agencies adopted different strategies to control the illness by implementing
prophylactic touchstones in urban spaces that comprised the exclusion and isolation of
leprosy-stricken ones, who were considered to be unclean.
Keywords: Leprosy, Biopolitics, Cuiabá.

1
Autora possui graduação e mestrado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT.
Atualmente é graduanda no Curso Letras/Inglês pela Universidade do Estado de Mato Grosso-Unemat.
A hanseníase é amplamente conhecida como lepra, morphéia, mal de
Lázaro, mal de Hansen (“Morbus Hansen”) entre outros nomes. Trata-se
de uma doença infectocontagiosa, altamente incapacitante e deformante.
Sua origem é antiga, existem relatos em textos chineses que datam do 2
século VI a. C., e vestígios da doença foram encontrados no Egito Antigo.
Este país pode ser considerado o berço da enfermidade no continente
africano. Durante o medievo acometeu grande parte da Europa, e por ser
uma doença que desfigura o corpo com chagas purulentas e atrofias dos
nervos que putrefaz a carne com necroses dos membros periféricos – com
consequentes amputações –, criou-se em outrora um estigma muito forte,
atribuindo-lhe um caráter sobrenatural, de castigo divino e impureza.
Parcela desse estigma pode ser compreendida pelo desconhecimento das
pessoas não saberem de que maneira se dava o contágio e seu tratamento
correto. Atualmente a moléstia está em todo mundo, e tem cura.
No Brasil, supõe-se que a lepra tenha chegado por volta de 1600.
São deste período os primeiros registros de casos no país. Ao perceber sua
gravidade e a precária situação sanitária da então colônia portuguesa, a
Irmandade de Nossa Senhora da Candelária edificou o primeiro leprosário
do Brasil, em 1737, na cidade do Rio de Janeiro. Em Mato Grosso, nos
primeiros anos de sua colonização já havia registros da doença. O índice
era tão elevado que um morador de família abastada, Manoel Fernandes
Guimarães, deixou em testamento uma quantia significativa para a
construção do Hospital dos Lázaros, em Vila Bela da Santíssima Trindade,
na época capital da província. Mas apenas 24 anos depois, em 1816, é que
se inaugurou o hospital, não em Vila Bela, e sim em Cuiabá, devido ao
maior número de doentes nessa região.
Para realização desta pesquisa delimitamos o marco histórico entre
os anos de 1890 a 1900, e nos debruçamos na busca de informações de 3
como a lepra era vista e tratada pela sociedade mato-grossense, através
do censo do final do século XIX que descreve uma cidade repleta de
nuances e porosidade. Além disso, tentamos compreender o bojo da ideia
burguesa de “progresso”, que esquadrinha e disciplina uma urbe que se
queria asséptica de corpos dóceis e disciplinados, e estava florescendo no
imaginário dos governantes daquele período no Brasil e em Cuiabá.
De acordo com a historiadora Luiza Volpato (1993), embora as
condições de vida na Cuiabá Oitocentista fossem piores do que em boa
parte do Brasil, os conceitos Iluministas de progresso e modernização iam
adentrando pouco a pouco a mentalidade da classe dominante; ideias que
estavam em flagrante contraste com o modo de vida dos trabalhadores e
habitantes pobres da região. De acordo com a cientista política Massako
Iyda (1994), durante os períodos colonial e imperial, a saúde pública no
Brasil era uma questão de domínio privado, familiar e local. Em casos de
algumas doenças, como a lepra, eram requeridas medidas profiláticas de
isolamento, que era mantida com um caráter bastante precário e
deficiente, pois os recursos direcionados pelo poder público para o
exercício da função sanitária eram mínimos.
No último decênio do século XIX, a cidade de Cuiabá, já então
capital e epicentro político-administrativo de Mato Grosso, em detrimento
das relações econômicas e das manifestações socioculturais, estava
inserida no bojo conceitual que germinava nos ideais das urbes modernas
(importada da Europa, principalmente da “Grande Reforma Urbana
Francesa” de Georges Eugène Haussman entre os anos de 1852 a 1870) de 4
esquadrinhamento social, de progresso, de higienização, do discurso
médico-sanitário, do asséptico, da cientificidade, da segurança e da
moralização dos espaços urbanos em defesa do desenvolvimento e em
nome da modernidade. Tais lemas eram enaltecidos e tomados como
exemplos pelo poder instituído, o que representava a sociedade
disciplinar. Foram esses ideais que tentaram implementar nas sociedades
ocidentais ao longo do Oitocentos; e, particularmente no Brasil, entre o
final do período Imperial e o começo da República.

A disciplinarização da cidade e o tratamento dos leprosos


O filósofo Michel Foucault (1993), em muitas de suas obras, afirma
que nos séculos XVII e XVIII a saúde era reservada aos domínios
eclesiásticos, com o mínimo de assistência do Estado, na Europa. Sendo
assim, a saúde se misturava com a questão moral e com os dogmas
religiosos.

Ela se dirigia à categoria importante, não obstante a


imprecisão de suas fronteiras, dos pobres doentes.
Economicamente esta medicina-serviço estava
essencialmente assegurada por fundações de caridade.
Institucionalmente, ela era exercida dentro dos limites de
organizações (leigas ou religiosas) que se propunham fins
múltiplos: distribuição de víveres, vestuário, recolhimento
de crianças abandonadas, educação elementar e
proselitismo moral (...) eventualmente vigilância e sanções
de elementos “instáveis” ou “perturbadores” (as
repartições hospitalares tinham, nas cidades, jurisdições
sobre os vagabundos e os mendigos, as repartições 5
paroquiais e as sociedades de caridade se outorgavam
também, e muito explicitamente, o direito de denunciar os
“maus elementos”). Do ponto de vista técnico, a parte
desempenhada pela terapêutica no funcionamento dos
hospitais na época clássica era limitada relativamente à
ajuda material e ao enquadramento administrativo. Na
figura do “pobre necessitado” que merece hospitalização, a
doença era apenas um dos elementos em um conjunto que
compreendia também a enfermidade, a idade, a
impossibilidade de encontrar trabalho, a ausência de
cuidados (Foucault, 1993, p. 195).

De acordo com Foucault (1993), a valorização e o enaltecimento dos


conceitos de assepsia e de disciplinamento social serviram como
parâmetro para as grandes cidades europeias, tidas como modernas, que
se transformaram em ambientes disciplinares. Neste sentido, no final do
século XIX e começo do século XX algumas capitais brasileiras, inclusive
Cuiabá, tentavam transformar-se em ambiente disciplinador, higiênico,
medicalizado e moralmente sadio. As pessoas tidas como vadias,
turbulentos, loucos ou portadores de doenças contagiosas e incuráveis,
como a lepra, deveriam ser segregados e isolados em hospitais
apropriados para tal finalidade.
Deste modo, compreende-se o conceito de cidade disciplinar que
possibilita mitigar o cotidiano dos acometidos pela lepra, entre práticas e
representações que se articulavam com as ideias de sujo, maldito,
pestilento, pecador e impuro, vinculados à moléstia. Tais representações 6
sociais legitimavam a profilaxia do enclausuramento ou isolamento que
eram tomadas na época, e até poucas décadas atrás (o isolamento só se
torna conduta inapropriada nos anos de 1960).
Para o historiador francês Roger Chartier, (1990), a cidade constitui
o “lócus” de acumulação de capital cultural, epicentro das transformações
do mundo capitalista, que são historicamente produzidas pelas práticas
sociais, políticas, culturais entre outras, que se articulam no cotidiano.
Neste sentido, os documentos do recenseamento dos anos de 1890
demonstram que o governo daquele período tinha interesse em averiguar
as condições higiênicas de Cuiabá para alavancar um processo de
higienização na capital. Os inspetores de higiene, os poucos médicos e os
educadores, entre outras autoridades, que foram tidos como responsáveis
pela implementação desse processo disciplinador, acreditavam que
poderiam impor os conceitos trazidos de outras regiões do país e até
mesmo da Europa. A cidade de Cuiabá deveria, pelo menos no discurso
médico e oficial, ser higienizada e transformada, principalmente na região
central, onde residiam e transitavam “pessoas de bem” (e de bens) e
famílias tradicionais, em conjunto com uma educação adequada, ou seja,
a desinfecção dos lugares públicos, sobretudo, as ruas mais movimentadas
da cidade, relegadas aos “lócus” mais distantes e periféricas o
esquecimento e o abandono.
Segundo Volpato (1993), o discurso da higienização e da prevenção
de doenças ganhou destaque após a Guerra da Tríplice Aliança contra os 7
Paraguaios (1865-1870), durante a qual ocorreu uma terrível epidemia de
varíola que assolou a população cuiabana, principalmente a classe menos
favorecida da sociedade. Entretanto, Firmo Rodrigues (1969) diz que a
terrível experiência da varíola não mudou a situação de abandono em que
foram deixados os doentes e os hospitais de caridade destinados a eles
(São João dos Lázaros e Santa Casa da Misericórdia), durante todo o
século XIX e início do XX.
Para os historiadores Heleno Brás do Nascimento (2001) e Cristiane
dos Santos Silva (2004), vigorava na Cuiabá desse período um discurso de
comprometimento da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, que
buscava auxiliar com assistencialismo aos enfermos que residiam nos
hospitais e o leprosário local. A Igreja se fazia presente em todos os
momentos, intercedendo com orações e ao realizar procissões para
amenizar as dúvidas e incertezas de alcançar o préstimo divino dos
“corpos suplicantes”, dos moribundos e enfermos, tidos como em transito
sem retorno, principalmente os acometidos da lepra. Contudo, ao final do
século XIX e início do século XX, o papel da assistência eclesiástica vai
sendo substituído paulatinamente pela ciência médica moderna, que se
politiza com noções de prevenção e progressivamente se instrumentaliza
com procedimentos de proteção à saúde coletiva.
Em conformidade com o pensamento foucaultiano, a Modernidade
advém com sentido discursivo de buscar os elementos primordiais de
funcionamento do corpo, sejam eles do ponto de vista da biologia, da
medicina, da genética, da psicanálise, da psicologia, da sociologia ou de 8
outros saberes humanistas. Desse modo, a realidade do corpo é imanente
aos embates histórico-discursivos, nos múltiplos enredamentos
enunciativos sobre a finitude do homem, modernamente considerado.
A disciplina exigida, controlada, demarca a biopolítica, como
exposta por Foucault, pois aglutina em seu cerne uma forma de modelo
concebido politicamente para controle da sociedade, da vida, dos corpos,
impingindo aos cidadãos uma supervisão que é permanente, sem a menor
possibilidade de levar adiante qualquer pensamento se não aqueles
propostos socialmente à massa.
Na verdade, o discurso vigente em torno da lepra destoa em relação
às outras enfermidades. Sua condição é muito mais simbólica do que
científica ou patológica, justamente por ser uma doença estigmatizada.
Portanto, é importante pensarmos nas “representações” em torno da
doença e as implicações sociais que dela pode ser extraída.

As representações construídas sobre o mundo não só se


colocam no lugar deste mundo, com fazem com que os
homens percebam a realidade e pautem a sua existência.
São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais,
dotadas de forças integradoras e coesivas, bem como
explicativas do real. Indivíduos e grupos dão sentidos ao
mundo por meio das representações que constroem a
realidade. (Pesavento, 2003, p. 39).

Sandra Jatahi Pesavento (2003) afirma que as representações são


9
mecanismos imaginários (mentais), históricos e culturais, que criam
sentidos e significados ao mundo e à realidade. É por via da representação
que se compreende a exterioridade que compõe o mundo e as formas
simbólicas que constroem as identidades. Ou seja, admite-se que os
sentidos conferidos às palavras, às coisas, às ações e aos atores sociais se
apresentam de forma cifrada. Portanto, já há em uma representação um
significado e uma apreciação valorativa. Ainda segundo Pesavento, trata-
se, antes de tudo, de pensar a cultura como um conjunto de significados
compartilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo.
No Brasil e em Mato Grosso, em virtude da regência da cultura
cristã e ocidental a lepra não era vista como um mal que a medicina
poderia tratar, por falta de conhecimentos médicos no período e também
por ter conotação sobrenatural, divina. Os eclesiásticos visavam, ao invés
de curar, proporcionar uma assistência piedosa e caridosa à criatura
acometida pela doença. Os portadores desse estigma, os leprosos e
morféticos, eram considerados corpos impuros e incuráveis, e em trânsito
sem retorno para as sepulturas (e a danação eterna).
O terror e o pavor que circunscreviam o imaginário social sobre a
lepra permitiram que ao longo dos séculos se edificasse representações e
práticas sociais que estigmatizavam os acometidos da enfermidade.
Originários dos tempos antigos (até mesmo antes de Cristo)
permaneceram vivos no imaginário das pessoas até o período analisado
neste trabalho. Isso legitimou medidas profiláticas que propiciavam aos
leprosos apenas a segregação social e isolamento hospitalar. Como
mancha anestésica, seu portador estava invariavelmente condenado à 10
morte social, física e espiritual. O leproso era tido com mais nefasto que o
criminoso, sendo assim, tornou-se necessário criar dispositivos específicos
de punição, através dos quais os “corpos” dos supliciados pudessem ser
escondidos, escamoteados e veementemente castigados pela afronta ao
divino.
O marco temporal que este trabalho aborda é a marca de uma
transformação na cidade em questão. A noção de higienização e a retirada
dos leprosos e loucos do entorno da urbe eram problemáticas diante do
projeto de construção da nação, almejado por governantes, a elite e
intelectuais, que manifestavam o medo encravado nos pensamentos.
O imaginário da época, em conformidade com os documentos
apresentados como os relatórios ou os censos de Mato Grosso, salienta a
preocupação com o projeto de construção da nação, civilização e
identidade brasileira, que tem a cidade como epicentro das
transformações. Esses documentos revelam ainda o cuidado em demarcar
um território: o do saber médico, já que no final do século XIX é instalada
a República em conjunto com um intensivo estado de polícia, encarregada
de vigiar, disciplinar e punir, entre outras atividades, sobretudo as de
cunho moral. E os leprosos e loucos não escapavam dessas sanções.
Compreende-se então a cidade disciplinada e disciplinadora,
vigilante e vigiada, constituída no processo de modernização e sobre
responsabilidade do estado-nação. Este executava práticas que
intencionavam controlar, além de identificar, isolar e classificar, excluindo 11
assim os sujeitos indesejáveis da sociedade. Entre essas práticas
encontram-se aquelas que passaram a ser classificadas como medidas
profiláticas, que propunham isolar os indivíduos no âmbito da doença.
Assim ocorreu com a lepra (e outras doenças), em que os acometidos
eram designados como uma ameaça à sociedade, e os
morféticos/leprosos passíveis de isolamento ou exclusão como uma
mancha impura na sociedade.
Portanto, a compreensão do leproso ou morfético como esse
personagem social portador de um mal, pecador, excluído e recluso pela
enfermidade, pela Igreja, pelo Estado, pela Política e pelo Estigma, tem
como dimensão a essência de nossa cultura: que marginaliza, isola até
matar física e socialmente o Outro, o indesejável.
Exemplo disso é reiterado por Firmo Rodrigues:

A falta de mantimentos nos armários públicos provinha da


falta de pagamento dos dízimos. Logo que a situação
precária da Fazenda Pública melhorou, permitindo aos
armazéns o fornecimento de gêneros, determinou o
Presidente José de Saturnino a todos os comandantes do
distrito de Cuiabá recolher, mesmo violentamente, ao
hospital dos Lázaros, todos os morféticos que existissem
nos seus distritos.
Mas pouco depois surgia nova crise financeira e
ficavam os doentes expostos a maior miséria por falta
de fornecimentos (Rodrigues, 1969, p. 143).

Mas são nos relatórios da província que temos uma espécie de 12

escritura da cidade e a descrição dos sujeitos que nela habitam, um


possível preenchimento das nuances e lacunas que vigoravam na Cuiabá
Oitocentista. Segundo Pinho (2007), a baixada cuiabana do século XIX,
lamacenta, entulhada de lixo, de água fétida e de edifícios modernos ao
lado de antigas construções, fez brotar e florescer um entretom que
evidenciava nesse lócus urbano um espaço liso e estriado pela interdição
de práticas que ora contrariavam, ora mitigavam o projeto de uma urbe
dentro do arquétipo europeu.
Indícios que mostram a Cuiabá desse período como provável ou a
caminho de uma sociedade disciplinar, tomando a disciplina como sendo o
engendramento social exequível através da obediência e de vigilância
constante, suscetível da seguinte interpretação:

(...) cidade pestilenta atravessada inteira pela hierarquia,


pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, a cidade
imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que
age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais,
utopia da cidade perfeitamente governada (Foucault, 1987,
p. 27).
Foucault analisa que são nas cidades pestilentas, cuja projeção de
recortes finos configura a disciplina sobre o espaço turbulento e obtuso,
que se legitimam os mecanismos que levam aos aprisionamentos e
isolamentos dos indesejáveis. Considera também que a disciplina 13
suscitada pela peste, ainda que fosse excepcional, era absolutamente
violenta. Curiosamente, a peste despertava sensações contraditórias: por
um lado, era temida pela iminente ameaça de contágio ou mesmo de
morte, e pelo outro, era desejada pelos governantes, já que sob seu
estado, a cidade era plenamente governada e governável. Afinal, foi a
peste que promoveu esquemas disciplinares e medidas profiláticas como
os casos dos hospitais, leprosários e manicômios – edifícios estruturados
pelo viés panóptico.
Em verdade, segundo Foucault, a teoria de Jeremy Benthan
constitui-se como configurações sociais interpeladas por dispositivos que
deslumbram o controle social, a vigilância abarcada, a partir de um prisma
“panóptico”. Tem como mecanismo a dissociação do ver e ser visto,
tecnicamente planejado e disponibilizado para produção individual de
efeitos e eficácias. A disparidade do ver sem ser visto submerge no corpo
social e se adapta a cada discurso proferido reconfigurando a maneira de
pensar, de viver e de agir ao ponto de condicionar o Outro (mesmo que
veladamente) dentro do ambiente disciplinar. Vimos isto nas estratégias
por detrás do recenseamento de 1890, que prescrevia um roteiro local de
descrição individual e/ou em conjunto dos moradores do primeiro e
segundo distritos de Cuiabá, necessário para reconfigurar e remodelar a
cidade disciplinar da vigilância constante.
Em sua profícua narrativa, Ítalo Calvino (1990) esbraveja a respeito
das cidades disciplinares. 14

Em todos os pontos (...) alternadamente, pode-se dormir,


fabricar ferramentas, cozinhar, acumular moedas de ouro,
despir-se, reinar, vender, consultar oráculos. Qualquer teto
em forma de pirâmide pode abrigar tanto lazarentos dos
leprosos quanto termas das odaliscas. Os viajantes andam
de um lado para o outro e enchem-se de dúvidas: incapaz
de distinguir os pontos da cidade, os pontos que eles
conservam distintos na mente se confundem... E se
perguntam qual é o motivo da cidade? Qual é a linha que
separa a parte de dentro e de fora, o estampido das rodas
do uivo dos lobos? (Calvino, 1990, p. 37-38).

Está implícito na formulação dessa pergunta de Calvino (1990), “qual


é o motivo da cidade?”, as diversas maneiras de responder tal indagação,
porém, ao delimitar o espaço urbano devemos marcar as fronteiras que
circunscrevem o território. Seguindo este bojo intelectual, o
recenseamento realizado na Cuiabá de 1890 deixa ver nas entrelinhas a
inesgotável ambição do governo vigente de disciplinar e normatizar a
cidade por inteira, evidenciando o favorecimento dos governantes em prol
das elites no projeto civilizatório, aumentando apenas a exclusão e o
isolamento social do Outro, extirpando quaisquer condições de
sobrevivência. Um exemplo dessa política é os morféticos ou leprosos,
segundo relato do provedor da Santa Casa da Misericórdia ao governador
do Estado sobre o fato da resistência e das fugas de alguns doentes do
Hospital-Leprosário São João dos Lázaros, que saíam à procura de
alimentos. 15
Como se observa no Ofício enviado ao Governador Antônio Maria
Coelho:

(...) existem seis morféticos sob a direção de um guarda-


mor e um servente. A distribuição de comida é feita no
penúltimo dia de cada mês, a cada um doente de todos os
gêneros alimentícios necessários para a alimentação de um
mês. Acontece porém que dois dos morféticos são dados
ao vício da embriaguez com excesso, e preferem muitas
vezes dispor de suas rações, ocultamente, para obterem a
aguardente ou esmolarem para consegui-la (Oficio do
presidente Antônio Maria Coelho. 1890. Caixa: D – APMT).

As fugas (instrumento de resistência) para a rua daqueles que


estavam proibidos de circular livremente eram frequentemente
justificadas pelo provedor em função do vício da bebida, e também pelas
precárias condições da Santa Casa de Misericórdia ou do São João dos
Lázaros. Aliás, esse tipo de ocorrência servia para elucidar o estado de
abandono das casas de caridade do Estado, e a necessidade de se solicitar
aumento de verbas para as respectivas instituições, mas nenhuma era
merecedora de atenção por parte do poder público. Ao que parece, só na
iminência e do medo da peste, mas não como política e sim como
generosidade, o Estado repassava recursos financeiros, conforme oficio do
Governador do Estado que informa o atendimento ao pedido de aumento
na subvenção da Santa Casa.
No Relatório do Tribunal da Relação de 1893, refere-se ao
recenseamento de 1890 “(...) para auxiliar nas despesas daqueles 16
estabelecimentos, em consequência do número considerado de doentes
afetados pela epidemia reinante que para lá se dirigem em busca de
tratamento” (Pinho, 2007, p. 40).
Segundo Rachel Tegon Pinho (2007), a saúde pública em Cuiabá
começou a ser organizada nos primeiros anos da República. O medo, a
epidemia e o estigma, ocasionado por algumas doenças que causavam
endemias, como a lepra, estavam arraigados no imaginário cuiabano do
período. Devido ao grande fluxo de transeuntes e do transporte de carga e
descarga na região do Porto, contribuíram para a criação da Inspetoria de
Higiene Pública de Cuiabá. Os primeiros anos de sua atuação foram
caracterizados pela adoção de algumas medidas pontuais que não
implicaram na formulação de políticas públicas voltadas para a saúde em
Mato Grosso, sendo a Santa Casa da Misericórdia e o Hospital São João
dos Lázaros os únicos hospitais existentes na capital e os únicos
destinados a prestar atendimento à população carente e a segregar os
indesejáveis da sociedade “civilizada”.
A partir do século XX, o Estado passou a se ocupar de questões que
estavam restritas ao âmbito familiar e religioso, tanto por meio da adoção
de estratégias de enclausuramento como as construções de instituições
fora do perímetro urbano, como forma de disciplinarização. E também
estabelecimento e fortalecimento de algumas instituições que vão
circunscrever o espaço citadino. Portanto é oportuno dizer que,

(...) a cultura articula volta e meia legitima, desloca ou 17


controla a razão do mais forte. Ela se desenvolve no
elemento de tensões, e muitas vezes de violência, a quem
fornece equilíbrios simbólicos, contratos de
compatibilidade e compromisso mais ou menos
temporários (Certeau, 1994, p. 45).

É notável a semelhança observada na citação acima com relação à


diversidade de dispositivos utilizados para legitimar e controlar a “razão
do mais forte”. No caso do recenseamento de 1890, o texto faz perceber
que o Estado estava preocupado em retirar os loucos, os
leprosos/morféticos e vadios das ruas como estratégia para instaurar o
projeto de uma Cuiabá asséptica. Ainda de acordo com historiador Michel
de Certeau (1994), o Estado lança mão de diversos artefatos para imputar
a sociedade o seu controle e sua rede de privilégios, a qual Certeau
conceitua como estratégia: “Chamo de estratégia o cálculo das relações
de força que torna possível a partir do momento em que um sujeito de
querer e poder é isolável de um ‘ambiente’” (Certeau, 1994, p. 46).
Assim, podemos entender que as práticas do poder desembocam em
uma politização das práticas cotidianas através da ideia de higienização.
Os documentos que contém essas trajetórias conseguem captar o material
dessas práticas de disciplinarização. Desta forma, compreendemos as
práticas efetivadas pelo Estado de extrema importância para
apreendemos às representações sobre os leprosos e sua trajetória na
Cuiabá Oitocentista.
O modelo estratégico construído para o trato dos miseráveis, os
leproso-morféticos da cidade de Cuiabá e do entorno, continuava sendo a 18
profilaxia do isolamento frequentemente compulsório, levados ao
Hospital São João dos Lázaros, instalado no início do século XIX
exatamente com a finalidade de receber os acometidos da capital, vilas e
povoações próximas, pois, era o único leprosário de Mato Grosso na
época.
As condições dos enfermos eram tidas como deploráveis e
lastimáveis. O estado dos presos era de só possuir verdadeiros trapos, e
mal tinham uma refeição por dia. Entretanto, assim não ficaria tão pesada
à municipalidade ou ao Estado a designação de uma verba para atender a
este ato humanitário, mais do que disciplinarizador ou de eugenia social.
Isto nos leva ao questionamento de que tanto no medievo quanto na
modernidade o problema era considerar o leproso como indivíduo
repulsivo. Por isso a necessidade de retirá-lo do convívio social e trancá-lo
em algum lugar longe dos olhos “sadios”.

REFERÊNCIAS
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das letras,
1990.

CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: artes de fazer. (3ª Ed.)


Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações.
Lisboa/Difel: Rio de Janeiro: Bertand Brasil S.A., 1990.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. 8ª Ed.


Petrópolis: Vozes, 1987.
19
IYDA, Massako. Cem anos de saúde pública: a cidadania negada. Editora
UNESP, Fundação para o Desenvolvimento da UNESP, 1994.

NASCIMENTO, Heleno Braz do. A lepra em Mato Grosso: caminhos da


segregação social e do isolamento hospitalar (1924-1941). 2001.
Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Mestrado em História.
Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFMT.

PESAVENTO, Sandra J. História e História Cultural. Belo Horizonte:


Autentica. 2003.

PINHO, Rachel Tegon. Cidade e Loucura. Cuiabá Mato Grosso: Central de


texto: EdUFMT, 2007.

PRATA, Maria Regina dos Santos. A produção da subjetividade e as


relações de poder na escola: uma reflexão sobre a sociedade disciplinar na
configuração social da atualidade. 2005. Dissertação (Mestrado em
Educação) - Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro.

RODRIGUES Firmo. Figuras e coisas de nossa terra. Cuiabá, Mato Grosso:


Escola Técnica Federal de Mato Grosso, vol. II, 1969.

SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de fé, Irmãos no poder: a irmandade


de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus
do Cuiabá (1751-1819). 2004. Dissertação (Mestrado em História) –
Programa de Mestrado em História. Instituto de Ciências Humanas e
Sociais da UFMT.
SILVEIRA, Fernando de Almeida. Michel Foucault e a construção discursiva
do corpo do sujeito moderno e sua relação com a psicologia. Disponível
em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141373722008000400011&script=s
ci_arttext
20
VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do Sertão: vida cotidiana e escravidão
em Cuiabá: 1850/1888. São Paulo: Editora Marco Zero; Cuiabá, MT:
Editora da Universidade Federal de Mato Grosso, 1993.
“DO CANDEEIRO ÀS REDES ELÉTRICAS”: A ENERGIZAÇÃO DOS
ESPAÇOS URBANOS JUAZEIRENSES E A EMPRESA ELÉTRICA
PADRE CÍCERO (1945-1961)

1
Assis Daniel Gomes 1

RESUMO: Neste artigo, analisamos os discursos dos poderes públicos juazeirenses


forjados para fortalecer e legitimar seus propósitos de intervenção na produção e
distribuição de energia elétrica em Juazeiro do Norte entre 1945 e 1961. Para isso,
verificamos os conflitos insurgidos entre os interesses públicos e privados na
localidade depois da Segunda Guerra Mundial. Com a criação da Companhia
Hidroelétrica de São Francisco (CHESF) (1945) se construiu uma expectativa do Cariri
cearense ser atingido pela energia produzida por essa empresa e, consequentemente,
a terra do Padre Cícero também seria contemplada. Contudo, antes disso, a Prefeitura
de Juazeiro do Norte necessitava empreender medidas urgentes para manter a sua
empresa elétrica a fim de abastecer seus espaços urbanos de luz e força. Enfim, para
os poderes públicos juazeirenses, comprar essa empresa era conectar a imagem de
gestão de seus prefeitos e de sua cidade ao signo da modernidade.
PALAVRAS-CHAVE: energia elétrica, modernização, cidade.

ABSTRACT: In this article, we analyze the speeches of forged juazeirenses government


to strengthen and legitimize their intervention purposes in the production and
distribution of electricity in Juazeiro between 1945 and 1961. To do this, we find the
insurgent conflicts between public and private interests in the locality after the Second
World War. With the creation of the Hydroelectric Company of São Francisco (CHESF)
(1945) has built an expectation of Ceará Cariri be achieved by the energy produced by
this company and thus the land of Father Cicero would also be contemplated.
However, before that, Juazeiro Prefecture needed to undertake urgent measures to
keep your electric company to supply its urban spaces of light and strength. Anyway,
for juazeirenses public authorities buy this company was to connect the management
of image of their mayors and their city to the sign of modernity.
KEYWORDS: electricity, modernization, city.

1
Historiador e filósofo. Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Esta
pesquisa foi financiada pela Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa (FUNCAP).
A iluminação elétrica na década de 1920 simbolizava, para quem a
defendia, um estágio de grandeza, enaltecimento pessoal e coletivo. Tal
particularidade se construiu a partir de um modelo proveniente de fins do
século XIX e início do XX, cuja imagem da Belle Époque francesa era o
fermento para nutrir os anseios de progresso e modernização no estilo 2

europeu em algumas cidades brasileiras. Tais perspectivas também se


misturaram com as ideias de modernização estadunidense que chegaram
ao Brasil a partir da Segunda Guerra Mundial.
Para os intelectuais, políticos e comerciantes de Juazeiro do Norte,
localidade situada no sul do Ceará, também o seu espaço urbano
precisava se adaptar aos discursos de modernidade. Os lideres da
campanha realizada em prol de sua emancipação política usaram da
imagem de seu progresso como um elemento forte para corroborá-la e
legitimá-la desde 1909. Nesse período, essas ideias progressistas não
estavam vinculadas com as de modernização, pois para os seus guias o
município do Crato não a tinha permitido caminhar para essa etapa. A
partir disso, moveu-se o desejo de sua autonomia econômica e
administrativa visando imergi-la em certa imagem do Brasil como uma
nação moderna 2.
Os discursos dessa elite juazeirense eram pautados por seu
crescimento econômico, pois o pagamento de tributos à sede do
município que fazia parte, Crato, tornava-se cada vez mais elevado. Por

2
Entendemos, segundo Le Goff (1996), que a relação tradição e modernidade não é
excludente, mas recomposição e criação de quem a maneja diante do sentimento movido pelo
novo e velho, como também do comportamento social conduzido pelas experiências da
aceleração cotidiana no século XX.
outro lado, não existiam melhorias nos serviços públicos e nem uma
encarnação simbólico de uma modernização em sua espacialidade
promovida pelos poderes públicos cratenses, por exemplo, não
empreenderam o calçamento das principais ruas de Juazeiro. Sabemos
também que outros interesses estavam fincados no projeto de 3

emancipação, mas se usou a imagem de progresso como elemento de


combate e símbolo da missão de sua elite concernente a sua localidade.
Para dar visibilidade e objetividade numérica a fim de legitimar sua luta e
missão empreenderam divulgar o fluxo de dinheiro que circulava nessa
espacialidade. Portanto, os discursos de progresso se coligavam ao
impacto de Juazeiro percebido no cotidiano econômico caririense. Tais
imagens discursivas serviram, outrossim, como prova para as suas
autoridades políticas afirmarem e defenderem a sua autonomia
administrativa3.
Conseguindo a sua independência em 1911, os seus lideres
políticos e comerciários procuraram implantar nela elementos que lhe
pudessem dar uma paisagem simbólica repleta de signos do moderno,
para isso não faltaram esforços tanto do deputado Floro Bartolomeu da
Costa, como também de Padre Cícero Romão Batista, primeiro prefeito de
Juazeiro entre 1911 e 1927. Neste intento, realizaram a construção de sua
infraestrutura política, econômica e administrativa em prol de forni-la dos
serviços básicos, principalmente o seu perímetro urbano. Por exemplo,

3
Segundo Silva Filho, “as ruas da cidade se definem pelas muitas vivências de tempo e
espaço que seus habitantes constroem no processo de interação social. Os poderes públicos,
em contrapartida, atuam na afirmação da ordem urbana e na perpetuação de heróis e valores
dos grupos dominantes” (2004, p.13).
destacamos as obras de calçamento, abastecimento de água e energia.
Empreenderam destruir, também, esta imagem que os assombravam e
manchava a figura de uma Juazeiro progressista: “cidade de fanáticos”.
Em defesa de Juazeiro e Padre Cícero, atacados, à época, pelos
discursos de Paulo de Moraes e Barros4, que visitou esse espaço urbano e 4

construíra matérias intituladas “Impressões sobre o Nordeste”, em O


Estado de S. Paulo, reforçando a sua imagem de espaço de fanáticos,
pobres, sem progresso e modernização. Além desse ataque a cidade e sua
população, Barros colocara o Padre Cícero como um dos culpados pelas
condições precárias verificadas nessa localidade. Floro imbuído de seus
interesses pessoais e do lugar que o elegeu para deputado federal, buscou
defendê-lo dessa agressão, acometeu esse jornalista, sua tentativa de
difamá-lo e os que faziam Juazeiro. Para isso, fala sobre seu perímetro
urbano, (re) colocou a sua imagem como avançada, no intuito de refazer
aquela expressão impregnada de um olhar para o periférico a fim de
marginalizá-lo, e destruir a ênfase de uma realidade de pobreza
homogênea da cidade feita por Paulo Moraes.
Se para um a sua periferia foi assumida como a imagem de toda a
cidade, visando demarcar e reforçar a representação de superioridade do
sul em relação ao norte do Brasil, do avanço daquele e do atraso deste 5.
Para o outro se ressaltara o seu perímetro urbano, os seus serviços e uma
4
Doutor, médico sanitarista e político. Nasceu em 1866 e morreu no dia 15 de dezembro de
1940 no estado de São Paulo. Exerceu o papel de Deputado Federal e Senador até 1937,
como também foi Secretário da Fazenda (1932) e um dos fundadores do Partido Democrático.
5
Conforme Albuquerque Júnior, “logo após essa série de artigos intitulados “Impressões do
Nordeste”, o mesmo jornal iniciou outra série intitulada “Impressões de São Paulo”, com o
nítido objetivo de construir uma imagem para São Paulo, em contraposição às descrições do
Nordeste feitas por Paulo Moraes. A estratégia era demonstrar a superioridade de São Paulo e
de sua população, formada por elementos europeus” (2006, p.44).
cultura material existente para demonstrar a sua elevação, progresso e
modernização 6. Por exemplo, em relação à habitação, para Floro
Bartolomeu da Costa 7,
O que há de mais singular é que só em Joaseiro as
casas não são de palha nem de palha cobertas; todas 5
são de tijolo ou de taipa e cobertas de telhas. Por isso
mesmo destoa, por exemplo, das demais localidades,
até da de Crato, que é a mais importante da zona, que
tem uma rua chamada “Rua da Palha”, porque as
habitações tem a cobertura de folhas de palmeiras. E
o motivo é porque nessas cidades há palmeiras com
suficiência, e no Joaseiro, não. (1923, p.12).

Nesse intuito, a elite desse espaço urbano além de buscar dar


visibilidade a uma imagem positiva de suas habitações, ruas e
calçamentos, conseguiu também que a linha da ferrovia, um dos signos da
modernização à época, passasse em seu território por meio da Linha da
Estrada de Ferro de Baturité em 1926. O desejo, portanto, de produzir
sinais de sua modernidade para as outras localidades levou a sua elite a
erigir discursos e empreendimentos que pudessem corporificá-la,
fomentando, assim, a encarnação de tal imagem nos seus habitantes e
visitantes.

6
Segundo Ramos, o discurso feito pelo deputado federal Floro Bartolomeu da Costa procurava
divulgar um “Juazeiro civilizado”, em contraponto as imagens de terra de bandidos,
cangaceiros e fanáticos que assolavam no imaginário da elite política e econômica nacional e
estadual. Portanto, para Ramos, “fortificou-se, a partir de então, uma tradição discursiva em
nome da “modernidade de Juazeiro”. Tradição que seria exaustivamente recriada e repetida
em crônicas, livros de memórias e depoimentos de parte dos antigos moradores da cidade”
(2012, p.101).
7
Doutor, médico e político, por exemplo, exerceu o cargo de Deputado Federal. Nasceu em
1876 (Salvador) e morreu no dia 8 de março de 1926 (Rio de Janeiro). Chegou ao Ceará em
1908 e fixou moradia em Juazeiro do Norte, tornando-se o homem de confiança de Padre
Cícero Romão Batista.
Outro elemento importante era equipar Juazeiro com um sistema
de energia elétrica que pudesse favorecer o fornecimento de força para as
suas oficinas e seu comércio, como também patrocinar a iluminação de
seus espaços públicos. Para isso, criou-se em 1925 a “Empresa Elétrica de
Juazeiro”, de caráter privado e tendo como proprietário o Padre Cícero 6

Romão Batista. Ela funcionava a partir da instalação de um motor a óleo


diesel. Para Leite, quando seu dono morreu em 1934, essa empresa
passou para “Joana Tertuliana de Jesus, que se notabilizou como
governanta do Padre Cícero e ficou na história pelo cognome Beata
Mocinha” (1996, p.114).
Os anos pós-1945 demarcavam para a política brasileira um novo
rumo que deveria ser tomado em suas relações internas e nas
administrações dos serviços públicos. O papel de intervenção do estado
no setor energético, que, naquele momento era dominado pela atuação
das empresas privadas, começou a se fortalecer com a criação da
Companhia Hidroelétrica de Paulo Afonso em 19458. Essa postura do
Governo Federal influenciara, outrossim, a atuação dos estados e
municípios que procuravam meios para melhorar o seu provimento de
energia visando, principalmente, à industrialização de suas localidades.
Procuraremos, então, analisar, neste artigo, como os poderes públicos
juazeirenses manejaram artimanhas para conseguir comprar a Empresa
Elétrica de Juazeiro e transformá-la em um patrimônio público. Quais
8
Para Gomes, “se antes da II Guerra Mundial a oferta de energia elétrica era superior à
demanda, durante a Guerra o setor elétrico privado ficou paralisado pela impossibilidade de
importar componentes no estrangeiro para construir novas fontes geradoras. No pós-Guerra, a
crescente urbanização e industrialização aliadas à estagnação nos investimentos, gerou uma
crise energética causando uma política de racionamento prejudicial a toda a economia” (1986,
p.42).
foram os embates entre o setor privado e público decorrente dessa
intervenção? Quais os motivos alegados para realizá-la?

O Juazeiro em trevas
7

Não há empreendimento de maior utilidade, dentre os


que objetivam solucionar os mais graves problemas de
uma cidade moderna, de que o que visa proporcionar
aos seus habitantes o conforto necessário exigido
pelas crescentes conquistas da civilização. A
iluminação elétrica de uma cidade por mais afastada
que esteja dos grandes centros, é sem duvida a maior
e primeira necessidade coletiva para que se devem
voltar as vistas dos administradores. (JORNAL DO
CARIRI, ano I, n.33, Juazeiro do Norte, domingo, 4 de
março de 1951, p.01).

Tal discurso, assentado acima, fora erigido pelos editores do Jornal


do Cariri9 em uma matéria de enaltecimento ao prefeito José Monteiro de
Macedo (1951-1955) e Antônio Conserva Feitosa (1947-1951). Nesse
intuito, assentaram elementos e marcas que davam visibilidade e
justificavam o empreendimento da prefeitura municipal em adquirir para
o seu patrimônio público a Empresa Elétrica de Juazeiro em fins da década
de 1940, mas também a campanha de seu atual prefeito em edificar

9
O Jornal do Cariri nasceu em Juazeiro do Norte em 1950. Era vinculado ao Partido
Republicano do sul cearense. Tinha como slogan: Os arautos das aspirações caririenses.
Tendo como diretor superintendente o Dr. Conserva Feitosa (político, por exemplo, assumiu os
cargos de deputado estadual e prefeito da cidade de Juazeiro do Norte) e tinha uma tiragem de
2000 exemplares. Portanto, essa imprensa defendia os ideais do partido que a fundou e
procurava atacar discursivamente os que não lhe eram aliados, principalmente aqueles que
administravam Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha. Nele se incorporou as aspirações de
progresso e moderno desse grupo de caririense, que exaltava os projetos que comungavam
com os seus ideais.
planos para modernizar seus equipamentos técnicos. A compra dessa
empresa guardava duas, dentre outras, que conflitavam as posições dos
juazeirenses em relação a certa intervenção da prefeitura, especialmente
de seu executivo, nesse setor de serviço. Para os defensores, em primeiro
lugar, sendo ela propriedade da municipalidade, poder-se-ia melhorar os 8

serviços nesse setor e, em segundo, trabalhar-se-ia para promover seu


crescimento industrial. Já os opositores alertavam o seguinte: sabia-se que
tal intuito não viria rapidamente e as condições reais que se encontrava
essa empresa requeria da prefeitura uma alta soma de recursos
financeiros para resolver os seus problemas técnicos, por exemplo.
Para convencer a opinião pública, o executivo juazeirense reforçou
a necessidade de sua intervenção no setor de energia elétrica. Para isso,
justificaram pondo-a como um elemento de “primeira necessidade
coletiva” e promovedora do “conforto” aos habitantes de sua cidade, esse
viria, por sua vez, pela “civilização” trazida por suas redes de força e luz.
Fazer com que a “terra do Padre Cícero” entrasse nos espaços
considerados civilizados era promover o conforto advindo da eletricidade
e, principalmente, dá-la essa imagem. Todos esses emaranhados de
discursos imagéticos provocaram desejos de ter e participar desse cenário,
cuja força motriz era o anseio de torná-la uma “cidade moderna”.
As reclamações em torno do fornecimento de energia elétrica em
seus espaços urbanos feita pela Empresa Elétrica de Juazeiro reforçavam a
necessidade de intervenção do poder público. Dentre as justificativas se
colocaram estas: 1- promover a sua expansão dentro do perímetro
urbano; 2- melhorar esse serviço colocado pós-1945 como de primeira
necessidade a partir da administração Municipal, Estado e União. Essa
empresa privada, ao longo da década de 30 e 40 do século XX passou
pelas mãos de vários proprietários inclusive, às vezes, voltava novamente
para a Beata Mocinha. Em 1938, ela a vendeu para Antônio Pita, mas esse
se desfez, voltando para ela novamente. Em 1940 comercializou-a a 9

Expedito Pita, ficando, assim, novamente a sua administração nas mãos da


família Pita.
Os conflitos entre o setor privado e os interesses públicos se
fizeram agudos em Juazeiro pós-1945 por estes dois polos: a família Pita
versus a Prefeitura Municipal. Isso se fez devido ao contrato de prestação
de serviços que o município firmou com a empresa em prol do
abastecimento de sua iluminação pública. A tensão se deu,
especificamente, entre Antônio Pita 10 e o prefeito municipal, Antônio
Conserva Feitosa. Esse político recebia várias denúncias dos consumidores
do serviço fornecido por essa empresa elétrica, como também as listas
dos prejuízos advindos de blecautes nos espaços públicos em Juazeiro.
Para o vereador Luiz Matos Franca, a escuridão assolava “as ruas da
cidade”11 e promovia certa revolta nos juazeirenses que pagava pelo
insumo, mas não o consumia.
Os embates entre Antônio Pita e Antônio Conserva Feitosa se
intensificaram, pois este visava comprá-la para a prefeitura. Para isso,
10
Industrial e Coronel (Patente Militar) Antônio Gonçalves Pita. Ele além de controlar o setor
elétrico da cidade possuía outros empreendimentos empresariais, como também assumia
cargos de destaque no cenário econômico e político estadual, como a presidência do Banco de
Juazeiro e interventor de Juazeiro entre 1937 e 1943. O Banco do Juazeiro foi fundado em
1933 como Sociedade Cooperativa de Crédito de Juazeiro do Norte e teve estes sujeitos como
idealistas: Dirceu Inácio de Figueiredo, Antônio Gonçalves Pita, Francisco Nery da Costa
Morato, José Bezerra de Menezes e Plácido Aderaldo Castelo.
11
ATAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE JUAZEIRO DO NORTE, 5 de maio de 1958, p.6b.
deveria aprovar o projeto que abria fundos financeiros para esse
investimento, como também convencer a municipalidade de sua
necessidade. Isso, contudo, deflagrava conflitos políticos e econômicos
com um dos principais empresários juazeirenses, sua família e sua rede de
relações, que se movia para além do Cariri cearense. A Câmara dos 10

vereadores de Juazeiro do Norte, em suas sessões ordinárias, tornou-se o


palco dessa disputa tendo cada um os seus defensores e acusadores. Em
1948 esses representantes do povo discutiram tal problema. Para eles,
Com a palavra o sr. Presidente que prontificou-se para
ter um entendimento com o sr.Prefeito sobre a luz da
cidade e dar o resultado na próxima sessão. Com a
palavra o vereador Dr. Jussier Sobreira de Figueiredo
disse que nós eramos leigos no assunto e devíamos
dar poderes ao prefeito para resolver, aparteado pelo
Dr. Mozart Cardozo de Alencar que esteve contra
esses poderes. Adiantando que a cidade precisa de
iluminação e que desse a luz quem quisesse e
pudesse, era preferível chamar os técnicos para
estudar o caso das instalações e o preço das velas,
pelos quais estão sendo cobrados dos consumidores.
Com a palavra o vereador Luiz Matos Franca que
considerou o coronel Antônio Pita como um abastado
capitalista e tinha por obrigação fazer algo de bem por
esta terra chegando a dizer que era uma vergonha o
povo viver subjugado a capricho daquele capitalista
[...] (ATAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE JUAZEIRO DO
NORTE, 26 de abril de 1948, p.2b).

A partir dessas denúncias o vereador Luiz Matos Franca defendeu


na plenária o levantamento de 2 milhões de cruzeiros para a prefeitura
comprar a Empresa Elétrica de Juazeiro e resolver os problemas nessa
área de serviço. Visavam, outrossim, fomentar os projetos e espaços que
dependiam de um fornecimento mais regular de energia 12. O clima de
discussão fortaleceu a divisão existente entre os que nasceram das
famílias da terra e os adventícios, aqueles que adotaram Juazeiro para ser
sua morada. Luiz Matos Franca se colocava como “filho de Juazeiro”, essa 11

qualidade se manejou discursivamente para legitimar a sua posição como


sendo a mais eficaz para o progresso industrial de sua terra. Para ele,
“como filho de Juazeiro pretendia arrancar das garras de um judeu que a
tantos anos vem massacrando os direitos do povo” a Empresa Elétrica de
Juazeiro. O vereador e médico Mozart Cardozo de Alencar 13, afirmara que
também lutava para o progresso de Juazeiro, mas “como filho adotivo
desta terra”. Para corroborar a sua fala mencionou o nome dos prefeitos
que já tinham assumido o executivo juazeirense e não viram “Antônio Pita
como homem desprepotente nesta cidade, quando o mesmo já tem
plantas para construir grandes prédios para montagem de fábrica de
Óleo” (ATAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE JUAZEIRO DO NORTE, 7 de maio
de 1948, p.9b).
Nesse intuito, mandou-se um ofício ao Ministério da Agricultura
visando conseguir esse empréstimo a fim de comprar a “Empresa Elétrica
de Juazeiro”. A partir de então, a movimentação política local e nacional
se manejara pelas duas partes conflitantes. O vereador Antônio Braz,
defendeu um projeto que visava isentar o pagamento de impostos de
12
ATAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE JUAZEIRO DO NORTE, 5 de maio de 1958, p.6b; ATAS
DA CÂMARA MUNICIPAL DE JUAZEIRO DO NORTE, 11 de maio de 1948, p. 11a.
13
Nasceu em Barbalha em 1903, graduou-se em medicina pela Faculdade de Medicina de Rio
de Janeiro em 1930. Voltou para o Cariri e atuou no primeiro posto de saúde de Juazeiro do
Norte e como médico particular de Padre Cícero. Em 1936 foi chefe do Serviço de Peste
Bubônica em Crato. Em 1948 elegeu-se vereador de Juazeiro do Norte e em 1973 seu prefeito.
Antônio Pita ao município. Essa defesa se rebateu ao se deliberar por um
emenda que obrigava a conclusão da construção de uma fábrica
prometida por esse empresário ao município num prazo de 2 anos, cujo
apoio municipal já havia sido dado. O vereador Vicente Bezerra Lima
procurando acobertar a permanência da empresa elétrica nas mãos de 12

Pita e a renovação de sua prestação de serviço aos espaços públicos do


município, procurou convencer aos seus colegas de que Antônio Pita tinha
a seu favor o apoio do Presidente da República. Para isso, com um
“pedaço de jornal dizendo que era do Diário Oficial da República e este
trazia uma nota assinada pelo Presidente Dutra cuja nota dá autorização
ao sr. Antônio Pita a continuar sendo empresário da empresa de luz desta
cidade” (ATAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE JUAZEIRO DO NORTE, 24 de
maio de 1948, p.22a).
Nessas lutas políticas e partidárias na Câmara apenas Vicente
Bezerra Lima não votou apoiando o projeto que visava solicitar um
empréstimo a favor da prefeitura a fim de comprar à Empresa Elétrica de
Juazeiro. Em uma posição contrária aos demais, alegou que faltavam os
meios legais para que essa intervenção fosse juridicamente válida e,
consequentemente, estavam infligindo à “Constituição da Casa”, como
também não possuíam a autorização da União. Essa fala procurava mover
algumas manobras para impedir essa intervenção, pois afetaria ao grupo
que participava, por exemplo, a ligação entre a família Bezerra e Pita se
firmava também no setor da política e economia. O vereador Luiz Matos
Franca se exaltou em 5 de julho de 1948 e defendeu esse empréstimo com
estas palavras: “não acredito que um tubarão que vive a esbaldar com o
dinheiro desta boa gente continue a massacrar os nossos direitos” (ATAS
DA CÂMARA MUNICIPAL DE JUAZEIRO DO NORTE, 24 de maio de 1948,
p.29a-30a). Alguns edis presentes disseram que Antônio Pita não procurou
negociar um meio termo para resolver os problemas com a iluminação da
cidade e das altas taxas cobradas por esse insumo. E, para, além disso, não 13

estava funcionando como o firmado em contrato entre os usuários, a


prefeitura e a empresa. Portanto, na sessão do dia 5 de junho de 1948
votaram a favor desse empréstimo à prefeitura municipal e a abertura
jurídica ao executivo realizar um projeto para solicitar o direito de sua
concessão a União.
O clima ficou cada vez mais tenso. O prefeito do município viajou
para Capital Federal, à época, o Rio de Janeiro, para pedir a autorização
necessária para o funcionamento da empresa, como também a ampliação
de sua luz e força. Por outro lado, o vereador Lima defendeu a busca de
um acordo entre as partes a fim de mantê-la nos domínios de Pita. Como
não teve brechas para isso, o embate instalado no processo de negociação
em prol de sua compra foi ampliado pela transação difícil com a família
proprietária. As duas partes reagiram com várias estratégias e ações para
manter seus planos. Por exemplo, a Empresa cortou a iluminação pública
quando o prefeito se afastou para ir negociar o plano de eletrificação de
Juazeiro do Norte em Rio de Janeiro. Para ilustrar isso, temos registrados
nas Atas da Câmara Municipal os reclames dos vereadores, por exemplo,
realizaram várias sessões a luz de vela. Para o vereador José Rodrigues
Soares, o prefeito Antônio Conserva Feitosa antes de ir à Capital do Brasil
já tinha ventilado que isso ocorreria, ou seja, “o caso de ser cortada a luz
pública, adiantando que íamos trabalhar no escuro” (ATAS DA CÂMARA
MUNICIPAL DE JUAZEIRO DO NORTE, 21 de outubro de 1948, p.65b).
Depois de muita negociação, em 4 de novembro de 1948 Antônio
Pita mandou um ofício a Câmara relatando que concordava com a
proposta feita pela comissão de vereadores que fora em seu 14

estabelecimento. Aproveitou o ensejo, outrossim, para limpar a sua


imagem de inimigo do progresso de Juazeiro, que se arquitetou pelos
meios de comunicação local, apoiadores da intervenção municipal na
empresa elétrica. Para isso, afirmou que sua posição e desejo era cooperar
com o executivo e legislativo a fim de conseguir elevar o município, como
também aceitava vender as instalações públicas de sua empresa pela
quantia de 90 mil cruzeiros. Contudo, delimitava que tal pagamento
deveria ser a vista e com um prazo de 8 dias. Portanto, vinculou-se aos
que lutavam para o engrandecimento da “terra do Padre Cícero” dizendo:
“Quero neste momento, reafirmar a essa Câmara, que sempre fui um
assíduo cooperador do progresso desta boa terra, o que, aliás, isto é
bastante conhecido pelos homens de boa vontade” (ATAS DA CÂMARA
MUNICIPAL DE JUAZEIRO DO NORTE, 4 de novembro de 1948, p.80a).
Formou-se uma comissão que viabilizasse a verba para comprar as
linhas externa da empresa, além de suas instalações e linhas públicas,
como também que visassem fazer um apanhado da situação econômica e
do quadro de funcionários, pois esses passariam depois dessa aquisição a
serem servidores públicos. Para tal tarefa o vereador Gumercindo Ferreira
e Dr. Jussier verificara tal situação junto a Antônio Pita. A partir desse
momento, a Câmara começou a legislar a construção dos cargos públicos
da empresa, como o de auxiliar de escrita, de Diretor-Gerente14 e
eletricista. Nesses projetos de lei delimitaram o salário e os deveres do
servidor, como também construíram o documento que fundava
juridicamente a empresa elétrica da prefeitura municipal. Essa recebeu,
por sua vez, o seguinte nome: Empresa Elétrica Padre Cícero. 15

Portanto, em julho de 1948 se criou a empresa elétrica do


município. A lei nº 14 resume o motivo pelo qual o seu nome mudara: “A
Empresa tomou o nome Pe. Cícero em homenagem ao fundador do
Munícipio” ( CORREIO DE JUAZEIRO, ano I, n.25, Juazeiro do Norte, 3 de
julho de 1949, p.03). O seu regulamento delimitou quais os deveres e o
que se poderia fazer por ela. Em primeiro lugar, tinha como meta fornecer
“Luz e Força elétrica” para o município de Juazeiro do Norte, e em
segundo, somente a prefeitura tinha o direito de explorá-la
privativamente, ou seja, esse serviço só seria feito pela empresa municipal
ficando proibido o fornecimento de luz e força por outras entidades.
Além disso, esse documento de fundação delimitou o horário que
ela forneceria o serviço de luz para os seus consumidores, a saber, “a luz
será fornecida das 17 horas e 30 minutos até às 24 horas do dia”
(CORREIO DE JUAZEIRO, ano I, n.25, Juazeiro do Norte, 3 de julho de 1949,
p.03). A ênfase se dava para a iluminação noturna e as possibilidades
abertas por ela, como o uso de artefatos elétricos que proporcionaram
aos seus consumidores um conforto e segurança nesse específico
momento do dia. Isso provocara também uma intensidade e

14
ATAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE JUAZEIRO DO NORTE, 23 de dezembro de 1948, p.4b.
movimentação à noite em suas ruas e praças, tendo em vista o uso do
horário para as reuniões sociais, políticas e religiosas. Já o serviço de força
tinha outra tabela e se regulava de acordo com a solicitação das horas
demarcadas pelo contrato feito entre o usuário e a Empresa Elétrica Padre
Cícero. 16

Nem todas as famílias juazeirenses podiam instalá-la em sua


residência, levando-se em consideração os custos financeiros e os
protocolos que requeriam uma habilidade letrada e de negociação
burocrática solicitada para tal fim. No artigo 3 do regulamento temos,
assim, circunscrito:
Art 3º. O pedido de ligação da corrente elétrica, quer
domicílio ou estabelecimentos comerciais, pode ser
feito verbalmente ou por escrito, a sessão de luz
fornecendo-se os seguintes requisitos: a- nome,
pronome, rua e número do prédio do solicitante; b-
natureza e modo de ligação, luz ou força; c- fazer o
caução correspondente a dois meses de consumo,
bem como submeter-se a todas prescrições deste
regulamento; d- o depósito do caução não tem direito
a juros de espécie alguma responde pelo pagamento
da luz, quando esta ficar em atraso com a Tesouraria
da prefeitura; e- o solicitante pagará ainda a taxa de
ligação na importância de CR$ 5, 00 (Cinco cruzeiros);
f- Toda vez que o fusível queimar-se a Empresa
ordenará a empregado competente a fazer nova
ligação gratuitamente. (CORREIO DE JUAZEIRO, ano I,
n.25, Juazeiro do Norte, 3 de julho de 1949, p.03)

Nesse regulamento se delimitou também como punir os casos de


transgressão a suas normalizações transformadas em leis municipais. Por
exemplo, a instalação dos “gatos”, ou seja, o uso clandestino da luz e
força, que poderia comprometer as casas, o sistema de redes e o
fornecimento regularizado. No artigo 9 ficou firmado que era proibido
ligação de redes elétricas sem autorização de seu administrador e
eletricista, para aqueles que infringissem tais normas deveriam pagar 17

“multa de Cr$ 100,00 e na reincidência, o dobro” (CORREIO DE JUAZEIRO,


ano I, n.25, Juazeiro do Norte, 3 de julho de 1949, p.03).
Essa ideia de construir uma imagem de Juazeiro como uma cidade
moderna necessitou de maiores esforços por parte dos poderes públicos
locais. E que viram a possibilidade desse espaço urbano ser atingido pela
Companhia Hidroelétrica de São Francisco, como uma forma de tornar
esse setor de sua infraestrutura mais potente, dando assim esperanças
para a sua industrialização em um período temporal curto. Além disso,
visualizavam certo campo de transformação, que a tiraria de uma base
econômica calcada pela atividade agricultura e artesanal, com a
intervenção do município no setor de energia elétrica na cidade,
particularmente, com a compra da Empresa Elétrica de Juazeiro. O sonho
era que com essa energia se pudesse aumentar as fábricas, ampliar a sua
urbanização e transformar as suas bases econômicas, do setor primário
para o secundário. Tais horizontes de expectativas (KOSELLECK, 2006),
portanto, reafirmaram-se com a eletrificação da região do Cariri cearense
em 1961 pela CHESF.
Considerações finais

Neste artigo, objetivamos a construção de discursos políticos que


buscaram promover uma base de legitimação para a intervenção do poder
executivo no setor de energia elétrica no município de Juazeiro do Norte. 18

Para isso, verificamos os conflitos relatados pelas Atas da Câmara dos


vereadores em suas sessões ordinárias e extraordinárias, como também as
matérias produzidas pelos jornais locais que circulavam entre 1945 e 1961
na cidade e região do Cariri cearense.
Podemos perceber que a luta entre o setor privado e público não
se fazia apenas visando o bem público, a modernização de Juazeiro e de
seus espaços. Diante do anseio pela modernização da terra do Padre
Cícero também se tinha o conflito entre as famílias que dominavam a sua
política e economia. Vimos que para segurar a empresa elétrica nas mãos
do setor privado não se medira esforços para se convencer e solicitar o
apoio de políticos locais e nacionais. Contudo, o anseio pelo moderno
movia ideais que abriam caminhos para essa intervenção, que para alguns
seria benéfica, para outros, não.
Buscando defender um “Juazeiro moderno”, o executivo e parte
do legislativo usaram as imagens do passado como a ideia de progresso da
cidade e a (re) forjaram, por exemplo, as defendidas no início do século XX
por Padre Cícero e elite juazeirense. Tais dispositivos discursivos moveram
o sentimento de revolta e a necessidade que a municipalidade tinha desse
insumo possibilitou colocar a compra dessa empresa pela municipalidade
como a garantia de sua modernização. Contudo, não se pensou que os
problemas enfrentados por essa empresa demandaria um esforço maior
da municipalidade, ou seja, regulá-la e construir cargos públicos não seria
suficiente para superar a sua crise administrativa, financeira e de recursos
técnicos. Enfim, como estratégia de convencimento também a nomearam
de Empresa Elétrica Padre Cícero. Intitulando-a, assim, carregavam-na de 19

certo capital simbólico (BOURDIEU, 2009) decorrente do nome e imagem


de seu fundador.

Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e


outras artes. São Paulo: Cortez, 2006.
ARGAN, Giulio Carlo. O espaço visual da cidade. In: ARGAN, Giulio Carlo.
História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995,
p.225-241.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da
modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2009.
BRESCIANNI, Maria Stella. História e Historiografia das cidades: Um
percurso. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org). Historiografia Brasileira em
perspectiva. São Paulo: Contexto, 2003, p.237-255.
CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL [CMEB]. A vida
cotidiana no Brasil moderno: a energia elétrica e a sociedade brasileira
(1880-1930). Rio de Janeiro: Centro de Memória da eletricidade no Brasil,
2001.
__________. A vida cotidiana no Brasil Nacional: a energia elétrica e a
sociedade brasileira (1930-1970). Rio de Janeiro: Centro de Memória da
eletricidade no Brasil, 2003. 20

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Rio de


Janeiro: Vozes, 1993.
CORTEZ, Antônia Otonite de Oliveira. A construção da “cidade da cultura”:
Crato (1889-1960). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2000. Dissertação de Mestrado.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no
século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984.
FOLLIS, Fransérgio. Modernização urbana na Belle Époque Paulista. São
Paulo: Editora UNESP, 2004.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Rio de Janeiro:
VOZES, 2009.
GOMES, Assis Daniel. Da “terra do Padre Cícero” à “Cidade do Progresso”:
intervenções urbanas em Juazeiro do Norte (1950-1980). Salvador: Editora
Pontocom, 2015.
GOMES, Francisco de Assis Magalhães. A eletrificação no Brasil. São Paulo:
Eletropaulo, 1986.
JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Verso e reverso do perfil urbano de
Fortaleza (1945-1960). São Paulo: Annablume, 2003.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos
tempos históricos. Rio de janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
LEITE, Ary Bezerra. História da Energia no Ceará. Fortaleza: Fundação
Democrática, 1996.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: UNICAMP, 1996.
MAGALHÃES, Gildo (org). História e energia: memória, informação e
sociedade. São Paulo: Alameda, 2012. 21

NOBRE, Geraldo. Ceará: energia e progresso. Fortaleza: Secretaria de


Cultura e Desporte, 1981.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O meio do mundo: território sagrado em
Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: EDUFC, 2012.
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na
cidade de São Paulo. 2 ed. São Paulo: Studio Nobel, 1999.
SCHORSKE, Carl e. A ideia de cidade no pensamento europeu: Voltaire a
Spengler. In: SCHORSKE, Carl e. Pensando com a história: indagações na
passagem para a modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000,
p.53-72.
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e
cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SILVA FILHO, Antônio Luiz Macedo e. Entre o fio e a rede: a energia elétrica
no cotidiano de Fortaleza (1945-1965). São Paulo: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 2008. Tese de doutorado.
__________. Fortaleza: imagens da cidade. Fortaleza: Museu do
Ceará/SECULT, 2004.
SILVA, Marcelo Squinca. Energia Elétrica: estatização e desenvolvimento,
1956-1967. São Paulo: Alameda, 2011.
SOUZA, Clarindo Barbosa de & FALCÃO, Luiz Felipe (org). Cidades Médias
do Brasil na Historiografia Contemporânea. Campina Grande: EDUFCG,
2012.
VARGAS, Milton (org). História da técnica e tecnologia no Brasil. São
Paulo: editora da Universidade Estadual Paulista, 1994. 22

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e Literatura. São


Paulo: Companhia das Letras, 2011.
AS VIOLÊNCIAS OCULTAS E A CORDIALIDADE BRASILEIRA: O
HOMEM CORDIAL DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E O FILME
QUE HORAS ELA VOLTA?

Luis Fernando Tosta Barbato*


1
Estefany Amorim Viana de Castro
Yasmin Amorim Viana de Castro
Mateus Henriques Patrício

Resumo: O presente artigo traz uma análise do filme Que horas dela volta?, de Anna
Muylaert a partir do conceito de cordialidade, proposto pelo historiador Sérgio Buarque
de Holanda em seu livro Raízes do Brasil. A partir da análise do filme, temos como
objetivo mostrar que o conceito de cordialidade defendido por Holanda, marcante no
caráter nacional brasileiro, e que, apesar de aparentemente ser positivo, serve para
ocultar uma série de violências, pode ser evidenciado no filme. Desta maneira, a partir
da análise conjunta das obras, pretendemos mostrar que a obra de Sérgio Buarque de
Holanda ainda se mostra como muito relevante para entendermos os problemas sociais
da atualidade.
Palavras-chave: Historiografia brasileira; Cinema Brasileiro; Sociedade Brasileira.

Resumen
En este artículo se presenta un análisis de la película Que Horas Elas Volta?, de Anna
Muylaert, a partir del concepto de cordialidad propuesto por el historiador Sergio
Buarque de Holanda en su libro Raízes do Brasil. A partir del análisis de la película,
nuestro objetivo es mostrar que el concepto de “cordialidade” adoptado por Holanda,
marcante el carácter nacional de Brasil, y que, a pesar de ser aparentemente positivo,
sirve para ocultar una gran cantidad de violencia, se puede evidenciar en la película.
Así, desde el análisis conjunto de las obras, pretendemos mostrar que la obra de Sérgio
Buarque de Holanda sigue cómo muy importante para comprender los problemas
sociales de los dias actuales.
Palabras clave: Historiografía Brasileña; Cine Brasileño; Sociedad Brasileña.

*
Instituto Federal do Triângulo Mineiro
1. Introdução
Lançado no Brasil em 2015, o longa Que horas ela volta?, dirigido
por Anna Muylaert, tem como personagem principal Val, uma empregada
doméstica nordestina, interpretada por Regina Casé, que em busca de uma
2
vida melhor, deixa sua filha em Perbambuco e vai morar em São Paulo. O
filme expõe uma tensão latente entre uma classe alta, no caso os patrões,
e uma classe mais baixa, que é a empregada doméstica, tudo isso
permeado por uma pretensa cordialidade que deixa essa tensa relação
ainda mais interessante, pois, mesmo a empregada sendo tratada como
“da família”, isso não altera a realidade em que ela é inferiorizada,
evidente em diversos momentos do filme.
O longa nos traz reflexões interessantes sobre a maneira como a
desigualdade social está permeada, e muitas vezes, naturalizada, na
sociedade brasileira. No entanto, o que mais nos chama a atenção ao
analisarmos o filme, é a maneira como as violências que Val sofre o tempo
todo estão ocultas pela cordialidade. Como já adiantamos, Val era “quase
da família”, mesmo tendo que viver em um quanto insalubre, comer um
sorvete diferente daqueles dos patrões ou servir, devidamente
uniformizada de empregada, os convidados dos patrões nos dias de festa,
entre outras violências constantes que muitas vezes passavam
despercebidas devido justamente a essa “cordialidade” existente nessa
relação patrões-empregada.
Desta maneira, essa cordialidade existente entre as classes sociais,
que oculta e neutraliza violências, além de mascarar opressões tão
presentes na história do Brasil, nos abre espaço para analisarmos o filme
de Muylaert em uma relação com o conceito de cordialidade presente na
obra de Sérgio Buarque de Holanda, que trata justamente desse aspecto
tão presente e importante para a formação do caráter nacional brasileiro
(BARBATO, 2010). 3

A cordialidade de Holanda está expressa no capítulo “O Homem


Cordial”, de sua obra Raízes do Brasil, que se trata de uma das maiores
contribuições para a historiografia e pensamento sociológico brasileiros,
buscando as origens dos traços tão marcantes do Brasil e seus brasileiros
ainda no Brasil colonial, e principalmente na presença do colonizador
português na gênese da formação da sociedade brasileira. Segundo o
autor, todas as formas de exclusão e violência, muito bem dissimuladas
nos traços cordiais presentes no brasileiro de seu tempo, eram em razão
da colonização portuguesa (DECCA, 2002, pp.11-12).
No capítulo “O Homem Cordial”, Sérgio Buarque de Holanda busca
explicações que justifiquem a cordialidade presente no brasileiro, e ele
encontra suas respostas comparando as figuras do Estado e da Família. O
Estado seria algo voltado para o racional e para o indivíduo, em
contraposição à Família, que estabelece relações mais sentimentais e
intimistas.
E nesse sentido, o brasileiro, cordial por natureza, se formou
respaldado por uma ideia mais voltada para o padrão familiar, na qual a
razão muitas vezes cede para dar lugar aos anseios de cunho intimista e
familiar, o que deixa, por tanto, o Estado, e todo o conjunto de instituições
que ele representa, em segundo plano. Portanto, ser cordial, não
necessariamente significa algo positivo, pois essa cordialidade guarda
egoísmos e personalismos, que acabam por desencadear efeitos negativos
na sociedade brasileira, tais como a ocultação de problemas e violência, e
um Estado no qual todo um aparelhamento é formado não para atender às
necessidades do coletivo, mas sim da pessoa e da família (HOLANDA, 4

1956).
Nesse sentido, como nos trouxe Teresa Sales:
Sergio Buarque de Holanda apresenta a mediação de
classes sob uma outra óptica, embora as raízes de
ambos, Sergio e Gilberto, estejam apontando para
elementos que encobrem as desigualdades sociais por
uma espécie de fetiche. A óptica do autor de Raízes do
Brasil é á do "homem cordial", aquele cuja
característica é o horror às distâncias, que tem suas
raízes na esfera do íntimo, do familiar e do privado,
cujas origens, por sua vez, estão relacionadas antes
com a especificidade de nossa casa-grande que com
traços patrimoniais herdados da cultura portuguesa
(SALES, 1994).

Portanto, dentro dessa temática expressa por Holanda, essa


cordialidade se expressa na diminuição da distância entre as pessoas,
voltando-se para o íntimo e o familiar nas mais diversas relações, mesmo
naquelas que deveriam escapar dessa esfera. No entanto, “a lhaneza no
trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por
estrangeiros que nos visitam”, como diz o próprio Holanda, também
guarda seus elementos negativos, uma vez que acoberta, nessa aparente
doçura das relações, as violências e as desigualdades entre as classes
sociais.
E é nesse ponto que a obra de Anna Muylaert nos serve como um
bom exemplo para entendermos essa cordialidade ancestral que marca o
brasileiro como elemento atenuante de violências, uma vez que o mote do
filme é justamente esse: a empregada que é inferiorizada e aviltada com
uma doçura que muitas vezes faz com que essa violência se torne 5

imperceptível, ou pelo menos, menos explícita.


Assim, a partir da análise conjunta das duas obras, buscaremos
mostrar como o conceito de cordialidade, expresso por Holanda, ainda é
muito interessante para compreendermos nossas relações sociais no
Brasil, tendo o filme como um objeto privilegiado para essa análise.

2. Acerca da utilização da cordialidade


No capítulo “O Homem Cordial”, da obra Raízes do Brasil, de Sérgio
Buarque de Holanda, o autor conceitua a diferença entre duas instituições
antagônicas em diversos aspectos: O Estado, como figura que estabelece
normas gerais, promove a individualização e traz a racionalização das
relações sociais; e a Família, que por ser sustentada por laços
consanguíneos, atua colocando seus valores apoiados em sentimentos e na
subjetividade. O atrito existente entre essas concepções causa, como o
próprio autor coloca, crises sociais, o que no caso do Brasil se mostra como
algo bastante forte, devido principalmente à nossa resistência em
abandonar os valores familiares, fato esse responsável por debilidades em
diversos aspectos de nossa sociedade.
No ambiente colonial traçado por Holanda, observamos uma falta de
autoridade por parte das instituições, em uma sociedade herdeira das
sociedades ibéricas, como era a brasileira, na qual cabia a obediência e
submissão à autoridade patriarcal, na falta de outra, produziu esse tipo de
relação social mesmo dentro de relações hierárquicas, na qual havia se 6

expressavam de maneira mais simples e diretas, ocorridas nos moldes das


relações familiares, o que não significa que quebravam as posições
hierárquicas, apenas as reconfiguravam (AVELINO FILHO, 1990).
A real consequência desse conflito, entre tais instituições - a Família,
com sua pessoalidade e subjetividade, e o Estado, como sua razão - para o
país pode ser encontrada exatamente no que ele chama de cordialidade,
que nos ajuda a “preservar intactas sua sensibilidade e sua emoções” e que
no fundo não passa de um ordinário triunfo da Família sobre os interesses
gerais, triunfo esse muitas vezes nocivo para o convívio social e o bom
andamento do sistema político e que torna a maioria das organizações
muito pessoais e pouco adeptas de normas e rituais, o que traz sérias
consequências para o próprio desenvolvimento social do país, uma vez
que, gerido por ideais personalistas e familiares, o bem-estar geral se
mostra prejudicado.
Em meio a essa dissonância social que Holanda nos traz, um
exemplo pode ser encontrado na família rural e patriarcal brasileira e o
início da desigualdade social, que remonta ao Brasil colonial, que ela
representa, e como veremos no decorrer deste texto, ainda traz ecos na
sociedade brasileira.
Nesse aspecto, podemos estabelecer uma relação entre a obra de
Sérgio Buarque de Holanda e o filme de Anna Muylaert, uma vez que um
dos pontos abordados no filme Que horas ela volta? é exatamente a
desigualdade social, reflexo evidente desse contexto histórico herdado dos
tempos coloniais, e personalizada pela empregada Val e a patroa Bárbara, 7

pessoas de classe sociais distintas, na qual uma é subordinada a outra, em


uma relação de subordinação e dominação que extrapola gerações.
Mas o que há de mais interessante nas personagens e em suas
relações, se refere ao fato de Val ser tratada como pertencente aquela
família, por morar na mesma casa há vários anos e cuidar do filho de
Bárbara, o que acabou gerando vínculos de intimidade entre todos, mesmo
estando essas pessoas separadas por diferenças sociais bastante
significativas, a ponto de Val se sentir incluída àquele meio que a oprime e
a inferioriza, adotando para si, inclusive, o papel de mãe para o filho dos
patrões.
Esse sentimento de pertença na família da patroa é revestido
exatamente pela cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda. Pela polidez,
pelo sentimentalismo, por ser relativo ao coração, a relação entre patrões
e empregada (e posteriormente sua filha), em um primeiro momento,
parecem mesmo estarem acomodadas como relações familiares, mesmo
que o filme, ao longo de seu desenvolvimento, dê indícios, que no seu
desenrolar se tornam cada vez mais evidentes, de que tudo aquilo se trata
de mera cordialidade para camuflar uma relação normal de patrões e
empregados, marcada por preconceitos de classe e ideais de exploração e
inferiorização.
Um exemplo disso é o vínculo de Val com o filho de sua patroa:
existe ali laços estreitos que apelam para uma incoerência social, pois
temos um filho de uma mulher socialmente bem sucedida que prefere
abraçar a empregada pobre do que a própria mãe, evidenciando o quão
complicadas e tensas são essas relações retratadas no filme e 8

problematizadas por Sérgio Buarque de Holanda.


Tanto Val quanto Bárbara realmente acreditavam estar, justamente
pela existência da cordialidade, atuando como uma família. No entanto
veja bem, de uma pretensa mesma família, mas nunca de uma mesma
classe social. A cordialidade de Bárbara, nesse sentido, é bastante
hipócrita, por ter a empregada em sua casa há tanto tempo e dizer que ela
faz parte da família, ao mesmo tempo em que não pode comer de sua
mesma comida ou entrar na piscina de sua casa. No entanto, é essa
cordialidade, hipócrita, mas apaziguadora de conflitos ao mesmo tempo,
que perpassa a sociedade brasileira há décadas e que se revela a um olhar
mais acurado, desde os altos escalões da administração pública até as
microgerências familiares
Portanto, por mais que as personagens pretendam ser uma família,
continuam sendo empregada e patroa. E a cordialidade apenas faz a patroa
sentir-se bondosa e humilde, e a empregada bem afortunada e querida, ao
passo que essa gentileza é colocada à prova com a chegada de Jéssica, filha
de Val, representando a ruptura nesse ambiente violento, mas harmônico,
justamente pela presença dessa cordialidade que camufla os antagonismos
de classe e a exploração. Percebemos, deste modo, que a cordialidade do
brasileiro neste filme, que evidentemente não deixa de ser uma
representação da realidade, é utilizada como uma máscara para a
desigualdade social desenvolvida ao longo de nossa história, sendo que
essa desigualdade encontrou ao longo de tempos terras férteis em nosso
país e sua origem parece vir de alguns valores familiares como o
patriarcalismo e até mesmo o coronelismo, tudo, sempre velado pela 9

cordialidade.

3. Sobre a cordialidade, a desigualdade social e a crise política atual


Para Sérgio Buarque de Holanda, essa familiaridade característica
dos brasileiros atua, sob um ponto de vista político, como um empecilho
para “os grandes feitos”, ou seja, para o desenvolvimento do país. Nesse
sentindo, o autor cita que as grandes mudanças no cenário político
brasileiro, como a Independência e a Proclamação da República, foram
encabeçadas por grupos racionais, como maçons e positivistas, e,
portanto, alheios a essa vertente familiar e cordial que marca o brasileiro.
A Democracia, por exemplo, exige que os cidadãos escolham alguém
que, acima de tudo, desempenhe um papel representativo no plano
governamental. Neste plano, para Sérgio Buarque de Holanda, é onde deve
ter vez os chamados órfãos sociais, aqueles que se individualizaram, que
não seguem a polidez dos valores familiares, e que geralmente são pessoas
com estudo e mais oportunidades, se destacando assim desse padrão
cordial inerente às relações sociais e políticas do Brasil, exemplo de uma
velha ordem que deve ser superada em nome dessa racionalidade.
É neste ponto em que o filme Que horas ela volta? assimila muito
bem ao retratar a dificuldade que pessoas de baixa renda e de regiões do
Nordeste do Brasil tem de estudar em uma universidade. Jéssica, filha de
Val, ao chegar em São Paulo para prestar vestibular, por coincidência o
mesmo que o filho de Bárbara irá fazer, todos duvidam de sua capacidade
de passar. Esse ponto é reforçado pela desigualdade social existe entre
eles, além de outro detalhe, que mostra a cordialidade da patroa ao saber 10

que seu filho não passou, mas Jéssica sim. Cordialidade essa revestida de
inveja e de ciúme pelo filho com sua empregada.
Logo, como na política temos as pessoas cordiais escolhendo seus
representantes, incluindo aquelas que não possuem chance de estudar
e/ou ingressar em uma universidade, acabamos voltando à familiaridade e
ao sentimento, por nossas sensações com relação a certo político, carente
de razão e imerso nesse universo paternalista e ineficiente.
Essa crise de representação dos interesses do povo também faz
parte do momento político atual, na qual os partidos não mostram a
opinião de seus eleitores. Estes certamente buscam novas soluções e
grupos políticos com relações mais estreitas com o povo e que saibam
identificar seus problemas e causas.

4. Conclusão
Em suma, é perceptível as semelhanças entre aspectos do longa Que
horas ela volta? com o conceito central de “O Homem Cordial” do livro
Raízes do Brasil. Quando Sérgio Buarque de Holanda busca explicar
motivos que torna o brasileiro cordial, vemos que o nosso passado
histórico foi determinante para nossas condições atuais. O fato de o
brasileiro ser menos objetivo e buscar sempre estabelecer relações
intimistas implica na sua pouca racionalidade, e acaba por tornar nossas
relações políticas menos eficientes, além de esconder uma série de
mazelas sociais, opressões e inferioridades, sempre ocultas pela aparente
cordialidade marcante do brasileiro. Essa ineficiência leva a diversas crises
sociais e políticas, e o cenário retratado no filme é a uma dessas crises, a 11

de desigualdade social.
Mas mais que isso, esse “homem cordial” de Holanda, além de
trazer a ineficiência administrativa, uma vez que não há razão na
governança e no trato com a coisa pública, em prol do benefício familiar,
essa cordialidade mascara relações de opressão e de violência, e é
justamente isso o que podemos notar no filme de Muylaert, no qual tal
opressão é deveras latente e muito visível até, mas se atenua pela
aparente intimidade existente entre opressor e oprimido.
Desta maneira, podemos concluir que o filme de Anna Muylaert é
uma interessante representação dessa sociedade descrita por Sérgio
Buarque de Holanda: personalista, egoísta e paternalista, herdada desde
tempos longínquos do Brasil colonial e que pode ser entendida como uma
das responsáveis pelas mazelas sociais que assolam o país, mas que, no
entanto, permanece dissimulada em traços cordiais, aparentemente
sensíveis, mas que, hipocritamente, servem para perpetuar essas relações
de violência, ao mesmo tempo tão visíveis e tão escondidas na sociedade
brasileira.
Val, Bárbara, Jéssica e todos os demais personagens de Que horas
ela volta? encarnam, portanto, esse universo descrito por Sérgio Buarque
de Holanda, no qual a violência e a desigualdade existem, mas por estarem
acomodadas sob uma capa expressa em trejeitos e palavras cordiais,
acabam por parecerem diminutas, ou de menor importância, quando na
verdade não o são.
Assim, podemos concluir que a obra de Sérgio Buarque de Holanda,
mesmo já passadas muitas décadas, ainda se mostra bastante atual para 12

nos ajudar a compreender a complexidade das relações sociais no Brasil, e


o filme Que horas ela volta? nos serve como exemplo disso, pois mostra
que essas violências ocultas pela cordialidade ainda permeiam nossa
sociedade.

4. Referências bibliográficas

AVELINO FILHO, George. Cordialidade e civilidade em Raízes do Brasil. In.


Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 5, n° 12, fev. 1990.

BARBATO, Luis Fernando Tosta. Da casa-grande ao mucambo: Gilberto


Freyre e as origens do caráter nacional brasileiro. Revista de História, 2, 1,
2010.

DECCA, Edgar Salvadori de. “Tal pai, qual filho? Narrativas histórico-
literárias da identidade nacional”. In. Projeto História: Revista do Programa
de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, n° 24, 2002.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro:


Livraria José Olympio, 1956.
SALES, Teresa. Raízes da desigualdade social na cultura política brasileira.
In. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 25, 1994.

QUE horas ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Fabiano Gullane,
Caio Gullane, Débora Ivanov, Anna Muylaert. Globo Filmes e África Filmes,
13
2015. 144 min.
AS CONTRIBUIÇÕES DO ESTUDO DO PATRIMÔNIO PARA A
HISTÓRIA LOCAL E PARA O ENSINO DA HISTÓRIA
Maria Doralice Nepomuceno Barbosa1
Genilda Pereira Batista Lima2
Max Lanio Martins Pina3
1

Resumo: O presente artigo pretende despertar nos professores de História o interesse


pela pesquisa da história local, como meio de tornar suas aulas mais ricas e
significativas para os adolescentes do ensino fundamental. Considera a importância do
conhecimento da História para a formação integral do indivíduo e como a história do
município (Porangatu) pode contribuir para a formação da consciência e da identidade
cultural. Estabelece uma estreita relação do patrimônio histórico cultural com a
formação dos grupos sociais e seu desenvolvimento, mostrando que o patrimônio
pode ser tomado como fonte primária para a des/construção desse processo histórico,
sobretudo quando não há documentos escritos. Por fim, relata uma experiência de
estudo da história local, que teve origem na execução do projeto de extensão
universitária - Educação Patrimonial: educar para preservar.
Palavras chave: Ensino de História. História local. Patrimônio cultural.

Abstract: This article aims to awaken in history teachers the interest in local history
research, as a means of making their richer classes and meaningful to teenagers
elementary school. Considers the importance of the history to the integral formation
of the individual and how local history can contribute to the formation of
consciousness and cultural identity. Establishes a close relationship of cultural heritage
with the formation of social groups and their development, showing that the assets
can be taken as a primary source for the de/construction of this historical process,
especially when there are no written documents. Finally, we report a study of
experience of local history, which originated in the implementation of university
extension project - Heritage Education: educate to preserve.
Keywords: History teaching. Local history. Cultural heritage.

1
Especialista em História Econômica (Uni-Evangélica) e em Ciências Sociais (UFG). Docente efetiva da
Universidade Estadual de Goiás, Campus Porangatu. Coordenadora de Área do PIBID de História no
Campus Porangatu. E-mail: mdnepomuceno55@hotmail.com.
2
Especialista em Orientação Educacional (FACEN), em Aprendizagem e Diferença (UFG) e em
Metodologia do Ensino Superior (UEG). Docente efetiva da Universidade Estadual de Goiás, Campus
Porangatu. Coordenadora Pedagógica do Campus Porangatu. E-mail: genildapbl@gmailcom.
3
Mestre em História (PUC-Goiás). Docente efetivo da Universidade Estadual de Goiás, Campus
Porangatu. Coordenador Adjunto do Trabalho de Curso de História. Email: maxilanio@yahoo.com.br.
Introdução
As transformações que vem sofrendo o patrimônio cultural
material de Porangatu despertaram alguns docentes do curso de
licenciatura em História, da Universidade Estadual de Goiás, Câmpus
Porangatu, para a necessidade de desenvolver um projeto de extensão, 2

em educação patrimonial. Com esse objetivo a professora de Didática e


Prática de Ensino – Maria Juliana de Freitas Almeida, no ano de 2010,
criou o projeto Educação Patrimonial – Conhecer para preservar que, a
partir de 2013, vinculou-se às disciplinas de História do Brasil e História
Regional.
Este projeto leva alunos das escolas públicas de ensino
fundamental a conhecerem o patrimônio cultural da cidade, visando
despertá-los para sua valorização e preservação como parte integrante da
história da cidade e sua identidade cultural. A preservação dos bens
patrimoniais ganha valor e sentido quando o bem é preservado em
virtude da história nele contida.
O contato direto com este legado cultural nos colocou frente a
diversos questionamentos a respeito das origens e do desenvolvimento da
cidade, fundada, segundo informações orais, durante a mineração do ouro
no século XVIII, por isso entendemos que o patrimônio histórico cultural
se torna uma importante fonte documental que fala e informa sobre o seu
passado. A partir da experiência, vivenciada no projeto de extensão,
começamos o levantamento das fontes orais ainda disponíveis e a
investigação através das evidências e vestígios possíveis de constatar pela
observação atenta e criteriosa do patrimônio histórico, a fim de
des/construir o quanto possível, a história local.
Procuramos neste artigo, fundamentar a importância da História
para a formação da cidadania e da consciência histórica e crítica do
indivíduo, as mudanças historiográficas, que possibilitaram a valorização 3

da história local e os benefícios que a pesquisa pode proporcionar para


professores e alunos pela produção do próprio conhecimento.
Ressaltamos a relevância dos estudos locais para o ensino de História,
tornando as aulas mais interessantes, mais significativas, além de
desenvolver no educando um espírito investigativo. É com esse objetivo
que pretendemos mostrar o significado do patrimônio histórico para a
história local e o benefício que esta pode trazer para o ensino de História.

A contribuição da História na formação do indivíduo


Quando nos referimos a História como ciência ou disciplina
escolar, é lugar comum a discussão quanto a sua importância e
aplicabilidade na vida cotidiana. Por esta razão lembramos que “Uma das
funções básicas da História é permitir a compreensão da vida em
sociedade e dos homens que a integram e a transformam” (BOSCHI, 2007,
p. 10).
Não obstante a importância do estudo da História para perceber a
ação humana através do tempo e o desenvolvimento da disciplina
histórica nas últimas décadas, no ensino fundamental e médio, passando
por uma mudança de concepção de história tradicional, oficial, factual,
que apresentava um conhecimento pronto e acabado como verdade
absoluta, para uma nova concepção de que o conhecimento histórico é
uma construção continuamente reelaborada; em que “alunos e
professores são sujeitos da história, são agentes que interagem na
construção do movimento social” (NADAI, 1993, p. 160), ainda é muito
comum depararmos com professores que encontram dificuldades em 4

despertar o interesse de seus alunos para o estudo da História. Muitas


vezes ela é vista apenas como o estudo do passado sem nenhuma relação
com a realidade do aluno e com a sociedade em que ele vive. Assim,
despertar o interesse de crianças e adolescentes para esta disciplina
torna-se um desafio, principalmente considerando a contribuição da
História para a formação da cidadania, para a apropriação da realidade, do
conhecimento e a construção de uma identidade cultural nos educandos,
enfim para a formação integral do indivíduo.
Ainda segundo Boschi (2007, p. 11) o estudo da História é
importante porque esta é inerente ao ser humano, de forma que onde há
seres humanos, há História, ou seja, as duas coisas são inseparáveis, fazem
parte dos seres humanos em todas as épocas, em todos os lugares. Para
ele “a História faz parte de nossas vidas porque somos seu sujeito (nós a
transformamos) e também seu objeto (ela nos modifica)”.
Por outro lado as histórias infantis e histórias de família, contadas
pelos pais ou pelos professores exercem um grande fascínio em crianças e
adolescentes. Acrescentemos a isso o interesse que os filmes com temas
históricos, as novelas de época, despertam nas pessoas de modo geral.
Isso nos leva a entender que é perfeitamente possível levar crianças e
adolescentes ao fascínio pela História como ciência, como disciplina
escolar. O que precisamos é descobrir caminhos e estratégias que
despertem o gosto pela História, a história dos homens, das ações
humanas, não a dos heróis, ou de indivíduos isolados, mas das sociedades,
das mudanças, das permanências. É ver a história (passado) presente na
atualidade, isto é, um conhecimento histórico que leve os educandos a 5

interrogarem as questões presentes na sociedade atual e a refletirem


criticamente sobre elas.
Retomando a ideia de que a História é inerente ao ser humano e
necessária para a formação da cidadania, recorremos a Freire (1991, p. 11)
quando afirma que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra” e a
Fausto (1996, p. 13) que ressalta ainda mais:

Sem ignorar a complexidade do processo histórico, a


história é uma disciplina acessível a pessoas com
diferentes graus de conhecimento. Mais do que isso, é
uma disciplina vital para a formação da cidadania. Não
chega a ser cidadão quem não consegue se orientar
no mundo em que vive, a partir do conhecimento da
vivência das gerações passadas.

Despertar o gosto pelo estudo da História exige, assim, mudanças


nas práticas pedagógicas e o trabalho com a história local pode ser uma
alternativa viável por ser mais próxima da realidade do aluno. Mas
comumente os professores alegam a ausência de material escrito e o
desconhecimento da formação, das origens e do desenvolvimento das
sociedades locais para que possam desenvolver esse trabalho em sala de
aula. No Brasil, até bem pouco tempo privilegiou-se o estudo da macro
história, além do enfoque dado, como já dissemos anteriormente, ao
estudo da história factual que ressaltava os acontecimentos e a
memorização de datas e nomes de heróis, de fatos limitados a causas e
consequências. Esta prática pedagógica criou a falsa ideia de que a história
é feita apenas pelos homens que detém o poder, ou que realizaram 6

grandes feitos. O cidadão comum não faz e não tem história, as


sociedades simples não fazem e não tem história.
Também as cidades antigas de construções mais simples, que
foram construídas por povos pobres, que não tiveram grande expressão
na política ou na economia, não contaram com a proteção de seus
patrimônios culturais e não ganharam espaço na História. Desprezava-se,
também, as memórias orais e a participação das camadas populares na
construção histórica. Outra dificuldade que se encontra é a questão do
tempo, frente ao conteúdo proposto no currículo escolar.

As mudanças na concepção da História e a História local


Para Freire (1991, p. 35) “O Brasil foi ‘inventado’ de cima para
baixo, autoritariamente. Precisamos reinventá-lo em outros termos”. Nas
últimas décadas, felizmente, despertou-se para o estudo e valorização das
culturas locais, tais como as rezas, danças, festas, lendas, mitos, culinária,
construções e as mais variadas experiências, enfim o patrimônio local
material, imaterial ou mesmo natural, e as memórias tomaram o status de
história e constituem como sugestões constantes nos livros didáticos.
Esta mudança no processo historiográfico vem acontecendo desde
o movimento da Escola dos Annales, ocorrido na França, nos anos de
1930, quando, segundo Ferreira e Franco (2009, p. 45) os historiadores
passaram a questionar a hegemonia da História política e a condená-la
como elitista, anedótica, individualista, subjetiva, factual e a propor uma
história mais voltada para o econômico e o social. A renovação
metodológica dos anos de 1960, no interior dos Annales, criando o 7

movimento da Nova História, abriu um leque de oportunidades de


estudos voltados para as minorias, os excluídos e os pobres. Ampliaram-se
também os temas de estudo e diversificaram as formas das abordagens.
Outro avanço na historiografia foi, sem dúvida, o surgimento da história
cultural nas últimas décadas do século XX. Quando “progressivamente a
cultura passou a ser entendida como elemento chave para a compreensão
das transformações sociais” (FERREIRA e FRANCO, 2009, p. 58).
A valorização do papel das pessoas comuns no processo histórico e
as manifestações sociais, que colocam em evidência o conflito social e
novos atores sociais, mais uma vez despertaram nos historiadores uma
renovação metodológica na História, esta tendência permitiu o
surgimento, na Itália, da micro história que

contempla temáticas ligadas ao cotidiano das


comunidades, às biografias, muitas vezes de figuras
anônimas, que passaram despercebidas na multidão,
relacionadas à reconstituição de micro contextos. (...)
Os elementos do micro, recolhidos pelo historiador,
são, na verdade, os indícios, as pistas que lhe
permitem refletir sobre questões que não são vistas
num primeiro olhar. (FERREIRA e FRANCO, 2009, p.
54).
Garrido (1992, p. 33) estabelece uma relação entre a micro história
e a história local ao considerar que a História deve “analisar e relacionar
todos os fenômenos estruturais e superestruturais com a vida cotidiana
dos protagonistas da história (...) numa linha historiográfica que
denominamos história local ou micro-história”. Também Gonçalves (2007, 8

p. 179) recorrendo a Jacques Revel que associa a micro história com a


história local, tomando por base os conceitos geográficos de escala de
observação (análise) e de fronteiras. Assim, a diferença entre as duas está
na variação da escala de observação ou no estabelecimento de fronteiras
que podem ser “largas, fluídas e móveis: o social”. Gonçalves (2007)
considera a escolha de fronteiras como uma tarefa do historiador,
baseando-se numa escala de observação, com o objetivo de atingir um
determinado conhecimento. Cita Revel (1988, p. 28) para quem não há
oposição entre a história global e a história local, esta é apenas uma
versão diferente de realidades macrossociais.
No Brasil, os atuais Parâmetros Curriculares Nacionais para o
ensino de História na educação básica passaram a determinar que: “Os
estudos de história local constituem o ponto de partida da aprendizagem
histórica, uma vez que permitem a abordagem dos contextos mais
próximos em que se inserem as relações sociais entre os professores, os
estudantes e o meio” (CAIME, 2010, p. 69). Antes de avançar para o
estudo da importância desta orientação curricular tomamos de Gonçalves
(2007, p. 178) a concepção de história local: “Como conhecimento
histórico produtor de uma consciência acerca das relações entre as ações
de sujeitos individuais e/ou coletivos em um lugar dimensionado em sua
ordem de grandeza como uma unidade”.
O estudo de história local pretende tornar o “ensino de História
mais interessante e atraente, na medida em que são abordados temas
mais próximos da realidade e da vivência do aluno, tanto no tempo como 9

no espaço” (BARBOSA, 2015, p. 2). Contribui para formação de uma


consciência histórica e critica da realidade social. Através desse estudo o
aluno apropria de sua realidade que é singular e específica em relação às
demais, toma conhecimento e passa a valorizar as experiências culturais
de sua comunidade.
Outra consequência positiva desta abordagem histórica é a criação
de um sentimento de pertencimento do indivíduo a sua comunidade
através da identificação que este passa a ter com sua cultura, enfim,
permite a criação de uma identidade cultural. O desconhecimento da
história local pode levar o indivíduo a alienação, a não se sentir enraizado
em uma coletividade e a negar sua própria identidade. Segundo Freire
apud Dias e Soares (2007, p. 72) “o ser alienado não procura o mundo
autêntico. Isto provoca uma nostalgia: deseja outro país e lamenta ter
nascido no seu. Tem vergonha de sua realidade”.
Considerando a ausência de textos escritos para o
desenvolvimento do trabalho pedagógico o professor necessariamente
deve partir para o trabalho de pesquisa que é o ápice do processo ensino
aprendizagem. A pedagogia é enfática em defender que não há ensino
sem pesquisa, o que fica comprovado em “A Pedagogia da Autonomia” de
Paulo Freire que considera sobre a formação do professor:
Que o formando, desde o princípio mesmo de sua
experiência formadora, assumindo-se como sujeito
também da produção do saber, se convença
definitivamente de que ensinar não é transferir
conhecimento, mas criar as possibilidades para sua 10
produção ou sua construção. (FREIRE, 1996, p. 24-25).

Em defesa de uma educação que eduque para a autonomia e a


liberdade do indivíduo Freire (1996) é sempre enfático em ressaltar o
positivo da pesquisa no ensino, pois ao construir um conhecimento juntos
professor e aluno, este último vai se transformando em sujeito da
construção e da reconstrução do saber ensinado, assume-se como um ser
social e histórico que o torna um ser pensante, comunicante e
transformador. Nisto consiste a autonomia que deve ser a finalidade
última da educação.

A relação entre o patrimônio cultural e a História local


Mas qual é a fonte a ser pesquisada para a construção do
conhecimento das vivências das gerações passadas, ou seja, para a
des/construção da história local? No nosso entendimento, na ausência de
documentos escritos, existem duas fontes básicas para esta pesquisa.
Uma delas são as memórias que podemos recuperar através dos
depoimentos dos mais idosos. Estes muitas vezes foram testemunhas dos
acontecimentos ou são verdadeiros baús de informações passadas de
geração em geração, através de seus antepassados. As fontes orais
constituem mais uma fonte documental para a história que os
movimentos de renovação historiográfica do século XX passaram a
valorizar. Para Thompson apud Garrido (1993, p. 34) “as fontes orais estão
na base da mais antiga e da mais recente forma de fazer História”.
A outra fonte são os vestígios deixados através do patrimônio
cultural material, os sítios históricos que são lugares de memória, por 11

excelência. No entanto, há que se considerar outras fontes que se


constituem no patrimônio imaterial, tais como as festas, as danças, as
rezas, as lendas, os mitos, as músicas e o folclore em geral.
Neste trabalho consideramos sobretudo o patrimônio cultural
material, ou os sítios históricos como vestígios e evidencias da história
local. Para Cainelli e Schmidt (2009, p. 139) este estudo pode ser uma
estratégia de aprendizagem que garanta uma melhor apropriação do
conhecimento por parte do estudante, inserindo-o na comunidade onde
vive, gerando nele atitudes investigativas a partir do seu conhecimento,
facilitando sua percepção de continuidades, diferenças, mudanças,
conflitos e também permanências. Contribui, também para a construção
de uma história mais plural, menos homogênea, além de dar vozes aos
sujeitos históricos silenciados, uma vez que a história local não consta nos
livros didáticos.
Por isso mesmo, neste caso, professores e alunos fazem a
experiência de construir o próprio conhecimento. O que permite o
desenvolvimento da escrita e da leitura não somente de textos grafados,
mas a leitura do mundo que o rodeia, o desenvolvimento da expressão
oral e escrita, da percepção da desconstrução e construção do
conhecimento histórico e das possibilidades de agir e interagir na
realidade. Outro aspecto positivo é que desenvolve uma relação afetiva
com o patrimônio pesquisado e com a própria história, que a partir daí
ganha significado e valor permitindo a preservação do mesmo. Em outras
palavras promove-se além da pesquisa histórica, a educação patrimonial.
E de acordo com Horta: 12

A educação patrimonial é um instrumento de


“alfabetização cultural” que possibilita ao indivíduo
fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à
compreensão do universo sociocultural e da trajetória
histórico-temporal em que está inserido. Este
processo leva ao reforço da auto estima dos
indivíduos e comunidades e à valorização da cultura
brasileira, compreendida como múltipla e plural.
(HORTA, et al., 1999: p. 6).

Estabelecemos desta forma uma estreita relação entre a história


local e a educação patrimonial, pois para ambas o patrimônio é a fonte
primária do conhecimento que deve ser revisitado e contextualizado na
história regional e em alguns aspectos, na nacional, num processo
permanente, sistemático e dialético. Na fala de Horta podemos perceber a
compreensão das diferenças e da multiplicidade de culturas do nosso
povo, que o estudo do patrimônio e da história local pode possibilitar no
educando.
Uma experiência de estudo da História local a partir do estudo do
patrimônio
Desde o ano de 2013 desenvolvemos um trabalho de extensão
com acadêmicos do Curso de História da Universidade Estadual de Goiás,
na sede do Câmpus Porangatu. Esta cidade originou-se de um pequeno 13

povoado fundado no século XVIII, na época da mineração do ouro. O


Arraial permaneceu após o esgotamento do ouro e teve seu nome
mudado em 1943, quando passou a se chamar Porangatu sendo
emancipado em 1948. Não foi possível, até o presente, localizar
documentos sobre sua fundação ou registros da produção de ouro nesta
mina. Mas a história da descoberta do ouro passou de geração em
geração e está na memória coletiva das antigas famílias.
Segundo informações orais, o Negro Dunga, escravo que
acompanhava a bandeira de João Leite, que estava acampada nas
proximidades do atual centro histórico, encontrou as primeiras pepitas de
ouro num córrego que passa naquele local. Em torno da mina surgiu o
povoado que recebeu o nome de Arraial do Descoberto da Piedade, mas
comumente chamado apenas “Descoberto”. Não se sabe ao certo o ano
que se deu esta descoberta, nem a duração e a produção de ouro da mina.
No século XIX apareceram informações mais precisas de viajantes que
registraram passagem pelo Descoberto da Piedade. O mais conhecido
registro é de Raimundo José da Cunha Matos que no início da década de
1820, nomeado como Governador de Armas para Goiás, visitou todos os
arraiais da Capitania e enviou um relatório sobre a situação destes para D.
Pedro I. Mais tarde este relatório foi publicado pelo Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Segundo ele “o Descoberto da Piedade tinha 37
casas humildes, uma delas servia como casa de oração. O arraial havia
decaído de sua antiga prosperidade devido aos ataques dos índios”
(MATTOS, 1979, p. 119).
Em meados do século XX surgiu uma lenda também ligada à 14

Bandeira de João Leite. Esta criou o mito de que havia naquela bandeira
um jovem que se apaixonou pela índia Angatu, que era muito bela e
pertencia a uma sociedade indígena que vivia no local onde foi fundado o
povoado. O romance foi proibido pelo cacique, mas como eles
continuavam o namoro, o rapaz foi aprisionado e queimado na fogueira.
Ao morrer ele gritou “morro por Angatu”. O desconhecido criador da
lenda certamente quis valorizar a presença indígena na região e criar uma
representação para o nome atual da cidade: “Porangatu”. Esta
representação foi constante nos desfiles em comemoração ao aniversário
de emancipação política do município nas décadas de 1960 a 1980. No
entanto, acabou gerando a ideia confusa de que a cidade surgiu com a
índia Angatu e provocou um quase esquecimento quanto ao escravo
Negro Dunga e a descoberta do ouro.
O arraial do “Descoberto” passou por longo período de
estagnação, recebendo algumas correntes migratórias no final do século
XIX e primeiras décadas do XX. Com a chegada da Rodovia Belém Brasília,
que passava bem próximo ao povoado, muitas famílias pioneiras se
mudaram para as proximidades da rodovia, deixando um conjunto
arquitetônico de quase dois séculos, que passou a ser apenas um bairro da
cidade. É um casario numa praça em volta da Igreja Nossa Senhora da
Piedade com algumas ruas adjacentes e um beco. São construções de
adobe com alicerces de pedra em modelos coloniais, a maioria bastante
simples, que com o passar do tempo começaram a se transformar em
ruinas, sofrendo a demolição natural ou sendo demolidas pelos novos
proprietários para dar lugar a construções mais modernas. Outras 15

receberam pequenas reformas, ou grandes reformas, apagando a


memória e a história de dois séculos de ação humana neste espaço. Do
antigo casario, pouco resta em original e o que resta está bastante
danificado.
Foi no sentido de despertar para a valorização e preservação deste
patrimônio cultural de Porangatu que teve início o projeto de extensão
Educação Patrimonial: Conhecer para Preservar, desenvolvido por
acadêmicos do Curso de Licenciatura em História, junto a turmas das
últimas séries do ensino fundamental de escolas públicas da cidade. O
trabalho está ligado às disciplinas de História do Brasil e História Regional.
A escolha do tema do projeto e do público alvo decorreu da necessidade
de criar uma consciência cultural que leve os adolescentes a atitudes de
valorização, preservação e conservação da memória e do patrimônio
cultural existente. Além do projeto de extensão, também os acadêmicos
participantes do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
(PIBID) vem desenvolvendo trabalhos com o patrimônio cultural e a
história local em Porangatu.
Assim, passamos ao levantamento bibliográfico do tema reunindo
obras e artigos que trabalham sobre a memória, o patrimônio, as cidades.
Estes textos passam por debates e discussões dos acadêmicos que depois
elaboram palestras que são desenvolvidas para alunos do Ensino
Fundamental, abordando conceitos básicos sobre memória coletiva e
individual, cultura, identidade e patrimônio; as diversas classificações de
patrimônio, o conceito de tombamento e suas classificações: municipal,
nacional e da humanidade, as leis e os órgãos de defesa dos bens 16

patrimoniais. O domínio dos conceitos abordados tende a levá-los a


interagir com as manifestações culturais reconhecendo-as como
elementos de sua própria identidade cultural.
Em seguida, tanto os acadêmicos como o público alvo são levados
em visitas monitoradas ao sítio histórico para conhecimento, in loco, do
patrimônio local. Nesse momento necessariamente os envolvidos entram
em contato com a história de Porangatu, desde suas origens até meados
do século XX quando praticamente é construída uma nova cidade
deixando o antigo Descoberto como vestígio de um passado remoto.
O sítio histórico de Porangatu foi delimitado e tombado pela lei
Municipal 590/84, como Patrimônio Municipal que deve ser protegido e
preservado em suas características originais. O sítio abrange as ruas e o
casario da ocupação inicial, até as ruas que sobem para a parte nova da
cidade, cujas construções em art déco, contam a história dos meados do
século XX e a transição entre o antigo e o moderno, quando com a
chegada de importantes correntes migratórias e a cidade já crescia rumo a
rodovia que ligaria Goiás ao Estado do Pará. No entanto, a lei que data do
ano de 1984, nunca foi posta em prática por falta de regulamentação e
definição de onde devem vir os recursos para esta preservação. Em 2007
foi aprovado o Plano Diretor do município que em seu artigo 66, parágrafo
II afirma:

São consideradas Áreas Especiais de Interesse


Histórico e Cultural: a área delimitada do Descoberto – 17
com seu conjunto arquitetônico, os edifícios históricos
caracterizados pelo antigo Fórum, a antiga Cadeia
Pública, a Praça e a Igreja Nossa Senhora da Piedade,
o Casarão, a Praça do Poço do Milagre e a antiga Casa
dos Correios, bem como as áreas lindeiras as citadas.

Porém, não houve a revogação da Lei de Tombamento de 1984.


Consideramos que a mudança da concepção de patrimônio para a de área
especial de interesse histórico e cultural, a qual elenca apenas alguns
edifícios como bens históricos, respeita o momento atual do país que
possibilita a muitas famílias o acesso a moradias mais modernas, e
reconhece implicitamente a incapacidade do poder público de oferecer
recursos para a restauração do antigo casario de modo a evitar sua
demolição natural e permitir a convivência do tradicional com o moderno.
Esta constatação torna mais urgente o registro da história da cidade que
liga suas origens e desenvolvimento a esse patrimônio que corre grande
risco de se perder.
Ao longo desse tempo foi restaurado o casarão que foi a residência
do primeiro prefeito e hoje funciona nele um museu que leva o seu nome:
Museu Ângelo Rosa de Moura. Este museu guarda um importante acervo
arqueológico das sociedades indígenas que viveram nesta região – Norte
do Estado de Goiás. A coleta e estudo deste acervo foi feita pela empresa
Zanettini Arqueologia, sob responsabilidade dos arqueólogos Paulo
Zanettini e Margareth de Lourdes Souza, que contaram com o apoio da
14ª Superintendência Regional do IPHAN – Instituto do Patrimônio
Histórico Artístico Nacional, e de professores da Universidade Federal de
Goiás. Parte do material coletado está exposto ao público e apresenta 18

uma coleção de carimbos corporais inteiros, além de vários artefatos de


pedra polida, fragmentos de cerâmica e urnas funerárias. Segundo consta
no relatório final da pesquisa:

O acervo pré-colonial resgatado totalizando mais de


84.000 peças a maioria correspondendo a fragmentos
de cerâmica (prancha 91). Além de ser um acervo
representativo, do ponto de vista qualitativo, pode-se
afirmar a natureza inédita desse acervo na região,
apresentando diversas peças associadas aos contextos
sociais, simbólicos e rituais de povos agricultores
ceramistas que se estabeleceram nessa área. Urnas
funerárias, adornos, carimbos corporais: artefatos que
participaram ativamente das relações sociais
vivenciadas nesses contextos. Também foi resgatado
um acervo numeroso de artefatos relacionados às
atividades de obtenção, preparo, manutenção e
consumo de alimentos. (SOUZA e ZANETTINI, 2004, p.
173).

No final da década de 1990, ocorreu a restauração da Igreja Matriz


Nossa Senhora da Piedade, construída por volta de 1880 em estilo
colonial, sobre um morro artificial. Para a construção do morro
transportaram terra em carro de bois, pois na mentalidade dos antigos
moradores a Igreja deveria estar num lugar mais elevado. Após várias
reformas, a Igreja voltou às características originais, e recebeu uma praça
à sua volta. Em trono da Igreja existe um conjunto de casas com
arquitetura do século XIX já bastante descaracterizado, assim como o
casario antigo das demais ruas.
Foi também construída uma praça em torno do Poço do Milagre. 19

Este poço foi a única mina de água potável encontrada no local à época do
início do povoamento, pois as demais eram de água salobra. Conta-se que
foi considerado um milagre para que pudessem se estabelecer no local,
daí o seu nome. Atualmente está incompleta a restauração da antiga
pensão que sediará o Arquivo Histórico Municipal. O casario da praça
Santa Terezinha, do início dos anos 1900, também tombado como
patrimônio, praticamente desapareceu com a construção de novas casas,
e no lugar da praça foi erguida uma escola com muros altos e uma quadra
de esportes.
Nas visitas monitoradas tentamos recuperar, o quanto possível, o
que está na memória coletiva dos descendentes das famílias pioneiras,
relacionando cada ponto do sítio histórico com as informações orais
disponíveis e fazendo uma observação atenta das transformações, das
condições de preservação, das permanências, da convivência do moderno
com o tradicional, enfim, tentamos estabelecer uma ponte entre o
passado e o presente através da memória e do patrimônio. Assim, a
memória cumpre uma função social e histórica. É notável o interesse que
desperta, nos acadêmicos e nos adolescentes, esse novo olhar, o olhar
historicizado sobre o patrimônio, procurando o passado nele contido.
Numa terceira etapa realizamos oficinas nas escolas campos: em
2013 e 2014 trabalhamos na Escola Municipal Nossa Sra. da Piedade, que
está localizado no sítio histórico e a partir de 2015 direcionamos o projeto
para o Colégio Estadual Presidente Kennedy. A cada ano é escolhida uma
oficina diferente de acordo com a sugestão dos participantes, pois nesta 20

etapa já criaram um envolvimento com o patrimônio estudado. Assim


foram realizadas exposições de objetos antigos pertencentes às famílias
dos próprios alunos, em que todas as turmas da escola são levadas a
visitar a exposição e os próprios alunos contam a história dos objetos.
Exposição de banners sobre os principais monumentos do antigo
“Descoberto” e sua história, oficinas de preparação e apresentação de
slides do sítio histórico. Em todos os momentos da execução do projeto
não perdemos o foco da história local.
No decorrer dos anos o contato direto com os vestígios históricos,
com a memória oral das antigas famílias, percebemos que a história das
origens da cidade e o seu desenvolvimento, estão presentes no
patrimônio. É a partir daí que o projeto toma uma nova dimensão para
além da extensão, da educação patrimonial e passa à pesquisa, o
levantamento da história local e sua contextualização na história regional
e do Estado de Goiás. Intensificam-se as leituras de teóricos sobre
memória, patrimônio, as cidades, o fenômeno urbano e história regional,
surgem novas perguntas, dúvidas e um espírito investigativo que coloca o
antigo Descoberto no centro da reflexão histórica.
Para Pesavento (2007, p. 16) a cidade do presente contém a cidade
do passado. As transformações, as mudanças que acontecem na cidade ao
longo do tempo apagam as materialidades e sociabilidades do passado,
mas ao fazer sua leitura o historiador pode descobrir que a cidade do
presente abriga a cidade do passado ou que na cidade do presente estão
contidas várias cidades do passado. “A cidade sempre se dá a ver, pela
materialidade de sua arquitetura ou pelo traçado de suas ruas, mas 21

também se dá a ler, pela possibilidade de enxergar, nela, o passado de


outras cidades, contidas na cidade do presente” (PESAVENTO, 2007, p.
16).
Na ausência de documentos escritos necessariamente temos de
recorrer às fontes orais e ao antigo Descoberto como evidência da história
das origens de Porangatu. Algumas luzes já assinalam caminhos, como por
exemplo a dissertação de mestrado defendida recentemente por Maria
juliana de Freitas Almeida e que apresenta uma rica pesquisa documental
sobre o Sertão de Amaro Leite ao qual o Descoberto pertencia. Esta
pesquisa certamente ajudará a encaixar as peças do nosso quebra cabeças
a respeito da sua origem mineratória e o desenvolvimento da pecuária
como sustentação do povoamento. É importante também compreender o
impulso recebido a partir das últimas décadas do século XIX e nas
primeiras do XX com a chegada de várias famílias vindas do Nordeste e do
atual Estado do Tocantins e sobretudo o advento da Rodovia Belém
Brasília que possibilitou a passagem do antigo Descoberto para a atual
cidade de Porangatu e consolidou a sua inserção no cenário regional e
estadual.
Conclusão
A partir das observações feitas durante o desenvolvimento do
projeto de extensão universitária Educação Patrimonial: Conhecer para
Preservar percebemos que existe uma estreita relação entre o patrimônio
cultural e a história local e que o estudo desta é uma estratégia para 22

despertar no adolescente o interesse e o gosto pelo estudo de História.


Uma história que parte da realidade mais próxima dá sentido concreto ao
estudo de realidades mais distantes no espaço e no tempo. Inicialmente, o
que se pretendia era educar para a preservação do patrimônio existente
em Porangatu, como um direito e um dever de cidadania, pois o mesmo
vem sofrendo profundas alterações ou abandono, chamar a atenção para
a crise de valores que predomina no mundo globalizado que transforma
em descartável o antigo e o tradicional.
Porém ao tomar o patrimônio como fonte primária do nosso
trabalho, vimos que o antigo Descoberto abriga outra ou mesmo outras
cidades do passado, que ele é fonte primária para o estudo da História de
Porangatu e que somente a relação entre este patrimônio com a história
das origens e transformações pelas quais a cidade passou poderá dar um
sentido para sua preservação. A identidade cultural que pretendemos
formar nos adolescentes envolvidos no projeto será possível se estes
compreenderem o processo histórico que levou a construção daquele
espaço. Esta história que não está nos livros didáticos precisa ser
construída através da pesquisa; do levantamento das fontes orais ainda
disponíveis; da leitura do patrimônio como vestígio e evidência histórica,
como ponte entre o presente e o passado. A leitura de trabalhos
científicos sobre a região, que já apresentam uma fonte documental
confiável também são importantes para esta pesquisa.
Tanto a pesquisa e produção do conhecimento histórico, como a
própria história local constituem numa excelente contribuição para o
ensino de história e para a formação da consciência cultural e da 23

identidade cultural, do senso de pertencimento que pretendemos formar


nos educandos.

Referências
ALMEIDA, Maria Juliana de Freitas. O Sertão de Amaro Leite no século XIX.
Dissertação (Mestrado em Ciência Sociais e Humanidades).
TECCER/Universidade estadual de Goiás, Anápolis, 2016.

BOSCHI, Caio César. Por que estudar História?. São Paulo: Ática, 2007.

BARBOSA, Maria Doralice Nepomuceno; PINA, Max Lanio Martins.


Descoberto da Piedade: lugar de memória, lugar de história. In: Anais do V
Congresso Acadêmico Científico, I Fórum Regional de Pesquisa e I Mostra
de Extensão. Universidade Estadual de Goiás, Campus Porangatu, 2015.

CAIMI, Flávia Eloisa. Meu lugar na história: de onde eu vejo o mundo? In:
Oliveira, Margarida Maria Dias de. (Coord.). História: Ensino Fundamental.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010.

CAINELLI, Marlene; SCHIMIDT, Maria Auxiliadora. Ensinar História. São


Paulo: Scipione, 2009.

DIAS, Guilherme; SOARES, André Luís Ramos. Educação Patrimonial e


Educação Popular: um viés possível. In: SOARES, André Luís Ramos;
KLAMT, Sérgio Célio. (orgs.). Educação Patrimonial: Teoria e Prática. Santa
Maria: Ed. UFSM, 2007.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2000.

FERREIRA, Marieta de Moraes; FRANCO, Renato. Aprendendo História:


reflexão e ensino. São Paulo: Editor do Brasil, 2009.

FREIRE, Paulo. A importância do Ato de Ler: em três artigos que se 24


completam. 25ª ed. São Paulo: Cortez, 1991. (Col. Polêmicas do nosso
tempo, vol. 4).

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Col. Leitura).

GARRIDO, Joan del Alcàzar. As fontes orais na pesquisa histórica: uma


contribuição ao debate. In: Revista Brasileira de História 25/26. Memória,
História, Historiografia: Dossiê Ensino de História. São Paulo:
ANPUH/Marco Zero, vol. 13 setembro 1992/agosto 1993.

GONÇALVES, Márcia de Almeida. História local: o reconhecimento da


identidade pelo caminho da insignificância. In: MONTEIRO, Ana Maria;
GASPARELLO, Arlette Medeiros; MAGALHÃES, Marcelo de Souza. (Orgs.).
Ensino de História: sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro: Maud X,
Faperj, 2007.

HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO,


Adriane Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,1999.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 7ª ed. Campinas: Editora da


Unicamp, 2013.

MATTOS, Raimundo José da Cunha. Corografia Histórica da Província de


Goiás. Goiânia: Gráfica Editora Líder, 1979.

NADAI, Elza. O ensino de história no Brasil: trajetória e perspectivas. In:


Revista Brasileira de História 25/26. Memória, História, Historiografia:
Dossiê Ensino de História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 13
setembro 1992/agosto 1993.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades


imaginárias. In Revista Brasileira de História nº 53. Porto Alegre: Editora
da UFRGS. Vol. 27, junho/2007.
25
SOUZA, Margareth de Lourdes; ZANETTI, Paulo (Coordenação Científica).
Relatório Final. Programa de Resgate do Patrimônio Arqueológico,
Histórico e Cultural: Projeto Chapada. Mineração Maracá Indústria e
Comércio S/A. Alto Horizonte-GO, 2004.
ENSINO DE HISTÓRIA E ESTÁGIO:
PERCURSOS DE UMA EXPERIÊNCIA
Antonio Alves Bezerra1

1
RESUMO
O artigo analisa experiências desenvolvidas nas disciplinas Prática de Ensino de História
e Estágio Supervisionado II e III, tendo como objetivo a motivação de estudantes
universitários à docência do ensino de história na educação básica. Tal prerrogativa
evidenciou a conexão entre escola e universidade, apontando para o fortalecimento da
profissão docente. O uso de projetos com eixos temáticos no ensino de história
potencializou a interdisciplinaridade do ensino nas escolas e fez notar o uso de novas
técnicas e linguagens na problematização das aulas de história. As atividades
realizadas no âmbito das escolas atenderam os objetivos iniciais, levando os
estudantes estagiários a testarem os conhecimentos adquiridos na academia nos
espaços escolares, levando-os a saborearem os primeiros momentos da docência.
Palavras-Chave: Docência, Projeto, Eixo-temático.

ABSTRACT
This article assays the experiences developed in the disciplines Practice of Education in
History and Supervised Internship II and III, which objective is to motivate the students
of universities to the teaching in the education of History in basic education. This
prerogative evidenced the connection between school and university, preparing
students to profession and teaching. The practice of the projects with thematic lines in
the education of History allowed the interdisciplinarity of the education this discipline
in the schools and as result was possible to perceive the use of new techniques and
languages in the questioning in History classes. The activities realized in the schools
served to initial objectives, which made intern students to test their know how
obtained in the university and in the school spaces, taking them to savor the first
moments of teaching.
Keywords: Teaching, Project, Thematic line.

1
Dr. em História – PUC/SP; Docente do curso de História da UFAL
Início de uma conversa...

O presente texto se configura a partir de interpretações das


experiências construídas nos meandros da mediação de duas disciplinas
do curso de graduação em História da UFAL: Prática de Ensino de História
2
e Estágio Supervisionado II e III, ao potencializar o desafio de motivar
jovens estudantes universitários aspirantes ao “ofício de historiador”,
Marc Bloch (2001). Ao iniciarmos os trabalhos das disciplinas observamos
que parte dos protagonistas do texto foram estudantes dos sextos e
sétimos períodos do curso de graduação em História da Universidade
Federal de Alagoas no ano de 2014.
Ao assumir a mediação das disciplinas - uma no primeiro semestre
(2014) e a outra no segundo semestre, sabíamos dos desafios que
enfrentaríamos ao buscar um diálogo entre a universidade e a escola
pública, notando-se que os aspirantes à docência na educação básica para
essa disciplina, de um jeito ou de outro já haviam passado ou estavam
experimentando os primeiros momentos da docência. Outros, porém,
estavam apenas matriculados em disciplinas regulares da formação inicial.
Notadamente, deve-se observar que estes estudantes, além de
estarem vivenciando os primeiros momentos da docência, também já
haviam estado na condição de estagiários nas escolas quando cursaram a
disciplina de Prática de Ensino de História e Estágio Supervisionado I.
Na oportunidade buscamos realizar uma avaliação diagnóstica
acerca das inquietações dos futuros “professores pesquisadores” (TARDIF,
2012) tentando apreender qual seria o desejo destes jovens frente às
disciplinas que lhes eram apresentadas. Dessa maneira, pareceu-nos que
parte dos futuros docentes não manifestava sentido algum com a
experiência até então vivenciada nas escolas quando ocorreu a primeira
etapa de sua formação (Estágio I).
Ao apresentarmos as disciplinas, explicitou-se na fisionomia dos 3

aspirantes à docência algumas inquietações: “mais cem horas de estágio,


mais planilhas a serem preenchidas, mais tempo perdido, mais
relatórios...”! Questões como estas são fáceis de serem ouvidas e
identificadas em qualquer ambiente universitário quando se trata de
estágios supervisionados para a docência na educação básica.
Antes de expor os planos de ensino das respectivas disciplinas e os
referenciais teóricos que seriam adotados como eixos norteadores das
mesmas, perguntei-lhes a respeito do que foi observado nas escolas no
primeiro momento do estágio: Que recordações tinham daqueles
momentos? O que lhes deixou inquietos face às múltiplas práticas
desenvolvidas nas escolas pelos docentes e técnicos alocados naqueles
espaços? As informações ali colhidas poderiam ser utilizadas como
referências para melhorar técnicas e procedimentos metodológicos de
ensino e pesquisa no ensino de história? E os conflitos no âmbito da
unidade escolar, como poderia ser materializado em objeto de pesquisa
para o ensino de história? Alguns silêncios se fizeram notar, mas também
múltiplas respostas foram tecidas e justificadas naquele instante.
Na ocasião indagamos aos estudantes matriculados nestas
disciplinas o que gostariam de fazer nas escolas e/ou na sala de aula
(reportando-nos ao espaço da universidade) nesta segunda e terceira fase
de sua formação “teórico e prática”, para usar a expressão de Pimenta
(2012).
A maioria dos estudantes assinalou que “gostaria de aprender a
preparar e ministrar aulas de história na educação básica”! Segundo eles,
até aquele momento de sua formação não haviam aprendido como 4

preparar aulas. Perguntamos quem já exercia à docência de história ou de


outros componentes curriculares do currículo básico? Alguns deles se
manifestaram salientando que já atuava como docente, não
necessariamente ministrando a disciplina de história, mas não se sentiram
encorajados para expor a sua prática cotidiana em sala de aula. Mesmo
sem a formação inicial concluída o docente traz consigo múltiplas
experiências, inclusive de professores que estiveram presentes em suas
vidas desde as séries iniciais. Nesse aspecto cabe observar que

Um professor raramente tem uma teoria ou uma


concepção unitária de sua prática; ao contrário, os
professores utilizam muitas teorias, concepções e
técnicas, conforme a necessidade, mesmo que
pareçam contraditórias para os pesquisadores
universitários. Sua relação com os saberes não é a
busca de coerência, mas de utilização integrada no
trabalho, em função de vários objetivos que procuram
atingir simultaneamente (TARDIF, 2012: p.263).

O autor descortina a hipótese de que no cotidiano da sala de aula


muitos saberes são mobilizados por parte dos professores que mediam as
atividades didáticas. Cada aula é única. Sabe-se que o professor, além de
ser um mediador entre o conhecimento e o aluno na disciplina, é,
sobretudo, um mediador de conflitos. Por essa razão, muitas dificuldades
se somam no momento de compreender e escrever acerca de suas
práticas, pois estes se tornam sujeitos de múltiplas ações ao assumirem
uma sala de aula.
Tardif (2012: p.263) entende que o professor da educação básica 5

“atinge simultaneamente diferentes tipos de objetivos na sala de aula”,


observando que este monitora os grupos de estudantes, motiva-os, leva-
os à concentração no desenvolvimento das mais variadas atividades
propostas, ao mesmo tempo em que atribui atenção individualizada a
estudantes com dificuldades de aprendizagem; implementa atividades e,
simultaneamente, debruça-se acerca da progressão das mesmas junto aos
estudantes das mais variadas séries/anos, buscando explicar aos sujeitos
envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, de forma
individualizada e/ou coletiva, promovendo a compreensão e
aprendizagem dos estudantes nos múltiplos estágios de formação nos
quais se encontram.
O autor explicita que a postura profissional do docente da
educação básica nos faz compreender que essa trama que se tece em
cada aula no espaço escolar é muito complexa de ser explicada sob a
perspectiva dos próprios professores da educação básica e às vezes pelos
próprios especialistas em âmbito universitário.
Recuperando o espaço da trama em que se teceram as atividades
desenvolvidas pelas disciplinas citadas anteriormente, consideramos
muito sério assumir uma sala de aula antes da conclusão da formação
inicial, mesmo compreendendo as dificuldades financeiras de cada um dos
professores que estão na condição de estagiários. Sinalizamos, também,
que muitas surpresas poderiam se configurar nessa trajetória prematura
da profissão, que dificuldades poderiam ser somadas a essa atuação
acelerada da docência, podendo até ocasionar a desistência da profissão,
pois muitas vezes os estudantes ainda não apresentam discernimento dos 6

ingredientes que circundam a cultura escolar e, sobretudo, na sala de


aula: conflitos, tensões e embates com a comunidade interna e externa
que, na maioria das vezes, não são de sua responsabilidade, mas de um
conjunto de questões que se imbricam nos sistemas de ensino – que se
apresentam pouco efetivos do ponto de vista político, econômico e social.
Apontamentos trazidos por Pimenta (2012: p. 43) são categóricos ao fazer
notar que

“No estágio dos cursos de formação de professores,


compete às instituições formadoras possibilitar aos
futuros professores a compreensão da complexidade
das práticas institucionais e das ações aí praticadas
por seus profissionais como alternativa no preparo
para a sua inserção profissional”.

Ancorado a essa reflexão, ponderamos que a docência é uma das


poucas profissões que permite ao profissional assumir responsabilidades
do cargo antes mesmo do término de sua formação inicial, especialmente
em estados com déficit de profissionais da educação, como é o caso de
alguns estados das regiões Norte e Nordeste do país.
Com isso, experiências metodológicas de ensino de história são
postas em prática por estes jovens com pouca eficiência na sala de aula do
ponto de vista pedagógico. Destaque-se o uso dos manuais didáticos de
forma generalizada, a solicitação de resumos dos resumos trazidos pelos
manuais didáticos, a análise descritiva de algumas imagens e outras
práticas que pouco colaboram para uma aprendizagem significativa do
ensino de história. 7

Partindo das inquietações dos futuros e (alguns já professores da


educação básica), buscamos trazer a lume a proposta de trabalho
elaborada pela CENP/SP com assessoria dos professores Marco Silva e Déa
Fenelon Ribeiro nos anos oitenta, no estado de São Paulo, ao encorajarem
os docentes daquela rede de ensino a trabalharem eixos temáticos no
ensino de história nas salas de aulas.
O objetivo foi discutir alguns autores que dentre outras questões
tratassem das interfaces do ensino de história na educação básica numa
perspectiva construtivista, fazendo-nos distanciar das práticas positivistas
que tendiam focar no currículo de história um modelo de ensino
direcionado à “memorização, repetição, monólogo do professor como
espaço propício para a ideia de saber pronto e acabado, restando a esse
professor apenas a oportunidade de transmitir o conhecimento”, segundo
Stephanou (1998: pp.19-20).

Eixos temáticos: algumas possibilidades

Ao serem provocados pelos autores debatidos na universidade


tornou-se visível que ser professor de história não era tão fácil quanto
parecia ser! Mas, mesmo sabendo dos desafios, os estudantes
demonstraram confiança no trabalho proposto pelas disciplinas e
buscaram, junto com o mediador, a superação das dificuldades.
Ao procurar o professor orientador de estágio in loco para
formalizar a segunda etapa das atividades “teórica e prática”, os
estudantes não foram mais com “a cara e a coragem” para formalizar a 8

referida solicitação. Foram com uma proposta de intervenção nos planos


de ensino dos professores regentes que lhes orientariam na condução das
aulas. Com isso evidencia-se uma troca: ensina-se e aprende-se, segundo
Freire (1996). Tal prática faz notar que

O estágio, ao contrário do que se propugnava, não é


atividade prática, mas teórica, instrumentalizadora da
práxis docente, entendida esta como atividade de
transformação da realidade. Nesse sentido, o estágio
curricular é atividade teórica de conhecimento,
fundamentação, diálogo e intervenção na realidade,
esta, sim, objeto da práxis. Ou seja, é no contexto da
sala de aula, da escola, do sistema de ensino e da
sociedade que a práxis se dá (PIMENTA, 2012: p.45).

Percebe-se que a disciplina Prática de Ensino de História e Estágio


Supervisionado pôde proporcionar aos estudantes da Licenciatura em
História da UFAL a oportunidade de aprender a construir um plano de
trabalho e, a partir de então, atentar-se aos procedimentos a serem
adotados na elaboração e regência de uma aula de história no âmbito da
educação básica, entendendo que “o saber da história é possibilidade e
não determinação” Freire (1996, p.85).
Na sequência, recorremos ao texto de Maria Elizabeth B. de
Almeida, intitulado “Desafios à educação: o trabalho com projetos”
(2001). A autora evidenciou algumas motivações que nos levou ao desafio
de trabalhar com projetos na educação básica e nos fez pensar de forma
efetiva na utilização de eixos temáticos na elaboração das aulas de 9

história. A ideia de projeto-aula teve como premissa favorecer o


estudante no sentido de buscar

“examinar criticamente a sociedade, além dos


conteúdos que abordam questões do presente,
considerando suas experiências cotidianas e
motivando-o à construção de um relacionamento
ativo e crítico com o saber, negando o conhecimento
como verdade absoluta e acabada” (BASSO, 2001,
p.43).

Face as questões trazidas pelo excerto acima e motivado por todo


um aparado teórico e metodológico, os estudantes matriculados nessas
disciplinas puderam experimentar e socializar em plenária seus avanços na
elaboração e implementação de aulas utilizando-se de projetos. Por outro
viés, notou-se que parte dos estudantes ainda tinham dificuldades em
conceituar fontes históricas e linguagens para o ensino de história na
educação básica. Apresentavam de certa maneira um discurso bastante
arraigado ao afirmar que eram eles (estagiários, futuros docentes) que
levariam o conhecimento até os estudantes.
Foi comum ouvir nas aulas falas como: “ser professor é muito difícil
hoje em dia, porque na hora que vamos transmitir o conhecimento de
história os alunos não dão a mínima para nós, professores”!
Noutra perspectiva, configurou-se nas representações dos
estagiários a falácia acerca dos “alunos-problemas, aqueles indisciplinados 10

que não queriam nada com a vida e que só iam para a escola infernizar
quem queria aprender e os professores que queriam ensinar”, fala esta
reproduzida na maioria das vezes pelos professores da educação básica,
marca da indignação dos docentes atualmente face as precárias condições
de trabalho.
Portanto, em alguns excertos de relatos dos estagiários emanaram
os desafios enfrentados por estes ao longo das atividades, mas se fizeram
presentes também alguns avanços e algumas possibilidades no que
concerne à proposta apresentada pelas disciplinas. Destaca-se que não é
pretensão do texto exaltar a proposta das atividades realizadas pelas
disciplinas de estágios, mas se faz necessário assinalar a importância de se
retomar a proposta em eleger eixos temáticos como possibilidades de
efetivar o ensino de história buscando descortinar caminhos que
promovam uma melhor compreensão do porquê estudar história?

Em virtude dos fatos mencionados no relatório,


entendemos que o estágio quando bem orientado
proporciona um grande valor de campo, uma vez que
precisamos ter essa experiência de campo antes
mesmo de alçarmos o nosso espaço como professores
titulares. A relação que tivemos com os alunos serviu
de grande experiência para as futuras oportunidades
que teremos na docência (Estagiários A e B, VII
período do curso de História, 2014).

Em um segundo trecho de relato, explicita-se que

11

O estágio nos proporcionou experiências muito


valorosas, pois pudemos perceber na prática a
importância de ensinar história de forma mais
dinâmica, atraindo a atenção dos alunos com novas
metodologias de ensino, fazendo com que eles, acima
de tudo, interagissem com a gente, professores.
Pudemos perceber que apesar das precariedades do
ensino público é possível diversificar a forma de se
ensinar história, possibilitando a valorização da
disciplina por parte dos alunos. O projeto foi concluído
com êxito. Foi uma grande satisfação ter realizado
esse projeto e ter saído com a convicção de estar no
caminho certo, de ser um professor de história
(Estagiários C e D, estudantes do VII período de 2014).

Para um terceiro grupo de trabalho, evidenciou-se que

A experiência com o projeto-aula foi muito proveitosa


para todos os lados, a escola ganhou com a aplicação
do projeto um novo gás nas atividades planejadas por
nós. A professora regente teve a oportunidade de
conhecer novas técnicas para implementar novas
metodologias de ensino no sentido de facilitar o seu
trabalho. Os alunos, além de aprenderem de uma
forma dinâmica, ficaram mais estimulados a estudar e
buscar a aprender. Por fim, nós, estagiários, ficamos
muito contentes em participar da rotina de classe;
aprender e ensinar de forma coordenada foram
aspectos que nos deixaram cientes de que a sala de
aula é um desafio constante, mas que pode ser
driblado com planejamento, técnica e motivação
(Estagiários E, F, G do VII período de 2014).

Enfim, as proposições trabalhadas nesse texto se configuraram


12
como norte de uma prática em sala de aula no curso de formação de
professores de história em nível superior, não sendo discutido nesse
momento o teor dos respectivos projetos nem o conteúdo dos relatórios
apresentados pelos estudantes à disciplina, cabendo a estes e/ou a outros
pesquisadores analisar e discutir os percursos e resultados alcançados
pelos mesmos em formato de textos acadêmicos ou por meio de
pesquisas mais acuradas sobre a temática.

Referências

ABUD, Kátia M. Ensino de História. São Paulo, CENGAGE Learning, 2010.

ABREU, Martha & SOIHET, Rachel (Org.). Ensino de História: conceitos,


temáticas e metodologia. 2ª. Ed., Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2009.

ALMEIDA, Maria Elizabeth B. de. Desafios à educação: o trabalho com


projetos. In: Educação, projetos, tecnologias e conhecimentos. São Paulo,
PROEM, 2001, pp.47-63.

BASSO, Itacy S. As concepções de história como mediadoras da prática


pedagógica do professor de história. In: DAVIES, N. (Org.). Para além dos
conteúdos no ensino de história. RJ, Access, 2001, pp. 33-45.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou Oficio de Historiador. (Tradução


André Telles). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.
FONSECA, Selva Guimaraes. Caminhos da História Ensinada. 3ª. Ed., SP,
Papirus, 1995.

_______________. Didática e Prática de Ensino de História. Experiências,


reflexões e aprendizagens. Campinas, SP, Papirus, 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática 13


educativa. São Paulo, 20ª edição, Paz e Terra, 1996.

MAGALHÃES, Marcelo. História e Cidadania: porque ensinar história hoje?


In: ABREU, Marta & SOIHET, RACHEL (Org.). Ensino de História: conceitos,
temáticas e metodologia. 2ª. Ed., Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2009.

PIMENTA, Selma G. & LIMA, Maria do S. L. Estágio e Docência. 7ª. Ed., SP,
Cortez, 2012.

STEPHANOU, Maria. Currículos de História: instaurando maneiras de ser,


conhecer e interpretar. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 18,
no36, 1998, pp.15-38.

SILVA, Marcos; FONSECA, Selva Guimaraes. Ensinar História no Século XXI:


em busca do tempo entendido. Campinas, SP, Papirus, 2007.

___________. História: o prazer em ensino e pesquisa. 1ª. Ed., São Paulo,


Brasilense, 2003.

TARDIF, M. Saberes Docentes e Formação Profissional. 13ª Ed., RJ, Vozes,


2012.
A RELEVÂNCIA DA HISTÓRIA AMBIENTAL:
O CASO DOS INDÍGENAS NA PROVÍNCIA DO PARANÁ

Cristiane Brand de Paula Gouveia Pasini1


1

RESUMO: Considerando a necessidade de a história produzir discussões relevantes


para a sociedade a partir das reflexões que faz sobre o passado, o presente texto tem
o intuito de levantar questões que dizem respeito ao uso do saber produzido pela
historiografia, a fim de produzir inquietações na sociedade, que possam produzir
mudanças reais e necessárias. Assim, o tema da história ambiental, aliada à reflexão
sobre a construção de uma imagem estereotipada do indígena no Brasil do oitocentos,
nos permite compreender a função social da história e sua responsabilidade de
promover a desconstrução dessas imagens distorcidas que chegaram até o século XXI.
PALAVRAS-CHAVE: História ambiental; Indígenas; Século XIX.

SUMMARY: Considering the need for history to produce relevant discussions to society
from the reflections which is about the past, this text is intended to raise questions
concerning the use of the knowledge produced by the historiography in order to
produce concerns in society, that can produce real and needed changes. Thus, the
theme of environmental history, combined with the reflection on the construction of a
stereotypical image of the Indian in eight of Brazil, allows us to understand the social
function of history and its responsibility to promote the deconstruction of these
distorted images that came to the twenty-first century.
KEYWORD: Environmental History; Indigenous; XIX century.

Como historiadores vez ou outra nos deparamos com uma questão


que nos inquieta e nos faz refletir sobre nosso ofício: qual a relevância que
a história tem para a sociedade, para mudar rumos e transformar
pensamentos e convicções? E afinal, é essa sua função ou interesse? Deve
o historiador se preocupar com tal questionamento?

1
Mestranda em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Licenciada em História pela
Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória, campus Unespar.
É de fundamental importância para nós compreendermos o alcance
de nossas pesquisas. Não é função da história construir cidadãos, ainda
que também o faça, mas não podemos negar que a história, ao refletir o
passado, nos proporciona a possibilidade de mudar o olhar sobre
determinadas posturas políticas, religiosas, sociais, culturais e tantas 2

outras que possuímos. Sim, a história tem relevância, tem sentido, tem
razão. Voltar ao passado permite compreender o hoje. Mas fiquemos
atentos, “não há pior desgaste que o da erudição, quando se exerce em
vão, nem arrogância mais deslocada que o orgulho da ferramenta que se
considera o meio em si” (BLOCH, 1993, p.79). O conhecimento pelo
conhecimento pode saciar a necessidade de alguns intelectuais e apenas
isso. Não pode ter relevância social e nem se preocupa em ter. Mas se o
conhecimento se destina a abrir discussões, caminhos e mentes e
proporcionar reflexão, transformação, mudança, aí sim tem sentido para a
vida da sociedade. É egoísmo demais produzir pesquisa apenas para
satisfazer nossa curiosidade e nosso ego sem que isso sirva pra alguma
coisa de fato.
Como defende Bloch, não pode “negar-se que uma ciência parece
sempre ter algo de incompleto se não for capaz, mais cedo ou mais tarde,
de nos ajudar a viver melhor” (BLOCH, 1993, p.16). Compreender o
passado nos permite nos posicionarmos perante o presente com firmeza e
nos abre um leque de novos horizontes. Rüsen também atesta que “o
passado oferece a experiência de que necessita para orientar-se no
presente e para desenvolver uma sólida perspectiva de futuro. Essa
experiência faz sentido quando pode ser utilizada para a configuração da
própria vida” (RÜSEN, 2001, p.10). É nesse sentido que pensamos o
grande valor que apresenta a história ambiental, que longe de ser
confundida com o ambientalismo, busca promover debates de relevância
para nossa sociedade que se encontra carente de discussões que
acarretem em verdadeiras e profundas transformações no campo 3

ambiental.

Cabe aqui ressaltar que a história ambiental não se ocupa apenas


das reflexões a respeito nos impactos causados na natureza pela ação
humana, visto que nós somos parte dessa natureza e a história ambiental
compreende a existência para além do homem na história. Assim, toda a
história é também ambiental, pois não estamos separados de nosso
habitat, de nossas relações com o meio e muito menos com o universo.
Então pensar o caráter social da história ambiental implica em
compreender que ela reflete sobre os desastres ecológicos que
presenciamos, mas não apenas isso, ela reflete sobre o ser humano e
todas as redes de relações dele com o seu meio.

Assim como a história de maneira geral sempre provoca algum tipo


de inquietação, a área da história ambiental nos alerta primeiramente
sobre um erro comum que esteve e ainda está presente na historiografia,
o de desconsiderar o meio em relação ao acontecimento, ao fato
histórico. Isso impede que observemos uma maior amplitude desses fatos
e percamos a orientação mais primordial para nossas pesquisas, a do
espaço em que estão inseridos todos os enredos da história. Nos
preocupamos em delimitar tempo e espaço, mas dificilmente
relacionamos esse espaço com nosso tema, pensando as implicações que
ele trás para a pesquisa e o quanto influência no desenrolar dos fatos. Nós
“fundimos nosso trabalho com a terra, nossas forças com suas forças, tão
profundamente que não é mais possível recuarmos e dela separarmo-nos”
(WILLIAMS, 2011, p.112). O homem, a terra, os demais seres vivos, todos 4

são personagens da história.

Uma avalanche pode mudar todo o rumo da história de um grupo


de aventureiros, o clima pode definir o que vai fazer parte da culinária de
um país, o frio pode ser empecilho na guerra e a retirada de um
determinado povo de uma terra pode ser o início de uma revolta. Os
fatores naturais não são apenas pano de fundo, eles modificam,
interferem no curso das histórias. Eles passam a ser considerados então
protagonistas e não apenas parte do cenário. Se considerarmos que a
história do cosmos tem pelo menos 16 bilhões de anos, parece arrogância
colocarmos o homem no cerne da história. Tão recente é a aparição do
homem na terra e ele acaba sendo o centro das atenções. Mas isso até
pouco tempo atrás, afinal, a história ambiental tem trazido a tona essas
discussões.

Parece que nos acostumamos com a ideia de que a natureza é tudo


o que existe lá fora e de que nós não fazemos parte dela. Então falar de
natureza soa sempre como conversa de gente que faz parte do Green
Peace. Infelizmente nosso discurso político foi esvaziado dessa
preocupação e acabamos comprando essa ideia como natural, algo
comum a todos. Preferimos excluir a história dessa briga e deixamos a
cargo dos ambientalistas. Mas se somos a natureza, porque essa rejeição
pelos assuntos que dela se referem?

No mundo medieval o homem concebia a natureza como


providencia divina e assim sendo, tudo o que era feito por Deus era bom.
5
No mundo moderno o homem que cada vez mais se distancia da religião,
acaba se distanciando também da natureza. Para justificar o desejo
desenfreado de tentar dominá-la, o que se fazia necessário para que
reinasse o “progresso”, o homem passou a considera-la diferente dele, e
assim, passível de submissão. “A natureza cada vez mais estava “lá fora”, e
era natural remodelá-la para uma necessidade dominante” (WILLIAMS,
2011, p.107). Logo, tudo o que era associado à natureza passou a ser
compreendido como selvagem, bárbaro, um risco a segurança dos
“civilizados”. A natureza, da qual o homem pensava não fazer mais parte
passava a ser colonizada e degradada até chegar ao que hoje vemos.

Partindo então do entendimento de que fomos ensinados a nos ver


separados da natureza, podemos igualmente entender que podemos
ensinar as pessoas a se enxergarem como parte da natureza de novo.
Talvez esse seja um dos objetivos da história, por que não? Reconstruir,
reformar pensamentos. Podemos ponderar então a possibilidade de a
história e em específico aqui em nossa discussão, a história ambiental,
poder alertar o mundo sobre o uso tortuoso e exagerado dos recursos
naturais, e que esse alerta surta efeitos na prática e o processo de
destruição para o qual caminhamos possa ser parado ou desacelerado?
Sim. Se o objetivo da história é antes de tudo fazer a sociedade pensar e
entendermos quem somos e para onde vamos, me parece razoável que
busquemos acordar o mundo para esse tema.

Não esqueçamos, porém, que a história tem outras funções ou


qualidades, como de divertir ou distrair, de proporcionar o conhecimento
6
de certos fatos e saciar nossa curiosidade, de nos proporcionar conhecer
nosso passado enquanto nação e a formação de nossas tradições, dentre
tantos outras. Se somente pensássemos o quanto o conhecimento tem
um enorme poder sobre nossas vidas e sobre nossas decisões já seria o
bastante para que a história estivesse justificada. Mas ela vai além e nos
abre um mundo de novas percepções necessárias para nosso crescimento
intelectual e também humano.

Nos voltemos agora para o exemplo dos indígenas na província do


Paraná. O que a história ambiental tem a nos revelar sobre esse tema que
seja importante para repensarmos a figura do indígena hoje e como a
sociedade o considera? Reflitamos a partir de alguns relatórios de
presidentes da Província do Paraná que falam sobre o índio e como
civilizá-lo. Primeiramente temos que ter em mente que os indígenas
foram colocados ao lado da natureza como sinônimo de barbárie, e então
também se fazia preciso, segundo a concepção moderna, combatê-los. As
teorias mundiais relacionadas ao indígena tratavam de considerá-lo um
selvagem incivilizado, que seria alvo das inúmeras “boas ações” daqueles
que se consideravam civilizados.

Essa ideia de combate ao selvagem também esteve próxima das


teorias raciais modernas de combate ao negro. Ásia e África, e depois o
Brasil estavam fadadas ao fracasso por conta de sua população vista como
inferior culturalmente. Até mesmo a posição geográfica dos continentes,
abaixo da Europa, servia como justificativa para a pretensa inferioridade
deles. “Sul para sempre” (SERRANO, WALDMAN, 2010, p.23) é o que
pensavam os demais. O mesmo ideal de civilização que esteve enraizado 7

no contexto de neocolonização da África e Ásia, que considerava o


homem branco como superior, cuja missão era civilizar o mundo que não
compreendia essa realidade, também esteve presente no Brasil Imperial
que buscava a qualquer custo controlar e catequisar os indígenas que
ainda restavam em nosso solo. Não iremos trabalhar o caso do negro, mas
fica aqui evidente que ele também foi alvo dessas teorias e combates, e
até em maior grau e intensidade pelo mais óbvio, o grande número de sua
população, que excedia em muito a dos índios no século XIX. Assim sendo,
indígenas e negros estavam sob os olhos atentos do Império que, através
dos presidentes de Província e de tantas outras autoridades, cuidava para
oprimi-los e vigiá-los para garantir a tranquilidade pública.

Um dos princípios norteadores desse controle efetivava-se na


catequese, pois a religião, no caso a Igreja Católica, estaria imbuída da
função de apresentar a sã doutrina para aqueles cujas religiões eram
vistas como heresia e paganismo. Os Inacianos no Brasil participavam dos
“descimentos”, onde retiravam os índios de suas aldeias originais para
fazerem parte de um aldeamento colonial, onde, se acentuava a
“dessocialização dos indígenas, fazendo-os permeáveis à catequese”
(ALENCASTRO, 2000, p.181). As práticas indígenas que tanto impactavam
a moral católica eram fortemente combatidas. Gilberto Freyre relata que
as danças e rituais eram censurados e os corpos controlados para não
darem abertura à atmosfera de sexualidade que os padres considerassem
contrárias às práticas da igreja. Em suas palavras, “procuravam destruir,
ou pelo menos castrar, tudo que fosse expressão viril de cultura artística 8

ou religiosa em desacordo com a moral católica” (FREYRE, 1992, p.168).


Suas culturas eram assim reprimidas com o intuito de que fossem mais
facilmente dominados.

No relatório da província do Paraná de 1879, na página 76, o


presidente Oliveira Menezes ressalta a importância que eles viam na
catequese dos índios e para que fim.

Não é ainda lisongeiro o estado deste importante


ramo de serviço na província, apesar dos louváveis
esforços e verdadeira abnegação dos encarregados
dele. (...) Apezar de insafficientes como são os
recursos com que contam esses funccionarios para
attrahir á vida civilisada o elevado número de índios
que habitam as mattas, os resultados até hoje obtidos
comprovam que o serviço de catechese não tem sido
descurado, e essa verdade é attestada pela população
indígena que em estado adiantado de civilisação,
habita os aldeamentos e os municípios de Guarapuava
e Palmas.

A ideia de civilizar os indígenas esteve presente em diversos


relatórios que tinham o intuito de comunicar ao governo imperial o que
acontecia na Província do Paraná. Nesse aspecto, os índios eram
comumente mencionados numa parte dos relatórios dedicada a eles cujo
subtítulo era “Catechese e civilisação dos índios”. A preocupação era a de
controlá-los a ponto de fornecer informações ao Império do quanto
teriam avançado em relação à desejada civilização dessa população de
índios, cada vez mais reduzida. Para tanto se fazia necessário catequizá-
los, para terem acesso ao que consideravam ser a verdadeira religião, 9

distanciada do que julgavam paganismo e selvageria. Sobre a escravidão


aceita pelo catolicismo no Brasil, Alencastro alega que a toleravam “na
medida em que ela facilitava a catequese. Arrancados das brechas do
paganismo, os negros teriam suas almas salvas no ambiente cristão da
metrópole” (ALENCASTRO, 2000, p.159). O mesmo acontecia com relação
ao escravo indígena do começo da colonização, que depois foi trocado
pela mão-de-obra africana. A dominação sobre eles era justificada com
esse discurso de purificação e libertação da vida bestial que levavam na
concepção dos colonizadores portugueses.

Ainda sobre a civilidade, encontramos no relatório da Província do


Paraná de 1871, na página 17, uma frase que expressa claramente os
esforços para efetivar a tentativa de “salvamento” dos índios. Diz que “se
fornece brindes aos índios que habitam as matas com o fim de chamalos a
vida civilisada”. O plano de ação administrativa provincial compreendia o
fornecimento de utensílios básicos para usarem no cultivo das terras e
chegava até a acontecer em forma de gratificações entregues a caciques
quando realizavam “bons serviços”, como manter suas comunidades
apaziguadas. A exemplo podemos citar o cacique de Palmas, mencionado
no mesmo relatório de 1871, justamente por receber essas gratificações.
Por fim, esse relatório de 1871 nos apresenta ainda mais uma
informação de relevância. O presidente de província Oliveira Lisboa diz
que um grupo de índios havia chegado a Rio Negro e por isso pedia
reforço com a força de guardas nacionais para garantir a segurança e
tranquilidade dos habitantes visto que convinham “evitar os assassinatos 10

e depredações que costumavam por em prática taes selvagens” (p.19).


Mais uma vez se acentua a repressão intencionada por conta de uma
imagem totalmente depreciativa que se tinha da figura do indígena.

Encontramos também casos de indígenas que se tornaram


soldados, o que nos leva a considerar o impacto da dominação portuguesa
na cultura indígena, transformando e aniquilando em alguns sentidos para
aproximá-los cada vez mais da cultura europeia. Cultura essa que inclusive
se diferia tanto da dos indígenas, que tinham uma noção de terra adversa
da imposta pelos portugueses, ligada à propriedade, ao lucro. Levemos
em conta ainda que alguns caciques não apenas se submeteram a esse
domínio como obtiveram vantagens.

Partindo então do entendimento inicial da imagem que se tinha do


indígena na província do Paraná, durante sua existência, desde 1853 até a
instauração da República, em 1889, podemos refletir agora sobre a visão
que se tem do índio hoje em nossa sociedade. Anteriormente vimos que
para justificar sua dominação sobre a natureza, o homem passa a
entender-se separado dela, tornando assim tudo o que é natural,
merecedor de submissão, controle, incluindo-se o indígena. E foi o que
aconteceu. Desde a colonização o número de índios nativos do Brasil foi
drasticamente reduzido, somando-se a ação dos portugueses as doenças
que afetaram esses índios, o grande números de suicídios cometidos por
eles na tentativa de acabar com o cativeiro imposto, as péssimas
condições desse cativeiro e as mortes advindas de enfrentamentos por
parte dos indígenas. 11

E hoje, o que resta da cultura e da população indígena do Paraná?


Vez ou outra vemos um pequeno grupo deles vendendo balaios e cestos
em algum lugar de alguma cidade e temos a ligeira sensação de que eles
são cada vez mais raros. Para muitos dos demais habitantes eles são
invasores, sem terra e incômodos. “O governo que cuide deles” muitos
pensam. Os habitantes originais do Brasil hoje são tidos como errantes,
sem direitos ou mesmo dignidade. Quase absorvidos pela cultura do
dominante, pouco se salvou de suas culturas. Os rituais, a dança, a
tradição quase que acontecem hoje em algumas das poucas reservas que
ainda tentam preservar a cultura indígena, como um chamariz para
turista. Eles usam roupas como dos colonizadores, falam como eles, usam
utensílios e acessórios como eles e até comem o que eles comem. Se um
desses presidentes de Província pudesse reviver hoje, ele certamente diria
que finalmente os índios foram “civilizados”.

Não cabe aqui a discussão do quanto os indígenas se aproveitaram


dos benefícios que a colonização poderia lhes oferecer. A relação do
indígena com o português foi demasiado complexa e específica para
definirmos simplesmente. Obviamente que em algumas situações os
indígenas articularam-se com o poder colonizador. O fato é que qualquer
resistência ou aliança provinda daí não foi suficiente para assegurar a
sobrevivência em massa dessa população. Não podemos perder de vista o
fato de que os indígenas, antes do contato com os portugueses, não
viviam em uma sociedade livre de disputas, guerras, mau uso dos recursos
naturais, rivalidades ou desejo de posse. O que acontece é que a ordem 12

natural do proceder dessas sociedades foi afetada pelo controle português


e disso não se pode fugir.

Por um lado alimentam a imagem do índio como inerte, pobre


coitado que mal sabia o que acontecia ao seu redor. Amante da terra e
assim isento da possibilidade de maltratá-la. Livre de interesses, pacífico,
preguiçoso e fácil de ser conquistado. Por outro lado tentam apresentá-lo
como agente colonizador, interesseiro e quando a mando de Portugal, um
desbravador que entregava sua gente a troco de quase nada. Nem um
extremo, nem outro. O caso do indígena é complexo demais, repito. Nem
apenas os portugueses o corromperam, nem eles apenas se permitiram
corromper. O que realmente nos interessa discutir é o que restou de tudo
isso.

Para Freyre, os indígenas não tiveram “capacidade técnica ou


política de reação à dominação portuguesa” (FREYRE, 1992, P.150).
Quando se deram conta já era tarde demais, pelo menos para a maioria.
Os portugueses se revelaram diferentes dos deuses que os indígenas
pensavam que eles fossem. As mulheres indígenas foram as mães das
primeiras famílias formadas então. Puderam legar ao Brasil pouco de seus
conhecimentos e hoje comemoramos o dia do índio como mais uma
alegoria no ensino, como uma tentativa de amenizar a dor de consciência
coletiva por conta do extermínio dessa população. Comemoramos o que
afinal? A liberdade deles? O poder de manter viva sua cultura? Ou o fato
de que hoje são quase como os colonizadores?
13
Erguemos estátuas aos “desbravadores” portugueses por seus
“grandes feitos” na colonização. Somos ensinados a acreditar que a
colonização tirou do Brasil o ranço nativo e que isso nos tornou civilizados
e aceitos pelo resto do mundo. Os “desbravadores” que mataram,
destruíram e aniquilaram vidas e culturas, são hoje enaltecidos pela
bravura e coragem. O que há de errado aí? A história tem fugido à sua
função primordial de reflexão ou ela não tem se preocupado com essa
questão?

Mais uma vez a história ambiental, que antes de tudo é a nossa


história, sendo que nós somos parte da natureza, vem nos trazer reflexões
como essa a respeito do indígena, do combate a ele, e vai além, pensando
o trato com os recursos naturais, a maneira como o homem se relaciona
com a terra, com a água, com tudo afinal. O olhar da história vai além e
procura nos levar a novas reflexões que talvez, e infelizmente não temos
essa certeza, possam um dia gerar transformações em nossa sociedade a
ponto de que possamos enxergar o indígena numa posição favorável a ele.
Isso não quer dizer que a história ambiental se preocupe em legislar em
prol de manifestações indígenas ou buscar recursos para desenvolver
ong’s e afins, ainda que pudesse. A história tem a necessidade primeira
de ser útil, de ser relevante e isso com certeza essa discussão proporciona.
Ideias podem mudar o mundo.

Vejamos o exemplo de Marlene Cainelli e de seu projeto “Educação


Histórica: iniciando crianças na arte do conhecimento histórico”. Com o
14
intuito de levar documentos para a sala de aula e reconstruir visões que os
alunos tinham, geradas pelo senso comum, ela e sua equipe elaboraram
uma atividade que nos revela muito sobre a imagem do indígena e como
ela pode ser mudada.

A proposta inicial era de pensar sobre a visão que os alunos tinham


sobre os colonizadores, chamamos de pioneiros, em Londrina, no Paraná.
Como é comum, nos livros didáticos, eles eram retratados como
benfeitores que chegaram a região, então despovoada, e que adentraram
a mata e construíram casas e assim ergueram a cidade. Essa visão esteve
presente nas falas dos alunos na primeira parte da atividade. Foi pedido
que eles escrevessem uma carta com aquilo que diriam aos pioneiros se
pudessem os encontrar. Um deles dizia “Eu agradeço aos descobridores
por construírem a cidade e terem feito tudo, derrubado a mata e serem
corajosos” (CAINELLI, 2009, p.129). No geral, todos seguiram a mesma
linha de pensamento.

Depois a segunda parte da atividade se desenvolveu com a análise


de notícias de jornal que se contrapunham. Uma delas dizia que não
haviam pessoas no local e chamava para esse fim e outra apresentava
relatos de viajantes que presenciaram a existência de indígenas no local.
Os alunos tiveram suas concepções a respeito da existência de gente em
Londrina, quando da colonização, confrontadas com os novos olhares
sobre o tema que lhes foram apresentados. Por fim, eles foram
convidados a escrever novamente uma carta para os desbravadores e as
falas mudaram. A exemplo, esse aluno diz “por que mataram os índios e
não viveram com eles dividindo as terras? Hoje é diferente daquele tempo, 15

e os índios ficam pedindo esmolas porque perderam as terras” (CAINELLI,


2009, p.134). Percebemos ao fim da atividade que os alunos e até a
professora, como menciona Cainelli, acabaram reconstruindo a imagem
que tinham dos indígenas e da colonização de Londrina. Isso demonstra
que é possível quebrar com essas visões enraizadas que distorcem tanto a
figura do índio atualmente.

Nossa missão hoje é nos engajarmos na busca pela desmistificação


de estereótipos ainda tão enraizados na sociedade brasileira. A exemplo,
temos o livro “Estudo de problemas brasileiros” de Enjolras Camargo,
onde o autor diz que “os índios misturam as suas crenças primitivas com
as do catolicismo, aceitando certos costumes brancos e até rezando a Ave-
Maria em Tupi” (CAMARGO, 1984, p.23). Devemos ter o compromisso
com a valorização de todas as culturas que compõem a cultura brasileira,
e das demais também. Isso acarreta o cuidado de não considerarmos mais
as crenças indígenas e africanas como primitivas, selvagens.

O Brasil busca uma educação multicultural, onde todas as etnias


sejam compreendidas, mas sabemos que isso ainda está longe de
acontecer. Nas palavras de Moreira,
“no caso específico de nosso país, acreditou-se, um
dia, em democracia racial, em tratamento igualitário
para todos os brasileiros. Os tempos, porém,
destruíram essa doce imagem. Desfeita de vez a
ilusão, saltam aos nossos olhos, ora incrédulos e
revoltados, ora ”anestesiados” , a miséria, o racismo, a
opressão da mulher, os preconceitos contra o 16
homossexual, os abusos contra as crianças, o descaso
com o velho, o desrespeito aos portadores de
necessidades especiais”. (MOREIRA, 2002, p.17)

Ainda há muito que ser feito. Cabe a cada um de nós, professores


de história, buscarmos esse ideal de educação que abranja todos esses
sujeitos históricos, para assim podermos considerar que a história tem
relevância de fato.

Referências:

ALENCASTRO, L.F de. O trato dos viventes: formação do Brasil no


Atlântico Sul. Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

BLOCH, M. Introdução à História. Portugal: Publicações Europa-América


Ltda. 1993.

CAINELLI, M. Educação histórica: o desafio de ensinar História no ensino


fundamental, In: SCHMIDT, M. Auxiliadora/ BARCA, Isabel. (Org.).
Aprender História: Perspectivas da Educaçao Histórica. 1a ed. Ijuí: Unijuí,
2009.

CAMARGO, E. J. de C. Estudo de problemas brasileiros. São Paulo: Atlas,


1984.
FREYRE. G. Casa grande e senzala. Editora Record, 28ª Edição, 1992.

MOREIRA, A.F.B. Currículo, diferença cultural e diálogo. Goiânia, 2002.


Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
73302002000300003&script=sci_arttext.
17
RÜSEN, J. Razão Histórica: teoria da história: fundamentos da ciência
histórica. Tradução: Estevão Rezende Martins. Brasília: Ed. UNB, 2001.

SERRANO, C. WALDMAN, M. Memória D’ África: a temática africana em


sala de aula. São Paulo: Cortez, 2010.

WILLIAMS, R. Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp, 2011.


CARA DE ÍNDIO: DIFERENTES VISÕES SOBRE OS XUKURU-KARIRI
EM PALMEIRA DOS ÍNDIOS
Brunemberg da Silva Soares*
José Adelson Lopes Peixoto (orientador)**
1

RESUMO: O objetivo deste trabalho é realiza rum estudo das diferentes visões e
concepções imagéticas sobre os Xucuru-Kariri do município de Palmeira dos Índios,
analisando a utilização da imagem de um índio “exótico” como atrativo comercial e
turístico, ligado diretamente com a fundação da cidade, ou seja, fazendo referência
aos índios do “passado”, em contraste com a negação dos índios de hoje, bem como
discutir sobre a visão que a população não-indígena tem a respeito dos índios. Ainda,
propõe-se fazer um estudo das peças indígenas expostas no Museu Xucuru e da
estatuária existente em espaços públicos; como continuidades do imaginário local em
relação aos Xucuru-Kariri. Este trabalho será feito a partir de pesquisa de campo,
baseada em entrevistas com moradores da cidade e índios Xucuru-Kariri (aldeados e
desaldeados), Fundamentada em pressupostos teóricos como os de Laraia, Cancline,
Oliveira, Peixoto, Martins, Silva Júnior, Ribeiro, Da Matta, Barros e Silva, que norteiam
o percurso teórico e embasam o diálogo com o trabalho de campo sobre a imagem
que se tem dos índios pesquisados no município.
Palavras-chaves: Estereótipos. Imagem. Índio.

Abstract: The objective of this work is to conduct a study of the different visions and
imagistic concepts on Xucuru-Kariri the city of Palmeira dos Indios – AL (Brazil),
analyzing the use of the image of an Indian "exotic" as a commercial and tourist
attraction, directly connected with the foundation the city, ie, referring to the Indians
of the "past", in contrast to the denial of today's Indians, as well as discuss the view
that the non-indigenous population is about Indians. Still, it is proposed to conduct a
study of the indigenous exposed parts in Xucuru Museum and the existing statues in
public spaces; comocontinuidades local imagery in relation to Xucuru-Kariri. This work
will be done from field research, based on interviews with residents of the city and

* Graduando em História pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL Campus III – Palmeira dos
Índios, membro do Grupo de Estudos da História dos Povos Indígenas – GPI/AL.
E-mail: brunemberg@hotmail.com
**
Historiador e Antropólogo. Professor Assistente na Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL,
Campus III – Palmeira dos Índios. Coordenador do Grupo de Pesquisa da História dos Povos Indígenas de
Alagoas –GPHI/AL. E-mail: adelsonlopes@uneal.edu.br
Xucuru-Kariri Indians (aldeados and desaldeados) Based on theoretical assumptions
such as Laraia, Cancline, Oliveira, Peixoto, Martins, Silva Junior, Ribeiro, Da Matta,
Barros e Silva, who guide the theoretical route and base the dialogue with the field
work on the image that one has of the Indians surveyed in the county.
Keywords: Stereotypes. Exoticism. Image.

Considerações Iniciais

Palmeira dos Índios é um município do agreste alagoano, distante


cerca de 130 km da capital, Maceió, fazendo divisa com o estado de
Pernambuco ao norte e com a região do sertão alagoano a oeste. Sua
economia é baseada na agricultura familiar, em a agropecuária
concentrada nas mãos de grandes latifundiários. Conhecida como a
"Princesa do Sertão", já teve como prefeito o famoso escritor brasileiro
Graciliano Ramos.
Em meados do século XVIII, as terras do Município constituíam-se
de um aldeamento dos índios Xukuru, localizado entre matas, serras,
brejos e palmeirais. Por isso, em apologia a abundância de Palmeiras e de
seus primeiros habitantes, deu-se o nome da cidade; Palmeira dos Índios.
Um dos pontos cruciais da história deste município está no ano de
1770, quando um padre português chamado de Frei Domingos de São José
chegou ao aldeamento com a missão de converter o povo que ali vivia.
Três anos depois, o religioso obteve de Dona Maria Pereira Gonçalves,
proprietária da sesmaria de Burgos, uma doação de meia légua de terras
para a edificação de uma capela, dedicada ao Senhor Bom Jesus da Boa
Morte. Posteriormente, o padroeiro foi substituído por Nossa Senhora do
Amparo, quando da mudança de local da igreja matriz.
Em 1798, foi criada a freguesia de Palmeira dos Índios, e à medida
que o povoado crescia os homens brancos iam delimitando posses e
tirando dos índios um espaço que sempre fora seu. A cerca tirou mais do 3

que o direito ao uso livre do território, tirou o direito a um lugar de


pertença, um lugar com o qual os índios já haviam desenvolvido um
sentido de territorialidade.
No ano de 1821 os índios pediram ao Presidente da Província das
Alagoas, um pedaço de terra onde pudessem trabalhar. No ano seguinte,
foi determinada a demarcação dessas terras, mas tal direito nunca lhe fora
bem assegurado, os conflitos por terras passaram a fazer parte da história
do município, envolvendo índios e fazendeiros locais.
Os antigos telhados de palhas deram lugar às telhas de barro
(alvenaria), pois muitas malocas foram incendiadas por fazendeiros na
tentativa de expulsar o índio de sua casa. O conflito pela terra ia sendo
cada vez maior, e com a instauração da Republica o aldeamento foi
extinto, o índio agora não tinha mais direito a terras, continuava sendo
perseguido e sofrendo ameaças, dizer-se índio era pedir para ser morto ou
sofrer retaliações.
Neste momento surge à necessidade de esconder-se, tornar-se
invisível, ocultar seus costumes, para assim poder sobreviver, levando a
uma suposta inexistência de índios na região. Porém, a ‘inexistência’ de
índios (silenciados), além de fazer com que estes se adaptassem à
sociedade no seu entorno, foi usada com argumento nos discursos dos
fazendeiros/posseiros dessas terras como fator descaracterizador da
existência de índios nessa região.
Com o passar dos anos, os indígenas foram perdendo espaço e voz
na sociedade envolvente, devido ao discurso de sua inexistência e ao
imaginário de um índio exótico, literário, propagado nas mentes da 4

população não indígena. Surge então a necessidade de uma afirmação


étnica entre os Xukuru-Kariri.

O Real e o Imaginado: o índio no contexto atual

Grande parte da visão estereotipada que algumas pessoas têm


atualmente sobre os índios é resultado de discursos e ideologias criadas
durante a colonização brasileira. Já nos primeiros contados entre os
europeus e os ‘exóticos’ nativos das terras americanas iniciou-se a
construção de uma imagem distorcida e ofuscada dos povos indígenas das
terras que constituiriam o Brasil.
Ao analisar o quinto centenário da chegada dos portugueses às
terras que formariam o Brasil, discutindo as implicações que tal data traz
consigo, os significados e as discussões, John Manuel Monteiro afirma que
“*...] ainda sabemos pouco sobre a história desses povos e, pior, que o
imaginário brasileiro continua povoado de graves distorções e
preconceitos a respeito dessas populações.” (MONTEIRO, 1999, p. 248)
É justamente na colônia, com as missões e os aldeamentos, que o
discurso justificador do europeu, ancorado nas distorções citadas por
Monteiro, começa a ganhar força, passando, para a sociedade, imagens
distorcidas sobre o índio. Citados na história oficial sempre a partir de
alguma denominação simplista e reducionista, os índios foram excluídos
da historiografia ‘oficial’, salvo em momentos que interessassem à
exaltação do mito da miscigenação, sendo considerados povos que
caminhavam para o desaparecimento. 5

Incompreendidos e desrespeitados, os índios são expulsos de suas


terras e negados como agentes sociais e históricos ativos. Em Palmeira dos
Índios não foi diferente, com a chegada de não-índios à área que
atualmente constitui a cidade, iniciou-se o processo de invasão e tomada
das terras dos Xukuru-Kariri, que estavam aldeados. Despojados de suas
propriedades, quando da extinção dos aldeamentos (1889), os índios de
Palmeira, “desceram” das serras onde tradicionalmente habitavam para a
planície, lugar onde os não-índios haviam ocupado.
Todavia, mesmo sendo obrigados a viver em um ambiente que
lhes era hostil, onde a prática de suas tradições resultava em preconceito
e perseguição, os Xukuru-Kariri conseguiram sobreviver e ressignificar
seus costumes em um meio em que suas vestes sagradas, seus rituais e
seus maracás eram vistos com indiferença, sendo os índios acuados e
forçados a viver em um estado de silenciamento (invisibilidade), que
consistia em não transparecer o pertencimento a um grupo étnico
‘diferente’, a fim de diminuir ou mesmo acabar com a perseguição. (SILVA
JÚNIOR, 2013)
Somente na primeira metade do século XX a questão dos Xukuru-
Kariri passa a ser discutida e os índios começam a ‘ressurgir’, lutando por
seus direitos. Com o envio do sertanista Crispim Selestino, a pedido do
Marechal Rondon, para analisar as condições de vida dos índios do
município de Palmeira, nesse momento foi realizada uma reunião que
contou com a presença de 450 índios.
Assim, a estratégia do silenciamento é eficaz na sua tarefa de
preservar e transmitir memórias, bem como para a rearticulação de 6

práticas e costumes num meio que agride a diferença, ou seja, o


silenciamento é uma forma de sobrevivência das lembranças e das
tradições, por meio da continuidade de difusão através das gerações, que
reelaboram seus costumes e transmitem suas lembranças e memórias. A
respeito disso Michael Pollak afirma que:

O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao


esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil
impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao
mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as
lembranças dissidentes nas redes familiares e de
amizades, esperando a hora da verdade e da
redistribuição das cartas políticas e ideológicas.
(POLLAK, 1989, p. 5)

O processo de ‘emergência étnica’ dos Xukuru-Kariri de Palmeira


dos Índios ganha força em 1952, a partir de tentativas do Cacique Alfredo
Celestino e do Mons. Alfredo Dâmaso em formar um aldeamento,
juntamente com a ajuda do SPI, destacado na figura do Marechal Candido
Rondon, e de índios do Paraná e de outras localidades, os índios de
Palmeira conseguem adquirir a propriedade da Fazenda Canto, e fundar a
primeira aldeia Xukuru-Kariri do período posterior à invasão de seu
território tradicionalmente ocupado.
Desse momento em diante, os Xukuru-Kariri se organizariam em
retomadas territoriais no local que antes lhes pertencera, visto que as
terras que possuíam não eram suficientes para o sustento de todos. 7

Aconteceram cinco retomadas territoriais, sendo a última no ano de 2008,


esse processo tem contribuído para o acirramento do conflito territorial
entre posseiros e índios que é evidente no município de Palmeira dos
Índios, e consequentemente para a disseminação de discursos de negação
do índio na região.
Destarte, como dito acima, embora a invisibilidade tenha sido uma
estratégia muito útil no que tange à reelaboração e a tradução (POMPA,
2001) dos costumes dos índios, servindo para manter em sigilo costumes e
práticas que eram “perseguidas”; a suposta situação de inexistência de
índios na região, que fora criada com o silenciamento, passou a ser usada
como argumentos por posseiros e por pessoas avessas aos povos
indígenas.
Tal argumento é forjado a partir da disseminação de imagens
estereotipadas na educação das crianças palmeirenses, bem como pela
falta de discussão sobre a temática indígena, nas escolas do município. Em
vista disso, a ignorância se sobressai, quando da formação das imagens e
impressões sobre os Xukuru-Kariri, pois ao aprender e transmitir a ideia de
que os índios são seres exóticos e distantes, física e temporalmente,
criam-se estereótipos que se arraigam na sociedade.
Assim, com uma transmissão constante de rótulos étnicos,
fortificada por uma educação acrítica e muitas vezes desconectada com a
realidade local, o índio da atualidade não é percebido em seu tempo
histórico, e sim a partir de projeções errôneas e preconcebidas, nas quais
a ideia de um índio ‘puro’ predomina, desconsiderando todo o processo 8

histórico de formação do Brasil, a respeito disso Monteiro afirma que:

[...] a crescente visibilidade dos índios nos últimos


anos tem deixado a sociedade brasileira um tanto
perplexa. Aprende-se, desde pequeno, que os índios
são coisa do passado, não propriamente da história,
mas antes de uma distante e nebulosa pré-história.
(MONTEIRO, 1999, p. 237)

Um dos argumentos mais utilizados é o de que não existem mais


índios no município e aqueles que auto afirmam índios são apenas
‘aproveitadores’, isto é, pessoas que se dizem indígenas apenas pelo
interesse em ‘ganhar terra’. Essa afirmação parte do pressuposto de que
não se pode falar em índio na região, pois os que se apresentam como tal
não atendem às características tidas no imaginário local como aspectos
definidores da condição de índio.
Entretanto, tal argumento não tem fundamentação histórica,
sabemos que as terras que formariam o Brasil eram habitadas por povos
que foram chamados de índios, e que tais terras foram invadidas por
europeus que mataram, escravizaram e tentaram aculturar esses povos.
Sabe-se também que essa tentativa de ‘civilizar’ os nativos não deu
certo, o que aconteceu foi uma troca cultural, onde os dois grupos
perderam e adquiriram costumes. Para Cristina Pompa, o índio “*...+ não
se retraiu, em busca de uma preservação de identidade, mas se abriu à
absorção do outro e à sua própria transformação” (POMPA, 2001, p. 10)
Assim, percebemos que na verdade ocorreram ressignificações
culturais, trocas culturais e simbólicas, baseadas em adaptações e 9

apropriações simbólicas, a partir das quais os costumes e tradições foram


modificados na transmissão, uma vez que a apropriação do que é
transmitido também influencia, e por isso deve ser analisado,
principalmente em relação à história indígena. (ALMEIDA, 2010). A
respeito disso Edson Silva afirma que as novas discussões, iniciadas nos
anos de 1980, proporcionaram:

[...] para uma concepção mais ampla de relações


culturais diferenciadas em um contexto de dominação
e violências culturais: a resistência cultural do
cotidiano, através de gestos, práticas, atitudes que
quebraram uma suposta totalidade, hegemonia de
dominação colonial. (SILVA, 2002, p.40)

A ideia de que os índios iriam gradativamente ser absorvidos pela


chamada civilização e deixar de existir não tem sustentação em uma
realidade na qual a população indígena vem crescendo em um nível
considerável. Bem como afirmando sua cultura e exigindo seus direitos,
desmistificando a teoria que afirma que os índios estavam em processo de
inevitável desaparecimento, os povos indígenas têm sobrevivido, através
de uma “resistência adaptativa”, e lutado por seus direitos. Segundo
Maria Regina Celestino:
[...] participar intensamente da sociedade dos brancos
e aprender seus mecanismos de funcionamento não
significa deixar de ser índio e sim a possibilidade de
agir, sobreviver e defender seus direitos. São os
próprios índios de hoje que não nos permitem mais 10
pensar em distinções rígidas entre índios aculturados
e índios puros. (ALMEIDA, 2010, p.20)

Essa ideia assimilacionista, que se iniciou com a colonização e mais


recentemente teve maior incentivo no século XX, principalmente no
período da ditadura civil militar brasileira, passou a ser amplamente
questionada a partir da década de 1980, com a promulgação da carta
constituinte de 1988, que garantiu ao índio, pela primeira vez na história
do Brasil, o direito à diferença.

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização


social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las proteger e fazer respeitar todos os seus
bens.
(BRASIL, 1998, p. 46)

Todavia, apesar do fato da demarcação de terras tradicionais dos


índios ser garantida por lei, no município de Palmeira dos Índios, a
resistência à demarcação é muito forte. Alguns posseiros e opositores
afirmam que os Xukuru-Kariri não são índios, pois não se comportam
como tal, isto é, como eles julgam que deva ser o comportamento de
índios; morar em malocas, andar nu, etc. A respeito disso, a índia Suyane,
afirma que:

O ser humano evolui na medida em eu os anos vão


passando e a partir de sua evolução vão 11
transformando seu espaço. Da mesma forma nós
índios somos seres humanos e evoluímos, não somos
incapazes como é a concepção de muitos. [...] alguns
povos indígenas vivem em aldeia, na mata [...]. Esse
não é o nosso caso, índios do Nordeste, vivemos em
casas de tijolos, usamos roupas de tecidos nos
alimentamos de uma diversidade de comidas trazidas
por vários povos. (MOREIRA, PEIXOTO e SILVA, 2008,
p.80,81)

Percebemos na fala de Suyane uma inquietação quanto à questão


dos estereótipos ainda existentes sobre os índios. Ela enfatiza muito bem
que tal como qualquer outro grupo humano, os índios do Nordeste não
vivem isolados e estão sim sujeitos a influências e a trocas culturas,
entretanto isso não significa que eles irão perder sua identidade, trata-se
do ato de adquirir costumes e práticas do não-índio que possam
possibilitar melhorias de vida e meios mais eficazes de alcançar direitos
que lhes são negados.

Da Mata À Vitrine: O Museu Xucurus de História, Artes e Costumes

A cidade de Palmeira dos Índios conta com a presença de dois


museus, A Casa Museu Graciliano Ramos, e o Museu Xucurus de História,
Artes e Costumes. O primeiro é um espaço para a preservação da imagem
do escritor Graciliano Ramos, que é motivo de orgulho para a população
palmeirense. Já o segundo, idealizado por Luiz B. Torres, é um ambiente
para a exposição de peças de origem de indígena, bem como os mais
diversos objetos, que são julgados como portadores de valor histórico 12

para a cidade.
O Museu Xucurus, tal como qualquer espaço de cultura e
representação social da cidade de Palmeira dos Índios, não foge do raio de
influência das posições ideológicas que envolvem a questão indígena no
município. Trazendo em sua nomenclatura uma referência ao povo
Xukuru-Kariri, o Museu torna-se um ponto indispensável no estudo da
imagem construída sobre os índios no referido município.
Analisando a consolidação das pesquisas sobre os índios do
Nordeste, debatendo sobre as dificuldades de definição do real caráter
desse índio, sobre qual imagem ele terá, e a forma como os povos
indígenas do Nordeste foram denominados, e representados
(principalmente em museus), João Pacheco de Oliveira afirma que mesmo
com a existência de núcleos de pesquisa sobre os povos indígenas do
Nordeste:

[...] a etnologia indígena não possuía o mesmo poder


de atração das investigações sobre as religiões afro-
brasileiras, a arqueologia ou o folclore e mesmo as
incursões dos catedráticos que estavam referidos à
lingüística e à antropologia social, não deixaram de
abordar em suas teses e comunicações as temáticas
indígenas através do viés do passado. Isso refletia
ainda com mais clareza nos museus, onde as culturas
indígenas eram representadas seja por meio de peças
arqueológicas e relações que viveram no Nordeste,
seja por coleções etnográficas trazidas de populações
atuais do Xingu ou da Amazônia. (Oliveira, 1997, p.
50,51)
13

Em vista disso, podemos considerar os museus como espaço onde


as tensões e os posicionamentos a respeito da questão indígena podem
ser analisados em suas sutilezas, visto que os museus, enquanto espaços
de representação histórica e cultural que é controlado por determinado
grupo ou setor burocrático da administração pública, refletem a situação
histórica especifica de cada sociedade. A respeito do caráter, e do sentido
que um museu tem, considerando-o como uma construção que não foge
ao meio de influência em que se erige, Peixoto afirma que:

O estudo do patrimônio cultural através da leitura dos


acervos fotográficos e de museu vem criar a
possibilidade de (re)escrever vários eventos da
história, o que torna o museu um lugar de destaque
enquanto espaço privilegiado que guarda memórias
de grupos silenciados como negros e índios. Assim
como a identidade nacional é abordada por diferentes
estudiosos sob diferentes óticas, a identidade local
também é definida diversamente. (PEIXOTO, 2013,
p.26)

Como enfatiza o autor, embora o museu seja um espaço para a


preservação das memórias coletivas de grupos que muitas vezes são
excluídos da história oficial, eles também são uma construção, isto é, são
erigidos e organizados a partir de uma determinada visão de mundo, onde
os interesses e as posições políticas e ideológicas transparecem.
Em circunstâncias em que questões envolvendo um grupo étnico
‘minoritário’, como os Xukuru-Kariri, em detrimento de um grupo maior e
dominante (população palmeirense não-indígena), a memória que o 14

museu pode perpetuar e transmitir torna-se um instrumento de poder,


usado para disseminar estereótipos que fortalecem o argumento das
elites. Segundo Mário de Souza Chagas, os museus:

[...] tendem a se constituir em espaços pouco


democráticos onde prevalece o argumento de
autoridade, onde o que importa é celebrar o poder ou
o predomínio de um grupo social, étnico, religioso ou
econômico sobre os outros grupos. [...] O poder, por
seu turno, nestas instituições, é concebido como
alguma coisa que tem lócus próprio, vida
independente e está concentrado em indivíduos,
instituições ou grupos sociais. (CHAGAS apud CHAVES,
2014, p.12)

Seguindo o pensamento de Chagas cabe destacar que o Museu


Xucurus se trata de um lugar onde a ótica do ‘dominador’ predomina,
visto que os Xukuru-Kariri não se veem nele representados (CHAVES,
2014). A imagem passada pelo Museu a respeito dos índios do município
de Palmeira não representa os Xukuru-Kariri da atualidade, ela faz
referência apenas ao índio do passado, retratado como um ser lendário e
folclórico.
Tal iniciativa é resultado da tentativa de descaracterizá-lo,
transmitindo, mesmo que de forma sutil, a ideia de que os verdadeiros
índios (puros) existiram apenas no momento da formação da cidade,
transformando-os assim em uma “peça de museu” (CHAVES, 2014).
Por conseguinte, devemos sim considerar os museus como 15

instrumentos importantes na preservação de artefatos históricos, onde


cabem os mais variados grupos étnicos. No entanto, não podemos deixar
de analisá-los com o olhar crítico do historiador, isto é, reconhecê-los
enquanto construções que não são livres de interesses particulares ou de
grupos.

O Roubo de uma Imagem: o índio como atrativo comercial

Palmeira dos Índios passa a ideia de ser uma cidade portadora de


uma rica cultura, e de uma história singular. Seus anos de ‘glória’
comercial, quando a produção de algodão a tornou um dos centros
comerciais mais importantes do estado, lhe legaram o título de princesa
do sertão. Além da importância econômica, destacam-se também, na
história da cidade, figuras que compõem tal imagem, tais como Graciliano
Ramos, Jofre Soares e Luiz B. Torres.
No plano cultural, podemos destacar a presença de dois museus; o
Museu Xucurus de História, Artes e Costumes, e a Casa Museu Graciliano
Ramos. Na história cultural do município destacam-se também os extintos
cinemas, que eram muito frequentados e reconhecidos na região.
Contudo, é a presença indígena, intrinsecamente ligada à formação e a
singularidade cultural de Palmeira, que destaca o município.
A presença inegável do povo Xukuru-Kariri no momento de
formação da cidade é citada pela história local, bem como por estudiosos
que se propõem a pesquisarsobre o município. Os índios estão presentes 16

no imaginário dos palmeirenses, servindo de inspiração para a literatura


local, caracterizada numa lenda a respeito da fundação da cidade que é
protagonizada por índios Xukuru-Kariri, e de ‘modelo’ para representações
imagéticas e culturais da cidade.
Ainda se destaca o fato de muitos estabelecimentos comercias da
cidade receberem nomes que fazem referência aos Xukuru-Kariri.
Denominações como; Posto Xucurus, Papelaria Kariri e drogaria Xucurus,
são utilizadas como forma de atração comercial, pois a projeção que tais
denominações trazem consigo, representam uma exaltação do índio
enquanto ser de um passado mítico da cidade.
Existe um iminente paradoxo quanto á representação dos índios
no município, pois ao mesmo tempo em que estes estão presentes nos
ícones da cidade, não são reconhecidos como de procedência
legitimamente indígena, tampouco seu direito a uma cultura singular e a
posse de suas terras tradicionais é garantido.
O índio que é descrito na lenda, citado na história local, esculpido
e posto em local público ou pintado na bandeira do município, não
representa o verdadeiro individuo que vive nessa região desde o século
XVII. A idealização consiste num apego à imagem do índio do passado, do
momento da colonização, que é transmitida pelos palmeirenses através
das gerações.
Isso se deve ao intenso processo de exclusão do índio da
historiografia brasileira iniciado no período colonial e que se estendeu ao
período da ditadura militar, pois “o interesse pela história dos índios se 17

choca com posturas historiográficas arraigadas desde longa data, que


desqualificam os índios enquanto atores históricos legítimos ou, quando
muito, os deslocam para um passado remoto. ” (MONTEIRO, 1999, p. 239)
Tais representações podem ser entendidas como uma
materialização do estereotipo do índio do passado, que está preso à
imagem genérica e simplista criada por cronistas e viajantes europeus que
descreveram o exotismo desses povos. Assim, tais representações, além
de fugirem da realidade local, caracterizam-se pela negação de todo o
processo histórico de perseguição e imposição cultural ao qual os povos
indígenas brasileiros foram submetidos.
Podemos, a partir disso, constatar que existe um grande
distanciamento entre as representações imagéticas locais, presente na
imagem da bandeira oficial do município, em alguns pontos comerciais e
no próprio Museu Xucurus, e a realidade atual dos índios no referido
município. Esse distanciamento torna-se preocupante, à medida que a
ideia de um índio exótico muitas vezes se sobressai sobre a imagem dos
índios Xukuru-Kariri que vivem atualmente em Palmeira dos Índios.

Considerações finais
Em vista do que foi discutido até aqui, acerca das concepções e da
utilização da imagem dos Xukuru-Kariri no município de Palmeira dos
Índios, podemos perceber o quanto tal debate é importante, uma vez que
contribui para um esclarecimento sobre a reformulação do conceito de
índio, que se faz urgente na atualidade. É preciso deixar claro que o índio 18

idealizado, o bom selvagem, não pode ser procurado no nordeste


brasileiro, pois o processo de colonização e de tentativa de aculturação se
deu de forma pioneira e mais intensiva, nessa região.
Ainda, percebemos que a população de Palmeira dos índios é um
exemplo de como as elites latifundiárias podem disseminar imagens
distorcidas sobre os povos indígenas, principalmente quando da existência
de conflitos territoriais. A descaracterização dos Xukuru-Kariri, pautada no
apoio em uma idealização que foge da realidade empírica, se dá
principalmente pela falta de discussão histórica e de visibilidade aos índios
do município.
Assim, por não reconhecer a singularidade da cultura indígena,
nem se interessarem em conhecer mais sobre esses povos, muitas pessoas
se deixam influenciar por argumentos dos posseiros e passam a contribuir
para a consolidação de uma imagem estereotipada sobre o povo Xukuru-
Kariri.
Igualmente, podemos perceber que os reflexos do conflito
territorial perpassam o plano físico, onde a disputa por terras atinge
climas tensos, alcançando o plano das concepções imagéticas. Tais
concepções contribuem para a fortificação da forma ambígua como os
índios são vistos e retratados no município de Palmeira dos Índios,
principalmente no Museu Xucurus, que proporciona uma representação
que não foge da influência do conflito.
Onde, ora são tratados como personagens lendários, presentes
nos anos iniciais da composição do município, e servindo como
componente cultural que dá sustento à imagem da cidade e de pontos 19

comerciais e turísticos, ora são tratados como interesseiros e inimigos do


povo, que estariam visando à posse de terras. Diante disso, fica facilmente
perceptível a dificuldade que uma pesquisa sobre uma temática tão
complicada evidentemente enfrenta.

Referência bibliográfica

ANTUNES, Clóvis. Wakona-Kariri-Xukuru: aspectos Sócio-antropológicos


dos remanescentes indígenas de Alagoas. Universidade Federal de
Alagoas: Imprensa universitária, 1973.

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio


de Janeiro: Editora FGV, 2010. 168 p.

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL Texto


promulgado em 05 de outubro de 1988, Artigo 231.

CHAVES, Julio Cézar. “Eu não queria que índio se tornasse peça de
museu” – polifonias dos Xukuru Kariri sobre museus. Maceió, 2014 (não
publicado).

MOREIRA, Ana Cristina de Lima; PEIXOTO, José Adelson Lopes; SILVA,


Tiago Barbosa da. Mata da Cafurna: Ouvir Memória e Contar História:
Tradição e Cultura do Povo Xucuru-Kariri.. Maceió: Edições Catavento,
2008.

MONTEIRO, John Manoel. Armas e Armadilhas: história e resistência dos


índios. In NOVAES, Adauto (org). A outra margem do ocidente. São
Paulo,Companhia da Letras, 1999.
20
RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações
indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

RIBEIRO, Darcy. Falando dos índios. [apresentação Eric Nepomuceno]. -


Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília, DF: Editora UnB, 2010.

GRUPIONI. Luiz Donisete Benzi Índios no Brasil (org.). Brasília: Ministério


da Educação e do Desporto, 1994.

SILVA, Edson Hely. POVOS INDIGENAS NO NORDESTE: Contribuição a


Reflexão Histórica Sobre o Processo de Emergência Étnica. Disponível em:
<http://www.cerescaico.ufrn.br/mneme> acesso em 22 de novembro de
2015.

SILVA JÚNIOR, Aldemir Barros da.Aldeando Sentidos: Os Xucuru-Kariri e o


Serviço de Proteção aos Índios no agreste alagoano. Maceió: Edufal 2013.

OLIVEIRA, João Pacheco de. FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A Presença


Indígena na Formação do Brasil. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/
Museu Nacional, 2006.

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Uma etnologia dos "índios


misturados"? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana,
vol.4, n°.1, p.47-77, Abr. 1998.

PEIXOTO, José Adelson Lopes. Memórias e imagens em confronto: os


Xucuru-Kariri nos acervos de Luiz Torres e Lenoir Tibiriçá / José Adelson
Lopes
Peixoto.-- João Pessoa, 2013.
PEIXOTO, José Adelson Lopes. O Visível E O Dizível: A Imagem Do Povo
Xucuru-Kariri Sobre Palmeira Dos Índios, 2011(não publicado).

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silencio. IN: Estudos


Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
21
TORRES, Luiz B., Apresentação IN:ANTUNES, Clovis. Wakona-Kariri-
Xukuru: aspectos Sócio-antropológicos dos remanescentes indígenas de
Alagoas. Universidade Federal de Alagoas: Imprensa universitária, 1973.

LUCIANO, Gersem dos Santos. O Índio brasileiro: o que você precisa saber
sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
COLONIZAÇÃO BRASILEIRA:
ANTECEDENTES, OBJETIVOS E JUSTIFICATIVAS

Brunemberg da Silva Soares


1
1
José Adelson Lopes Peixoto

Resumo: O encontro entre navegantes portugueses e povos ameríndios da região que


corresponde ao atual Brasil, no ano de 1500 (suposto descobrimento), foi o marco
inicial dos contatos entre duas culturas totalmente diferentes. Sabe-se que, a cultura
do povo invasor se sobressaiu à dos povos nativos, por meio da imposição. Contudo, o
conquistador, mesmo militarmente superior, preferiu agir cautelosa e
estrategicamente, no intuito de criar formas para impor sua dominação, elaborando
discursos que serviram para justificar seus propósitos. Em vista disso, o presente texto
se propõe a fazer uma análise das proporções e dimensões que esses discursos
alcançaram durante os primeiros anos da colonização brasileira, servindo como
justificativa para as mais variadas formas de exploração. Este estudo foi pautado em
pesquisa bibliográfica sobre cultura nos conceitos de Roque de Barros Laraia, na
descrição da nova terra exposta nas cartas de Nóbrega e Anchieta analisadas por
Felipe Moreau e sobre o descobrimento em Janote Pires, entre outros. Assim,
discutem-se como tais literaturas contribuíram para mudar a tradição indígena,
reduzindo a complexidade e a importância dessa cultura projetando uma imagem
contrária a real, e que expressou a essência do colonialismo português no Brasil,
imagem essa, que ainda hoje, é aceita e reproduzida.

Palavras-chave: Cultura. Discurso. Imposição.

1
Graduando em História pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL Campus III – Palmeira dos
Índios, membro do Grupo de Estudos da História dos Povos Indígenas – GPI/AL.
E-mail: brunemberg@hotmail.com
Historiador e Antropólogo. Professor Assistente na Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL, Campus
III – Palmeira dos Índios. Coordenador do Grupo de Pesquisa da História dos Povos Indígenas de Alagoas
–GPHI/AL. E-mail: adelsonlopes@hotmail.com
2

Abstract: The meeting between Portuguese navigators and Amerindian peoples of the
region that corresponds to the current Brazil, in 1500 (supposed discovery) was the
initial point of contact between two totally different cultures. It is known that the
invading people's culture stood out to the native peoples, by imposing. However, the
conqueror, even militarily superior, preferred to act cautiously and strategically in
order to create ways to impose their domination, preparing speeches that served to
justify their purposes. In view of this, this text proposes to make an analysis of the
proportions and dimensions that these discourses reached during the early years of
Brazilian colonization, serving as justification for various forms of exploitation. This
study was guided by literature on culture in the concepts of Roque de Barros Laraia,
the description of the new exposed earth in the letters of Nobrega and Anchieta
analyzed by Filipe Moreau and the discovery in Janote Pires, among others. Thus, we
discuss how these literatures contributed to change the indigenous tradition, reducing
complexity and the importance of culture by projecting an image contrary to real, and
expressed the essence of Portuguese colonialism in Brazil, picture this, that even
today, is accepted and played.

Keywords: Culture. Speech. Imposition.


Introdução

A chegada do europeu ao Brasil, entre tantas outras coisas, serviu


para registrar as primeiras e principais justificativas apresentadas para
legitimar sua dominação. A descrição do contexto histórico da época em 3

que foi feita a ‘descoberta do Brasil’ enaltece a importância e propagação


da cultura e religião europeia como desculpas para a marginalização,
subjugação e expulsão dos povos nativos do seu território tradicional.
A busca por matérias primas levou os europeus ao novo mundo.
Vale destacar, que nessa época o capitalismo concorrencial estava
nascendo e junto com ele novos aspectos sociais, políticos e econômicos.
A única coisa que não mudava era a influência da religião nas questões
sociais, por esta razão as igrejas católica e protestantes estiveram
intrinsecamente ligadas ao processo de colonização.
Os Portugueses, católicos, chegaram ao Brasil supostamente em
1500, data do mais famoso documento deste feito, a carta de Pero Vaz de
Caminha, onde o autor descreve às terras e os povos recém-descobertos.
Seu principal interesse nessa descrição era apresentar a nova terra como
propícia a investimentos financeiros e religiosos de modo a assegurar a
primazia portuguesa.
O discurso religioso, pautado por uma breve análise das ações
jesuítas no Brasil nos primeiros anos da colonização é fonte de valorosa
discussão, com enfoque em Nóbrega e Anchieta considerados como
principais formadores da educação colonial, cuja função era adestrar os
gentios da terra e facilitar sua escravização.
Os nativos eram inicialmente tratados como selvagens e bárbaros
que não tinham pudor. Quando eram capturados, tinham seus costumes
depreciados e eram ensinados a renegar a sua fé original e a aceitar um
Deus desconhecido, que permitia sua expurgação. Esses eram alguns dos
muitos mecanismos que facilitavam a catequização e a colonização. 4

Contexto histórico das navegações

A expansão marítima portuguesa foi fruto de um contexto


histórico criado por uma série de fatores econômicos sociais e políticos
que estavam presentes na península ibérica nos períodos em que se
iniciaram as navegações de conquista e exploração, a saber, séculos XV e
XVI.
A falta de metais preciosos que eram a principal moeda das trocas
comerciais, bem como a impossibilidade de manter rotas terrestres de
comércio, devido à insegurança nas estradas causada pela crise e pelas
revoltas constantes, obrigou Portugal a buscar uma nova forma de
comercializar com o resto da Europa.
Tratando-se de uma península, a solução obvia encontrada para o
bloqueio foi a navegação, iniciada primeiramente entre os países
europeus litorâneos mais próximos, como Espanha, Inglaterra e Holanda,
depois se estendendo à África, onde conquistaram terras e subjugaram
povos. Tal iniciativa comercial fortaleceu a burguesia mercantil que passou
a ser decisiva na instauração do absolutismo em Portugal, visando apoio
ao comércio e a navegação.
Essa expansão iniciada com comercializações com reinos vizinhos
cresceu e passou a representar a principal esperança encontrada pelo
novo Estado português (dinastia Avis) para solucionar a escassez de ouro,
evidente em quase toda a Europa. Dessa forma, as expedições
portuguesas visavam não só descobrir novas rotas que levassem às 5

lucrativas especiarias asiáticas, mas também descobrir novas terras com


capacidade mineral para suprir sua necessidade de metais preciosos.
Segundo Mattoso:

Enquanto a Europa mergulhava em intermináveis


guerras de poder sob bandeiras religiosas, o que fazia
correr então os portugueses? A fome de ouro e das
riquezas, o cheiro de canela, a fama, o medo com as
suas correias de obediência, a ânsia de poder, a fé em
Deus, essencial para esconjurar os demônios e a
morte e para o perdão dos horrorosos pecados, o
espírito de aventura, o desejo de ir mais além, o apelo
do desconhecido. Tudo isso e muito mais impulsionou
a corrida. (MATTOSO, 2000. P.60)

O rei de Portugal, que legitimava seu poder pelo dito ‘direito


divino’, apoiou as conquistas marítimas, camuflando seu real interesse
pelo ouro e o lucro comercial. Por conta da proibição ao chamado ganho
temporal, a Igreja deu a essas expedições o caráter cruzadista, o que
significava dar um ar de missão religiosa de conversão, e de tomada (ou
retomada) de territórios que sairiam do domínio dos infiéis para o
controle dos cristãos.
Assim, as terras conquistadas passariam a submeter-se não só ao
Estado português mais também ao poder eclesiástico, devido à estreita
ligação entre a Igreja e o estado absolutista. Assim, quanto mais terras
fossem conquistadas, aumentando a extensão da influência portuguesa,
maior seria o raio de controle da igreja.
Em prol do aumento de seu poder, influência e riqueza, a antiga
Senhora feudal entrava na modernidade preservando seu poder, ao aliar- 6

se ao estado. Apesar dos seus fundamentos cristãos, permitiu que


Portugal e outros países utilizassem a desculpa religiosa para conquistar,
explorar, escravizar, assassinar, enfim, praticar tudo o que lhes parecesse
que a conquista das terras descobertas exigisse.
Foi nesse contexto que se iniciou a expansão marítima que
culminou com o chamado ‘descobrimento’ do Brasil. O europeu, movido
pela cobiça e pelo fanatismo religioso invadiu e cometeu atrocidades na
África e na Ásia em busca de metais e matéria prima para alimentar as
suas relações comerciais.
De lá, dirigiu-se às terras americanas e se deparou com o exotismo
de povos com costumes diferentes dos seus e não soube (ou não quis)
reconhecer e respeitar as diferenças culturais observadas. É como nos diz
Damata: “Quando vejo um costume diferente é que acabo reconhecendo,
pelo contraste, meu próprio costume.” (1987, p.10) Conquistar “[...] é
realizar essa transformação do familiar em exótico e do exótico em
familiar.” (1987, p. 4)
Contudo, cabe afirmar que a intenção dessa explanação não é
fortalecer a imagem dualista que normalmente se tem da relação
colonizador-nativo, onde o índio é símbolo de inocência e bondade e o
português é sinônimo de morte e maldade, visto que, essa ideia foi criada
como justificativa à catequização.
Com o projeto de catequese, a igreja conseguiu mais uma vez
engrandecer sua imagem de bem feitora, assumindo o papel de protetora
dos índios e destacando-se como uma instituição benevolente, que enviou 7

padres jesuítas às mais longínquas terras para salvar as almas dos nativos
que viviam na iniquidade. Esses padres, em sua maioria, foram apenas
adestradores, ora, sua missão baseava-se em anular a cultura desses
povos e instalar a sua no lugar, de modo que tal ação viesse a facilitar o
controle da metrópole sobre a colônia.

O Primeiro Discurso

O primeiro documento escrito sobre a ‘descoberta’ do Brasil é a


Carta de Pero Vaz de Caminha. Nela o autor apresenta uma descrição
pormenorizada do lugar, do povo e dos costumes, descortinado uma
imagem edênica capaz de incitar e justificar o desejo e a posterior
colonização portuguesa. Dessa forma, o documento cumpriu o papel de
construção de um espaço propício à empreitada material e religiosa da
corte lusitana.

Traz ao longo do mar em algumas partes grandes


barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra
de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos.
De ponta a ponta é toda praia... Muito chã e muito
formosa. [...] Contudo a terra em si é de muito bons
ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-
Minho, porque neste tempo d'agora assim os
achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas.
Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar,
dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!
Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar
parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser
a principal semente que Vossa Alteza em ela deve
lançar. (Carta a El Rei.1963, p.10,11) 8

Caminha apresenta informações que agradam a todos os


envolvidos nos negócios da expansão e exploração marítima. Segundo tal
documento, nessa terra, que não havia reis ou leis e tampouco fé,
existiam riquezas naturais e possíveis riquezas minerais não encontradas,
entretanto apontadas pelos nativos, gente inocente, amiga e de fácil
conversão religiosa e em mão de obra. Tal afirmação é descrita por
Caminha quando detalha que:

O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em


uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem
vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao
pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e
Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui
na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa
alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas
nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao
Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar
do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em
direção à terra, e depois para o colar, como se
quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também
olhou para um castiçal de prata e assim mesmo
acenava para a terra e novamente para o castiçal,
como se lá também houvesse prata! (Carta a El
Rei.1963, p.3)
Em meio as descrições exaltadas que o escrivão faz da nova terra e
de seus habitantes, podemos perceber que o discurso religioso é
preponderante em sua narrativa, servindo como base ideológica para a
conquista e a colonização que sucederiam. Souza, ao analisar essa estreita
relação entre estado e religião nesse período, afirma: 9

Dilatação da fé, colonização e fortalecimento do poder


monárquico sempre aparecem associados: [...] Era
pois generalizada, sobretudo entre eclesiásticos, a
ideia de que o descobrimento do Brasil fora ação
divina; de que, dentre os povos, Deus escolhera os
portugueses; de que estes, uma vez senhores da nova
colônia, tinham por dever nela produzir riquezas
matérias – explorando a natureza – e espirituais –
resgatando almas para o patrimônio divino. (SOUZA,
2009. p. 50-51)

Os portugueses acreditavam estar investidos do poder divino,


podendo julgar os nativos para punir ou salvá-los fazendo do exotismo a
diferença. É nessa ótica que Laura de Mello e Souza escreve o Diabo na
terra de Santa Cruz (do qual foi extraída a citação acima), destacando que
as ‘abominações’, os costumes depravados e tudo o que era considerado
diferente poderia ser modificado e civilizado se tornando familiar e
descortinando os mitos.

Entre mundos: catequese e interdição

Longe de serem defensores dos índios, os padres jesuítas foram


agentes de dominação externa, responsáveis pelo controle ideológico
sobre os nativos. Foram instrumentos que a igreja encontrou para garantir
sua influência no novo mundo; movidos pela doutrina católica da época,
vieram para o Brasil e passaram a convertê-los a uma religião diferente da
sua, sem respeitar suas antigas crenças e costumes, obrigavam-nos a
seguir novas regras e a cultuarem um deus distante e ‘inacessível’, o que
ia de encontro às crenças na natureza e nos seus fenômenos. 10

Não obstante, quando a catequização pacífica não surtia efeitos


partiam para a conversão coerção, usando-se da força e do poder que
possuíam. Diferente dos colonos, os jesuítas não viam os nativos apenas
como selvagens, enxergavam neles a possibilidade de conversão e de
civilidade, assim lhes atribuíam a predisposição a salvação. Defendiam,
ainda, que aqueles seres não traziam a maldade como atributo e que a
condição do pecado estava ligada a ausência do conhecimento sobre
Deus, sobre a doutrina católica e sobre o próprio pecado.
Mas a defesa feita pelos padres não se baseava no real respeito ao
índio enquanto um ser humano de cultura diferente, mas na ideologia
imposta pela igreja católica que afirmava que embora selvagens, os
nativos possuíam uma alma, e esta clamava pela salvação.
Assim, essa defesa traduz–se na necessidade de proteger os
interesses próprios e da Igreja, e apesar do fato de alguns padres terem
sido contra a escravidão indígena, foram incapazes de reconhecer a
autonomia desses povos. Prendê-los em aldeias e obriga-los a trabalhar e
a abandonar seus costumes não difere muito do ato de escravizar, a
respeito disso Almeida afirma que:

Para os religiosos, reunir os índios em aldeias para


catequiza-los e extirpar seus vícios e práticas
consideradas diabólicas significava cumprir os ideais
missionários aos quais se dedicavam. Para isso,
precisavam submetê-los à disciplina, à obediência e ao
trabalho compulsório e compactuavam com a
violência das guerras e escravizações contra aqueles
que se recusavam a colaborar. (ALMEIDA, 2010, p.74)
11
Também nesse cenário de catequese mais uma vez criaram-se
desculpas para justificar as ações repressoras de dominação direta, como
era o caso da chamada ‘guerra justa’; imposta aos índios que se negavam
a ser aculturados. A respeito disso Hansen escreve:

O Direito Canônico estabelece que as sociedades


humanas não dependem da Revelação cristã para se
instituírem politicamente. Mas o fato de estarem
deturpadas pelas "abominações" - antropofagia,
nudez, poligamia, nomadismo, guerra por vingança -
evidencia a ilegitimidade dessa legalidade corrompida
pela ação do Diabo. (MOREAU, 2003, p.21)

Tais ‘abominações’ aparecem como elementos encontrados pela


igreja para justificar a catequese, a exploração e o domínio português
sobre as novas terras, acusando os índios de ser um bando de gentios
depravados e selvagens, que comiam carne humana, andavam nus e
matavam seus semelhantes por banalidades e vinganças. Era necessário e
urgente que os portugueses iniciassem a missão de levar a civilização e a
fé cristã a esses povos que pereciam num mundo de pecados.
Antropofagia: banquete ou ritual?

A dominação e o massacre dos nativos durante os primeiros anos


de colonização foram ações patrocinadas pela coroa e aceitas pela Igreja.
O conceito de ‘Deus’, até então, vigente foi o princípio fundante da ação
12
jesuítica e contribuiu para o martírio dos gentios; taxando-os como
bárbaros e demoníacos. Esses argumentos validaram a assim chamada,
guerra justa, campanhas com objetivo explícito de converter, pela força,
aqueles que negavam o deus branco.

No século XVI, Deus é o fundamento metafisico do


Direito que regula a invasão e a conquista das novas
terras. E isso é tudo: é porque Deus existe que tudo é
permitido. Por outras palavras, para os missionários
jesuítas é impensado e impensável o pensamento
materialista que elimina o fundamento divino da
história. (MOREAU, 2003, p.15)

Ditos homens bons e civilizados, os europeus se dispuseram a tirar


aquele povo da perdição e levá-los a salvação. Por meios diversos, os
jesuítas atacaram a cultura nativa. Empenharam-se no combate dos maus
costumes (aquilo que diferia dos padrões europeus), pela coerção
impuseram sua cultura e religião. “Os índios foram simplesmente
exterminados através de várias formas de coação biótica, ecológica,
econômica e cultural.” (RIBEIRO, 2010, p. 24)
A antropofagia foi um dos costumes mais perseguidos e
repudiados pelos cristãos. Depreciaram-na o máximo possível, para que
todos soubessem o quão selvagens eram e o quanto os índios precisavam
ser civilizados. Ao longo dessa intensa disputa o real sentido do ritual
antropofágico foi esquecido. Vale salientar que sua realização é de caráter
místico específico dos guerreiros, contém simbologias e não deve ser
tratado como pura selvageria ou prazer, como era visto pelos europeus.
13
Não obstante, o próprio ritual católico, onde o pão e o
vinho significam o corpo e o sangue de cristo, não
deixa de simbolizar um procedimento onde se crê no
poder místico da antropofagia, e a aparente diferença
que existia entre este ritual católico (teórico) e o ritual
aborígine (prático), inexiste, pois o ritual é um
processo irracional [...] (PIRES, 2000, p.24,25)

Comparando os dois rituais; o pão e vinho católicos e a


antropofagia ritualística indígena, ambos simbólicos, onde se come partes
do corpo de uma pessoa considerada dotada de atributos desejáveis não
podemos classificar nem um nem outro como bom ou ruim. Uma vez que
ambos então envolvidos em simbologias análogas que correspondem ao
mesmo objetivo final.
Ainda, mesmo que a antropofagia fosse um costume vil, sua
prática nem de longe se compara as atrocidades cometidas pelos
portugueses nas terras conquistadas, logo não seria o europeu o povo
mais indicado para julgar o que pode ou não ser considerado selvagem. A
cerca dessa afirmação, caberia dizer:

Não me parece excessivo julgar bárbaro tais atos de


crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos
não nos leve a cegueira acerca dos nossos. Estimo que
é mais bárbaro comer um homem vivo do que o
comer depois de morto; e é pior esquartejar um
homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos
poucos, ou entrega-lo a cães e porcos, a pretexto de
devoção e fé. (MONTAIGNE apud LARAIA, 1997, p.13)
O europeu manteve o velho hábito de criar justificativas para seus
atos, para alimentar seu ego ou propagar o falso conceito de civilização.
14
Lembremo-nos da perseguição ao povo Caeté, acusados de terem
devorado o bispo D. Pero Fernandes Sardinha; legalizaram sua
escravização iniciando assim uma coalizão de extermínio.
Diante da lei não perece ser exagero dizer que, muitos colonos
sedentos por capital, aproveitaram tal oportunidade para adquirir mão-
de-obra. Utilizaram a fé para justificar a captura de qualquer nativo que
por eles fosse julgado Caeté.

Considerações finais
Em vista do que foi discutido, podemos perceber que o bem
articulado discurso dos europeus, seja ele religioso ou político, mostra-se
totalmente voltado para a busca pela posse de riquezas. A ideia de que é
justo apropriar-se das terras dos povos bárbaros e infiéis porque são eles
que a estão invadindo, uma vez que Deus é o verdadeiro dono destas,
traduz bem essa necessidade de legitimar, mesmo que da maneira mais
hipócrita, a invasão. É incrível como a simulação dos colonizadores, que
julgavam agir sobre os preceitos cristãos os cegou ao ponto de não os ter
deixado ver que quem praticava ações demoníacas eram eles próprios.
A força do discurso ideológico disseminado pela igreja católica
sobre os povos indígenas foi tão grande que até os padres jesuítas que
ajudavam a criá-lo, passaram a acreditar nele. Em vista da incapacidade
desses missionários em enxergar que eram os índios e não eles quem mais
se aproximavam dos preceitos cristãos, foi construída uma estratégia de
dominação e combate ao mal que julgavam permear o cotidiano nativo,
como a poligamia, a antropofagia e a nudez.
De fato andavam nus, alguns praticavam a antropofagia, tinham 15

várias mulheres, mas viviam em uma sociedade mais harmoniosa que a


europeia. Contudo, essa sociedade não poderia ser mantida pelos
colonizadores porque fugia à regra da fundamentação cristã, isto é, como
poderiam deixar que se mante-se uma comunidade que se ergueu e vinha
funcionando sem conhecer os fundamentos religiosos, éticos e morais que
a poderiam ter construído?
As proporções que os discursos alcançaram foram tais que ainda
hoje se tem a chegada de Cabral em terras brasileiras como o
“descobrimento”, sendo muitas vezes considerado como o início da
construção do país que abriga o povo brasileiro. As pessoas que acreditam
em tal afirmação esquecem a grande maioria dos legítimos donos dessas
terras foi escravizada ou morta pelo invasor europeu.
Nesse período de colonização, de descimentos, bandeiras e
aldeamentos, restaram poucos, largados à própria sorte, fugidos de suas
terras e refugiados nas matas ou ainda, convertidos em colonos. O modo
como as terras foram usurpadas pelos reinóis que aqui enriqueceram foi
esquecido, graças às justificativas empregadas.
Para os que duvidam de tal afirmação, basta lembrar que
atualmente uma simples demarcação de terras para alguns povos
indígenas, requer não só laudos antropológicos que comprovem a
autenticidade desse povo enquanto tal, mas também comprovações
arqueológicas de que o território em questão possui ocupações indígenas
de datas passadas, como se eles fossem os invasores.
A ação jesuítica que tinha, em tese, a missão de ‘salvar’ as almas
dos povos ameríndios acabou sendo o principal responsável pela perda de 16

alguns costumes indígenas, em decorrência das trocas culturais ocorrentes


da tentativa de aculturação imposta aos índios, o que resultou no
hibridismo cultural, onde ambo os povos (índios e colonos) perderam e
adquiriram costumes novos. Formou-se assim uma mistura nova,
instituída pela alteridade, isto é, trocas culturais em que ambas as culturas
contribuíram para a remodelagem cultural.
Assim, uma vez que esses missionários tiravam os gentios de seu
modo de vida natural para obrigá-los a viverem em aldeamentos, onde
eram forçados a abandonar seus costumes, sua língua e suas crenças. O
resultado de tais ações de conversão não foi um indivíduo cristão, e sim
sincrético. Composto de muitos costumes que lhes foram impostos e
alguns poucos que restaram, um indivíduo que se fecha em sua
comunidade diante de uma sociedade que o estereotipa.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil /


Maria Regina Celestino de Almeida. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
(Coleção FGV de bolso. Série História).

CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El Rei D. Manuel. São Paulo: Dominus,
1963. Disponível em: http://www.bibvirt.futuro.usp.br. Acesso em:
01/04/2015.
CARRARA, Douglas. Relatório Preliminar Circunstanciado de Verificação
e Delimitação Terra Indígena Xukuru-Kariri. Disponível em:
http://bchicomendes.com/cesamep/relatorio.htm. Acesso em
01/04/2015.
DAMATTA, Roberto. Relativizando: Uma introdução a antropologia social. 17
Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um conceito antropológico. 11 ed. Rio


de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1997.

MATTOSO, José. História de Portugal. Bauru: EDUSC; São Paulo-SP:


UNESP; Portugal: Instituto Camões, 2000. (Coleção História)

MOREAU, Filipe Eduardo. Os Índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta.


São Paulo: Annablume, 2003.

PIRES, Janote. O descobrimento do Brasil no contexto da exploração


marítima ibérica ocorrida nos séculos XV e XVI. Recife: UFRPE, imprensa
universitária, 2000.

RIBEIRO, Darcy. Falando dos índios [apresentação Eric Nepomuceno]. -


Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília, DF: Editora UnB, 2010.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e
religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.
O QUE TEM A VER A HISTÓRIA ENSINADA NA UNIVERSIDADE COMO CI-
ÊNCIA COM A HISTÓRIA ENSINADA NA ESCOLA COMO MATÉRIA?
A CRIAÇÃO DO CURSO DE MESTRADO EM HISTÓRIA DA UFPR EM 1971 E
A ANÁLISE DA RELAÇÃO HISTÓRIA ACADÊMICA E NÃO-ACADÊMICA

Bruno Flávio Lontra Fagundes1


1

RESUMO - O texto é resultado de pesquisa sobre a história do curso de História da


Universidade Federal do Paraná visando compreender a separação pesquisador-
professor que constituiu o perfil institucional dos cursos de História no Brasil, que gira-
ram em direção a um tratamento metodológico de natureza científica alinhado às polí-
ticas públicas de desenvolvimento científico e tecnológico característicos do projeto
desenvolvimentista dos governos militares. Principalmente após as medidas legais e
programáticas que os cursos sofreram por ocasião das iniciativas que, ao longo dos
anos 1960, desaguaram na Reforma Universitária em 1968. O curso de Mestrado da
UFPR foi um emblema daquela situação, por onde é possível verificar a enorme valori-
zação do cientista pesquisador em relação à desvalorização do profissional professor
do ensino secundário na trajetória das licenciaturas de História brasileiras.
Palavras-chave – História, Licenciaturas, Ensino Superior.

ABSTRACT - The text is resulted of research on the history of the course of History of
the Federal University of the Paraná aiming at to understand the separation researcher
and professional professor who constituted the institutional profile of the courses of
the History in Brazil, that they had turned in direction to a methodological treatment
of scientific nature lined up to the public politics of scientific and technological devel-
opment characteristic of the desenvolvimentist project of the military governments.
Mainly after the legal and programmatic measures that the courses had suffered occa-
sionally from the initiatives that, along years 1960, had emptied in the University Re-
formation in 1968. The course of Master's degree of the UFPR was an emblem of that
situation, for where it is possible to verify the huge valuation of the searching scientist
in respect to the depreciation of the professional professor of secondary education in
the trajectory of the Brazilian degrees of History.
Key-words - History, degree course, Higher Education

1
Doutor e Pós-doutorando – UFRJ; Professor adjunto da UNESPAR (Campus de Campo Mourão), no curso de Histó-
ria, e integrante do PPGSeD, Mestrado Interdisciplinar Sociedade e Desenvolvimento.
A história de cursos de História é campo recente de pesquisa, não
por coincidência incrementado num momento em que muito do conheci-
mento histórico produzido pela ciência histórica sofre concorrência de
produções que configuram uma “cultura da memória”, da qual deriva
“desde a década de 1970”, segundo Huyssen (2004), a restauração histoci- 2

zante de velhos centros urbanos, cidades-museus, empreendimentos pa-


trimoniais e heranças nacionais, a onda da nova arquitetura de museus, o
boom das modas retrô, a comercialização em massa da nostalgia, a obses-
siva musealização através da câmera e do vídeo, a literatura memorialísti-
ca e confessional, o crescimento de romances autobiográficos e históricos
pós-modernos, a difusão das práticas memorialísticas nas artes visuais
(tendo a fotografia como suporte) e o aumento do número de documen-
tários na televisão”. Nos EUA, o History Chanel é um canal só de História.
São produções, praticamente, sem a assinatura de profissionais de forma-
ção em História. Produções acreditadas como “história”, por mais que o
especialista contradite dizendo que “não é história, é memória”. Esse “ne-
o-historicismo” (SARLO, 2007) não é exclusividade da Europa e Estados
Unidos e sua análise favorece examinar o que disso alcança o Brasil.
Duas, basicamente, podem ser as atitudes ante essa realidade que
faz crer que podemos tudo guardar e nada esquecer.
Uma, é, superiormente, desprezar toda essas “modalidades comer-
ciais” de uma “indústria de memória”, olhando-a a partir do lugar de auto-
ridade que a academia nos atribui, seguindo sem se perguntar sobre pro-
váveis efeitos desse quadro sobre a História ciência, ciosos do princípio de
que a ciência só deve prestar contas a si mesma e entendendo que a legi-
timidade a qual justifica investimento público e políticas setoriais podem
prescindir, sem consequências, do reconhecimento e do gosto de públicos
que procurariam a História acadêmica caso suas práticas tivessem no hori-
zonte de públicos outros públicos que não apenas especialistas e pares.
A segunda atitude é aceitar que essa realidade coloca questões re- 3

levantes para a História ciência pensar a si mesma, e que esse auto-exame


requer investigar o processo de institucionalização de cursos de História
brasileiros e as razões que definiram qual tipo de profissional formar, com
que habilidades, em que lugares de atuação e as funções do profissional
da área. Algo que ensejasse, talvez, o valor de apresentar a História se-
gundo linguagens universais sem hermetismos, em formatos editoriais e
meios que se dispusessem a públicos não só de experts. Essa atitude facili-
taria contar, a nosso ver, com a promoção do especialista em História co-
mo alguém cuja condição profissional justificasse o reconhecimento social
do investimento público e da elaboração de políticas setoriais legitimadas,
e mesmo moduladas, por pessoas que não estivessem envolvidas com in-
teresses de verbas e recursos dentro do sistema de ciência.
Há estimativas de que quase oitenta por cento dos colegiais aprecia
história, mas em sites, fruídas no filme e na televisão, nas revistas e livros
de desenho e em meios de entretenimento que acabam sendo formado-
res de ideias.
O livro didático e sua indústria estão implicados nessa conjuntura.
Seu público escolar pressiona para que se modifiquem a fim de acompa-
nhar essa “indústria da História”, confeccionados com imagens, desenhos,
referências a links de sites que remetem a sons, a filmes, documentários,
séries de tevê, onde a história é apresentada, e aceita, como produções
que são tidas como história, mesmo sem o aval do especialista. Marc Blo-
ch (2001) queria que a História também fosse diversão e Albuquerque Ju-
nior (2012) lamenta que a apresentação do conhecimento histórico pelo
historiador profissional tenha perdido o componente estético de beleza e 4

prazer que tanto encantava nos textos de historiadores da Antiguidade.


É razoavelmente comum que muitos historiadores em formação re-
lacionem História disciplina acadêmica e História matéria escolar segundo
critério reprodutivista. Enquanto uma produz, a outra meramente repro-
duz. Ainda é comum — com ressalva para autores do campo do Ensino —
lamentar-se, nostalgicamente, do fato de que progressos da ciência histó-
rica na universidade demoram muito a chegar à escola, sempre em atraso.
São de autores da área do Ensino a defesa do princípio do contradi-
tório, advogando que são histórias diversas as que produzem universidade
e escola.
Se especialistas na universidade produzem conhecimento histórico
pela adesão a temas e abordagens em escala de valor conforme interesses
institucionais e de acordo com meios que reconhecem metodologicamen-
te indispensáveis para uma “boa” história, assim não se passa na escola.
Ali também se produz história, com a diferença de que seus “produtores”
o fazem pela adesão a objetos segundo escala de valor e atribuição de fins
à história que seguem interesses e curiosidades que não são as da acade-
mia universitária. O conceito de “cultura histórica escolar” embasa essa
assertiva e põe cunha no argumento dos que ainda hoje defendem a ma-
téria escolar História na escola reprodutora do conhecimento acadêmico.
Conexo à ideia de “cultura histórica escolar”, há outra de “cultura histórica
especialista”, cujos fins não se coincidem.
Mas o que liga a reflexão até aqui com o curso de Mestrado em His-
tória da UFPR criado em 1971?
Dissemos, acima, “ciência histórica que se pratica no Brasil”, e im- 5

porta considerar o fato de que ciência é prática que contém diferentes


concepções e se estrutura numa organização que define contornos de
procedimentos decisórios e gestão administrativa que impactam a formu-
lação das finalidades, objetivos e funções de seus cursos. O conhecimento
que se produz nesse lugar não é alheio a sua organização institucional.
A história da implantação do sistema de ensino superior brasileiro
em áreas não-práticas de conhecimento tem dupla filiação: alemã, no pla-
no epistêmico, e americana, no plano organizacional.
O sociólogo da ciência Joseph Bem-David assegura que a invenção
da “universidade de pesquisa” é criação alemã do século XIX, sendo marco
a Universidade de Berlim criada em 1808. O apoio estatal às novas univer-
sidades alemãs “decorria da aceitação de uma filosofia especulativa que
exaltava uma ideia a-científica de uma cultura filosófica, literária e históri-
ca, que, segundo se acreditava, era superior a tudo mais.” (BEN-DAVID,
p.162)
No plano organizacional, o modelo americano de racionalização re-
gulado pela produtividade acadêmica que pôs fim ao sistema de cátedras
foi adotado no Brasil ao longo dos anos 1960, por medidas legais que re-
dundaram na Reforma Universitária de 1968. Os acadêmicos norte-
americanos “precisavam limitar-se a uma poderosa tradição anglo-
americana de instrução prática integral. (...) Os estudantes desejavam ser
inteiramente instruídos na prática: não desejavam começar a aprender
esse aspecto de suas profissões depois de sair da universidade” (BEN-
DAVID, p.202). Este o espírito da reforma universitária ao racionalizar o
sistema de ensino superior no país, enfrentando a herança catedrática e 6

oligárquica de nossas universidades.


Muitos de nós sequer cogitamos de que História acadêmica e Histó-
ria escolar não tenham sido sempre separadas, de que esse descompasso
durante muito tempo não existiu, acostumados com a ideia de um sistema
de organização de ensino superior e com cursos de História como se fos-
sem algo sem história.
Aqui referimo-nos ao processo de institucionalização do curso de
História da UFPR, com destaque para seu curso de Mestrado.
O curso de História, então, reunia condições de pleitear junto ao
Ministério a criação de sua pós-graduação no mesmo momento em que
um sistema de pós-graduação estava sendo organizado no país como item
estratégico da política desenvolvimentista dos governos militares. Na es-
teira do processo de prestigiar a ciência como investimento de retorno
produtivo inequívoco, recursos financeiros foram liberados para universi-
dades, e mesmo cursos que não tinham como finalidade a produção de
resultados práticos foram beneficiados por grande financiamento.
O estudo da História dos cursos de História favorece o conhecimen-
to de como, no processo de institucionalização da História como saber de
especialistas no Brasil, foram sendo separadas universidade e escola. O
curso de História e seu mestrado da UFPR ilustra bem essa passagem que
marca a história dos cursos de História brasileiros.
A história do curso de Mestrado na UFPR e a relação de seus criado-
res com a história escolar registram o equacionamento da relação História
acadêmica e História escolar postulada como coisas separadas. A criação 7

da pós-graduação no Brasil separou não só escola e universidade, mas en-


sino e pesquisa e pesquisador e professor no horizonte dos formuladores
de políticas públicas voltadas para a educação. Acontecimentos e perso-
nagens ligados à implantação do curso de Mestrado em História da UFPR,
assim como acontecimentos derivados de sua consolidação, exemplificam
como se configuraram as condições que caracterizaram a separação Histó-
ria universitária e História escolar.
Baseado numa ideia superior de ciência, ancorado em resultados
que o levaram a um grau de excelência nos anos 1970, o Mestrado em
História da UFPR expressava aquele processo histórico de separação, fir-
mado por uma política setorial para o ensino superior que super-
prestigiava a pesquisa — visando o projeto desenvolvimentista científico-
tecnológico dos governos militares — e subprestigiava o ensino. Nesse
processo, a ciência histórica produzida na UFPR ajudou a reiterar concep-
ção hierárquica entre universidade — produtora — e escola — reproduto-
ra — de conhecimento. Em 1975, a ANPUH passava a participar da Socie-
dade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o que inscrevia a Histó-
ria num sistema de ciência inequivocamente.
Nos anos 1980, há acontecimento que revela o enraizamento do
curso de Mestrado em História da UFPR numa referência de História Ciên-
cia em busca de legitimidade – e verbas - num sistema que hipervalorizava
a produção de conhecimento novo pela pesquisa. Quando, em meados
dos anos 1970, começaram pressões dentro da ANPUH para que professo-
res secundários participassem da associação, houve reação. Professores
achavam que a “História estava se abrindo demais”, conforme testemu- 8

nha ex-professora do Mestrado da UFPR, e compreendiam que a História


Científica iria ser prejudicada pela intromissão de amadores e diletantes.
Como contragolpe, especialistas da pesquisa criaram, em 1981, a
Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (SBPH), situação em que profes-
sores da UFPR se destacaram.
Como convinha a uma prática de ciência que se concebia auto-
suficiente, e a escola a reboque do conhecimento acadêmico, a UFPR ex-
punha a originalidade de uma separação ensejada pela instalação da pós-
graduação e que supunha a ciência naturalmente superior a qualquer ou-
tra forma de se conhecer, sendo o conhecimento acadêmico de História
sempre superior ao que a escola, e quem quer que seja, quisesse produzir.
Beatriz Sarlo (2007, p.15) analisa as histórias que tanto agradam ao
público de colegiais. “É verdade que as modalidades comerciais (porque
essa é sua circulação nas sociedades midiatizadas) despertam a desconfi-
ança, a crítica e a inveja rancorosa daqueles profissionais que baseiam sua
prática apenas na rotina do método. Como a dimensão simbólica das soci-
edades em que vivemos está organizada pelo mercado, os critérios são o
êxito e o alinhamento ao senso comum dos consumidores. Nessa concor-
rência, a história acadêmica perde por motivos de método, mas também
por suas próprias restrições formais e institucionais, que a tornam mais
preocupada com as regras internas do que com a busca de legitimações
externas (...) as histórias de grande circulação, em contrapartida, reconhe-
cem na repercussão pública de mercado sua legitimidade”.
Atualmente, a relação que “outras histórias” para “outros públicos”
estabelecem com a sociedade vêm provocar na ciência histórica — ou de- 9

veria provocar — grande reflexão sobre si própria, que pudesse, em meio


a interesses particularistas de seus praticantes, militar por um processo de
produzir conhecimento que não supusesse com relação à sociedade tanto
isolamento e distância.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Fazer defeitos na memória: pa-


ra que servem o ensino e a escrita da História? In: GONÇALVES, Márcia de
Almeida et al (Orgs.). Qual o valor da História hoje? RJ: FGV Edit. 2012

BEN-DAVID, Joseph. O papel do cientista na sociedade. SP: Pioneira, USP,


1974.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do historiador. RJ: Jorge


Zahar Edit. 2001.

HUYSSEN, Andreas. Passados presentes: mídia, política, amnésia. In:


______ . Seduzidos pela memória. RJ: Aeroplano Edit. MAM, RJ. 2000.
p.9-39.

SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da Memória e guinada subjetiva.


Belo Horizonte, MG, São Paulo: Ed. da UMFG, Cia das Letras, 2007.
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE E OS REGIMES DE
HISTORICIDADE

Bruno Ramos Rodrigues1


1

RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar reflexões teóricas acerca da História
do Tempo Presente, dissertando sobre as suas especificidades, bem como uma
discussão pautada no tempo histórico, a partir do conceito de Regime de
Historicidade. A problemática apresentada neste escrito utiliza da produção acadêmica
de alguns historiadores e historiadores que, de maneira instigante e buscando ampliar
a discussão, dissertam sobre o tema proposto, sendo iniciado com as possibilidades
desta perspectiva histórica que se aporta em um passado recente e, por segundo
momento, um debate sobre as relações com o tempo histórico que influenciaram
diretamente no campo científico da história.
Palavras-chave: História do Tempo Presente, Teoria da História, Regime de
Historicidade

ABSTRACT: This article aims to present theoretical reflections on the History of the
Present Time, expounding on their specificities as well as a discussion guided in
historical time, from the concept of historicity regime. The issue presented in this
writing use of academic production of some historians of thought-provoking way and
seeking to broaden the discussion, lecture on the theme, which started with the
possibilities of this historical perspective that brings in the recent past, and per second
moment a debate on relations with the historical time that influenced directly in the
scientific field of history.
Keywords: History of the Present Time, Theory of History, Historicity Regime

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina –
PPGH-UDESC.
INTRODUÇÃO

O historiador enveredado a analisar e problematizar a história da


temporalidade na qual se faz inserido, opta por um viés rico de fontes e de
experiências que remetem à um passado recente e que, por vezes, ainda 2

vívido. A possibilidade de compreender fatores históricos que são,


sobretudo, revisitados cotidianamente por indivíduos ou que, de alguma
forma, se fazem conectados a estes eventos, bem como atores sociais que
utilizam de práticas pautadas no tempo presente enquanto forma de
diálogo, se fazem um caminho interessante à perspectiva da História do
Tempo Presente.
A História do Tempo Presente, assim como dissertado pelo
historiador francês Henry Rousso, do Instituto de História do Tempo
Presente (IHTP), busca analisar aspectos históricos que se fazem recentes
ao pesquisador, utilizando da memória e da experiência de indivíduos
participantes, podendo esta configurar-se, por vezes, enquanto uma
situação histórica inacabada (que não fora encerrada no momento do
evento, mas que se perdurou e se estendeu até os dias atuais), como, por
exemplo, alguns eventos traumáticos (ROUSSO, H. 2009).
Em um debate estabelecido entre Henry Rousso 2 e o conceito de
“regime de historicidade” 3, principalmente o “presentismo”, de François

2
Entrevista realizada com o Henry Rousso acerca da “História do Tempo Presente” na revista Tempo e
Argumento (2009) do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa
Catarina (PPGH-UDESC) disponível em:
<http://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/705/608>.
3
Para maior aprofundamento acerca do conceito conferir a obra HARTOG, François. Regimes de
historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
Hartog, se é argumentado que, diferentemente do que fora acusado
sutilmente por Hartog, o historiador do tempo presente não encarna o
presentismo, pelo contrário, ela é uma reação a este processo, refletindo
acerca do tempo presente e seus aspectos, a partir de um recuo relativo
do pesquisador, possibilitando por assim, um olhar crítico sobre o próprio 3

tempo.
Partindo destas perspectivas introdutórias e munindo-se de
argumentos e debates com outras produções teóricas, o presente artigo
visa disponibilizar uma reflexão acerca da HTP (História do Tempo
Presente) e as suas especificidades enquanto campo de pesquisa, a partir
de historiadores como LAGROU (2009), HOBSBAWM (1998) e o próprio
ROUSSO (2007). Por outro lado, autores como REIS (2003) e HARTOG
(1997), são utilizados enquanto aporte para uma discussão acerca do
tempo histórico a partir do conceito Regime de Historicidade.
A vasta possibilidade de acesso a fontes, principalmente as
testemunhais ou a partir da memória do indivíduo, se faz uma ferramenta
extremamente valiosa ao historiador do tempo presente, principalmente
por intermédio da metodologia da História Oral e as suas possibilidades de
reflexão acerca da entrevista e do entrevistado, sendo assim, como
dissertado pela historiadora Verena Alberti, “Uma entrevista de história
oral pode reconstituir processos decisórios e revelar informações que de
outra forma se perderiam” (ALBERTI, 2000, p. 2), apresentando as
subjetividades e as experiências individuais que são valorizadas por
componentes de grupos sociais, ampliando a compreensão do passado,
disponibilizando uma análise crítica acerca da narrativa e de sua
representação do passado, possibilitando relacioná-la (a entrevista) com
outras fontes disponíveis. A História do Tempo Presente, munindo-se da
riqueza das fontes orais, possibilita ao pesquisador manter contato com o
testemunho vivo de seu objeto de estudo, tornando-se um adicional às
múltiplas aberturas desta perspectiva histórica. Marieta de M. Ferreira, de 4

maneira assertiva, apresenta a relação entre o uso destas duas


possibilidades investigativas, onde:

A história do tempo presente, perspectiva temporal


por excelência da história oral, é legitimada como
objeto da pesquisa e da reflexão históricas; na história
oral, o objeto de estudo do historiador é recuperado e
recriado por intermédio da memória dos informantes,
e a instância da memória passa, necessariamente, a
nortear as reflexões históricas, acarretando
desdobramentos teóricos e metodológicos
importantes; a narrativa, a forma de construção e
organização do discurso são valorizadas pelo
historiador, pois, como lembrou Alessandro Portelli,
fontes orais são fontes narrativas. (FERREIRA. 2012)

Para além do uso da fonte oral e da História Oral, o historiador ou


historiadora que adota perspectiva da História do Tempo Presente se
depara com diversos outros materiais de consulta, a exemplo de
produções midiáticas (jornais, revistas, publicações, dentre outras) que
circulam o período pesquisado, podendo estes evidenciar elementos do
contexto político, urbano, social e cultural que perpassam os
acontecimentos cotidianos e fazem emergir questionamentos dentro da
temática pesquisada. Em suma, esta multiplicidade de fontes ampliam o
leque de investigação e reflexão – sem mencionar o aprofundamento
possibilitado – do historiador, neste sentido a historiadora Márcia Motta,
em seu texto “História, memória e tempo presente”, disserta que:

Se o mar de fontes produzidas na contemporaneidade 5


pode nos levar ao afogamento, a riqueza do corpus
documental é sem dúvida estimulante e desafiadora.
As inúmeras portas de entrada para a pesquisa são um
convite quase irresistível, principalmente para os que
consolidaram sua trajetória em uma temática marcada
por rupturas, mas também por continuidades inscritas
no presente”. (MOTTA. 2012)

Neste sentido discutido por MOTTA (2012) o corpus documental se


apresenta enquanto um personagem de múltiplas facetas, podendo ser
tanto estimulante para compreender, introduzir e entender a trajetória, as
rupturas e as permanências do objeto pesquisado, assim como um
desafio, tendo em vista as inúmeras possibilidades que esse “mar de
fontes” se espraia constantemente ao historiador da contemporaneidade.
Sabendo destes elementos que a História do Tempo presente possibilita,
um dos principais desafios, e que, sobretudo, se apresenta de forma
instigante e fascinante, é o ato de manter-se distante da problemática de
pesquisa, sendo uma ação que carece de dois movimentos simultâneos, o
primeiro o de se fazer inserido e/ou conectado neste espaço temporal,
sendo, assim como bem alertado por Henry Rousso, um dos aspectos mais
dificultoso ao pesquisador, tendo em vista a possibilidade de suas
reflexões serem diretamente confrontadas pelo objeto de estudo e, como
segundo, o de manter uma certa distância de seu objeto para analisa-lo.
A QUESTÃO DO TEMPO NA HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE

O artigo de Pieter Lagrou, “A História do Tempo Presente na Europa


depois de 1945 – Como se constituiu e se desenvolveu um novo campo 6

disciplinar” (2009), que tem por objetivo descrever o processo de


desenvolvimento da História do Tempo Presente na Europa durante o
século XX, é iniciado com as desconfianças que alguns historiadores
possuem acerca da HTP, onde falar do passado próximo se faz uma tarefa
árdua e passível de retaliação. A história considerada “tradicional”, sendo
considerada aquela em que a pesquisa deve restringir-se a um passado
“distante”, inviabilizaria a percepção de outras perspectivas e demandas
históricas e historiográficas, e/ou não proporcionaria metodologias e
problemáticas capazes de abordarem temáticas que se fazem próximas ao
pesquisador, neste sentido este modelo de fazer história acabaria por
duvidar da capacidade de uma abordagem crítica e reflexiva que a história
do tempo presente teria sobre o determinado objeto, bem como a sua
relação com este (tendo em vista a sua proximidade temporal com foco o
objeto de investigação). A História do Tempo Presente, na perspectiva e
no contexto no qual Pieter Lagrou analisa, se faz ou fez enquanto uma
“subdisciplina” desprezada e à margem das perspectivas hegemônicas da
época.
Dentre algumas observações levantadas por LAGROU (2009)
emergem as mudanças acerca da concepção da HTP, principalmente sobre
seu recorte temporal e os aspectos que são por este investigado, as
nomenclaturas que ressaltam o caráter de “fazer história do seu próprio
tempo”, e, referindo-se restritamente à Europa do século XX, os eventos
traumáticos (como Vichy e o genocídio da Segunda Guerra Mundial) que
se arrastam à atualidade, demonstrando a riqueza que a abordagem sobre
o presente pode trazer para a construção da História, sobretudo pelo uso 7

da memória, da narrativa e, principalmente, das permanências e rupturas


para com o passado e com os eventos marcantes de determinadas
sociedades e culturas.
Por sua vez, o historiador Eric Hobsbawn, em “O presente enquanto
história” (1998), disserta que o século XX se faz enquanto um século curto,
pautado em eventos traumáticos, constituído de Grandes Guerras
(Primeira e Segunda Guerra Mundial entre 1914 e 1945) e crises
econômicas que, sobretudo, envolvem(ram) memórias individuais e
coletivas, inclusive a do próprio pesquisador, que revelam as múltiplas
experiências presentes neste período. Lagrou, por inúmeras vezes cita
Hobsbawn enquanto um dos expoentes da reflexão histórica europeia,
tendo em vista o seu “não abandono” das problematizações recentes
pulsantes.

Cito a minha experiência não porque quero persuadi-


los a encarar o século sob esta mesma perspectiva,
mas simplesmente para demonstrar a diferença que
viver dois ou três anos dramáticos pode fazer na
forma como um historiador vê o passado. Um
historiador que escrever daqui a cinquenta anos verá
nosso século por este prisma? Quem sabe? Mas ele ou
ela certamente estará menos à mercê dos
movimentos de prazo relativamente curto do tempo
histórico do que aqueles que os vivenciaram. Esta é a
difícil condição do historiador do seu próprio tempo.
(HOBSBAWM. 1998)

Dentro de seu artigo, Pieter Lagrou, salienta duas modalidades 8


historiográficas que se expandiram durante o século passado na Europa,
sendo a primeira voltada para a produção histórica em institutos ligados
ao Estado e a segunda, denominada pluralista, às organizações políticas.
Os Institutos Nacionais, criados no pós-guerra, possuíam a função
de conservação e codificação de fontes referentes ao período da guerra e
da escrita histórica, sendo “(...) uma intervenção excepcional do Estado na
produção historiográfica” (LAGROU, P. 2009), esta intencionalidade visava
as urgências da época, como o nazismo e a sua ocupação.
A historiografia atrelada aos partidos políticos e organizações sociais
e culturais afiliadas a estes, destinavam, por sua vez, a escrita da história
enquanto uma forma cientifica de legitimar as ações e escolhas políticas
feitas, tornando-se, por sua vez, uma ferramenta de tradição política.
Todavia esta forma de história ofereceu um quadro político acerca do
século XX, o que impulsionou novos trabalhos. A partir do pensamento de
Pieter Lagrou, podemos perceber o interesse da história em analisar e
problematizar eventos que se fazem próximos à sua escrita, bem como o
anseio de angariar, catalogar, preservar e decodificar as fontes referentes
a estes eventos próximos.
Em uma resposta à Lagrou, Henry Rousso, no seu texto intitulado “A
História do Tempo Presente na Europa depois de 1945 – Como se
constituiu e se desenvolveu um campo disciplinar” (2007), busca abranger
os debates e as críticas que permeiam o campo da História do Tempo
Presente. O historiador, em seus apontamentos iniciais, disserta que o
tempo presente acaba por atrair a maior parte das ciências sociais, o que
faz das discussões acerca desta periodização saírem das margens e 9

direcionarem-se aos debates centrais do século XX.


Em diálogo com Lagrou, Henry Rousso alerta-nos certos aspectos
“eurocêntricos” na visão do companheiro de profissão, salientando que os
eventos traumáticos nos quais são analisados pelo historiador,
envolveram e tiveram reflexos em outras localidades para além da Europa.
A crítica que Rousso direciona à Lagrou se faz pela tentativa do historiador
de estabelecer uma data recorte (periodização) ao estudo da História do
Tempo Presente, tendo o advento da Segunda Guerra Mundial enquanto
matriz inicial deste cenário de pesquisa, porém, segundo ROUSSO (2007),
poderia ser substituída por outra data carregada de significância ao século
XX, como, por exemplo, 1914 e a Primeira Guerra Mundial, dependendo
da relação social para com o evento. Neste sentido, a mobilidade do
recorte seria maleável e inerente aos eventos marcantes de determinadas
localidades e a relação que a sociedade tem para com este(s) evento(s).
Um dos posicionamentos do autor, e que se faz o cerne da
discussão envolvida no texto, é de que “(...) a História do Tempo Presente
é, efetiva e estreitamente, dependente de seu tempo (...)” (ROUSSO, H.
2007), sendo este um dos maiores desafios, tanto metodológico como
epistemológico, desta perspectiva histórica. O pequeno recuo histórico e a
gama de fontes da HTP, assim como apontado neste artigo anteriormente,
se fazem enquanto um rico desafio ao seu pesquisador, as análises acerca
destes acervos trazem, dependendo da distância historiador-objeto,
significâncias diferenciadas.
Assim como ROUSSO (2007), HOBSBAWM (1998) afirma sobre o
constante movimento de mudança dentro da História do Tempo Presente 10

e o sentimento de passado inacabado causado por eventos traumáticos


(ou mesmo eventos que fazem parte da vida cotidiana de diversos
indivíduos, tornando-se marcantes) que perpassam os tempos recentes.
Tal apontamento faz emergir a principal “arma” do historiador que
instrumentaliza este modelo de análise temporal, sendo, sobretudo, a
percepção destas mudanças a posteriori do evento.
O “peso” do século XX, principalmente na década de 1980, datação
na qual parte a fala do historiador Eric Hobsbawm, revelam as mudanças
na relação com o passado (de maneira individual ou coletivo e
perpassando múltiplos territórios), assim como nos usos deste por
segmentos de preservação, seja por meio de estudos e preservação de
memórias ou pela elaboração de políticas patrimoniais por meio de
demandas sociais e culturais. Neste sentido, os eixos que regem a HTP
apontados por Rousso, partem da memória, da demanda social (sendo um
dos principais fomentos a novas pesquisas e pautado em interesses não
apenas ligados ao campo cientifico), do testemunho e do acontecimento,
onde estes elementos, de certa forma, se fazem relacionados um com os
outros. Em uma tentativa de exemplificar estes quatro elementos que
emergem desta perspectiva histórica, o autor aponta o testemunho
enquanto indivíduo que, de maneira direta ou indireta, participou e/ou
sofreu interferência efetiva para com o evento analisando, onde o
pesquisador pode utiliza-lo, por do uso da História Oral, enquanto uma
“fonte viva”, sendo este denominado enquanto “ator-testemunha”.

O ator-testemunha, utilizado ou não, 11


instrumentalizado ou não, constitui uma presença a
qual o historiador é obrigado a considerar, da mesma
maneira que o historiador da Idade Moderna ou da
Antiguidade procurar permanecer fiel à fala que ele
recolhe dos atores do passado, mesmo se estes não
estão mais ali para lhe questionar. (ROUSSO. 2007)

O testemunho vivo, segundo HOBSBAWM (1998), se faz enquanto


ferramenta imprescindível ao pesquisador da História do Tempo Presente,
porém, em convergência a Rousso, se torna um desafio metodológico, na
qual necessita ser articulada com outras fontes que possibilitem conhecer
o contexto pesquisado e as possíveis memórias do entrevistado, buscando
o diálogo com outros materiais e, sobretudo, enriquecendo a pesquisa e a
sua produção final.
A memória, por sua vez, se constitui enquanto outro elemento rico
ao historiador do tempo presente, onde a experiência do sujeito vivo
concorre e articula-se com o discurso científico, carecendo de cuidados e
observância à emergência da memória. O acontecimento, dentro da HTP,
em suma, não seria apenas a primeira camada da estrutura, o visível, mas
o momento de conexão entre o indivíduo do presente e o passado recente
(tanto pela memória, quanto pelo testemunho).
Não tendo como objetivo apresentar uma ruptura epistemológica,
mas salientar uma permanente abertura às novas questões e
interpretações no plano teórico, Henry Rousso, a partir de exemplos e
diálogos sobre a aspectos da História do Tempo Presente, utiliza de
interrogações emergentes acerca do seu caráter contextual e/ou 12

universal, para abordar as especificidades deste enquadramento


temporal. Estas dificuldades que saltam deste viés, se fazem presentes na
fala de HOBSBAWM (1998), quando salienta que, apesar de instigante, o
tortuoso breve recuo pode ficar a mercê de ideias do próprio tempo,
comungando, por vezes, de observações binárias e dicotômicas, como por
exemplo, “O bem x O mal”.

OS REGIMES DE HISTORICIDADE

A preocupação com o tempo presente e os aspectos teóricos e


metodológicos que emergem deste, bem como as concepções e relações
temporais com o “agora” e/ou com um passado recente se fazem uma das
principais preocupações de alguns teóricos. Dentre estes, podemos
elencar o historiador francês François Hartog que, a partir do conceito de
“Regime de Historicidade”, busca perceber a experiência do e com o
tempo ao longo da História. Em “O tempo desorientado – Tempo e
história: ‘Como escrever história na França’”, HARTOG (1997) inicia o
artigo apresentando que a experiência de tempo se dá com a relação com
o nosso próprio tempo, sendo este nomeado de “Regime de
Historicidade”, onde a História, neste viés, agiria como um processo que
se apresenta não só no próprio jogo do tempo, mas através deste.
Munindo-se deste aparato teórico, François Hartog historiciza 13

algumas perspectivas de história, bem como os anseios atribuídos à esta,


que se fizeram presentes em diversos períodos. Um dos exemplos
utilizados pelo ator se faz a partir da história enquanto magistra vitae
(mestra da vida), onde o presente, em uma projeção de futuro “digno” e
recheado de conquista, buscava no passado elementos que constituíssem
e contribuíssem à este desejo.

Um regime de historicidade, com efeito, não é uma


entidade metafísica, vinda do céu, mas um plano de
pensamento de longa duração, uma respiração, uma
rítmica, uma ordem do tempo, que permite e proíbe
pensar certas coisas (...) um regime de historicidade
reformular 'recicla' os elementos anteriores da relação
de tempo, a fim de fazer com que ele diga outra coisa,
de outra maneira (...). (HARTOG. 1997)

As mudanças na relação com o tempo fazem emergir uma


aceleração temporal e uma crise com o passado e uma nova perspectiva
com o presente, bem como com o futuro, tendo como marco central os
pós-Grandes Guerras Mundiais. Esta espécie de desilusão, se tem fruto à
concepção de progresso que, como salientado anteriormente, buscava um
horizonte repleto de melhorias. Com as duas guerras do século XX, este
regime de historicidade toma outra forma e interesse, onde o passado,
diferentemente da história magistra vitae ou do historicismo do final do
século XIX, não “serve mais” enquanto modelo a se espelhar.

Posteriormente, apesar da catástrofe da Segunda


Guerra Mundial, a impossibilidade, sem dúvida, de 14
enfrentar aquilo que havia acontecido, as estratégias
de esquecimento, a utopia revolucionário, as
esperanças de transformar a sociedade, a
reconstrução, a modernização, a planificação, a
competição, o confronto leste-oeste, os professos
econômicos, técnicos, as rápidas transformações, em
resumo, a aceleração da aceleração da história e do
tempo, são fatores que concorrem para manter
operacional ou mesmo para relançar o regime
moderno de historicidade e os hinos ao progresso: “o
futuro radiante”, socialista, o “milagre alemão”,
capitalista. Pouco a pouco, todavia, o futuro iria ceder
terreno ao presente, que ia adquirindo cada vez mais
espaço até parecer ocupa-lo inteiramente. Entra-se,
então, no tempo do presentismo. (HARTOG. 1997)

O autor disserta que o presente, com a crise do passado e a


incerteza/inexistência do futuro, apresenta-se como o seu próprio
horizonte possível. A partir desta perspectiva, o historiador faz emergir o
passado no presente, mas não enquanto uma lição à ser seguido e nem
como um vazio sem sentido. A construção do texto de François Hartog
acaba por fazer o seu leitor acompanhar as relações de tempo que a
sociedade francesa experimentou ao longo do século XX (e final do século
XIX), demonstrando os interesses depositados nas três esferas temporais
(passado, presente e futuro), bem como as frustrações para com estas. Em
uma aparente crítica e preocupação ao movimento de extrema apreciação
e – como apontado por ele – “hipertrofia” do presente.
Em “As falhas do presente”, um dos subtítulos dos escritos do
historiador francês, a perspectiva de crise do presente apontada por este
se faz mais clara e evidente através de seu conceito de “presentismo”, 15

sendo a estreita relação histórica e social com o presente, pretendendo,


no próprio espaço temporal do vivido, transformá-lo enquanto tempo
histórico, tornando-se um anseio na preservação da memória do “agora”
ou, na perspectiva de François Hartog, uma inclinação na tentativa de
“prever”. Neste aspecto do presentismo, o presente, sobretudo, torna-se
passado antes mesmo de configurar-se enquanto tal, sendo esta uma das
falhas apontadas por Hartog.
O segundo apontamento que elucida a falha no presentismo se dá
no campo da preservação e conservação, onde a memória e a genealogia
expandem o seu espaço, tornando o caráter do presente enquanto
“hipertrofiado”.

Assim, este presente, reinando, aparentemente, sem


divisão, 'dilatado', suficiente, revela-se inquieto. Ele
gostaria de ser seu próprio ponto de vista sobre si
mesmo, e ele descobre a impossibilidade de praticar
isto. Ele se revela incapaz de preencher a distância, no
limite da ruptura, que ele mesmo cavou entre campo
de experiência e horizonte de espera. O passado bate
na porta, o futuro na janela e o presente descobre que
o solo se afunda sob seus pés. (HARTOG. 1997)
O conceito de presentismo, engloba características
preservacionistas presentes no Regime de Historicidade francês, onde,
sobretudo, se apoia em uma espécie de tripé, contendo a memória
enquanto uma possibilidade de deter aspectos do presente, o patrimônio
sendo a materialização de aspectos deste anseio de preservação e a 16

comemoração que articula com os outros elementos a partir do


enaltecimento de aspectos seletivos. A visão de François Hartog, por
vezes, se aparenta em uma crítica à História do Tempo Presente, porém se
faz mais familiar enquanto uma elucidação do processo de mudança da
relação de uma sociedade com o espaço e o tempo vivido, bem como de
uma perspectiva de produção de conhecimento e memórias, do que uma
refutação à HTP.
Outra perspectiva que dialoga com o tempo histórico e que
problematiza, a partir de alguns autores, as relações com este, se faz
presente no texto “Conceito de tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e
‘Annales’: uma articulação possível” do historiador e professor José Carlos
Reis (2003). Dentro da proposta, o autor apresenta e trabalha com a
noção e concepção de um “terceiro tempo” instrumentalizado pela
história.
O “terceiro tempo” discutido por REIS (2003), em suma, seria a
instrumentalização de dois tempos possíveis, o natural (físico) e o da
consciência (tempo finito). O tempo da física não apresenta diferença
entre passado, presente e futuro, mas sim uma forma abstrata definida
por números dos movimentos naturais, onde o ser que inicia o processo é
o mesmo que termina. Por outro lado, o tempo da consciência, ou o
tempo finito, estaria ligado à processos e relações humanas que estariam
imbricadas em finitudes.

O que o historiador deseja é produzir um


“conhecimento da mudança”, uma descrição do 17
transcurso dos homens finitos em sua experiência da
finitude, que ele considera paradoxalmente o único
apreensível e cognoscível. Seu objetivo é “mediar” um
diálogo entre vivos e “vivos ainda”. (REIS. 2003)

O historiador, segundo as metáforas do autor, atuaria na silhueta da


ampulheta observando o tempo que passou e o tempo que passa,
revirando a estrutura para observar as suas mudanças e experiências
humanas no momento que passa por ele, sendo, por assim, capaz de
dialogar (in)diretamente com as múltiplas camadas temporais e analisa-
las. José Carlos Reis disserta, ao longo da obra, sobre a visão do filosofo
francês Paul Ricoeur acerca do terceiro tempo. Nesta perspectiva, onde o
calendário serviria como instrumento para o historiador identificar as
relações temporais e as memórias preservadas e esquecidas, as gerações
apresentariam vestígios pautados em datas.

A prática histórica, argumenta Ricoeur, produz


“conexões”, reinscreve o tempo vivido sobre o tempo
cósmico através de alguns artifícios: o calendário, a
sucessão de gerações, a preservação dos vestígios em
arquivos, museus, bibliotecas. O tempo histórico é
duplo: ele é a organização que a própria vida coletiva
se dá – nesse sentido ele é um vivido concreto,
efetivo, é uma auto-organização da vida social; e é
conhecimento desse vivido (...) Enquanto puro vivido
o tempo da consciência é inorganizável e inenarrável –
é pura sucessão dispersiva, descontínua, sem costura
possível. Com o calendário, as sociedades, se
organizam, as gerações ganham uma posição em sua
sucessão, os documentos são datados. (REIS. 2003)

18
Neste sentindo, Ricoeur não atribui ao calendário uma referência
objetiva do tempo, mas o utiliza enquanto uma medida que, todavia, é
incapaz de ritmar os tempos heterogêneos, descontínuos e as lembranças
e esquecimentos históricos dentro desta medição. No ponto de vista do
historiador alemão Reinhart Koselleck, nos escritos de REIS (2003) datar e
observar o tempo do calendário (natural) e os vestígios, seriam os
primeiros passos do historiador em sua empreitada de investigação
histórica.

O passado chega ao presente em ruínas, aos


pedações, em fragmentos, pela ação erosiva do
tempo: prédios, templos, imagens humanas e
sagradas, livros, idéias, rituais, palavras estórias,
histórias, cemitérios, ícones, instrumentos, técnicas,
artes, etc. Em geral chegam cortados, amputados,
desviados, quebrados, incompletos, alterados, semi-
destruídos mesmo quanto, e sobretudo às vezes,
quando são reconstruídos. São os restos de um
mundo humano. Datá-los é fundamental, mas é só o
começo do trabalho do historiador. (REIS. 2003)

Caberia ao pesquisador da história uma maior ênfase na perspectiva


acerca das mudanças não numeráveis, mas que são apreensíveis pela
análise, pela interpretação e pelos conceitos. A perspectiva apontada pelo
autor sobre Koselleck faz com que o tempo histórico não se prenda ao
tempo sucessivo do calendário, mas com as experiências de passado e
futuro das sociedades em seu espaço e contexto, tornando-se um tempo
heterogêneo. As percepções presentes no artigo de José Carlos Reis
acerca de Koselleck podem estabelecer certo diálogo com os escritos do 19

historiador francês François Hartog e seu regime de historicidade.


Se é trazido cinco conceitos que Koselleck aborda para identificar as
mudanças na relação com as esferas temporais em determinados
processos históricos: História magistra vitae; Tempo cristão; Tempo
moderno; Tempo do Estado absolutista e; o Tempo contemporâneo. A
história mestra da vida, assim como discutido anteriormente através de
HARTOG (1997), seria a orientação do presente pelo passado, em busca
de um “horizonte de espera” (futuro). O Tempo cristão, por sua vez, teria
o passado e o futuro separados, onde o futuro seria apenas a espera de
uma possível solução de problemas e/ou de uma eternidade. Esta relação
com o tempo poderia ser denominada enquanto “escatológica”. No
tempo moderno o passado não traria conhecimento sobre o futuro, mas,
sobretudo, se esperaria uma inovação a partir de um movimento de
revolução. A temporalidade que envolvem o Estado absolutista e o Tempo
Contemporâneo, apresentam a capacidade de “controlar o tempo” e, a
partir de avanços técnicos e tecnológicos, se dá a percepção de previsão a
partir de prognósticos.
Segundo REIS (2003) “Cada um desses cinco presentes europeus
manteve com seus passados e futuros, relações diferentes. Isto é: o tempo
histórico tornou-se pensável por duas categorias principais: ‘campo da
experiência’ e ‘horizonte de expectativa’”, estes dois conceitos formulados
por Reinhart Koseleck (e revisitados por François Hartog) se apresentam
enquanto formas singulares de sociedades se relacionarem com o seu
presente, passado e futuro. Nestes conceitos trabalhados e discutidos por
REIS (2003) e KOSELLECK (2006), pode se perceber que: 20

A experiência é o passado atual, aquele no qual


acontecimentos foram incorporados e podem ser
lembrados. Na experiência se fundem tanto a
elaboração racional quanto as formas inconscientes
de comportamento, que não estão mais, ou que não
precisam mais estar presentes no conhecimento. Além
disso, na experiência de cada um, transmitida por
gerações e instituições, sempre está contida e é
conservada uma experiência alheia. Nesse sentido,
também a história é desde sempre concebida como
conhecimento de experiências alheias.
Algo semelhante se pode dizer da expectativa:
também ela é ao mesmo tempo ligada à pessoa e ao
interpessoal, também a expectativa se realiza no hoje,
é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o
não experimentado, para o que apenas pode ser
prevista. Esperança e medo, desejo e vontade, a
inquietude, mas também a análise racional, a visão
receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa
e a constituem. (KOSELLECK. 2006)

As certezas de uma projeção de futuro idealizado pelo presente, a


partir de um passado vivido e transmitido, na contemporaneidade, se
apresentam, por vezes, abaladas, sobretudo devida a constante
aceleração de nosso tempo recente, onde “(...) a diferença entre
experiência e expectativa é sempre superada, e de forma cada vez mais
rápida (...)” (KOSELLECK. 2006; 322). O “superar” pode ser entendido
enquanto a abertura para novos tempos históricos a partir de suas
múltiplas estruturas em mudança. As estruturas, para o historiador
alemão, não se revelam, necessariamente, por meio de sucessões de
eventos passados, mas por cenários que se modificam lentamente em um 21

longo período de duração, tendo em vista que “(...) todas têm em comum
o fato de que suas constantes temporais ultrapassam o campo de
experiência cronologicamente registrável dos indivíduos envolvidos em
um evento (...)” (KOSELLECK. 2006; 136), ou seja, são contextos estruturais
que se tornam supraindividuais, extrapolando o tempo vivido do evento,
tornando-se um constante processo.
Para além da mobilização destes elementos de interpretação acerca
do tempo histórico e do viés adotado pelo historiador para entender e
interpretar a relação com o tempo em sua pesquisa, José Carlos Reis
apresenta aspectos concebidos nos Annales onde “(...) o homem não é só
sujeito, consciente livre, potente, criador da história; ele é também e, em
maior medida, resultado, objeto, feito pela própria história (...)” (REIS, J.C.
2003), mas que as estruturas de longa duração (sendo estas as que se
modificam de maneira lenta), no caso desta perspectiva, acabam por
encobrir as especificidades das experiências humanas, tendo em vista a
suas mudanças quase que “imperceptíveis” sob os olhares de um
pesquisador desatento (como em casos sociais, culturais e políticos).
Tendo em vista ser humano enquanto produtor de histórias, experiências
e expectativas, ele acaba por tornar-se o objeto de sua pesquisa,
sobretudo pelo princípio de que este se relaciona e vive determinado
tempo, interagindo de múltiplas formas com a sociedade na qual se
insere.
Munindo-se destas reflexões teóricas acerca da relação destes três
elementos com o tempo histórico e o tempo natural, se faz interessante
enfatizar, assim como o próprio José Carlos Reis fez em seu texto, a 22

necessidade que o historiador possui em enrijecer uma espécie de


“medidor de experiências humanas” sem, sobretudo, solapá-las e/ou
transformá-las em sucessões sem sentido, bem como transformá-las em
experiências homogêneas e vazias, mas, todavia, conhecer e reconhecer a
capacidade do tempo histórico de explicitar, por vezes, as singularidades
presentes nas relações temporais de determinadas sociedades em
múltiplos contextos. Perceber a relação com o tempo, bem como as
funcionalidades e perspectivas que assume o campo histórico e
historiográfico (enquanto produtor de conhecimento), se faz um exercício
árduo ao historiador, principalmente no movimento de afastar-se, de
certa forma, do tempo no qual se está inserido e/ou do objeto no qual
estuda.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Utilizar das múltiplas e variadas fontes que saltam aos olhos do


pesquisador, como, por exemplo, as entrevistas orais, os testemunhos, as
memórias, os acontecimentos, as imagens, as experiências, dentre outros
dos mais variados materiais de análise – como no caso da História do
Tempo Presente – e articulá-las com o contexto da pesquisa, se torna uma
rica oportunidade de confrontar, cientificamente, os diversos discursos
construídos acerca de um passado recente, bem como, observar as formas
que estas narrativas (a partir das fontes) são mantidas, preservadas e
esquecidas. Esta última, sobretudo, demonstra as relações temporais e
históricas que as sociedades carregam acerca do presente, do passado e 23

do futuro. O presente artigo, enquanto um esforço de estabelecer


relações sobre a História do Tempo Presente, os regimes de historicidade,
os interesses e posicionamentos sociais sobre a História, buscou articular
referências teóricas com o processo de pesquisa histórica, sobretudo
buscando apresentar as riquezas e dificuldades que emergem no processo
de investigação do historiador e da historiadora.
Este presente artigo se encerra com uma rica problematização
elucidada pela historiadora Márcia Motta que lembra aos historiadores e
historiadoras acerca dos desafios de sua profissão e empreitadas
intelectuais e cientificas, sendo que:

É preciso atentar também para o fato de que,


sendo a tarefa do historiador a deslegitimação de
memórias, tal operação implica resgatar as
evidências e construir, para seu objeto de pesquisa,
os conflitos de interpretações. Conflitos estes que,
no seu conjunto, conferem algum sentido ao
passado, para além do simples relembrar de
determinado grupo.
(...) é preciso reconhecer, antes de tudo, que o
passado ou o presente estudado foi ou tem sido
vivido por grupos diversos, que construíram e
constroem embates, concepções de vida, visões de
mundo e projetos de sociedade”. (MOTTA. 2012)
Neste sentido cabe a nós pesquisadores/as que utilizamos do tempo
enquanto ferramenta de análise e interpretação de nosso objeto de
estudo, sermos cautelosos/as, todavia, acerca das multiplicidades de
interpretações, a mobilização e a escolha das fontes e, principalmente, 24

acerca dos variados projetos de mundo e de sociedade que (co)existem e


que o nosso tema de pesquisa se insere. São nesses aspectos que as
pesquisas históricas se mantêm e se constroem de forma rica e científica,
bem como em um movimento teórico que constantemente se amplia,
sobretudo acerca das concepções de tempo histórico e das possibilidades
abertas com estes aos historiadores com novas relações entre o passado,
o presente e o futuro, sendo, como dissertado neste presente trabalho,
uma relação temporal e/ou com os Regimes de Historicidade que se
alteram constantemente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, Verena. Indivíduo e biografia na história oral. Rio de Janeiro:


CPDOC, 2000. 5f.

AREND. S. M. F.; MACEDO, F. Sobre a história do tempo presente: uma


entrevista com Henry Rousso. TEMPO E ARGUMENTO, Florianópolis:
Jan./Jun. 2009. Disponível em:
<http://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/705/608>.
Acesso: 22 de abr. 2014
FERREIRA, Marieta de M. História oral: velhas questões, novos desafios. In:
CARDOSO, Ciro F., VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Novos domínios da História.
Rio de Janeiro: Elsevier, Campus, 2012, p. 21-54.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências


do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. (Coleção História e
Historiografia) 25

______. O tempo desorientado - Tempo e História: Como escrever a


História da França?. Anos 90, Porto Alegre, n.7, p.7-28, julho de 1997.

HOBSBAWM, Eric. O presente como história. In___: Sobre história:


ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.243-255.

KOSELLECK, Reinhart. Representação, evento, estrutura. In: -. Futuro


passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto/Ed. PUC, 2006

LAGROU, Pieter. A História do Tempo Presente na Europa depois de 1945 -


Como se constituiu e se desenvolveu um novo campo disciplinar Rio de
Janeiro: Revista Eletrônica Boletim do Tempo, Ano 4, n.15, Rio de Janeiro,
2009.

MOTTA, Márcia M. M. História, memória e tempo presente. In: CARDOSO,


Ciro F., VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Novos domínios da História. Rio de
Janeiro: Elsevier, Campus, 2012, p. 21-36.

REIS, José Carlos. O conceito de tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e


nos Annales: uma articulação possível. In: ___. História & teoria:
historicismo, modernismo, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: FGV,
2003. p.179-206.

ROUSSO, Henry. A história do Tempo Presente, vinte anos depois. In:


PORTO JR., Gilberto (Org.) História do Tempo Presente. Bauru: EDUSC,
2007, p. 277-296.
26
PÁGINAS DA HISTÓRIA DE UMA NOVA CIDADE:
DISCURSOS DE PROMOÇÃO TURÍSTICA DE
FLORIANÓPOLIS (SC)

Carolina do Amarante1
1
2
Patrícia Volk Schatz

Resumo: Florianópolis, a capital do estado de Santa Catarina, destaca-se como um


potencial destino turístico nacional. A trajetória histórica do desenvolvimento de
Florianópolis evidencia discursos e medidas político-institucionais que explicam a
pretensa vocação turística da capital catarinense. Como consequência do acelerado
processo de crescimento urbano e da promoção midiática da Ilha de Santa Catarina
observa-se uma rápida expansão imobiliária que evidencia conflitos ambientais, sociais
e culturais. Assim, esse artigo visa identificar, nas fases de urbanização da cidade de
Florianópolis, quais os fatores que contribuíram para a construção de uma imagem da
capital como destino turístico, e, como, o desenvolvimento urbano é acompanhado de
interesses econômicos e políticos.
Palavras-chave: Urbanização. Expansão. Cidade.

Abstract: Florianópolis, capital of the State of Santa Catarina, stands out as a potential
national touristic destination. The developmental history of Florianopolis shows
political-institutional speeches and measures that explain the evident desire of
promoting Florianopolis as a tourist capital. As a consequence of its quick urban
development and media publicity of the island, the local real estate market started to
boom, provoking environmental, social, and cultural issues. Therefore, this article
intends to identify, within the city’s different development stages, the responsible
factors that contributed to this image of Florianopolis as a tourist destination, and how
its urban development is connected to economic and political interests.
Keywords: Urbanization. Expansion. City.

1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Estado de
Santa Catarina (UDESC). Email: carolina_doamarante@hotmail.com
2
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC). Email: paty_schatz@yahoo.com.br
Introdução
Slogans como “Florianópolis capital turística” e “Florianópolis
capital turística do Mercosul” 3 fazem parte de uma trajetória de discursos
e políticas institucionais adotadas para a promoção da capital catarinense.
Historicamente verifica-se que as fases de urbanização de 2

Florianópolis e as políticas voltadas para a cidade contribuíram para a


sacralização da cidade como destino turístico. A pretensa vocação natural
para o turismo foi estratégica para afirmar a importância de Florianópolis
como capital do estado de Santa Catarina diante do crescimento industrial
de outras cidades a partir das décadas de 1960 e 1970.
Essa temática foi trabalhada por autores como Assis (2000),
Ouriques (1998), Fantin (2000), Ferreira (1998), entre outros, que
procuram evidenciar a construção histórica da função turística de
Florianópolis e suas consequências. Em que pese à importância desses
trabalhos há a necessidade de uma atualização sobre esse debate, de
forma que o objetivo central deste artigo é investigar quais fatores
contribuíram para a construção da imagem de Florianópolis como capital
turística nacional entre as décadas de 1950 e 1990, e como a partir dos
anos 1990 verifica-se a emergência do slogan “Florianópolis capital
turística do Mercosul”. Também buscar-se-á compreender as implicações
desse processo para o crescimento urbano e especulação imobiliária.

3
A concepção para a cidade de Florianópolis como a “Capital Turística do Mercosul”
surge “com o acordo de criação do mercado comum entre o Brasil, a Argentina, o
Paraguai e o Uruguai, em 1991, Florianópolis passou a ser divulgada pelo governo local
como ‘A Capital Turística do Mercosul’, que deveria consagrá-la como polo turístico
internacional e, ainda, como a sede de um novo polo de investimentos e de indústrias
de alta tecnologia.”. (SUGAI, 2015, p. 27).
O texto divide-se em duas partes, sendo que a primeira procura
discutir a emergência dos discursos da vocação turística de Florianópolis
na conjuntura das transformações históricas da cidade. Já a segunda parte
apresenta evidências do papel da imprensa e da atividade imobiliária na
propagação de mensagens alusivas a “Florianópolis, capital turística do 3

Mercosul”, e para tanto serão focados exemplos referentes ao Sul da Ilha


de Santa Catarina. A construção do artigo parte da revisão bibliográfica
sobre o tema e da pesquisa em documentos do Plano Diretor 4, materiais
publicitários e jornais.

A emergência da vocação turística de Florianópolis


A ocupação inicial da Ilha de Santa Catarina esteve intrinsicamente
relacionada às suas atividades administrativas e comerciais. Logo, em
meados do século XIX, as áreas centrais próximas ao porto da cidade eram
densamente ocupadas, enquanto que o interior ilhéu, dominado pelas
atividades da pesca e da agricultura, apresentava-se isolado do centro.
Destaca-se que Florianópolis firmou-se, no século XX, como um
entreposto para atividades comerciais fornecedoras de produtos para o
Vale do Itajaí e cidades próximas via porto. Foi a necessidade de melhorias

4
A lei municipal, conhecida como Plano Diretor é elaborada pela prefeitura em
conjunto com a sociedade civil e encaminhada a Câmara de Vereadores para
aprovação. Este instrumento da política de desenvolvimento municipal tem como
finalidade determinar o que não pode e o que pode ser construído em cada parte do
mesmo. Com isso, visando estabelecer uma melhor qualidade de vida, buscando a
preservação dos bens ou áreas de referência urbana para a população da comunidade
estabelecida.
em infraestruturas para manutenção das atividades econômicas que
permitiram investimentos em abastecimento de água e energia.
A construção da ponte Hercílio Luz na década de 1920 pretendeu
afirmar a capital de Santa Catarina como uma cidade moderna que
valorizava o transporte rodoviário. Como consequência dessa obra de 4

renovação urbana houve o declínio da prática de cabotagem e para Peluso


Junior (1991) a ponte também passou a exercer uma função central como
referência para chegada e saída de passageiros e mercadorias.
Já entre os anos de 1930 e 1940 verifica-se a decadência das
atividades comerciais ligadas ao porto e da agricultura das longínquas
freguesias da Ilha de Santa Catarina, o que explica a emergência de um
discurso em prol do turismo nas décadas seguintes. No entanto, é preciso
destacar que esse processo foi gradativamente lento e ligado a outros
fatores como ações políticas, papel da imprensa e expansão imobiliária.
Ligada a divulgação de Florianópolis como capital turística também se
destacava o intuito de promover a cidade como uma referência de
modernidade.

[...] a promoção do crescimento urbano de


Florianópolis deveria representar mais do que um
simples desejo de aparecer com algum destaque
dentre as capitais brasileiras: significava a apropriação
de imagens pautadas pelos desejos de modernização
que circulavam através de meios de comunicação e
discursos de toda ordem, em âmbito nacional,
acrescentando novos sentidos (LOHN, 2007, p. 303).
É na década de 1950 que se verificam os primeiros indícios de que
os atributos naturais de Florianópolis poderiam servir à atividade turística,
o que se consolida nas décadas seguintes. Soares (1955; 1956) no anuário
Florianópolis Turístico já projetava a importância das belezas naturais da 5

cidade para atração de visitantes.


No entanto, politicamente e estrategicamente o primeiro Plano
Diretor de Florianópolis, datado de 1954, previa criar instrumentos para o
desenvolvimento industrial da capital. Elaborado pelos arquitetos Edgar
Graeff e Demétrio Ribeiro o Plano Diretor previa organizar o espaço
urbano através da regulamentação das construções residenciais e
comerciais, melhorias sanitárias e avanços em infraestruturas de
transportes. Para Lohn (2007) são os meios de comunicação os primeiros à
veicular e especular a respeito da capacidade turística de Florianópolis,
pois as elites dirigentes preconizavam o turismo como uma atividade
acessório para a economia local.

O desenvolvimento do turismo ou, melhor, o seu


surgimento, pode parecer a alguns uma função
fundamental para Florianópolis. (...) Acreditamos,
assim, que o turismo poderá ser uma função acessória
da cidade, que reúne muitas condições para isso. Não
pensamos que tal função possa adquirir primazia
sobre a função econômica de produção e de
intercâmbio, única capaz, a nosso ver, de sustentar
uma grande urbe. (PAIVA, RIBEIRO, GRAEFF, 1952,
p.18-19).
Com a emergência da atividade turística identificam-se segundo
Ferreira (1998), nos anos de 1960, políticas que permitiram o fomento ao
turismo e que mudaram o panorama imobiliário local.
6

De fato somente com a construção de estradas


estaduais, se processou o movimento das praias do
interior da Ilha. Antes delas, os caminhos eram meras
trilhas para carruagens. Foi no governo Celso Ramos
(1961-1966) que se iniciou a abertura do leito da SC
401, ligando a cidade a Canasvieiras. Mas foi somente
no governo Colombo Salles (1971-1975) que estas
estradas receberam asfalto. [...] Antes da década de
70, os veranistas frequentavam no máximo Cacupé e
Sambaqui ao Norte e Ribeirão da Ilha ao Sul. Com a
abertura e asfaltamento das estradas estaduais, aliada
à poluição das praias do perímetro urbano, o eixo de
interesse dos veranistas mudou-se das praias das
baías Norte e Sul para as praias oceânicas.

Ao final da década de 1960 também são registrados importantes


contingentes de visitantes oriundos de estados vizinhos e do interior de
Santa Catarina, o que revelou a necessidade de criação de mecanismos
para regulação da atividade. Nesse sentido, em 1968, é instituído o
Departamento Autônomo de Turismo (DEATUR) que atuava concomitante
ao BESC Empreendimentos e Turismo S/A 5. Nesse mesmo período foram
fundamentais para o desenvolvimento econômico de Florianópolis a

5
Em 1974 a DEATUR e o BESC Empreendimentos e Turismo S/A formam a Empresa de
Turismo e Empreendimentos do Estado de Santa Catarina S/A (TURESC).
implementação da empresa Eletrosul Centrais Elétricas S.A., da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da BR 101.
Também é preciso ressaltar que as mudanças do cenário urbano
florianopolitano decorrentes do segundo Plano Diretor de 1976
permitiram que a cidade se tornasse mais dinâmica. Esta politica 7

privilegiou o porto de Anhatomirim, o centro metropolitano e as


construções da via expressa, do túnel e de uma segunda ponte ligando a
ilha ao continente. Segundo Santos (2005) é a partir desse momento que
se desenvolve uma cultura do lazer que representou um rápido
desenvolvimento urbano principalmente no Norte da Ilha de Santa
Catarina em função do fluxo turístico.
Essas importantes mudanças estruturais facilitaram o
desenvolvimento do turismo e, também, tornaram a capital catarinense
em uma alternativa residencial para interessados em novos empregos ou
nos cursos superiores oferecidos pela UFSC. Assim, o Plano Diretor dos
Balneários de 1985 (n° 2.193/85) criou duas zonas específicas: Áreas
Turísticas Exclusivas (ATE) e Áreas Turísticos-Residenciais (ATR) que
previam ordenar a instalação de hotéis e equipamentos turísticos. Esse
Plano Diretor abordava o turismo como uma atividade central e
substitutiva para a economia tradicional decadente da pesca e da
agricultura. Também é evidente o desenvolvimento das atividades
imobiliárias e da construção civil decorrentes do boom turístico e do
aumento demográfico na Ilha 6.

6
Segundo dados do IBGE em 2004 a população de Florianópolis era de 369.102
pessoas e em 2015 esse número chegou a 469.690 habitantes. Fonte: IBGE (2015).
Segundo Fantin (2000) é possível identificar dois grupos distintos
nos debates relacionados acerca do crescimento da cidade de
Florianópolis. Para a autora a elite local e os grupos políticos dirigentes
projetavam a capital catarinense como uma metrópole, enquanto que
intelectuais defendiam a manutenção de um porte médio para a cidade. 8

No complexo mosaico de atores e forças sociais de


Florianópolis, é possível identificar, provisoriamente,
dois grupos de atores: um primeiro grupo constituído
pelo empresariado da indústria do turismo e do
comércio, administradores públicos e agentes
políticos locais vinculados a partidos conservadores;
um segundo formado por setores ligados à
universidade, às ONG´s, aos movimentos sociais e aos
partidos progressistas e alternativos. (FANTIN, 2000.
p. 17).

Para Assis (2000) a partir da década de 1980 o turismo torna-se


fundamental para o projeto de desenvolvimento econômico local. No
entanto, é preciso destacar que a adoção dessa atividade trouxe impactos
relacionados às questões ambientais, culturais e econômicas. Emergiram
novas atividades relacionadas ao turismo como bares, restaurantes, hotéis
e venda de artesanato local, e estas questões nortearam novos trabalhos
sobre o tema. Ouriques (1998) ao discutir as implicâncias econômicas e
trabalhistas do turismo, no inicio dos anos de 1990, evidenciou uma
precariedade e sazonalidade da atividade concluindo não ser possível
qualificá-las como as principais geradoras de mão-de-obra em
Florianópolis.
Desdobramentos ambientais também foram verificados como
consequência da atividade turística e do aumento da especulação
imobiliária. De acordo com Assis (2000):

A invasão de áreas de dunas (como o Campeche), de 9


manguezais (como a Daniela), a sobrecarga de esgoto
doméstico que compromete a balneabilidade, e a
comprovada contaminação do lençol freático – na
Lagoa e novamente no Campeche- comprovam o
descaso com a questão ambiental. (ASSIS, 2000, p.
51).

A constatação dessas mudanças da capital catarinense, resultantes


da atividade turística, inspirou a adoção de um discurso político mais
preocupado com os problemas ambientais, trabalhistas e econômicos. Em
artigo publicado em 1997 no jornal O Estado é possível verificar uma nova
tendência em planejar a atividade turística:

O planejamento turístico é, como se sabe, uma


ferramenta fundamental para que o desenvolvimento
desse importante setor seja incrementado
permanentemente. E foi exatamente o que as
autoridades municipais, técnicos e empresários
ligados ao setor em Florianópolis, fizeram nos dois
últimos dias. [...] Não se pode mais, é verdade, ficar
repetindo exaustivamente que Florianópolis tem
vocação para o turismo sem que se apresente, na
prática, as providências relacionadas à realização
dessa tendência. (O Estado, apud, ASSIS, 2000).
Planejar o desenvolvimento do turismo passou a ser fundamental
para as elites dirigentes locais. No governo municipal de Esperidião Amim
e Bulcão Viana (1989-1992) é criado o slogan “turismo, ecologia e
tecnologia” que pretendia promover o crescimento de Florianópolis e
preservar as belezas naturais da região. Novamente Fantin apresenta uma 10

importante contribuição sobre o tema ao afirmar que “os conflitos e os


paradoxos que fervilham em Florianópolis neste fim de século não são
resultantes apenas de um ‘choque’ de cultura como querem uns, mas de
um ‘choque’ de projetos e utopias urbanas” (FANTIN, 2000, p. 213).
Como foi possível visualizar no decorrer das mudanças históricas
urbanas de Florianópolis a constituição desta como “capital turística” foi
resultante de interesses políticos e econômicos. Logo, se torna importante
analisar a continuidade dos projetos turísticos para Florianópolis e os
papéis da imprensa e da publicidade na consolidação da “capital turística
do Mercosul”.

O papel da imprensa e da publicidade na divulgação de Florianópolis


como “capital turística do Mercosul”
É notável a consolidação do projeto “Florianópolis capital turística”
como decorrência de uma trajetória histórica em que o turismo é
compreendido como uma opção para o crescimento local. Para Fantin
(2000) a indústria do turismo “desencadeou uma nova configuração
urbana” e causou mudanças no perfil da população florianopolitana.
Nesse sentido, também se destacam os papéis da imprensa e da
publicidade na divulgação da capital catarinense. Segundo Lunardelli
(2013) já durante os anos de 1970 os jornais discutiam os
desdobramentos da atividade turística em Florianópolis e as medidas
estruturais necessárias para comporta-la. Nos anos seguintes as
discussões dos jornais passam a ser acompanhada por medidas do
governo municipal em prol do desenvolvimento do turismo. 11

Assim a partir das décadas de 1970 e 1980 observou-se um


acelerado processo de urbanização e expansão de infraestruturas básicas,
de forma que a área central da cidade expandiu-se e adensou-se.
Paralelamente, o setor turístico desenvolveu-se como um eixo econômico
importante visando às potencialidades naturais e históricas da Ilha de
Santa Catarina, de forma que a atividade passou a ser percebida por
políticas públicas e pelas propostas de planejamento urbano.
Na década de 1980, o IPUF (Instituto de Planejamento Urbano de
Florianópolis) elaborou planejamentos urbanos para os balneários do
interior da Ilha de Santa Catarina. Como verifica-se a partir da citação
abaixo

Os primeiros planos aprovados (1954, 1971) pouca


importância deram ao interior da Ilha de Santa
Catarina, priorizando as relações do centro urbano
com a área continental da cidade. Ressalte-se que o
Plano de Desenvolvimento da Área Metropolitana de
Florianópolis, desenvolvido a partir de 1967,
estabelecendo a planície do Campeche como um de
seus vetores principais de crescimento, efetivamente
refletiu sobre a ocupação do interior insular, muito
embora tais reflexões não tenham comparecido na
proposta legislativa efetivamente aprovada em 1971.
É o Plano Diretor dos Balneários e do Interior da Ilha
de Santa Catarina (aprovado em 1985) que, pela
primeira vez, buscou ordenar o crescimento do
interior insular como um todo. Este plano reconheceu
a decadência das atividades tradicionais e a vocação
da região, demarcou as áreas de proteção ambiental,
estabeleceu limites de ocupação. (REIS, 2012, p. 192). 12

Com o aumento populacional, acelerado e imprevisto, que ocorreu


no interior da Ilha de Santa Catarina a partir da década de 1980, esta
região passou a ter atenção por parte dos planejadores. E a partir desse
contexto que ocorre a aprovação do Plano Diretor dos Balneários e
Interior da Ilha, Lei 2.193/85. (BUENO, 2007). Nesse sentido, este plano
diretor, dispunha sobre o zoneamento urbano e ocupação do solo dos
balneários da capital catarinense declarando-as como áreas de interesse
turístico (IPUF, 1985). A partir da citação abaixo pode-se compreender
como se encontrava organizado, neste período, o planejamento urbano da
cidade de Florianópolis:

A Ilha de Santa Catarina, podia ser dividida, até pouco


tempo, em duas grandes porções funcionais: a Área
Central (urbana) que sedia o aparato político-
administrativo estadual e as atividades comerciais e
de serviço e o interior da Ilha onde, tradicionalmente,
conjugam-se as atividades ligadas à agricultura de
subsistência e a pesca artesanal. Apesar de,
historicamente, o “interior” fornecer a cidade alguns
produtos básicos, ele permanecia relativamente
isolado e estável, com diversas pequenas
comunidades pesqueiras na orla litorânea e alguns
núcleos rurais nas porções interiores. (Diagnóstico do
Plano Diretor dos Balneários, 1984, p. 1).

Idealizado no início dos anos 1980 e aprovado em 1985, o Plano


Diretor dos Balneários e Interior da Ilha, foi pensado como parte do
13
projeto elaborado no ano de 1981, a partir do Plano de Desenvolvimento
Turístico do AUF (Aglomerado Urbano de Florianópolis). Este era uma
parceria entre o governo brasileiro, o BIRD (Banco Internacional para a
Reconstrução e o Desenvolvimento), Governo Alemão e outras entidades,
com a finalidade de investir no turismo a fim de reduzir a sazonalidade,
criar emprego e renda, minimizar os efeitos prejudiciais à população local,
valorizar o patrimônio histórico e diminuir a ocupação irregular (ROCHA;
SOUZA, 2004, p. 117). É nesta perspectiva que se pode compreender que
este plano diretor buscava preservar as tradições culturais 7 da Ilha de
Santa Catarina e promover o turismo, porém a ocupação clandestina
ocorrida neste momento descaracterizou esta proposta. Assim:

7
No Plano Diretor dos Balneários e Interior da Ilha observa-se o interesse
especificamente na preservação das tradições “que, se por um lado o turismo é, na
verdade, uma das potencialidades mais concretas da Capital de Santa Catarina, ele
assume hoje uma característica predatória, desequilibrando o sistema natural e
desestruturando as comunidades tradicionais, não apresentando até então, resultados
econômicos com maior significado para a Região. As perspectivas futuras do litoral da
Ilha de Santa Catarina estão, no entanto, ligadas, sem dúvida, ao crescimento de seus
balneários como centros de turismo e lazer. A preservação dos recursos naturais e dos
núcleos, atividades e hábitos tradicionais (pesca, vilas, folclore, etc...) é, portanto,
condição fundamental, não só para a sobrevivência de importante segmento da
população e da cultura local, como, ainda que paradoxalmente, para a própria
sustentação destas áreas como polos privilegiados de atração turística.” (Diagnóstico
do Plano Diretor dos Balneários, 1984, p. 5-6).
Essas áreas, além do objetivo de propiciar a
continuidade das atividades tradicionais, foram
propostas visando também conter a expansão
“desordenada” dos usos urbanos e turísticos, processo
em franco andamento naquele momento. Com a
acessibilidade melhorada e sujeitas a enormes
pressões imobiliárias, a ocupação dessas áreas não foi 14
contida por esta estratégia, levando a sua ocupação
de forma clandestina a partir do loteamento sucessivo
das glebas coloniais. Este processo, que ocorreu por
toda a Ilha, foi particularmente violento nas grandes
planícies insulares, Campeche e Rio Vermelho. Apesar
de levantar algumas alternativas de incentivo à pesca
(criação de cooperativas) e à agricultura (incentivos
governamentais), o plano não apresenta nenhuma
especulação de como estas atividades poderiam ser
integradas ao desenvolvimento turístico. (REIS, 2012,
p. 180).

Estes projetos de desenvolvimentos entendiam que “as


perspectivas futuras do litoral da Ilha de Santa Catarina estão, no entanto,
ligadas sem dúvida, ao crescimento de seus balneários como centro de
turismo e lazer” (Diagnóstico do Plano Diretor dos Balneários, 1984, p. 1).
Desta forma, foi importante uma retomada do processo inicial de
urbanização da Ilha de Santa Catarina que permitiu observar o
desenvolvimento da modernização da cidade, apresentando como foco a
região do centro e do continente. Assim, foi possível observar sobre as
características desse desenvolvimento para a capital catarinense que:

apesar de Florianópolis ter um grande e “natural”


potencial turístico, a cidade desperta lenta e
tardiamente para essa opção. Mesmo vivendo seu
primeiro boom de expansão na década de 70, a
discussão a respeito era incipiente. É somente a partir
dos anos 80 – quando a cidade vive a euforia do
turismo8 e se defronta com um intenso fluxo de
turistas – que o debate acerca da vocação turística e
da necessidade de implantar políticas e obras infra 15
estruturais ganha vulto. (FANTIN, 2000, p. 74).

A partir da década de 1990 houve a emergência de uma nova


mensagem alusiva à Florianópolis, nomeando-a como “capital turística do
Mercosul” e o papel dos meios de comunicação e da publicidade
imobiliária foram ampliados. Em relação à função dos meios de divulgação
para o turismo

a mídia entra como fator determinante para o


exercício da função apelativa, incentivando o valor
qualitativo dos espaços no planeta, promovendo
lugares exóticos, valorizando o lazer em contraposição
ao stress, que é o representante do ritmo de vida
contemporâneo. (DORTA; DROGUETT 2004, p. 26).

A Ilha de Santa Catarina se configura como um destino turístico que


atrai expressivo número de visitantes todo ano em busca de qualidade de
vida junto à natureza, de forma que a mídia constantemente veicula
imagens da cidade atraindo investimentos de capital e estimulando a
expansão imobiliária. Nesse contexto, ressalta-se a relevância de
compreender a dinâmica de configuração do espaço urbano.

8
Grifo da autora.
Diante de uma conjuntura da cidade de Florianópolis que se volta
para o desenvolvimento, até mesmo o Campeche entra nesse contexto e
passa a ser alvo também de uma demanda de turismo que é muito
valorizada nos aspectos históricos, econômicos e sociais que explicam o
crescimento urbano do bairro. Dessa forma, além desta região, no mesmo 16

período histórico, outros projetos de empreendimentos foram planejados


numa perspectiva turística que foram Jurerê Internacional, Costão do
Santinho e Projeto do Porto da Barra. (FANTIN, 2000).
Neste cenário de desenvolvimento turístico na capital catarinense, a
partir da implantação de novos projetos urbanos pode-se comparar o caso
do bairro do Campeche com o empreendimento implantado no norte Ilha
de Santa Catarina, durante as décadas de 1980 e 1990, o projeto Jurerê
Internacional que foi projetado na perspectiva de “atender a uma
demanda de consumo privado, de camada média e alta, sem alterar
significativamente o quadro de carências das comunidades ali sediadas, e
sem valorizar um aproveitamento mais racional dos recursos locais”
(FERREIRA, 2005, p. 111). Sobre este contexto histórico de Florianópolis:

Nos anos 90, em meio ao processo de globalização, o


turismo torna-se agenda imprescindível nos debates,
aguçada ainda mais com a organização do Mercosul,
que se descortina como um novo mercado a desafiar
as cidades – especialmente Florianópolis, que se
autodenomina “Capital Turística do Mercosul”. Em
sintonia com as transformações advindas do processo
de globalização da economia e mutações no mercado
de trabalho, que acena para o crescimento do setor de
serviços e novos usos do tempo livre, reforça-se a
discussão da chamada vocação para o turismo
(indicando que Florianópolis ‘escolheu o caminho
certo’) e da necessidade de incrementar a indústria do
entretenimento, do turismo e do lazer. (FANTIN, 2000,
p. 75).

17
O capital imobiliário que também passou a investir no Sul da Ilha de
Santa Catarina promovendo o crescimento, por exemplo, do bairro
Campeche que se tornou destino turístico e residencial. Nesse sentido é
perceptível o boom imobiliário no local através da multiplicação de
condomínios fechados de alto padrão.
Desta forma, pode-se perceber que houve um interesse muito
grande no bairro durante a expansão urbana de Florianópolis e que isso é
notório diante da quantidade de propagandas de venda do bairro que
podem ser levantadas. Diante de uma conjuntura da cidade de
Florianópolis que se volta para o desenvolvimento com o emblema de
“Capital Turística do Mercosul”, até mesmo o Campeche entra nesse
contexto e passa a ser alvo também de uma demanda de turismo que é
muito valorizada no sentido de mercado, de movimentação econômica,
ou seja, d’A Cidade Nova do Campeche.
A planície litorânea do Campeche vem sofrendo, desde o início da
década de 1990, transformações em suas áreas de ocupação urbana e no
bairro como um todo, e é a partir dessas mudanças que permitem refletir
a quem deve servir o plano diretor da região do bairro do Campeche ou a
quem tem servido.
A partir da perspectiva d’A Cidade Nova do Campeche, muito
semelhante, por exemplo, da concepção da região industrial do Vale do
Silício nos Estados Unidos foi formulado o Plano Específico do Parque
Tecnológico do Campeche de 1992. Dessa maneira, torna-se compreensível
quais eram as propostas para o bairro, até então com aspectos rurais, que 18

nesse momento se direcionava ao processo de urbanização. Logo, o


Campeche passou a ser vislumbrado por interesses complementares entre
a população local e o capital multinacional na ideia de se desenvolver o
bairro através de um novo espaço industrial e tecnológico. (RIZZO, 2005).
Dessa forma, entende-se que o bairro do Campeche, como qualquer
outro lugar, está integrado com todo o globo, assim, ao se pensar nesta
perspectiva A Cidade Nova do Campeche foi projetada como uma
proposta das relações sociais produzidas sob a ótica do sistema político e
econômico do capitalismo (RIZZO, 2005).
A partir da análise desta perspectiva vêem-se condomínios surgindo
em localidades da Ilha de Santa Catarina que já não suportam nem a
densidade preexistente, mas que por estar à beira mar, ganham status e
agregam valor, gerando lucro a quem os vende. Em princípio as
construções são embargadas, mas as autoridades acabam por ceder. A
questão é se o município conseguirá fornecer as futuras necessidades por
infraestrutura, uma vez que não consegue suprir nem as carências já
existentes. (FILHO, 1992; SANTOS, 1990).
Sendo assim, o aumento da cidade de Florianópolis pode ocorrer
pela densificação da ocupação do solo urbano ou a transformação do
espaço rural em urbano. O fato é que quanto maior a cidade, maior sua
complexidade econômica e sua composição social. Um dos grandes
problemas na cidade de Florianópolis é a questão da especulação
imobiliária. Dessa maneira, pode-se compreender que o valor de um bem
depende do uso que lhe for atribuído, e quanto mais raro ele for, mais
caro será. Como nos casos do bairro do Campeche ou de Jurerê 19

Internacional que por ser constituírem em praias o uso que se faz dessas
localizações por parte dos empreendimentos imobiliários seria a boa vista,
ou seja, a espetacular natureza e a qualidade de vida, ou “A vista real do
melhor momento da sua vida” 9. (FILHO, 1992; SANTOS, 1990).
Segundo Márcia Fantin (2000), a grande parte das atrações
turísticas da Ilha de Santa Catarina são as suas belezas naturais. Se esta
procura por parte dos turistas seria a de apreciar e curtir a natureza
exuberante da capital catarinense é a especulação imobiliária que se
aproveita destes migrantes internos para negociar as paisagens
privilegiadas, fazer empreendimentos estratégicos rentáveis onde haja a
intervenção direta ao meio ambiente natural da cidade de Florianópolis.
Apesar, de este ser um cenário ameaçador que coloca em jogo o futuro e
as belezas naturais da cidade. Esta divulgação e promoção da Ilha de Santa
Catarina como uma cidade turística acontecem geralmente por meio das
propagandas, como se observa, por exemplo, em uma revista de grande
circulação no Brasil que seria a Revista Viagem e Turismo da editora Abril
cujo título é “Guia: 101 lugares para ser feliz” e classifica a cidade de

9
Título baseado na propaganda do panfleto do condomínio residencial Vila Itararé,
ver: Panfleto Vila Itararé.
“Florianópolis - Santa Catarina” como “Grandes Cidades” e a descreve da
seguinte maneira:

Só no quesito praias, são 42. Tem as de água morna e


ondas mansas e as de mar frio e agitado; as badaladas, 20
com festas regadas a champanhe, que varam a noite;
e as familiares, ideais para levar a criançada. Mas nem
só de água e areia vive a capital catarinense. O centro
histórico, com seus antigos edifícios e uma grande
figueira na praça central, é uma graça. Por toda a
cidade há restaurantes deliciosos que servem desde
frutos do mar até pizza e comida japonesa. E gente
bonita e atenciosa que torna o lugar ainda mais
encantador. (Revista Viagem: Guia 101 lugares para
ser feliz, 2014 - 2015, p. 64).

A essa perspectiva de promover a capital catarinense a partir de


suas belezas naturais, aspectos culturais e boas condições de
infraestrutura compreende-se que esta se insere na proposta que se
projeta para Florianópolis como a “Capital Turística do Mercosul”, pois
esta ideia é voltada para atender aos migrantes, ou seja, a essa demanda
de pessoas voltada para o turismo da cidade. (ROSSATO; MARTINS, 2013).
A mensagem publicitária exemplificada acima enfatizando a
qualidade de vida existente na cidade de Florianópolis devido a sua
exuberante natureza contribuiu para a vinda de novos moradores para a
Ilha de Santa Catarina. Assim a partir da promoção da cidade – e mais
especificamente os bairros - fica compreensível que a vinda de migrantes
para Florianópolis contribuiu para o crescimento e ou expansão da
urbanização do interior da ilha. 10 Esses migrantes são classificados como
internos, pois referem-se a um deslocamento de pessoas de uma área
(província, região, município) para outra, no interior do mesmo país.
(CASTLES, 2005).
21

O turismo, a migração interna e mesmo a imigração


atraíram para a cidade um conjunto de novos
moradores, o que desencadeou acirradas disputas por
territórios e simbolismos e importantes rearranjos nas
diferentes redes locais (de poder, de amizade, etc.),
tendo como principal objetivo a apropriação da
cidade, de seus usos, de seus sentidos, de sua
memória e de sua história. Num curto espaço de
tempo, que compreendeu no máximo três décadas,
Florianópolis ampliou a população residente, passou
por mudanças inusitadas para muitos de seus antigos
moradores, que viram desaparecer quase por inteiro a
cidade com a qual estavam habituados, e acabou por
assumir certas feições de um aglomerado urbano
populoso, cosmopolita e fundamentalmente
impessoal. (CAMPOS; FALCÃO; LOHN, 2010, p. 268).

Uma das razões para as transformações ocorridas na cidade de


Florianópolis a partir da década de 1990 seria a forte vinda de migrantes.
Sendo assim, esta ocorre, pois a natureza, a infraestrutura e a qualidade
de vida urbana tornam-se alguns dos aspectos vendidos pelo marketing
imobiliário na capital catarinense. Este processo é conduzido pelos

10
A respeito do crescimento da Ilha de Santa Catarina pela vinda de turistas o Plano de
Desenvolvimento Turístico com atualização em 1999 aponta que “As praias e as
belezas naturais são os maiores atrativos que motivam a vinda de turistas para a
Florianópolis na alta estação, segundo pesquisas realizadas em 1981 e 1997.” (Plano
de Desenvolvimento Turístico, 1999, p. 37).
grandes empreendedores imobiliários e pelos governos estadual e
municipal. Desta maneira, vários empreendimentos e condomínios são
construídos em conjunto com algum aspecto físico ou simbólico da
natureza para atrair investidores e compradores, ou seja, os migrantes
que acabam visitando por turismo a Ilha de Santa Catarina. (HENRIQUE, 22

2005).

Juntamente com a forte onda de migrantes para


Florianópolis, buscando a capital de maior qualidade
de vida brasileira, e que vêm provocando um forte
processo de urbanização, comprometendo o futuro de
suas paisagens, seus ecossistemas, seus habitantes, ou
seja, tudo o que é vendido pelo marketing turístico e
constitui o produto base da principal atividade
econômica local. (LOCH; SANTIAGO; WALKOWSKI,
2008, p. 75).

O apoderamento da natureza pelas empresas do mercado


imobiliário da capital catarinense ocorre em um processo de valorização
monetária de condomínios e loteamentos para a população de alta renda.
Desta forma, a “vinda” dos migrantes de outras regiões para a Ilha de
Santa Catarina somam-se a estes novos empreendimentos a ideia de
“venda” do local, ou seja, acaba-se por desenvolver um acesso desigual à
natureza na cidade a partir da aquisição desses espaços pelos migrantes
que vem para a Ilha de Santa Catarina por turismo.
A partir disso fica compreensível que a vinda de migrantes para
Florianópolis contribuiu para o crescimento e ou expansão da urbanização
dos bairros. Segundo Flávio Villaça (2003) os mecanismos de mercado
imobiliário e o poder público produziram um espaço urbano onde os mais
ricos, que geralmente são os migrantes internos, ficam com as melhores
localizações e serviços, inclusive os públicos como, por exemplo, o
transporte, e os mais pobres ficam com as piores.
Ainda, segundo Flávio Villaça (2003), a especulação imobiliária gera 23

desiquilíbrio nas cidades, distorcendo seu espaço, ou seja, a dominação


leva a exclusão social. Quando esta exclusão social toma uma dimensão
espacial na escala da cidade, ela é chamada de segregação urbana. A
separação entre classes sociais e entre funções no espaço urbano criou
territórios diferenciados dentro da cidade – uma exclusão não formal, mas
que não deixa de estar evidente. Como se houvessem barreiras
imaginárias, cada qual passou a conhecer seu lugar dentro desta ordem
que se estabeleceu se sentindo um invasor em determinados locais –
mesmo que estejamos nos referindo a locais públicos.
Portanto, as construções imobiliárias, cada vez mais presentes na
localidade, são os reflexos mais visíveis desse processo de expansão da
urbanização de Florianópolis em direção aos bairros. As transformações
recentes e crescentes demonstram que o contexto histórico
contemporâneo seria de um planejamento urbano voltado para o turismo,
logo, estes espaços e suas propagandas estão cheias de informações que
se remetem a si mesmas, enfatizando o que elas são ou o que seria
interessante que elas fossem.
Considerações finais
A trajetória histórica da cidade de Florianópolis evidencia o
desenvolvimento de políticas e mensagens alusivas ao potencial turístico-
econômico da Ilha de Santa Catarina.
Desde a década de 1950 já se identificavam discursos que evocavam 24

a Florianópolis Turístico para projeção dos atributos naturais da região e


estabelecimento de atividades e serviços para os visitantes.
Assim, a partir da análise dos planos diretores para Florianópolis foi
possível observar a transformação dos bairros e ou balneários do interior
da Ilha de Santa Catarina, que cresceram acompanhando o
desenvolvimento da cidade. Além disso, é notável que a partir da década
de 1990 também se buscou atender o projeto de ocupação elaborado pelo
IPUF. A partir da implantação do plano diretor, a configuração da cidade
de Florianópolis e consequentemente dos bairros, começou a sofrer
transformações significativas.
A concretização do slogan “Florianópolis Capital Turística do
Merscosul” acompanha o processo de formação do mercado comum
entre Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina, além de projetar a capital
catarinense como destino turístico internacional.
Dessa forma esse artigo apresentou uma atualização sobre o debate
relacionado a projeção de Florianópolis como destino turístico nacional e
internacional. Foi possível verificar que a decadência de atividades
tradicionais impulsionou a formação de discursos e políticas preocupadas
com o turismo e que gradativamente a mídia e a publicidade passaram a
atuar como agentes na consolidação dessa atividade econômica.
Referências
ASSIS, Leonara Portela de. Planos, Ações e Experiências na
transformação da “pacata” Florianópolis em capital turística. Dissertação
(Mestrado em História)-Programa de Pós Graduação em História,
Universidade Federal de Santa Catarina, 2000. 25

BUENO, Ayrton Portilho. Parecer sobre o Plano de Desenvolvimento do


Campeche. In: O Campo de Peixes e os Senhores do Asfalto: memória
das lutas do Campeche. BARBOSA, Tereza Cristina P.; BURGOS, Raúl;
TIRELLI, Janice. (Orgs). Florianópolis: Editora Cidade Futura, 2007.
CASTLES, Stephen. Migrações internacionais no limiar do século XXI:
questões e tendências globais. In: CASTLES, Stephen. Globalização,
transcionalismo e novos fluxos migratórios: os trabalhadores convidados
às migrações globais. Fim de Século, 2005, p. 15-43.
DORTA, Lurdes; DROGUETT, Juan. Mídia, Imagens do Turismo:
desenvolvimento teórico para as áreas da comunicação e do turismo. São
Paulo: Textonovo, 2004.
FANTIN, Márcia. Cidade Dividida: Dilemas e Disputas Simbólicas em
Florianópolis. Florianópolis: Cidade Futura. 2000.
FERREIRA, Sérgio Luiz. O banho de Mar na Ilha de Santa Catarina.
Florianópolis: Editora das Águas, 1998.
FERREIRA, Francisco Antônio Carneiro. Natureza e projeto urbano na Ilha
de Santa Catarina. In: PIMENTA, Margareth de Castro Afeche.
Florianópolis como espaço do público. In: PIMENTA, Margareth de Castro
Afeche(Org.). Florianópolis do outro lado do espelho. Florianópolis: Ed.
da UFSC, 2005.
FILHO, Cândido Malta Campos. Cidades Brasileiras: seu controle ou o caos
– o que os cidadãos devem fazer para a humanização das cidades no
Brasil. 2° ed. – São Paulo: Studio Nobel, 1992. – (coleção cidade aberta).
HENRIQUE, Wendel. A felicidade não tem preço, tem endereço:
condomínios, loteamentos e a apropriação da natureza. Scripta Nova. 26

Revista electrónica de geografia y ciencias sociales. Barcelona: Universidad


de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (14). Acesso em:
<http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-194-14.htm>.
INSTITUTO DE PLANEJAMENTO URBANO DE FLORIANÓPOLIS- IPUF. Lei
2.193. Florianópolis, 1985.
LOCH, Carlos; SANTIAGO, Alina; WALKOWSKI, Marines. O Plano Diretor
como estratégia de organização espacial e planejamento turístico de
Florianópolis/SC. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo. v. 2, n. 2, jul.
2008.
LOHN, Reinaldo Lindolfo. Limites da utopia: cidade e modernização no
Brasil desenvolvimentista (Florianópolis, década de 1950). Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 27, n° 53, p. 297-322, 2007.
LUNARDELLI, Daniel Henrique França. A “cidade milagre”: novos
contornos de uma Florianópolis em vias de modernização. Cadernos NAUI.
Florianópolis, v. 2, n° 2, p. 51-79, 2013.
OURIQUES, Helton Ricardo. Turismo em Florianópolis- uma crítica à
indústria pós-moderna. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 1998.
PIMENTA, Margareth de Castro Afeche. Florianópolis como espaço do
público. In: PIMENTA, Margareth de Castro Afeche (Org.). Florianópolis do
outro lado do espelho. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2005.
PAIVA, Edvaldo, RIBEIRO Demétrio, e GRAEFF, Edgar. Florianópolis: Plano
Diretor. Porto Alegre. Imprensa Oficial do Estado do Rio Grande do Sul,
1952.
REIS, Almir Francisco. Ilha de Santa Catarina: permanências e
transformações. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012. 27

RIZZO, Paulo Marcos Borges. A natimorta Tecnopólis do Campeche em


Florianópolis – delírio de tecnocratas, pesadelo de moradores. In:
PIMENTA, Margareth de Castro Afeche. Florianópolis do outro lado do
espelho. Florianópolis: Editora da UFSC, 2005.
ROCHA, José Rodrigues da; SOUZA, Amilton Vergara de. Plano Diretor de
Florianópolis Resenha Histórica. In: IPUF - INSTITUTO DE PLANEJAMENTO
URBANO DE FLORIANÓPOLIS. Atlas do Município de Florianópolis (Org. por
Maria das Dores de Almeida Bastos). Publicação da Prefeitura Municipal
de Florianópolis, 2004.
ROSSATO, Luciana; MARTINS, Mariane. “Um pedacinho de terra perdido
no mar”: um novo destino turístico em construção. Fronteiras: Revista
Catarinense de História [on-line], Florianópolis, n.22, p.9-28, 2013.
SANTOS, Carlos Nelson dos. O uso do solo e o município. 3° ed. – Rio de
Janeiro, IBAM, 1990.
SANTOS, Fabíola Martins dos. Uma analise histórico-espacial do setor
hoteleiro no núcleo urbano central de Florianópolis (SC). Dissertação
(Mestrado em Turismo e Hotelaria)- Programa de Pós Graduação em
Turismo e Hotelaria, Universidade do Vale do Itajaí, 2005.
SOARES, Doralécio. Florianópolis Turístico. Acervo de obras raras da
Biblioteca Central da Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianópolis, 1955; 1956.
SUGAI, Maria Inês. Segregação silenciosa: investimentos públicos e
dinâmicasocioespacial na área conturbada de Florianópolis (1970-2000). 28

Florianópolis: Ed. da UFSC, 2015.


VILLAÇA, Flávio. A segregação urbana e a justiça (ou a justiça no injusto
espaço urbano). Texto publicado na Revista Brasileira de Ciências
Criminais, ano 11, n° 44, julho/setembro de 2003, p. 341-346.

Documentos jurídicos:
Diagnóstico do Plano Diretor dos Balneários, 1984.
Plano de Desenvolvimento Turístico, 1999.
O GUIA DO VIAJANTE NO TEMPO E NO ESPAÇO EM SALA
DE AULA: PRÁTICAS DE LEITURA E DE ESCRITA NA
APRENDIZAGEM HISTÓRICA
Carolina Corbellini Rovaris 1
1

Resumo: Este trabalho apresenta uma atividade de narrativa histórica desenvolvida


por alunos do curso de Bacharelado e Licenciatura em História na disciplina de Estágio
Curricular Supervisionado da Universidade do Estado de Santa Catarina -UDESC. Esta
atividade foi realizada em uma turma de primeiro ano de ensino médio de uma escola
pública da rede estadual de Santa Catarina em 2014. Partindo da hipótese de que as
práticas de leitura e escrita de textos históricos no ambiente escolar podem contribuir
para complexificar a consciência histórica, este trabalho também analisa as produções
textuais dos estudantes, a fim de compreender como como estas habilidades
interferem na aprendizagem histórica dos mesmos. Os resultados apontam para a
necessidade de trabalhar com os alunos a compreensão histórica a partir de leitura de
textos e interpretação de documentos, uma vez que será a partir das diversas
linguagens que o aluno se transformará em sujeito crítico e atuante na sociedade.
Palavras-chave: aprendizagem histórica, compreensão histórica, práticas de escrita e
de leitura, linguagem.

Abstract: This paper presents an activity of historical narrative created by students of


the History Course in the apprenticeship of the State University of Santa Catarina –
UDESC. This activity was developed in a First Year class of a public High School of Santa
Catarina in 2014. Assuming that reading and writing practices of historical texts in the
school environment can contribute in complexifying historical consciousness, this
paper also analyzes the students’ textual productions in order to understand how
these skills interfere with their historical learning. The results indicate we must work
with the students the ability of reading and interpreting texts to develop their
historical understanding, considering it will be from the various languages that the
student will become a critical and active individual in society
Keywords: historical learning. Historical understanding, Reading and writing practices,
language.

INTRODUÇÃO
1
Professora de História. Graduada em Bacharelado e Licenciatura pela Universidade do Estado de Santa
Catarina – UDESC. E-mail: carolcrovaris@gmail.com
Este trabalho tem como objetivo apresentar uma proposta de
atividade desenvolvida pelos alunos do curso de Bacharelado e
Licenciatura em História (Carolina Corbellini Rovaris, Claúdio Luiz Pacheco
e Jéssica Cristina Back Gamba), da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC), durante a disciplina de Estágio Curricular 2

Supervisionado, e os seus resultados após ser realizada em uma turma de


primeiro ano de ensino médio de uma escola pública da rede estadual de
Santa Catarina, no ano de 2014.
A temática definida pela professora regente da turma em que
desenvolvemos a prática do estágio foi Grécia e Roma na Antiguidade.
Neste sentido, no primeiro semestre de 2014, elaboramos um projeto de
ensino de História a partir das observações realizadas em sala de aula. O
principal objetivo do projeto era desenvolver o pensamento histórico nos
alunos, a fim de capacitá-los com ferramentas de investigação próprias do
saber histórico. A partir desta perspectiva, a proposta foi analisar as
relações entre diferentes períodos históricos através do estudo da
Antiguidade e sua relação com o presente. Ela se faz necessária porque
quando questionados sobre o que entendiam por História, os estudantes
responderam de um modo geral, que é o estudo do que “já aconteceu há
muito tempo, estudo de tempos passados, das gerações passadas”.
Percebemos, portanto, que a disciplina é tomada somente como algo que
estuda o que está distante da sua realidade. Os alunos não enxergam no
estudo da História a possibilidade de desenvolvimento crítico e a
contribuição da mesma para compreender e propor soluções para
problemas sociais atuais, como preconceito e desigualdades, por exemplo.
O GUIA DO VIAJANTE: RELAÇÕES ENTRE PRÁTICAS DE ESCRITA E DE
LEITURA E APRENDIZAGEM HISTÓRICA

Tomando o ensino de História a partir da cognição histórica situada


(SCHMIDT, 2009), considera-se que seu objetivo principal é desenvolver o 3

pensamento histórico nos alunos, isto é, capacitá-los com ferramentas de


investigação próprias da ciência historiográfica para trabalharem a partir
da análise de documentos e/ou acontecimentos históricos. A concepção
de aprendizagem histórica que se quer como modelo significa apreender
os métodos de pesquisa e dar significado ao saber histórico, uma vez que
o mesmo adquire sentido no decorrer de preocupações do presente
instigando à pesquisa do passado.
Para que o aluno consiga desenvolver o pensamento histórico ele
precisa dominar habilidades de leitura, escrita e interpretação que o
possibilitará compreender as relações entre passado e presente, perceber
os movimentos que amarram diversas temporalidades, sujeitos e
contextos diferentes (SILVA, 2012). Isto porque para que haja
compreensão histórica se faz necessário apreender a especificidade da
História. Aliada a isto, é necessário, também, que o aluno desenvolva
habilidades de leitura e de escrita que o permitam, através da linguagem,
atuar criticamente na sociedade em que vive (SOARES, 2004).
Tendo este panorama em vista, a intervenção na turma foi pensada
a partir da ideia de aula-oficina: o aluno terá espaço para demonstrar seu
conhecimento prévio acerca das temáticas abordadas, e o professor, na
condição de agente investigador, buscará aquilo que os alunos já sabem
para organizar atividades que permitam complexificar e problematizar os
conceitos a serem estudados (BARCA, 2004). No percorrer das aulas, o
primeiro momento se deu de forma expositivo-dialogada. Em seguida, os
alunos foram instigados a fazer uma atividade visando produzir
conhecimento através do que foi discutido. 4

A partir desta concepção de aula, elaboramos uma proposta de


atividade de escrita individual para ser realizada em sala: o guia do
viajante no tempo e no espaço. A proposta tinha como objetivo instigar os
alunos a produzirem narrativas problematizadoras e a relacionar seu
conhecimento cotidiano com o conhecimento científico. Após uma aula
abordando a cidadania na Antiguidade e no presente, os alunos deveriam
escrever uma narrativa que abordasse as duas temporalidades,
percebendo rupturas e continuidades. Mas a proposta lhes impunha outro
desafio: criar uma narrativa que apresentasse a possíveis leitores o
conteúdo trabalhado como se estes fossem viajantes no tempo. Isto é,
criar uma narrativa dinâmica e bidimensional, utilizando o tempo verbal
no presente apresentando questões do passado:

Agora você é um viajante pelo tempo e espaço. O passado


e o presente se diferenciam e se aproximam em algumas
questões. Uma delas é o ser cidadão. O que o/a faz ser
considerado/a cidadão? Imagine que você fez uma viagem
no tempo e desembarcou no Mediterrâneo Antigo. Circule
no mapa o local de chegada. Neste local, você seria
considerado um cidadão ou um estrangeiro? Por quê? 2

2
Enunciado elaborado pela autora e pelos colegas do grupo de estágio, Claúdio Luiz Pacheco Júnior e
Jéssica Cristina Back Gamba.
Para além do desenvolvimento da escrita e do processo criativo dos
alunos, a atividade tinha como objetivos abordar diferentes períodos
históricos, interpretando-os como um processo e desenvolver nos alunos
a capacidade de pensar o outro como sujeito do seu próprio tempo,
desconstruindo noções de hierarquia entre presente e passado. 5

Vinte e quatro alunos estavam presentes no dia desta atividade.


Destes, quatro não a concluíram. No entanto, algumas marcas no papel
nos dão alguns indícios: início de sentenças como “ser cidadão é” e a
presença de marcadores para iniciar uma lista de respostas. Já
percebemos, a partir daí, a dificuldade que estes alunos têm em
desenvolver, através da língua escrita, suas ideias. Marcas de leitura e
tentativa de reescrita da resposta também apareceram em outras cinco
atividades: textos riscados com um “x” em cima ou frases inteiras
apagadas com corretivo de caneta.
Nas atividades que foram concluídas, percebemos não só uma
dificuldade em atribuir sentido ao que se quer expressar através da
escrita, bem como dificuldades decorrentes do próprio processo de
alfabetização: problemas de sintaxe, gramática, estilística e até de
semântica. Isto porque dominar a escrita é um trabalho que exige prática
contínua. Se os alunos não são instigados a escrever e estão acostumados
com atividades de transcrição de informações de textos para fazer
atividades no ambiente escolar, a prática da escrita terá pouco
rendimento e aproveitamento. As habilidades de se apropriar dos
mecanismos de codificação da língua escrita não serão desenvolvidas.
Abaixo segue a produção do aluno João3, feita durante a aula de História
do dia 19 de agosto:

Eu me favorecia como um cidadão porque seria melhor


então eu pagaria meu impostos, serto sem precisar correr 6
alguns riscos como ser um dos exercito de Roma. Porque
eu não seria um dos exercito de Roma quero dizer um
guerreiro Eu poderia correr muitas guerras e não poderia
ver a minha família dia indiante e fora muitos propósitos
também mais essa é uma delas.

Percebemos na escrita acima que João tentou elaborar uma


resposta tentando fazer comparações entre o que era considerado ser
guerreiro na Antiguidade e a sua visão do que isto significa nos dias atuais,
bem como o ônus de exercer esta função a partir de valores
contemporâneos e não propriamente dos sujeitos da época. Tentou
atribuir sentido às suas ideias através da escrita. Contudo, observa-se a
dificuldade em fazê-lo: a disposição das palavras na frase e a relação lógica
entre as mesmas nos demonstram a dificuldade em emitir um significado
completo e compreensível a possíveis leitores.
Na resposta de José, produzida no mesmo dia que a de João, ficam
visíveis as práticas de escrita as quais o aluno está acostumado nas aulas
de História: perguntas específicas que solicitam respostas diretas, sem
problematizações.

3
Optou-se por dar nomes fictícios aos alunos, a fim de preservar a identidade dos mesmos.
R.: Ser cidadão hoje é ter direitos ter documentos,
opinião publica.
R.: Ser cidadão naquela época era ter 18 anos e ser um
homem livre, crianças mulheres e escravos não eram
considerados cidadãos.

7
O aluno não conseguiu desenvolver uma narrativa diferenciada
conforme solicitado pelos estagiários. Antes da resposta em si o aluno
inicia a frase com a letra “R.:”, anunciando que a resposta direta às
questões do enunciado virá em seguida. Cada pergunta foi respondida
separadamente, não havendo conexão entre as duas temporalidades.
Além disto, o aluno mobilizou na resposta, talvez para tentar deixá-la mais
satisfatória, informações que haviam sido trabalhadas anteriormente na
aula expositiva: “crianças mulheres e escravos não eram considerados
cidadãos.”. Não é evidente na resposta o porquê desta informação estar
ali presente e por que ela justifica ou não o próprio aluno ser considerado
cidadão. A tentativa de construir uma narrativa histórica com explicações
multidimensionais não foi alcançada. Diferentemente do que observamos
na resposta de Maurício:

Primeiramente, preciso pertencer a um local e estar


registrado. Consequentemente, irei possuir a cultura
do local e tendo registro, terei direitos e deveres, ou
seja, ser livre.
Seria considerado um estrangeiro, pois não teria
nascido em Roma. Porém, no período do Império, eu
poderia me tornar um cidadão por conta da expansão
territorial. O cidadão deveria ter a maioridade (18
anos), ser homem e ter nascido em Roma.
Extensão questão 1. Tenho direitos e deveres por
existir uma constituição no país a qual pertenço e
seguir os deveres significa respeitar e cumprir o que é
estabelecido na constituição, logo quando não sigo o
dever, torno-me um ser que não é totalmente livre,
apesar de ainda ter direitos dentro desta condição.
8

Nesta resposta notamos que o aluno já domina melhor os


mecanismos de escrita e de leitura. Após uma releitura mais atenta da sua
resposta, o aluno decidiu inserir mais informações na primeira parte do
texto. Isto indica o esforço do estudante em ampliar o sentido e
significado daquilo que havia escrito, reforçando o que entende por ser
cidadão e tornando a resposta, a seu ver, mais satisfatória.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: LER E ESCREVER PARA COMPREENDER


HISTÓRIA

A partir destas análises evidenciamos que é necessário trabalhar


com nossos alunos atividades em que os mesmos possam desenvolver um
conjunto de operações intelectuais, mobilizadas na produção de saberes,
que ampliem o pensamento histórico. Para isto, torna-se igualmente
importante trabalhar a compreensão histórica a partir de leitura de textos,
interpretação de gráficos e de documentos, para que o aluno entenda as
intenções e os pressupostos de uma narrativa já construída. Ao
trabalharmos tais habilidades, o aluno poderá identificar as relações entre
passado e presente, isto é, compreender as possibilidades da disciplina de
História, para além do seu aspecto conceitual e de conteúdo (CAIMI,
2006).
Se pretendemos um ensino de história nas escolas no qual esta
disciplina é encarada como uma possibilidade de construção de um futuro
possível, a partir da inserção do indivíduo na sociedade e na sua atuação 9

crítica em relação ao que está ao seu redor, é necessário e imprescindível


considerar de que maneira estes estudantes articulam suas vivências
cotidianas às narrativas históricas.

Referências
BARCA, Isabel. Aula Oficina: do Projeto à Avaliação. In. Para uma
educação de qualidade: Atas da Quarta Jornada de Educação Histórica.
Braga, Centro de Investigação em Educação (CIED) / Instituto de Educação
e Psicologia, Universidade do Minho, 2004, p. 131 – 144.

CAIMI, Flavia Heloisa. Por que os alunos (não) aprendem História?


Reflexões sobre ensino, aprendizagem e formação de professores de
História. Tempo. Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 2006.p. 17-32.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos. Cognição histórica


situada: que aprendizagem histórica é esta? In: XXV SIMPÓSIO NACIONAL
DE HISTÓRIA – ANPUH, Fortaleza: 2009. Anais eletrônicos: Disponível em:
<http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/ANPUH.S25.pdf>

SILVA, Cristiani Bereta da. O ENSINO DE HISTÓRIA - ALGUMAS REFLEXÕES


DO REINO UNIDO: entrevista com Peter J. Lee. Revista Tempo e
Argumento, Florianópolis, v. 4, n. 2, pp. 216 – 250, jul/dez. 2012.

SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2 ed. Belo Horizonte:


Autêntica, 2004.
PARA ALÉM DO MITO DE ADÃO E EVA NAS AULAS DE
HISTÓRIA: A HISTÓRIA DE COMO OS TUPINAMBAS
ENTENDIAM A CRIAÇÃO DO UNIVERSO

Carolyne do Monte1 1

Resumo
Este trabalho apresenta um relato de experiência de uma prática de ensino voltada
para o ensino de história que valoriza um ensino multicultural contribuindo com o
processo de mudança apontado pela Lei 11.645/2008, realizada em uma escola de
ensino básico da cidade do Recife. Sendo assim visamos compartilhar uma experiência
vivida em sala de aula e seus resultados, sobre a leitura da obra literária de caráter
cosmológico sobre os nativos Tupinambá, Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa.
Por meio de uma perspectiva inovadora no sentido de adequar conteúdos as
realidades dos educandos, desenvolvemos com os educandos a produção de
imagens/desenhos a partir da leitura da obra, analisando-as é possível perceber o
processo de recepção da mesma, seguindo a ideia de Hans Robert Jauss de que o leitor
é protagonista no processo de leitura.
Palavras chaves: Lei 11.645/2008; Tupinamba; Recepção;

Abstract
This paper presents an experience report of a teaching practice focused on the
teaching of history that values a multicultural education contributing to the process of
change appointed by Law 11.645 / 2008, held in a primary school in the city of Recife.
So we aim to share a lived experience in the classroom and their results on the reading
of literary work of cosmological character of the natives Tupinambá, My destiny is to
be jaguar, Alberto Mussa. Through an innovative approach in order to adapt content
the realities of the students (FERREIRA; TORRES, 2014), developed with the students
producing pictures / drawings from the reading of the work, analyzing them you can
see the reception process the same, following the idea of Hans Robert Jauss that the
player is the protagonist in the reading process.
Key words: Law 11,645 / 2008; Tupinamba; Reception;

1
Carolyne do Monte De Paula, graduanda em História-UPE. Monitora do Laboratório de ensino de
História Mata Norte/UPE. Orientação: Profa. Dra. Maria do Carmo Barbosa de Melo.
Apresentação

“Portanto declarou o padre Simão Vasconcelos, os


eventos narrados pelos naturais da terra não
mereciam crédito. Os relatos indígenas sobre a
inundação das águas e o salvamento de heróis míticos
não passavam de invenções.” (RAMINELLI,1996,p.24). 2

O historiador Leandro Karnal no livro História na sala de aula, de


sua organização, nos faz o seguinte alerta: uma aula em que se utiliza de
recursos tecnológicos pode ser conservadora, e uma aula com utilização
de quadro e piloto pode ser muitíssimo inovadora. Só quem está no dia a
dia em sala de aula sabe o quanto os recursos tecnológicos podem fazer a
diferença em relação ao processo de ensino-aprendizagem. Alguns
possibilitam os educandos visualizarem o passado trazendo o mundo para
a sala de aula através de uma imagem. Além de serem um ótimo amigo do
relógio. Mas o que está sendo colocado em questão por Karnal não é a
utilidade dos recursos tecnológicos em sala de aula, mas sim a forma
como estes são utilizados. O que estamos colocando em questão é o fato
de uma aula ser considerada inovadora só pelo fato de se recorrer ao uso
de tecnologias. Pois de que adianta fazer uso desses recursos e carregar
sua aula com antigos conceitos, preconceitos e estigmas? De que
adianta? Perguntamos novamente. E insistimos nessa pergunta, pois
acreditamos que inovação em sala de aula está mais ligada a revisão dos
conceitos, temas e métodos, tendo em vista que o ensino pede novos
olhares, novas perspectivas, que valorize as culturas, a diversidade e os
direitos humanos com base em um ensino crítico e reflexivo. É preciso
valorizar o multiculturalismo, fazendo com que os educandos tenham
acesso cada vez mais a diferentes tipos de cultura, povos diferentes, suas
filosofias, tradições e costumes. Despertando neles uma visão relativa,
cada vez menos etnocêntrica e eurocêntrica. Conhecendo e entendendo 3

para respeitar.

Segundo Isabel Barca a utilização de fontes históricas e a


interculturalidade são elementos essenciais para a formação de uma
consciência histórica dentro do ensino de história. Sendo a utilização das
fontes um importante elemento e essencial no trabalho historiográfico,
influente no processo da construção das narrativas históricas, visto que as
fontes atuam com o importante e relativo papel de evidencia, quando
colocado sobre questionamento do historiador. Enquanto a
interculturalidade refere-se ao importante papel que ensino de história
tem de perpassar diferentes culturas, foi constatado por Barca que as
ideias entre educandos e educadores têm sobre ela ainda permanecem
nebulosas.2 Tudo ainda complica mais quando professores do ensino
básico no Brasil, vêm-se desafiados a implementar o ensino de história
indígena em suas aulas, exigência imposta pela Lei 11.645/2008 que
institui a obrigatoriedade da inclusão da temática de História e cultura
afro-brasileira, africana e indígena no ensino regular. Logo parece ser
fundamental pensar não só em como podemos abordar a temática da
história indígena na sala de aula, como também que fontes utilizar,

2
Dados apontados pela análise da aplicação do Projeto Hicon, pesquisa realizada com alunos e
professores de escolas de Portugal.
sempre atentando para como essa abordagem pode contribuir com o
processo de formação de consciência histórica entre os educandos. E são
com estes aspectos que esse trabalho visa contribuir e investigar em uma
prática de ensino desenvolvida no Laboratório de Ensino de História -
Campus Mata Norte da Universidade de Pernambuco, como foi 4

apresentado acima.

O mito no mundo moderno

Segundo Claudio Porto3 “o processo de transformação, chamado de


Revolução Científica, que conduziu da visão de mundo fundada na filosofia
e na ciência aristotélicas ao surgimento da ciência moderna é, certamente,
um dos capítulos centrais da história do pensamento humano.” O próprio
Porto fala que estas mudanças ocorridas no campo da física atingiram
principalmente o modo do homem ver o mundo e a si mesmo, que
principalmente depois da revolução Copérnica e sua teoria geocêntrica,
“uma nova física e uma nova cosmologia tornaram-se necessárias para a
explicação das questões surgidas deste novo Universo heliocêntrico.”
Desenvolvendo-se a partir daí explicações matematizadas. A questão é
que o desenvolvimento da ciência moderna que tem sua culminância com
a destruição do cosmo aristotélico, geometrização do espaço e
transformação no conceito de movimento, segundo Porto, marca

3
C.M. Porto; M.B.D.S.M. Porto. A evolução do pensamento cosmol´ogico e o nascimento da ciência
moderna (Evolution of the cosmological thought and the birth of Modern Scien) .Revista Brasileira de
Ensino de Física, v. 30, n. 4, 4601 (2008)Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-11172008000400015#no1b acesso em:
07/10/2015.
definitivamente a relação entre o cosmos e o homem. Explicar o cosmos a
partir daí torna-se cada vez mais cientifico e contestável.

Embora seja inegável que a Ciência Moderna muda totalmente à


forma como o homem passa a entender o cosmos e sua origem, o mito
5
em seu sentido original de relato, tomado como verdadeiro, ainda
prevalece forte no imaginário da humanidade, passando de geração em
geração, explicando os princípios morais e por vezes jurídicos de um grupo
social.

Em Uma breve história do mito Karen Armstrong explica o quão foi


importante o mito para o homem possibilitando a ele a passagem de um
estágio para o outro. Nos primeiros capítulos de seu livro é possível
entender como o homem associava aquilo que ele não entendia ao
sobrenatural, por exemplo, os fenômenos da natureza e até a própria
natureza que é soberana na visão desse homem. 4 Essa visão foi mudando
com o passar do tempo, mas é possível perceber o quanto atraente e
temido é o desconhecido. O mito nos fornece valor e significado a vida, a
religião nos ensina como adquiri-los. E essa busca vai sempre se mostrar
presente na história do homem, podemos observar isso facilmente no
momento mori5 onde essa busca se transfigura na forma como vivemos.
Uma coisa fica claro nessa busca, a felicidade é o que a impulsiona, outro
sentimento que dá vida ao mito o emponderando socialmente, pois

4
ARMSTRONG,Karem.Breve história do mito.SP;Cia. das Letras,2005.p.1-39.
5
“ Momento mori significa: viva sua vida terrena de maneira a ganhar felicidade na vida após a
morte”(BAUMAN,2008,p.47)
segundo Bauman é uma característica inata 6 dos humanos, que logo
admiti suas fraquezas elegendo poderes maiores, é o medo, que dá nome
a nossa incerteza e alerta-nos do perigo. É a partir da criação de
significados que são ressignificados pelos contemporâneos, que o mito
pode explicar a realidade de um grupo social. 6

Afinal, como entender os gregos sem entender sua crença na


interferência dos deuses em seu cotidiano? E mesmo com a evolução da
Ciência Moderna o criacionismo ainda não se mantêm fortemente em
muitos discursos? A própria bíblia é um dos livros mais vendidos no
mundo. Isto acontece porque colocar o indivíduo em contato com o mito
é dar a ele a possibilidade de entender as múltiplas realidades culturais,
filosóficas e religiosas que o cerca, dialogando com diversas culturas a
partir de um posicionamento horizontal, e não vertical.

Foi com esse espírito que decidimos desenvolver a leitura da


fantástica construção literária do grande pesquisador Alberto Mussa, que
por meio de relatos de cronistas que conviveram com os tupinambás
entre os séculos XVI e XVII, construiu uma narrativa mitológica, de caráter
cosmológico deste povo, explicando suas crenças e origens, intitulada:
“Meu destino é ser onça”. O livro é dividido em duas partes. A primeira é
de fato o Mito, construído por Mussa, enquanto na segunda são reunidas
todas as fontes utilizadas na obra. Ao escolhemos essa obra além do
exposto acima, também levamos em consideração a carência de fontes
que falassem sobre a história dos tupinambás nos livros didáticos, assim

6
BAUMAN,Zygmunt.Medo Líquido.RJ:Zahar,Ed.,2008,p.45.
como também visamos contribuir com o processo de mudança instituído
pela Lei 11.645/2003, promovendo uma reflexão sobre a cultura dos
nativos brasileiros.

Considerações sobre a narrativa “Meu destino é ser onça”


7
Segundo a reconstrução de Mussa :

“ Os Tupinambá dividam a história do universo em


três períodos. O mundo primitivo era perfeito: não
havia morte, não havia incesto, não havia trabalho.
Mas a imprudência humana provocou um enorme
cataclismo- do qual apenas um homem se salvou. A
segunda humanidade sofreu muito, inicialmente, mas
em contrapartida viu surgir uma classe de homens
especiais, grandes feiticeiros que introduziram a
cultura... A terceira humanidade..., se viu privada de
chegar a terra-sem-mal em vida... A única solução
restante era garantir tal acesso depois da morte – o
que se obtinha com a prática canibal”
(MUSSA,2009,p.71-71)

A partir desta narrativa fica claro e incontestável o quanto a


sociedade tupi se constitui numa sociedade guerreira e como o homem
desempenha um papel social decisivo e singular, pois estes precisam
vingar seus parentes mortos e não deixar que o mundo seja devorado por
anhanga, “mas nós, que somos fortes, que não tememos, por isso
continuamos matando e comendo inimigos” (MUSSA,2009,p. 69). É por
meio da morte que um tupi pode chegar à “terra sem mal”, um lugar onde
“da terra brotavam as árvores, e das árvores brotavam os frutos. O pau de
cavar ia sozinho desenterrar as raízes. As flechas iam sozinhas caçar os
animais. Sem trabalho, os homens apenas comiam, bebiam e
dançavam”(MUSSA,2009,p.31-32). Mas para chegar a “terra sem mal” um
tupi não poderia morrer de qualquer jeito, ou melhor, de qualquer morte.
Ele teria que ser morto de uma forma valente, de preferência comido por
um inimigo. Cosmologicamente falando e com as palavras do próprio 8

Mussa “o desejo de vingança é absolutamente natural” para os


tupinambas, e o mesmo só pode ser efetuado pelo homem, ser masculino.
Culturalmente falando, o que não deixa de levar em conta toda a
simbologia cosmológica trazida pelo mito, como disse Beatriz Perrone “A
guerra é o modo de ser dos tupi, centro de suas preocupações e
atividades”(PERRONE-MOISES, p.17). Os tupi organizavam -se em bandos,
debatiam sobre como se constituiria o próximo ataque a uma aldeia
inimiga, conferiam os alimentos, preocupavam-se com os períodos de
colheita e muniam-se de tacapes (espadas de madeira), arcos, flechas e
escudos, tudo isto para o empreendimento da guerra. Mas para além das
fraternidades guerreiras, as sociedades se constituem de famílias,
"Agrupamentos sociais cujos membros se acham unidos por laços de
parentesco." que são "uma serie de conexões entre indivíduos
determinadas pelas normas culturais" (BARRIO,2005,p.231). Estas normas
culturais, que determinam os fatos sociais, caracterizam a família
Tupinambá como: conjugais compostas poligínica, ou seja, permitem mais
de dois conjugues para o varão, uxolorical, pois o homem é o alvo da
mobilidade residencial, deslocando-se para a casa de sua esposa, além
também da relação avuncular, relação entre tios e sobrinhos, assim como
entre meio irmão.
O docente poderá perceber todas essas características na leitura da
obra de Mussa, abordá-las com os educandos facilitando o processo de
entendimento sobre a estrutura social dos Tupinambás, seus costumes,
cotidiano e particularidades, como é o caso do canibalismo, é importante
discutir e analisar os motivos da prática, que está mais relacionado com 9

suas crenças do que um simples ato de “selvageria”. Contudo ao trabalhar


a obra o professor deve ter alguns cuidados, dependendo da faixa etária
dos discentes aos quais vai se dirigir a prática. Pois a narrativa possui
trechos relacionados a estupros e incestos, temas que mexem com os
tabus sociais.

Ainda sobre a estrutura da sociedade tupinambá que pode ser


percebida no livro nos voltemos para a posição da mulher. A mulher, na
narrativa, surgiu de acordo com a observação do Velho Tuibae, criador da
terra, que percebe a necessidade de povoar a terra, criando assim a
primeira mulher. Não muito diferente de outras cosmologias, como por
exemplo, a bíblia, na qual a mulher é criada em função do homem, para o
auxiliar.7 Após serem criadas, as mulheres já são vítimas de um estupro
tenebroso, no qual Anhanga, espírito que atormenta os tupinambás,
transforma-se em animal pela noite e aparece na terra para ter relações
sexuais com as mulheres. Essas relações fazem as mulheres darem a luz a

7
Alusão ao mito de Adão e Eva. A narrativa bíblica inicia-se com a criação do mundo por Deus, Javé, o
Deus dos Hebreus, e dentro dessa criação Ele cria o homem cheio de direitos e livre para desfrutar de
tudo do melhor da criação do seu criador exceto o fruto da árvore do conhecimento do bem e o do mal.
Nesse contexto Deus cria a mulher que surge num contexto totalmente diferente do homem.
Primeiramente a mulher não surge como fruto de uma inspiração de Deus, mas como fruto da
perspicácia de Deus que percebe que nãoé bom que o homem viva só, em vez de liberdade e soberania
na terra a mulher vem ao mundo subjugada marcada por uma funcionalidade, de auxiliar e
corresponder ao homem. ( Gênesis 2: 15-18)
lagartos em vez de crianças. Mas esse é só o começo, das violações para
com as mulheres nessa história. Outra cena marcante é a de um irmão
que estupra sua própria irmã grávida: “Certo dia aproveitando o momento
em que Ajuru saíra para a caça, Suaçu, irmão de Inambu, subiu sorrateiro
na rede da sua própria irmã que estava grávida, e violou a lei do incesto” 10

(MUSSA,2009,p.41).

Tais cenas podem ser muito chocantes para crianças do ensino


fundamental, por isso ao realizarmos essa experiência com alunos do
sexto ano do ensino fundamental optamos por omitir essas passagens,
não realizando a leitura das mesmas.

Literatura Tupinamba nas aulas de história

Nosso objetivo como já foi dito acima era colocar o educando em


contato com um amplo universo cultural, expandindo sua concepção de
mundo e criação dele, apresentando uma perspectiva diferente que não
fosse à judaica cristã, assim como implementando a Lei 11.645,
promovendo uma reflexão sobre a cultura tupinambá por meio da obra de
Mussa. A ideia era apresentar ao educando uma nova mitologia, de um
povo que também viveu no Brasil e possuía uma noção de mundo
diferente, mas que não menos significante por isso. Logo o nosso maior
desafio era desenvolver neles a capacidade de memorizar 8 mais um mito
fundador de um povo,neste caso, dos tupinambás. Atribuindo-lhe o

8
Circe Bitencourt faz ao fazer uma abordagem sobre o ensino de história e seus métodos, observa que a
presença do ato de decorar é uma constante no ensino de história, porém a mesma esclarece que o
professor deve desenvolver no educando a capacidade de memoriza em contraposição a aprender de
cor.
mesmo valor e veracidade para esta sociedade quanto o mito da criação
do mundo em sete dias é para a maioria deles.

Neste sentido a obra “Meu destino é ser onça”, foi um verdadeiro


sucesso. Por ser uma leitura clara, objetiva, curta e com apresentação de
11
cenas e personagens fantásticos, os educandos se envolveram muito com
a leitura, e ambicionavam anciosamente pelo momento de leitura na aula.
Neste momento nós buscávamos criar um ambiente diferenciado na sala,
colocando as cadeiras em círculos, deixando os educandos mais a vontade
possível, muitos deitavam-se no chão e outros se aproximando o mais
perto possível da contadora da história. Dividimos a leitura em 5 partes. E
ao final da leitura de cada parte propúnhamos aos educandos um roteiro
com base na leitura feita, por meio do qual os mesmos deviam
desenvolver a produção de imagens sobre a leitura.

Capítulos selecionados

1. Um ornamento para o céu;


2. Sob o domínio de Anhaga;
3. Na era das metamorfoses;
4. O dilúvio universal;
5. Terceira humanidade;

Modelo de roteiro utilizado

1. Os homens se afastam da terra sem mal;


2. Anhaga persegue os Tupinamba;
3. Maíra ensina a caçar;
4. Maíra na reunião dos pássaros rouba o fogo;
5. Maíra dá o fogo aos homens, que se protegem de Anhaga, do frio e
cozinham alimentos; 12

Para finalizar, com o término da leitura do livro, realizamos uma


amostra de culinária indígena com base no trecho do livro em que a
mando de sua mãe dois meninos foram para o mato pegar Juá, cumprindo
esta tarefa, os pequenos depararam-se com um curumim (menino)
enquanto recebia socos dos garotos chovia, batata-doce, mandioca, milho
e feijão. A mãe dos garotos, desconfiada da origem dos alimentos, resolve
os seguir durante a tarefa. Depois de observar o realizado pelo curumim, a
mãe aparece aos três e amarra o curumim, com o objetivo de leva-lo para
aldeia, para que este fornecesse alimento eternamente para sua tribo. O
curumim, então, ensina a mulher como praticar a agricultura, em troca de
sua liberdade. E, “Por ter sido a mulher a receber esse conhecimento, são
elas que até hoje plantam.”9 Pedimos para que em grupos os educando se
organizassem e trouxessem pratos que levassem em sua composição
mandioca, milho ou batata-doce. Na realização da amostra, todos os
grupos experimentaram os pratos trazidos pelos outros grupos. Foi uma
delícia!

Passemos agora para a análise das imagens produzidas durante este


processo. Regina Zilberman no artigo Recepção e leitura no horizonte da

9
MUSSA, Alberto. Meu destino é ser Onça. Rio de Janeiro: Record,2009.p.67-69
leitura, percorre toda a história da teoria de recepção na literatura
iniciada com, a Poética de Aristóteles até chegar nas mais novas correntes
iniciadas no séc. XX, por Hans Robert Jauss, na Alemanha e Humberto Eco,
na Itália, expressa muito bem de maneira sucinta as ideias de Hans
Robert Jauss sobre recepção da leitura, “a partir dessa teoria o leitor 13

assume protagonismo nesse processo, sendo ele o responsável por


garantir a historicidade das obras literárias” (ZILBERMAN,2008). Nessa
perspectiva visamos aqui através da análise das imagens produzidas pelos
educandos, traçar algumas considerações sobre a recepção da obra
dentro desta prática. Para tal devemos considerar alguns critérios que são
elencados por essa teoria, como: a relação dialógica e o saber prévio, a
teoria se completa também com uma nova concepção de inovação
literária, mas para uso em nossa análise utilizaremos apenas os dois
primeiros.

A relação dialógica ocorre quando “o leitor interage com a obra a


partir de suas experiências anteriores, isto é, ele carrega consigo uma
bagagem cultural de que não pode abrir mão e que interfere na recepção
de uma criação literária particular” (ZILBERMAN,2008), ou seja, a partir
das experiências vividas pelo leitor, e de sua própria história é que ele vai
estabelecer um vínculo com a obra nascendo a partir daí um diálogo entre
leitor e leitura. Nas imagens produzidas pelos educandos nesta prática
podemos observar que esta relação se construiu principalmente a partir
da personagem de Anhaga, um espírito do mal que ronda a terra
atormentando os tupinambas. Apesar de Anhaga está inserido no universo
dos Tupinambas , quando os educandos produziram sua imagem, ele
assumia características totalmente diferentes das outras personagens.
Uma das imagens que pode expressar muito bem isto é a qual Anhaga
aparece como uma espécie de caveira da morte dizendo a seguinte frase
“vou te levar para o inferno”. 14

FIGURA 1: REPRESENTAÇÃO DE ANHAGA A DIREITA.

FONTE: Aluno 6° ano (2015).

O inferno não faz parte do mundo tupinambá, e em nenhum


momento é citado na obra, contudo a personagem de Anhanga apresenta-
se como vilão na narrativa. Ademais a maioria dos educandos
reconstroem Anhaga como um tipo de fantasma em corpo de aparência
citoplasmática.
15

FIGURA 2: REPRESENTAÇÃO DE ANHAGA.

FONTE: Alunos 6° ano (2015).

Em ambos os casos podemos perceber que ao produzir Anhaga o


educando reproduz no papel as imagens, no sentido de construções
simbólicas, que ele mesmo possui sobre o “mal”. Em contraposição a
Anhaga, Maira, o homem criado pelo Velho Tuibae, criador do mundo e da
humanidade, para ajudar os tupinambás a viver na terra, quem ensina os
tupinambás a caçar e rouba o fogo, que protege os tupinambás do frio e
mantém os espíritos do mal afastados. Maira é a personagem
representada sempre sorridente e forte, ele é o herói, como mostra o
exemplo abaixo.
16

FIGURA 3: representação de Maira a esquerda..

fonte: aluno 6° ano (2015).

Partiremos agora para análise das imagens produzidas, tentando


perceber o saber prévio existente nos educandos, cuja a faixa etária está
entre 11 e 12 anos. O saber prévio é a “compreensão prévia do gênero, da
forma e da temática das obras anteriormente conhecidas e da oposição
entre linguagem poética e linguagem prática.”(JAUSS,1976, apud
ZILBEMAN,2008.) efetuadas pelo leitor. Este saber influência diretamente
na recepção da obra pelo leitor, pois é a partir dele que se inicia o
processo de interpretação, logo o leitor leva em consideração todo o
conhecimento anterior à leitura quando a inicia, e isto não se desprende
do contexto social em que a mesma ocorre, como explica Zilbeman
“assim, as obras, quando aparecem, não caem em um vazio: ao serem
publicadas, deparam-se com códigos vigentes, normas estéticas e sociais,
formas de comunicação consideradas cultas ou populares, preconceitos e
ideologias dominantes”. As imagens produzidas pelos alunos sobre a obra 17

de Mussa refletem este princípio, principalmente no que diz respeito às


normas estéticas ligadas a ideologias dominantes. Ao contar os bons feitos
realizados por Maira descreve-se “Foi ele quem primeiro tonsurou os
cabelos em forma de coroa” (MUSSA,2009, p.37). Contudo nenhum
educando produziu imagem que referenciasse essa característica, porém
as personagens sempre ganhavam cocares e apareciam seminus tendo
ocas como suas moradias e vivendo rodeado pela natureza.

O historiador Ronaldo Raminelli no primeiro capitulo do


livro Imagens da colonização. A representação do índio de Caminha a
Vieira, discute através de diversas fontes a variedade de sentidos e
representações construídas pelos europeus sobre os nativos brasileiros.
Em uma de suas fontes ele apresenta a visão do padre Vasconcelos sobre
o índio:

“os índios descritos pelo religioso andavam em


manadas pelos campos, a nudez dos homens e
mulheres se confundia com os animais... Era gente
paupérrima, cujo ato de comer, realizava-se sobre a
terra, enquanto os alimentos, provinha da ferocidade
do manejo de arcos e flechas. Suas orelhas, faces e
beiços, andavam esburacados, orifícios que
engastavam pedras de várias cores e tamanho.”
(RAMINELLI,1996,p.27)
Essas características representadas pelos educandos remetem
claramente a visão colonizadora referente à figura do índio.10Que são
analisadas por Raminelli, ao percorrer um longo caminho através de
relatos de jesuítas e padres, e assinala que sob esse olhar o índio é visto
como “bárbaro” e alvo da domesticação da colonização. 18

Por meio desta análise tentamos perceber como se deu o processo


de recepção da obra Meu destino é ser onça entre os educandos. Logo
podemos destacar os principais aspectos deste processo. Por meio da
relação dialógica observamos que os educandos expressaram uma
concepção maniqueísta da obra, enfatizando as personagens Maira e
Anhaga como símbolo de bem e mal, para isso eles recorreram a símbolos
subjetivos sobre esses conceitos. Já em relação ao saber prévio, pode-se
observar que pelo fato da narrativa não fornecer muitas referências sobre
a estética dos personagens, os educandos sentiram-se livres para
reproduzirem a imagem dos tupinambás baseada em seus conhecimentos
prévios, que demonstram a forte influencia da visão colonizadora sobre o
índio.

10
Considerando os estudos recentes que consideram o termo “nativo” o termo mais apropriado para
referir-se aos indivíduos que compunham as sociedades americanas antes da chegada dos europeus, o
termo índio aqui é usado propositalmente, para expressar a visão de índio como bom selvagem,
presente em relatos de cronistas.
Considerações finais

“Portanto declarou o padre Simão Vasconcelos, os eventos narrados


pelos naturais da terra não mereciam crédito. Os relatos indígenas sobre a
inundação das águas e o salvamento de heróis míticos não passavam de
19
invenções.” (RAMINELLI,1996,p.24). Ronaldo Raminelli mostra que foi
feito um grande trabalho principalmente do ponto de visto teológico com
objetivo de encontrar convergências entre a origem indígena e a europeia,
pois partindo desse pressuposto era possível aceitar que os índios
poderiam ser cristianizados. “O importante era demonstrar a enorme
metamorfose produzida pelo cristianismo e ressaltar o longo caminho
trilhado pelos colonizadores para restituir a humanidade de seres, que há
muito tempo perderam...” (RAMINELLI, 1996,p.28). Era necessário
restituir o que um dia foi perdido, despertar nesses gentios a capacidade
que todo homem tem de reconhecer a verdadeira religião, para isso
desacreditar suas antigas narrativas e crenças era parte fundamental
deste processo. Este projeto colonizador cristianizador violentou e
violenta as populações indígenas, e manter o silêncio em relação a estas
temáticas perpetua esta violência. E, são processos como estes que a Lei
11.645/2008 vem atuando de maneira positiva. Se em vez de colocarmos
de lado essas narrativas, as trazemos como destaque na sala de aula,
atuamos na contra mão sobre esse projeto colonizador. Que no âmbito
das representações sobre os nativos do Brasil, nos legou forte influência,
por meio de relatos dos colonizadores que tiveram contato com estes ao
longo dos séculos, sendo colocados na maioria destes relatos como
homens naturais, amigos da nudez comparáveis a animais, características
essas que os educandos expressam ao representarem os indígenas,
demonstrando assim seu saber prévio na recepção da leitura. Tudo isso
nos aponta que seguir o caminho de trabalhar com a temática indígena no
Brasil não ensino básico, é um caminho longo e árduo. A obra Meu destino 20

é ser onça despertou o interesse dos educandos pela leitura, assim como a
narrativa os envolveu, principalmente com os personagens. Conhecer a
profundidade da narrativa mitológica dos Tupinambas forneceu-lhes
subsídios para entender a lógica cultural da mesma, mudando a
concepção negativa que muitos educandos possuíam sobre o canibalismo.
A leitura de uma obra fantástica, assim como a escolha da produção de
imagens, como parte do processo avaliativo da prática, fez com que o
conteúdo se adequasse a realidade do educando, fazendo com que a
experiência assumisse uma característica inovadora segundo Ferreira e
Torres. Contudo ao final desta experiência, que foi realizada com alunos
do sexto ano do ensino fundamental de uma escola particular de pequeno
porte do município de Recife/PE, observamos que a representação
colonizadora sobre o índio, ainda se faz muito presente entre os
educandos, nos indicando uma nova perspectiva para intervir. Além disto,
algumas representações nos chamaram atenção, como cabelos loiros nos
nativos e roupas típicas da pré-história, que alguns educandos utilizaram
em seus desenhos. Esses elementos com certeza nos apontam novos
motivos para futuras análises.
ILUSTRAÇÕES

21

FIGURA 1: A DESTRUIÇÃO DO MUNDO E A CRIAÇÃO DA MULHER

FONTE: Aluno 6° ano (2015).

FIGURA 2: A TERRA SEM MAL

FONTE: Aluno 6° ano (2015).


Referências Bibliográficas

ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito.SP;Cia. das Letras,2005


BARCA, Isabel. Educação História: pesquisar o terreno, favorecer a
mudança. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel. Aprender
história: perspectivas da educação histórica. Ijuí/PR: Ed. Unijuí, 2009. v. 3,
p. 53-76. 22
BARRIO, Angel Espina. Manual de Antropologia cultura. Recife:
Massangana, 2005.
BAUMAN, Zygmunt.Medo Líquido. RJ: Zahar, Ed.,2008
BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de História: fundamentos e métodos.
São Paulo: Cortez, 2004.
BRASIL. Lei n°11.645 de 10 de Março de 2008. Institui nos
estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e
privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira
e indígena. Lax: Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional. Legislação
federal..
C.M. Porto; M.B.D.S.M. Porto. A evolução do pensamento cosmológico e o
nascimento da ciência moderna (Evolution of the cosmological thought
and the birth of Modern Science). Revista Brasileira de Ensino de Física, v.
30, n. 4, 4601 (2008) Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-
11172008000400015#no1b acesso em: 07/10/2015.
LARAIA, Roque. Cultura: Um conceito antropológico. Rio de Janeiro:
Zahar, 2006.
MUSSA, Alberto. Meu destino é ser Onça. Rio de Janeiro: Record, 2009.
OLIVEIRA, Pérsio dos santos de. Introdução à sociologia. São Paulo:
editora Ática, 1998.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. A Vida nas Aldeias dos Tupis da Costa, in:
Oceanos nº42. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 2000.
RAMOS, Marcia Elisa Tété. O ensino de História e a questão do
multiculturalismo depois dos Parâmetros Curriculares Nacionais. IN:
Ensino de Histórias e educação: Olhares em convergência/ Luis Fernando
Cerri (org).Ponta Grossa:UEPG,2007.p.139-151.
RAMINELLI, Ronaldo. Imagens da colonização: a representação do índio
de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. P.23-34.
ZILBERMAN, Regina. Recepção e leitura no horizonte da literatura.
Alea vol.10 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2008.

23
A LEI 11645/08 NA EDUCAÇÃO BÁSICA: UM ESTUDO DE
CASO NA ESCOLA ESTADUAL HUMBERTO MENDES EM
PALMEIRA DOS ÍNDIOS-AL
Cássio Júnio Ferreira da Silva*
Luan Moraes dos Santos** 1

Resumo: Em 2008, foi sancionada a lei 11645/08 que tornou obrigatório o ensino de
história dos povos indígenas nas escolas regidas pelo Ministério da Educação e Cultura.
Mesmo com essas prerrogativas estabelecidas, nem todas as escolas aplicam os
estudos sobre os povos indígenas de forma adequada; um ensino que não
corresponde a pluralidade dos povos indígenas do Brasil e que os retrata, nos livros
didáticos, como seres ainda puros e cuja presença só é notada nos primórdios da
história do Brasil. Assim, o artigo que segue é resultado de um estudo de caso, na
Escola Estadual Humberto Mendes, localizada no Município alagoano de Palmeira dos
Índios, que evidencia a segregação dos indígenas em uma região rodeada por suas
comunidades. O embasamento teórico, consiste nos estudos feitos sobre as
comemorações do dia do índio pelo professor Edson Silva (2015), nas obras de Maria
Teresa Nidelcoff (1979), Paulo Meksenas (1988) e Michael Pollak (1989).
Palavras-chave: Ensino. Formação. Pluralidade.

Abstract: In 2008, it was the law 11645/08 wich made compulsory the teaching of
history of indigenous people in school governed by the Ministry of Education and
Culture. Even wuth these established power, not all schools conduct studies on
indigenous peoples appropriately; An education that does not correspond to the
plurality of the indigenous peoples of brazil and portray, in textbooks, but also pure
beings whose presence is only noticed in the early history of Brazil. thus, the following
articles is the result of a case study, in the school Estadual Humberto Mendes, located
in the municipality of Alagoas, Palmeira dos Índios, which shous the segregation of
indians in a regions surrounded by their communities. The theoretical basis, consists of
studies of the celebration on the Indian by teacher Edson Silva (2015), the works of
Maria Teresa Nidelcoff (1979), Paulo Meksenas (1988), and Michael Pollak (1989).
Keywords: Teaching. Formation. Plurality.

*
Graduando do curso de História da Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL e membro do Grupo de
Pesquisa em História dos Povos Indígenas de Alagoas - GPHI/AL vinculado ao Núcleo de Estudos Políticos
Estratégicos Filosóficos - NEPEF. E-mail: cassiojunio3@gmail.com.
**
Graduando do curso de História da Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL, membro do Grupo de
Pesquisa em História dos Povos Indígenas de Alagoas - GPHI/AL e pesquisador voluntário PIBIC/FAPEAL
vinculado ao Núcleo de Estudos Políticos Estratégicos Filosóficos - NEPEF. E-mail:
lmoraes2xm@gmail.com
Considerações iniciais: o campo da pesquisa

Cidade da região agreste do Estado de Alagoas, Palmeira dos Índios


é terra proveniente de missão indígena, distante cerca de 135 km de
Maceió. Foi fundada em 1835 e emancipou-se politicamente em 1889. 2

Atualmente, com 126 anos tem economia baseada principalmente na


agropecuária, com predominância do latifúndio. Em sua história, já
produziu algodão e foi um dos mais importantes centros comerciais de
Alagoas, possui ferrovia que, outrora, escoava a produção à Maceió. O
clima é semiárido por estar localizada em uma região de transição entre o
litoral e o sertão. Dona de cultura extremamente rica, considerada a terra
de Graciliano Ramos, Jofre Soares, Luiz B. Torres, dos extintos e suntuosos
cinemas entre outros.
Os índios são mencionados na história do município como seres
míticos ou lendários 1; o que por sua vez atribui caráter comercial, pois
vários estabelecimentos se aproveitam da associação do município com os
índios, como atrativo, na mesma medida que negam sua existência.
Criaram-se lendas, popularizadas na região de forma romanceada e que
encobrem os conflitos existentes gerando imagens estereotipadas,
atípicas e pouco representativas das reais condições em que vivem as
comunidades indígenas existentes nas cercanias do município.
Folclorizados, os Xukuru-Kariri que habitam a região desde o
século XVII (isso se considerarmos apenas o período datado), não

1
Referência a lenda, escrita pelo comerciante e historiador local Luiz B. Torres, que narra a fundação do
município de Palmeira dos Índios de forma romanceada e com forte apelo ao altruísmo do colonizador e
ao auto sacrifício de um casal de índios apaixonados.
encontram reflexos de sua realidade nas manifestações culturais e nas
demais festividades da cidade. Tampouco as escolas, que deveriam ser
lugares de intersecção cultural e de troca de conhecimentos, oferecem um
ambiente socialmente democrático para estes cidadãos, de vez que o
ensino é puramente unilateral e voltado aos costumes da elite, não 3

considerando os saberes e a oralidade indígena para a construção da


história local.

Palmeira dos Índios: estereótipos de um território dividido

A ambiguidade é constante em Palmeira dos índios. De um lado


permanece toda uma propaganda com a figura do índio, a ponto de
existirem farmácias, postos de combustíveis, copiadoras, clubes de
motociclistas e museus carregando em suas fachadas etnônimos de
origem indígena; do outro lado, os Xukuru-Kariri existem nas ideias, nas
memórias subterrâneas2 e nos embates políticos. Percebemos com isso,
que a presença indígena na cidade é ignorada por suas elites, a ponto da
história do município ter sido construída de forma unilateral. Nessa
perspectiva, Michael Pollak destaca que:

Por outro lado, essas memórias subterrâneas que


prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de
maneira quase imperceptível afloram em momentos de
crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória

2
Ver:
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silencio. IN: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,
1989, p. 3-15.
entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos de
preferência onde existe conflito e competição entre
memórias concorrentes. (POLLAK, 1989, p. 4)

Dessa forma, a memória e os acontecimentos que foram


selecionados para compor o arcabouço histórico de Palmeira dos Índios, 4

exaltam a colonização e denegrem os indígenas. Porém, até mesmo uma


tentativa de esquecimento, fez surgir a disputa pela memória que, de
tempos em tempos, vê o choque entre o oficial e o subalterno numa
tentativa de sair das sombras e romper com o silêncio. “Uma vez rompido
o tabu, uma vez que as memórias subterrâneas conseguem invadir o
espaço público, reivindicações múltiplas e dificilmente previsíveis se
acoplam a essa disputa da memória, no caso, as reivindicações das
diferentes nacionalidades.” (POLLAK, 1989, p. 5)
Tentativas de marginalização permeiam o cotidiano de Palmeira
dos índios. Graciliano Ramos, considerado um cidadão ilustre da cidade
tornou, em seu romance ‘Caetés’, amplamente conhecida à ideia que não
existiam índios na região e, se acaso existissem, provavelmente residiram
na periferia. Fazendo isso, admitiu não reconhecer os índios como
protagonistas da história local e expressou claramente qual o lugar dos
índios nessa história: o passado. Ele enfatiza que:

De indivíduos das minhas relações o que tem parecença


moral com antropófago é o Miranda, mas o Miranda é
inteligente, não serve para caeté. Conheço também Pedro
Antônio e Balbino, índios. Moram aqui ao pé da cidade, na
Cafurna, onde houve aldeia deles. São dois pobres
degenerados, bebem como raposas e não comem gente. O
que me convinha eram canibais autênticos, e disso já não
há. Dos xucurus não resta vestígio; os da Lagoa
espalharam-se, misturaram-se. (RAMOS, 2013, p.66)

Caetés foi escrito nos anos de 1930, entretanto essas ofensivas 5


contra as comunidades originárias foram perpetuadas até os dias atuais.
As ideias do escritor contribuíram para a propagação de estereótipos
contra a população indígena, uma vez que a elite atual faz uso dessas
mesmas ideias para denegrir os indígenas. Através de rádios e jornais 3, as
elites assumem seu posicionamento nesses embates.
Esses meios de comunicação tornam os indígenas um misto de
mito e ameaça. Convivemos num mesmo espaço com a ideia de índios
mansos, os habitantes exóticos que existiram aqui no século XVII e com a
rebeldia de indígenas que podem ocupar e retomar seus antigos
territórios a qualquer momento. Roland Barthes afirma que “*...+ a
imprensa, a arte, o senso comum, mascaram continuamente uma
realidade” (BARTHES. 2001, p.7).
A realidade e o mito se condensam num mesmo tecido e “*...+ o
mito é uma fala [...]” (BARTHES. 2001, p.131) e a fala vira mito pela sua
reprodução de forma ordenada. Assim, os meios de comunicação
corroboraram para a marginalização dos povos indígenas; deste modo
queremos entender os efeitos dessa visão defeituosa que a população de
Palmeira dos Índios tem em relação aos Xukuru-Kariri, dentro do âmbito

3
Todas as cinco transmissoras de Rádio FM e AM da Região de Palmeira dos Índios, pertencem a
posseiros e grileiros das terras indígenas visadas no processo de delimitação territorial. Vale lembrar
que a última proposta da FUNAI gira em torno de 7021 ha.
escolar e como os jovens indígenas lidam com problemas como o
preconceito e a aversão tão incentivados nesses tempos de conflito.

A lei 11645/08 e o caso da Escola Estadual Humberto Mendes


6

Em 2008, o governo federal aprovou a lei 11645/08 que


regulamenta e torna obrigatório o ensino de história dos povos indígenas
nas escolas desde os anos iniciais. O intuito, era de que isso
revolucionasse o aprendizado, porém nem todos os rincões do Brasil
tiveram resultados realmente significativos. Um exemplo disso pode ser
facilmente encontrado em Palmeira dos Índios, cerne dessa discussão.
A maior escola da região é a Escola Estadual Humberto Mendes,
conhecida nas imediações por oferecer Ensino Médio e pela sua estrutura
de grande porte, contanto com um total de 27 salas de aulas, diversos
laboratórios, quadra esportiva, piscina e campo de futebol. Os alunos
matriculados na instituição são, em sua maioria, oriundos da zona rural e
urbana, com renda per capta de até dois salários mínimos. Entre esses
alunos encontramos jovens Xukuru-Kariri que cursam o ensino médio
regular na escola.
Mas é aí que encontramos os problemas que nos levaram a
fomentar essa discussão. Mesmo vivendo e estudando em um município
cujo nome carrega sua origem indígena e que conta com a existência de 8
(oito) aldeias, esses jovens não se sentem à vontade para se afirmarem
como indígenas, deixando-se passar despercebidos entre os demais
alunos, pois a disputa territorial e a eminência de embates permeiam seu
cotidiano. O professor Edson Silva enfatiza que:

O pouco conhecimento generalizado sobre os povos


indígenas está associado basicamente à imagem do índio 7
que é tradicionalmente veiculada pela mídia: um índio
genérico, com um biótipo formado por características
correspondentes aos indivíduos de povos habitantes na
Região Amazônica e no Xingu, com cabelos lisos, pinturas
corporais e abundantes adereços de penas, nus, moradores
das florestas, de culturas exóticas, etc. (SILVA, 2012, p. 41)

Destarte, o silêncio dos jovens Xukuru-Kariri é um resultado da


imagem errônea difundida pela mídia local e, consequentemente,
reproduzida pelos educadores; “*...+ se vê claramente a impotência da
escola para tornar iguais aqueles que a realidade social e econômica
tornou distintos.” (NIDELCOFF, 1978, p. 13) Omitem sua real identidade,
porque a história dos indígenas que é ensinada nas escolas é limitada ao
período colonial, fazendo entender que os índios desapareceram com a
conquista dos seus territórios por não índios, invasores louvados pela
colonização. (MONTEIRO, 2001)
Um dos raros momentos em que os indígenas aparecem na escola
(e isso é uma constante nacional) é no dia 19 de abril, marcado no
calendário como o dia do Índio, mas os educadores, despreparados,
acreditam homenagear os índios confeccionando penas de cartolina e
saiotes de fita. Uma dança caricata, acompanha as comemorações.
Portanto, o crescimento intelectual é prejudicado e os estereótipos são
fortalecidos, pois “*...+ a escola é a instituição mais eficiente para segregar
pessoas, por dividir e marginalizar parte dos alunos com o objetivo de
reproduzir a sociedade de classes.” (MEKSENAS, 1988, p. 65)
Isso perpetua, de fato, uma imagem não representativa dos índios
e compromete todo o entendimento dos alunos, pois essas festinhas são 8

realizas principalmente nos anos iniciais, o que significa dizer: os anos do


aprendizado e da construção de ideias e do próprio ser nas crianças. É
salutar destacar as preocupações de Edson Silva, que revelam a
inquietação de uma gama de intelectuais.

Dizem que estão imitando os índios numa tentativa de


homenageá-los! Entretanto, tal homenagem se refere a
qual índio? As supostas imitações correspondem às
situações dos povos indígenas no Brasil? Como essas
imagens ficarão gravadas na memória dos estudantes
desde tão cedo? Quais serão suas atitudes quando se
depararem com os índios reais? Quais as consequências da
reprodução dessas "desinformações" sobre a diversidade
étnica existente no nosso país? (SILVA, 2015)

Então, parafraseando o professor Edson Silva (2012), quais são as


atitudes dos alunos ao se depararem com índios reais? Espanto! Essa é a
resposta. Um espanto acompanhado de preconceito e perguntas, tais
como: "Eles têm celulares?"; "Não moram em ocas?"; "Por que não estão
nus?". Reações que entram em contradição com o mundo que criaram
durante toda a sua vida e que institivamente defenderão, algo mais
acentuado na adolescência, período onde a personalidade é definida.
A lei está aí. Mas como aplica-la tendo em vista a péssima
qualidade da maioria dos livros didáticos, que insistem em ignorar a
pluralidade indígena? Como dizer aos nossos alunos que as imagens de
ocas, utensílios e etc., são de índios amazônicos e não dos índios que são,
em algumas vezes, seus colegas de sala? Um caminho possível é a crítica 9

aos conteúdos prontos e enlatados dos livros didáticos e uma


contextualização com a vivência dos índios.

As dificuldades de professores e demais profissionais da


Educação Básica consistem, particularmente, em responder
à questão de como caracterizar com clareza e correção as
sociedades indígenas em seus aspectos comuns (comuns a
todas, por serem os que as distinguem de outras
sociedades), ressaltando, entretanto, a singularidade de
cada uma delas, sem reforçar estereótipos e preconceitos.
(SILVA, 2011, p. 2)

A formação docente também é um caminho a ser problematizado.


Aprovou-se a lei, tudo bem! Mas não foram oferecidos aos professores os
subsídios necessários ao ensino da trajetória e situação atual dos
indígenas. Todos os dias, geram-se problemas ainda maiores, pois
despreparados os professores continuam a perpetuar os mesmos
estereótipos e reproduzir a patifaria da colonização. Estudar os povos
indígenas sem ressaltar as singularidades de cada povo é o mesmo que
insistir no erro de repetir discursos elitistas e acríticos.
Por um viés representativo a trajetória de reivindicações dos
diversos povos indígenas na atualidade aponta alternativas para a
abordagem da história indígena em sala de aula. Sem embargo, as
querelas territoriais podem se configurar em valiosos temas para
discussão e, ao mesmo tempo, em impedimento ao ensino de história 10

indígena. Basta lembrar que, falar em índios em Palmeira dos Índios é um


interdito ainda constante.

O conflito: das salas de aula para o território

Importa ainda, entender o que é território nessa discussão e como


podemos percebê-lo nas acepções do índio e do posseiro. Compreender
que o território não depende de posse ou uso momentâneo, mas dos
laços de dependência criados com ele, onde todas as relações sociais,
políticas e econômicas se realizam a partir desse território é um passo
importante para compreender a trajetória dos índios do Brasil e,
especialmente, os índios do Nordeste, categoria onde os Xukuru-Kariri se
enquadram.
O território é definido pela prática engendrada nele. (RAFFESTIN,
1993) Então demarcar extensões de terra para os indígenas é essencial
não só para eles, mas para o município pois acarretará em produção
cultural e agropecuária, contribuindo assim para a economia local, uma
vez que, a demarcação permitirá o aumento da produção agrícola nas
aldeias que, com o devido incentivo, poderá ser escoada e vendida nas
cercanias, gerando lucro e movimento na economia local.
Quando da chegada dos colonizadores, os indígenas já haviam
estabelecido relações econômicas nestas terras. Caçavam, pescavam,
plantavam, guerreavam por territórios como qualquer civilização
conhecida. Essas atividades, assim realizadas fizeram com que
conhecessem a terra e com ela estabelecessem um pertencimento que 11

foi, abalado durante a exploração, expulsão e captura dos nativos.


Como haviam criado uma rede de intrínsecas relações em
determinado território (neste caso, na região de Palmeira dos Índios) os
indígenas ofereceram resistência, o quanto lhes foi possível e após a
conquista portuguesa, mesmo escravizados, continuaram resistindo. Sua
língua, religião e hábitos eram praticados as escondidas e seus
conhecimentos passados subliminarmente. Aldemir B. da Silva Júnior
evidencia isso:

Alta madrugada. O toré, ritmo marcado em caixas de


fósforos, à meia luz, nos fundos de uma casa na periferia da
cidade de Palmeira dos Índios, agreste alagoano, varava a
noite, despercebido pela sociedade palmeirense. (SILVA
JUNIOR, 2013, p. 55)

Logo, resistir não seria possível se não conhecessem ou tivessem


criado vínculos com a terra, ou seja, territorialidade, tessitura e um motivo
de ser. Pois a história se constrói nas tramas diárias e configura-se,
fundamentalmente pela “*...+ faculdade de intercambiar experiências.
(BENJAMIN, 1987, p. 198) É importante entender esses procedimentos
diários se quisermos pensar em novas abordagens ao ensino de história
indígena.
Planejar abordagens que rememorem a trajetória dos povos
indígenas em contexto com sua realidade palpável é nossa obrigação
diária. Assim, desafios, como o da Escola Estadual Humberto Mendes, 12

podem ser superados permitindo a expressão indentitária e o diálogo


como caminhos imprescindíveis para a construção de um currículo de
qualidade e que possibilite a cognoscibilidade do entorno que cerca os
estudantes.
Mas perpetuar o preconceito e permitir o silêncio, contribui para o
fortalecimento de uma história que já conhecemos; cheia de fábulas e
folclore e repleta de desígnios elitistas. “E em função disso muitas vezes
ao invés de fomentar as ‘discussões e debates a respeito da diversidade
sociocultural, optam por silenciá-los.” (SILVA, 2012, p. 8) Calados, os
alunos não produzem e a educação deixa de ser uma via de mão dupla
tornando-se uma imposição.

Considerações finais: caminhos para a aplicação da lei 11645/08

Vimos até agora, que o município alagoano de Palmeira dos Índios


é o palco de um conflito físico, material e ideológico travado há gerações.
Nesse campo de guerra, a tomada de controle da memória tem sido uma
constante, bem como a sua forma de transmissão mais rápida: a
educação. Intuímos que, os conteúdos das aulas de história são
estrategicamente direcionados para o ocultamento da presença indígena
nos discursos oficiais. Mesmo com a lei 11645/08, os desafios
permanecem grandes e, sem os arranjos necessários, os professores
encaram sua aplicação como tarefa exclusiva de um único dia no ano.
O professor não pode se sentir obrigado a trabalhar a temática
indígena, antes ele precisa entender a importância desses povos no curso 13

da história do Brasil, possibilitando não só a compreensão da realidade de


seus alunos, mas das comunidades indígenas existentes no hoje. Um dos
caminhos que auxiliam na construção desse currículo multiétnico é a
formação dos professores; é necessário trabalhar a diversidade fazendo
um contraponto às vozes da elite local.
Cercada por 8 (oito) aldeias, Palmeira dos Índios é uma cidade
privilegiada como campo de pesquisa e trabalhar história indígena de uma
forma eficiente, implica, necessariamente, entrar em contato com os
índios dessas aldeias. Nesse sentido, as aulas de campo podem ser
momentos de aprendizado prático, porquanto os alunos e professores
podem comprovar como vivem os índios atualmente. Não é inteligente
criticar os índios como eles são no hoje, mas entender como chegaram a
ser assim.

Referências

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai


Leskov. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
MEKSENAS, Paulo. Sociologia da Educação: introdução ao estudo da
escola no processo de transformação social. São Paulo: EDIÇÕES LOYOLA,
1988.

MONTEIRO, John. Tupis, Tapuas e Historiadores: estudos de história


indígena e do indigenismo. Campinas: Tese apresentada para o concurso
de Livre Docência Área de Etnologia, subárea História indígena e do 14
Indigenismo. Antropologia. UNICAMP, 2001.

NIDELCOFF, María Teresa. Uma Escola Para o Povo. 1ª edição, 17ª edição.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1978.

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silencio. IN: Estudos


Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do poder. Tradução de Maria


Cecília França. São Paulo: Editora Ática, 1993.

RAMOS, Graciliano. Caetés. Organização Elizabeth Ramos e Erwin


Torralbo. Rio de Janeiro: Editora Record 2013. São Paulo: Editora Record:
2013.

BARTHES, Roland. Mitologias. 11ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,


2001.

SILVA, Edson. Dia do Índio: a folclorização da temática indígena na


escola. Disponível em:
http://www.construirnoticias.com.br/asp/materia.asp?id=2090
Acessado em 07 de março de 2015

SILVA, Edson. Povos Indígenas: história, culturas e o ensino a partir da lei


11.645. In: Revista Historien, v. 7, p. 39-49, Petrolina: UPE, 2012.

SILVA, Giovani José da. Ensino de História e Diversidade Étnica e Cultural:


desafios e possibilidades da história indígena na educação básica. In: Anais
Eletrônicos do IX Encontro Nacional dos Pesquisadores do Ensino de
História. Florianópolis/SC, 2011.
SILVA, Maria da Penha da. A diversidade étnico-racial na escola e a
temática indígena em questão: discutindo políticas públicas para a
efetivação da lei 11.645/08. In: Anais do IV EPEPE – Encontro de Pesquisa
Educacional em Pernambuco. Eixo temático 1- Educação, diversidade
cultural e processos de produção de desigualdades. Caruaru, 2012.

SILVA JUNIOR, Aldemir Barros da. Aldeando sentidos: os Xucuru-Kariri e o 15


serviço de proteção aos índios no agreste alagoano. Maceió: EDUFAL,
2013.
DE INVISÍVEIS A MARGINALIZADOS: OS XUKURU-KARIRI
E O CONTEXTO EM QUE VIVEM

Clara Maysa Alves da Rocha Torres 1


Érica de Oliveira Santos2
José Adelson Lopes Peixoto3 1

Resumo: Este artigo tem por objetivo desconstruir a visão estereotipada existente em
relação aos índios Xucuru-Kariri, povo que vive no município alagoano de Palmeira dos
Índios-AL, mostrando que apesar das transfigurações étnicas e anos de invisibilidade
perante a sociedade (por medo de represália), mantém como elementos principais a
resistência e a sua cultura fortemente personificada em seus rituais. Logo
apresentaremos o Toré, dança performática que simboliza a união e a construção de
sua identidade, além de reforçar a busca por reconhecimento, através da luta pelas
terras que são suas por direito. A metodologia parte basicamente de pesquisas de
campo, realizadas com a população local, e estudos bibliográficos nos escritos de
Aldemir B. da Silva Junior(2013), Darcy Ribeiro, João P. de Oliveira (1998), José Adelson
Lopes Peixoto, Júlio Cezar Mellati pesquisadores da história indígena.

Palavras-Chave: Estereótipo. Xukuru-Kariri. Invisibilidade.

Abstract: This article aims to desconstruct the stereotyped view related to Xucuru-
Kariri, indigenous people who live in Palmeira dos Índios, municipality in Alagoas,
Brazil, showing that despite the ethnical transfigurations and years of invisibility in
front of the local society (due to the fear of retaliations), those people still keep the
resistance and culture which is strongly personified in their rituals as their main
elements. Next, the Toré will be presented as well. It is a performative dance that
symbolizes the union and the identity construction of the Xukuru-Kariri’s, besides
increasing the efforts of being recognized through the fighting for the territories that
are theirs by right. The methodology is based basically on field researches made with
the local population and on bibliographical studies of written materials made by
Aldemir B. da Silva Junior (2013), Darcy Ribeiro, João P. de Oliveira (1998), José
Adelson Lopes Peixoto, and Júlio Cezar Mellati, researchers of indigenous history.

Keywords: Stereotype. Xukuru-Kariri. Invisibility.

1
Graduanda em História, pela Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL, Campus III, Palmeira dos
Índios. E-mail: mayza_cl@hotmail.com
2
Graduanda em História, pela Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL, Campus III, Palmeira dos
Índios. E-mail: erica18olivet@gmail.com
3
Prof. Orientador UNEAL.
INTRODUÇÃO

Para entender a situação atual dos índios brasileiros é antes,


necessário regressar ao período colonial, quando os europeus chegaram
às terras que hoje conhecemos como Brasil e a encontraram, já habitada 2

por nativos. Nesse momento, aconteceu um choque das duas culturas,


onde o europeu “o civilizado” impôs aos índios suas regras. Foi também aí
que surgiram os primeiros estereótipos: o índio como preguiçoso, porque
não tinham o hábito de acumular bens (capitalismo), enquanto que os
conquistadores estavam naquela desenfreada corrida por novas terras de
onde pudessem extrair riquezas.
Os nativos, ao contrário, trabalhavam apenas para a subsistência
da família. Eram, em maioria, nômades e não praticavam uma agricultura
extensiva, pois tudo de que necessitavam crescia livremente em meio a
mata. Como não estavam acostumados com o trabalho extensivo, e por
terem uma organização social do trabalho bem elaborada; homens,
mulheres, crianças e velhos tinham tarefas dentro da comunidade,
atividades que só eles poderiam realizar, uma vez que, era uma vergonha
ver um homem fazendo trabalho de mulher e vice-versa. Como se
negavam a trabalhar no que lhes era imposto pelos invasores, passaram a
ser chamados de preguiçosos e isto justificou não só o massacre, mas
também a compra de negros, que logo substituíram os nativos nas
lavouras e se tornaram ‘artigos’ de luxo, representativos de alto status.
Com os primeiros escritos de cronistas e viajantes (que passaram a
ideia de um índio selvagem, preguiçoso, que andava nu, com arco e flecha
na mão), formava-se apartir daí diversos estereótipos em relação aos
povos indígenas, que historiadores “adotaram” como base de seus
estudos, dando assim continuidade ao conceito formado. Na atualidade
podemos ainda notar a ”adoção” desses estereótipos aplicados em livros
didáticos, utilizados em sala de aula. 3

O município de Palmeira dos Índios, localizado no interior


alagoano, era inicialmente habitado por índios. Oriundo da Sesmaria de
Burgos iniciou seu processo de povoamento, por volta do ano de 1770
com a chegada de Frei Domingos de São José. Após sua chegada, vieram
também famílias de outras localidades, essas famílias tinham com o
intuito tomar posses de terras, que justificavam não terem donos.
Com a expansão do pequeno povoamento, houve o graduado
afastamento dos índios para as partes mais altas e para as terras,
consequentemente, menos produtivas e afastadas das fontes de água. Os
povos indígenas, antes acostumados com suas terras (lugar de memória)
desprovidas de demarcação e de donos (públicas), viram-se em um
cenário em que o não-índio começou a dividir e a nomear proprietários a
estas terras, e deixando de dar a elas um valor emocional para dar um
valor financeiro (particulares).
Entre muitas idas e vindas, os índios conseguiram do imperador, a
demarcação de 36.000ha; nunca efetivada, pois as invasões continuaram.
Com o fim do império, tudo se acabou e os índios foram, mais uma vez,
expulsos de seu território. Corroborando com isso a chegada da República
extinguiu seus aldeamentos e a partir daí passariam anos em silêncio, até
que no final do século XX, começam a ressurgir e a lutar por seus direitos,
sendo o marco mais importante dessas conquistas o artigo 231 da
Constituição da República Federativa do Brasil, que garante a demarcação
territorial, onde for comprovada a presença indígena.
Hoje se encontram na cidade de Palmeira dos Índios, 09
aldeamentos reconhecidos legalmente, e 01 aldeamento que não é 4

reconhecido legalmente nem pelos demais grupos indígenas.

Os Índios no Imaginário da População Palmeirense


Na cidade de Palmeira dos Índios, (onde seus primeiros habitantes
foram os indígenas) notam-se preconceitos resistentes em relação a esses
povos. Desde o século XX quando um dos mais renomados intelectuais e
ex-prefeito da cidade o escritor Graciliano Ramos (ao qual na cidade
encontra-se uma casa histórica em sua homenagem), descreve em seu
romance Caetés, que os poucos índios existentes na cidade, eram dois
bêbados, o que deu origem a um estereótipo ainda existente na memória
da população local, sobre um problema frequente em relação às bebidas
alcoólicas.“...São dois pobres degenerados, bebem como raposas e não
comem gente. O que convinha eram canibais autênticos, e isso já não há.
Dos xucurus não resta vestígios...”(RAMOS, 2013, p.66)
Mesmo após 85 anos da primeira edição do romance “Caetés”,
onde o autor escreve e afirma diversas ideias estereotipadas em relação
ao povo Xucuru-Kariri, percebe-se que na atualidade a população
palmeirense continua com a mesma visão preconceituosa para com os
índios. Os Xucuru-Kariri vistos como “marginais”, “desocupados” e
“preguiçosos”, por medo de represália, foram obrigados a assumir um
papel de invisibilidade perante a sociedade, se misturando e assumindo
características do não índio, passando a ser visto como um camponês
local. O processo de invisibilidade foi um meio a qual, o índio encontrou
como forma de sobreviver e manter sua cultura, levando assim para longe
dos ‘brancos’ o seu principal elemento que ‘re’ afirma sua identidade, sua 5

religião o toré e o Ouricuri.


É a partir de atitudes como essas que João Pacheco de Oliveira
afirma (1998) que os índios do nordeste não foram objetos de pesquisas
dos etnólogos por serem considerados misturados, remanescentes
resquícios do índio puro. Com o passar do tempo muitos deles assumiram
uma nova “identidade” – para andar normalmente pela cidade, trabalhar,
estudar e por muitas vezes, não correr risco de morte – e com isso foi dito
que não existia índio na região.
Esta situação é diferente nos dias atuais, hoje eles reivindicam por
uma “reafirmação” diferente de esconderem-se, muitos deles procuram
por visibilidade, e pela luta de seus direitos como a demarcação territorial
(cujas terras lhe são de direito). “*...+ no nordeste os conflitos são
fundamentalmente fundiários, envolvendo a acirrada disputa com
proprietários tradicionais, grileiros e posseiros até por pequenas
extensões de terras agricultáveis.” (OLIVEIRA, 1993, p. vi) O que
permanece como elemento essencial de sua cultura está no aspecto
religioso. Conservados em segredo do não índio, estes saberes são únicos
e milenares; por ter sido escondido dos não índios acredita-se não ter
sofrido influência, pois muito lhe foi tirado, e a religião é o único elemento
que o ‘branco’ não tomou para si. É consequentemente este aspecto que
realmente caracteriza um povo como indígena.
O momento mais comum em que o não índio é permitido
participar é durante o toré, que representa um dos aspectos mais
identitários dos povos indígenas, visto como “dança”, “ritual”, 6

“brincadeira” e outras definições dadas pelos indígenas. Mesmo sendo


permitido a participação do branco, este só pode entrar nesta ‘dança’ na
terceira volta, isto porque para os indígenas as três primeiras voltas, são
tidas como sagradas. Outro elemento que faz parte da religião destes
povos, é o Ouricuri (ritual de cura). Diferente do toré (que permite a
participação de outros povos) este é um ritual sagrado e sigiloso, que
pouco sabemos sobre ele.
No dia 28 de outubro, foi feita uma coleta de dados na cidade de
Palmeira dos Índios, com intenção de constatar o imaginário da população
local em relação aos índios Xukuru-Kariri. Destacamos também o Museu
Xucurus, que tem um acervo de peças religiosas, indígenas, escravos e de
famílias que tiveram participação marcante na história da cidade. Durante
a breve pesquisa de campo, pode-se perceber o quão forte os
estereótipos são presentes na concepção das pessoas da cidade.
Afirma-se ainda que: os índios não precisam de terras; as que
possuem lhe são suficientes, e nestas não existe produção, o índio (visto
com muito espanto) de ‘atualizado’, “o índinho com o tablet na mão, e o
macaco no ombro”. Uma visão engessada e puramente grossa dos índios é
muito popular na cidade, de que são preguiçosos e estão de olho nas
terras dos ‘trabalhadores’; na verdade a situação em Palmeira dos índios é
bem mais complicada do que se pensa: posseiros cercam os índios de
todas as formas, seja por ameaças ou relegando-os a meros figurantes na
história local.
Para muitos, os povos indígenas da região não existem mais, pois
ainda espera-se ver o índio selvagem, o canibal, de cabelo escorrido, de 7

língua nativa, e morando em uma oca, o índio simplesmente sumiu junto


com suas características de ‘puro’. “Quando duas populações estão em
presença uma da outra, cada uma procura interpretar, julgar, os costumes
e tradições da outra. Nem sempre tal interpretação ou julgamento se faz
de boa-fé.” (MELATTI, 1980, p. 193) A concepção em relação a esses povos
se dá através de como a sua imagem ainda é transmitida na mídia, de
maneira equivocada, e ela é absorvida de maneira verídica, sem nenhum
questionamento, passando assim como verdade absoluta, a fazer parte da
construção do imaginário de como o índio deve ser.
Houve uma descaracterização do índio nordestino por não serem
considerados ‘puros’, esses estudiosos não buscaram entender que houve
uma interação entre os índios do nordeste e a população regional e não
uma quase que total perda da cultura indígena como eles supunham. Em
entrevista feita por Cássio Júnio Ferreira da Silva, com o pajé Celso
Selestino da aldeia indígena Fazenda Canto, pode-se notar na fala, a
certeza com as quais os índios lidam no cotidiano, do não reconhecimento
por parte de algumas pessoas, para com os povos indígenas, porém
notasse a “re” afirmação de sua cultura, ao falar:
O preconceito existe, a gente vê isso porque o índio
pra muitos é aquele índio do cabelo derramado, que
anda nu, que bote uma palhinha de coqueiro na frente
e saia andando dessa maneira, e quando a gente volta
pra realidade do nordeste ela é totalmente diferente
porque o nordeste foi onde ocorreu toda a
invasão......graças a Deus temos a nossa cultura a 8
nossa tradição, temos o Ouricuri dentro da nossa área,
temos nossa dança... (Celso Selestino da Silva4)

Apesar da afirmação da presença indígena na região por parte de


alguns moradores da cidade, esta ideia ainda vem repleta de preconceitos:
o índio como ‘marginal’, preguiçoso, alcoólatra, o misturado (“o branco do
olho claro, e até bonito”). Esta ideia reflete também no comércio da
região, onde alimentos e artigos produzidos pelos Xukuru-Kariri, só são
vendidos se a origens destes não forem reveladas. O mesmo acontece
com os próprios feirantes indígenas, que omitem sua identidade, como
meio de obter sucesso nas vendas de seus produtos, uma vez quê
assumindo sua origem, possa causar um certo ‘repúdio’ por parte dos
moradores da região, já que os índios são vistos como incapazes de
produzir qualquer tipo de mercadoria. Nesse sentido, Melatti enfatiza
que:

Desse modo, [...] afirmam que os índios são


preguiçosos, cruéis, sujos. Ao chama-los de
preguiçosos, associam a isto a idéia de que os índios
não aproveitam bem suas terras, que estas
produziriam muito mais se pertencessem aos

4
Pajé Xucuru- Kariri da Fazenda Canto, em entrevista feita a Cássio Júnio Ferreira da Silva
sertanejos; tal acusação serve também para justificar
os salários baixos que dão aos índios ou, em outras
regiões onde há excesso de mão-de-obra, para
recusar-lhes trabalho. (MELATTI, 1980, p. 193-194)

Com relação à questão territorial a população afirma que, estes 9


povos não passam de aproveitadores, que as terras que pertencem-lhes já
são suficientes, que se viessem a avançar sob a cidade (cuja já está repleta
de construções) seria apenas para vende-las, pois não teriam nenhuma
utilidade para eles. Devido a estes pensamentos, o Xukuru-Kariri no
imaginário da população palmeirense são “aproveitadores” que se dizem
indígenas, para apossamento de terras.
A situação da demarcação territorial na cidade é algo ainda
conflituoso entre as autoridades locais e os Xukuru-Kariri. Isto porque
apesar de anos de tentativas de acordos, os políticos e figuras importantes
da região (os detentores da maioria das propriedades), não admitem que
aja uma divisão territorial justa. O que leva a esta possível afirmação, são
os diversos laudos realizados por diferentes antropólogos, e que nenhum
destes, chegaram de fato a uma conclusão, que viessem a agradar a
ambas as partes. O que dificulta ainda mais este processo é a resistência
por parte dos grandes fazendeiros/posseiros, ao não reconhecimento da
necessidade de uma divisão justa. Tendo em vista o crescimento do
número quantitativo de famílias indígenas na região a demarcação é
essencial.
Segundo relatos contidos no artigo Demarcação, Desintrusão e
Conflito Territorial em Palmeira dos Índios-AL de José Adelson Lopes
Peixoto e Thayan Correia da Silva, diz que, o líder ruralista José Maria
Melo da Costa, em entrevista a rádio, afirma a única forma plausível de
evitar o confronto é:

O Governo Federal comprar terras de qualidade em 10


outro lugar e, como indenização, permutá-las pelas
terras incluídas no processo fundiário Xucuru-Kariri.
Dessa forma o governo atenderia aos interesses das
partes conflitantes: de um lado, os proprietários, que
permaneceriam em suas respectivas propriedades e,
do outro lado, os índios Xucuru-Kariri, que seriam
contemplados com terras férteis e abundantes.
(PEIXOTO & SILVA, 2014, p.13)

Isto vem mostrar a intolerância existente ao se falar em


demarcação territorial no município de Palmeira dos Índios, provindas dos
posseiros. Enquanto para os grandes fazendeiros e moradores da cidade,
as terras representam apenas sinônimo de bens, ou poder, para o índio a
terra é vista como bem mais precioso, pois representa memoria. Para os
índios como afirma Melatti “A terra *...+ é um bem de produção
geralmente possuído coletivamente.” (MELATTI, 1980, p. 64) Na terra eles
desenvolvem sua cultura e criam seus filhos; ela é o centro de tudo: do pó
que nascem e é ao pó que voltam, para dali crescerem novos guerreiros.

Conclusões Possíveis
Vimos até agora como os Xukuru-Kariri, povo indígena do
município alagoano de Palmeira dos Índios tem uma história permeada
pelos conflitos territoriais e a épica luta contra os posseiros. Constatamos
ainda que os rituais e o sagrado desse povo são elementos importantes
em sua luta e que configuram seu motivo de ‘ser’. Também discorremos
sobre o que pesam os cidadãos sobre os índios, e percebemos que o
preconceito ainda é uma constante.
Atualmente os Xukuru-Kariri lutam pelo reconhecimento perante a 11

sociedade e pela demarcação de suas terras (que muitos negam a


reconhecer sua presença na região), como uma demarcação justa, devido
à necessidade de mais terras, consequente do aumento das famílias que
habitam os aldeamentos, e assim a expansão das áreas de cultivo no qual
retiram alimentos para sua subsistência e para o comércio da região.
A desvalorização da identidade dos povos indígenas acabou
quando estes decidiram sair da invisibilidade, mesmos e com a existência
de um desconforto perante a população local; mas o orgulho de ser e se
sentir índio ainda é mais gratificante e os fortifica em suas
reinvindicações. Suas lideranças assumem e tem orgulho da sua
identidade, tendo assim plena consciência do preconceito sofrido, mas
não se deixam afetar, pois conhecem seus valores e seus direitos, e
consequentemente uma justa demarcação.
Enfim, ainda existem muitas coisa a serem estudadas, a história
dos povos indígenas é um campo novo cheio de versões conflituosas e que
ainda precisam de esclarecimento, sejam os estereótipos, os ritos, as
criticas ou os embates. Temos a nossa frente um campo e povos de várias
etnias que estão empenhados em conquistar e garantir a permanência de
seus diretos; humanos antes marginalizados que hoje são intelectuais
politizados, não deixando de ser aquilo que sempre foram: índios!
Referências
MELATTI, Júlio César. Índios do Brasil. 3. ed. São Paulo: HUCITEC; Brasília:
INL, 1980
OLIVEIRA, João Pacheco de. “A viagem da Volta”: reelaboração cultural e
horizonte político dos povos indígenas no nordeste IN: Atlas das Terras 12

Indígenas do Nordeste: projeto de estudo sobre terras indígenas no Brasil.


Rio de Janeiro: PETI/Museu Nacional, 1993.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma Etnologia dos “Índios Misturados?”
Situação Colonial, Territorialização e Fluxos Culturais. Mana, 1998.
PEIXOTO, José Adelson Lopes. SILVA, Thayan Correia da. Demarcação,
Desintrusão e Conflito Territorial em Palmeira dos Índios-AL. Palmeira
dos Índios. 2013
RAMOS, Graciliano. Caetés. Organização Elizabeth Ramos e Erwin
Torralbo. Rio de Janeiro: Editora Record 2013. São Paulo: Editora
Record:2013.
RIBEIRO, Darcy. Índios e a Civilização. São Paulo: Círculo do Livro S.A,
1985.
SILVA, Cássio Júnio Ferreira da. Trabalhadores ou Preguiçosos?
Apontamentos Sobre A Produção Agrícola Na Aldeia Indígena Fazenda
Canto. Palmeira dos Índios. 2015.
SILVA JÚNIOR, Aldemir Barros da. Aldeando Sentidos. Maceió: EDUFAL,
2013
A HISTÓRIA E O ENSINO DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Alexandre Claro Mendes1

Resumo
O artigo tem como objetivo fornecer elementos ao professor para que ele possa
introduzir em suas aulas de História o ensino da História da Ciência. A perspectiva
desse trabalho está fundamentada na possibilidade de promover uma discussão
interdisciplinar tendo no seu núcleo a história, ciência e a filosofia. A compreensão
dessas diferentes áreas do conhecimento, vista pelo prisma da História da Ciência,
fornece um maior entendimento aos alunos sobre as condições históricas, políticas e
sociais nas quais se constrói o conhecimento científico.
Palavras-Chaves: História, História da Ciência e Ensino de História

Abstract
The article aims to provide information to the teacher and help this professional to
introduce in their History classes the teaching about the History of Science. The
prospect of this work is based on the possibility of promoting an interdisciplinary
discussion, and has at its core the history, science and philosophy. Understanding the
different areas of knowledge, seen through the prism of the History of Science,
provides a better understanding to students about the historical, political and social
conditions in which builds scientific knowledge.
Keywords: History, History of Science and History teaching

1
Mestre em História da Ciência pela PUC-SP.
A sociedade contemporânea cada vez mais tem como principal base de
desenvolvimento o binômio ciência e tecnologia, porém é importante
lembrar que esses elementos sempre estiveram presentes na história
humana. Isso pode ser analisado quando o homem do paleolítico lascou
2
uma pedra sobre a outra e criou o biface. Esse artefato feito de pedra
talhada foi produzido usando algo fundamental que está presente e é
essencial na ciência, isto é, a imaginação, além disso, foi também
necessário um processo técnico para sua confecção, fato que se
encontrava dentro da própria sociedade.
O objetivo desse artigo é fornecer subsídios ao professor para que
ele possa utilizar a História da Ciência nas suas aulas, de modo que o
estudante possua condições de ter maior conhecimento em relação aos
processos históricos a partir de questões que discutam a ciência no
contexto em que ela foi produzida; permitindo assim aos alunos
compreender que a ciência não pode ser vista simplesmente como um
processo evolutivo de algo “inferior para algo superior.”
A introdução do ensino da História da Ciência contribui para uma
discussão interdisciplinar do ensino dentro das escolas e permite aos
alunos interpretar o mundo de forma holística no sentido grego do termo,
ou seja, compreendê-lo como um todo, pois ciência, arte, filosofia,
religião, política, economia e mitologia pode ser analisada pelo prisma da
História da Ciência. Cabe ressaltar que essa interpretação não tem a
pretensão de fornecer uma única resposta para aquilo que é selecionado
pelo professor e estudado pelos alunos, mas sim de fomentar o debate
através da possibilidade de outras hipóteses (MARTINS, 2006, p.17).
Atualmente pesquisadores da ciência, educação e da história
acreditam que o ensino da história da ciência é um importante
3
instrumento no ensino como forma de facilitar a compreensão da própria
ciência e consequentemente da sociedade que a produz (MARTINS, 2000,
p.47).
É importante lembrar que os aspectos da ciência de uma
determinada época não podem ser desvinculados de seu contexto
histórico, social e político (ZATERKA, 2004, p.30).
Nesse sentido o uso da História da Ciência nas aulas de História ajuda
no cumprimento do Artigo 22 da LDB que diz: “A educação básica tem por
finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum
indispensável para a cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no
trabalho e em estudos superiores.”
Para que ocorra o desenvolvimento pleno da cidadania no mundo
atual existe a necessidade de que os jovens tenham conhecimento
técnico-científico. Esse conhecimento fornece a juventude algumas
possibilidades de inserção no mundo do trabalho; vale lembrar aqui que
uma das orientações existentes nas Diretrizes Curriculares Nacionais é o
de vincular a educação com o mundo do trabalho e a prática social.
Essa tríada cidadania, mundo do trabalho e prática social deve ser
encarada com um projeto interdisciplinar que é característica sine quo non
da História da Ciência, daí sua função crucial de estar presente nas aulas
de história.
O momento atual de integração global de determinados valores
políticos e morais estão cada vez mais contidos da difusão de um modelo
4
de ciência e técnica que é Ocidental.
A compreensão não só desse modelo de ciência como também de
outros através da história torna-se algo fundamental na proposta de um
ensino de História que priorize não uma, mas sim várias sociedades
humanas (BURKE, 2000, p. 12).

A História da Ciência: um breve relato


A História da Ciência não pode ser vista simplesmente como a união
de duas coisas distintas que acabam por criar geralmente uma terceira
com características próprias. (ALFONSO-GOLDFARB, 1994, p. 9)
Desse modo, faz-se necessário apresentar mesmo que forma sucinta
alguns aspectos que perpassam a gênese da História da Ciência. Sua base
teórica é a interdisciplinaridade, já que seu fundamento epistemológico
está em três grandes áreas do conhecimento: filosofia, história e ciência.
(MENDES, 2005)
O nascimento da História da Ciência está diretamente relacionado
com o próprio surgimento da ciência moderna ocorrida entre os séculos
XVI e XVII. (FIGUERÔA, 2009, p. 154).
No interior da ciência moderna é possível encontrar alguns dos
vestígios da história da ciência como o processo da expansão marítima
europeia que permitiu aos europeus ampliarem seus horizontes
geográficos, culturais e políticos. Além disso, a tomada de Constantinopla
pelos turcos em 1453, fez com que os cristãos bizantinos procurassem
abrigo na Europa Ocidental; levando consigo uma série de obras clássicas
5
do mundo grego, ao lado desses livros era introduzido também o idioma
grego que havia ficado durante muito tempo adormecido em grande parte
continente europeu. O contato com diversas obras no original grego fez
com que houvesse uma efervescência cultural na Europa que
posteriormente recebeu nome de Renascimento (ALFONSO-GOLDFARB,
1994, p.10/20).
Foi durante o período renascentista, aqui compreendido entre os
séculos XIV e XVII, que ocorreu o surgimento daquilo que se convencionou
chamar de “Revolução Científica”. Entretanto cabe ressaltar que, de
acordo com os critérios historiográficos da História da Ciência, o seu uso é
improprio uma vez que ruptura total com o passado nunca ocorreu
(MARTINS, 2001, p. 113/129).
Sua utilização neste artigo serve apenas para apontar o tripé na qual
a ciência moderna vai se fundamentar, isto é, observação,
experimentação e matematização da natureza com o objetivo de atingir a
dominação do homem sobre seu meio natural.
A “Revolução Científica”, teria sido o acontecimento que aumentou a
influência da ciência, cultura e política da Europa Ocidental sobre diversas
regiões do globo (DEBUS, 1996, p.01).
O aparecimento da ciência moderna e consequentemente da
“Revolução Científica” foi acompanhado de uma grande discussão
paradoxal entre dois grupos que ficaram conhecidos como “antigos e
modernos”.
6
Para os antigos era fundamental retomar o conhecimento produzido
pelos clássicos, já para os modernos, era necessário abandonar as
autoridades clássicas e recomeçar, investigando a própria natureza.
Nessa época, como também em períodos anteriores, não existia o
conceito de ciência tal como conhecemos hoje. O que existia era a filosofia
natural ou filosofia da natureza, denominação genérica que tem seu
surgimento com os gregos que procuraram estudar e compreender a
natureza. Isso incluía todos os fenômenos naturais do mundo físico, sendo
assim, o objetivo da filosofia natural era o de estudar as causas físicas dos
efeitos naturais.
O mundo físico abrangia um vasto campo de conhecimento para os
padrões contemporâneos, isto é, matemática, astronomia, física, química,
biologia etc. Essas áreas estavam inseridas numa mesma lógica do
pensamento sem nenhum tipo de fragmentação na forma de pensar a
natureza, porém não cabe nesse artigo uma discussão mais arraigada da
filosofia da natureza.
É dentro desse contexto histórico da Europa dos séculos XV e XVII
que tivemos o surgimento de homens como Nicolau Copérnico, Johannes
Kepler, Giordano Bruno, Galileu Galilei e Isaac Newton, este último
durante muito tempo teria sido o responsável pelo início da “Idade da
Razão.”
Esses pensadores foram e as vezes ainda são tidos como os grandes
“gênios da ciência”, já que parte de suas ideias foram apropriadas na atual
7
forma de se produzir ciência.
O pensamento newtoniano talvez seja o maior exemplo pois, no
século XVIII, e a partir de então, Newton passou a ser considerado o
primeiro e o maior de todos os cientistas da era moderna. Ele teria
ensinado a Europa a pensar segundo os moldes da razão fria e sem
retoques (KEYNES, 2002, p. 382).
Aliás ainda hoje em muitas aulas de física o pensador Isaac Newton é
apresentado como um modelo de cientista que utilizou a matemática e a
física para desvendar os segredos da natureza. Isso teria sido possível
devido a sua peculiar genialidade.
Essa forma como Isaac Newton é apresentado nas salas aulas da
disciplina de física possui diversos problemas e distorce a maneira pelo
qual ocorre a construção do pensamento humano. Além disso, muitos
jovens passam a acreditar que a produção do saber científico é algo
apenas para pessoas “iluminadas pelo saber”.
Com a utilização do ensino da História da Ciência alguns desses
problemas seriam eliminados, vejamos:
Numa aula sobre Renascimento o professor de história pode dar uma
ênfase maior na “Revolução Científica” tendo como tema central Isaac
Newton. Existem na língua portuguesa dois excelentes livros que são
capazes de auxiliar o professor nessa tarefa são eles: A vida de Isaac
Newton de Richard Westfall e Newton – textos, antecedentes e
comentários. O primeiro é uma biografia e o segundo uma coletânea de
artigos onde é possível trabalhar utilizando fontes primárias e textos de
8
especialistas na área. Este livro também foi organizado por Richard
Westfall, ao lado I.B Cohen.
O professor, ao abordar o tema de Isaac Newton em sala de aula,
tem condições de mostrar aos alunos algumas características importantes
da conjuntura da Inglaterra seiscentista e quais eram as áreas de interesse
de nosso pensador como alquimia, teologia, hermetismo, cronologia
bíblica etc. Atualmente essas áreas são descartadas pela ciência, já que
são consideradas esotéricas, entretanto elas foram fundamentais para a
formação do pensamento newtoniano e receberam o mesmo rigor de
estudo das áreas mais conhecidas como a matemática ou a física.
Outro fator a ser destacado é a necessidade do trabalho em sala com
o uso de documentos históricos. A utilização de fontes primárias fornece
condições apropriadas para os alunos compreenderem que não existem
gênios da ciência, uma vez que o processo de conhecimento é feito de
permanências e rupturas. A frase postulada por Newton ajuda nessa
orientação: “Se enxerguei além dos outros, é por que estava sobre ombros
de gigantes.”
Por isso, a História da Ciência procura estudar o processo de
constituição do conhecimento. Porém, é importante lembrar que esse
estudo não deve procurar no passado da ciência aquilo que deu certo no
nosso presente, pois estaríamos cometendo um erro capital no nosso
ofício, o anacronismo.
Portanto, a História da Ciência tem como objeto não só aquilo que
hoje é aceito como ciência, mas que de algum modo já foi proposto ou
9
aceito como ciência. O entendimento dessa questão é indispensável para
a prática das habilidades e competências, a fim de lidar com a atual
complexidade do mundo moderno e com isso promover a construção da
cidadania e da prática social que passam a ser fundamentais no mundo do
trabalho.

Bibliografia
ALFONSO-GOLDFARB, Ana Maria. O que é História da ciência? São Paulo:
Brasiliense, 1994.
BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: UNESP, 2000.
BRASIL/MEC. Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional. Brasília, DF: 20 de dezembro de 1996.
DEBUS, Allen G. El hombre y la natureza em el renacimiento. Trad. S.
Rendón. 2ª. Ed. México: Fundo de Cultura Económica, 1996.
FIGUERÔA, Silvia. Ciência e Tecnologia, in PISNKY, Carla. Novos temas nas
aulas de História. São Paulo: Contexto, 2009.
HILL, Christopher. Origens Intelectuais da Revolução Inglesa. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
KEYNES, JOHN MAYNARD. De “Newton, o homem”. In COHEN, I Bernard &
WESTFALL, Richard S. Newton – textos, antecedentes e comentários. Trad.
Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora UERJ, 2002.
MARTINS, Roberto de Andrade. Que tipo de história da ciência esperamos
10
ter nas próximas décadas? Episteme. Filosofia e História das Ciências em
Revista (10): 39-56, 2000.
______________A história das ciências e seus usos na educação. Pp. xxi-
xxxiv, in: SILVA, Cibelle Celestino (ed.). Estudos de história e filosofia das
ciências: subsídios para aplicação no ensino. São Paulo: Livraria da Física,
2006.
______________. “Como não escrever sobre História da Física” – Um
manifesto historiográfico. Revista Brasileira do Ensino de Física. 23, 2001:
p.113/129.
MENDES, Alexandre Claro. A História da Ciência como instrumento da
prática interdisciplinar nos cursos de graduação In: 1º Congresso de
Graduação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Anais. São
Paulo: USP, 2015.
ZATERKA, Luciana. A filosofia experimental na Inglaterra do século XVII:
Francis Bacon e Robert Boyle. São Paulo: FAPESP/ASSOCIAÇÃO EDITORIAL
HUMANITAS, 2004.
HISTÓRIA ANTIGA E LIVRO DIDÁTICO:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Ana Flávia Crispim Lima 1


1

Resumo:
Através do problema enfrentado pelos professores sobre a transposição didática, do
ambiente acadêmico ao ensino básico, abordaremos nesse ensaio algumas
considerações sobre o ensino de História Antiga e o livro didático, mostrando algumas
dificuldades encontradas pelo docente e algumas sugestões para melhoria na
aprendizagem do aluno.
Palavras-chave: Transposição Didática; História Antiga; Livro Didático.

Abstract:
Through the problem faced by teachers on the didactic transposition , the academic
environment to basic education , we discuss in this paper some considerations on the
teaching of ancient history and the textbook , showing some difficulties encountered
by the teacher and some suggestions for improvement in student learning.
Keywords: Didactic Transposition; Ancient history; Textbook.

1
*Graduanda na Pontifícia Universidade Católica de Goiás; Bolsista do PIBIC/CNPQ
Um dos maiores desafios enfrentados pelos professores, ao deixarem o
meio acadêmico e entrarem em contato com o Ensino Básico é a chamada
"Transposição Didática" (Bittencourt, 2011, p. 35-37), que segundo
Bittencourt, é a forma pelo qual os professores irão passar para seus 2

alunos os conteúdos acadêmicos em conteúdos que possam ser aplicados


no Ensino Básico, (Ensino Fundamental e Médio) já que a forma de
"escrever" e "pensar" a História é diferente em ambos os casos.
Atualmente a História, quer seja como disciplina acadêmica ou
como disciplina básica, está passando por um processo de adaptação às
inovações tecnológicas. Logo, a História, como disciplina, precisa
encontrar formas de "sobreviver" nesse mundo. Segundo os PNC´s
(Parâmetros Curriculares Nacionais) é preciso que se leve em conta a
opinião dos alunos, os seus questionamentos e o modo de viver dos
mesmos, tentando aproximar os fatos ocorridos à realidade vivida e para
que haja uma melhor compreensão dos alunos sobre o que é ser sujeito
histórico e se entenda como tal.
Em pleno século XXI, se tratando do ensino de História, um dos
temas mais difíceis de ensinar é a História Antiga, já que entre diversos
motivos, esta não é muito "querida" pelos alunos, os quais questionam o
porquê de estudar uma "coisa" que aconteceu há muito tempo
(considerada tão distante da nossa atual realidade) e que para muitos não
tem nenhuma influência nos dias atuais e também por ser vista como algo
exótico, diferente (Silva, 2010, p.145). Esses conceitos apresentados pelos
alunos decorrem da falta de exposição de uma aula de História Antiga
bem feita. No entanto, os professores têm muita dificuldade em obter
essa aula necessária. Um dos principais motivos que contribui
grandemente com essas dificuldades são da estrutura do livro didático.
O livro didático, tal como se apresenta hoje estruturado, é um
instrumento pedagógico eficaz quando se trata de ensinar os conteúdos 3

de História Antiga? Ou, dito de outro modo, o professor do Ensino


Fundamental/Médio ao ensinar os conteúdos de História Antiga, pode
apoiar-se com segurança no material mais recorrente à sua disposição,
que é o livro didático?
Analisando essas questões podemos notar a presença de inúmeras
informações errôneas e bastante desatualizadas, bem como uma
quantidade alta de simplificações que comprometem o estudo da
disciplina por parte dos alunos, que muitas vezes, torna-se enfadonho de
se ler. Baseados nos escritos do Dr. Gilvan Ventura da Silva(2010),
podemos ver que a falta de compromisso com a definição prévia e clara
dos conceitos empregados na explicação de determinados processos
históricos, torna-se particularmente grave se tratando de História
Antiga. Segundo Silva (2010) muitos dos termos utilizados pelos
especialistas ou não fazem parte do vocabulário habitual dos alunos, ou
não possuem o mesmo significado que a linguagem corrente lhes atribui
no presente.
É fundamental atentar, se o significado é baseado no período
antigo, extinguindo conceitos contemporâneos, que muitas vezes se difere
e só serve para confundir a compreensão do estudante.Os professores do
Ensino Fundamental e Médio não buscam, muitas vezes, acompanhar as
discussões recentes acerca da produção científica na sua área por meio de
leituras mais recentes, o que os leva a submeterem-se passivamente ao
saber condensado nos livros didáticos (LIMA, 1998, p. 196). Como afirma
Bárbara Freitag (1989, p. 124), o livro didático não é visto como um
instrumento de trabalho auxiliar na sala de aula, mas sim como a 4

autoridade, a última instância, o critério absoluto da verdade, o padrão de


excelência a ser adotado na sala de aula.
É de suma importância que o professor use outros instrumentos de
trabalho que vão ajuda-lo a tornar sua aula mais dinâmica. Pois, "a aula é
do professor e não do livro. E o bom docente é livre, autônomo e procura
sempre a melhor maneira de produzir conhecimento" (KARNAL, 2007, p.
158).
Em outras situações podemos observar também a utilização de
conceitos que há muito tempo já foram superados ou redefinidos pela
historiografia.Como exemplo, temos o uso já ultrapassado do conceito de
classes sociais para tratar da Antiguidade, a famosa linha do tempo
desenhada nos quadros por professores que ensinam para os alunos que a
História é uma linha de causas e consequências. Ou ainda, o uso
problemático do conceito de decadência para marcar o fim do Império
Romano, já criticado por historiadores de renome, como Jacques Le Goff,
que propõe o uso do termo desagregação (GONÇALVES, 2001, p. 05)
dando a ideia de transformação que é mais próxima do que a ruptura
total.
Mais um conceito usado em livros didáticos e bem discutido nas
pesquisas historiográficas é o de Alto e Baixo Império Romano, onde
denotam, para os alunos, o sentido de momento de auge e queda, sem
refletir sobre a História enquanto transformação. Há historiadores como
Peter Brown (O Fim Do Mundo Clássico, 1972) que propõe o uso do termo 5

Principado em substituição ao Alto Império, para marcar os três primeiros


séculos do Império Romano e Antiguidade Tardia, para marcar já o
momento em que as estruturas politico-administrativas de Roma estavam
sendo transformadas, como elementos típicos do período seguinte, o
Medievo.
Ventura, sobre o conteúdo de História Antiga, classifica a sua
estrutura geral, de duas maneiras: o levantamento de forma panorâmica
de todas as civilizações antigas orientais e ocidentais, ou buscando
aproximar o mundo contemporâneo do passado. E, em seguida, expõe as
consequências dessas estruturas ensinadas alegando que ao tentar
sintetizar, as informações acabam perdendo o seu contexto geral. E por
fim, nos mostra uma possível opção, que, classificada por ele como
razoável, seria o de analisar um conteúdo menos extenso, aprofundando
mais no assunto (VENTURA, 2001, p.127-128)
Portanto, como já vimos, a quantidade de anacronismos, erros,
simplificações, juízos de valores e, principalmente, falta de atualização dos
assuntos tratados dos livros com as pesquisas na área de História Antiga, é
enorme. Mas, embora haja muitos livros de História com conteúdos
desfalcados, há também ótimas publicações atuais de livros didáticos. Um
exemplo disso seria o fantástico livro Grécia e Roma - Vida Pública e
Privada, do Professor Dr. Pedro Paulo Funari (2008) onde alia as novas
descobertas arqueológicas e suas interpretações históricas, com reflexões
de pesquisas que trazem novidades em termos teórico-metodológicos.
Este livro é fácil de achar e de linguagem acessível até mesmo para
um trabalho de analise e leitura por parte dos alunos de Ensino Médio. 6

Uma outra obra de suma importância para o ensino de Historia Antiga


desse mesmo autor é a obra Antiguidade Clássica. A História e a Cultura a
partir dos documentos, Onde sua importância para o ensino didático é
mostrar aos alunos como é o trabalho do historiador, de onde tiramos e
como interpretamos as informações sobre o passado.
Mas para saber utilizar corretamente estes livros, e mesmo outros
recursos, o professor de História precisa de criatividade, boa vontade e
uma boa formação acadêmica, refletidas em praticas de ensino, estágios,
atividades acadêmicas, cientificas e culturais e também pesquisas de
Iniciação Cientifica feitas ainda durante a primeira formação na
graduação.
Diversas vezes, anteriormente, mencionamos a necessidade do
professor lecionar a História Antiga para os estudantes de ensino básico
fazendo uma comparação com a contemporaneidade. No entanto, é
preciso, antes de tudo, muita cautela com as comparações propostas,
inclusive com o intuito de evitar anacronismos, um dos equívocos mais
graves em se tratando do conhecimento histórico. Comparar realidades
muito distantes no tempo e no espaço requer ainda um cuidado
redobrado, pois no esforço de tentar tornar mais inteligível para os
estudantes contemporâneos, processos muito recuados do tempo
mediante a comparação com elementos do cotidiano, podem ser
cometidas serias distorções.
Ao se relatar as experiências do passado, são pouquíssimos os livros
didáticos que se atentam em deixar explicito ao mostrar de que muitos
dos fatos narrados nas diversas civilizações apresentadas ocorreram de 7

forma simultânea. Segundo Andréa Lúcia D.O.C. Rossi (1998) o que tem
mais ocorrido é o de abrir capítulos para cada uma das civilizações. Como
por exemplo, o surgimento, desenvolvimento e crise da sociedade egípcia,
o surgimento, desenvolvimento e crise da sociedade mesopotâmica, o
surgimento, desenvolvimento e crise da sociedade grega, o surgimento,
desenvolvimento e crise da sociedade romana. Como se essas sociedades
não tivessem interagido entre si.
Um recurso metodológico extremamente necessário no ensino de
História Antiga são os mapas. O uso de filmes em sala de aula, desde que
trabalhados com uma metodologia própria, se faz extremamente válido.
Além dos filmes, imagens de monumentos da Antiguidade, de construções
e objetos do uso cotidiano e mesmo de documentação escrita, são
interessantes para o aluno visualizar mais de perto o que o professor fala.
Existe a necessidade de mostrar para os estudantes, a importância
de aprender a História Antiga. Pois, "de olhos voltados às origens do
espetáculo das ações humanas, e porque não, a seus antecedentes, a
História Antiga é capaz de orientar os mais diversos grupos sociais a
visualizar o mundo presente de maneira crítica e cidadã" (ROSSI,
RODRIGUES, s/d, p. 256).
Uma metodologia da aprendizagem eficaz para a disciplina que
lecionam é aquela que permite ao aluno desenvolver três habilidades
básicas: 1) compreender a realidade na qual se encontra inserido, a partir
da problematização entre o presente e o passado, não esquecendo de
evitar os erros mencionados anteriormente; 2) alcançar níveis mais 8

amplos de abstração e de generalização; 3) posicionar-se de modo critico


acerca dos processos históricos estudados.
Como vimos no decorrer desse trabalho, construir a História em sala
de aula junto com os alunos não é uma tarefa fácil, entretanto, com muito
esforço e dedicação e uma boa formação do docente, a tarefa se torna
agradável e bem realizada. Para utilizar o Livro Didático com maior perícia
e autonomia, seria necessário, no entanto, que o professor (nos referimos
aqui ao professor de História, em particular) tivesse recebido uma
formação minimamente satisfatória.
Especialistas em História Antiga, seria a solução para tais problemas
enfrentados. Em face dessas modestas reflexões, gostaríamos de lançar
aqui o convite para que se multipliquem os especialistas em História
Antiga no Brasil, de modo que, no menor espaço de tempo possível,
tenhamos condições de reverter tal situação, dando oportunidade para
que os docentes habilitados pelas Universidades possam transitar com
desenvoltura por todos os ramos do conhecimento histórico e fazer um
livro didático que seja de fato formador, e não deformador.
Referências
BITTENCOURT, C. (Org) O saber histórico na sala de aula. São Paulo:
Contexto, 1997.
CABRINI, Conceição et al. O Ensino de História: Revisão Urgente. 4. Ed.
São Paulo: Brasiliense, 1994. 9

BITTENCOURT. Circe Maria Fernandes. Uma "Transposição Didática?"


In: Ensino de História: Fundamentos e métodos -4 ed. ___São Paulo:
Cortez, 2011- (Coleção docência em formação. Série ensino fundamental/
Coordenação Antônio Joaquim Severo, Selma Garrido Pimenta), p. 35-37;
FREITAG, B. et al. O livro didático em questão. São Paulo: Cortez, 1989.
FUNARI, P. P. A. Antiguidade Clássica. A História e a Cultura a partir dos
documentos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995.
________. Grécia e Roma. Vida Pública e Vida Privada. São Paulo:
Contexto, 2000.
________. " A Renovação da História Antiga" In: História Na Sala De Aula.
5 ed. São Paulo, SP: Contexto, 2008
________. A Importância de uma abordagem crítica da História Antiga nos
livros didáticos escolares. Hélade, 2001, p. 25-29.
LIMA, S. C. F. de. O livro didático de História: instrumento de trabalho ou
autoridade "científica"?. História e Perspectivas, Uberlândia, n. 18/19, p.
195-206, 1998.
MENDONÇA, N. O uso dos conceitos. Petrópolis: Vozes, 1985.
RADUCH, M.C. Temas de História em livros escolares. Porto:
Afrontamento, 1970.
SILVA, Semíramis Corsi. Aspectos do Ensino de História Antiga no Brasil:
Algumas observações. In: Alétheia; Revista de estudos sobre Antiguidade
e Medievo, Volume 1, Janeiro a Julho de 2010, ISSN: 1983-2087, p. 145-
155.
10
O QUE SÃO ESTILOS DE APRENDIZAGEM?
CONCEITOS E TEORIAS
Daniel Rodrigues de Lima1

RESUMO
Os estilos de aprendizagem são diferentes formas de perceber e processar as
informações, é como nos comportamos durante o processo de aprendizagem, diante
disso há três formas perceptivas de aprendizagem que são: a visual, a cinestésica 2
(corpo, sensação e movimento) e a auditiva. O objetivo geral de nosso artigo é
conceituar o que são dos estilos de aprendizagem. A pesquisa foi desenvolvida a partir
de uma revisão bibliográfica, analisando o que foi produzido sobre o tema, onde seu
cunho é de uma pesquisa qualitativa em que utilizaremos o método de amostragem,
pois a partir da aplicação do teste de VAC (Visual, Auditivo e Cinestésico) baseado na
teoria dos 6 estilos de aprendizagem de Markova podemos mensurar e identificar os
estilos de aprendizagem predominantes da turma HID0167 de Licenciatura em História
(UNIASSELVI). Acreditamos que hoje em nossa prática pedagógica não devemos apenas
ensinar os nossos alunos a aprender, e sim, devemos é aprender as várias formas como
ensinar, além de entender como estes melhor aprendem, e a teoria dos estilos de
aprendizagem é uma excelente ferramenta se bem aplicada, para desenvolvermos
práticas que norteiam tais condutas
Palavras-chave: Estilos de aprendizagem. Conceitos. Teorias. Aprendizagem.

1
Graduado em Licenciatura em História (UNIASSELVI). Especialista em Ensino de História (FATREMIS).
Mestrando em História Social (UFAM). Professor do Centro Metropolitano de Ensino- CEMETRO.
2
RESUMEN
Los estilos de aprendizaje son diferentes maneras de percibir y procesar la informa-
ción, nuestro comportamiento durante el proceso de aprendizaje, teniendo en cuenta
que hay tres formas de percepción del aprendizaje que son: visual, cinético (cuerpo,
sensación y el movimiento) y el oído. El objetivo general de nuestro artículo es concep-
tualizar lo son los estilos de aprendizaje. La investigación se desarrolló a partir de una
revisión de la literatura, el análisis de lo que se producía en el tema, donde su natura-
leza es una investigación cualitativa que va a utilizar el método de muestreo, a partir
de la aplicación de la prueba de VAC (visual, auditiva y cinestésica) basado en la teoría
de 6 estilos de aprendizaje Markova puede medir e identificar los estilos de aprendiza-
je predominantes de Grado clase HID0167 en Historia (UNIASSELVI). Creemos que hoy
en nuestra práctica docente no sólo debe enseñar a los estudiantes a aprender, y sí,
estamos aprendiendo las diversas formas de enseñar y comprender cómo aprenden
mejor, y la teoría de los estilos de aprendizaje es una excelente herramienta bien apli-
cada para desarrollar prácticas que guían dicha conducta.
Palabras clave: Estilos de aprendizaje. Conceptos. Las teorías. El aprendizaje.
1 INTRODUÇÃO
O paper tem como tema o que são estilos de aprendizagem, onde os
analisaremos através de suas conceituações e principais teorias
elaboradas.
3
A escolha do tema é pelo fato de dentro do Curso de Licenciatura
em História do Centro Universitário Leonardo Da Vinci (UNIASSELVI) na
modalidade de Educação à Distância (EAD), haver o componente curricular
obrigatório denominado de prática, onde são formados grupos para
elaborarem e produzirem suas pesquisas a partir de temas que nos foram
propostos pelo professor tutor externo, onde estes estão relacionados as
disciplinas cursadas durante nosso segundo módulo, cabendo aos
discentes uma delimitação maior do objeto de pesquisa e a produção de
forma individual de um paper.
O objetivo geral de nosso artigo é conceituar o que são estilos de
aprendizagem, onde procuramos também entender o que é
aprendizagem, compreender suas principais teorias e analisar os estilos de
aprendizagem da turma HID0167 do curso de Licenciatura em História do
Centro Universitário Leonardo Da Vinci (UNIASSELVI).
A relevância de nosso artigo encontramos no sentido de que com o
entendimento dos estilos de aprendizagem dos alunos e professores no
processo pedagógico, tal compreensão pode contribuir para que ocorra
uma melhor qualidade no processo de ensino e aprendizagem.
O referencial teórico, fundamenta-se nos artigos disponibilizados na
rede mundial de computadores, e com a contribuição destes autores
pesquisados e citados poderemos analisar e compreender, como os etilos
de aprendizagem podem contribuir no processo pedagógico.

Entre os artigos que encontramos está o intitulado “Estilos de


Aprendizagem” (ALMEIDA, 2007), onde a autora busca analisar como os
4
indivíduos de forma individualizada preferem aprender, e como esse
entendimento pode contribuir com uma educação de qualidade, além
disso a autora identifica os vários estilos de aprendizagem e faz uma
análise comparativa com a teoria de múltiplas inteligências.

O artigo “A teoria dos estilos de aprendizagem: convergência com as


novas tecnologias” (BARROS, 2008), é importante pois possibilita entender
o contexto histórico dessa teoria, onde a autora mostra as diversas formas
como esta é conceituada, além de salientar sobre o papel central das
novas tecnologias para melhor prática desta no campo didático
pedagógico.

Bock, Furtado e Teixeira (1999) com a obra intitulada “Psicologias:


Uma introdução ao estudo da Psicologia”, em seu capitulo oito com o
seguinte título “Psicologia da Aprendizagem” embasa nosso artigo no
sentido de nos orientar a respeito do que é aprendizagem a partir das
teorias do condicionamento e teorias cognitivas à luz de Lev Vygotsky e
Jean Piaget, onde com isso conceituamos e entendemos o que é a
aprendizagem.

Cerqueira (2006) em seu artigo “O professor em sala de aula:


reflexão sobre os estilos de aprendizagem e a escuta sensível”, contribui
com nossas discussões pois de acordo com suas análises sobre estilos de
aprendizagem este nos orienta como alunos e professores podem
contribuir com o aprendizado mutuamente, mostrando um diálogo entre o
saber e conhecer, privilegiando com isso, o entendimento do aprender a
aprender, ou seja, compreende-se quais as melhores formas de retenção
da informação com intuito de transformá-la em conhecimento. 5

Em “Descrição e análise de diferentes estilos de aprendizagem”,


Almeida (2007), nos informa sobre as diferentes teorias produzidas acerca
de estilos de aprendizagem mostrando as peculiaridades de cada uma,
através de suas aproximações e distanciamentos, analisando os principais
estilos de aprendizagem e suas teorias utilizados no ensino básico.

A pesquisa foi desenvolvida a partir de uma revisão bibliográfica,


analisando o que foi produzido sobre o tema, onde seu cunho é de uma
pesquisa qualitativa através de método de amostragem onde podemos
mensurar os estilos de aprendizagem predominantes da turma HID0167
de Licenciatura em História (UNIASSELVI).

O artigo segue com os seguintes itens: 2) conceitos sobre


aprendizagem, 3) estilos de aprendizagem, 4) principais teorias de estilos
de aprendizagem, 5) os estilos de aprendizagem da turma HID0167 do
curso de Licenciatura em História do Centro Universitário Leonardo Da
Vinci (UNIASSELVI) e, por fim, 6) considerações finais.

2 CONCEITOS SOBRE APRENDIZAGEM


2.1 TEORIA DO CONDICIONAMENTO OU AMBIENTALISTA DA
APRENDIZAGEM
O processo de aprendizagem segundo a teoria do condicionamento
está relacionado à um processo onde o homem tem seu comportamento
modificado, ou seja, é na sua experiência que se dá a aprendizagem, está
6
ocorre de acordo com estímulos e respostas através de um reforçador
diante dos estados fisiológicos e psicológicos do ser.
Acerca do que expomos acima sobre da teoria do condicionamento
Bock, Furtado e Teixeira (1999), afirmam:

*…+ a aprendizagem pelas suas consequências


comportamentais enfatizam as condições ambientais
como forças propulsoras da aprendizagem.
Aprendizagem é a conexão entre o estímulo e a
resposta. Completada a aprendizagem, estímulo e
resposta estão de tal modo unidos, que o
aparecimento do estímulo evoca a resposta. (p. 150)

O objetivo dessa teoria do condicionamento no processo de


aprendizagem na educação é a modificação comportamental dos seres,
onde o comportamento é modificado pela experiência sensorial ou prática
do ser, através de constantes repetições.

A teoria do condicionamento na prática educativa está de certa


forma ultrapassada, pois entende os seres humanos como criaturas
passivas, podendo estas serem manipuladas e controladas em seus
comportamentos de acordo com o ambiente ao qual estão inseridos, ou
seja, suas situações são planejadas e estruturadas previamente tirando
dos aprendizes um processo de aprendizagem que poderia ser mais
espontâneo.

2.2 TEORIA COGNITIVISTA DA APRENDIZAGEM


7
Mostramos nesse momento como a teoria cognitiva se posiciona e
conceitua o que é aprendizagem, onde para os cognitivistas a
aprendizagem é o processo de organização das informações e da
integração do material a estrutura cognitivista, onde podemos afirmar o
seguinte:

A aprendizagem é, portanto, um processo


essencialmente social, que ocorre na interação com os
adultos e os colegas. O desenvolvimento é resultado
desse processo, e a escola, o lugar privilegiado para
essa estimulação. A Educação passa, então, a ser vista
como processo social sistemático de construção da
humanidade. (BOCK, FURTADO e TEXEIRA, 1999, p.
164)

A teoria cognitivista diferencia a aprendizagem em mecânica e


aprendizagem significativa, onde segundo Bock, Furtado e Teixeira (1999):

a. Aprendizagem mecânica — refere-se à


aprendizagem de novas informações com pouca ou
nenhuma associação com conceitos já existentes na
estrutura cognitiva. [...]. O conhecimento assim
adquirido fica arbitrariamente distribuído na estrutura
cognitiva, sem se ligar a conceitos específicos.
b. Aprendizagem significativa — processa-se quando
um novo conteúdo (ideias ou informações) relaciona-
se com conceitos relevantes, claros e disponíveis na
estrutura cognitiva, sendo assimilado por ela. Estes
conceitos disponíveis são os pontos de ancoragem
para a aprendizagem. Por exemplo, nós estamos aqui
apresentando a você um novo conceito — o de
aprendizagem significativa. Para que este conceito seja
assimilado por sua estrutura cognitiva, é necessário 8
que a noção de aprendizagem apresentada pelos
cognitivistas já esteja lá, como ponto de ancoragem. E
esta nova noção de aprendizagem significativa, sendo
assimilada, servirá de ponto de ancoragem para o
conteúdo que se seguirá. (p. 153-154, grifos dos
autores).

Dessa forma estamos de acordo com a teoria cognitivista de


aprendizagem, pois entendemos a aprendizagem como historicamente
determinada, onde ocorre uma apropriação de cultura, devendo com isso
ser compreendida em sua historicidade, ou seja, é a partir desta que nos
apropriamos do conteúdo da experiência humana, ou seja, é na relação
dos sujeitos que ocorre a aprendizagem, onde aprendemos formas
culturais de agir, pensar, sentir e com isso nos desenvolvermos enquanto
seres histórico-sociais.

3 ESTILOS DE APRENDIZAGEM
Dentro do processo de aprendizagem uns aprendem melhor vendo,
outros lendo e alguns ouvindo e também fazendo, sendo assim, foi
desenvolvida a teoria dos estilos de aprendizagem que busca identificar
como os sujeitos melhor se apropriam das informações para transformá-
las em conhecimento.
No entendimento de Barros (2008) estilos de aprendizagem são: [...]
maneiras pessoais de processar informação, os sentimentos e
comportamentos em situações de aprendizagem.” (p. 15), ou seja, são
formas de identificar como os sujeitos aprendem de uma maneira mais
significativa, onde busca-se compreender qual o estilo predominante de 9

cada um, havendo a intenção do desenvolvimento e aprimoramento dos


demais.
A partir disso, Barros (2008) nos informa sobre o seguinte:

Essa teoria não tem por objetivo medir os estilos de


cada indivíduo e rotulá-lo de forma estagnada, mas,
identificar o estilo de maior predominância na forma
de cada um aprender e, com isso, elaborar o que é
necessário desenvolver nesses indivíduos, em relação
aos outros estilos não predominantes. Esse processo
deve ser realizado com base em um trabalho educativo
que possibilite que os outros estilos também sejam
presentes na formação do aluno. (p.19)

A teoria dos estilos de aprendizagem busca mostrar como os


indivíduos se apropriam do conhecimento a partir de suas competências e
habilidades no processo de aprender. Dessa forma segundo Cerqueira
(2006):

O estilo de aprendizagem chama nossa atenção no


sentido de compreender que cada um tem um jeito
próprio de aprender e ensinar, no entanto, o professor
ainda ensina segundo seu próprio estilo de
aprendizagem sem levar em consideração que o aluno
também tem um estilo de aprendizagem que é único.
O que é uma ação natural do ser humano, pois às
vezes queremos que as pessoas aprendam da forma
como aprendemos, chegando até a mostrar passo a
passo como se faz. (p. 35)

A partir do exposto buscamos entender que o papel do professor 10

nesse processo é de mediador, onde ao identificar os estilos de


aprendizagem dos alunos, o professor deve elaborar mecanismos que
estimulem o estilos menos desenvolvidos do indivíduo no processo de
aprender. Pois, segundo Barros (2010):

Queremos ampliar a capacidade de aprendizagem por


meio da vivência em diferentes situações, da
colaboração efetiva entre pessoas de estilos
diferentes, da consciência de que é possível nos
tornarmos aprendizes mais competentes e do
desenvolvimento efetivo de novas competências para
isso. Queremos também tornar as situações de
aprendizagem mais adequadas às diversas formas de
aprender, propiciando experiências mais significativas
e prazerosas tanto para os docentes quanto para os
alunos. Acreditamos que dessa forma, contribuiremos
para a melhoria da qualidade do ensino e do processo
de aprendizagem. (p.8)

Ainda sobre o papel do professor, segundo Cathólico (2010):

De acordo com Blanc (1996), os estudantes aprendem


mais por si mesmos e os professores não poderão
transmitir conhecimentos previamente estruturados,
mas orientar na seleção, ordenação e avaliação do
conhecimento disponível, auxiliando os estudantes a
pensar e organizar seus próprios caminhos de
aprendizagem, ou seja, mediar. (p. 3)

O que são estilos de aprendizagem? tal questão nos trouxe a


seguinte resposta, onde entendemos que são diferentes maneiras de
11
perceber e processar as informações, sendo formas individuais como cada
um aprende, ou seja, não é o que se aprende, mas, é como nos
comportamos durante o processo de aprendizagem, sendo assim, existem
os que melhor aprendem vendo, outros lendo e alguns ouvindo, ou então,
fazendo. Diante disso, há três formas perceptivas de aprendizagem que
são: a visual, a cenestésica (corpo, sensação e movimento) e a auditiva,
em que os indivíduos no processo de aprender possuem uma em caráter
dominante.

4 PRINCIPAIS TEORIAS DE ESTILOS DE APRENDIZAGEM


Vários foram os modelos e teorias criadas acerca dos estilos de
aprendizagem sendo propostas por educadores e psicólogos, em sua
maioria, contudo o eixo básico de tais teorias ou modelos partem do
seguinte: existem três caminhos perceptivos sendo estes o visual, o
cinestésico e o auditivo. Além de três estados de consciência que são o
consciente, o subconsciente e o inconsciente. Onde a partir da
combinação de tais fatores pode-se determinar os etilos de aprendizagem.
Neste momento buscamos mostrar as principais teorias sobre estilos
de aprendizagem onde destacamos as seguintes: a de David Kolb; Myers e
Briggs; Herrman; Felder e Silverman; além da de Mawna Markova.
4.1 TEORIA DE DAVID KOLB
David Kolb, em 1976, elabora um instrumento chamado Inventário
de Estilos de Aprendizagem, com o objetivo de identificar o estilo de
aprendizagem preferencial dos estudantes. 12

De acordo com Kolb, em sua teoria de estilos de aprendizagem


existem duas dimensões, onde são a percepção e processamento da
informação.
A combinação das duas dimensões origina quatro tipos de estilos de
aprendizagem: o Divergente (concreto e reflexivo) tendo como ponto forte
a imaginação, o Assimilador (abstrato e reflexivo) tendo como ponto forte
a criação de modelos teóricos através de um raciocínio indutivo, o
Convergente (concreto e reflexivo) sua a aprendizagem se dá a partir da
aplicação de ideias a prática e o Acomodador (concreto e ativo) que
aprende melhor experimentando e executando aquilo que é ensinado
para melhor aprender.
Acerca disso, segundo Barros (2008):

Ainda nos estudos sobre Kolb podemos destacar que o


ciclo de aprendizagem se organiza pela experiência
concreta, passando pela observação reflexiva, pela
conceitualização abstrata e, por fim, pela
experimentação ativa. (p. 3)

Kolb salienta que para um melhor aprendizado ou aprendizagem


mais significativa deve-se explorar os quatro estilos apesar dos aprendizes
possuírem maior afinidade com um deles.
4.2 TEORIA DE MYERS E BRIGGS
Myers e Briggs acreditam nos estilos de aprendizagem como reflexos
psicológicos, em sua teoria estabelecem quatro dimensões de estilos de
aprendizagem: orientação para a vida (extrovertidos e introvertidos), 13

percepção (sensoriais e intuitivos), julgamentos de ideias (objetivos e


subjetivos) e orientação para o mundo externo (julgadores e perceptivos).
Onde podemos afirmar o seguinte acerca do exposto:

Estudantes extrovertidos focam no mundo externo,


experimentam as coisas e buscam interação em
grupos, enquanto introvertidos focam no mundo
interno e das ideias, pensam sobre as coisas e
preferem trabalhar sozinhos.
Estudantes sensoriais são práticos, seu foco está
direcionado para os fatos e produtos. Mostram-se
mais confortáveis com a rotina. Já estudantes
intuitivos são imaginativos, seu foco está voltado para
significados e possibilidades. Preferem trabalhar mais
em nível conceitual. Mostram-se avessos à rotina.
Estudantes objetivos e com tendência a tomar
decisões baseadas na lógica e regras são denominados
reflexivos. Estudantes subjetivos e com tendência a
tomar decisões baseadas em considerações pessoais e
humanísticas são denominados sentimentais.
Julgadores são estudantes que preferem seguir
agendas e possuem ações planejadas e controladas;
perceptivos são estudantes que possuem ações
espontâneas e procuram adaptar-se de acordo com as
circunstâncias. (ALMEIDA, 2010, p. 43, grifos da
autora)
Os estilos de Myers e Briggs foram elaborados com intuito de indicar
os estilos de aprendizagem dos estudantes, e assim, definir as preferências
dos estudantes no processo de aprendizagem.

4.3 TEORIA DE HERRMAN


14
A teoria de aprendizagem desenvolvida por Herrman busca mostrar
como as pessoas solucionam problemas a partir do pensamento, sendo
mais uma forma de estilos de pensamento do que de estilos de
aprendizagem.
Herrman dividiu a mente física em quatro quadrantes cada um
responsável por uma maneira de pensar: o quadrante A, são indivíduos
que possuem como características caráter analítico, quantitativo, crítico,
factual e lógico. O quadrante B, os sujeitos com esta atividade cerebral que
tem como peculiaridades a preferência de aprender de maneira
sequencial, sendo organizados, detalhistas e com grande habilidade de
planejamento. Os sujeitos com predominância em atividade cerebral do
quadrante C, possuem como características: emotividade, cinestesia,
trabalham melhor com relações interpessoais e simbologias, e por fim, o
quadrante D de atividade cerebral são indivíduos que possuem habilidades
visuais, holísticas e inovadoras.
Diante disso, sobre a teoria proposta por Herrman segundo Almeida
(2010):

Os estilos de aprendizagem são vistos como


habilidades capazes de serem desenvolvidas e,
portanto, os educadores devem elaborar aulas que
explorem os estilos de aprendizagem preferenciais dos
estudantes, e que possibilitem desenvolver também os
estilos não preferenciais. (p. 46)

Para Herrman, os estilos de pensamento não são inferiores ou


superiores uns aos outros apenas diferentes, onde quanto mais estilos um
15
indivíduo conseguir desenvolver melhor e maior será sua capacidade de
assimilação da informação ensinada, e com isso, a tomada de decisões e a
solução dos problemas surgidos.

4.4 TEORIA DE FELDER E SILVERMAN


Felder e Silverman propõe sua teoria de estilos de aprendizagem a
partir de cinco dimensões: 1) visual e verbal que estão relacionados a
captação da informação, onde os visuais a captam melhor vendo e os
verbais através de palavras faladas ou escritas. 2) Os intuitivos e sensoriais
são as formas de perceber a informação, em que os intuitivos possuem
grande capacidade de interpretar textos e símbolos com facilidade. 3) Os
indutivos e dedutivos, os primeiros partem de ideias particulares a gerais,
enquanto, os segundos partem de leis gerais a particulares, ou seja, uns
partem de conhecimentos mais específicos para mais amplos, os outros
partem de conhecimentos gerais para atingir conhecimentos mais
particulares. 4) Os ativos e reflexivos, os ativos processam as informações
passadas executando atividades, experimentando para melhor
compreenderem e gostam de trabalhar em grupos, já os reflexivos antes
de experimentar algo precisam compreender, demorando a iniciar
atividades, onde acabam privilegiando a prática de atividades individuais.
5) Os sequenciais e globais, onde os sequenciais aprendem os conteúdos
de forma linear e os globais analisando todo conteúdo exposto.
Segundo Almeida (2010):

Felder e Silverman sintetizaram descobertas de 16


numerosos estudos para formular um modelo de
estilos de aprendizagem, padronizado com estudantes
de engenharia, que apresenta cinco dimensões:
visual/verbal, ativo/reflexivo, sensorial/intuitivo,
sequencial/global e intuitivo/dedutivo. (p. 40)

A ideia da descoberta dos estilos de aprendizagem de Felder e


Silverman é a de educadores elaborarem aulas, onde procurem aprimorar
os estilos preferenciais dos estudantes e desenvolver os não preferenciais

4.5 TEORIA DOS 6 ESTILOS DE MAWNA MARKOVA


Passamos agora a evidenciar Mawna Markova que desenvolveu sua
teoria de estilos de aprendizagem onde conseguiu identificar 6 estilos que
são: 1) Apresentadores/Narradores (V-A-C); 2) Intuitivos (V-C-A); 3) Lideres
natos (A-C-V); 4) Oradores (A-V-C); 5) Gênios errantes (C-V-A); 6) Bichos
carpinteiros (C-A-V).
Acerca disso podemos afirmar sobre tal teoria:

Os 6 padrões de aprendizagem trazidos por Markova


estão relacionados com os 3 níveis de consciência
(mente consciente, mente subconsciente e mente
inconsciente) e com as 3 linguagens simbólicas que a
mente usa para receber, organizar e processar
informações (auditiva, visual e cenestésica). Cada
estado de consciência usa uma das 3 linguagens
simbólicas para processar as informações. (GROSSI e
SANTOS, 2011, p.3)

Entendemos que a teoria dos seis estilos de Markova, busca


identificar o perfil dos aprendizes a partir da identificação do estilo de
17
aprendizagem dominante em conjunto com os não dominantes, onde com
esta combinação de estilos nos possibilita compreender as características
de aprendizado de cada um.

Tentamos apresentar um conjunto variado de teorias de estilos de


aprendizagem, onde vimos as diferenças e aproximações das mesmas,
contudo acreditamos que devemos salientar que todas compreendem os
estilos de aprendizagem como formas de como cada um dos indivíduos
aprendem no processo de ensino e aprendizagem.

5 OS ESTILOS DE APRENDIZAGEM DA TURMA HID0167 DO CURSO DE


LICENCIATURA EM HISTÓRIA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA
VINCI (UNIASSELVI)
Na execução de nossa prática que foi a simulada apresentamo-la em
forma de seminário, em que foi explicitado a turma o que são estilos de
aprendizagem e suas principais teorias, onde logo em seguida aplicamos o
Teste de VAC3 em 22 dos 35 alunos que estavam matriculados na disciplina
de Educação Inclusiva, esse procedimento foi executado no dia 18 de
novembro de 2011.

3
Este teste está disponível no site http://www.vark-learn.com/english/page.asp?p=helpsheets. Onde ao
respondê-lo o aprendiz para reconhecer seu estilo de aprendizagem dominante tem 45 questões que
deve qualificar as 3 respostas em cada uma representa um dos estilos com 0, 1 ou 2 pontos, sem repetir
a mesma nota na questão e depois somar para obter o resultado de cada estilo.
Diante disso, o quadro 1, pode exemplificar melhor os dados que
foram colhidos, então vejamos:

Estilo de Aprendizagem Predominante Resultados em %


Visual 27.2
Auditivo 31.8 18
Cinestésico 36.3
Equilíbrio entre os estilos de 4.5
aprendizagem
QUADRO 1- ESTILOS DE APRENDIZAGEM PREDOMINANTES DA TURMA
HID0167 DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA A PARTIR DO TESTE VAC.

Analisando os números, eles nos dizem que dos 22 alunos que


mensuramos os dados num total de 35 temos o seguinte: o estilo
predominante da turma é o cinestésico em que oito alunos apresentaram
tal estilo, em seguida tivemos o auditivo com sete alunos, logo após vem o
visual com seis, e por fim, houve um aluno que apresentou um equilíbrio
entre os estilos de aprendizagem, onde na soma do resultado para
identificação de seu estilo predominante este apresentou os mesmos
percentuais para cada um dos estilos.
Apesar de mostrarmos esses dados elaboramos um outro quadro 2,
que representa a aplicação da teoria de Markova acerca da identificação
dos 6 estilos a partir do teste de VAC:

Estilos de aprendizagem Resultados em %


V-C-A 4.5 ( 1 )
V-A-C 22.7 ( 5 )
Estilos de aprendizagem Resultados em %
A-C-V 13.6 ( 3 )
A-V-C 18.2 ( 4 )
C-A-V 18.2 ( 4 )
C-V-A 18.2 ( 4 )
19
Possui equilíbrio entre os estilos 4.5 ( 1 )
QUADRO 2- ESTILOS DE APRENDIZAGEM DA HID0167 DE ACORDO COM A
TEORIA DOS 6 ESTILOS DE DAWNA MARKOVA.
Acerca do que está explícito no quadro 2, podemos informar com
mais detalhes a partir da teoria de estilos de aprendizagem de Markova: 1)
Os indivíduos que são V-C-A tem como características grande empatia e
aprendem melhor colocando questões e trabalhando em grupo; 2) os que
são V-A-C possuem como características predominantes o grande poder
de persuasão e aprendem melhor através da leitura; 3) os com estilo A-C-
V tem como peculiaridades a liderança e preferem aprender ensinado,
contudo possuem dificuldades na leitura e escrita; 4) os A-V-C são bons
oradores e no processo de aprendizagem tende a verbalizar melhor para
poderem compreender melhor; 5) os C-A-V são os que precisam utilizar
todo corpo na aprendizagem podendo apresentar com frequência
dificuldades na escrita e leitura; 6) os C-V-A preferem aprender sozinhos,
onde conseguem resolver ou aprender tarefas sem instruções verbais; 7)
os que possuem equilíbrio entre os estilos estes indivíduos possuem um
nível de desenvolvimento significativo, pois conseguem aprender sem
dificuldades por qualquer um dos canais perceptivos em questão.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aprendizagem é o processo de apropriação da cultura humana
através das relações interdependentes das quais os sujeitos participam em
sua interação com outros, e em seu processo histórico.
Os estilos de aprendizagem são as formas ou maneiras individuais
como cada sujeito prefere aprender no processo de ensino e 20

aprendizagem.
Acreditamos que hoje em nossa prática pedagógica não devemos
apenas ensinar os nossos alunos a aprender, e sim, devemos é aprender as
várias formas como ensinar, além de entender como estes melhor
aprendem, e a teoria dos estilos de aprendizagem é uma excelente
ferramenta se bem aplicada, para desenvolvermos práticas que norteiam
tais condutas.
Por fim, é de se salientar que não esgotamos o assunto e que muito
ainda deve ser pesquisado sobre o tema para uma melhor prática
educativa, e por conseguinte, uma melhoria na qualidade da educação
através do processo didático pedagógico de ensino e aprendizagem.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Marina da Silveira Rodrigues. Estilos de Aprendizagem. 2007.
Disponível em http://www.smec.salvador.ba.gov.br. Acessado em:
09/09/2011.

ALMEIDA, Karine Ribeiro de. Descrição e análise de diferentes tipos de


aprendizagem. Revista Interlocução, v.3, n.3, p.38-49, publicação
semestral, março-outubro/2010. Disponível em
http://www.senept.cefetmg.br/galerias/Arquivos_senept/anais/terca_tem
a1/TerxaTema1Artigo21.pdf. Acessado em: 10/09/2011.

AMADI, Rogéria Gasparim; OLIVEIRA, Kátya Luciane de; SANTOS, Acácia


Aparecida Angeli dos. Estilos de aprendizagem e solução de problemas:
um estudo com pré-escolares. Interação em Psicologia, vol. 1, p. 1-9, jan-
jun, 2005. Disponível em 21
http://www.ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/psicologia/article/viewArticle/
3281. Acessado em: 10/09/2011.

BARROS, Daniela Melaré Vieira. A Teoria dos Estilos de Aprendizagem:


convergência com as tecnologias digitais. Revista SER: Saber, Educação e
Reflexão, Agudos/SP, v.1, n.2, Jul. - Dez./ 2008. Disponível em
http://www.revistafaag.brweb.com/revistas/index.php/ser/article/view/7
0. Acessado em: 20/09/2011.

BARROS, Daniela Melaré Vieira (org.). Estilos de Aprendizagem e Educação


a Distância: Algumas Perguntas e Respostas?!. Revista de Estilos de
Aprendizagem, nº5, Vol. 5, abril de 2010. Disponível em
http://www.uned.es/revistaestilosdeaprendizaje/numero_5/articulos/lsr_
5_articulo_9.pdf. Acessado em: 23/09/2011.

BOCK, Ana Maria; FURTADO, Odair; TEXEIRA, Maria Lourdes. Psicologias:


Uma Introdução ao Estudo de Psicologia. Saraiva: São Paulo, 1999.

CATHÓLICO, Roberval Aparecido. Mediação da aprendizagem de


Feuerstein à luz dos estilos de aprendizagem de Felder. Revista Eletrônica
de Educação e Tecnologia do SENAI-SP, v.4, n.8, mar. 2010. Disponível em
http://revistaeletronica.sp.senai.br/index.php/seer/article/view/117.
Acessado em 25/09/2011.

CERQUEIRA, Teresa Cristina Siqueira. O professor em sala de aula: reflexão


sobre os estilos de aprendizagem e a escuta sensível. Revista de Psicologia
da Vetor Editora, v. 7, nº 1, p. 29-38, Jan./Jun. 2006. Disponível em
http://www.unibarretos.edu.br/v3/faculdade/imagens/nucleo-apoio-
docente/ESTILOS%20DE%20APRENDIZAGEM%204.pdf. Acessado em:
28/09/2011.
GROSSI, Márcia; SANTOS, Ademir. As contribuições de Paulo Freire e
Howard Gardner e das novas tecnologias na Educação. Disponível em
http://www.isapg.com.br/2011/ciepg/download.php?id= pdf. Acessado
em: 28/09/2011.

RUB, Edith. A Presença da História na Construção do Estilo de 22


Aprendizagem. Estilos da Clínica, Vol. X, no 18, p. 108-115, 2005.
Disponível em
http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/estic/v10n18/v10n18a09.pdf.
Acessado em 01/09/2011.

SILVA, Élen Cristina Lopes da; SILVA, Walkíria Magno e. Investigação dos
dados sobre estilos de aprendizagem dos alunos frequentadores da base
de apoio ao aprendizado autônomo. 2007. Disponível em:
http://www.ufpa.br/rcientifica/artigos_cientificos/ed_08/pdf/elen_cristina
.pdf. Acessado em: 05/09/2011.
"RELATO DE UM CERTO ORIENTE": A TEMÁTICA
INDÍGENA COMO PROBLEMATIZADORA DA
DIVERSIDADE CULTURAL EM SALA DE AULA
Everton Demetrio1
1

RESUMO | Tendo em vista a obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígenas


nas escolas de educação básica de todo o Brasil, conforme determina a lei 11.645,
ampliando as determinações da lei 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade do
ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, contribuindo dessa forma para a
discussão deste tema, possibilitando a ruptura do modelo eurocêntrico no ensino e a
construção de uma educação voltada ao exercício da alteridade na escola brasileira.
Historicamente os povos indígenas têm sido objeto de múltiplas imagens e
conceituações por parte dos não índios e, em consequência, dos próprios índios,
marcadas profundamente por preconceitos e ignorância; o texto que ora apresentar-
se-á visa, sobretudo, compartilhar experiência engendrada no âmbito da rede pública
de ensino onde pudemos discutir a realidade dos povos indígenas, suas lutas e
invisibilidade sociocultural e política, bem como promover um espaço de dialogo entre
dois universos culturais distintos, possibilitando a construção de um conhecimento
mais próximo da realidade indígena e dos estudos atuais sobre ela, valorizando o
diálogo e o repensar das diferenças. De forma tal, este texto é o registro comentado
de uma vereda que se põe em aberto no contexto do ensino de história e da temática
indígena.
Palavras-chave: história indígena, educação, alteridade.

1
Pesquisador Mestre; evertondemetriopb@gmail.com
2
ABSTRACT | Given the mandatory teaching of history and indigenous culture in
elementary schools throughout Brazil, as required by law 11,645, extending the
provisions of Law 10,639 / 2003, which established the compulsory teaching of history
and african-Brazilian culture and Africa, thereby contributing to the discussion of this
issue, allowing the disruption of Eurocentric education model and the construction of
an education geared to the exercise of otherness in Brazilian school. Indigenous
peoples have historically been the subject of multiple images and concepts by non-
Indians and, consequently, the Indians themselves, deeply marked by prejudice and
ignorance; The text will now present itself aims mainly to share experience
engendered within the public school system where we could discuss the reality of
indigenous people, their struggles and sociocultural and political invisibility, as well as
a space to promote dialogue between two worlds distinct cultural, allowing the
construction of a closer knowledge of the indigenous reality and the current studies on
it, valuing dialogue and the rethinking of the differences. In such a way, this text is the
record discussed a path that goes down in open teaching in the context of history and
indigenous issues.
Keywords: indigenous history, education, otherness.
INTRODUÇÃO

O filósofo Sartre disse certa vez que “o inferno são os outros”. Sem
querer atacar questões educacionais, o francês põe em evidência o outro
em nossas vidas. Quem são os Outros? Diluição das fronteiras, mobilidade 3

e/ou movimentos migratórios são termos identificatórios de nossa atual


gestão de mundo, seja quando tratada na dimensão física, como também,
na esfera discursivo-teórica, em função dos constantes processos de
reelaboração dos campos discursivo-conceituais. A emergência da
globalização enquanto fato gerou certo descompasso latente entre
etnocentrismos e universalismo; adjacente ao processo de globalização, a
ideia do multiculturalismo como problematizador das relações entre
localismo e universalismo.
Em que medida as retóricas da moda - como por exemplo aquelas
que reivindicam as bondades do multiculturalismo, que pregam a
tolerância e que estabelecem o início de um tempo de respeito aos outros
- estão anunciando pensamentos de ruptura com relação as formas
tradicionais em que a alteridade foi denominada e representada? A
pergunta não é casual, pois vem ao encontro de um tempo de
instabilidade discursiva, no qual conceitos tais como cultura, identidade,
inclusão/exclusão, diversidade e diferença parecem ser facilmente
intercambiáveis, sem custo nenhum para quem assume, se apodera e
governa as representações de determinados grupos sociais (Cf.
DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001).
Nossa experiência de pesquisa e regência de turma buscou inserir-
se no contexto de debate mais recente sobre o ensino de História e da
Historiografia, tomando os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) como
uma das referências. Partindo do pressuposto de que o conhecimento não
se adquire mediante a mera exposição de conteúdos, lições e exercícios 4

de fixação, pois conhecer implica um movimento recíproco entre sujeito e


objeto de estudo. É fundamental que, no desenvolvimento da
aprendizagem, o aluno se conscientize de seu próprio processo de
aquisição de conhecimento, isto é, aprenda o caminho que terá de
percorrer para chegar à compreensão do que está sendo estudado.
Os PCNs de História destacam que o objetivo dessa disciplina é
contribuir para a formação da identidade social do estudante, enfatizando
a importância da percepção do outro e das noções de semelhança-
diferença e mudança-permanência. Para garantir esse intento, propomos
que o estudo de História se concentre em torno de três conceitos básicos
– levados sempre em consideração quando do planejamento das
atividades do estágio: fato histórico, sujeito histórico e tempo.
Evidenciando-se ainda a importância da construção, por parte do aluno,
de conteúdos procedimentais, tais como, usar medidas de tempo, localizar
acontecimentos, identificar ritmos, estabelecer relações, construir
sínteses e generalizações, e de conteúdos atitudinais, como postura ativa
diante do conhecimento, valorização da diversidade cultural, ação
reflexiva, valorização e preservação do patrimônio sociocultural.
Respeitando o exposto, optamos por conduzir a prática por meio da
construção de conceitos e procedimentos, garantindo a possibilidade de
abordar e comparar de diversos ângulos, diferentes sociedades,
promovendo uma aprendizagem significativa e voltada para a formação
de uma postura de cidadania ativa. Portanto, traçamos como objetivos de
trabalho ao longo das atividades: Contribuir para a formação de cidadãos
críticos que respeitem a diversidade de culturas e modos de vida, 5

procurando desenvolver uma aprendizagem significativa, em oposição a


uma aprendizagem mecânica centrada na memorização de datas e nomes;
estabelecer um diálogo entre os conhecimentos que os alunos adquirem
de modo informal e os saberes escolares, contribuindo para desenvolver
conceitos que lhes permitam ler e analisar o mundo e seu tempo,
adquirindo autonomia e sendo incentivados a buscar novas fontes de
informação e conhecimento.

DA TEMÁTICA INDÍGENA E OS CAMINHOS TOMADOS

Ao refletirmos sobre povos indígenas uma das principais imagens


que frequentemente elaboramos estão relacionadas a homens e mulheres
nus/nuas, que pintam seus corpos com tintas extraídas da natureza, que
adornam seus corpos com penas coloridíssimas, paus e pedras que
introduzem em seus lábios e orelhas. Esta imagem se faz tão presente em
nosso imaginário, não só porque utilizamos com frequência referenciais
elaborados nos séculos XV e XVI pelos primeiros viajantes, mas também
porque esta imagem adquiriu legitimidade circulando em vários outros
textos, constituindo a representação de uma identidade cultural
monolítica.
Somos o povo índio. Somos uma personalidade com
consciência de raça, herdeiros e executores dos
valores culturais dos nossos milenares povos da
América, independentemente de nossa cidadania em
cada Estado. (...) Sustentamos que deve ensinar-se a 6
história começando pela autêntica história das
culturas nativas, para contribuir, assim, para a criação
da consciência americana. O respeito, surgido do
conhecimento maior entre os homens que habitam
essas terras... (PARLAMENTO Índio de San Bernardino,
1974).

Essa é uma das conclusões do primeiro encontro de indígenas da


América do Sul, realizado em San Bernardino, Paraguai, em outubro de
1974, que reuniu representantes do Brasil, da Argentina, da Colômbia, do
Equador, do Canadá, dos EUA, do Paraguai e da Venezuela. Ela revela a
tomada de consciência por parte das nações indígenas de toda exploração
e dominação, atém do extermínio, que o europeu praticou ao conquistar o
continente americano. O depoimento refere-se aos índios, no plural,
destacando a existência de nações, povos, culturas e etnias em clara
oposição, por exemplo, à ideia difundida entre nós da existência de um
único povo índio, o índio genérico. O índio brasileiro, como tal, não
existe. Há mais de 100 línguas indígenas praticadas no país, e mais de 170
etnias diferentes, ocupando áreas que ultrapassam 900 mil km². Cada uma
delas tem seu próprio estilo de vida, sua cultura, sua visão de mundo, seus
mitos e rituais, sua maneira de relacionar-se com a natureza e com seus
membros. Há povos caçadores e coletares; agricultores e pescadores. Há
sociedades organizadas em aldeias numerosas, e há povos que vivem em
comunidades pequenas. Há os sedentários e os seminômades. Há, assim,
diferenças acentuadas entre eles. Quem são afinal esses índios?
São os próprios índios que devem identificar os seus iguais, isto é, os
pertencentes às comunidades indígenas. Recentemente, surgiu, entre 7

representantes de povos indígenas distintos, a consciência de uma


identidade comum, supra tribal, enquanto minorias étnicas incorporadas à
sociedade brasileira. O que faz com que as comunidades indígenas
consideram-se distintas da sociedade nacional é a consciência de sua
continuidade histórica com sociedades pré-colombianas. Portanto, o grau
de integração de uma comunidade indígena à comunhão nacional (Brasil)
não deve ser tomado coma referência para a determinação de quem deve
ser considerado índio ou não índio. Por outro lado, a identidade comum
dos povos indígenas não anula as diferenças mútuas e nem os laços
particulares.
Onde se situam as diferenças entre e nas comunidades indígenas?
Coma elas se caracterizam? Diferentes culturas e modos de vida
sobrevivem lado a lado no território brasileiro. Quais reações têm
provocado o encontro dessas culturas? Como cada um de nós interpreta o
outro? Enfim, estas e outras questões tornaram-se o motivo de ser dos
debates em sala de aula durante o desenrolar do estágio supervisionado,
orientando nossas discussões, indagações e possibilidades de respostas.
De todo modo, não nos propúnhamos responder ou esgotar todas estas
questões, mas antes, deixá-las no ar para estimular nosso raciocínio à
respeito dos tão falados direitos humanos.
Não fizemos uso de livro didático para orientar nossas ações, nem
obras e/ou textos de comentadores sobre a situação indígena, exceto um
texto específico do historiador Adone Agnolin sobre a prática
antropofágica entre os índios tupinambás. Utilizamos para efeito de
termos referências para iniciar os debates sobre a diversidade dos povos 8

indígenas brasileiros, dois materiais que foram de fundamental


importância: a Documentação indigenista e ambiental de 1998 e o quadro
geral dos povos indígenas do Brasil produzido pelo Instituto
Socioambiental. Nesses documentos encontramos informações especificas
e detalhadas sobre os povos indígenas do Brasil, seus modos e costumes
(organização social do trabalho, organização das aldeias, traços culturais –
alimentação, vestuário, rituais, etc...), localização geográfica, conflitos
territoriais, demarcação de terras, inclusive referências às políticas
direcionadas a estes povos pela FUNAI. O conhecimento em relação à
realidade política e legal desses povos foi possível graças à Documentação
indigenista e ambiental de 1998, onde pudemos perceber até que ponto
os direitos dos povos indígenas são aplicáveis e/ou respeitados, como
também, suas relações com a natureza – incluindo aí políticas de
preservação ambiental e proteção as áreas demarcadas como reservas
indígenas. Fizemos também uso de materiais audiovisuais – músicas,
infográfico e imagens – que proporcionaram significativa ampliação do
grau de compreensão alcançado no desenvolvimento dos conteúdos, bem
como na manutenção das discussões.
Além dos documentos já mencionados, trabalhamos durante a
primeira parte do estágio com a música Chegança, escrita pelos
compositores e estudiosos da cultura popular Antônio Nóbrega e Wilson
Freire, que procuram reproduzir na letra da música a impressão dos
habitantes do território brasileiro na chegada dos portugueses. Pudemos
realizar o estudo da problemática do desencontro cultural entre nativos
(do território que se denominaria Brasil) e europeus no século XVI, bem 9

como das etnias indígenas explorando o conceito de diversidade cultural.


A partir da canção, pudemos empreender a percepção de que não se
podem considerar os indígenas um único e mesmo povo, mas diferentes
culturas que, no encontro com os colonizadores europeus, receberam o
tratamento genérico de “índios”. Desta forma abrimos espaço para
discutir as diferentes formas pelas quais os indígenas foram representados
ao longo da história, em relatos de viajantes estrangeiros, em músicas, no
cinema, revistas, etc. oram sendo qualificados como selvagens
(destacando-se o trabalho “civilizatório” dos jesuítas), ora comparados aos
homens das cavernas, considerados seres primitivos. Não foram
reconhecidos como representantes de outro tipo de organização social.
Uma das muitas imagens criadas a respeito do indígena
corresponde aquilo que escolhemos para tratar da diversidade cultural
entre povos – não só indígenas –, considerando o impacto que este
assunto poderia causar no público alvo do estágio. Referimo-nos aos
relatos dos viajantes sobre as práticas indígenas do canibalismo presente
em algumas etnias. Consideramos como exemplo o caso dos tupinambás,
que realizam o canibalismo enquanto prática ritual associada à guerra.
Esqueçamos a ideia de canibalismo agora, pois remete a um estado de
selvageria associado comumente a sociedades ditas primitivas. A ingestão
de carne humana é considerada o ato mais profano e o comportamento
mais antissocial que se possa imaginar. Vistos como bárbaros e selvagens
pela cultura europeia, indivíduos que comem seus semelhantes são
classificados como pertencentes a um estágio de pré-civilização.
Trabalhamos, então, com o conceito de antropofagia ritual, tendo como 10

base o trabalho do já referido historiador Adone Agnolin, na medida em


que o conceito indica a possibilidade de pensarmos as diferenças culturais
entre os povos.
A alimentação do homem é um dado cultural que tem uma
importância pelo menos igual àquele pura e simplesmente alimentar.
Reservando uma atenção particular à relação entre dado cultural e dado
alimentar/ “natural”, levando em consideração o fato de que estamos
falando de um alimento muito particular: trata-se do homem que se
torna, dentro de uma estrutura altamente ritualizada, alimento para outro
homem, o qual, por sua vez, vive na perspectiva, altamente significativa
para sua cultura, de se tornar, um dia, ele mesmo alimento para os outros
(Cf AGNOLIN, 2002).
O principal objetivo das expedições guerreiras, de pequeno ou de
grande porte, era fazer cativos para serem comidos em praça pública. Os
prisioneiros seguiam com seus algozes, para serem mortos durante o
ritual antropofágico e para que as mulheres também pudessem vê-los. A
vingança, assim, era socializada: era necessário que todos se vingassem.
Segundo essa perspectiva, a prática alimentar não é condicionada pelo seu
valor nutritivo.
Não é prazer propriamente que as leva [as mulheres] a
comer tais petiscos, nem o apetite sensual, pois de
muitos ouvi dizer que não raro a vomitam depois de
comer, por não ser o seu estômago capaz de digerir a
carne humana; fazem-no só para vingar a morte de
seus antepassados e saciar o ódio invencível e
diabólico que votam a seus inimigos. (Abbeville, 1975: 11
233) Eles fazem assim não para satisfazer a própria
fome, mas por hostilidade, por grande ódio... (Staden,
1974: II, cap. XXV).

Os índios respondiam, portanto, estar agindo dessa forma somente


para vingar a morte dos próprios parentes e destacavam que a vingança
de sangue era só e único motivo das próprias expedições guerreiras. Na
leitura da prática antropofágica proposta nesta época, parece destacar-se,
de fato, uma apropriação, tanto fisiológica quanto cultural, sem que isto
represente uma contradição. Fica claro que esta apropriação cultural é
diferentemente representada dependendo se trate de endocanibalismo
(antropofagia praticada com membros do próprio grupo) ou de
exocanibalismo (antropofagia praticada com membros de outros grupos,
associada a práticas guerreiras, como no caso tupinambá). Resta, contudo,
o fato de que o homem se representa digerindo culturalmente a morte do
outro, subtraindo-o, desta forma, ao desaparecimento, numa ameaçadora
e anônima (para a cultura) dimensão natural (AGNOLIN, 2002:134).
O homem pode, e deve, subtrair seu semelhante a essa outra
dimensão natural, a tal ponto ameaçadora da cultura (da memória), que
quase pode constituir-se como uma outra cultura no seu “ser uma contra
cultura”. Parece-nos, portanto, que o depoimento levado em
consideração evidencia quase uma disputa, uma contenda da morte entre
a natureza – anônima, sem memória, uma “antropófaga” que tudo engole,
sem nada preservar – e a cultura – identitária, que constrói a memória e
faz do sacrifício antropofágico uma forma de preservação do outro. A
relação entre valor nutritivo e valores simbólicos é, portanto, um 12

mecanismo complexo que responde à complexidade das hierarquias


sociais e a reforça. Quanto mais o rito alimentar assume esta configuração
complexa, tanto mais se carrega de valores simbólicos dificilmente
subordináveis ao valor nutritivo. O próprio “choque cultural” do
explorador, do missionário ou do colonizador, enfim do “estrangeiro”, em
face de uma desconhecida (no sentido de não reconhecida) etiqueta,
transforma a diferente prática alimentar em um signo de “barbarização”,
de ausência de civilização ou, pior ainda, faz dela o signo privilegiado da
ausência de humanidade.

DA EXPERIÊNCIA EM CURSO

A prática foi realizada na Escola Estadual de Ensino Fundamental e


Médio Francisca Martiniano da Rocha, localizada na cidade de Lagoa Seca-
PB; o mesmo foi desenvolvido em turma regular de 2º ano do ensino
médio no turno da manhã. As aulas forma planejadas para atender dois
momentos, sendo que numa primeira semana o tema versava sobre as
populações indígenas da América, identificando as diferentes realidades
dos grupos indígenas de nosso território; bem como analisar a diversidade
cultural indígena inerente à constituição do continente americano,
levando em consideração as reações produzidas a partir do encontro
dessas culturas. Num segundo momento (segunda semana) trabalhamos
um caso especifico dentro da grande diversidade cultural de nosso
continente: a antropofagia ritual entre os Tupinambás, discutindo qual a
função na produção de uma identidade cultural própria à comunidade 13

indígena.
Todas as atividades planejadas para o momento da aula puderam
ser executadas adequadamente, quero dizer, tiveram desenvolvimento
satisfatório. Na 1ª semana utilizamos música, imagens e depoimentos de
lideres indígenas para identificarmos as diferentes realidades dos grupos
indígenas de nosso território, tentando demonstrar a situação desses
povos “ontem e hoje” no que diz respeito a aspectos tais como: modos de
vida, legislação, diversidade cultural e relacionamento com a sociedade
dita branca (ou homem branco). Tentamos com isso, desmistificar a ideia
de que o povo índio representa um padrão sem alterações, como também
produzir conceitos a partir das experiências e debates em sala de aula
sobre o que significa “ser índio”. Esses debates foram amparados pela
audição da música “Chegança” dos compositores pernambucanos Antônio
Nóbrega e Wilson Freire, e pela leitura de depoimentos de líderes
indígenas e da Declaração Universal dos Direitos dos Povos; ouvimos a
música e lemos os documentos tentando em meio ao debate estabelecer
relações entre as falas dos lideres indígenas e as informações da música,
buscando compreensão mais apurada das ideias de povo nativo e índio.
Sistematizando os procedimentos, 1º momento: exposição de
transparências com imagens referentes à grande diversidade cultural
indígena no continente americano, onde em seguida os alunos exporiam
suas observações; 2º momento: audição da música “Chegança” (Antônio
Nóbrega e Wilson Freire) seguida de debate; 3º momento: elaboração de
conceitos sobre o que é “ser índio” a partir da leitura e discussão de
depoimentos de líderes indígenas e da Declaração Universal dos Direitos 14

dos Povos.
Apesar de todos os procedimentos destacados terem sido
realizados sem prejuízos, a participação dos alunos nas
discussões/debates em sala pode ser considerado um aspecto negativo
desse primeiro encontro, na medida em que somente uma parte da turma
se dispôs a externar suas opiniões, o que certamente causou dificuldades
no momento de avaliar o nível de compreensão dos assuntos abordados.
De toda forma, parecia estar havendo atenção e observação daquilo que
ocorria em sala de aula; este aspecto se refletiu no momento de
elaboração dos conceitos ao fim dos debates. De maneira geral, as
produções escritas apresentaram bom nível de compreensão e coerência,
embora, as manifestações orais tenham ocorrido em numero reduzido.
Na 2ª semana também utilizamos música, só que desta vez ao fim
das atividades, para o simples deleite e apreciação da música indígena.
Como já mencionado, desta feita, o tema era a antropofagia ritual entre
os Tupinambás, empreendendo uma discussão sobre a construção da
identidade cultural daquele povo através do ritual antropofágico. A
imagem dos povos ditos primitivos têm sido segregada e hostilizada ao
longo dos séculos, sobre tudo quando o tema é antropofagia – que muitos
associam comumente a canibalismo –, por isso nossa intenção neste
segundo encontro foi buscar esclarecer e causar uma reflexão sobre esse
ritual mitológico.
No ritual antropofágico se destaca o fato de um homem comer
outro homem, o que, porém é cercado de significados de modo que os
Tupinambás buscam sempre ter uma morte honrosa (ser degustado pelos 15

inimigos), pois o mesmo significa que suas qualidades guerreiras são


apreciadas e reconhecidas pelos inimigos, de modo que o mesmo acaba
por se perpetuar a partir do momento em que seu inimigo acredita
assimilar suas qualidades e equilibrar com a vingança a guerra, em um
momento onde o nativo desperta um sobrenatural, acreditando despertar
a sua parte animal na relação predador/presa, demonstrando a intenção
de capturar o senso intelectual (alma) de seu oponente. A princípio
fizemos a exposição de transparências com imagens referentes ao ritual
antropofágico dos Tupinambás, seguido de discussão a respeito dos
significados dessa prática ritual, onde verificamos um grau maior de
participação dos alunos nas discussões, revelando não sei o que
exatamente, se maior interesse na temática ou desinibição por ser já o
segundo encontro; fato é que o nível manifestações orais inverteu-se em
relação ao primeiro encontro, ao passo que na sua maioria houve
participação da turma. Isso pode ser percebido pela constatação da longa
duração dos questionamentos sobre o tema durante a aula.
Na sequência da exposição das transparências sobre o ritual
procedemos à apresentação e análise de infográfico – retirado da Revista
Aventuras na História, n. 18, Fevereiro/2005 (vai em anexo) – sobre as
etapas características de um ritual antropofágico; mantemos as discussões
sobre o valor simbólico e mitológico dessa prática, encontrado
considerável retorno por parte dos alunos. A tônica nesse momento da
aula foi a curiosidade pela existência de práticas antropofágicas no Brasil,
bem como o horror e a dificuldade de alguns em aceitar que aquela
prática fazia parte de um processo de afirmação (construção/elaboração) 16

de sua identidade. Talvez por possuírem um sistema de crenças fechado


em demasia a experiências diversas de seus tradicionais rituais cristãos.
Não podemos considerar essa situação como um ponto negativo, mas
antes, um impasse gerado pelo encontro de sistemas de crenças distintos,
tanto mais pela dificuldade de aceitarmos a alteridade. Aquilo que se
esperava neste momento ocorreu também de forma satisfatória; os
alunos participaram das atividades propostas, manifestando sua opinião
de maneira adequada, sem desrespeito por crenças alheias.
Pudemos sim, ao fim deste segundo momento de aula do estágio
mostrar algumas músicas de origem indígena, reunidas e gravadas pela
cantora Marlui Miranda em CD (Ihu – todos os sons). Não tínhamos a
intenção de explorar as músicas afim de uma análise mais detalhada e
conceitual, mas tão somente, promover uma mostra de música
originalmente indígena, buscando com isso, estabelecer ligação entre
realidades culturais diversas daquelas a que os alunos estão habituados a
conviver. O principio deste procedimento era a apreciação desse material.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tudo que pudemos ir costurando até então como prática de


ensino, temos que a lógica da tolerância inspirada ou respaldada pela
ideia do multiculturalismo pode e deve não supor apenas tolerar, aceitar. 17

Na tentativa de educar para a diferença e o dialogo o termo alteridade


funciona melhor que multiculturalismo. Na medida em que demarca
limites e espaços, o termo alteridade pressupõe o repensar o outro,
assumir o conflito inerente à prática de nomear o outro, bem como, seu
correlato contraditório, a saber: quando dizemos do outro, dizemos de
nós. Nomear o alheio é contornar aquilo que se é. Nesse sentido, se a
visão que temos do outro fundamenta a visão que temos de nós mesmos,
não tolerar o outro significa que não toleramos a nós mesmos? Negar o
outro é negar a si mesmo? Não buscamos respostas a estas indagações,
apenas criar um espaço de diálogo para o repensar das ações.
“Necessitamos do outro, (....) pois de outra forma não teríamos como
justificar o que somos. [...] Necessitamos do outro para, em síntese, pode
nomear a barbárie, a heresia, a mendicidade etc. e para não sermos, nós
mesmos, bárbaros, hereges e mendigos” (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001:
124).
Somos tolerantes quando nos furtamos ao exercício crítico dos
valores que dominam a cultura contemporânea, todavia, também somos
na medida em que evitamos olhar para crenças e prejuízos das culturas
subalternas, sobretudo, quando evitamos o diálogo, a contaminação,
mesclas e dispostas. Assumir o risco de reconhecer no outro uma parte
inaudita de nós causa medo? Desconcerta nossas trajetórias já
orientadas? Nesse caso, a tolerância funciona tanto mais como
indiferença face ao estranho, violenta naturalização ou acomodação ao
familiar. Somos o que somos e basta, cada um em seu lugar. Tolerar
polariza e abandona toda possibilidade de laço coletivo. A lógica do 18

discurso multiculturalista fixa identidades, impele cada um a ser o que se é


indistintamente. Tolerar pode significar ao fim estar indiferente ao inferno
que é o outro.
Tomamos como inviável a prática de ensino para a diferença? Caso
acreditemos que educar implique formatar a identidade alheia segundo
critérios nossos, ou mesmo, que o outro sujeite seus valores a uma logica
dominante, é uma prática impossível. Todavia, pensar o exercício
educacional como possibilidade de trânsito, de exposição ao toque
daquilo que frequentemente diz respeito à alteridade, que o possibilite ser
distinto do que é, representa dar a ver o contorno dos próprios medos.
Uma educação que assuma o trânsito por um itinerário plural e criativo,
sem formatações prévias, que possibilite a experiência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBEVILLE, C. D'. 1975 História da missão dos padres capuchinhos na Ilha
do Maranhão e terras circunvizinhas; trad. de S. Milliet, São Paulo, Edusp.

AGNOLIN, Adone. Antropofagia ritual e identidade cultural entre os


Tupinambá. Rev. Antropol., São Paulo, v. 45, n. 1, 2002. 19
Documentação indigenista e ambiental, 1998. Disponível em: www.cr-
df.rnp.br/dia/homedia1. html.

DUSCHATZKY, Sílvia; SKLIAR, Carlos. O nome dos outros, narrando a


alteridade na cultura e na educação. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos
(orgs.). Habitantes de Babel. Políticas e Poéticos da diferença. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.

INSTITUTO Socioambiental: quadro geral dos povos indígenas do Brasil:


disponível em:
www.socioambiental.org/website/pib/portugues/quonqua/quadro.asp.
Acesso em: 13 fev 2007.

MIRANDA, Marlui. Ihu (todos os sons) [CD].

NÓBREGA, Antônio; FREIRE, Wilson. Chegança. In: NÓBREGA, Antônio.


Madeira que cupim não rói [CD]. São Paulo: Estúdios Eldorado, 1997.

PARLAMENTO Índio de San Bernardino, 1974. O Estado de S. Paulo. SP, 20


out. 1974.

PARRON, Tamis. A Festa Canibal dos Tupinambás. In: Revista Aventuras


na História, n. 18, Fevereiro/2005.

STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil. Trad. Guiomar de Carvalho


Franco/transcrito em alemão moderno por Carlos Fouquet. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1974.
UM ESTUDO SOBRE A MEDIAÇÃO CULTURAL E A SUA
IMPORTÂNCIA NO FOMENTO À PESQUISA
Elaine Cristine Luz Santos de Moura1
Lilian Raquel Ricci Tenório2
1

RESUMO
O presente trabalho trata-se de uma análise da mediação cultural na promoção de
diálogos referente a preservação patrimonial, fomentando à pesquisa e a valorização
dos acervos presentes em museus. Resulta-se de uma análise da preservação
patrimonial, da função social dos Patrimônios Históricos, e da importância de
profissionais especializados em promover o atendimento museal. A realização deste
trabalho ocorreu durante o curso de Pós-graduação em “Cultura e História dos Povos
Indígenas” da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Para isso, foram
realizadas observações no Museu de Arqueologia da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (MUARQ), sendo este o objeto de trabalho, além de pesquisas em
periódicos que embasaram o referencial teórico desta pesquisa. Pretende-se
promover a salvaguarda dos acervos, apresentando considerações sobre a educação
patrimonial. Verifica-se através de observações a importância da mediação cultural, da
gestão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e a
necessidade de atenção dos gestores e de toda comunidade para a valorização e
preservação dos patrimônios culturais brasileiros.
Palavras-chave: Cultura material; Museologia; Educação Patrimonial.

1
Pós-graduada em Cultura e História dos Povos Indígenas e graduanda em História pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: elainecristineluz@gmail.com
2
Orientadora; Mestra em Antropologia pela Universidade Federal de Grande Dourados. E-mail:
lilianricciufms@gmail.com
ABSTRACT 2
This work it is an analysis of cultural mediation in promoting dialogue concerning
heritage preservation, fostering research and exploitation of present collections in
museums. It follows is an analysis of heritage preservation, the social function of
Historical Heritage, and the importance of specialized professionals to promote the
service museum. This work took place during the course of postgraduate studies in
“Cultura e História dos Povos Indígenas” of Federal University of Mato Grosso do Sul.
For this, observations has made in the Archaeological Museum of the Federal
University of Mato Grosso do Sul (MUARQ), which is the object of work, as well as
research in journals that supported the theoretical framework of this research. It is
promote the protection of collections, presenting considerations of heritage
education. There is through observations the importance of cultural mediation,
management of the Heritage Institute for National Artistic (IPHAN), and the need for
management attention and the whole community for the enhancement and
preservation of Brazilian cultural heritage.
Keywords: Material Culture ; museology ; Heritage Education .
INTRODUÇÃO
É evidente a importância da acessibilidade em torno dos patrimônios
materiais que, geralmente, são selecionados por grupos sociais que
constroem a identidade de um povo a partir de seus acontecimentos.
Partindo desta perspectiva, o desafio do historiador é investigar e 3

desconstruir aspectos de desvalorização e construção a partir da sua


fonte.

Assim, o desafio para o historiador que toma o museu


como seu objeto de estudo é o de investigar sua
importância cultural e seu papel social e político em uma
dada época e sociedade, explicitando quais são suas
correspondências com a elaboração de legitimidades
intelectuais e questionando a revalorização, pelo tempo
presente, de determinadas heranças do passado. (BREFE,
2007, p. 36)

Conforme a Constituição Federal de 1988 os direitos culturais de acordo


direitos fundamentais, passando a relacionar aos princípios do
desenvolvimento, do respeito à diversidade e da valorização das culturas
da sociedade brasileira (SILVA et al., 2013, p.38). Dessa maneira, a
Constituição faz referência à cultura, reconhecendo-a em sua diversidade:

I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das


instituições democráticas e conservar o patrimônio público;
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e
garantia das pessoas portadoras de deficiência;
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de
valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as
paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de
obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico
ou cultural;
V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e
à ciência;
V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação,
à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação (BRASIL. 4
Constituição de 1988, artigo 23)

Constituição Federal também estabelece uma parceria com as


comunidades para a proteção, gestão e documentação aos bens sob
responsabilidade pública, sendo estabelecido no decreto-lei nº 25, de 30
de novembro de 1937 da seguinte maneira:

Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional


o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e
cuja conservação seja de interesse público, quer por sua
vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer
por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico. (BRASIL. Constituição de 1988,
decreto-lei nº 25 de 1937)

Dessa maneira, com o intuito de zelar o cumprimento dos termos legais, o


Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Sistema
Nacional do Patrimônio Cultural, criaram três eixos que visam facilitar o
acesso ao conhecimento dos bens nacionais dos grupos: Patrimônio
Material, Patrimônio Imaterial, Patrimônio Arqueológico e Patrimônio da
Humanidade.

A Convenção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, constituída


em 1972 pela Organização das Nações Unidas (ONU), apresenta o
conceito de Patrimônio Cultural, sendo composto por monumentos,
grupos de edifícios ou sítios que tenham valor universal excepcional do
ponto de vista histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico ou
antropológico. Deste modo, a Convenção trata-se de uma classificação
internacional pelos bens considerados patrimônios de todos os povos. 5

A maioria dos museus da atualidade tem como prática


internalizada direcionar suas ações para atrair um grande
volume de público. E especialmente, para um público que
se interesse por suas coleções e acervos, que visite suas
exposições, frequente seus cafés, consuma seus produtos,
e que, de alguma maneira, contribua para a sobrevivência,
visibilidade e sustentabilidade desses espaços. (SILVA et al.,
2015, p. 59)

Segundo diversos movimentos preservacionistas sucederam em favor do


patrimônio durante os 50 anos que incidiram o “Estado Novo”, porém de
acordo com o autor, somente a partir da ampliação do conceito de
patrimônio cultural (definido na Constituição Federal de 1988, no Art. 216)
é que se inicia uma “reconceituação” (ALMEIDA, 2014, p. 26).

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens


de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico. (BRASIL, Constituição Federal, 1988,
Art. 216)

Dessa maneira, cabe aos historiadores se atentarem as construções


6
históricas que legitimam a identidade de um povo em torno do
patrimônio, sendo realizadas através de pesquisas e questionamentos
acerca das heranças do passado em relação ao tempo presente através do
legado da memória e da história.

Quando trata-se da preservação e valorização do patrimônio


cultural, fundamentalmente tende-se a entrar na seara da educação, pois
a preservação dos bens culturais se trata de uma prática social, uma vez
que as comunidades devem ser as grandes protagonistas na seleção do
que representa as suas identidades e na preservação de seus valores
culturais (TOLENTINO, 2012, p. 49).

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL – IPHAN


Existem instituições que tem o encargo de identificar, preservar e
promover os patrimônios culturais: o IPHAN é responsável pelas políticas
nacionais de patrimônio cultural. Assim, os Estados e os municípios têm
instituições e leis para definir os bens culturais para a cidade (SILVA et al.,
2013, p.3).

Desde a sua criação (1937), o Instituto do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional – IPHAN – manifesta-se em documentos, iniciativas e
projetos, que visam a importância da realização de ações educativas,
sendo estas tratadas como estratégia de proteção e preservação dos
patrimônios sob sua responsabilidade, instaurando assim, um campo de
diversas discussões teóricas, conceituais e metodologias de atuação,
sendo estas a base das atuais políticas públicas de Estado desta área. 7

(FLORÊNCIO; BEZERRA; RAMASSOTE, 2014, p. 5)

“A parceria entre IPHAN e MEC foi iniciada em 2011, quando a


Educação Patrimonial passou a integrar o macrocampo Cultura e Artes”
(FLORÊNCIO, 2014, p. 33), no II Encontro Nacional de Educação
Patrimonial – II ENEP, realizado em Ouro Preto (MG), em 2011. Assim,
competiu ao IPHAN indicar uma atividade particular de Educação
Patrimonial, articulando os princípios do “Programa Mais Educação” de
acordo com as diretrizes da política de Educação Patrimonial. E em 2006,
foi publicado pelo IPHAN, o livro Coletânea de Leis sobre Preservação do
Patrimônio, resenhada por Pedro Paulo Funari, com o intuito de tornar
públicas diversas leis que resguardam os bens históricos nacionais
(CARLAN, 2008, p.83).

CASAS DE PATRIMÔNIO

As Casas de Patrimônio foram criadas pela Coordenação de Educação


Patrimonial do Departamento de Articulação e Fomento do Iphan, com o
intuito de se estabelecer uma comunicação com a sociedade e ampliar a
gestão de preservação do patrimônio cultural, ambos apoiados
principalmente em ações educacionais.
Contemporaneamente, a questão do status da
comunicação e da capacidade de diálogo com os públicos
está no coração das atividades dos museus. Por essa razão,
a evolução e disseminação de tecnologias e a capacitação
dos profissionais de museus para lidar com os significados 8
dos espaços museais e com a produção de narrativas no
plano das exposições é um dos elementos desafiadores das
políticas na área. (SILVA et al., 2014, p. 59)

O objetivo das Casas do Patrimônio é de se constituírem como um espaço


de interlocução e diálogo com a comunidade local, de articulação
institucional e de promoção de ações educativas, visando fomentar e
favorecer a construção do conhecimento e a participação social para o
aperfeiçoamento da gestão, proteção, salvaguarda, valorização e usufruto
do patrimônio cultural. (TOLENTINO, 2012, p.50)

Segundo Almeida (2014, p. 30) as Casas do Patrimônio são espaços


públicos que têm como finalidade expandir o diálogo com a sociedade
partindo da educação patrimonial. Desse modo, a intenção é transformar
as sedes do Iphan em locais de comunicação com a comunidade, trocando
informações sobre o patrimônio cultural, através de ações educativas.

O Estatuto de Museus, Lei Federal n.º 11.904/09, diz que os


museus deverão disponibilizar oportunidades de prática
profissional aos estabelecimentos de ensino que ministrem
cursos de museologia e afins, nos campos disciplinares
relacionados às funções museológicas e à sua vocação. Esse
entendimento reforça a visão dos respondentes e aponta
que o desenvolvimento de programas de estágio em
museus, além de agregar valor e crescimento tanto
profissional quanto institucional, pode ser também um
passo num contexto maior de ações de políticas públicas
voltadas à inclusão de jovens no mercado de trabalho.
(SILVA et al., 2014, p. 95) 9

Assim, com o intuito de fundamentar a necessidade de novas formas de


diálogo, as Casas de Patrimônio visam a qualificação e capacitação da
gestão de proteção, preservação, reconhecimento e usufruto. Através das
instituições públicas municipais, estaduais e federais as Casas de
Patrimônio são formadas com o apoio da sociedade civil, que colaboram
com processos educativos formais e não formais. Para norteio dos
regulamentos e avaliação de funcionamento, foi criada a “Carta Nova
Olinda”, que visa garantir sustentabilidade da proposta e um espaço para
a realização da participação social.

Conceber e montar uma exposição não são tarefas simples,


como pode parecer à primeira vista a um visitante
distraído. Essas atividades envolvem planejamento e o
trabalho de profissionais das mais diversas formações. Na
elaboração e montagem de uma exposição podem estar
presentes profissionais da arqueologia, etnologia, biologia,
artes, história; ainda podem estar presentes o educador, o
semiólogo, o museólogo, o conservador, designer,
cenógrafo, artistas, etc. Toda essa participação depende
dos quadros técnicos dos museus, da especificidade do
projeto e dos recursos disponíveis, conjunto que revela a
complexidade das atividades dos museus e o potencial
como campo profissional. (SILVA et al., 2014, p. 64)
Portanto, almeja-se que as Casas do Patrimônio sejam articuladoras das
ações educativas públicas e da aproximação com as comunidades,
exercendo papel essencial para uma gestão compartilhada de preservação
do Patrimônio Cultural através da educação patrimonial (ALMEIDA, 2014, 10

p.30), expandindo o diálogo com a sociedade.

A MEDIAÇÃO CULTURAL

A mediação cultural, o público, e os artefatos são aspectos fundamentais


para análise da construções históricas que são norteadas na sociedade a
partir do campo museal. Dessa maneira, entende-se que a partir do
momento o indivíduo sente-se parte integrante de uma sociedade é que o
mesmo passa a exercer seus direitos e deveres, valorizando e preservando
sua cultura.

Existem diversos tipos de museus e, em cada museu, diversas


possibilidades de organização das exposições. Logo, a comunicação nos
museus é resultado de uma complexa produção social a partir da
diversidade cultural. De acordo com o autor, essas possibilidades
articulam profissionais e acionam amplas redes de atores com
participações narrativas museais selecionadas. Essas redes de atores
submergem “relações de poder e significados, reconhecimentos e
desconhecimentos, memórias e esquecimentos de processos complexos
que não podem ser controlados por nenhum ator em específico” (SILVA et
al., 2013, p. 45)
É fundamental que haja um educador e um receptando para
fomentar a pesquisa, ou seja, o posto do mediador cultural é essencial
para recepção do educando, tendo diversas funções para obter com êxito
seu intuito de propor um diálogo e refletindo papel social do museu.
11

O papel do guia, seja ele um profissional do museu ou um


professor de classe, é o de mediar a observação de forma
que ela seja aproveitada ao máximo. Diante de obras de
arte, mais do que dar respostas, ele deve ensinar a fazer
boas perguntas, a problematizar, ele deve levar o aluno a
mobilizar seu próprio potencial em torno da obra
apresentada (FRANZ, 2001, p. 53).

O mediador cultural deverá guiar o receptado almejando a sua


potencialidade, esclarecendo as dúvidas pertinentes, e o induzindo a
pesquisa em torno das obras apresentadas. Partindo dessa perspectiva,
ressalta-se que o posto do mediador cultural é essencial para recepção do
educando, tendo diversas funções para obter com êxito seu intuito de
propor um diálogo com sucesso refletindo no papel social do museu:

*…+ deve trabalhar com a busca do sentido, oferecendo a


possibilidade de, a partir de correlações que estabelece na
construção da informação, apresentar o objeto em seus
diferentes contextos e sugerir possibilidades de
apropriação e de participação efetiva das exposições
(RODRIGUES; CRIPPA, 2014 apud LARA FILHO, 2009, p.168).
Partindo dessa perspectiva, o sujeito ao deslocar-se a um museu, irá
deparar-se com a sua memória diante dos artefatos em exposição. Assim
surge a importância do mediador cultural ao explanar para o ouvinte sua
pesquisa em torno do objeto, gerando assim uma nova visão tanto pelo
público quanto para o mediador cultural: 12

A meta que se deve ter em vista, portanto, é de despertar


no educando a curiosidade, o desejo e o prazer de
conhecer e de conviver com os bens culturais enquanto
patrimônio coletivo, e de levá-lo a se apropriar desses bens
enquanto recursos que aprimoram sua qualidade de vida, e
que contribuem para seu enriquecimento enquanto pessoa
e cidadão, em suas atividades profissionais, de lazer, de
criação e de interrelação com os outros e com o mundo.
Desse processo é que decorre o compromisso com a
preservação. (LONDRES, 2012, p.14)

Assim, ao assumir, para suas exposições, um papel de divulgação do


conhecimento à sociedade, o museu assume a “sociedade” como seu
público-alvo. E, suas representações e estratégias podem ser consideradas
mecanismos de comunicação de massa (CHELINI, 2008, p. 209)

Verifica-se que é fundamental que haja uma mediação cultural que


induza a pesquisa através da cultura material, tal como educar para a
preservação patrimonial, segurança dos museus, e explanar a história
pertinente a cada artefato, sendo este um meio de preservação dos
acervos.
A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

Através da Educação Patrimonial apresenta-se um suporte de


conhecimento com o intuito de promover no sujeito a noção de cidadania.
Dessa maneira, compreende-se que o patrimônio é um complexo de bens
13
legados pelos nossos antepassados, representados não apenas no seu
restrito sentido material, mas naquela condição de bens que assumem
uma dimensão imaterial (ALBUQUERQUE, 2012, p.05), ou seja, torna-se
uma referência identitária de um povo que devem ser transmitidas as
próximas gerações.

Segundo pressuposto fundamental para a Educação Patrimonial de


perspectiva libertadora é a busca da construção de uma nova relação
entre a população com o seu patrimônio cultural. Mas para que isso
ocorra é preciso garantir, antes, uma participação social efetiva na
construção das políticas de proteção da memória e do patrimônio, para
que a população possa se reconhecer e se enxergar no patrimônio e na
memória oficial. É fundamental, para tanto, considerar no processo de
valoração do patrimônio cultural, além dos valores estéticos e formais, os
laços afetivos, sociais, simbólicos. (SCIFONI, 2012, p.33)

Dessa maneira, nota-se que a educação patrimonial passa a ser


exercida a partir do momento que o educando percebe a importância de
preservação da cultura e da história exercida através do patrimônio, que
tem o intuito de recolher, classificar, preservar, pesquisar, expor através
dos documentos e obras apresentadas. Para isso, o indivíduo deve
verificar que ao preservar sua cultura, logo sua história é mantida:
A necessidade de trabalhar o patrimônio cultural nas escolas
fortalece a relação das pessoas com suas heranças culturais, e por sua vez
estabelece um melhor relacionamento destas com tais bens, de maneira a
perceber a sua responsabilidade por meio da valorização e preservação do
patrimônio e fortalecendo a vivência com a cidadania, a partir de um 14

processo de inclusão social. (APOLINÁRIO, 2012, p.57)

O 1º Encontro Nacional de Educação Patrimonial (I ENEP), ocorrido


em São Cristóvão - SE, com representantes de diversas instituições
envolvidas com o tema, teve como objetivo a discussão e proposição de
parâmetros nacionais para ações de educação patrimonial do IPHAN nas
escolas, museus e sociedade. Este evento representou, para a Gerência de
Educação Patrimonial (Geduc), uma ocasião de balanço retrospectivo da
experiência acumulada dentro do órgão e, ao mesmo tempo, formando
assim, a definição de novas diretrizes e estratégias para uma política
institucional para a área. (FLORÊNCIO; BEZERRA; RAMASSOTE, 2014, p. 41)

Assim, verifica-se que educação patrimonial torna-se essencial para


apreciação cultural, promovendo intelectualidade e enriquecimento para
cada indivíduo no campo da memória através da mediação cultural, sendo
regularizada por diretrizes e estratégias que visam valorizar a identidade
cultural e a preservação do patrimônio histórico e cultural.

A educação patrimonial e ambiental deve ser conduzida de


modo a contemplar a pesquisa, o registro, a exploração das
potencialidades dos bens culturais e naturais no campo da
memória, das raízes culturais e da valorização da
diversidade. À medida que o cidadão se percebe como
parte integrante do seu entorno, tende a elevar sua auto-
estima e a valorizar a sua identidade cultural. Essa
experiência permite que esse cidadão se torne um agente
fundamental da preservação do patrimônio em toda sua
dimensão. (PELEGRINI, 2006, p. 127)
15

É nesse sentido que a Educação Patrimonial surge, com o intuito de


e aperfeiçoar o conhecimento dos cidadãos, contribuindo, discutindo a
identidade e a memória através dos patrimônios. Partindo dessa
perspectiva, a sensibilização de tais explanações propõe-se a aproximar a
realidade de cada indivíduo à preservação patrimonial através do
entendimento da importância histórica, dirigindo assim a um novo olhar
através da identidade e diversidade cultural.

A defesa de identidade pressupõe a defesa do passado.


Quando um grupo de pessoas se define em um espaço
cultural com fronteiras definidas, há necessariamente
requerentes de acontecimentos fundadores e de
continuidade. O passado é assediado e funciona como
deferimento para as lutas do presente, legitimando-as de
uma maneira radical porque o termo “história” assume a
condição de sentido do tempo, que se realiza nas pessoas,
mas está para além delas, na medida em que evidencia
uma ordem transcendental. (RAMOS, 2011, p.21)

Assim a Educação Patrimonial tem a função decisiva no processo de


promover o exercício da cidadania, através das preservações patrimoniais
e a construir relações efetiva com a sociedade a partir do entendimento
das relações sociohistóricas, sendo uma importante ferramenta de
afirmação de identidade a partir do momento que se assumam seres
sociais e históricos. Sendo essa uma das perspectivas para preservação
dos artefatos, pois quando o público reconhece a importância da
diversidade cultural, seus territórios e espaços, é que surge a preservação 16

em relação aos artefatos.

O MUSEU DE ARQUEOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO


GROSSO DO SUL
O Museu de Arqueologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(MuArq/UFMS), localizado na Avenida Fernando Corrêa da Costa, 559, 3º
andar. CEP 79002-820 - Memorial da Cidadania e da Cultura Popular
Apolônio de Carvalho, e tem sob coordenação o Drº Gilson Rodolfo
Martins3 e a Drª Emilia Mariko Kashimoto 4, de acordo com as perspectivas
do Iphan, conforme pode ser observado com as posteriores pesquisas
presentes nesse artigo.
O museu apresenta uma diversidade de artefatos que permitem ao
visitante contemplar a arte, cultura, história e a arqueologia museal, e
aborda diversas culturas, que colaboram de maneira temática a
preservação patrimonial, destacando a história, etnologia e pré-história.

O MuArq foi instituído conforme as Instruções de Serviço


da Pró-Reitoria de Planejamento, Orçamento e Finanças n°

3
Doutor em Arqueologia (MAE/USP); Pesquisador Colaborador – FAPEC; E-mail: gilson.martins@ufms.br
4 Doutora e Livre-Docente em Arqueologia Brasileira (MAE/USP); Chefe de Divisão do MuArq.
125/2006, de 03/08/2006, e n° 184, de 06/10/2006, como
unidade com status de Divisão da UFMS, vinculada à Pró-
Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. O MuArq foi
implantado por meio da Resolução n° 53 de 27/09/2006,
do Conselho Universitário da UFMS.

17
A escolha desse museu como parte deste trabalho, justifica-se pela
amplitude em artefatos preservados que se enquadram nas perspectivas
deste artigo. Com isso, nota-se que o presente museu além de coletar e
analisar diferentes sistemas culturais neste espaço regional também
configura uma série de exposições didáticas que colaboram com o
intercâmbio entre o público e as diversas culturas materiais encontradas,
tal como “oferecer apoio a programas de pesquisa e extensão
universitária e a cursos de graduação e pós-graduação”.5
Para realização de sua função social, o museu possui uma equipe de
mediadores culturais e pesquisadores, composto por uma Técnica
Laboratório de Arqueologia (Laura Roseli Pael Duarte) 6 e Alunos bolsistas
UFMS, Fundação de Apoio à Cultura e Ensino (FAPEC) e Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que apresentam os
artefatos induzindo o visitante a pesquisa, como por exemplo a
arqueologia de contato, e como sanando dúvidas pertinentes. Tendo em
vista que “o desenvolvimento das atividades de divulgação científica no
MuArq, abrangendo apresentação de audiovisual no auditório do museu,
seguida de visita monitorada à exposição de longa duração abrangeram,

5
Disponível em: http://muarq.sites.ufms.br/?page_id=174. Acesso em junho de 2015.
6
Licenciada em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: laura.duarte@ufms.br
até o ano de 2012, um total de 11.229 pessoas, predominantemente
grupos escolares.”7
O MuArq/UFMS realiza aulas expositivas referente a Educação
Patrimonial através de questionários, mostras de exemplares e bens
patrimoniais, palestras, e oficinas de confecção de peças cerâmicas em 18

Escolas Municipais e Estaduais de Paranaíba, Aparecida do Taboado,


Selvíria, Três Lagoas, Ribas do Rio Pardo, Bataguassu, Santa Rita do Pardo,
Anaurilândia, Batayporã, Costa Rica, Cassilândia, Paraíso das Águas,
Chapadão do Sul, Anastácio, Aquidauana, Miranda, Corumbá, Campo
Grande, Sidrolândia, Pedro Gomes, Caracol, e Naviraí-MS, cumprindo
assim a função social do museu.
O MuArq/UFMS tem como comprometimento, demonstrar ao
público em geral as necessidades de preservação patrimonial,
representatividade cultural, história e da memória, etnologia e pré-
história através de ações educativas. Partindo dessa perspectiva, entende-
se que “O museu é um local de patrimônio, de coleções de objetos e de
artefatos, mas é também um local de lazer, de prazer, de sedução, de
encantamento, de reflexão em busca de conhecimentos.” (NASCIMENTO,
2005, p.224)

Na figura a seguir observa-se a Exposição de Longa Duração do


MuArq, espaço este dedicado à exposição de artefatos. Nota-se que os
objetos estão em devida segurança, além de painéis informativos, com

7
Fonte: http://muarq.sites.ufms.br/ Acesso em junho/2015
textos e imagens, que explicitam as informações pertinentes para
entendimento dos visitantes com o apoio da mediação cultural.

Figura 1 – Exposição de Longa Duração – MuArq/UFMS

19

Fonte: http://muarq.sites.ufms.br/?page_id=239

A segurança dos museus também é um aspecto fundamental na


preservação dos artefatos, como por exemplo, as cerâmicas neo-
brasileiras. Partindo dessa perspectiva, nota-se que diversos museus
necessitam de recursos para contemplar a visitação pública e desta
maneira favorecer aos visitantes seus intuitos perante a sociedade:

Manter um plano de manutenção preventiva e periódica


em um edifício visa a preservar ou a recuperar as condições
de uso previsto para edificações, garantindo o bom
desempenho de sistemas construtivos e dos equipamentos
instalados. A falta de eficácia desses elementos pode
causar acidentes e transtornos de várias ordens, como
prejuízos à saúde e vida humana, perdas patrimoniais
significativas e altos custos de reparação. (ONO;MOREIRA,
2011, p.148)

Nota-se que a abordagem do passado é evidente em diversos museus,


porém faz-se fundamental uma análise da segurança patrimonial, estética,
20
e da preservação encontrada, para que assim possam ser analisados qual
a função e repercussão que os museus tem refletido perante os cidadãos:

Hoje, com a Nova Museologia e o avanço epistemológico


das ciências sociais, os museus passam a ser considerados
importantes suportes da memória e elementos de
afirmação da identidade cultural de uma dada coletividade.
Não há quem possa negar que, no mundo contemporâneo,
os museus são instituições culturais relevantes,
instrumentos de preservação do patrimônio histórico e
indutores do desenvolvimento do turismo. (ORIÁ, 2013, p.
47)

Como pode ser observado a seguir, os expositores estão alocados de


maneira temática, de modo que contempla ao visitante uma ótima visão
estratégica podendo identificar pontos pertinentes aos documentos e
afins. Dessa maneira, nota-se que os objetos estão preservados de acordo
com a segurança patrimonial, preservando aos artefatos expostos.

O que é exposição: uma exibição que oferece ao olhar


objetos, ou idéias? A exposição muselógica somente
poderia exibir objetos circunscritos em sua própria
concretude como um ritual de idolatria. Tudo o que se
debateu até aqui, porém, em especial o caráter
convencional da exposição, conduz a direção diversa, em
que o objeto aparece fundamentalmente como suporte de
significações que a própria exposição propõe. (MENESES,
2005, p. 32)

Nota-se que os expositores do Museu de Arqueologia da Universidade


21
Federal de Mato Grosso do Sul permitem que o visitante contemple a
observação dos artefatos de acordo com suas identificações, ou seja, são
constituídos por painéis, setores, informes, e facilitam a associação da
imagem e história, conforme proposto por MENESES na citação acima.
De acordo com MACHADO (2005, p. 141), a preservação patrimonial
está associada à noção de monumentos históricos e surge a partir do
momento em que se começa estudar, conservar, e preservar um edifício
ou obra de arte que faz parte da história de uma sociedade

Dessa maneira, o MuArq/UFMS propõe desenvolver e atividades


culturais e programas que envolvem o público, possuindo um Espaço
Lúdico-Pedagógico que estimula a reflexão do visitante de maneira
interdisciplinar, demonstrando a diversidade cultural como pode ser
observado na figura 2, sendo divididos por 1-povos caçadores-coletores
pré-históricos; 2-povos agricultores ceramistas pré-coloniais. 8

8
“As perspectivas interativas no local abrangem: uma área de escavação arqueológica (estrutura
preenchida com areia lavada, dentro da qual se encontram peças líticas, cerâmicas e carvões), além de
mesas e cadeiras para utilização de carimbos de grafismos rupestres e cerâmicos arqueológicos, para
pintura. A atração que o espaço exerce sobre o público infantil é visível e inquestionável, porém
observa-se que seria mais plenamente estimulador ao conhecimento científico se houvesse um vídeo
introdutório à atividade nessa área, inclusive com linguagem em libras, pois o MuArq também recebe
público com necessidades especiais. Tal demanda motivou a produção de um vídeo de animação com
libras apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)”. Fonte:
http://muarq.sites.ufms.br/ Acesso em fevereiro de 2016
Figura 2 – Visita da Escola de Anastácio

22

Fonte: http://www.anastacio.ms.gov.br/galeria/285/escola-de-anastacio-
visita-muarq--museu-de-arqueologia

Segundo MENESES (2015, p.20) “*...+ a produção de “eventos” e o


funcionamento do museu como “centro cultural” são legítimos e
desejáveis apenas para multiplicar e potenciar as funções do museu
enquanto museu.”, sendo essas uma das funções sociais, através de
dinâmicas que contemplam a Educação Patrimonial. Desta forma, o
Museu de Arqueologia da UFMS demonstra as culturas e histórias dos
povos indígenas através de atividades socioeducativas que contemplam
de maneira pedagógica a diversidade através de atividades em seu espaço
lúdico como pode ser observado a seguir.

Figura 3 – Espaço Lúdico-Pedagógico do MuArq/UFMS


23

Fonte: http://muarq.sites.ufms.br/

Observa-se que esse espaço promove a mediação com a transposição de


informações tanto educacionais quanto científicas de maneira lúdica e
dinâmica para as crianças, jovens e adultos, facilitando o contato entre as
exposições e os visitantes. Desta maneira, a mediação cultural realizada
através da interatividade promove a conscientização da diversidade
cultural indígena através das dinâmicas e pesquisas realizadas nas
atividades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através deste trabalho, pode-se observar que a Educação Patrimonial tem
um posto decisivo no processo de promover o exercício da cidadania e
construir relações efetivas, sendo uma importante fonte histórica.
Também observa-se que a função social do Iphan propõe o despertar do
público em relação a história e memória através dos patrimônios. 24

Desta maneira, o trabalho defende a essencialidade do governo, os


gestores, mediadores e o público em geral em se ater às necessidades da
preservação patrimonial, promovendo a conscientização da comunidade
em torno dos patrimônios, verificando sua história artística e cultural
presente na identidade da sociedade.

Constata-se que um artefato não fala por si só, ou seja, é


imprescindível que haja um mediador cultural que demonstre, explane, e
fomente a pesquisa. De tal maneira, o mediador cultural e pesquisador
deve apresentar o artefato desconstruindo as evidências desvalorizadas
pela educação elitista, muitas vezes encontradas em monumentos,
tombamentos, museus, escolas, e entre diversos patrimônios que
compõem parte da identidade de um povo.

Portanto, a cultura material pode ser preservada de diversas


maneiras, tendo neste trabalho como destaque a cultura museal, e
propõe aos gestores e a comunidade uma visão não elitizada de como
perceber e trabalhar diversidade com o intuito de fomentar a pesquisa e
ser conservar os acervos.
REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Umbelino Peregrino de. Patrimônio Cultural: uma


construção da cidadania. In: TOLENTINO, Átila Bezerra (Org.). Educação
Patrimonial reflexões e práticas. João Pessoa: Superintendência do IPHAN
na Paraíba, 2012.
25
ALMEIDA, Frederico Faria Neves. Desafios e Perspectivas da Gestão do
Patrimônio Cultural no Brasil. Architecton - Revista de Arquitetura E
Urbanismo, 2014.

APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Reflexões sobre a Educação Patrimonial e


experiências da diversidade cultural no ensino de História. In: TOLENTINO,
Átila Bezerra (Org.). Educação Patrimonial reflexões e práticas. João
Pessoa: Superintendência do IPHAN na Paraíba, 2012.

BOURDIEU, Pierre.; DARBEL, Alain. O amor pela arte: Os museus de arte


na Europa e seu público. Porto Alegre: Zouk, 2007.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de


1988.

BREFE, Ana Cláudia Fonseca. Comentário I: museu, imagem e


temporalidade. Anuais do Museu Paulista, 2007

CARLAN, Claudio Umpierre. Os museus e o patrimônio histórico: uma


relação complexa. 2008.
CHELINI, Maria-Júlia Estefânia; LOPES, Sônia Godoy Bueno de Carvalho.
Exposições em museus de ciências: reflexões e critérios para análise
Anuais do Museu Paulista, 2008.

FLORÊNCIO, Sônia Regina Rampim; CLEROT, Pedro; BEZERRA, Juliana;


RAMASSOTE, Rodrigo. Educação Patrimonial: histórico, conceitos e
processos. Brasília, Distrito Federal, 2014.

FRANZ, Teresinha Sueli. Educação para a compreensão da arte: Museu


Victor Meirelles. Florianópolis, Santa Catarina, 2001.
LONDRES, Cecília. O Patrimônio Cultural na formação das novas gerações:
algumas considerações. In: TOLENTINO, Átila Bezerra (Org.). Educação
Patrimonial reflexões e práticas. João Pessoa: Superintendência do IPHAN
na Paraíba, 2012.

RODRIGUES, Bruno César; CRIPPA, Giulia. A recuperação da informação e 26


o conceito de informação: o que é relevante em mediação cultural? Belo
Horizonte, MG, 2011.

SCIFONE, Simone. Educação e Patrimônio Cultural: reflexões sobre o tema.


In: TOLENTINO, Átila Bezerra (Org.). Educação Patrimonial reflexões e
práticas. João Pessoa: Superintendência do IPHAN na Paraíba, 2012.

SILVA, Frederico Barbosa da; VIEIRA, Marco Estevão de M.; ZIVIANI, Paula .
TURBAY; PEDRO; PASSOS, Renata. Encontros com o futuro: prospecções
do campo museal brasileiro no início do Século XXI. Instituto Brasileiro de
Museus, Brasília, 2013.

TOLENTINO, Átila. Educação patrimonial: reflexões e práticas. João Pessoa:


Superintendência do Iphan na Paraíba, 2012.
LUZ, CÂMERA, AÇÃO... EXPERIÊNCIAS NA PRODUÇÃO DE
DOCUMENTÁRIOS DENTRO DO PROJETO “CATADORES
DA MARGEM ESQUERDA EM UNIÃO DA VITÓRIA”

ELOIS ALEXANDRE DE PAULA


1

Resumo
Nesse texto abordamos a trajetória acadêmica dentro do projeto “Catadores Da
Margem Esquerda : Coleta sobrevivência no médio Iguaçu no inicio do século XXI”.
Este projeto foi proposto pelo departamento de História da Fafi-UV de União da
Vitória, em convénio com a Seti-PR, nos anos de 2009 e 2011 nesta cidade.
Basicamente o projeto vinha em busca de colher depoimentos de personagens
chamados “catadores” de material reciclável e que viviam nas áreas ribeirinhas do rio
Iguaçu e parte da região, e que muitas dessas histórias foram selecionadas para
produzir um documentário sobre os mesmos. Com relação ao trabalho proposto
comentamos no presente texto os avanços com relação ao projeto, as experiências
vívidas e o aprendizado técnico e profissional, que não ficou apenas na elaboração não
somente de um documentário, mas de vários outros que ampliou ainda mais o sucesso
do projeto e de toda a equipe de trabalho que participou do projeto. Enfim os relatos
descrevem não somente a trajetória do projeto, seus avanços e expectativas
alcançadas, mas também relata o experiência profissional atingida por nós, e a ideia
principal do aprendizado de se fazer história e também ensinar Historia,
principalmente no que se tange a História local e oral.
Palavras Chaves: Documentário -Catadores - História
2

Abstract
In this text we approach the academic career within the "Scavengers The Left Bank:
Collection survival in the middle Iguaçu at the beginning of the XXI century." This
project was proposed by the History Department of Fafi-UV Victory Union in
agreement with the Seti-PR, in 2009 and 2011 in this city. Basically the project was
seeking to reap characters testimonials called "scavengers" of recyclable material and
living in the riparian areas of the Iguaçu River and part of the region, and that many of
these stories have been selected to produce a documentary about them. Regarding
the proposed work commented in this text advances with the project, the vivid
experiences and technical and vocational learning, which was not only in the
development not only of a documentary, but several others who further expanded the
success of the project and the entire team that participated in the project. Anyway
reports describe not only the trajectory of the project, its achieved progress and
expectations, but also reports the experience attained by us, and the main idea of
learning to make history and also teach history, especially when it comes to local
history and oral.
Key Words : Documentary - scavengers - History
Com aquela frase de Glauber Rocha: “Uma câmera na mão e uma
ideia na cabeça”, queremos relatar aqui as experiências vividas durante o
percurso do projeto “Catadores da Margem Esquerda: Coleta
sobrevivência no médio Iguaçu no inicio do século XXI”. Projeto
apresentado pelo colegiado de História com incentivo da Universidade 3

Sem Fronteiras, e a SETI-PR, entre os anos de 2009 e 2011.


Venho aqui comentar de forma sintetizada a nossa trajetória
durante o período em que trabalhamos no projeto “Catadores”, e de
como se produziram os diversos documentários e seus resultados. Outro
ponto é comentar sobre os grandes e significativos aprendizados dentro
da história e para a vida acadêmica e profissional.
Todo o trabalho realizado durante o período do projeto nos
possibilitou reconhecer a dinâmica de vida e da história de diversos
personagens chamados de “Catadores”, localizados em grande parte na
Margem esquerda do Rio Iguaçu de União da Vitória e demais localidades
da cidade. Tendo como metodologia a história oral desses” catadores”,
transformado em essas fontes em um trabalho cinematográfica
A História oral, como comenta Alberti, (2006), busca a legitimidade
como área da pesquisa historiográfica, a história dentro da história. O
contexto micro história aborda o discurso dos indivíduos ditos anônimos
da História. Portanto o projeto “Catadores da Margem Esquerda” vem ao
encontro a essa proposta, criando o contexto da história local, em torno
desses indivíduos e que tornou-se em diversos documentários como
explicaremos logo a seguir.
Criar documentário... Um aprendizado Diferenciado
O projeto desenvolvido pelo departamento de História da Fafi-UV
integrou a proposta do subprograma dos diálogos culturais (Estacheski,
2010). Inicialmente o projeto tinha duas propostas a serem apresentadas,
a primeira era construir um documentário no contexto longa metragem, 4

ou seja, a ideia central. E a segunda era a publicação de um livro com


artigos que os integrantes do projeto produziriam, discutindo vários
assuntos sobre a dinâmica de vida dos catadores.
Com relação aos integrantes que participaram do projeto, foi
realizado no início 2009 um processo seletivo para se formar a equipe, em
que foram selecionados os seguintes membros: (sem contar os
coordenadores) Coordenadores : Jefferson William Gohl e Everton Crema.
Orientadora: Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski. Recém formados:
Fernando César Gohl Licenciatura em Relações Públicas – UNIUV, Itamara
Cris Marchi Licenciatura em História – FAFIUV, José Roberto Corrêa Such -
Licenciatura em História – FAFIUV. Graduandos em Licenciatura em
História: Adelir Farias, Daniele Aparecida Moreira Bueno, Elois Alexandre
de Paula, Júlio Cesar Jacinto, Karoline Fin e Marília Gabrielle Puff.
Com o início dos trabalhos em março de 2009, tentou-se realizar
um trabalho de campo em para se entender e buscar os relatos de vida e a
identidade de vida por aqueles indivíduos que muitas vezes eram
rotulados pela vadiagem ou pela ideia de pessoas indesejáveis. Desde o
princípio percebemos que muitos desses indivíduos tinham histórias
muito significativas que tratavam de relatos que iam desde a sua forma de
trabalho dos catadores, mas também, de seu cotidiano, de seu âmbito
familiar e as relações deles com a sociedade.
Diante desse primeiro contato se traçou um pré roteiro e de como
se construiria o documentário, mas, além disso, iniciar as filmagens desses
indivíduos realizando entrevistas com questões “ determinadas” que 5

pudessem transmitir a ideia e o pensamento desses indivíduos sobre a


suas vidas.
Neste momento em diante a câmera entra em ação iniciando as
tomadas e “captando” as mais diversas histórias que seriam aproveitas em
uma edição preliminar que foi a segunda fase do projeto que
proporcionou as grandes experiências de contribuir na história desses
“personagens”.

Edição e Roteiro e a Criação dos Curtas


Como já comentado a proposta dos documentários era de relatar o
cotidiano dos catadores. Mostrar ao público suas narrativas sobre a
sociedade em que os mesmos estão inseridos, suas necessidades e a
dinâmica da vida social e familiar, usando as fontes orais desses e as
imagens que representam toda essa proposta no trabalho.
Portanto, tínhamos muito trabalho por parte da equipe de edição,
em que participei, e sem muita experiência começamos a realizar as
edições e sempre visando a proposta do projeto e seguindo o roteiro
determinado. Começamos então a analisar demais documentários sobre o
tema “Catadores”, como exemplo Ilha das Flores (1989), Istamira (2006),
em que estes trabalhos serviram como suporte para o desenvolvimento
dos documentários. A ideia de se apresentar a construção de identidades
sobre esses grupos, seus pensamentos sobre o mundo como comenta
Silva (1996), teriam de ser apresentada dentro das mídias e, portanto nos
preocupamos em transmitir essa ideia tanto no roteiro, como na
montagem e edições do documentário. 6

Como resultado conseguimos produzir bem mais que um


documentário. Com a análise do material que tínhamos em mãos que
foram mais de cem horas de filmagens conseguimos ir muito além da
proposta. Com relatos diversificados e personagens que chamaram a
atenção pelo contexto de suas histórias, produzimos mais três curtas,
sendo eles, ZÉ DA VIOLA, (2010), DONA ZENILDA (2010) e DAGOBERTO
(2010). O curta Zé da Viola apresenta a História de um senhor material
reciclável residente no Bairro Ponte Nova, que além de sua atividade com
material reciclável, também é criador de materiais em Madeira, em sua
modesta carpintaria em sua residência. Suas principais criações são
instrumentos de corda violões e violas, assim como o trabalho de conserto
dos mesmos. Um grande artífice na carpintaria, e nas horas de lazer usa
seus dons musicais para compor músicas em sua viola preferida.
Recitando sempre seus versos sobre a vida cabocla, o mesmo comenta
sobre a sua trajetória de vida e sua e também sobre a sua participação em
rádios locais, em que se apresentava com sua viola e seus versos.
O curta Dona Zenilda é uma história que aborda o drama de uma
senhora que mora as ribeirinhas do Rio Iguaçu, e que como coincidência
natural ocorreu uma cheia no período da filmagem e em visita ao local a
equipe do local, abordou esta senhora e sua família numa situação
calamitosa em que sua residência estava abaixo inundada. Sem ter aonde
ir, e com perca de seus bens, o drama desta senhora e seus relatos, são
exemplos que se repetem nessas regiões da cidade de União da Vitória.
Historicamente o problema das cheias na cidade atinge essa parte da
população muitas vezes desassistida pelo poder público, e que sofrem 7

muitas vezes discriminação por parte da sociedade. Esses relatos são


enfatizados por Dona Zenilda nesse documentário.
O longa Catadores da margem esquerda foi o último trabalho a ser
realizado pela equipe. O filme com a duração de mais de duas horas teve a
participação de todos os atores dos curtas, e também de outros atores
que tiveram suas imagens e discursos apresentados no trabalho.
Personagens daqui de União da Vitória e também de Bituruna-Pr, que
também teve sua participação de trabalhadores de uma cooperativa de
material reciclável. Além de empresários do ramo de reciclagem, os
demais catadores de cooperativa ou não tiveram sua voz e sua imagem
dentro deste trabalho, com suas criticas, necessidades e de sua história de
vida e trabalho. Tendo assim atingido a proposta central do nosso projeto.

Dagoberto: Uma Surpresa?


Com certeza o documentário Dagoberto foi surpreendente pela
repercussão para a equipe de projeto. Graças a experiência adquirida no
percurso do projeto, principalmente a nossa equipe de edição, tivemos a
ideia de elaborarmos o curta Dagoberto em 2010. A dinâmica que do
processo de edição foi baseada em roteiro priorizando as falas do “Ator”
Dagoberto juntamente com as imagens de seu trabalho no diário e seu
cotidiano.
Dagoberto, morador do bairro São Cristóvão é um catador de
material reciclável com uma dinâmica de trabalho diferenciada. Com sua
bicicleta acorrentada a um carrinho ele percorre um longo caminho desde 8

ao Bairro São Cristóvão até a área central de União Da Vitória passando


pela ponte férrea do município com sua carga de material.
A equipe de filmagem passou um dia acompanhando o trabalho
deste senhor pelas ruas da cidade e realizando as tomadas de imagens de
toda a trajetória de seu trabalho e de sua casa, na qual existe uma
organização diferenciada desses materiais e da forma de como ele negocia
esses materiais com empresas da cidade. De toda a forma a maneira de
vida de Dagoberto e seu discurso da forma de sua vida e de seu trabalho
foi um material áudio visual muito bem elaborado pela nossa equipe de
edição, graças as imagens que nós realizamos um tratamento especial na
montagem do curta.
Esse trabalho diferenciado surtiu resultados satisfatórios. Dagoberto
participou em eventos de cinema concorrendo em amostras
internacionais juntamente com o documentário Zé da Viola, em 2010.
Além de eventos no nível estadual realizado em União da Vitória e em
eventos nacional realizado em São Paulo, em 2011.
O curta “Dagoberto” (2010) foi nossa grande pérola do projeto, pois
até mesmo nos dias atuais e bem aceito pela opinião pública e por
profissionais da área e da região, rendendo elogios pela forma de como
esse trabalho foi produzido. Não tem como não comentar que Dagoberto
foi uma surpresa para mim e a toda equipe do projeto.

A Importância do Projeto: O Conhecimento do Fazer História


A dimensão do projeto Catadores da Margem Esquerda atingiu para 9

nossa formação acadêmica e inquestionável a sua abrangência. Quero


apontar primeiramente o desenvolvimento técnico profissional que obtive
com a questão de edição de vídeos. Desde o início graças a ajuda dos
coordenadores do projeto e de meu amigo de trabalho Fernando Gohl
despertei o interesse pela edição e filmagem de vídeos em que me
desdobrei por horas em frente a ilha de edição para editar as imagens que
nos chegavam, para que o trabalho se concluísse em tempo hábil.
Ainda com relação a edição, meu empenho foi sempre acima do que
foi proposto, porque meu interesse pelo trabalho e pela própria edição
me despertou interesse em aprender sobre os fundamentos de edição.
Com isso fomos chamados por várias vezes para realizar trabalhos para a
Fafi-UV, no período do projeto, em que realizei e realizo inúmeros
trabalhos para a instituição entre vídeos institucionais documentários e
demais outros vídeos que não temos espaço para mencionar.
Destaco aqui o documentário “50 ANOS DE HISTÓRIA” UMA
FÁBRICA DE IDEIAS, em que tive a ideia de realizar um documentário estilo
“media” sobre os 50 anos do curso que estava completando nos anos
2010 e 2011. Com a ajuda da equipe foi gravado vários depoimentos de
ex-professores sobre o curso, usando imagens históricas sobre o curso de
história na Fafi. O resultado então foi significativo e marcou a data alusiva
do curso de história da Fafi-uv
Com relação ao aprendizado histórico foi também muito gratificante
o trabalho com relação à imagem dos Catadores. Segundo Vainfas (2002)
é importante entender os protagonistas anônimos da história, ou seja, 10

aqueles que são personagens anônimos que de qualquer modo participam


das mudanças da sociedade ou são empurrados pelas mesmas. Desse
modo a historiografia e a micro história vem ao alcance a essa temática,
incluindo também nossos muitas vezes os “esquecidos catadores de União
da Vitória”.
Além disso, todo o nosso trabalho foi bem além de nossa formação
acadêmica, mas ficou um legado para se discutir em várias correntes da
historiografia. Essas produções deixam espaço para o expectador
compreender o cotidiano desses catadores que também fazem parte de
uma história local. E indo além os documentários sobre os catadores
podem propor diversas discussões em varias áreas da história em sala de
aula, como gênero, identidades, cultura e a história local, assim como
material de pesquisa e fontes áudio visual. Ainda a discussão sobre os
trabalhos do projeto poderão ser abordadas para outras áreas como a
sociologia, economia, filosofia e cinema.
Enfim, todo o desenvolvimento do trabalho no projeto “Catadores
Da Margem Esquerda” nos levou para além do conhecimento técnico da
criação de mídias, mas também possibilitou a compreensão da história da
realidade de vida desses indivíduos, para além da sala da aula. Em outras
palavras nosso aprendizado no projeto, abriu novos horizontes do
conhecimento histórico, e aproveitamos esse conhecimento e projetamos
nossos trabalhos sobre a História desses catadores nas telas de cinema.

11
Referências Bibliográficas

ALBERTI. Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKI, Carla Bassonazi


(org). Fontes Históricas. São Paulo. Contexto,2005
CATADORES DA MARGEM ESQUERDA. União da Vitória, Fafi-UV. Catadores 12

da Margem Esquerda: Coleta, Sobrevivência e Identidade No Médio


Iguaçu no Início do século XXI , 2010
DAGOBERTO. União da Vitória, Fafi-UV. Catadores da Margem Esquerda:
Coleta, Sobrevivência e Identidade No Médio Iguaçu no Início do século
XXI , 2010.
DONA ZENILDA. União da Vitória, Fafi-UV. Catadores da Margem
Esquerda: Coleta, Sobrevivência e Identidade No Médio Iguaçu no Início
do século XXI , 2010.
ESTACHESKI, Dulceli de Lourdes Tonet.e Everton Carlos Crema (org`s)
Catadores da Margem Esquerda: Coleta, Sobrevivência e Identidade No
Médio Iguaçu no Início do século XXI. ed Kaygangue, União da Vitória-PR,
2010
ESTAMIRA, Rio de Janeiro. Direção Marcos Prado, 2004
SILVA, Maria Aparecida de Moraes. A voz do passado: tecendo possíveis.
Itinerários, Araraquara n°9, 1996
VAINFAS. Ronaldo. Os Protagonistas Anônimos Da História. Ed Campus. 1
ed. RJ 2002
ZÉ DA VIOLA. União da Vitória, Fafi-UV. Catadores da Margem Esquerda:
Coleta, Sobrevivência e Identidade No Médio Iguaçu no Início do século
XXI , 2010.
INTELECTUAIS BOÊMIOS E DISCURSO OFICIAL: UM CONFRONTO
DE NARRATIVAS NOS PRIMÓRDIOS DA REPÚBLICA BRASILEIRA

João Elter Borges Miranda 1


1

Resumo:
O presente trabalho objetiva traçar reflexões a respeito do confronto de narrativas
que se formou ao longo da Primeira República no Brasil, entre os intelectuais boêmios
e o discurso oficial perpetrado pelo Estado brasileiro. Refletiremos, pois, sobre a
intelectualidade boêmia, os espaços de sociabilidade em que viviam e brevemente
sobre a sua luta contra o discurso oficial que legitimava as ações governamentais. No
início do século XX o centro da vida intelectual e boêmia no Rio são os seus cafés,
sempre envolvidos numa rica vida cultural e artística, agitada cotidianamente – para o
temor das autoridades oficiais – com muita intelectualidade e boêmia. Os intelectuais
boêmios criavam com uma incrível capacidade criativa e artística textos literários,
música popular, teatro de revista e carnaval, entre outros, retratando com muita ironia
e humor satírico a sociedade brasileira, o governo e qualquer um que opusessem aos
seus ideais.
Palavras-chave: Discurso; Intelectuais boêmios; Primeira República.

Abstract:
This work aims to trace reflections on the narrative of confrontation that has formed
over the First Republic in Brazil, among bohemians and intellectuals official discourse
perpetrated by the Brazilian state. We reflect, therefore, on the bohemian
intelligentsia, the social areas in which they lived and briefly about his fight against
official way of legitimizing government actions. In the early twentieth century the
center of intellectual life and bohemian in Rio are its cafes, always involved a rich
cultural and artistic life, hectic daily - for fear of official authorities - with much
intellectuality and bohemian. The bohemian intellectuals created with an incredible
creative ability and artistic literary texts, popular music, vaudeville and carnival, among
others, depicting very ironic and satiric humor Brazilian society, the government and
anyone opposed to their ideals.
Keywords: Discourse; Intellectual bohemians; First Republic.

Introdução
1
Acadêmico do curso Licenciatura em História da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
E quando a arte perde espaço pro governo que quer passar
Passando por cima do povo na arte de alienar
Alegoria de um sistema que quer tudo dominar
Expulsa o povo pobre pro espetáculo começar
Quando a arte perde a vida pro governo que só quer matar
Coloca o rabo entre as pernas e cada qual no seu lugar 2
Criando na cidade uma ilusão total
Que tá tudo maravilhoso
Enquanto que o povo passa mal
Essa é pros artistas. Anarko Funk.
(2015)

O grupo carioca de funk chamado Anarko Funk, na sua “Essa é pros


artistas”, levanta uma reflexão muito pertinente sobre o tema que
pretendo tratar no presente trabalho. Na letra, o grupo representa o
governo enquanto deturpador da liberdade do povo e que busca aplacar
as produções artísticas, porque elas fazem um contra discurso em relação
ao oficial. Isto é, enquanto o governo busca alienar o povo retratando a
cidade de modo a não revelar as misérias que a permeia, como num
cartão-postal; a arte, diante disso, em movimento contrário demonstra as
aporias que se escondem por trás dos muros e de baixo do tapete do
discurso oficial.
Em linhas gerais, é esse confronto de narrativas, essa guerra de
discursos, em que mergulham os intelectuais boêmios do início do século
XX no Brasil. Lima Barreto, Bastos Tigre, Emílio de Meneses, José do
Patrocínio Filho, são alguns dos intelectuais que em suas obras
confrontam a perspectiva oficial republicana. O presente trabalho propõe-
se a refletir sobre o modo através do qual esses intelectuais, entre outros,
constroem um contra discurso para confrontarem as teses defendidas
pelo governo republicano de então. Refletiremos, pois, sobre a
intelectualidade boêmia, os espaços de sociabilidade em que viviam e
brevemente sobre a sua luta contra o discurso oficial que legitimava as
ações governamentais. 3

No início do século XX o centro da vida intelectual e boêmia no Rio


são os seus cafés, sempre envolvidos numa rica vida cultural e artística,
agitada cotidianamente – para o temor das autoridades oficiais – com
muita intelectualidade e boêmia. Os intelectuais boêmios criavam com
uma incrível capacidade criativa e artística textos literários, música
popular, teatro de revista e carnaval, entre outros, retratando com muita
ironia e humor satírico a sociedade brasileira, o governo e qualquer um
que opusessem aos seus ideais.
Para esses intelectuais, a República era uma grande decepção. Se ao
longo do processo de transição do regime monárquico para o republicano
foi depositado grandes esperanças no novo sistema de governo, que
supostamente ensejaria numa vida melhor para o povo brasileiro, ao
longo da Primeira República percebeu-se que tudo não passou de uma
mudança de nomenclatura e estrutura burocrática, visto que, os
antagonismos sociais, a desigualdade, continuavam preponderando no
país. A crescente consciência de injustiça instigava na nossa
intelectualidade, então, a revolta e a desilusão. Como diria John Lennon,
“o sonho acabou”.
Antes de adentrar reflexões a respeito da intelectualidade boêmica
da Primeira República, vale fazer um breve panorama sobre o estado de
coisas nesse contexto.

Breves considerações sobre a Primeira República 4

Predominou até recentemente a tese que atribuía a Proclamação da


República à classe média urbana que ascendeu socialmente através de
pequenos estabelecimentos industriais e comerciais; essa classe civil de
mentalidade pequeno-burguesa teria se aliado aos militares porque
ambos, apesar das diferenças que tradicionalmente os separam, através
dos ideais republicanos se uniriam para dar fim ao Império. Maria Helena
Souza Patto (1999), pesquisadora do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), não corrobora com essa tese e em suas
construções discursivas afirmar que, mais do que um levante advindo da
coligação entre classe média civil e classe média militar, a República
tomou forma a partir da cisão da classe dominante (PATTO, 1999, p. 167-
168).
As mudanças econômicas da segunda metade do século XIX, de
acordo com Patto, levaram a quebra de unidade da classe dominante
brasileira. De um lado, as oligarquias tradicionais formadas pelos senhores
de engenho do Nordeste e dos barões do café do Vale do Paraíba que,
apesar de estarem em decadência econômica, possuíam poder político; de
outro, as novas oligarquias dos cafeicultores paulistas e a elite mineira que
não possuíam todo o poder político que detinham as velhas oligarquias, a
despeito de serem peça central da economia brasileira no período. Tais
acontecimentos resultaram no exercício cindido entre poder político e
poder econômico. Foi em busca desse poder político que as novas
oligarquias puseram fim ao Império (PATTO, 1999, p. 168-169).
Com base nessa tese dualista, o conflito que engendrou o fim do 5

Império, assim, não se deu entre um Brasil moderno, republicano,


democrata, e um Brasil arcaico, monarquista, totalitarista. Não foi fruto do
clamor popular das classes desfavorecidas, sequer resultou do
protagonismo da classe média urbana civil e militar. A Proclamação da
República aconteceu porque os donos do dinheiro também queriam ser
detentores de poder político.
Ainda segundo Patto, tendo em vista a ameaça de instabilidade
política trazida pelos primeiros anos republicanos, no processo de
mudança de sistema de governo, e ao longo da Primeira República, os
novos detentores do poder político afastaram os militares e
repreenderem qualquer tipo de manifestação popular. As autoridades
adotaram medidas que ensejaram na gênese republicana o signo da
ordem pública, marcando os seus primeiros anos com um sem-número de
exemplos de brutalidade repressiva (PATTO, 1999, p. 169). Desse modo, as
aporias que permearam o Império não só se perpetuaram pela Primeira
República, como também se viu no final do século XIX e início do XX o
surgimento de questões inéditas no campo e na cidade.
A classe política brasileira concebia que o povo não teria a
capacidade necessária para ser protagonista das mudanças políticas no
país. Concebia-se que cabia àqueles definirem para estes o percurso a ser
percorrido para alçar o país ao patamar de grande nação republicana. Esse
esforço de alienar da participação política as classes menos favorecidas
está ancorado em medo ao que elas poderiam fazer, era fruto do horror à
sublevação popular.
As classes populares não só eram concebidas como despossuídas da 6

capacidade de serem sujeitos políticos, como também eram


compreendidas como causadoras de sua própria moléstia. À luz de uma
cosmovisão enraizada em concepções político-filosóficas de cunho
evolucionista, os intelectuais que fundaram a República desqualificavam
os pobres e, assim, naturalizavam os antagonismos sociais envolvendo-os
em um aspecto normativo. Dessa maneira, “legitimavam” qualquer tipo
de rebelião infringida contra a ordem estabelecida.
Assim, quaisquer movimentos e lutas empreendidos pela sociedade
civil – em especial, pelas camadas populares –, que lutavam em torno de
demandas e de reivindicações ocorridas principalmente no espaço
urbano, foram submetidos a um violento processo repressivo perpetrado
pela força policial a mando da classe política. O veto à participação política
do povo pautava as ações do Poder Público ao longo da Primeira
República e se deu não só através da repressão policial, como também sob
outras diversas restrições à cidadania, entre as quais o não
estabelecimento do sufrágio universal.
A eclosão de revoltas e levantes civil-militares que foram
sistematicamente repreendidos pelo Estado, o crescimento das camadas
sociais urbanas, o agravamento da crise econômica, o acirramento dos
conflitos políticos devido à progressiva divisão das oligarquias dominantes,
marcaram o cenário da Primeira República.

Intelectualidade boêmia, discurso oficial e os cafés como espaço de


sociabilidade 7

Os cafés, nesse contexto, eram espaços de sociabilidade em que os


intelectuais boêmios podiam expor as suas angústias e insatisfações para
com a vida e com o governo, além de manter contato com a vida social
carioca. Era neles que esses intelectuais trocavam experiências,
elaboravam, discutiam, divulgavam e faziam circular suas ideias e ideais,
filosofia e teorias, causos e projetos; eram espaços em que expunham as
suas produções que, não raro, foram criadas com o intuito de se contrapor
ao discurso oficial propagandeado pelo Estado. Essas produções tinham
um forte e ácido humor satírico que não perdoava as mazelas da vida,
culpando sistematicamente as autoridades.
Nos cafés se fomentava a produção intelectual que se rivalizava com
o discurso do governo. Enquanto este defendia uma cidade civilizada
segundo os moldes europeus, buscando tornar o Rio a “Paris dos
Trópicos”, os intelectuais boêmios criticavam a corrupção e racismo do
projeto etnocida de higienização da cidade. Conforme Velloso (2000),

Parcela significativa da intelectualidade se recusa a construir uma


imagem europeizada da cidade, conforme requeriam os padrões
institucionais. Frequentemente esses intelectuais tomam as ruas e
os seus transeuntes como matéria de inspiração para os seus
escritos e caricaturas. É através delas que eles falam da cidade e,
por extensão, do próprio país. (VELLOSO, 2000, p. 232-233)

Nos cafés a intelectualidade mantém contato com o povo, com a


cultura popular, os seus modos de vida, filosofia, gírias. Vivendo com o
povo, e pertencendo e se identificando com ele, os boêmios 8

representavam-no em suas obras, considerando as pessoas que viviam nas


favelas e o amalgama de camadas muito variadas de coisas díspares da
cultura popular como o verdadeiro povo e o verdadeiro Brasil. As
representações presentes no discurso oficial, pautadas em ideais
progressistas, evolucionistas, de inspiração europeizante, eram para os
intelectuais boêmios, portanto, uma negação do real e verdadeiro
brasileiro, assim como do país.
Dessa forma, de acordo com Velloso, os cafés para a
intelectualidade, mais do que espaços de intercâmbio cultural,
“funcionam como uma espécie de “micro-sociedade”: espaço de encontro
e de confluência de ideias. [...] É através dos cafés, portanto, que os
intelectuais expressam opiniões, ideias, buscando também viabilizar os
seus anseios participativos” (VELLOSO, 2000, p. 235).
Nesses espaços, contrapunham-se ao discurso oficial, o qual
retratava o popular e a sua cultura de forma preconceituosa, sempre
alegando as práticas populares se ligavam à falta de respeito à família, à
uma ‘moralidade sadia e limpa’, e estavam mergulhadas em
promiscuidade, depravação. Por meio desse discurso desqualificador, as
autoridades buscavam legitimar a repressão. Os intelectuais, em
contrapartida, faziam o contrário, exaltando o povo e se posicionando
contra a desigualdade social, contra um projeto de progresso que
somente beneficiava pequenos grupos da sociedade e, acima de tudo,
contra a violência policial, da qual não raro eles próprios eram vítimas.
Sevcenko (1985), ao discorrer a respeito de Lima Barreto e Euclides
da Cunha, observa que o empenho dos intelectuais em participar e 9

representar em suas obras o processo histórico em curso, dava às suas


produções uma dupla perspectiva documental: como registro judicioso de
uma época e como projetos sociais alternativos para a sua transformação
(SEVCENKO, 1985, p. 199). Apesar desse historiador estar refletindo sobre
o caráter das obras daqueles dois autores, acredito que podemos
entender a obra de grande parte da intelectualidade boêmia a partir desse
caráter duplo como característica dominante.
Afinal, conforme Silva (2008), o Rio crescia, mas o progresso era
para poucos. As críticas elaboradas pelos intelectuais recaíam com
especial atenção para o fato de nem todos estarem usufruindo da
modernização da cidade. Muitos habitantes foram excluídos por serem
pobres, negros ou os dois (SILVA, 2008, p. 11). Sevcenko, discorrendo
sobre o abismo que separa aqueles que estão inseridos e dispõem dos
avanços da modernização da cidade e do país, afirma:

Apesar do crescimento econômico global no Brasil, a participação


social no sistema produtivo e na absorção dos recursos gerados era
muito limitada. Assim como muito limitada e até decrescente era a
participação política. As elites agrárias, beneficiárias e procedentes
da tradicional divisão internacional artificial do trabalho,
constituíam um sistema oligárquico semifechado, que, de
conformidade com círculos plutocráticos urbanos, monopolizavam
os postos diretivos e as atividades mais rendosas. As oportunidades
restritas que o crescimento do sistema oferecia eram alvo de uma
rude concorrência pelas amplas camadas urbanizadas, reforçando
comportamentos agressivos e desesperados de preconceitos e
discriminação. O controle pelo Estado da maioria quase que
absoluta dos cargos técnicos e de múltiplos postos proveitosos
estimulava o patrimonialismo, o nepotismo, o clientelismo e toda 10
forma de submissão e dependência pessoal, desde seu foco central
no Distrito Federal até aos mais recônditos esconsos da nação
(SEVCENKO, 1985, p. 50).

O discurso oficial buscava, portanto, nublar com falsas aparências e


sortilégios essa realidade dura e desigual que envolvia a sociedade
brasileira. Desqualificando os pobres, defendiam uma atualização cultural
no Brasil, de modo a seguir os moldes de vida europeus. Fechavam os
olhos para os antagonismos sociais e, quando os discutiam, acabavam por
naturaliza-los com o intuito de legitimar as ações governamentais, as
quais, como já relatado, eram na imensa maioria repressoras.
O Brasil no início do século XX havia recentemente proclamado a
república e passava, assim, por um processo de validação de um sistema
de governo. Para sustentar-se no poder, nesse período o governo busca,
então, influenciar o imaginário social de modo a aprovar, aceitar e
legitimar o sistema republicano. Os meios para alçar isso é obviamente
através de um discurso em que se fermenta representações a respeito do
admirável Brasil que crescia após o fim do Império. As representações
orientam comportamentos e condutas e, segundo Guareschi (1996), “são
uma forma de conhecimento elaborada e partilhada socialmente, tendo
uma visão prática e concorrendo à construção de uma realidade comum a
um conjunto social” (GUARESCHI, 1996, p. l6).
Através das representações sociais construídas em discurso oficial, o
governo enseja, portanto, fermentar na sociedade brasileira uma cultura
em que a República, a Democracia, o Liberalismo, sejam ideais e posturas 11

em primazia. Segundo Rüsen (1994), a cultura tem como base o que o


homem precisa fazer para viver, e para interpretar e orientar isso a vida
humana necessita de um sentido (RÜSEN, 1994, p. 10), surgindo assim as
representações sociais, as quais procuram suprir essa demanda
produzindo conhecimento através das relações humanas, e a cultura
história, que busca sanar as necessidades de sentido do homem através
de modelos de interpretação que abarcam inter-relações temporais entre
passado, presente e futuro.
As representações sociais se originam e/ou se propagam dos
encontros das pessoas nos diferentes espaços nos quais transitam
diariamente. Os indivíduos, em interação com os estímulos advindos
desse contexto social, elaboram e reelaboram constante e
ininterruptamente as representações sociais sobre os mais variados
assuntos, ou, melhor dizendo, objetos; de modo a dar forma às relações
sociais, tornando viável a comunicação e a orientação dos
comportamentos. Pode-se, então, definir as representações como:

[...] fatores produtores de realidade, com repercussões na forma


como interpretamos o que nos acontece à nossa volta, bem como
sobre as respostas que encontramos para fazer face ao que
julgamos ter acontecido. Uma vez constituída uma representação,
os indivíduos procurarão criar uma realidade que valide as
previsões e explicações decorrentes dessa apresentação
(MOSCOVICI e HEWSTONE, 1984 apud VALA, 2006, p.460).

Todos esses sistemas são os meios pelos quais um grupo social


busca compreender, conceber, refletir e propor explicações, soluções e 12
alternativas para os fenômenos que lhe aparecem. Neste caso,
discorremos sobre as representações perpetradas pelo governo e que
buscam justificar as suas ações e condicionar a formação de uma cultura
histórica defensora das doutrinas e ideais estatais.
Segundo Rüsen (1994), a cultura histórica, enquanto percepção e
significação do tempo, interpreta o passado por dois modelos de
argumentação. Em primeiro lugar se trata da rememoração histórica (ou
memória histórica), que seria uma operação mental que transcende as
fronteiras temporais da vida do sujeito e que enseja uma atualização e
representação do seu passado de modo a interpretar a realidade em que
vive e abrir uma perspectiva de futuro que ultrapassa também o próprio
marco temporal. Paralelamente a memória histórica, age a consciência
histórica, a que se deve a interpretação do passado, compreensão do
presente e perspectiva do futuro (Rüsen, 1994, 8-12). Em linhas gerais:

*…+ la cultura histórica se puede definir como la articulación práctica


y operante de la conciencia histórica en la vida de una sociedad.
Como praxis de la conciencia tiene que ver, fundamentalmente, con
la subjetividad humana, con una actividad de la conciencia, por la
cual la subjetividad humana se realiza en la práctica -se crea, por así
decirlo. (RÜSEN, 1994, p. 4).
O processo de contar histórias, defender ideias, através de discursos
que constroem representações sociais, as quais nortearão
comportamentos e condutas até construir uma cultura histórica que os
aglutine, é perpetrado, como disse acima, pelo Estado brasileiro nos
primórdios da República com o objetivo de validar e estruturar na 13

sociedade esse novo sistema de governo. O discurso dos intelectuais


boêmios, apesar de não terem todo o alcance que possui o oficial,
também influi (conscientemente ou não) na construção de representações
sociais sobre os objetivos que ressignificam.
Assim, constata-se que, conforme Soihet (2001), o início do século
XX no Brasil foi permeado por uma guerra de narrativas. De um lado, o
discurso oficial que busca esconder as mazelas sociais, desqualifica as
manifestações populares, concebendo-as como práticas atrasadas que
atrapalha o avanço da sociedade, se pondo na contramão da modernidade
e do progresso, afeitas a selvageria e ignorância; do outro, o dos
intelectuais boêmios que elevam as práticas populares ao patamar mais
elevado, buscando compreendê-las, pratica-las, envolver as suas vidas
com elas, tê-las como fonte de inspiração para as suas produções
militantes, através das quais buscam construir uma nova sociedade. As
duas tendências coexistem, demonstrando que, mesmo numa época em
que predominava aquelas teses liberais, progressistas, defendidas pelo
discurso oficial perpetrado principalmente pela elite burguesa, uma única
interpretação da realidade não era a tônica (SOIHET, 2001, p. 2).
Tendo em vista o desejo dos intelectuais boêmios em participar nos
processos históricos em curso, e compreendendo a importância dos cafés
como espaço da moderna sociabilidade, o fato de a maioria desses
intelectuais não conseguirem adquirir, através de suas produções
culturais, os recursos necessários para a sua sobrevivência, obrigando-se a
trabalharem em, por exemplo, repartições públicas, é para eles como uma
exclusão social do contato com o povo e com a disponibilidade de criarem. 14

Ainda segundo Velloso,

Fica clara a cisão que se estabelece entre o ofício do amanuense e o


do intelectual, ou entre vida e trabalho. Preso às repartições
públicas, o intelectual se sente alijado de sua criatividade tendo que
exercer um trabalho de autômato que o distancia da dinâmica
social. Também José do Patrocínio Filho se queixa da condição de
intelectual que para sobreviver teria que forçosamente fazer-se
burocrata. Assim, a rotina e a disciplina da repartição acabam
determinando a falência do escritor, argumenta Patrocínio.
Constantemente o grupo se queixa do “embotamento da
sensibilidade social e da mediocridade” a que eram submetidos na
condição de intelectuais (VELLOSO, 2000, p. 236).

Essas queixas permeiam grande parte da intelectualidade não só no


Brasil. Após o processo de industrialização no século XVIII, e com o avanço
da modernidade, suplantou gradativamente a atividade intelectual que, se
historicamente era uma atividade elitizada, com a formação do mundo do
trabalho tal campo ficou ainda mais restrito.
Não bastasse os problemas financeiros, os intelectuais boêmios
eram ainda muito perseguidos pelas autoridades, devido as suas línguas
ferinas para com elas. Eram vistos pelos políticos como intelectuais mal-
ditos. Numa época em que os discursos progressistas e evolucionistas,
progressistas e liberais preponderavam, os quais defendiam a superação
das raízes originais culturais brasileira e abrir as portas para o modernismo
europeu, não é de se espantar que não eram poucos os percalços que a
intelectualidade boêmia passava para conseguir se manterem fiéis ao que
acreditavam. Além de enfrentarem a polícia, segundo Soihet eles também
precisavam resistir aos médicos, que diagnosticavam como patológico, 15

entendendo como mentalmente desequilibrado aqueles que se


manifestavam devotos a cultos afro-brasileiros e populares (SOIHET, 2001,
p. 4).

Últimas palavras

Por conseguinte, os cafés são espaços de grande fermentação


intelectual, tendo no início do século XX, assim, grande importância na
vida urbana do Rio de Janeiro e na sua dinâmica cultural. Frequenta-los é
participar do cotidiano da cidade e do país. Nesses pequenos espaços de
camaradagem e afetividade, que serviram de encontros, reuniões,
debates, aglutinações, os intelectuais por uma série de laços e afinidades
vinculam-se uns aos outros e forjam uma identidade de grupo.
Tratavam a realidade de forma crítica, ficcional e caricatural, de
forma a construírem um contra discurso que fizesse oposição ao que era
defendido pelas autoridades governamentais. Assim, travou-se nos
primórdios da República brasileira uma guerra de narrativas entre os
intelectuais boêmios e aqueles que defendiam o discurso oficial. Ambos
construindo representações sobre o processo histórico que permeava as
suas vidas, e apresentando medidas e projetos que poderiam transcender
essas aporias.
Essa guerra de narrativa cria na Primeira República um estado de
tensão entre diversas formas altamente articuladas de encarar e
compreender o mundo que se divergem em dois polos – o dos intelectuais
boêmios e o do discurso oficial. Nessa fissura da produção intelectual
brasileira do início do século XX, em que se vê dispostos na forma de pares 16

antônimos, antagônicos e opostos, evidencia-se a antítese radical e a


largura do abismo que separa a elite detentora do poder político e
econômico, e a imensa maioria pobre do país.

Referências bibliográficas

GUARESCHI, P. Representações Sociais: alguns comentários oportunos. In:


NASCIMENTO-SCHULZE, C. (org.). Novas contribuições para a teorização e
pesquisa em Representação Social. Florianópolis: [s. n.], 1996. Coletânias
da ANPEPP, p. 9-30.
PATTO, Maria H. S. Estado, Ciência e Política na Primeira República: A
Desqualificação dos Pobres. In: Revista de Estudos Avançados. vol. 13. n.
35. São Paulo. Jan/abr, 1999. [Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-
40141999000100017&script=sci_abstract – acessado em 01/08/2016]
RÜSEN, J. (1994). ¿Qué es la cultura histórica ?: Reflexiones sobre una
nueva manera de abordar la historia. In K. Füssmann, H. T. Grütter, & J.
Rüsen (Eds.), Historische Faszination. Geschichtskultur heute. Weimar, 17

Böhlau, pp. 3–26 (versión traducida al castellano por F. Sánchez Costa e Ib


Schumacher).
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação
cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1985.
SILVA, Fábio J. O dândi e o boêmio: João do Rio e Lima Barreto no Mundo
Literário da Primeira República. Dissertação de Mestrado. Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.

SOIHET, Rachel. Um debate sobre manifestações culturais populares no


Brasil dos primeiros da República aos anos 1930. Trajetos. Revista de
História do Programa de Pós-Graduação em História Social e do Deptº de
História da UFC. – v. 1, n. 1. Fortaleza: Departamento de História da UFC,
2001.
VALA, Jorge. Representações sociais e psicologia social do conhecimento
cotidiano. (pp. 457-502). In: Vala, J; Montero, M. B. Psicologia social.
Lisboa: Fundação Colouste Gulbenkian, 2006.
VELLOSO, M. P. Os cafés como espaço da moderna sociabilidade. (p. 230-
245). In: LOPES, A. H. (org). Entre Europa e África: a invasão do carioca.
Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, Topbooks, 2000.
18
A IMPORTÂNCIA DAS FERRAMENTAS ANALÍTICAS
‘INTERSSECIONAL’ E ‘INTERRELACIONAL’ NA
ELABORAÇÃO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E DE GÊNERO
Talita Gonçalves Medeiros 1
1
Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski 2

RESUMO: Ao propor sexo e gênero como elementos não dissociáveis e que, uma vez
formados pela linguagem alcançam o poder de representação, Judith Butler em sua
obra ‘Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade’ de 2003 propõe
uma reflexão contundente sobre a categoria de análise Gênero. Alicerçada em uma
perspectiva pós estruturalista, a teórica abre um campo de análise e de reflexões
inerentes a essa teoria. Da mesma forma, os estudos sobre as relações de poder e de
subjetividades permitem uma abordagem cada vez mais ampla de estudos e reflexões
sobre essa categoria de análise. Compreender as interssecionalidades que cruzam
esses dois estudos é refletir sobre a importância de seus debates pela academia e
como seu poder de alcance pode auxiliar na execução de ações afirmativas de
combate a violência contra as mulheres, por exemplo. Assim sendo, o presente artigo
possui como objetivo compreender como a teoria de Judith Butler e os estudos de
relações de poder e subjetividades podem dialogar e fomentar propostas de combate
a violência contra as mulheres. Embasada pelos estudos feministas e pós
estruturalistas, a escrita possui como proposta contribuir e ampliar os debates acerca
das muitas violências sofridas pelas mulheres.

Palavras chave: pós-estruturalismo, combate à violência contra mulheres, estudos


feministas

RESUMEN: Al proponer sexo y género como elementos no disociables y que, una vez
formados a través del lenguaje alcanzan el poder de representación, Judith Butler en

1
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina,
pela linha de pesquisa Relações de Poder e Subjetividades, com a orientação da Dra. Joana Maria Pedro.
E mail para contato: tgmhistoria@gmail.com
2
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina
pela linha de pesquisa Relações de Poder e Subjetividades, com a orientação da Dra. Cristina Scheibe
Wolff.
E mail para contato: dulce_tonet@yahoo.com.br
su obra Problemas de Género: feminismo y subversión de la identidad, de 2003,
propone una reflexión contundente sobre la categoría de análisis Género. Basada en
una perspectiva pos estructuralista, la teória abre un campo de análisis y de
reflexiones inherente a esa teoría. De la misma forma, los estudios sobre las relaciones
de poder y de subjetividades permiten un abordaje cada vez más amplio de estudios y
reflexiones sobre esa categoría de análisis. Comprender las interseccionalidades que
cruzan esos dos estudios es reflejar sobre la importancia de sus debates a través de la
academia y como su poder de alcance puede ayudar en la ejecución de acciones 2
afirmativas de combate a la violencia contra las mujeres, por ejemplo. Siendo así, el
presente artículo posee como objetivo comprender como la teoría de Judith Butler y
los estudios de relaciones de poder y subjetividades pueden conversar y fomentar
propuestas de combate a la violencia contra las mujeres. Apuntalarse por los estudios
feministas y pos estructuralistas, la escritura posee como propuestas contribuir y
ampliar los debates acerca de muchas violencias soportadas por las mujeres, sea en su
perspectiva social, cultural, económica, patrimonial, psicológica, física o simbólica.

Palabras-llave: pos estructuralismo, combate a la violencia contra mujeres, estudios


feministas.

Segundo Adriana Piscitelli (2008), o termo interseccionalidade teria


surgido no movimento feminista de segunda “onda”. A reivindicações
dessa “onda” feminista em torno dos anos 70, segundo Joana Pedro
(2012), iam além dos direitos políticos, econômicos e educacionais. O
movimento feminista exigia direitos referenciados pela “sexualidade”
(direito ao prazer) e pela autonomia de gestão do “corpo” (direito ao
aborto e contracepção. Assim, este termo refere-se a uma proposta
interssecional de estudos que durante a segunda “onda”, buscava
apresentar propostas de trabalho que promovessem a interseção de/com
outras abordagens de análise. Portanto, a interssecionalidade é uma
ferramenta analítica que busca investigar e contextualizar o social através
do cruzamento de três principais componentes: classe, raça e gênero.
Esse entrecruzamento se estabelece na busca de “não mais tentar
apreender ou analisar a realidade através de um ou outro conceito
isoladamente, [mas sim] pensar categorias de classificação dos sujeitos de 3

forma relacional e articulada” (PISCITELLI, 2008, p. 266). Portanto, essas


análises de forma imbricada, permitem compreender e visualizar uma
maior capacidade de agência dos sujeitos envolvidos, elevando a
discussão para a compreensão de que “as categorias de diferenciação não
são idênticas entre sim, mas existem em relações, íntimas, recíprocas e
contraditórias” (MCKLINTOCK, 1995, p. 268).
Desta forma, ao compreenderem que “as relações entre mulheres e
homens não são inscritas na natureza, mas sim fruto da cultura e,
portanto, passíveis de transformação” (JOANA PEDRO, 2012, p. 121), as
inúmeras teóricas, dentre as várias surgidas neste período, mas com um
especial destaque para Joan Scott e Judith Butler, (re)formularam seus
questionamentos e passam a analisar gênero a partir da perspectiva pós-
estruturalista, que em síntese, analisa o significante antes do significado.
Isso significa afirmar que essas autoras passaram a questionar a formação
e as relações de gênero dentro de uma perspectiva social mais
aprofundada compreendendo as relações de subordinação e repressão
dentro das relações humanas.
Joan Scott (1990) com seus estudos na área dos estudos culturais
ampliou as discussões iniciadas por Gayle Rubin3 e, definiu gênero como
um elemento constitutivo das relações sociais, do qual gera um efeito de
poder que se articula na construção social e faz parte das relações sociais.
A partir dessa afirmação, Joan Scott, defende a ideia de que o 4

conhecimento histórico não é só um simples registro de mudanças sociais


ao longo da história das sociedades. Ele se constitui, sobretudo, como um
instrumento que participa na produção do saber sobre estas organizações.
Em outras palavras, ele o produz. Sua reflexão se voltou, principalmente,
no sentido de perceber como a História tem participado na produção do
saber sobre a diferença sexual. Para ela a “História é tanto objeto da
atenção analítica quanto um método de análise. Vista em conjunto desses
dois ângulos, ela oferece um modo de compreensão e uma contribuição
ao processo através do qual gênero é produzido” (SCOTT, 1994, p. 13-14).
Fica evidente que para Scott o conhecimento histórico não se constitui um
documento fiel da realidade à medida que ele não documenta as
condições vivenciadas por homens e mulheres ao longo do tempo. Em
outras palavras, o conhecimento histórico oferece um modo de
compreensão e uma contribuição ao processo.
Para Joan Scott, em “Igualdade versus diferença: os usos da teoria
pós-estruturalista” (SCOTT, 2000), os processos e movimentos históricos
3
Gayle Rubin (1975), em um artigo intitulado intitulado The Traffic in Woman, suscitava fortes
argumentos e contraposições contra as discussões essencialistas que alocavam os sexos como algo
natural, dado e fruto da natureza. Ao questionar esses pontos, Rubin trouxe relevantes e inovadores
questionamentos, destacando que até mesmo o discurso biológico naturalizante é fruto de uma cultura,
que visa alocar as mulheres em uma segunda categoria (JULIANA RODRIGUES, 2011; MARCIO CAETANO,
2011).
devem ser analisados a partir do uso da teoria pós-estruturalista, por ser a
teoria que melhor permite ao feminismo enfrentar o esquema conceitual
das velhas tradições filosóficas ocidentais, que têm construído o mundo
de maneira hierárquica, em termos de universos masculinos e
especificidades femininas. Ela destaca a necessidade de teorias que 5

permitam articular modos de pensamentos alternativos sobre gênero e


que não busque simplesmente reverter ou confirmar hierarquias. Deste
modo, em seu livro “Problemas de Gênero: feminismo e subversão da
identidade” de 2003, ela propõe que se analise sexo e gênero como
elementos não dissociáveis, portanto, segundo a autora, essas duas
categorias são unidas, uma vez que formadas pela linguagem alcançam o
poder de representação.
Atualmente no Brasil, aliado às pautas que orientaram as “ondas”
anteriores, convivemos com aquelas estabelecidas pelo feminismo da
“terceira onda”. Em princípio, essa “onda” teria iniciado em meados dos
anos 80, após o processo de redemocratização surgido com o fim da
Ditadura Civil Militar, ocorrido no país entre os anos de 1964/1985 (CÉLIA
PINTO, 2010). Isso não significa que seu surgimento tenha ocorrido no
mesmo período nos países ocidentais e que, tampouco, o surgimento de
uma “Onda” represente o fim de outra. Elas existem mutualmente.
Podemos compreender que, com o processo de redemocratização
nos anos 1980, o feminismo da chamada terceira “onda” no Brasil
ampliou-se e complexificou os estudos iniciados nos anos 60. O
movimento entra em uma fase de efervescência na luta pelos direitos das
mulheres, o que fez surgir inúmeros grupos e coletivos em todas as
regiões brasileiras. Várias reivindicações somaram-se as outras, tais como,
sexualidade, direito ao trabalho, igualdade no casamento, luta contra o
racismo, uma vida livre de violência etc.(CÉLIA PINTO, 2010).
Além de uma interdisciplinaridade na área das humanas, que
possibilitou uma discussão ainda mais ampla sobre a situação das 6

mulheres, a luta política da “terceira onda” feminista buscou questionar as


definições de feminismo, sexualidade e relações etnicorraciais o que
viabilizou que outros questionamentos viessem à tona, ao “centro” das
discussões, como por exemplo, a efetiva participação de mulheres negras
reivindicando seus espaços de atuação e destacando o feminismo sob o
seu ponto de vista, através das diferentes condições sociais e étnicas
vivenciadas por elas.
Conforme nos explica Helena Hirata (2014), o início dos debates
sobre a interseccionalidade surgiu nos países anglo-saxônicos, ainda nos
anos 70 com um movimento chamado Black Feminism o qual a criticava
de maneira radical o feminismo branco, de classe média e
heteronormativo, e acabaram assim impulsionando os debates
etnicorraciais.
Conforme Kimberlé Crenshaw, (1989) a relação entre raça e gênero
oferecia uma proposta de análise que possibilitaria uma melhor
compreensão das estruturas e das diversas experiências femininas. Como
forma de análise, ela propõe duas categorias: a interseccionalidade
estrutural a qual analisa “a posição das mulheres de cor na interseccção
da raça e do gênero e as conseqüências sobre as experiências da violência
conjugal do estupro, e as formas de resposta a tais violências” (HIRATA,
2014, p. 62) e a interseccionalidade política, a qual “as políticas feministas
e as políticas antirracistas que tem como conseqüência a marginalização
da questão da violência em relação as mulheres de cor” (HIRATA, 2014, p.
62).
Como forma de observação mais atenta a essa discussão, podemos 7

analisar o texto Diferencia, diversidad, diferenciación, de Avtar Brah


(2009), que analisa o contexto social pós-colonial na metrópole Britânica
dos anos 70 e demonstra a pouca, ou nenhuma, preocupação da
academia em discutir as relações de exploração generalizada do trabalho,
o racismo existente nas políticas e práticas culturais brancas estatais e a
racialização da subjetividade negra, no tocante específico ao período
posterior a perda do império e as particularidades das mulheres negras
dentro do movimento feminista.
Avtar Brah (2009) utiliza como exemplo a metrópole Britânica dos
anos 70, como pano de fundo para uma discussão que, segundo ela, pode
ser incorporada, questionada e debatida em várias situações, países e
localidades, inclusive no Brasil: a opressão de mulheres negras por
mulheres brancas dentro do feminismo e a importância de uma separação
em dois grupos para uma efetiva visualização do feminismo negro e a
conquista de seus objetivos principais: a luta contra o racismo, sexismo,
patriarcado, o que na percepção da autora seria fundamental.
A autora em seu texto reforça a necessidade da “separação” dos
movimentos. A partir da publicação do artigo produzido por Hazel Carby
intitulado White Women Listen, no qual as escritoras feministas brancas
passaram a rever alguns de seus questionamentos, sobre família,
reprodução e patriarcado. Reformulando esses tópicos, passaram a utilizar
a palavra patriarcal para designar as relações de subordinação das
mulheres. Segundo a autora Avtar Brah, a substituição na escrita, de uma
palavra por outra, em nada altera a forma como a mulher é subjetivada
dentro das relações de poder. Para Brah, é necessário ir além da escrita, 8

buscar formas, meios, ações que contemplem e busquem novas


discussões e entendimento, proporcionando a visualização das mulheres
negras dentro do movimento feminista.
Apesar da crítica realizada, Avtar Brah afirma a necessidade de
compreender sobre qual patriarcal ou estruturas patriarcais e sua carga de
significados os movimentos estão lutando contra. Segundo a feminista, há
divergências nas lutas entre o feminismo branco e o negro, onde o
primeiro, ao discutir gênero, não o faz a partir do viés da classe social, o
que o segundo feminismo acredita ser imprescindível. Assim a autora
partilha das ideias de Stuart Hall (1980) e Ernesto Laclau e Chantal Mouffe
(1985), os quais versam sobre a necessidade de se analisar a questão do
racismo sobre vários prismas, mas principalmente sobre gênero, raça e
mobilização política.
Além de Avtar Brah, as autoras Kum Bhavnani y Margaret Coulson,
em seu livro Otras Inapropiables: Feminismos desde Las Fronteras (2004),
discutem a importância da separação do movimento feminista, entre
mulheres negras e mulheres brancas. Segundo elas, é inegável o racismo
por parte do movimento branco para com o movimento negro. Dessa
forma, podemos concluir em parte, que o fato de serem mulheres não as
unem em um mesmo objetivo comum, mas ao contrário, o mesmo palco
do movimento de mulheres que as une, as separa, pois o movimento
negro possui como fundamento central na sua política a luta contra o
racismo, sexismo, classismo, enquanto que o feminismo branco, no geral,
batalha, por outras instâncias que, muitas vezes, não essas. As autoras não
se opõem que mulheres negras e brancas trabalhem juntas, para a criação 9

de uma teoria e uma prática feminista antirracista. Mas, elas advertem a


importância de questionar a diferença existente na posição que cada
grupo irá assumir dentro das representações desses discursos e as práticas
do feminismo. Isso nos leva a entender que as relações de poder
extrapolam as relações homem-mulher ou as formas binárias de
construção social.
Como forma de propor outro viés de análise, Danièle Kergoat (1978)
também no final dos anos 70 entra na discussão e afirma que o termo
interseccionalidade não oferece ou abarca as discussões necessárias de
enfrentamento e/ou separação ao feminismo branco, de classe média e
heteronormativo. Segundo ela, o termo correto a ser empregado deveria
ser o de consubstancialidade o qual deveria abordar em suas análises a
relação entre classe social e gênero. Segundo ela, esse modo de análise
compreende as relações de situação econômica vivenciada pelas mulheres
e as opressões sofridas por elas. Conforme a autora, por esse viés de
estudo juntamente com a abordagem de gênero, a análise permitiria uma
ampla visão das opressões vivenciadas e sofridas pelas mulheres de um
modo em geral e não apenas por mulheres negras. Kergoat (2010) não
descarta a importância da divisão dos feminismos em “branco” ou
“negro”, mas sugere que a discussão deve alcançar um patamar mais
elevado e satisfatório, ou seja, a análise de uma abordagem mais ampla
poderia refletir sobre as opressões vivenciadas pelas mulheres de um
forma em geral.
Nos anos 90, o debate sobre a interseccionalidade é ampliado e
complexificado. Após vários embates, discussões e análises, as autoras 10

envolvidas em seus estudos ampliam seu leque de investigações e,


elencam como categorias de análise: raça, sexo e gênero, onde suas
relações surgem como elementos não dissociáveis de questionamentos e
possível de análises críticas e estudo.
Segundo Piscitelli (2008, p. 266), “a proposta de trabalho com essas
categorias é oferecer ferramentas analíticas para apreender a articulação
e múltiplas diferenças e desigualdades”. Deste modo, refletir sobre essas
categorias de análises não é apenas combiná-las como “lego”, mas sim
pensá-las como categorias articuladas, onde as experiências vivenciadas
devem ser questionadas a partir das relações existentes, portanto de
forma relacional e contextual conforme nos adverte Anne McClintock
(2010), principal estudiosa dessas categorias nos anos 1990.
Isso pode ser verificado no livro Couro Imperial: Raça, Gênero e
Sexualidade no Embate Colonial, de 2010, no qual Anne McClintock
desconstrói uma análise linear e propõe que nossos estudos sejam
pautados por capacidades reflexivas e autênticas, atentando para que
nossas discussões não recaiam em polaridades, tais como colonial/pós-
colonial, homem/mulher, negro/ branco, e que também da mesma forma,
em estudos simplificados e sem análises concretas que permitam e
acabam por invalidar ou invisibilizar sua importância de análise. Sendo
assim, para McClintock as nossas pesquisas devem ser contextualizadas,
para que haja entrelaçamentos que permitam análises políticas, de poder,
de gênero, de raça e de sexualidade. Isso por que ela parte do
entendimento de transversalidade ou da interseccionalidade de análise,
abordando gênero, raça e sexualidade como três categorias que existem 11

“em relação entre si e através dessa relação – ainda que de modo


contraditório e em conflito” (MCCLINTOCK, 2010, p.19).
Deste modo, refletir de forma interseccional, é apreender que essas
categorias de análises nos possibilitam entender as consequências das
diferentes maneiras e abordagens de exclusão e dominação. Estudar de
forma interseccional é ampliar nosso leque de visão e atentar que essas
categorias não podem ser tratadas como “variáveis independentes,
porque a opressão de cada uma está inscrita dentro de outra – é
constituída pela outra e é constituída dela” (BRAH, 2009, p. 45).
Portanto, compreender que as relações de discriminação racial,
sexual e de gênero são sobrepostas, é mais que analisar apenas as
relações entre elas, é pensar gênero, classe e raça como um prisma
multiforme que abarca muitas relações sociais, culturais, econômicas e
históricas. Para além do que está posto, esse modo de análise reflete a
necessidade de olhar para cada feixe desse prisma como único e
ponderável dentro de inúmeras relações e combinações subjetivas de seus
marcadores que atravessam suas experiências individuais. Em suma, a
análise interseccional é uma abordagem ampla, complexa e importante na
análise das categorias de gênero e suas relações, principalmente no
tocante as violências sofridas por inúmeras mulheres, sejam elas em suas
instâncias físicas, psicológicas, sexuais, moral, patrimoniais...
Atentando que cada uma de nós mulheres “experimentam a
opressão em configurações variadas e em diferentes graus de
intensidade” conforme nos diz Kimberlé Crenshaw (1989), é necessário 12

compreendermos as relações de poder e as subjetividades e as


afetividades que se encontram nesses espaços. Assim, acreditamos que
para refletir juntamente a interssecionalidade devemos elencar as
categorias de relações de poder, subjetividade e afeto. Isso se justifica por
entendermos que na caminhada dos estudos de raça, gênero e sexo é
necessário observar as relações de poder que ali estão instauradas e as
inúmeras ações de resistências e fugas que o poder relacional permite
(FOUCAULT, 2013).
Da mesma forma, ao analisar raça, sexo e gênero é essencial
observamos as múltiplas relações de subjetividades que integram essa
análise de forma que nos permita uma observação da interação com o
debate proposto. Entendemos que a categoria afeto4 também deve estar
presente na análise de forma articulada, pois é a categoria que nos
autoriza assimilar de que forma algo nos afeta a ponto de colocarmos no
lugar do outro e isso mover nossas pesquisa. Concordamos com o
posicionamento de que a investigação está para além de uma coleta de
dados nas fontes, ela se propõe e se realiza a partir daquilo que nos
motiva, nos impulsiona, nos toca.

4
A “virada afetiva” nos anos 90, “trata de focar o olhar nas emoções, afetos e sentimentos como parte
da experiência humana, de procurar uma compreensão do social que inclua essa dimensão nos estudos”,
conforme Cristina Wollf, 2015, p. 97.
Desta forma, compreender os significantes antes dos significados
como propõe a teoria pós estruturalista indicada por Judith Butler (2003)
pode ser um caminho a ser seguido. Da mesma forma, compreender com
a autora que as relações de sexo /gênero são ativadas por uma
representação e reforçadas por uma linguagem, nos possibilita e nos 13

indica como caminho compreender como as mulheres são vista,


representadas e discursivamente elaboradas. Isto nos impulsiona a
requerer e a buscar meios de resistência e estudos que elaborados junto a
academia, nos proporcione interagir com a sociedade, de modo a
promover e elaborar meios que permitam a reflexão, o diálogo e a
execução de medidas permanentes de desconstrução.
Da mesma maneira, analisar, por exemplo, quais as justificativas
que levam a inúmeros homens a deferirem agressões contra suas
companheiras, ou compreender o porquê muitas mulheres em posições
de destaque como juízas, advogadas ou delegadas ainda encontram
resistências ao abordar, deferir causa ou proteger mulheres em situação
de violência nos oportunizará compreender de que formas nossas
pesquisas acadêmicas podem extrapolar os muros acadêmicos e se
efetivar de forma concisa, duradoura e constante na sociedade.
Portanto, o que buscamos dialogar neste espaço é a nossa crença e
a nossa defesa sobre a importância dos estudos interseccionais de modo
que eles ampliem, possibilitem e complexifiquem as relações sociais,
econômicas e de poder nas principais áreas discursivas de análise tais
como raça, gênero e classe. Mas para além desse uso de categorias de
análise, acreditamos que as relações de subjetividades, poder e afeto
podem de forma entrecruzada possibilitar uma ampliação nos estudos
sobre as interssecionalidades. Para além do exposto, buscamos afirmar
também nessa escrita a necessidade de se colocar no campo de análise e
compreender de que forma aquela pesquisa permite que o/a
pesquisador/a se coloque no lugar do pesquisado, seja afetado e reaja 14

com atitudes positivas a partir da pesquisa.


Isto é, acreditamos que a primeira ação do pesquisador/a seja a de
se compreender dentro de uma pesquisa, se colocar na pesquisa,
entender sua subjetividade, suas relações de poder e seus afetos com suas
fontes e seus/suas pesquisados/as, compreender seu lugar, suas fissuras,
brechas e interesses é fundamental. Entender seus significantes, suas
motivações e anseios e como a partir dessa pesquisa podemos
empreender socialmente a mudança e como isso pode ser viável é de
suma importância. Nós educadores/as sociais que por meio de títulos
como historiadores/as, pesquisadores/as possuímos como ambição e
clareza o alcance e uma perspectiva de mudança social.
Como nos afirma Wolff (2015) os estudos sobre emoções, afetos e
subjetividades, possui com objetivo “focar o olhar, as emoções, afetos
sentimentos como parte da experiência humana, de procurar uma
compreensão social que inclua essa dimensão nos estudos” (WOLFF, 2015
p. 977).
Deste modo, propomos que além de realizar estudos de forma
interssecional, o/a pesquisar/a amplie suas percepções de pesquisador
social e inclua em suas pesquisas interrelações, subjetividades, poder e
afeto - de forma que a elaboração da sua pesquisa possa se transformar e
se efetivar em caminhos, alternativas e rumos concretos de possibilidade
de mudança social. Assim, mais que elaborar teses e dissertações a
pesquisa acadêmica deve ser intercruzada em duas linhas de pesquisa, a
interssecional e a interrelacional de forma que permita a ampliação e as
discussões e as análises sobre o porquê, por exemplo, os diagnósticos de 15

elevados números de violência contra as mulheres ainda se mantêm em


nossa sociedade e as tantas outras formas de intolerância e desrespeito.

REFERÊNCIAS

BRAH, Avtar. Difference, Diversity, Differentiation. In: BRAH, Avtar et al.


Otras Inapropiales. Madrid: Traficantes de Sueños, 2004. Disponivel em:
http://biblio3.url.edu.gt/Libros/2012/otra_Ina.pdf aCESSADO EM
03/09/2016
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da
identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CRENSHAW, Kimberlé W (1994), “Mapping the margins: intersectionality,
identity politics and violence against women of color”. In: Fineman,
Martha Albertson & Mykitiuk, Roxanne (orgs.) The public nature of private
violence. Nova York, Routledge, pp. 93-118.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collége de
France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 23 ed.- São Paulo:
Ediçoes Loyola, 2013.
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (org. e
trad.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais..
Petrópolis: Vozes, 2000. p. 103-133.
HIRATA, Helena Gênero, classe e raça: interseccionalidade e
consubstancialidade das relações sociais. Tempo social, São Paulo, v. 26, n. 16

1, 2014.
PEDRO, Joana Maria. Corpo e Trabalho. In: PINSKY, Carla Bassanezi;
PEDRO, Joana Maria (orgs.). Nova História Das Mulheres. São Paulo:
Contexto, 2012.
PINTO, Célia Regina Jardim. Feminismo, História e Poder. Rev. Sociol.
Polít., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 15-23, jun., 2010.
PISCITELLI, Adriana. Entre as "máfias" e a "ajuda": a construção de
conhecimento sobre tráfico de pessoas. Cadernos Pagu31, Campinas,
Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2008, pp.29-63.
SCOTT, Joan W. Preface a gender and politics of history. Cadernos Pagu,
no. 3, Campinas/SP 1994.
. “Gênero: ma Categoria l para a Análise Histórica.” Traduzido
pela SOS: Corpo e Cidadania. Recife, 1990
. Igualdade versus diferença: os usos da teoria pós-estruturalista.
In. Debate Feminista - Cidadania e Feminismo, no especial, 2000. (edição
especial em português).
KERGOAT, Danièle. “Ouvriers = ouvrières? Propositions pour une
articulation théorique de deux variables: sexe et classe sociale”. Critiques
de l’Économie Politique, 5: 65-97, 1978.
(2010), “Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais”.
Novos Estudos Cebrap, 86: 93-103. *Em francês, “Dynamique et
consubstantialité des rapports sociaux”. In: Dorlin,
WOLFF, Cristina Scheibe. Pedaços de alma: emoções e gênero nos
discursos da resistência. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 3, p. 17

975-989, nov. 2015. ISSN 0104-026X


PROGRAMA JOVEM APRENDIZ: UMA DAS
MULTIFORMIDADES DO ENSINO MÉDIO POR MEIO DA
3ª VIA

Evelline Soares Correia 1 1

RESUMO: O presente artigo busca apresentar de que forma as Políticas Educacionais


no Brasil, referentes ao Ensino Médio, foram se configurando no início da década de
70, até as diferentes possibilidades que este tem-se apresentado hoje. Tendo o
Neoliberalismo como ponto determinante em toda esta configuração, pretende-se
apresentar um questionamento sobre o papel do Estado na manutenção do Ensino
Médio e ainda de que forma a implementação do Programa Jovem Aprendiz consegue
atender esta proposta neoliberal.
Palavras-chave: Políticas Educacionais; 3ª Via; Ensino Médio.

ABSTRACT: This article tries to present how the Educational Policies in Brazil, referring
to High School, were configured in the beginning of the 70, to the different possibilities
that this has presented itself today. With Neoliberalism as the determining factor in all
this configuration, it is intended to present a question about the role of the State in the
maintenance of Secondary School, and how the implementation of the “Young
Apprentice Program” can meet this neoliberal proposal.

Key Words: Educational Policies; 3rd Way; High school.

INTRODUÇÃO

No século XX, o neoliberalismo surge como uma outra forma de


regulação econômica frente ao Socialismo, Keynesianismo, Estado de
bem-estar, terceiro-mundismo e ao desenvolvimento latino-americano.

1
Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Maringá. Mestre em Educação pela
Universidade Estadual de Maringá. E-mail: profevelline2010@gmail.com.
Pode-se dizer segundo Moraes (2001) que, o neoliberalismo é a
ideologia do capitalismo, era da riqueza mais líquida e volátil. Uma
ideologia, ou seja, uma corrente de pensamento, uma forma de ver e
julgar o mundo social, buscando uma difusão de ideias por meio de um
movimento intelectual. 2

Nos anos 80 os programas neoliberais são impostos como


negociação de dívidas aos países latino-americanos. Assim na América
Latina, a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), se coloca
antagonista ao Estado Desenvolvimentista e ao nacional- populista. Desta
forma a vigilância de gerenciamento do BM e do FMI, estiveram presente
nos países: Bolívia, México, Argentina, Venezuela, Peru e Brasil.

Para entender como o neoliberalismo se configurou no Brasil,


precisa-se anteriormente, a apresentação de como eram as diretrizes
desta política.

Partem sob duas exigências: privatizar empresas estatais e serviços


públicos e criam outro quadro (mercado) que fica responsável pelas
atividades regulatórias diminuindo a interferência do Estado. O estado é
visto como produtor de uma ineficácia, paternalista e protetor, usam o
termo: Estado de bem-estar (MORAES, 2001).

Assim a educação, saúde, previdência passam para a iniciativa


privada. Em relação aos produtos financeiros globalizados, surge um novo
gerente das políticas nacionais, a nova reintegração das finanças. A
liberação da economia mundial e a globalização financeira emerge como
solução, transferindo a responsabilidade do Estado para os banqueiros
dos países capitalistas: BM – FMI – OMC (Organização Mundial do
Comércio) – G72.

Na década de 90, as ações tomadas levaram à um endividamento a


juros, onde as taxas triplicaram, buscando uma forma de reorganização,
3
por meio dos Programas de Ajustes, organizados pelo BM e FMI,
ocasionando a globalização e a integração competitiva. Desta forma surge
também uma pressão da participação popular na cobrança de seus
direitos.

O Banco Mundial se estabelece então como a principal agência


técnica em matéria de Educação para os países em desenvolvimento, um
referencial mundial de assessoria. Com sua proposta de Educação
analisada por economicistas, seu modelo escolar analisa apenas o
observável, porém deixa ausente os professores e a pedagogia. A escola é
comparada à uma empresa, ou seja, professores são o insumo e a
aprendizagem algo proposto com resultados previsíveis (TOMASI, 1996).

Na década de 90, observa-se que o BM propõe a inserção dos livros


didáticos, desaconselha reformas curriculares para modificação do
currículo já prescrito e sim apenas melhoria nos textos escolares (o
currículo efetivo), melhorando apenas o material instrucional (TOMASI,
1996).

Para o BM, é dissociado o pedagógico do administrativo, foca-se na


matrícula como resposta à Universalização do 1º Grau e não, a
2
G7- Chamado Grupo dos Sete, é o grupo dos países mais desenvolvidos, formado por Estados Unidos,
Canadá, Japão, Alemanha, Reino Unido, Itália e França que, posteriormente, quando acrescida pela
Rússia, formaram o G8 (BRANDÃO,2009).
permanência e conclusão desta etapa. Seu diagnóstico sobre o sistema de
educação brasileiro, informa que o maior problema é a baixa qualidade,
altos índices de repetência e evasão.

Como prioridade o BM estabelece que o estado seja responsável


4
pelos livros didáticos e capacitação dos professores, e um gerenciamento
e integração entre município e estado. Prevê financiamentos para escolas
que apresentem projetos inovadores, onde se estabelece um ambiente de
competição, apoiando a participação das ONGs e os índices avaliativos.
Porém estes financiamentos disponibilizados farão parte da dívida externa
do país, portanto este se coloca como empréstimo e não uma cooperação,
com a condição da utilização da verba disponível sob as condições
impostas pelo próprio BM.

Neste contexto, o Ensino Médio, passou por diferentes adaptações


de acordo com a conjuntura até aqui apresentada, por meio de Reformas
de Ensino.

2. REFORMAS EDUCACIONAIS NO ENSINO MÉDIO

Para a garantia de mudanças, uma Reforma no Ensino estava sendo


proposta. Para Sacristán (1998), as reformas de ensino podem ser
entendidas como:

[...]uma simples ação sobre algum aspecto parcial do


sistema educativo, ou como programas para introduzir
mudanças no rumo de todo o conjunto e, inclusive,
em seu sentido mais amplo; pode abarcar o estudo da
dinâmica histórica da mudança em educação,
contemplando suas causas sociais, econômicas,
culturais, epistemológicas, etc. [...] é um programa
empreendido pelos governos que supõe uma ação ou
uma série de ações delimitadas pelo tempo,
expressando, desta forma, o que são medidas de
política educativa (SACRISTÁN, 1998, p.85). 5

Porém não se pode desconsiderar que toda reforma está


acompanhada de um discurso que a justifique, se aproximando mais de
um instrumento legal que visa a manutenção vigente, sendo assim, toda e
qualquer reforma para ser analisada precisa ser levado em consideração
ambas as possibilidades de sua criação ou manutenção.

O ensino profissional (2º grau) Ensino Médio, tornou-se obrigatório


a partir da implementação da Lei nº 5692/71. As principais mudanças no
Ensino determinadas por esta Reforma de Ensino na década de 70,
referentes ao Ensino Médio, teve como justificativa do grupo que a
elaborou, a necessidade de preparar os alunos para o mundo do trabalho,
caso não fossem admitidos no vestibular, portanto a partir de 1972 todas
as escolas tinham a obrigatoriedade de oferecer o ensino
profissionalizante (MIMESSE, 2007).
Nota-se que o discurso que a justificava era totalmente excludente,
pois não apresentava uma reforma preocupada com o ingresso de todos
em um curso superior, mas sim, uma possibilidade de inserção de parte
dos jovens, os demais ficavam impossibilitados de prosseguirem uma
carreira, sendo subjugados ao campo do trabalho de forma rápida e
prática. Leva-se em consideração também, uma outra questão, pois se
todos os jovens pudessem ingressar em um Ensino Superior, a mão de
obra trabalhadora mais barata, menos preparada, passaria por um
processo de escassez, indo na contra mão do capitalismo e das propostas
neoliberais. 6

A escola passou a ser vista como uma instituição que deveria buscar
eficiência e eficácia para o mercado de trabalho, com um modelo de
currículo mais prático, reduzindo alguns conteúdos teóricos dispensáveis a
este novo profissional em formação. Este deveria ser autônomo e
independente (POPKEWITX, 1997).

O Conselho Federal de Educação estipulou dois níveis de


habilitação: plena que oferecia ao aluno o diploma de técnico e parciais o
diploma de auxiliar. Dividindo em dois setores o Ensino de 2º grau:
primário, secundário e terciário, respectivamente relacionados ás áreas do
conhecimento: ciências exatas, biológicas e humanas. Os cursos primários
e secundários deveriam ter carga horária maior que os cursos terciários.
Desta forma percebe-se uma dissociação do Ensino Médio, cada qual com
diferentes objetivos e finalidades.

Com a recessão da década de 80, a sociedade civil ansiava o retorno


à democracia, que se desdobrava em reformas partidárias e eleitorais,
neste momento a educação visa o pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho, de acordo
com a nova Constituição de 1988 (SANTOS, 2002).
Com a Lei nº 7.044/82, alterou-se a redação da Lei nº 5692/71, a
expressão “qualificação profissional” foi substituída por “preparação para
o trabalho”. Assim as habilitações profissionais deixaram de ser
obrigatórias no 2º grau (Ens. Médio) para tornarem opcionais (PALMA
FILHO, 1996). Seria possível então, a opção de escolha de fazer um Ensino 7

Médio voltado para a preparação ao ingresso de um curso superior ou


ainda optar pelos profissionalizantes, que também lhe oferecia a
possibilidade de ingresso em um curso superior, porém seu objetivo era
de prepará-lo para o trabalho, no curso escolhido em questão. Não sendo
então oferecida a mesma formação para todos os jovens, há uma
dualidade neste ensino, os cursos que preparavam o aluno para a inserção
ao ensino superior e o outro com objetivo de preparação ao mercado de
trabalho.

Foi na década de 90 que, com a aprovação da lei nº 9394/96, que o


Ensino Secundário recebeu a denominação de Ensino Médio, não
obrigatório, para os jovens de 15 a 17 anos e contando com uma estrutura
curricular única em todo território nacional. Tendo como objetivo a
aquisição de saberes que preparassem o jovem para a vida.

A partir de 1997, a chamada reforma do Ensino Médio e da


Educação Profissionalizante, segundo Melo (2011), determina que o
Ensino Técnico seja ofertado de forma complementar, separadamente do
Ensino Médio. O que provocou um caráter secundário ao Ensino
Profissionalizante, como uma substituição mais prática e econômica do
Ensino Superior.
Nosela (2015) aponta que a atenção dada a essa fase escolar tem
relação intermediária com o Estado, ou seja, uma hegemonia nacional. E
que sua nomenclatura “médio” vem sendo incorporado em seus objetivos,
como uma mediação entre o Ensino Fundamental e o ingresso ao Curso
Superior, quase que se anulando em sua função, pois para o autor, “O 8

ensino médio é a fase escolar estratégica do sistema escolar e do processo


de democratização e modernização de uma nação” (NOSELA,2015, p.123).
Foi apenas em 2004, que o Decreto nº 5.154/04, readmitiu a
possibilidade de integração do Ensino Médio com o Profissionalizante, nas
escolas no Brasil, porém tal proposta ficava à critério das próprias escolas,
o que trouxe na prática poucas experiências de integração.

Observa-se que o Ensino Médio e o Ensino Profissionalizante se


mantiveram de forma separada desde sua inserção, cada qual com seus
objetivos diferenciados e mesmo quando determinadas propostas era de
integração, esta não aconteceu da forma esperada.

A legislação apresenta indícios de uma possível proposta de


integralização, em 2007 são criadas normas, programas e medidas em
relação ao Ensino Médio e Educação Profissional. Dentre elas destacamos,
a constituição dos IFs- Institutos Federais de Educação Tecnológica, a
reorganização da Rede Federal de Educação Tecnológica, a instituição do
Programa Ensino Médio Inovador com parceria do Sistema S que tinha
como objetivo, dar apoio financeiro e técnico do governo federal para a
rede estadual de educação. Destaca-se também a reelaboração do ENEM-
Exame Nacional do Ensino Médio, que começa a induzir a organização
curricular do Ensino Médio, pois passa a ser adotada como vestibular
unificado para as Universidades Federais e ainda ser aceito para
verificação do desempenho acadêmico dos ingressantes no Ensino
Superior (MELO, 2011).
9
A partir de 2005, inicia-se um processo de institucionalização das
Políticas para a Juventude no Brasil, com objetivo de atender os jovens em
vulnerabilidade. A criação da Secretaria e do Conselho Nacional de
Juventude (2005); do Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação,
Qualificação e Ação Comunitária (PROJOVEM) (2006); do Programa
Universidade para Todos (PROUNI) (2005), são algumas das ações
implementadas.
Por meio de indicadores nacionais, como por exemplo, o Censo da
Educação de 2008 apresentou que o Ensino Médio cresceu modestamente
no país, e que em 2009 ocorreu uma queda de 0,3%. A Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2009 mostrou a existência de 1,4
milhão de jovens entre 15 e 17 anos fora da escola. Os indicadores
sinalizam problemas na cobertura do Ensino Médio e um alto índice de
jovens acima de 14 a 17 anos ainda fora da escola.
No PNE- Plano Nacional de Educação (2011-2020), pretende
universalizar até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15
a 17 anos e elevar até 2020, a taxa líquida de matrículas do Ensino Médio
para 85% nessa faixa etária, porém dentre as estratégias apontadas, são
sugeridos apenas aprimoramentos e redistribuição, não uma ampliação de
ofertas e recursos.
O Ensino Médio se apresenta sob diferentes formas no decorrer das
reformas, concomitantemente ao Ensino Profissionalizante, para essa
multiformidade, Nosela (2015) explica o uso do significado do termo que
adjetiva o Ensino Médio:
Com efeito, o termo “multiforme” evidencia de 10
imediato a grande fragmentação de nosso ensino
médio, que, além dos dois principais tipos de escola,
de cultura geral e técnico profissional, apresenta ainda
variados tipos de escolas, em prédios e horários
deferentes, de centro e de periferia, particulares e
públicas etc (NOSELA, 2015, p.132).

O MEC- Ministério da Educação, em seu discurso que defende uma


reforma no Ensino Médio e Profissionalizante, em sua concepção afirma
que não há mais sentido da manutenção de uma dualidade entre ambos.
Apesar da educação profissional buscar uma formação mais específica, é a
educação de cunho acadêmico que deve proporcionar os conhecimentos
fundamentais para as competências profissionais.
Tais competências não fazem relação diretamente ao conhecimento
curricular, mas sim pela forma como sua articulação é feita dentro da
escola, ou seja, na capacidade de desenvolver meios, que permita uma
formação continuada.
Entretanto esta formação não se restringe apenas na escola,
portanto segundo o MEC, há a necessidade de uma reformulação
curricular pensada interdisciplinarmente de acordo com o público. Assim o
currículo para o Ensino Médio prioriza as competências em detrimento ao
currículo enciclopédico, voltando-se para a inserção profissional do aluno.
Reorganizar os conteúdos por áreas interdisciplinares e ainda tratar os
conteúdos de modo contextualizados. Já o Ensino Profissionalizante é
abordado apenas como um espaço preparatório para o mercado de
trabalho, como algo complementar (CNE/CEB,2004).
Colocando o Ensino Médio como o responsável por todo o 11

conhecimento necessário para o ingresso do aluno em um curso superior,


fica o questionamento em relação ao que se é cobrado no vestibular, pois
ele é a porta de entrada para qualquer curso superior e se ele ainda
espera do aluno, o conhecimento enciclopédico para o êxito de seu
cumprimento, como seriam as condições de equidade dos alunos que
frequentam um Ensino Médio com estas características orientadas pelo
MEC, diferentemente daqueles que cursam um Ensino Médio em
Instituições particulares que têm por objetivo maior, a aprendizagem dos
conhecimentos enciclopédicos? Ou seja, uma preparação exclusivamente
pensada para o vestibular?
O mais preocupante nesta dicotomia, mesmo negada pelo MEC que
ela ainda aconteça, é a inserção dos alunos em cada modalidade. Temos o
Ensino Médio com duração de 3 anos, tempo necessário para que o aluno
consiga preparar para suas escolhas relacionadas ao campo do trabalho e
ainda para que consiga por meio da interdisciplinaridade adquirir as
competências necessárias independente da profissão a ser seguida. E
temos também o Ensino Profissionalizante que trata especificadamente
de um setor, ou seja, de uma função específica para o trabalho. Com
menor duração, abrindo a possibilidade de uma inserção no campo de
trabalho mais rápida que o Ensino Médio, porém menos aprofundada.
O jovem que já se coloca na função de trabalhador, ou que precisa
se inserir no campo do trabalho devido sua condição social e econômica,
não tem a disponibilidade de se preparar por 3 anos, antes de fazer sua
escolha. Ao contrário, este jovem desde muito cedo já se encontra
trabalhando concomitantemente aos estudos, quando não evade. É 12

preciso deixar claro que, um curso profissionalizante, não está relacionado


com a má qualidade do ensino, porém o jovem tem apenas uma
alternativa de trabalho, que o mantém na mesma condição, sem anseios
futuros. Diferentemente do jovem que, disponibiliza de tempo e condição
suficiente para concluir seu Ensino Médio, fazer sua escolha profissional e
depois iniciar uma dupla jornada de estudos e trabalho, se for o caso.
Dentre as diferentes possibilidades de conclusão do Ensino Médio
relacionando-a com o Ensino Profissionalizante, um programa do Governo
Federal, intitulado: Jovem Aprendiz, vigente no ano de 2016, tem como
seu corresponsável as Instituições sem fins lucrativos, as ONGs
(Organização Não-Governamental) para seu funcionamento.
Antes de abordar os objetivos deste programa, faz-se necessário
uma apresentação em relação a atuação da 3ª Via, na manutenção da
educação dos jovens que cursam o Ensino Médio.

3. O PAPEL DA 3ª VIA NA EDUCAÇÃO


No plano ideológico, de acordo com a teoria Neoliberal, o
responsável pela crise, fator que justifica as reformas, é o Estado. E o
justifica culpado devido os gastos que o mesmo fez para atender as
demandas do período democrático. Por isso as políticas sociais e a
democracia devem ser controladas e contidas para favorecer o mercado,
assim surgiu o estado mínimo para as políticas sociais e máximo para o
capital (PERONI, 2003).
Desta forma o neoliberalismo propõe uma reforma de Estado, seu
ideário é que o mercado deverá superar as falhas do Estado, prevalecendo 13

a lógica do mercado. As políticas sociais são vistas como um saque à


propriedade privada, transparecendo a ideia de que o Estado gasta mais
do que arrecada, portanto pretende-se diminuir o papel do mesmo.
O capital buscou reduzir a crise com avanços tecnológicos, o que
substituiu o trabalho “vivo”, causando uma alta taxa de desemprego, uma
reestruturação do trabalho, ficando à cargo do próprio trabalhador uma
melhor qualificação, ocasionando uma globalização produtiva e financeira
(HARVEY,1989).
O Estado procura então racionalizar recursos e esvaziar o poder das
instituições, consideradas, pela lógica do mercado, improdutivas. A
responsabilidade das políticas sociais passa a ficar para os neoliberais,
para a sociedade, por meio da privatização do mercado e para o terceiro
setor (sem fins lucrativos), chamada de 3ª Via (PERONI,2003).
Dentre as estratégias para superação da crise, acontece uma
redefinição do papel do Estado, a globalização, uma reestruturação
produtiva, a inserção do neoliberalismo (capital) apresentando como
alternativa contra a crise, a 3ª Via, que recebe do Estado para transformar
pela lógica do mercado, por meio das privatizações e ser devolvido à
sociedade.
Para Montano (2010), o terceiro setor refere-se por muitos autores
como atividades públicas desenvolvidas por particulares e outros com
função social em resposta às necessidades sociais.
Surge desta forma, uma nova modalidade no trato à questão social,
há uma transferência de responsabilidade do Estado para o indivíduo, 14

responsável agora pelas questões sociais, por meio de autoajuda, ajuda


mútua e ainda na aquisição de serviços (mercadorias). O terceiro setor,
tem como estratégia aliviar as questões sociais para evitar o caos e não
resolver um problema social. Com o surgimento da terceirização, o setor
privado se transforma em apoiador dos serviços sociais e a publicização
passa para o setor público não-estatal os serviços sociais e científicos que
o Estado presta à sociedade, transformando uma organização estatal em
uma organização de direito privado público, não estatal.
As políticas públicas estão interligadas diretamente aos aparelhos
de hegemonia, tendo como aparelho produtor da mesma, as empresas de
filantropia empresarial, que desenvolve a ideia de desenvolvimento
sustentável. O Estado se coloca como o educador e regulador (para
garantir a hegemonia), porém passa esta incumbência para as ONGs a
realização deste trabalho. Na educação, o governo federal desenvolve
programas que estabelece parcerias com os municípios, com as escolas
públicas diretamente e com as instituições consideradas “terceiro setor”,
na implementação de programas de nível local ou nacional, tais como as
ONGs e as OSCIPIs (organização da sociedade civil de interesse público),
influenciando a gestão da educação e da escola.
É importante explicitar que as ONGs não são os
movimentos sociais, mas relacionam-se com ele. As
ONGs têm metas a cumprir, organizam suas ações por
meio de projetos preestabelecidos que recebem
financiamento de terceiros. (PINTO, 2006, p. 656).

15
Gohn (1997) caracteriza as ONGs, de acordo com sua atuação: o
“assistencialismo”, resultante da filantropia; o “desenvolvimentismo”, que
se dá pelos programas de cooperação internacional realizados entre ONGs
e agências públicas e privadas de fomento; e o “campo da cidadania”,
caracterizado pelas ONGs vinculadas aos movimentos sociais que lutam
pelos direitos da sociedade.
O Programa Jovem Aprendiz, é desenvolvido tanto pelas Instituições
do Sistema S como também pelas ONGs.

4. PROGRAMA JOVEM APRENDIZ

A Lei nº 10.097/2000 garante que os jovens entre 14 a 18 anos


possam trabalhar como aprendizes. Entende-se como aprendiz o jovem
que matriculado e frequentando a escola ou concluído o Ensino Médio,
esteja inscrito em um programa de Aprendizagem. Os estabelecimentos
de qualquer natureza, que tenham pelo menos 7 empregados, são
obrigados a contratar aprendizes, de acordo com o percentual exigido por
lei.
As entidades formadoras podem ser, os Serviços Nacionais de
Aprendizagem: SESCOOP, SENAI, SENAC, SENAT e SENAR, escolas técnicas
de educação e as entidades sem fins lucrativos registradas no CMDCA
(Conselho Municipal da Criança e do Adolescente).
Em relação a contratação, o jovem terá carteira de trabalho 16

assinada, contrato de trabalho de um ano, podendo prorrogar apenas por


mais um ano, com remuneração de salário mínimo/hora, jornada de 6
horas podendo chegar 8 horas se o aprendiz tiver já concluído o Ensino
Médio, direito ao décimo terceiro salário e FGTS (Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço), vale transporte e um certificado de qualificação
profissional. Não possui direito ao seguro desemprego, aviso prévio e os
40% do FGTS (BRASIL,2008).
As atividades práticas ocorrem dentro da empresa de tal forma que
o aprendiz não corra riscos de insalubridade e periculosidade, não
prejudicando o desenvolvimento físico, psicológico e moral. Na relação
teoria e prática, a carga horária é de 400 horas, a parte teórica não pode
ser inferior a 25% das horas totais e ainda a prática não pode ser menor
que a teoria. É solicitado um acompanhamento deste aprendiz dentro das
empresas pela entidade formadora e ainda o acompanhamento do
aprendiz na escola por meio de notas e faltas excessivas. Este
acompanhamento é para verificar também se o aprendiz está fazendo um
rodízio de atividades dentro do setor administrativo das empresas e em
diversos setores dos supermercados, locais onde os aprendizes são
inseridos. Geralmente o aprendiz frequenta o Ensino Médio em um turno
e no outro ele vai à empresa três vezes por semana e duas vezes na
instituição formadora, com uma variação de acordo com a especificidade
de cada instituição. Caso contrário, o não cumprimento das normas,
haverá extinção do contrato. Na instituição formadora, as aulas são
voltadas geralmente para as rotinas administrativas (BRASIL,2008).
Se a instituição formadora é responsável pelo acompanhamento do 17

aprendiz dentro da empresa, não se tem uma normativa que indique o


número necessário de funcionários responsáveis por este trabalho
(acompanhamento) em relação ao determinado número de aprendizes.
Portanto fica a cargo da própria instituição a contratação, geralmente de
um psicólogo, que faça este trabalho. Desta forma um funcionário fica
responsável geralmente por todos os aprendizes que a instituição atende,
e o agendamento das visitas às empresas acaba tornando-se algo mais
demorado, pois elas devem se repetir no decorrer do contrato do
aprendiz. Outra situação é que, ao verificar que a empresa não está
cumprindo a lei, a instituição deve tomar a iniciativa de comunicar ao
ministério do trabalho, para tomar as providências necessárias, ou a troca
do aprendiz de empresa ou a quebra de contrato, caso o aprendiz não
queira permanecer.
Observa-se que todo o acompanhamento fica nas mãos da
instituição formadora, o Estado só tomará providências em relação ao
aprendiz que se encontra em uma situação inadequada de trabalho, caso
a instituição o informe. Se tal instituição não conseguir disponibilizar um
número de funcionários que consiga atender a demanda de aprendizes
para um acompanhamento contínuo, ou não realizar um
acompanhamento, podemos entender que há uma possibilidade de, nem
sempre serem verificadas e readequadas as situações que estes jovens se
encontram.
Além de uma rotina pesada entre estudos e trabalho, geralmente o
aprendiz curso o Ensino Médio no período noturno, pois o trabalho nas
empresas acontece de dia, sabendo que precisa garantir boas notas e 18

participação nas aulas do Ensino Médio e nas aulas de Ensino Profissional.


Assim no prazo de dois anos, o jovem aprendiz consegue uma
remuneração mensal, que na maioria das vezes é utilizado na colaboração
do sustento de sua família e um certificado profissionalizante. Na duração
de dois anos de contrato, provavelmente ele esteja findando seu Ensino
Médio.
Chega-se então a retomada da questão em relação a função do
Ensino Médio para a preparação da vida e uma preparação para o ingresso
ao Curso Superior. De que forma este jovem tem-se preparado no
decorrer destes dois anos, para uma possível aprovação no vestibular,
imprescindível ao ingresso de um Curso Superior? Ou ainda, os jovens
com a experiência profissional em carteira, ao terminar o contrato, caso
demonstre competência no trabalho, se depara com outra situação, o
convite à uma possível contratação da empresa, pois pode estar com 18
anos, assim seu salário será maior. Assim a possibilidade de uma
formação superior se dificulta ainda mais, pois ele estará concorrendo às
vagas (no vestibular) disponíveis, com jovens que se dedicam
integralmente aos estudos conteudistas, fator determinante para o
ingresso no vestibular, ou ainda outra situação ainda mais complicada, é a
do jovem que ainda não terminou o Ensino Médio, e já com seus 18 anos,
desiste de sua escolarização, para ser contratado pela empresa, abrindo
mão do seu futuro por uma necessidade financeira atual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se pode desconsiderar a importância da inserção do jovem no 19

campo do trabalho, a abertura do jovem trabalhador sem experiência no


mercado de trabalho, é algo que o Programa Jovem Aprendiz conseguiu
atender. Dentre as solicitações para a permanência no programa, a
frequência e o desempenho escolar como fator determinante, também
são positivas.
O que precisa ser levado em consideração, são as diferentes
situações que este jovem pode se encontrar no decorrer deste processo.
Tendo uma carga pesada entre trabalho e estudo, deixando os estudos
como fator secundário em sua vida e ainda vivenciar situações de risco ou
até mesmo do não cumprimento das leis pertinentes do programa, por
parte da empresa contratante.
Outro fator é a responsabilidade de acompanhamento de todo este
processo nas mãos das instituições não governamentais, que são
contratadas pelo Governo para desempenhar esta função.
Seria oportuno pensar que, caso alguma destas instituições não leve
as orientações do Programa conforme orientado, tem-se um número de
jovens em situações também de vulnerabilidade e risco, sendo
“controlados” pelas mãos da 3 ª Via e não por seu Estado. Ou ainda nas
mãos de um Estado hegemônico apoiador do papel que a 3 ª Via vem
desempenhando na educação brasileira. Sem a intenção de coibir a
inserção do jovem no campo do trabalho, o que pretende-se apresentar
neste artigo, é a reflexão em relação à falta de um acompanhamento mais
atuante por parte do Estado, que delega para a propriedade privada o que
é de sua função.
Pensando no conceito de Estado Ampliado de Gramsci (1998) a 20

sociedade civil deve buscar um papel efetivo no acompanhamento das


políticas inseridas, cobrando do Estado sua atuação, aliás, ela faz parte
integrante deste processo. Cobrar do Estado um papel não apenas de
atenuante para as questões sociais e sim atuante nas questões, neste caso
abordadas, educacionais. Deixar na responsabilidade da 3 Via, questões
educacionais que irão se refletir em toda a sociedade, tendo o Estado
apenas como fornecer de recursos para que isto aconteça, não irá garantir
qualidade e rigorosidade nas ações do que é esperado.
Cabe a sociedade civil, um olhar mais atento na questão de
Programas Educacionais inseridos pelo Governo Federal, e o
acompanhamento do Estado nestas questões. Jovens brasileiros inseridos
no campo do trabalho, tem o seu papel no crescimento e
desenvolvimento do país, mas não se deve deixar de lado o seu
crescimento pessoal e profissional, sua busca por uma formação de
qualidade, pois desta forma sua inserção ao mercado pode ser mais
tardia, porém muito mais especializada, refletindo benefícios também
para a sociedade.
O que não se pode permitir, é a busca de resultados imediatistas,
para amenização dos problemas sociais, prevalecendo a lógica do
mercado, por parte da Estado sob uma influência neoliberal, que se
preocupa com os benefícios econômicos e não com o crescimento
intelectual dos jovens brasileiros.

REFERÊNCIAS
BARRETO, R. G.; LEHER, R.; Trabalho docente e as reformas neoliberais. In: 21
OLIVEIRA, Dalida Andrade (org). Reformas Educacionais na América
Latina e os Trabalhadores Docentes. Belo Horizonte, MG: Autêntica,
2003. p.39-60.
BARROSO, João. O reforço da autonomia das escolas e a flexibilização da
gestão escolar em Portugal. In: FERREIRA, Naura S. C. (org). Gestão
Democrática da Educação: atuais tendências, novos desafios. São Paulo:
Cortez, 1998.
BRANDAO, Gilberto; A Evolução da influência do G20 em relação ao G7,
2009. Disponível em:
(http://www.administradores.com.br/artigos/economia-e-financas/a-
evolucao-da-influencia-do-g20-em-relacao-ao-g7/34726/). Acessado em:
20 de agosto de 2016.
BRASIL, Ministério do Trabalho e Emprego. Manual da Aprendizagem: o
que é preciso saber para contratar o jovem aprendiz. 2. ed. rev. ampl.
Brasília: Ministério do Trabalho e Emprego, 2008. 59 p. [000885444] MTE
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil. Brasília, DF, Senado,1998.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação - CNE. Parecer n° 39/2004.
Aplicação do Decreto n° 5.154/2004 na Educação Profissional Técnica de
nível médio e no Ensino Médio. Brasília, DF: MEC, 2004.
GRAMSCI, Antonio; Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 6. ed. Rio
de Janeiro: ivilização Brasileira, 1988.
GOHN, Maria da Glória.; Os sem-terra, ONGs e cidadania. São Paulo:
Cortez, 1997.
HARVEY, David; Condição Pós- moderna. 4. ed. São Paulo: Loyola, 1989.
MELO, S.; DUARTE, A.; Políticas para o Ensino Médio: perspectivas para a
universalização, Cad.CEDES vol.31 no.84 Campinas. 2011. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
32622011000200005 Acessado em 20/08/2016.
MIMESSE, Eliane; O Ensino Profissional obrigatório de 2º Grau nas décadas
de 70 e 80 e as aulas dos professores de história, Revista HISTEDBR
Online, Campinas, n.26, p105 –113, jun. 2007
MONTAÑO, Carlos; Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão
emergente de intervenção. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
MORAES, Reginaldo Neoliberalismo: de onde vem para onde vai? São
Paulo: Senac São Paulo, 2001. 22
NASCIMENTO, Amauri Mascaro O contrato de aprendizagem e as
alterações introduzidas pela lei nº 10.097/2000.
NOSELA, Paolo. Ensino Médio: unitário ou multiforme? Revista Brasileira
de Educação. V.20 n.60 jan-mar.2015, p.121-142.

PALMA FILHO, João Cardoso As reformas curriculares do ensino estadual


paulista no período de 1960 a 1990. Tese (Doutorado). Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 1996.
PERONI, Vera Maria Vidal Política educacional e papel do Estado: no
Brasil dos anos 1990. São Paulo: Xamã, 2003.
PINTO, Celia Regina Jardim As ONGs e a política no Brasil: presença de
novos atores. Rio de Janeiro, v. 49, n. 3, 2006. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid =S0011-
52582006000300008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 agosto 2016.
POPKEWITZ, Thomas Reforma educacional: uma política sociológica.
Porto Alegre: Artmed, 1997.
SACRISTÁN, Gimeno.; Reformas educativas y reforma del currículo:
anotaciones a partir de la experiencia española. In: WARDE, M. J. (Org.)
Novas políticas educacionais: críticas e perspecticas. São Paulo: Programa
de Estudos Pós-Graduados em Educação: História e Filosofia da Educação
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1998.
SANTOS, R.R.dos; Breve Histórico do Ensino Médio no Brasil.
In.Seminário, Cultura e Política na Primeira República: Campanha Civilista
na Bahia, UESC, 2010.
TOMASI, L. de; WARDE M.; HADDAD, S. O Banco Mundial e as políticas
educacionais. São Paulo: Cortez, 1996.
PODER, JUSTIÇA E PUNIÇÃO: REFLEXÕES SOBRE JUSTIÇA NA
AMÉRICA ESPANHOLA NOS SÉCULOS XVII E XVIII

Denis Henrique Fiuza1


Rodrigo dos Santos2

Resumo: A América latina colonial foi palco de inúmeras relações sociais diversificadas, 1
que se iniciaram com um choque causado pelo contato entre sociedades nativas e
europeia. Essas relações foram conflituosas, de um lado os europeus, com sua
ganância por riquezas e poder, entre eles, os religiosos em busca de novas almas, e de
outro lado, os povos nativos, com sua cultura, com suas crenças, com sua organização
política. Nesse contexto, os colonizadores europeus construíram um sistema de justiça
e de punição em suas colônias para controlar e disciplinar a sociedade. O objetivo
desse trabalho é analisar alguns aspectos da prática de poder, de justiça e de punição
na América Latina colonial, tendo como objeto algumas obras historiográficas que
refletiram sobre os poderes locais e a justiça no período colonial no século XVII.
Especificamente analisamos duas obras de Antonio Manuel Hespanha (2006; 2001) e
duas de Rafael Ruiz (2001; 2010).
Palavras chave: América Latina, Antigo Regime, Justiça, Crime.

Abstract: The colonial Latin America was the scene of numerous diverse social
relations that began with a shock caused by contact between native and European
societies. These relations were conflictual, a European side, with their greed for wealth
and power, among them religious in search of new souls, and on the other hand, the
native people, their culture, their beliefs with your organization policy. In this context,
the European settlers built a system of justice and punishment in their colonies to
control and discipline society. The aim of this study is to analyze some aspects of the
practice of power, justice and punishment in colonial Latin America, with the object
some historiographical works that reflected on the local authorities and justice in the
colonial period in the seventeenth century. Specifically we analyze two works by
Antonio Manuel Hespanha (2006; 2001) and two of Rafael Ruiz (2001; 2010).
Keywords: Latin America, Old Regime, Justice, Crime.

1
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Estadual do Centro-
Oeste, Unicentro/PR. E-mail: denis-fiuza@hotmail.com
2
Graduado em História (UNICENTRO). Especialista em Educação do Campo (ESAP) e Docência do Ensino
Superior (UNOPAR). Mestre em História (UNICENTRO). Atualmente é professor substituto da
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS/campus Laranjeiras do Sul.
E-mail: digao_santos9@hotmail.com
Introdução

Esse trabalho analisa as discussões bibliográficas feitas por


Hespanha3, e Ruiz4 que se debruçaram sobre o tema e lançaram novas
perspectivas sobre a história política da América Latina colonial. O
2
principal objetivo desse trabalho é demonstrar que a cultura política do
Antigo Regime americano não se resume a criação de leis por parte dos
europeus em relação aos “abusos” dos nativos e dos escravos, como
comumente e apresentado, e assim, destacamos a atuação de uma
historiografia revisionista do tema que vem aprofundando as reflexões
sobre esse período e apontando novas perspectivas.
É comum encontrar analises históricas sobre direito criminal que
expressam uma história do crime e da justiça na américa no período
colonial que resumem a uma releitura de textos legais, ou ainda, que se
pode construir a história de sistemas penais e de controle focando apenas
nos textos, sem compreender a realidade social e temporal que se
estabeleceu nessas relações. Com base nesse pressuposto, Antonio
Manuel Hespanha e Rafael Ruiz realizaram uma série de estudos e
demonstraram que as relações de poder e os sistemas de punição da
América Latina do período colonial tem sido negligenciadas pelos
historiadores.
António Manuel Hespanha é professor da Faculdade de Direito da
Universidade Nova de Lisboa e nas últimas quatro décadas, tem realizado

3
Obras utilizadas: “As Estruturas Políticas em Portugal na Época Moderna” de 2001 e Direito comum e
direito colonial, 2006.
4
Obras utilizadas: Os Espaços da Ambiguidade: os poderes locais e a justiça na América Espanhola do
século XVII, e Hermenêutica e justiça na América do século XVII.
diversas investigações nas áreas de história do direito, história política, e
teoria do direito. Além disso, nas duas obras aqui utilizadas, o autor se
pautou tanto nos textos quanto na relação desses textos com as
instituições, com o poder local, com a cultura dos povos em questão,
enfim, com a realidade social. 3

Além de Hespanha, iremos analisar duas obras de Rafael Ruiz,


doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Ruiz desenvolve
atualmente o Projeto "Direitos e Justiça nas Américas", financiado pela
FAPESP, além de atuar na área de história da América. Ambos os autores
refletem sobre a relação entre legislação e as diferentes realidades locais
da América colonial.
Dividimos esse trabalho em quatro tópicos. No primeiro, abordamos
as principais reflexões já realizadas no campo da história sobre justiça na
América Latina colonial. Em seguida apresentamos as principais discussões
feitas por Ruiz e Hespanha em relação ao sistema penal no Antigo Regime.
No terceiro tópico enfatizamos a estrutura do direito penal na América
Colonial e suas principais características, e por fim, destaca-se no último
tópico, alguns traços da chamada “teoria do probabilismo” a partir da
análise feita por Rafael Ruiz.

Justiça e punição na escrita da história


Tanto Ruiz, quando Hespanha destacam que a principal lacuna
deixada pela historiografia jurídico-institucional, seria aquela causada pelo
seu “viés dogmático”. Segundo Hespanha (2001, p. 15): “os textos não são
um espelho da realidade social, são antes uma construção e um filtro de 4
ideias, que colaboram com o poder de uma classe e a marginalização de
outra”.
Nesse sentido, o objetivo desses autores é demonstrar que os
códigos penais e os estatutos valorizam alguns aspectos e silenciam-se em
relação a outros, por isso a escrita da história não deve apenas absorver
suas fontes, mas deve questioná-las, analisá-las e compreende-las a partir
de quem as escreveu.
Nessa perspectiva, Hartog (1999, p. 37) destaca que “[...] o mundo
que se conta encontra-se no mundo em que conta”, e continua “não é
tanto a quantidade de informação nova que deve-se levar em conta, mas
seu tratamento pelo narrador”, é nessa perspectiva que o trabalho desses
autores procura analisar a política penal a partir do narrador dos
documentos penais e políticos, para compreender seus interesses e seu
lugar na sociedade, em outras palavras, compreender o contexto em que
esses textos são produzidos.
Ao refletirmos sobre a prática da justiça durante a colonização
europeia, no Antigo Regime, podemos nos perguntar: o que as leis
representavam para os homens e mulheres da época, para os diferentes
sujeitos sociais? Qual era o nível de aplicabilidade dessas leis? Como se
deu a configuração dessas leis com o passar dos anos? Porque as mesmas
leis não têm o mesmo significado em temporalidades diferentes? São
essas algumas questões abordadas por Hespanha e Ruiz.
Hespanha utiliza como fonte para seu trabalho a construção do
Código Criminal de Pascoal de Melo, elaborado nos séculos XVII e XVIII,
sendo que suas discussões e analises nos ajudam a compreender o 5

contexto social e político em que se desenrolavam os poderes e a justiça


no Antigo Regime americano. Já Ruiz (2010), analisa os textos de oito
juristas, moralistas e teólogos, seis da primeira metade do século XVII e
dois da segunda metade, e ainda uma obra do teólogo e moralista
dominicano italiano Daniel Concina, publicada em 1773.

O sistema penal no Antigo Regime

Hespanha (2001, p. 12) resume o sistema penal do Antigo Regime


com a seguinte frase: “De se fazer temer, ameaçando; de se fazer amar,
não cumprindo”. Segundo alguns dados expressos pelo autor, a pena mais
comum nessa época era a de degredo, uma ramificação da pena de morte,
pouco aplicada, e que podia ser de duas formas, por morte natural (morte
física) ou civil (expressa pelo degredo).
Segundo Hespanha (2006, p. 96), a prática do direito no início do
período colonial foi exercida com dificuldade devido à falta de pessoas
para ocuparem os postos da estrutura jurídica, além disso, há uma
diferença entre a ação judicial na américa portuguesa e na américa
espanhola, sendo que, segundo o autor, a monarquia portuguesa
promulgou poucas leis para o Brasil, bem menos que a espanhola no
restante da américa.
Segundo Ruiz (2010), o sentido da política penal do antigo regime se
encontra na disciplina do corpo social, por isso todas as atitudes da
monarquia visavam se fazer temer para que se respeitasse e se fazer amar 6

pelo efeito de benevolência das autoridades que se passava pela não


aplicabilidade do cumprimento das penas. Segundo o autor, a presença
dos juízes era inegável, mas a sua atuação era a de mediação, entre o
indivíduo e a lei, e os processos mostram poucas condenações, a maioria
coloca o juiz como aquele que a absolve a todos e livra a maioria dos réus,
mas a uma prática diversificada como destaca ainda Ruiz (2010, p. 83):

[...] a partir da segunda metade do XVIII até o final


do período colonial a justiça estaria caracterizada
pela prevalência da lei sobre os costumes e sobre as
diferentes opiniões dos juristas, de maneira que,
em lugar de diferentes costumes ou leis para
diferentes casos ou cidades, haveria uma única lei
que seria aplicada de forma homogênea para todos.

Tanto Ruiz, quanto Hespanha demonstram que o perdão e a


designação das penas sempre iam de encontro com a função disciplinaria
da justiça. Segundo Hespanha (2001), o uso da fiança, os livramentos e o
perdão não diminuíam o rigor ou silenciavam-se diante dos crimes, mas a
função didática era sempre favorecida, para que a imagem do rei, bíblica e
simbólica, resultado do período medieval, deveria ser conservada, e
através dos julgamentos ele se mostraria justiceiro enquanto que através
da clemencia ele se mostrava o “pai e pastor” que perdoava seus vassalos,
e tudo isso legitimava seu poder, nesse sentido Hespanha (1987. p 560)
destaca que:

[...] A mesma mão que ameaçava com castigos


impiedosos, prodigalizava, chegado o momento, as
medidas de graça. Por esta dialectica do terror e da 7
clemencia, o rei constituía-se, ao mesmo tempo, em
senhor da Justiça e mediador da Graça. Se investia
no temor, não investia menos no amor. Tal como
Deus, ele desdobrava-se na figura do Pai justiceiro e
do Filho doce e amável.

Sendo assim, os homens e mulheres da época se habituaram a


obediência, pois, antes e depois do crime se mantem a ligação com o
poder. Assim o poder se exercia de forma coercitiva, mas atingindo o
grupo social como um todo. Hespanha (1998.p. 128) demonstra que as leis
desenvolvidas e as penas fixadas eram em sua maioria formas de
disciplinar, mas que dificilmente chegam ao ponto da consumação final da
punição, pois isso geraria um sentimento de desconfiança dos súditos.
Podemos perceber então, que a tese de Hespanha de que é preciso
buscar o direito praticado e que o poder local era singular, devemos, pois,
procurar compreender a justiça e a punição em seu contexto social e
cultural. Hespanha (1998) define a estrutura do direito, afirmando que é
preciso mergulhar na realidade institucional, no sistema do poder político
do da metrópole e da colonia, para perceber como se desenrolava as
tramas do poder, como ele funcionava, o que o tornava possível, e como
era aplicada a disciplina dos corpos.
A estrutura do direito penal na América Colonial

Hespanha (1998, p. 130) destaca que na monarquia espanhola o


poder real partilhava o poder político com poderes de maior ou menor
hierarquia, e o direito legislativo da metrópole era limitado e praticado 8

pelos juristas estatais e pelos usos e práticas jurídicos locais, além disso,
os deveres políticos davam lugar para sentimentos religiosos e morais
como piedade, misericórdia, gratidão ou até mesmo, laços de amizade.
Sendo assim, no Antigo Regime, como aponta Hespanha (1998, p. 130),
não existiria, portanto, separação entre Estado e sociedade civil. Os
poderes das instituições, das classes superiores, da religião em especial
eram destinados a manter o equilíbrio natural da sociedade.
Mas como observou Hespanha (2001, p. 03), durante o período
colonial, tanto nos países ibéricos, quanto em suas colônias, o sistema
penal que vigorou foi aquele onde os poderes periféricos eram
orquestrados pelo poder real e o domínio da punição era exercido como
uma forma de disciplinar através de ações punitivas e cotidianas exercidas
pelos poderes locais, onde a intervenção real era apenas simbólica.
Hespanha (2001, p. 02), demonstra que na sociedade monárquica a
grande função do direito penal não é a de manter a ordem da sociedade,
pois, as organizações sem estado do Antigo Regime não possuíam meios
para tal atividade, a Espanha, detentora de várias colônias na América,
não tinha base institucional que desse conta de subsidiar possíveis
punições através de lugares que concentrassem os criminosos. Em muitas
colônias ela não possuía totalmente o domínio territorial, menos ainda o
domínio do aparelho judiciário que era então controlado pelos poderes
locais.
Com o surgimento e a expansão do iluminismo o direito criminal
tomou uma nova forma nos países europeus, principalmente Portugal e
Espanha e, e suas colônias consequentemente. O poder real se configurou 9

significativamente, passando por simbólico para mantenedor da justiça. A


ordem social toma o primeiro plano nessa nova monarquia de viés
estatalista sustentada pelo poder central, a coroa.

Rafael Ruiz e a teoria do probabilismo

Ruiz (2011), apresenta o chamado “Probabilismo da Teologia moral


no Antigo Regime”, que segundo ele, é essencial para a compreensão das
estruturas judiciais da época. Segundo o autor, a compreensão do
funcionamento da justiça na América Latina Colonial passa pelo
entendimento dessa perspectiva, segundo ele, é importante compreender
como se dava o probabilismo, o que significava e para quem iria se se
aplicar.
Segundo Ruiz (2010, p. 85) “o probabilismo era uma das várias
escolas em que a teologia moral católica se dividiu ao longo do século
XVII” e teria se desenvolvido em uma época em que o poder do rei não
era mais absoluto e sim dividido. Segundo o autor, o monarca tinha
autoridade mais para assuntos gerais, e quem administraria os problemas
menores ou em lugares mais distante seriam os administradores, ou seja,
os juízes, as câmaras e todos aqueles que de uma forma ou outra de
tinham o poder no âmbito local.
Assim, o probabilismo se desenvolveu, segundo Ruiz (2010), como
uma corrente de pensamento na América espanhola, e só aí se tornou
concreto de forma plena. O problema a se discutir era na questão da
esfera religiosa. Ruiz (2010) destaca que ainda no Antigo Regime era difícil 10

essa desvinculação do poder eclesiástico porque a maioria dos delitos e


crimes em geral que ocorriam eram contra os preceitos da religião e o juiz
que estava localizado próximo a igreja.
Mas, segundo Ruiz (2010) esse regime começou a declinar, ou seja,
começou a sofrer mudanças, e é nessas mudanças que Ruiz localiza o
probabilismo, como sendo a autonomia das localidades sobre suas leis,
movimento que ganha força, por isso, o autor aponta que no Estado
Moderno, os privilégios jurisdicionais que tem grande relação com a igreja
diminuem.
Sendo assim, o probabilismo, como Ruiz descreve, é uma corrente
que se desenvolveu no mundo ibérico, onde o juiz não dava sua sentença
sozinho, ele se apoiava em outras decisões, levando em conta também as
circunstâncias locais para no fim tomar a sua própria decisão.
Devido a esses e outros fatores, o poder local se torna cada vez
mais flexível. As pessoas podiam progressivamente se adaptar a leis, sem
seguir exatamente o texto onde estava decretada, podiam também
influenciar na criação de novas, tudo dependia do que estava sendo
questionado ou quem era a pessoa que recorria ao poder judiciário.
Essa corrente do probabilismo se espalhou com tanta força que a
igreja começou a temer pelo se poder, a palavra probabilismo se tornou
um a referência na América espanhola do século XVII.
O sistema punitivo também se desenvolve nesse momento, se
antes ele era plano de símbolo agora exerce a fiscalização pelas leis de
forma pratica. O século XVII para coroa espanhola foi um momento
intenso de legitimação do seu poder, as táticas usadas foram, segundo 11

Hespanha (2001, p. 13), foram a limitação dos poderes locais, o


fortalecimento da pratica da pena de morte com caráter exemplar,
investimentos pesados na formação dos juristas e as reformas na
universidade e nos cursos de direito.

Conclusão

Uma de nossas principais premissas desse trabalho, foi realizar uma


interpretação básica do contexto jurídico e político do Antigo Regime
americano e apresentar a parte historiografia revisionista que construiu
uma história social do direito e da pena da América Latina colonial, de
certa forma, esses historiadores renovaram esse tipo de escrita da
história, ao focar no contexto social que levou a construção dos códigos
jurídicos.
As obras aqui analisadas demonstraram a importância da
interpretação da realidade social, dos fatos e dos costumes, e não apenas
a análise do texto em si das leis. Hespanha e Ruiz procuraram extrair das
fontes históricas resgatadas desse período, as diferentes interpretações
das leis regias, para demonstrar que as leis e os códigos de justiça, e as
sentenças de punição eram porosas e plásticas.
Referências bibliográficas

CARDIM, Pedro. Entrevista a António Manuel Hespanha por Pedro Cardim.


Análise Social, vol. XLVI (200), 2011, 430-445. 12

HARTOG, François. O Espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação


do outro. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1999.

HESPANHA, Antonio Manuel. As Estruturas Políticas em Portugal na Época


Moderna.

HESPANHA, Antonio Manuel. A constituição do Império português.


Revisão de alguns enviesamentos correntes. IN: FRAGOSO, João (org.) O
antigo regime nos trópicos; a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI –
XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

___________. Direito comum e direito colonial. Panóptica, Vitória, ano 1,


n. 3, nov. 2006, p. 95-116. Disponível em: <http:www.panoptica.org>.
Acesso em: 30/07/2016.

RUIZ, Rafael. Os espaços da ambiguidade os poderes locais e a justiça na


América Espanhola do século XVII. Revista de História. Num 163, julho-
dezembro, 2010.

___________. Hermenêutica e justiça na América do século XVII. Anais do


XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.
O FILME COMO AUXILIAR DIDÁTICO NO ENSINO DE
HISTÓRIA ANTIGA: ANALISANDO O PRIMEIRO EPISÓDIO
DA SÉRIE ROMA
Flaviano Oliveira dos Santos
1

Resumo: O uso de materiais audiovisuais no processo de aprendizagem tem sido um


aliado dos professores, auxiliando de forma válida em suas aulas. A compreensão do
fato de que a produção audiovisual pode ser usada como fonte de apreensão do
passado e do momento de produção é irrefutável. O seu uso constitui uma forma de
conciliar o ensino com elementos do cotidiano dos alunos. Desta forma, o presente
trabalho tem como objetivo demonstrar a possibilidade de abordagem do recurso
audiovisual em aulas de História Antiga, através da série televisiva Roma.

Palavras-chave: Ensino de História – Recurso audiovisual – Série Roma.

Abstract: The use of audiovisual materials in the learning process has been an ally of
teachers, helping in a valid way their classes. Understanding the fact that the
audiovisual production can be used as a source of concern of the past and the moment
of production it’s irrefutable. Its use is a way to reconcile the teaching with everyday
elements. Thus, this study aims to demonstrate the possibility of the audiovisual
resources approach in Ancient History lessons through the television series Rome.

Keywords: History teaching - Audiovisual Resource - Series Rome.


Introdução
"Podemos entender o exercício profissional da História de muitas
formas. Vamos optar pela seguinte possibilidade: fazer um texto de
Historia é estabelecer o diálogo entre o passado e o presente." (KARNAL,
2007, p. 7). A opção adotada por Karnal é de caráter simples e complexo 2

ao mesmo tempo, pois tal diálogo consiste numa das ações mais
necessárias de serem realizadas.
Compartilhando o pensamento de que é tarefa do professor de
história, e dos demais educadores, promover o constante diálogo entre o
passado e o presente, procura-se aqui contribuir com esta questão que
deve ser prática constante na trajetória dos educadores.
Pode parecer simples já que o diálogo tem apontado que se trata de
um "objeto delicado" que requer extremo cuidado do educador em
diferentes aspectos. No decorrer processo deve-se atentar tanto para os
assuntos abordados como também para os instrumentos e as ferramentas
utilizadas no momento do processo de ensino-aprendizagem.
A difícil tarefa pedagógica é parte de uma ampla discussão que vem
sendo renovada à medida que os debates acalorados sobre o Ensino de
História têm cada vez mais ocorrido por todo o país. Um dos assuntos
debatidos envolvendo o papel do professor e o ensino de História diz
respeito ao uso de novas metodologias e ferramentas como forma de
facilitação e pluralidade do ensino na sala de aula. Tendo em vista este
importante diálogo, aqui abordaremos o uso da produção audiovisual no
Ensino de História, mais especificamente à História Antiga.
O uso de instrumentos audiovisuais nas aulas de História: cuidados a
serem tomados
Pensar sobre os modos de como trabalhar em sala de aula os
assuntos necessários para o desenvolvimento do pensamento crítico dos
alunos, decidir o que se deve priorizar em meio às dificuldades do 3

cotidiano, ajudando-os a refletir criticamente para compreender a sua


realidade, é essencial e uma tarefa da qual nenhum professor deve se
abster. Por isso a inovação no processo de ensino-aprendizagem torna-se
não somente viável, mas também, imprescindível. Ao trazer esta discussão
para o campo da História, podemos apontar um grande avanço em relação
ao modo de se tratar e abordar os domínios do historiador quando a
chamada "revolução dos Annales" possibilitou o uso de novas
problemáticas e abordagens para o campo historiográfico, inclusive
abrindo as portas também, para o uso do audiovisual como fonte de
investigação por parte do historiador, e concomitantemente, a sua
utilização no ensino de História.
De certa forma, como defesa para a utilização deste recurso
didático-pedagógico no ensino, elencamos dois fatores favoráveis a sua
utilização: o primeiro é a evidência da atração, fascinação que a imagem
traz para os alunos; e o segundo é o fator de que tais recursos de imagens
em movimento encontram-se acessíveis aos alunos, seja por meio da
internet, locadoras, sistemas educacionais (ABUD, 2003, p.183), DVD's etc.
As facilidades de obtenção e visualização de tais materiais são formas de
democratização e difusão do ensino. Além desses fatores, também é
constatado que 50% do que é apreendido pelo aluno corresponde à
audição e à visão, além de reterem uma informação mais duradoura
(PROENÇA, 1990, p. 106 apud ABUD, 2003, p. 189). Desta forma, a
produção audiovisual funciona como instrumento processador de
símbolos sociais e culturais, opondo uma representação de realidade a da
vivenciada pelo aluno, confrontando fatores do cotidiano e estimulando o 4

pensamento crítico sob as instâncias do mundo de convívio. As imagens


incitam a mente dos alunos em comparações, relações e ponderações da
realidade, criando uma pluralidade interpretativa na sala de aula, e o mais
importante, ocasionando o surgimento de perguntas, tornando-os
inquietos da melhor maneira, e fazendo com que a aula flua melhor ao ser
inundada de problemáticas. Creio que um bom professor não repudie
bons questionamentos.
No entanto, apesar de viável, a utilização de produções audiovisuais
em sala de aula, sejam eles documentários, filmes, desenhos animados,
seriados televisivos, videogames etc., não significa que o recurso deva ser
utilizado por ele mesmo. Nenhuma produção de gênero fílmico encerra
em si mesmo a verdade (KORNIS, 1992, p. 243). Sem um preparo do
professor e de um método específico para abordagem e relacionamento
com a discussão a ser levantada na sala de aula, o instrumento auxiliar
perde sua validade. Desta forma, o professor/historiador deve
primeiramente educar o seu olhar para adequar-se à análise do
audiovisual, antes de empreender o seu uso, devendo identificar o que a
produção diz ou não diz, voluntária ou involuntariamente.
Neste processo de treinamento do olhar, o professor deve
posicionar-se frente à produção e encará-la como fonte que a mesma é.
Desta forma, o professor deve munir-se de indagações em relação ao
material abordado. Podem ser feitas algumas perguntas como: Quem
produziu o material? Quando e onde foi produzido? O que diz ou o que
não diz? Para que e para quem foi feito? Qual público é o seu foco? Quais
estratégias de apreensão utiliza? Quais aspectos eminentes da sociedade 5

ele se centra? Por quê? etc.; além das respostas dessas perguntas, o
professor deve realizar ponderações sobre o conteúdo explicitado pela
produção, atentando sempre, no uso em sala de aula, para a faixa etária
de indicações da produção e para as cenas inapropriadas para seus alunos,
que não contribuem para o direcionamento dado a aula.
Portanto, após falarmos da viabilidade da utilização de produções
audiovisuais para o Ensino de História, como também da necessidade da
análise do material e preparação do professor para este modo
diversificado de ensino, salientamos que o audiovisual é uma boa
alternativa para tornar o ensino mais agradável, retirando o caráter
positivista, de uma história somente de grandes personagens e datas
marcantes. Por fim, atento para o fato de que o audiovisual é um recurso
auxiliador do professor, e não um substituto deste.

Possibilidade de uso do audiovisual no ensino de História Antiga: seriado


Roma
Agora o nosso objetivo gira em torno de apresentarmos uma
proposta de intervenção na sala de aula, efetuada pelo professor, com a
utilização do recurso audiovisual. Desta forma, optou-se aqui pelo
desenvolvimento da ação direcionando-a para a temática da Antiguidade,
mais especificamente para a sociedade romana no período de conflito
entre os cônsules César e Pompeu, que é retratada, com suas
especificidades, no primeiro episódio do seriado televisivo Roma. Esta
exemplificação fez parte do trabalho desenvolvido junto à disciplina de
"História Antiga II" do curso de História da Universidade Estadual do Ceará 6

(UECE) no semestre 2014.2, e do projeto de iniciação científica "Ver e


aprender História Antiga: análise do seriado televisivo Roma como
instrumento didático-pedagógico"1.
Para a utilização do material o primeiro passo a ser tomado deve ser
o preenchimento de uma ficha técnica para o material e o episódio
analisado:

MATERIAL
- TÍTULO: Rome ( Roma)
- SINOPSE: Quatrocentos anos depois da formação da República, Roma é a cidade
mais abastada do mundo, uma metrópole cosmopolita com um milhão de habitantes,
o epicentro de um imenso império. Os valores sobre os quais a República foi fundada -
a partilha do poder e uma feroz competitividade entre indivíduos - impediram que um
só homem pudesse tomar o poder absoluto. Mas agora, a corrupção e os excessos
conseguiram corroer os mais nobres princípios. Após oito anos de guerra, os soldados
Lucius Vorenus e Titus Pullo são envolvidos, contra a sua vontade, nos movimentados
eventos históricos da Roma Antiga. Uma série dramática sobre o amor e a traição,
escravos e os seus mestres, maridos e mulheres, ROME retrata uma era turbulenta,
durante a qual se assistiu à morte de uma República e ao nascimento de um Império.
- PRODUÇÃO: HBO (Home Box Office), BBC (British Broadcasting Corporation) e RAI
Fiction (Radiotelevisione italiana S.p.A.)

- PAÍSES DE PRODUÇÃO: Estados Unidos da América, Reino Unido, Itália.


- ANO DE PRODUÇÃO: 2005-2007.

1
Projeto coordenado pela Profª. Drª. Silvia Márcia Alves Siqueira (UECE), com participação dos
graduandos em História (UECE): Flaviano Oliveira dos Santos; Ruben Ryan Gomes de Oliveira; e José
Lucas Bastos Cruz Moura.
- FORMATO: Audiovisual Série para TV.
- GÊNERO: Histórico, dramático, ação.
- TEMPORADAS: Duas.
- EPISÓDIOS: 22 (primeira temporada com 12 episódios, segunda temporada com 10
episódios).
- DURAÇÃO: 50 minutos (média por episódio).
- IDIOMA ORIGINAL: inglês.
- IDEALIZADORES: Bruno Heller, John Milius, William J. Macdonald. 7

EPISÓDIO
- TÍTULO: The Stolen Eagle (A águia roubada)
- SINOPSE: Dois soldados romanos se vêem em meio a uma guerra pelo controle da
Roma antiga, durante uma turbulenta era em que a luta entre a cobiça e a honra
definirá a morte de uma república e o nascimento de um império.
- DATA DA PRIMEIRA EXIBIÇÃO DO EPISÓDIO: 28/08/2005.
- DURAÇÃO: 53 minutos

Após o porte das informações técnicas, o professor deve agir como


apontado anteriormente. Pois é tarefa do professor identificar o que o
material diz, sua utilidade, seus imperativos, intencionalidades, não-
intencionalidades e por fim adaptar este recurso para a sala de aula.
Terminada a análise e o balanceamento do instrumento audiovisual,
o professor deve ponderar suas reflexões sobre o assunto e o material,
expondo-as em sala, como forma de complemento para a sua explicação e
para o conteúdo contido no livro didático. Saber relacionar o conteúdo
exigido com o material apresentado, instigando o debate entre os alunos
é tarefa do professor. Aqui foram analisados três livros didáticos de
história indicados pelo governo através do Programa Nacional do Livro
Didático para o Ensino Médio (PNLEM): História: volume único, da editora
Ática (FIGUEIRA, 2005), História: das cavernas ao terceiro milênio, da
editora Moderna (MOTA, 2005) e História geral e do Brasil, da editora
Harbra (FREITAS NETO, 2006).
Como última ficha, coloco aqui uma proposta de abordagem do
primeiro episódio do seriado Roma:
8

Proposta de intervenção com audiovisual:


- MATERIAL:
Série Roma – 1º episódio.
- ANO DIRECIONADO:
1º ano do Ensino Médio.
- MODO DE UTILIZAÇÃO:
Episódio editado, média de 30 minutos de duração.
- TEMAS PARA REFLEXÃO, PESQUISA E DEBATE:
Sociedade romana na Guerra Civil; fim do sistema republicano romano?;
expansionismo romano; classe dominante; plebe romana; estrutura política;
constituição militar; religião romana; vestuário; estrutura da cidade; grandes
personagens; “os excluídos da história”; escravidão; sistema familiar romano.
- OBJETIVOS:
OBJETIVO GERAL:
 Identificar e refletir o contexto social romano, discutindo o processo de
mudanças em sua estrutura e os aspectos socioculturais envolvidos;
OBJETIVOS ESPECÍFICOS:
 Proporcionar a compreensão da passagem de regimes de poder em Roma,
evidenciando o que viria futuramente a culminar no Império;
 Identificar hábitos e costumes tanto na vida pública como na vida privado
daquela sociedade;
 Entender o sistema político da chamada República romana através do Senado
romano que é retratado;
 Analisar aspectos da religião romana, relacionando-a com as cenas.
- CONTEXTO HISTÓRICO DO EPISÓDIO:
Conflitos civis em Roma. Conquista da Gália por Caio Júlio César e seu retorno a
Roma.
- A RELAÇÃO ENTRE A TELA E O ESPECTADOR:
Desenvolvimento do senso crítico do aluno ao comparar a sociedade romana com
suas desigualdades e com seu sistema político, social e cultura, com a sociedade
contemporânea, focando na organização política e nas relações cotidianas do meio
público e privado, além do estimulo ao estudo da língua inglesa, sendo opcional do
professor, ao passar o seriado em inglês ou português.
- ELEMENTOS DO EPISÓDIO QUE PODEM POTENCIALIZAR O CONHECMENTO
HISTÓRICO:
 O momento de conflito onde as mudanças acontecem;
 Visualização da sociedade romana em detalhes através da reconstituição da
cidade, da vestimenta dos personagens. Fato que nem todos os livros didáticos
trazem ilustrados;
 Reflexão sobre os conceitos de: República, escravidão, religião pagã, classe e
poder. 9

Conclusão
Finalizada a proposta, apresentamos nestas pequenas reflexões a
possibilidade da utilização do audiovisual nas aulas de História. As formas
e modos de análise mostram-se inúmeras, cabendo ao professor saber
explorá-las conscientemente, não de forma "despreocupada", visando
sempre o aprendizado do aluno. Mas sobretudo possibilitar que os alunos
verbalizem o seu aprendizado, inclusive proporcionando para ele outras
leituras que possam contribuir para pensar sobre o que é uma fonte
histórica.

Referências
Material:
ROMA (Rome). Idealizado por Bruno Heller, John Milius, William J.
Macdonald. Estados Unidos da América, Reino Unido, Itália: HBO, BBC, RAI
Fiction. 2005-2007. (Seriado televisivo) DVD.

Livros didáticos analisados:


FIGUEIRA, Divalti Garcia. História: volume único. 1 ed. São Paulo: Ática,
2005.
FREITAS NETO, José Alves de. História geral e do Brasil. São Paulo:
HARBRA, 2006.
MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio. 1.ed. -
São Paulo: Moderna, 2005.
Referências Bibliográficas:
ABUD, K. M. A construção de uma Didática da História: algumas ideias
sobre a utilização de filmes no ensino. História. São Paulo, v.22, n. 1, pp.
183 a 193, 2003.
AQUINO, E. D. Cinema em foco: Abordagens
cinematográfica\historiográfica no ensino de história. In: XIII - Encontro 10
Estadual da Anpuh História e Historiografia: Entre o Nacional e o
Regional, 2008, Guarabira - Paraíba.
BARROS, José D'Assunção. "Cinema e História - considerações sobre os
usos historiográficos das fontes fílmicas". Comunicação & Sociedade. Ano
32, n°55. p.175-202.
BEHAR, Regina Maria Rodrigues. O Uso do Vídeo no Ensino de História.
João Pessoa: UFPB, 2000.
BEZERRA, Holien Gonçalves. Conceitos básicos: ensino de História:
conteúdos e conceitos básicos. In: KARNAL, Leandro (org.). História na
sala de aula: conceitos, práticas e propostas 5. ed. São Paulo: Contexto,
2007.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Documentos não escritos na sala
de aula. In: __. Ensino de História: fundamentos e métodos. 4ª Ed. São
Paulo: Cortez, 2011.
KARNAL, Leandro. Introdução. In: KARNAL, Leandro (org.). História na sala
de aula: conceitos, práticas e propostas. 5ª. ed. São Paulo: Contexto,
2007.
KORNIS, M. A. História e Cinema: um debate metodológico. Revista
Estudos Históricos, Vol. 5, Nº 10, 1992. p. 237-250.
NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo:
Contexto, 2003.
O SANEAMENTO URBANO NA IMPRENSA DA “CAPITAL DO
CARVÃO”: IMAGENS E REPRESENTAÇÕES EM TORNO DA ÁGUA
CANALIZADA EM CRICIÚMA/SC (1955-1970)

Adriana Fraga Vieira 1


1
Resumo: Uma nova forma de ver as águas da cidade emergiu nos discursos oficiais e nas
crônicas da impressa na década de 1960. As águas do espaço urbano começaram a
incomodar o poder público quando deixa em evidência a fragilidade do serviço na cidade ou
quando se opõe a construção de uma cidade idealizada. Este artigo discute como a
implantação da água canalizada em Criciúma/SC foi sendo alvo de discursos e práticas em
diferentes momentos da história da cidade. Destacam-se as principais intervenções feitas
pelo poder público e a luta pela apropriação desse melhoramento entre os diversos agentes
sociais, como também a cidade idealizada pelos articulistas da imprensa, elites políticas e
econômicas, e as tentativas de viabilização desta cidade sonhada, limpa, saneada e dotada
de moderna tecnologia. O artigo também pretendeu dar visibilidade ao relacionamento da
população com esses equipamentos, percebendo como é que eles foram historicamente
implantados e, assim, revelando diferenças sociais e diversas concepções de cidade.

Palavras-Chave: Melhoramento Urbano. Representações Urbanas. Modernidade.

Abstract: A new way to see the city waters came up during the official speeches and in the
press articles in the 1960’s. The waters from the urban area started to bother the public
power when they let the fragility of the city service evident or when they oppose to the
construction of and idealized city. This article discusses how the implementation of canalized
water in Criciúma/SC has been the target of discussions and practices td different historical
moments of the city. The man interventions made by the public power are highlighted as
well as the fight for achieving this improvement among the various social agents, and also
the idealized city by the press articulists, political and economic elites, and the efforts for the
viabilization of this dream, clean sanitated and provided with modern technology city. The
article also intended to clarify the relation of the population with this equipment, realizing
how it was historically implemented, and thus, revealing social differences and the various
city concepts.

Keywords: Urban improvement. Urban Representations. Modernity.

1
Doutoranda em história pela Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC.
“A cidade é produto da “arte humana”, simboliza o poder criador do

homem, a modificação/transformação do meio ambiente, a imagem de algo


2
artificial, um artefato enfim”. 2 Vivenciada e representada pelos seus produtores

e consumidores, a relação entre o homem e a cidade está sempre em constante

tensão, uma vez que o conceito de cidade-artefato proposto por Bresciani nos

leva a refletir que a cidade é um objeto inacabado por definição e por isso

mesmo sempre demanda ações de controle, normatização e intervenção,

gerando conflitos e representações do espaço incessantemente transformado.

Pensar o urbano como representação, para Pesavento, “implica

reconhecer que a cidade que temos e que, para nós, é real, na sua concretude

e no seu cotidiano, comporta em si outras cidades que ficaram no caminho,

realizadas ou não (...).”3 A idéia de representação é fundamental na medida

que coloca a cidade e os “planos construídos a seu respeito como um universo

simbólico, de textos, imagens, bem como suas diferentes formas de

2
BRESCIANI, Maria Stella. Cidade, Cidadania e Imaginário. IN: Pesavento; Souza. Imagens Urbanas: Os
Diversos Olhares na Formação do Imaginário Urbano. Porto Alegre: Ed. Da Universidade/ UFRGS, 1997, p.14.
3
PESAVENTO, Sandra Jatahi. Entre Práticas e Representações: A Cidade do Possível e a Cidade do Desejo. In:
RIBEIRO, Luiz César de Queiroz e PECHMANN, Robert (organizadores). Cidade, Povo e Nação – Gênese do
Urbanismo Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 377 - 396.
apresentar-se, que aspiram à universalidade e ao consenso, mas que são,

sempre, determinadas por grupos que a oficializam como gerais (...)” 4.

Articular historicamente o passado, como diria Walter Benjamim, “não


3
significa conhecê-lo tal como ele propriamente foi. Significa apoderar-se de

uma lembrança tal como ela cintila num instante de perigo” 5. Não espero aqui

descrever todos as práticas e percepções que permearam a instalação da água

canalizada, toda a luta por sua apropriação, os diferentes discursos e

representações. Até porque o passado não é um lugar pronto que podemos

visitar e descrever a totalidade tal como ela ocorreu, ao contrário, é impossível

ao historiador descrever a totalidade histórica 6.

O problema dos melhoramentos urbanos, em particular, revela-se como

um caminho de investigação da história da cidade, possibilitando a análise de

ações e projetos, imaginados ou implementados pelos representantes do

poder constituído. Os discursos e imagens produzidas a respeito dos

melhoramentos urbanos são indícios e fragmentos 7 que encadeados e tecidos

4
GIOVANAZ, Marlise. Em Busca da Cidade ideal: O Planejamento Urbanístico como objeto da História
Cultural. In: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul .
Anos 90. Porto Alegre: UFRGS, 2000, p.38-60.
5
BENJAMIM, Walter. Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense.
6
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. 3° ed. Brasília: UnB, 1995, p.43.
7
GINZBURG, Carlo. Raízes de uma Paradigma Indiciário. In: Ginzburg, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
darão inteligibilidade ao texto construído. Daí a noção de trama na narrativa

histórica, pois o “fato nada é sem sua trama”8.

Os habitantes da cidade, atores sociais na transformação dos espaços, têm


4
sua vida condicionada a existência de equipamentos urbanos como o

fornecimento de energia elétrica e água potável, rede de telefone, ruas

pavimentadas e recolhimento de lixo, dentre outros serviços. A cidade não

existe sem toda uma rede de estruturas e serviços, muitas vezes invisíveis aos

nossos olhos, que permite a sua habitabilidade. Dessa forma, construíram-se

nos subterrâneos da cidade as veias que a alimentam e os fluídos que ela

rejeita cotidianamente, são redes de canalização tanto de água e esgoto,

quanto de cabos telefônicos e elétricos que percorrem suas entranhas fazendo

chegar até as casas todo o conforto propiciado pelos melhoramentos urbanos.

Na primeira metade do século XX, a grande maioria dos habitantes de

Criciúma retirava a água necessária para uso cotidiano de uma rede natural de

poços artesanais, rios, fontes e bicas que se espalhavam pela cidade. Esta

antiga rede natural, em sua maioria, encontra-se soterrada pela terra e pelo

paulatino encanamento da água que dotou de invisibilidade esta antiga rede

natural.

8
VEYNE, Paul. Idem, Ibidem, p.45.
Na década de 1930, Criciúma então conheceu o conforto da água

encanada, ou pelo menos parte dela 9. Não significava apenas conforto, mas

antes um luxo, para uma época em que buscar a água era atividade diária para
5
a maioria dos criciumenses. Desse modo, as tradicionais famílias residentes no

centro da cidade é que foram as primeiras a dispor do conforto da água

encanada, puderam planejar seu acesso ao direito à cidade. Segundo Chartier

“as representações do mundo social assim construídas (...) são sempre

determinadas pelos interesses de grupo que as forjam” 10. A cidade materializa

relações sociais que se estabelecem na construção do cotidiano e, portanto, a

cidade cristaliza as diferenças sociais e as desigualdades econômicas.

Desde o inicio o que se determinava por “centro” e todos os seus

residentes se afirmavam com certa autoridade sobre as “adjacências”, porque

“as percepções do social não são de forma alguma discursos neutros:

produzem estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade à custa


11
de outros” . Na “cidade do desejo” havia a necessidade de se romper com

alguns padrões de comportamento no que se referia a questão sanitária.

Entretanto obras de canalização de água e esgotos significavam um grande

9
Alguns residentes nos arredores da praça Nereu Ramos, entre eles, Abílio Paulo, Elias Angeloni, Frederico
Minatto, Pedro Benedet e Pedro Beneton tinham sua água canalizada por finos canos de ferro que vinha de
uma nascente próxima ao atual Hospital São João Batista, na época um bosque pertencente a Ângelo Benedet
In: FILHO, Archimedes Naspolini. Op. Cit, p.198.
10
CHARTIER, Roger. Op. Cit. p. 17.
11
CHARTIER, Roger. Idem, Ibidem, p.17.
ônus aos cofres públicos e iam sendo realizados aos poucos em áreas centrais

na “cidade do possível”.

Na modernidade incompleta de Criciúma predominava comportamentos


6
sanitários diferenciados, em alguns lugares utilizavam-se fossas desprovidas de

covas, sendo que os encarregados de esvaziá-las eram mesmo os porcos 12 e na

falta deles os buracos eram cobertos de terra quando estavam cheios,

transferindo-se a “patente” para outro espaço. Mas em outras residências

onde a canalização de água já havia sido implantada vasos e caixas de descarga

eram instalados 13. A mudança de usos e costumes pelo uso da água encanada

constitui como diz Michel de Certeau, em gestos elementares das “artes de

fazer” 14, artes que se desdobram e se repetem dia após dia no espaço íntimo

da moradia, no território privado.

Em épocas de falta d’água, fato corriqueiro, emergia na imprensa a

necessidade da construção de um sistema público de abastecimento. Apesar de

haver efetiva mobilização política, traduzida em inúmeros debates e

publicações, estes não se faziam traduzir em efetivas obras de saneamento

extensivo a todos os habitantes. As reivindicações em prol da água potável se

diluíam diante de promessas e debates por parte da prefeitura municipal e do

12
Zenir de Bona Marchet, entrevista concedida em 01/01/2004.
13
Yolanda Motta de Andrade, entrevista concedida em 18/12/2002.
14
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: Morar, Cozinhar. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1996, p.203.
governo federal. Ademais, os que detinham o poder político e econômico

contornavam individualmente seu problema, residiam em áreas onde a água

canalizada e tratada já estava instalada.


7
O sonho de um sistema público de abastecimento de água potável

Criciúma começou a conhecer no limiar dos anos 40, quando então foi

projetada e construída, aproximadamente no ano de 1942, a usina de captação

e tratamento de água que utilizava as águas do rio Mãe Luzia para seu

abastecimento 15. Margeava este rio, uma área minerada a céu aberto, sendo

que as água residuais da lavra e da chuva arrastavam para o rio Mãe Luzia uma

grande quantidade de minerais pesados, especialmente a pirita, tornando á

água insuportável ao consumo pelo excesso de acidez e ferro 16. Como nos

coloca Volpato, “em cada enxurrada os rios recebem material contendo carvão,

enxofre, ferro e metais pesados, tornando as águas ácidas e inaproveitáveis

para o abastecimento da cidade” 17. Muitos ferviam a água e ainda coavam em

pano fino para disfarçar o gosto ocre do ferro que causava graves prejuízos à

15
A água era captada através de uma usina situada à margem esquerda do rio. Mesmo clorada, a água do rio
Mãe Luzia continha enorme quantidade de ferro, sendo danosa ao consumo humano. Além disso, a incidência
de metais pesados provocava desgaste nos canos de ferro fundido, provocando depósitos de ferrugem não só
nos canos, mas também nas caixas individuais e até nas torneiras residenciais.
16
CAMPOS, Sebastião Netto. Uma Biografia com um pouco de História do Carvão Catarinense. Florianópolis:
Ed. Insular, 2001, p.33.
17
VOLPATO, Terezinha Gascho. OP. Cit, p.22.
saúde, colocando a qualidade da água em foco e com ela a falta de uma rede

de saneamento básico para a cidade.

As idéias de higiene e salubridade já difundidas desde o início do século XX


8
refletiram-se diretamente na “crise sanitária” instaurada na cidade.

Inicialmente ela se deu através dos discursos dos políticos e dos articulistas da

imprensa, tendo como base a problemática sanitária da cidade, que se

industrializava e crescia em importância econômica e social. Posteriormente,

passou a ser alvo da atenção de médicos, sanitaristas e engenheiros. O médico-

sanitarista Boa Nova Jr, analisando as condições higiênicas e sanitárias da

região carbonífera de Criciúma afirma que:

Ao tempo de nossa chegada à Criciúma, em fins de 1944,


contristador era o aspecto que a cidade oferecia no
tocante às suas condições higiênicas e sanitárias, à
mortalidade infantil e ao conforto oferecido aos seus
habitantes. Sem rede de abastecimento d’água, sem
esgotos, sem serviço de coleta de lixo, sem calçamento e
com uma iluminação elétrica precaríssima, fornecida por
uma pequena usina pertencente à particulares (...). 18

Manif Zacharias, em suas memórias, descreve um quadro semelhante.

Também chegara em Criciúma no ano de 1944, e segundo ele Criciúma era uma

cidade que “tudo lhe minguava, a começar pelo saneamento básico. Não

18
BOA NOVA JR, Francisco de Paula. Problemas Médico-Sociais da Indústria Carbonífera Sul-Catarinense.
Boletim n. 95. Departamento Nacional de Produção Mineral, 1953, p.13.
possuía água canalizada, nem rede de esgotos. Poços e fossas sépticas supriam-
19
lhe as necessidades” . O quadro apresentado por Boa Nova Jr. e Manif

Zacharias, representava, sobretudo, um desequilíbrio estrutural na


9
administração pública. Pesavento afirma que “a questão dos serviços públicos é

o ponto nodal e originário de deflagração do processo que coloca a cidade

como um problema. Tais serviços são colocados como necessidades ou

demandas exigidas pelo “viver em cidades” e da sua satisfação ou não

decorrerá, via de regra, o bom ou mau conceito da administração municipal” 20.

Melhoramentos urbanos vitais como a água potável e rede de esgotos eram

inexistentes. Esse quadro veio a se agravar ainda mais com o aparecimento de

doenças contagiosas transmitidas, sobretudo pela água. Surtos de tifo e varíola

causavam apreensões a toda população da região de Criciúma e cidades

circunvizinhas 21. Além do tifo, haviam outras doenças transmitidas pelas águas,

como verminoses, doenças intestinais e cólera.

Na cidade de Criciúma, as idéias de salubridade, que se refletiu na

implantação de água canalizada, rede de esgotos e outras medidas profiláticas

19
ZACHARIAS, Manif. Minha Criciúma de Ontem. 2° edição.Criciúma: Ed. Do autor, 1999. p.11-12.
20
PESAVENTO, Sandra Jatahi. Entre Práticas e Representações: A Cidade do Possível e a Cidade do Desejo. In:
RIBEIRO, Luiz César de Queiroz e PECHMANN, Robert (organizadores). Cidade, Povo e Nação – Gênese do
Urbanismo Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. .382.
21
BELOLLI, Mário Et al. História do Carvão de Santa Catarina. Criciúma: Imprensa Oficial do Estado de Santa
Catarina, 2002, p. 269.
22
, foi difundida a partir do movimento em prol da assistência médica e social

da região carbonífera e suas discussões sobre o saneamento físico da cidade. A

implementação de serviços assistenciais aos trabalhadores das minerações

23 10
relacionou-se com o aparecimento de doenças contagiosas . A intervenção

médica e sanitária sobre a saúde das famílias mineiras através de assistência

controlada, incidia diretamente sobre a saúde e proteção das classes ricas. 24

As representações do urbano se constroem a partir da realidade objetiva,

por isso a falta de higiene, de um sistema de abastecimento d’água e rede de

esgotos motivavam uma espécie de mal estar perante a representação de uma

Criciúma adiantada em relação a outras cidades circunvizinhas. Até porque

“parte-se do princípio de que a cidade pensada não é menos real” do que

aquela de tal realidade objetiva. Sem com ela se confundir ou ser o seu reflexo,

seria algo como o seu “outro lado” 25. E os jornais eram grandes “pensadores”

da cidade, e veiculavam a idéia de que a salubridade era condição

indispensável para tornar o espaço urbano civilizado. Além de informar e trazer

22
Entre os anos de 1944-1948, muitas medidas profiláticas foram adotadas pelo serviço médico do DNPM
conforme relatório do médico sanitarista Francisco de Paula Boa Nova Jr.
23
BELOLLI, Mário. Op. Cit, p.263.
24
A imprensa criticava o uso do sistema anti-higiênico de poços onde a “água empregada na alimentação das
criancinhas provinha, quase sempre, de poços e cisternas enlameados, cheios de sapos, a maioria deles situada
nas vizinhanças das toscas patentes de madeira”. In: BOA NOVA JR, Francisco de Paula. Op Cit, p.22.
25
PESAVENTO, Sandra Jatahi. Op. Cit, p.378.
as mais diversas notícias, ele também se constitui em um instrumento

pedagógico, criador de novos hábitos e mentalidades.

A mineração a céu aberto e no subsolo, feita por várias décadas sem o


11
devido controle ocasionou a poluição dos recursos hídricos, a questão da água

tornar-se-ia um dos maiores problemas urbanos de Criciúma nas décadas

seguintes. Assim, enquanto muitos em Criciúma ainda lutavam para ter o

transporte da água, outros que já a tinham queriam a sua transformação em

líquido potável.

Dentro desse contexto, onde a mineração descontrolada fatalmente

poluiria os recursos hídricos da cidade, ainda na década de 1940 o governo

federal devido ao interesse que tinha na extração e produção do carvão

mineral, resolveu fornecer água gratuita aos habitantes de Criciúma e região.

Até porque, “a lavra do carvão polui as águas, considerando que sendo o

carvão tributado pelo governo federal, (...) compete a ele tomar atitudes

quando este combustível causa transtorno a qualquer comuna” 26.

A partir de 1943 o serviço de canalização e abastecimento da região


27
carbonífera ficou à cargo do DNPM . Os serviços de água oferecidos pelo

DNPM, no entanto, não atendia as necessidades de todos, sobretudo “a todos


26
“Abordado no legislativo municipal, o problema da água para o interior”. Tribuna Criciumense, 13/06/1955,
p.7.
27
Departamento Nacional de produção Mineral, órgão fundado em 1934 pelo governo federal, vinculado ao
ministério da Agricultura, tinha como principal função fornecer assistência técnica à mineração.
28
os que vivem pobremente em zonas afastadas” , que não se beneficiam do

“precioso líquido” devido em grande parte as “politicagens locais” 29.

A água do rio Mãe Luzia há muito tempo estava comprometida pela


12
decomposição do sulfato de ferro das minas de carvão da cidade de Siderópolis
30
. No entanto, a cidade de Criciúma era abastecida com esta água sempre que

31
necessário mesmo podendo trazer sérios prejuízos à população . Nesse caso

misturava-se provisoriamente à água poluída do rio Mãe Luzia com as águas do

Rio São Bento para que não houvesse prejuízo no abastecimento da cidade e

32
que isto não afetaria a potabilidade da água . Enquanto isso as autoridades

políticas e econômicas da cidade debatiam o problema, pedindo soluções e

verbas ao governo federal 33.

Em 1950 foi discutida pela primeira vez a intenção do DNPM em entregar


34
a responsabilidade do serviço d’água à prefeitura municipal . Segue-se então

repetidas notícias no jornal Tribuna Criciumense, alarmando a população

contra esse iminente perigo, “o povo tem sobejos motivos para se alarmar,

28
“Serviços de Águas em Criciúma: Em estudos um novo plano de fornecimento do precioso líquido para a
população”. Folha do Povo, 06/10/1952 p.1.
29
“Roteiro”. Tribuna Criciumense, 02/05/1955, p.3.
30
“Água para nosso interior”. Tribuna Criciumense, 06/06/1955, p.6.
31
“Abastecimento D’água à população”. Tribuna Criciumense, 20/05/1957.
32
“O Abastecimento de água”. Tribuna Criciumense, 13/06/1955, p. 1.
33
“Prosseguimento do serviço d’água à cidade”. Tribuna Criciumense, 02/09/1957, p.1.
34
Entretanto os políticos locais consideravam à efetivação da medida contrária aos “interesses do município”.
Quando em 1958, o ministro da agricultura exonera o DNPM de oferecer o serviço da água à cidade de
Criciúma e região, a notícia é descrita como um verdadeiro “presente de grego”. In: O abastecimento de água
de Criciúma”. Tribuna Criciumense, 13/01/1958, p.1.
35
porque vai ficar sem água (...)” . A imprensa e os poderes políticos locais,

através de estratégias enunciativas, disseminam noções de pânico e medo pela

possibilidade de ficar sem água. Estas informações, uma vez assimiladas são
13
capazes de produzir novas formas de subjetividade permeadas pelas aflições

cotidianas. As matérias dos articulistas do jornal Tribuna Criciumense revelam a

diversidade de informações e estímulos emocionais, informações estas que

levavam os “consumidores do espaço” a construir e alterar imagens e

representações sobre o problema da água. As notícias a respeito referiam-se ao

serviço como sendo um verdadeiro “abacaxi” e o povo certamente ficaria sem

o “precioso líquido”.

Mobilizar a opinião pública era importante, uma vez que a “representação

guia o mundo através do efeito mágico da palavra e da imagem, que dão

significado à realidade e pautam valores e condutas” 36. A prefeitura já sofria as

pressões dos bairros adjacentes para ter a água canalizada e potável, os bairros

que já possuíam o serviço temiam ter que utilizar as águas ácidas do Rio Mãe

Luzia diante de um imprevisto. Era necessário construir e solidificar a

representação de que o serviço d’água era inviável para a prefeitura, assim

poder-se-ia ganhar tempo, até o problema ser resolvido. A água consumida

35
“A transferência do serviço de abastecimento d’água à prefeitura”. Tribuna Criciumense, 27/01/1958, p.1.
36
PESAVENTO, Sandra Jatahi. O Imaginário da Cidade: Visões Literárias do Urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto
Alegre. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1999, p.8.
provinha do Rio Guarapari, um afluente do rio São Bento através de uma calha,

mas regularmente ela era arrancada pelas enxurradas, nos períodos de chuvas
37
e inundações, quando então os canos mestres estouravam . Nesses
14
momentos utilizavam-se as águas do Rio Mãe Luzia, águas sujas e altamente

ácidas, isso se refletia diretamente no índice de mortalidade infantil na região

38
.

Fato interessante foi colocado por um leitor na seção ‘nossa opinião” do

Tribuna Criciumense. Ele coloca que acha procedente os poderes municipais

não poderem arcar com o serviço de água devido a falta de verbas, mas então

porque queriam manter os serviços de Luz e Força e ainda encampá-los, de

acordo com a lei municipal votada pela maioria dos vereadores? Segundo ele,

“não há uma política uniforme, em relação à exploração dos serviços públicos

da cidade. No caso da água, não interessa, no caso da energia elétrica,

interessa ao município a exploração dos serviços. Por que?” 39.

No governo do prefeito Nery Rosa, o discurso mantém-se inalterado 40 e

41
o problema da água e esgoto também . A situação da água alarmava, até

mesmo para os que já possuíam a canalização, pois a falta d’água começou a se

37
“O abastecimento de água de Criciúma”. Tribuna Criciumense, 13/01/1958, p.1.
38
“Água Potável só brevemente”. Tribuna Criciumense, 07/04/1958, p.1.
39
“Nossa Opinião”. Tribuna Criciumense, 03/02/1958, p.8.
40
“Nery Rosa um prefeito que planifica”. Tribuna Criciumense, 12/06/1961, p.6.
41
“Rede de Esgotos”. Tribuna Criciumense, 27/03/1961, p.1.
42
tornar corriqueira, exceto à noite quando então o consumo diminuía . O

serviço oferecido pelo governo federal era gratuito e muitos consumiam água

desmedidamente, já que as ligações não possuíam medidores de consumo, fato

43 15
que fazia diminuir a pressão da água na rede, provocando a sua falta . Até
44
mesmo as residências centrais começaram a sofrer com o problema , mas a

periferia era mesmo a mais atingida. Bairros da cidade como a “Vila Mauá, São

Cristóvão, Próspera, zona do aeroporto, Vila Operária, inferninho, Bainha e

tantos outros, cujo problema de abastecimento do líquido atinge as raias do

desespero” 45 eram os mais prejudicados. O bairro São Cristóvão, por exemplo,


46
recebeu água canalizada somente em 1962 . Já os moradores do bairro São

José reclamam que “nem parece para nossas autoridades, que existe o bairro

São José, pois o mesmo vive em constante desprezo. Sem água, luz é das piores

e calçamento da rua é o carvão poeirento” 47.

Em 1961 a instalação do Plano do Carvão Nacional (CPCAN) em Criciúma e

a transferência do serviço de água a este órgão trouxeram esperanças para

sanar o problema da água na cidade. 48 Assim que assume o serviço, uma das

42
“Esta água que bebemos, algumas explicações do diretor do serviço”. Tribuna Criciumense, 14/08/1961, p.1.
43
“O que é necessário saber sobre o abastecimento d’água na cidade”. Tribuna Criciumense, 31/10/1964, p.1.
44
“População prejudicada: Persiste a falta d’água”. Tribuna Criciumense, 26/02/1962 p.7.
45
“Água! Água! Água!” Tribuna Criciumense, 26/06/1961, p.8.
46
“Bairro São Cristóvão: Água Chegou!” Jornal Criciúma, 22/07/1962, p.1.
47
“E...a água continua saindo do cano!”. Tribuna Criciumense, 14 a 21/09/1963, p.1.
48
“Plano do Carvão tenta resolver um velho problema: Água em abundância para a população de Criciúma”.
Tribuna Criciumense, 13/11/1961, p.1.
primeiras medidas foi dotar os bairros isolados e em especial os de alto índice

de concentração demográfica com a água encanada. 49

Nos anos 40 os debates giravam em torno da canalização da água e sua


16
extensão a todos os criciumenses. Nos anos 50 e 60, devido à intensificação da

urbanização de Criciúma em vista da mineração, o sistema de abastecimento

d’água encontrava-se totalmente superado, tornando a falta d’água na rede o


50
principal assunto . Uma série de problemas técnicos na estação de
51
tratamento, como desgaste e deficiências nas antigas bombas , falta de

52
energia elétrica e o próprio aumento populacional contribuía para fazer do

abastecimento de água o principal problema da municipalidade. Na falta

d’água, as pessoas voltavam a fazer uso dos poços, recorriam aos vizinhos ou

mesmo às torneiras coletivas 53.

O uso político do encanamento d’água não passaria, contudo,

desapercebido. O Jornal Criciúma denunciou o uso do problema para fins

políticos, publicando notas como “sabe-se que certos políticos têm-se usado da

melhoria (...) para fazer campanha em seu favor” 54 ou ainda “hoje todos se

49
Devido a pressão popular, em 1962, os bairros São Cristóvão, Vila Operária do aeroporto, bem como as ruas
Santa Catarina, Santa Cecília e 13 de Maio haviam recebido o melhoramento. In: “Água para a cidade”. Jornal
Criciúma, 23/09/1962, p.3.
50
“As Torneiras gemem, num esforço de servir, e a água não aparece”. Tribuna Criciumense, 24/07/1961, p.1.
51
“Falta d’água recomeçou o martírio”. Tribuna Criciumense, 03 a 10/10/1964, p.1.
52
“Corte de Energia Elétrica Dificulta o abastecimento d’água”. Tribuna criciumense, 03/12/1966.
53
“Em Criciúma ainda existem filas para a água”. Tribuna Criciumense, 21/01/1967, p.1.
54
“Notas Soltas”. Jornal Criciúma, 23/09/1962, p.11.
55
dizem autores do serviço de água (...)” . A culpa pelo problema era em

inúmeras notas creditada ao Eng° Aníbal Alves Bastos, diretor do DNPM na

década de 1940, o mesmo que em dezembro de 1946 teve levantado um


17
monumento com seu busto na Praça do Congresso como sinal de

reconhecimento e gratidão na obtenção de recursos financeiros para iniciar a

56
instalação d’água canalizada em Criciúma . Isso porque, nos anos de 1959 e

1960 ele devolveu sem aplicar 26 milhões de cruzeiros destinados à ampliação

da rede d’água a mais de 15.000 famílias que ainda não contavam com a água

canalizada e potável 57.

Dessa forma, é possível perceber que até o final dos anos 60, Criciúma era

ainda modesta em termos de condições urbanas de habitabilidade. Porque isso

acontecia? O que ocorria em Criciúma para que a cidade demorasse tanto a

implantar serviços e equipamentos fundamentais para a vida da população?

Pesavento nos coloca que “os produtores do espaço concebem uma maneira de

construir e/ou transformar a cidade, através de políticas definidas, mas

também constroem uma maneira de pensá-la, vivê-la ou sonhá-la” 58. Enquanto

sonhavam com uma cidade moderna e saneada, a cidade sob a cidade, isto é, a

55
“Água”. Jornal Criciúma, 02/09/1962, p.1.
56
MILANEZ, Pedro. Fundamentos Históricos de Criciúma. Florianópolis: Ed. Do autor, 1991, p. 189.
57
“Água em Criciúma”. Jornal Criciúma, 15/07/1962, p.3
58
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Muito Além do Espaço: Por uma História Cultural do Urbano. Estudos
Históricos: Rio de Janeiro, CPDOC, vol. 8, n.16, 1995, p.279-290.
cidade subterrânea feita de canalização ia sendo corroída pela pirita, tornando

inviável financeiramente a sua extensão e manutenção. Soma-se o fato de que

as instituições políticas que geriam esses serviços, preocupadas que estavam,


18
em transferir o serviço uma a outra, acabavam relegando em segundo plano os

esforços para dotar Criciúma de melhoramentos urbanos. No intricado jogo

político, se não era possível realizar o saneamento na “cidade do desejo” a

questão era livrar-se do problema, transferindo-o.

Desde 1955 que o DNPM tentou entregar o serviço de abastecimento

59
d’água ao poder público municipal . O assunto era esporadicamente

retomado e sempre se entrecruzava com o do problema da falta de ampliação,

de famílias que ainda não possuíam o serviço e da própria falta d’água, quando

esta ocorria. No entanto, foi a partir de 1964 que a transferência do serviço

d’água tornou-se tema central nos debates e na imprensa da época 60.

Quando a água é canalizada, submetida a processos de tratamento e

distribuída para um número significativo de pessoas, ela torna-se mercadoria.

Nesse momento de discussão sobre a falta de recursos para gerir a água em

Criciúma, é que a população é intimada a pagar pelo “precioso líquido”, “esta

taxação se destina à manutenção dos serviços, pois o povo de Criciúma esteve

59
“O que vai pela Câmara”. Tribuna Criciumense, 02/05/1955, p.5.
60
“CPCAN propõe debate público sobre o problema do abastecimento d’água”. Tribuna Criciumense, 21 a
28/11/1964, p.1.
até o momento sob favoritismo recebendo água gratuitamente” 61. Taxas pagas

pela população e subvenções oferecidas pela CPCAN iriam assegurar a


62
continuidade do serviço nas mãos da prefeitura , mas o prefeito Arlindo
19
Junkes continuava irredutível 63.

Nesse contexto surgiu em 1967 às primeiras discussões em torno da

viabilização de um órgão municipal específico para gerir o serviço d’água, o

SAMAE – Serviço Municipal de Água e Esgotos 64. O órgão fora criado através da

lei n° 631 em 12/09/1966 pelo prefeito Ruy Hülse, mas estava somente no

papel. E a existência de uma autarquia municipal era condição básica para a

prefeitura receber financiamentos e custear obras de ampliação e melhorias.

No entanto, este órgão não teve atuação prática na questão do saneamento

em Criciúma. Quando a transferência do serviço é efetivada em 15/04/1968 e o

prefeito Nelson Alexandrino encampa da CPCAN o acervo e o sistema de

abastecimento de água, o serviço é imediatamente transferido para a

responsabilidade do Estado através do DAES 65.

61
“Criciúma pagará taxa de água”. Tribuna Criciumense, 01 a 08/05/1965, p.8.
62
“Após Conferenciar com o presidente da CPCAN o prefeito de Criciúma viajou para Florianópolis”. Tribuna
Criciumense, 05 a 12/12/1964, p.8.
63
“A transferência do serviço de abastecimento de água não será ônus para a prefeitura”. 22 a 29/05/1965,
p.3.
64
“SAMAE, vem aí”. Tribuna Criciumense, 31/12/1966, p.1.
65
DAES – Departamento Autônomo de Engenharia Sanitária, órgão estadual criado em 1962 para ajudar na
construção de sistemas de abastecimento de água. O DAES gerenciou por apenas um ano o serviço d’água em
Criciúma, elaborou o primeiro projeto de ampliação da canalização d’água para a cidade, nesse projeto a rede
ampliada passaria dos 60 litros, então a capacidade da rede, para 200 litros por segundo
Ao final dos anos 60 o governo federal instituiu políticas centralizadoras de

poder. Tais políticas resultaram na criação do PLANASA – Plano Nacional de

Saneamento, em 1969. O objetivo deste órgão seria suprir as crises de


20
abastecimento d’água no país, para isso criaram-se companhias estaduais de

saneamento 66, surgindo então a CASAN - Companhia de Águas e Saneamento

de Santa Catarina 67. A estadualização do sistema de abastecimento d’água pôs

um fim aos impasses políticos entre prefeitura e CPCAN e o serviço pôde ser

ampliado. O projeto de ampliação elaborado pelo DAES para Criciúma foi

iniciado pela CASAN em 1972 e concluído em 1974.

A canalização da água e a implantação de uma rede de esgotos,

impulsionados pela ideologia da higienização, que submete os corpos, como


68
dizia Foucault, não deixam de fixar também um patamar de conforto . Ortiz

coloca que a idéia de conforto, surgida em fins do século XIX, constitui-se em

elemento chave para entender a organização cultural e material da sociedade


69
. Até porque, o conforto, enquanto facilidade de vida, move toda uma política

de distribuição de um bem até então “fabricado” de modo artesanal. O Estado

passa a investir grandes somas nos serviços públicos: água, esgoto, iluminação,

o que dimensiona as transformações e o aparecimento de um sem número de


66
Méri Frotscher, Op. Cit, p. 111.
67
Através da Lei n° 4.547 de 31 de dezembro de 1971 o governo cria a CASAN.
68
ORTIZ, Renato. Cultura e Modernidade. São Paulo: Brasiliense, 1991, p.141.
69
Ortiz, Renato. Idem, Ibidem, p.53.
objetos úteis. Segundo Ortiz, “eles cobrem os setores mais diferenciados da

vida social. Nas casas surgem às pias, os banheiros, as privadas, os bidês: novos

objetos de toilette são introduzidos, como a navalha para barbear e as escovas


21
de dente” 70.

Com a captação e tratamento da água em Criciúma os novos objetos não

adquirem apenas uma face privada. Transbordam o círculo intimo da

comodidade, objetos técnicos como tubulações, canos e caixas d’água,

traçariam no corpo da cidade uma nova geografia subterrânea. Não

significando, entretanto um sistema democrático, uma vez que apenas as áreas

mais valorizadas do espaço urbano foram atendidas pela rede, significou antes

uma geografia da exclusão na medida em que a maioria dos moradores não

pôde ser servida pela rede. Até porque, o processo de urbanização de Criciúma

entre as décadas de 1940 e 1970 caracterizou-se pela ocupação desordenada

do espaço e pelas altas taxas de densidade urbana. Uma das manifestações

mais graves desse processo se deu, com efeito, no esgotamento sanitário da

cidade, quando então a questão emerge como principal problema no palco

político de Criciúma.

Os habitantes de Criciúma, por sua vez, não estavam insensíveis ao

melhoramento, percebiam os benefícios do espaço construído, ordenado e


70
ORTIZ, Renato. Idem, Ibidem, p.140.
transformado com a canalização de água e esgoto, “suscitava sensações,

percepções, e a elaboração de representações para aqueles que vivenciavam o


71
processo de mudança na cidade” . No entanto, os “pobres da cidade” foram
22
criando seus lugares de moradia e convívio, independente da existência ou não

de água canalizada, através de uma rede de solidariedade iam sobrevivendo

com a captação da água por outros meios. Assim, na relação dos habitantes

com a cidade, que perfaz continuamente os limites da urbanidade, mostra-se

que a exclusão não impediu a rearticulação do grupo que, mantendo certas

práticas de sobrevivência, consegue se apropriar e dar novos sentidos ao

espaço.

Uma nova forma de ver as águas da cidade emergiu nos discursos oficiais e

nas crônicas da impressa na década de 60. As águas do espaço urbano

começaram a incomodar o poder público quando deixa em evidência a

fragilidade do serviço na cidade ou quando se opõe a construção de uma

cidade idealizada. A conquista da água em Criciúma revela, portanto, que

“atrás do automatismo do gesto de abrir uma torneira e obter água em

abundância, podemos encontrar uma longa história nada tranqüila, repleta de

disputas e alianças” 72. Mostra também que as pequenas intervenções urbanas

71
Sandra Jatahi Pesavento, Op. Cit.
72
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Op. Cit, p.297.
tinham ensaiado dar a cidade o título de “moderna”. Intervenções incipientes

frente ao crescimento da cidade, mas que não deixaram de produzir certas

representações sobre o conforto e a modernidade.


23

BIBLIOGRAFIA
BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa
Nacional, Casa da Moeda. 1985.
BEGUIN, François. As Maquinarias Inglesas do Conforto. In: Revista de
Estudos Regionais e Urbanos. Espaço e Debates. Ano XI, n° 34..Porto Alegre:
UFRGS, 1992, pg 39-54.
BELOLLI, Mário Et al. História do Carvão de Santa Catarina. Criciúma:
Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 2002.
BENJAMIM, Walter. Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense.
BOA NOVA JR. Francisco de Paula. Problemas Médico-Sociais da Indústria
Carbonífera Sul-Catarinense. Boletim n. 95. Departamento Nacional de
Produção Mineral, 1953.
BRESCIANI, Maria Stella M. (organizadora). Palavras da Cidade. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2001.
CAMPOS, Sebastião Netto. Uma Biografia com um pouco de História do
Carvão Catarinense. Florianópolis: Ed. Insular, 2001.
CERTEAU, Michel. A Escrita da História. 2° ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002.
______. A Invenção do Cotidiano: 2. Morar, Cozinhar. 2ª edição. Petrópolis:
Vozes, 1996.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de
janeiro: Bertrand, 1990.
FILHO, Archimedes Naspolini. Criciúma, Orgulho de Cidade! Fragmentos da
história dos seus 120 anos. Criciúma: Ed. Do autor, 2000.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In: Microfísica do
Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FROTSCHER, Méri. Olhares sobre o Saneamento em Blumenau: uma
perspectiva histórica. Blumenau: Nova Letra Gráfica e Editora, 2000.
ORTIZ, Renato. Cultura e Modernidade. São Paulo: Brasiliense, 1991.
PESAVENTO, Sandra Jatahy e SOUZA, Célia Ferraz de (organizadoras). Imagens
Urbanas – Os Diversos Olhares na Formação do Imaginário Urbano. Porto
Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1997.
_________. Os pobres da Cidade, Vida e Trabalho–1880-1920. Porto Alegre:
Editora da Universidade/ UFRGS, 1998.
_________. O Imaginário da Cidade: Visões Literárias do Urbano – Paris, Rio
24
de Janeiro, Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1999.
_________. Em Busca de Uma Outra História – Imaginando o Imaginário.
Revista Brasileira de História. V. 15, nº 29, p. 9 – 27, 1995.
__________. Entre Práticas e Representações: A Cidade do Possível e a Cidade
do Desejo. In: RIBEIRO, Luiz César de Queiroz e PECHMANN, Robert
(organizadores). Cidade, Povo e Nação – Gênese do Urbanismo Moderno. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 377 - 396.
_________. Muito Além do Espaço: Por uma história cultural do Urbano.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC, n.16, 1995.
RAMOS, Àtila. Saneamento Básico Catarinense: Resgate da história do
saneamento básico em Santa Catarina. Florianópolis: IOESC, 1991.
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. História do Conforto na Cidade de São Paulo.
In: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul . Anos 90. Porto Alegre: UFRGS, 2000, p.162-183.
_________. A Conquista da Água. In: Revista de Estudos Pós-Graduados em
História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. Espaço e Cultura. São Paulo: EDUC, 1981, p.295-300.
SÊGA, Rafael Augustus. Os Melhoramentos Urbanos como Estratégias de
Dominação Social. In: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul . Anos 90. Porto Alegre: UFRGS,
2000, p.218-230.
SOARES, Paulo Roberto Rodrigues. Modernidade Urbana e Dominação da
Natureza: O Saneamento de Pelotas nas Primeiras Décadas do Século XX. In:
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul . Anos 90. Porto Alegre: UFRGS, 2000.
VEYNE, Paul. Como se Escreve a História e Foucault Revoluciona a História.
Brasília: UnB, 1998.
ZACHARIAS, Manif. Minha Criciúma de Ontem. 2ª edição.Criciúma: Ed. Do
autor, 1999.
O OFÍCIO DO HISTORIADOR, O ENSINO DE HISTÓRIA E AS
SUAS FERRAMENTAS
Vitor Angelo Cardozo Frasca1

1
RESUMO
O presente artigo visa, uma reflexão sobre as ferramentas de intervenção que podem
tornar o ensino de história e suas correlatas, uma tarefa mais produtiva e de grande
valia na formação do senso crítico. Ademais, flexionamos a responsabilidade do
historiador, quanto à sua teleologia que no que diz respeito tende a sugerir novos
olhares e trazer à luz o que se fez oculto e que se contrapõe diante uma história
tradicional, factual e que não aceita versões. Além do ofício do historiador, que pode
ser resumido a vislumbrar o interesse e a reflexão dos leitores aos diversos prismas
existentes sobre um determinado fato. O desafio desse artigo será relatar a
importância do uso de novas ferramentas, para instigar a curiosidade, o conhecimento
e aprofundar o senso crítico em sala de aula, buscando assim significantes na relação
ensino-aprendizagem, por fim, referenciando ao mito da caverna de Platão, o
professor deve regressar à “caverna” e avisar aos outros que existe luz, ideias e
conhecimentos novos do lado de fora.
Palavras-Chaves: história, ensino, desafios.

RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo hacer una reflexión sobre las herramientas de
intervención que pueden hacer con que la enseñanza de la historia y temas
relacionados, sea una tarea más productiva y de gran valor en la formación del
pensamiento crítico. Además, flexionamos sobre la responsabilidad del historiador, en
cuanto a su teleología que, con respecto a esto, tiende a sugerir nuevas perspectivas y
sacar a la luz lo que está oculto e que contrasta con una historia tradicional, que de
hecho no acepta versiones. Además de esto el oficio de historiador, se puede resumir
en vislumbrar el interés y la reflexión de los lectores entre varios prismas en un hecho
particular. El desafío de este trabajo es dar a conocer la importancia de utilizar nuevas
herramientas para instigar la curiosidad, el conocimiento y profundizar el pensamiento
crítico en el aula, buscando una significancia en la relación enseñanza-aprendizaje, por
último, en referencia al mito de la caverna de Platón el maestro debe volver a la
"caverna” y avisar a los otros que hay luz, ideas y nuevos conocimientos al lado de
afuera.
Palabras clave: historia, enseñanza, retos.

1
Especialista em História e Cultura Indígena e Afro-Brasileira pela Universidade Luterana do Brasil -
ULBRA
A história do homem sempre esteve ligada ao choque e troca de
culturas, intercâmbio de experiências. Cada civilização diferente da outra,
quanto à linguagem, as técnicas, habilidades e costumes, tornando
possível o surgimento de novas interpretações e o nascer de novos
olhares. 2

Um grande ponto a ser enfatizado é que a história foi, é e sempre


será construída de forma rica e de forma sumariamente importante
através das diferenças.
A atualidade está “neblinada” pelos padrões considerados, onde os
humanos parecem iguais e “condenados” a ter que viver de forma
equivalente e contemplando a vida numa “cela”, parafraseando a canção
interpretada por Zé Ramalho intitulada, Admirável Gado Novo, isso parece
caótico e, sobretudo medíocre, diante da capacidade do que o homem é
capaz de pensar e produzir.
Para entendermos um pouco melhor, pedimos ajuda a Adorno e
Horkheimer que dizem:

"As coisas chegaram ao ponto em que a mentira soa como


verdade e a verdade como mentira. Cada declaração, cada
notícia, cada pensamento está preformado pelos centros
da indústria cultural. O que não traz a marca familiar dessa
preformação está, de antemão, destituído de credibilidade
(...)" (ADORNO, 1993, p. 94).

Percebemos assim que os meios de comunicação de massa atuam


como uma venda nos olhos do povo, tendo como exemplo, a letra de
Televisão, canção interpretada pelos Titãs, “A televisão me deixou burro,
muito burro demais (...) agora todas coisas que eu penso, me parecem
iguais (...)”.
O conteúdo, que é selecionado pelos meios de comunicação, não é
de qualidade construtiva ou não apresentam substancialmente uma forma
de estruturar ideais de melhoria e evolução na forma de pensar, pois não 3

se trata de sua conveniência, e sim uma defesa de seus interesses restritos


e longe dos domínios da massa, concomitantemente com o pensar de
(COHEN, Bernard. 1963, p. 13): "Na maior parte do tempo, [a imprensa]
pode não ter êxito em dizer aos leitores como pensar, mas é
espantosamente exitosa em dizer aos leitores sobre o que pensar”.
Assim, como o historiador, o professor de história deve se ater às
imensuráveis realidades adquiridas com o tempo pela sociedade.
Compreender o “mundo” de seu discente na forma de entender o seu
comportamento e estar disposto a um “embate” sadio em sala de aula,
uma vez que hoje, a tecnologia está a favor de todos e abastece o ser
humano de qualquer quantidade e conteúdo. Nesse ponto verificamos a
funcionalidade do professor. O filtro, a análise e as conclusões dialéticas,
aquelas passíveis do surgimento de novas ideias, trarão luz e promoverão
o discernimento dos fatos e o que acontece na realidade.
Nesse ponto podemos ressaltar que para entender esse processo se
faz necessário, o querer, o desprendimento, do que é ilusão ou do que é
imposto como verdade, assim como no mito da caverna de Platão, mesmo
que lhe apontem o que seria como verdade, como luz, é preciso querer
direcionar os olhos para outro horizonte, uma paisagem de novas
expectativas, impressões e experiências. Para tal, também é conveniente,
que o ser aprenda que lhe permitido o benefício de escolher o que ser
quer, assim como nos enfatiza Jean Paul Sartre, “o homem está
condenado a ser livre” ou “(...) somos nós mesmos que escolhemos nosso
ser”.
O grande desafio da história e da filosofia circunda nos terrenos à 4

margem da conformação humana, como uma fuga daquela percepção


automatizada quase sempre já pré-disposta que nos mergulha na
obviedade das coisas, dos fatos e das pessoas que os produzem, esse
efeito nos faz estagnar nas áreas do desenvolvimento crítico e do
verdadeiro conhecimento.
A busca por novas respostas deve ser incessante, a curiosidade deve
ser combustível para a alimentação de novos horizontes, com a íris
renovada a cada ângulo que se apresenta como novo.
Consideramos duas ferramentas para auxiliar o ensino de História e
Filosofia em sala de aula: uso da imagem e da música.
Durante certo período, os amantes e os envolvidos questionavam a
História e os seus colaboradores essenciais, os historiadores, sobre as
diferentes formas como ela se apresenta às pessoas. O que deve ser
compreendido é que circunda a ideia de que a história não se transforma,
mas sim que ela, sofre acréscimos de visão, tornando algo acessível e que
estava oculto sobre determinado recorte histórico. Devemos também
considerar que todos os fatos necessitam de analise por parte de quem os
verifica, quanto à sua intencionalidade, objetivo de produção e a
imparcialidade que corresponde à importância de sua fonte.
Sabemos que imagens são produzidas, construídas e propagadas,
como menciona (BURKE, 2004. pg.94):

Muitos heróis menores são celebrados com estátuas em


locais públicos, de tal forma que um censo da população de 5
estátuas de determinada cidade como Londres ou Paris,
observado o balanço entre generais, políticos, poetas e
outros tipos sociais, pode revelar algo de importância a
respeito da cultura política local (mediado, certamente,
pelos comitês que encomendaram as estátuas aos
escultores).

Percebida esta prática, cabe a quem observa as imagens, enxergar


os reais motivos pelos quais foram feitas, os porquês e as razões de
efetivação da importância de tal imagem. “O quanto a interpretação dessa
imagem será significante para o prosseguimento deste estudo?”. “Qual o
sentido de cada imagem e como esta pode tornar-se uma evidência
histórica?”. “O que torna tão preponderante no que consiste em
reconhecermos o que houve no passado?”, utilizando-se das imagens para
tentá-lo “montá-lo como um quebra-cabeça”, de forma a ilustrar o que às
vezes uma fonte textual por mais detalhista que se verifique, não alcance
tais níveis de reprodução.
Os historiadores devem ter como ferramentas, análises que
proporcionem evidência, mas para isso é necessário o desenvolvimento de
métodos de trabalho baseado na criticas das fontes. O fato é que, as
imagens têm o seu espaço dentro da cadeia de fontes históricas a serem
analisadas assim, tal qual a importância equivalente aos textos literários e
também aos testemunhos orais. Sintetizando, as imagens são feitas para
comunicar e trazem consigo a possibilidade de “remontar” o passado para
que possamos melhor compreendê-lo e assim permitir tornar visível o que
aparentemente parece não existir.
Pensando que a história, transforma seus olhares e sua forma de 6

construção e não descarta o que já fora construído, realiza uma


aproximação cada vez maior com o cotidiano, uma história “vista em seu
primeiro estágio” da base social, rechaçando a importância da vida das
pessoas que aparentemente parecem ser comuns. Aqui se encontram o
valor das fotografias como grande ferramenta de evidência histórica.
Sendo assim, todas as imagens que compõem determinado fato
histórico podem transmitir uma gama diferenciada de conceitos e ideias,
porque o que de fato determina a sua importância é o olhar do
historiador, qual ângulo não aparente que pode trazer a luz do
conhecimento sobre o que era desconhecido, o que é somente mera
suposição e que de fato acontece em cada ilustração, imagem, gravura ou
semelhante fonte histórica.
Sobre o monumento histórico da Estátua da Liberdade criada pelo
francês Frédéric Auguste Bartholdi, nos Estados Unidos em Nova York em
1886, para (BURKE, 2004. pg.78):

As correntes quebradas às seus pés, um atributo tradicional


de Liberdade, revelam sua identidade, ao passo que a luz
na mão refere-se à concepção original do escultor de
“Liberdade iluminando o mundo”. A mensagem política da
estátua se torna explícita para aqueles que conseguem lê-
la, pela tabuleta que ela segura, onde se lê “4 de Julho de
1776”.) Quaisquer que tenham sido as ideias do escultor
francês, os indícios iconográficos levam a conclusão de que
a Revolução Americana está sendo publicamente sendo
celebrada, antes que a Francesa.

7
Na vertente política, verificamos as formas como são retratados os
diferentes tipos de regimes que existem: os regimes comunista e socialista
priorizam pelas imagens e preferem idealizar enfoques relacionados à
defesa do trabalho, utilizando até de recursos físicos, como os próprios
trabalhadores.
Podemos dizer que o regime capitalista se apropria da imagem de
avanço e evolução baseado na capacidade de produção e consumo.
Ambas, mesclando sempre a necessidade, como a de produzir cada vez
mais em menos tempo e consequentemente criar a dependência de
consumo nas pessoas, como se esta fosse uma das atividades fisiológicas
do ser humano.
Quando nos deparamos, por exemplo, com o conceito do
Anarquismo, é hábito ver as pessoas equivocadamente produzirem uma
imagem de que esse trata um tipo de regime político que represente a
desorganização coletiva, uma verdadeira “bagunça social”, quando na
verdade o que esse tipo de regime apresenta é uma proposta de um
cooperativismo devidamente organizado, sem presença do Estado e
ampla liberdade religiosa, pensando sempre na sua eficácia e no equilíbrio
entre todas as partes que o compõem.
Ao me propor em realizar algo diferente nas aulas de história,
arrisquei-me utilizando a música, como ferramenta para despertar o
interesse, que em muitos é inexistente em nossa disciplina, tive
preferência em entrar munido de um instrumento não muito utilizado em
aulas comuns, afinal aquela aula tinha como objetividade, não ser uma 8

aula normal, justificar a importância do tempo e da história no cotidiano


das pessoas e de sua sociedade. O violão serviu-me como ferramenta para
exemplificar o tempo, remontando os pensamentos de Santo Agostinho. O
tema da aula: o tempo.
Para Agostinho, a única forma de verificarmos a existência do
tempo seria através da análise do tempo presente, presente na alma,
dividido em três partes:

Mas o que agora parece claro e manifesto é que nem o


futuro, nem o passado existem, e nem se pode dizer com
propriedade, que há três tempos: o passado, o presente e o
futuro. Talvez fosse mais certo dizer-se: há três tempos: o
presente do passado, o presente do presente e o presente
do futuro, porque essas três espécies de tempos existem
em nosso espírito e não as vejo em outra parte. O presente
do passado é a memória; o presente do presente é a
intuição direta; o presente do futuro é a esperança.
(AGOSTINHO, 1964, XI, 20, 1)

Ao iniciar uma das canções, percebi que até mesmo os discentes,


que preferem a “companhia” do celular, interromperam sua rotina para
ouvir e despender de sua atenção ao explicar o que estava ocorrendo: as
três passagens do tempo, propostas por Santo Agostinho, a percepção,
sendo o momento de reflexão sobre a atividade, a expectativa de todos
em saber qual música estava sendo executada e a memória se construindo
uma vez que a aula estava por seu final. Uma vez alcançado o objetivo, a
dinâmica da aula também foi direcionada a outras turmas.
9

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, T.W., HORKHEIMER, M. Indústria Cultural: o esclarecimento
como mistificação das massas. In ___,_____.Dialética do esclarecimento
2.ed. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1986.
COHEN, Bernanrd. The Press and Foreign Policy. Princeton, NJ: Princeton
University Press. 1963.
SARTRE, Jean-Paul. L’Éxistentialisme est un Humanisme. Paris: Nagel,
1946.
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Tradução de Vera
Maria Xavier dos Santos. Revisão técnica Daniel Aarão Reis Filho. Bauru:
Educs, 2004.
AGOSTINHO, Santo. As confissões. Trad. Frederico Ozanam Pessoa de
Barros. São Paulo: Edameris, 1964.
OS CAMINHOS DA DISCIPLINA DE HISTÓRIA NA
EDUCAÇÃO BRASILEIRA

Daniele Cristina Frediani

Resumo
A organização do Ensino de História enquanto disciplina surgiu no cenário educacional
brasileiro em meados do século XIX, sob forte influência do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) fundado em 1838. Nesse momento histórico a disciplina
se pautava na narrativa dos “grandes feitos” dos supostos heróis nacionais membros
da elite e do clero. Essa forma de ensino de História perdurou por um longo período na
Educação Brasileira e seguia os moldes do modelo europeu de Ensino de História. A
disciplina de História sofreu uma forte modificação a partir de 1930 quando com a
Reforma Francisco e sob influência de movimentos escolanovistas passaram a se
desenvolver um abordagem generalista de história, apresentando ainda outros
sujeitos históricos, passou também a se evidenciar nesse momento o apreço a adesão
aos estudos sociais. A partir da lei n° 5692/71, durante o Governo Militar, a História e a
Geografia foram definitivamente substituída pelos Estudos Sociais , houve então a
aplicação dessa disciplina ao lado da Moral e Cívica. Na década de 1990 com a
desanexação da disciplina de História dos Estudos Sociais, passaram a se desenvolver
novas reformulações no ensino de História, influenciados por diversas tendências
historiográficas como a História Cultural, Social e do Cotidiano.Os currículos de História
foram sendo analisados e desenvolvidos de acordo com o corpo discente e docente.
Palavras-chaves : Ensino de História, Disciplinas Escolares e Educação.
Abstract 2
The organization of the Teaching of History as a discipline emerged in the Brazilian
educational scene in the mid-nineteenth century, under the strong influence of the
Brazilian Historical and Geographical Institute (IHGB) founded in 1838. In this historic
moment discipline were based on the narrative of the "great achievements" of
supposed heroes national members of the elite and clergy. This form of history
teaching has lasted for a long period in the Brazilian Education and followed the lines
of the European model of history teaching. The discipline of history suffered a sharp
change from 1930 when the Reformation Francisco and under the influence of New
School movement began to develop a general approach to history, also featuring other
historical subjects, also went on to highlight that time appreciation membership social
studies. From the n ° 5692/71 law, during the Military Government, History and
Geography were definitely replaced by Social Studies, then there was the application
of the discipline side of the Civics and with the historical and geographical studies. In
the decade of 1990 with the detaching of the discipline of History of Social Studies,
began to develop new reformulations in teaching history, influenced by different
historiographical trends such as Cultural History, Social and Daily. The History curricula
were being analyzed and developed according to the student body and faculty

Keywords: History of Education, School Disciplines and Education.


Quando se pensa na história da disciplina de História, uma
primeira questão que se faz necessária a se discutir, ao menos de forma
sucinta, é a história das disciplinas escolares

A definição utilizada atualmente define como


3
disciplina escolar o conjunto de conhecimentos
identificados por um título ou rubrica e dotado de
identificação própria para o estudo escolar, com
finalidades específicas ao conteúdo de que trata
formas próprias para sua apresentação (FONSECA,
2006, p.15).

De acordo com Thais Fonseca (2006) no final da Idade Média é


que a organização dos primeiros saberes se constituíram como disciplinas
escolares, resultantes de interesses de grupos e instituições, científicas e
religiosas.

O ensino de História no Brasil ficou direcionado por um longo


tempo a uma formação política e cristã da sociedade. “A História ensinada
era uma História Civil articulada a História Sagrada, aprendia-se a moral
cristã e o conhecimento histórico era utilizado como catequese” (PCN
História,1997. p.19). Afirmando essa pragmática Circe Bittencourt (2004)
relata que

desde o início da organização do sistema escolar ,a


proposta de ensino de Historia voltava-se para uma
formação moral e cívica ,condição que se acentuou no
decorrer dos séculos XIX e XX .Os conteúdos
passaram a ser elaborados para construir uma idéia de
nação associada à de pátria, integradas como eixos
indissolúveis.(BITTENCOURT.p.61,2004).
No Período Regencial Brasil (1831-1840), momento de grande
efervescência política devido a movimentos separatistas, usou-se o Ensino
de História para construir uma suposta “identidade nacional”. Para este
4
intento, foi criado em 1838, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), sob a incumbência do imperador D. Pedro II, o instituto previa
uma homogeneização de um passado nacional com ênfase nos grandes
feitos da monarquia e desvelo a História Europeia. O IHGB assumiu a
premissa de escrever a história oficial do País.

Neste mesmo momento histórico e sob influencia do IHGB, o


Ensino de História passou a se configurar como uma disciplina específica
do ensino secundário, sendo ministrado no Colégio Pedro II, que era
considerado público, mas era pago e voltado às elites.

A História do Brasil só foi introduzida no ensino secundário após


1855. Foram desenvolvidos programas para as escolas elementares, mas
mantendo a História Sagrada e também a História Nacional.

No final da década de 1870, foram elaboradas reformulações no


currículo, que visavam retirar a História Sagrada e criar apenas uma
História Profana, já que estavam surgindo discussões como: o fim da
escravidão, debates sobre o ensino laico, a transição do Império para a
República, e a proposta de separação do Estado da Igreja.
A História do Brasil seguia o modelo da História Sagrada com as
ações dos Santos e dos Heróis que construíram a nação.

“Os programas de História do Brasil seguiam o modelo


consagrado pela História Sagrada, substituindo as
narrativas morais sobre a vida dos santos por ações 5
históricas realizadas pelos heróis considerados
construtores da nação especialmente governantes e
clérigos.” (PCN de História,1997. p.20).

Percebe-se que o Ensino de História era somente através de


memorização e repetição oral dos textos escritos, com materiais escassos,
predominando apenas a fala do professor, transmitindo os conhecimentos
dos livros como algo único e acabado, sem nada a acrescentar.

Através de algumas mudanças que ocorreram no final do século


XIX, a implantação da República, a abolição da escravatura e a vinda de
imigrantes para o nosso país, o Ensino de História sofreu algumas
modificações, buscaram-se novos meios de ensino para uma possível
transformação do país.

“No plano do currículo, os embates e disputas sobre a


reelaboração de determinados conteúdos foram
essenciais para a definição das disciplinas escolares,
dividindo aqueles que o desejavam baseados em
disciplinas mais científicas, portanto, mais técnicas e
práticas, adequadas à modernização, e aqueles que
defendiam as disciplinas literárias, entendidas como
formadoras do espírito.(...) A História passou a ocupar
no currículo um duplo papel: o civilizatório e o
patriótico, formando, ao lado da Geografia e da Língua
Pátria, o tripé da nacionalidade, cuja missão na escola
elementar seria o de modelar um novo tipo de
trabalhador: o cidadão patriótico.” (PCN,1997.p.20)

Em 1930, com a criação do Ministério da Educação e Saúde


Pública e a reforma do ministro Francisco Campos, acentuou-se o poder
central do Estado e do controle sobre o ensino, havia um único modelo de 6

Ensino de História para todo o país, com ênfase ao estudo de História


Geral. A educação estava sofrendo grande influência do movimento
escolanovista, e discutia-se neste momento, a implantação dos Estudos
Sociais no currículo escolar em substituição à História e à Geografia. Com
processo de industrialização e urbanização houve novas questões para o
Ensino, preocupava-se com a inclusão dos povos brasileiros na História.

Alguns historiadores procuravam identificar as causas de nosso


atraso econômico, enquanto outros apontavam para a necessidade de se
buscar conhecer a identidade nacional, integrando as três raças
formadoras do país.

“Nessa perspectiva, o povo brasileiro era formado por


brancos descendentes de portugueses, índios e
negros, e, a partir dessa tríade, por mestiços,
compondo conjuntos harmônicos de convivência
dentro de uma sociedade multirracial e sem conflitos,
cada qual colaborando com seu trabalho para a
grandeza e riqueza do País.” (PCN, 2007.p. 21)

Após a Segunda Guerra Mundial, ocorreram muitas lutas


referentes ao Ensino de História, e também um grande avanço dos
Estudos Sociais. “Podem-se identificar dois momentos significativos nesse
processo: o primeiro ocorreu no contexto da democratização do País com
o fim da ditadura Vargas e o segundo durante o governo militar.”
(PCN,2007. p.22) A História passou a ser considerada uma disciplina de
extrema importância para a formação da cidadania. Começou, então, a
apresentar-se conteúdos mais humanísticos e pacifistas, e também um
imenso cuidado na organização curricular e na produção de materiais 7

didáticos.

(...) A Unesco passou a interferir na elaboração de


livros escolares e nas propostas curriculares, indicando
possíveis perigos na ênfase dada às histórias de
guerras, no modo de apresentar a história nacional e
nas questões raciais, em especial na disseminação de
idéias racistas e preconceituosas.” ( PCN, p.22)

Havia uma grande necessidade do Ensino de História trabalhar


tanto os processos econômicos como os avanços tecnológicos e culturais
do país, e com isso as disciplinas de História e Geografia passaram a dar
mais espaço para os Estudos Sociais.

A partir da lei n° 5692/71, durante o Governo Militar, a História


e a Geografia são definitivamente substituída pelos Estudos Sociais, houve
então a aplicação dessa disciplina ao lado da Moral e Cívica e com estudos
históricos e geográficos.

Nesse período houve muitas mudanças, tanto no Currículo como


nos métodos de ensino, as propostas metodológicas relatavam que os
estudos sobre a sociedade deveriam estar vinculados aos estágios de
desenvolvimento psicológico do aluno, iniciava-se o estudo do mais
próximo, a comunidade ou o bairro, indo sucessivamente ao mais
distante, o município, o estado, o país e o mundo; a história do mundo,
por exemplo, não era ensinada na Escola Primária. Podemos citar também
o ensino obrigatório de oito anos da escola de Primeiro Grau; o fim do
exame de admissão, a criação das licenciaturas curtas, como exemplos 8

dessas mudanças que ocorreram nesse período.

A partir da década de 80, iniciou-se o processo de


redemocratização do país, onde os conhecimentos passaram a ser
questionados, ocorrendo algumas reformas curriculares.

As reformulações datadas entre 1985 e 1995 revelam que os


Estados de Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio
Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, decidiram por extinguir os
Estudos Sociais, apresentando propostas especificas para as disciplinas de
História e Geografia.

As escolas apresentavam uma nova realidade, com uma nova


clientela de alunos de diversas classes sociais. Alguns faziam parte do
processo de migração do campo para a cidade, e estavam rodeados de
novas tecnologias. Essas eram algumas das mudanças que não poderiam
ser ignoradas. As propostas curriculares passaram a ser influenciadas por
diversas tendências historiográficas como a História Cultural, Social e do
Cotidiano.

Os historiadores voltaram-se para a abordagem de


novas problemáticas e temáticas de estudo,
sensibilizando por questões ligadas à História
Social,Cultural e do Cotidiano, sugerindo
possibilidades de rever no Ensino Fundamental o
formalismo da abordagem histórica tradicional.
(PCN,2007.p. 24)

Os currículos de História foram sendo analisados e 9

desenvolvidos de acordo com a clientela a ser atendida, os conteúdos


foram ampliados a partir das escolas de Educação Infantil e dos primeiros
anos do Ensino Fundamental. Obtiveram-se novas formas de trabalhar a
disciplina de História, enquanto uns optaram pela forma cronológica,
outros preferiram temas (eixos temáticos).

Referências

BRASIL. Lei n°5.692, de 11 de agosto de 1971 . Fixa as Diretrizes e Bases da


Educação Nacional. Disponível em: http://www.prolei.inep.gov.br Acesso
em 16 de novembro de 2014.

BITTENCOURT, Circe M. Fernandes. Ensino de História: fundamentos e


métodos. São Paulo:Cortez,2004.

FONSECA, Thaís Nivea de Lima. História e Ensino de História- 2ª ed,


1ªreimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2006

Parâmetros Curriculares Nacionais – História e Geografia. Brasília: MEC,


SEF, v. 5,1997.

___________Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


Curriculares Nacionais: História. 5ª a 8ª séries. Brasília: MEC/SEF, 1998.
A SOCIEDADE PAULISTA DOS ANOS DE 1920: UMA
ANÁLISE A PARTIR DA OBRA ORFEU ESTÁTICO NA
METRÓPOLE
Denis Henrique Fiuza1
Rodrigo dos Santos2 1

Resumo: Vários historiadores se dedicaram a estudos e a construção de obras sobre a


sociedade e a cultura paulista do século XX. Dentre eles, se encontra Nicolau Sevcenko,
autor da obra Orfeu Estático na Metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos
frementes anos 20. O objetivo desse artigo é realizar uma análise historiográfica da
obra de Sevcenko, principalmente de suas investigações sobre os imaginários e
mentalidades da sociedade paulista em constantes transformações nos anos 1920.
Para tal, elabora-se um esboço de revisão historiográfica e um estudo de caso
referente a obra Orfeu Estático na Metrópole. Verificam-se a importância dessa obra
tanto na literatura quanto na história, e a contribuição com os conceitos que envolvem
a modernidade. A obra Orfeu Estático na Metrópole esmiúça o contexto de explosão
da arte moderna e da transformação estrutural da Cidade de São Paulo nos anos 1920,
e a partir de fontes exclusivamente literárias, Sevcenko realiza uma extensa análise da
produção modernista, e a entrecruza ao cenário de urbanização da cidade, e do
desenraizamento e fragmentação no cotidiano dos paulistanos da época.
Palavras-Chave: São Paulo, Modernidade, anos 1920.

1
Graduado em História, pela Universidade Estadual do Centro-Oeste/UNCENTRO. E-mail: denis-
fiuza@hotmail.com
2
Graduado em História (UNICENTRO). Especialista em Educação do Campo (ESAP) e Docência do Ensino
Superior (UNOPAR). Mestre em História (UNICENTRO). Atualmente é professor substituto da
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS/campus Laranjeiras do Sul. E-mail:
digao_santos9@hotmail.com
Resumen: Varios historiadores han dedicado al estudio y construcción de obras sobre 2
la sociedad y la cultura de Sao Paulo del siglo XX. Entre ellos se encuentra Nicolau
Sevcenko, autor de Orfeu Estático na Metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos
frementes anos 20. El propósito de este artículo es el análisis historiográfico de la obra
de Sevcenko, principalmente por sus investigaciones sobre el imaginario y la
mentalidad de la sociedad São Paulo en constante transformación en la década de
1920. con este fin, elabora una revisión historiográfica de esquema y un estudio de
caso de la obra Orfeu Estático na Metrópole. Comprobar la importancia de este trabajo
tanto en la literatura y en la historia, y la contribución a los conceptos que rodean la
modernidad. El trabajo estático Orfeu Estático na Metrópole disecciona el contexto
explosión de arte moderno y la transformación estructural de la ciudad de São Paulo
en la década de 1920, y de fuentes puramente literarias, Sevcenko realiza un extenso
análisis de la producción modernista, y cruza la escena urbanización de la ciudad, y el
desarraigo y la fragmentación de la vida cotidiana de Sao Paulo en el momento.
Palabras clave: Sao Paulo, modernidad, 1920.
Introdução
Essa vida moderna que nos leva a todos a toda parte,
todos os dias (e todas as noites!), leva-nos também a
novos hábitos e a novo espírito (Novos tempos, OESP,
19/06/1920, apud SEVCENKO, 1992, p. 3).
3
Foi sob a identificação do “novo” que Nicolau Sevcenko (1992)
pautou sua obra Orfeu Estático na Metrópole. Para o autor, o ineditismo
da experiência histórica que a cidade de São Paulo viveu nos anos 1920 é
fruto tanto de um caos avassalador, quanto de uma matriz de nova
vitalidade emancipadora. Novos tempos e ares, novos homens e
mulheres, e paisagens que se transformam incessantemente. A
modernidade chega à cidade de São Paulo destruindo suas antigas
estruturas.
Com base nisso, aborda-se ao longo dessa análise, algumas
características da trajetória de Sevcenko, faz-se uma contextualização
histórica, uma exposição do conteúdo e uma análise historiográfica de sua
obra. Orfeu Estático na Metrópole foi publicado pela primeira vez em 1952
pela editora Companhia das Letras. Segundo Dias (1992), autora do
prefácio da obra de Sevcenko, o tema central desse livro é a crítica da
modernidade e da vida urbana, além disso, seria uma narrativa com
múltiplos focos, sujeitos e temporalidades com interação constante.
Esse trabalho divide-se em três itens. No item “A cidade de São
Paulo, Sevcenko e os anos de 1920”, apresenta-se o espaço onde se
desenrola a trama de experiência de Sevcenko, algumas características da
trajetória do autor e adentra-se ao período histórico em questão. No
segundo item, intitulado “A cidade de São Paulo observada pela
literatura”, faz-se algumas reflexões sobre o uso de fontes literárias na
escrita da História. No terceiro item, denominado “Os anos de 1920 e o
florescimento da arte moderna”, aborda-se os efeitos da modernização da
cidade sobre os movimentos artísticos que chegam ao seu ápice na 4

década de 1920.

A cidade de São Paulo, Sevcenko e os anos de 1920


A cidade de São Paulo e os anos 1920 são o cenário dos vários
acontecimentos e das novas manifestações culturais que foram
articuladas por Nicolau Sevcenko (1992). Além disso, a obra é marcada
pelo processo de crescimento e urbanização da cidade, pela Primeira
Guerra Mundial (1914-1918) e pela explosão da Semana da Arte Moderna
em 1922. Ainda é importante ressaltar, nesse primeiro momento, que
essa obra é dividida em quatro capítulos, além da introdução e do
prefácio. Esse segundo, escrito por Maria Odila Leite da Silva Dias,
também será utilizado como suporte neste texto.
Outro ponto importante é apresentar o local de produção do autor 3,
que explica um pouco do contexto desse objeto. O autor da obra Orfeu
Estático na Metrópole, Nicolau Sevcenko é filho de imigrantes russos,
nascido no Brasil, mais especificamente em São Paulo, em 1952. Sevcenko
iniciou o curso de bioquímica, mas decidiu-se pela graduação em história.

3
Segundo Certeau (1982, p. 66): “Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção
sócioeconômico, político e cultural. [...] É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se
delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se
organizam”. O lugar de produção de um pesquisador apresenta características que marcam sua obra,
por isso, o local de produção se torna igualmente relevante na análise.
Graduou-se em 1976, na Universidade de São Paulo, onde é professor
titular desde 1999. Hoje, circula entre São Paulo e Londres, onde é
membro do Centre for Latin American Cultural Studies (Centro de Estudos
Culturais da América Latina), da Universidade de Londres. É também
editor-associado de The Journal of Latin-American Cultural Studies (Jornal 5

de Estudos Culturais latino-americanos), uma publicação da Universidade


de Cambridge, Estados Unidos (SEVCENKO, 2006).
Ainda, retratando alguns aspectos do autor, Nicolau Sevcenko é um
historiador culturalista4 e, além de ser especialista em estudos históricos
da cultura brasileira, ele escreveu inúmeras obras que combinam
ferramentas literárias e o rigor do método historiográfico. Sevcenko é
conhecido nacionalmente, principalmente pelo seu interesse em
comunicar-se com o público, ao ceder inúmeras entrevistas a televisão,
revistas e diários virtuais (blogs). Além de possuir uma narrativa com
forma simples e profunda em suas obras, ele faz questão de ceder
entrevistas e abordar diversos temas, tanto históricos, quanto de outras
áreas (SEVCENKO, 2006).
Além disso, Nicolau Sevcenko contribuiu para a consolidação da
História Cultural no Brasil, com o seu livro Literatura como Missão que
teve grande repercussão. O principal empecilho sofrido pela História
Cultural, não só no Brasil, era o de ser ligada a ficção e, sendo ficção, não
poderia servir como fundamento de um trabalho que tenha compromisso
com o referencial da realidade. Desse ponto de vista, a literatura não

4
O pesquisador Burke (2005, p. 68) apresenta uma tentativa de definição para a História Cultural,
perspectiva de história denominada em 1989 por Lynn Hunt. Esse tipo de História é a forma dominante
praticada na atualidade. Sua característica principal é a fragmentação de objetos e temas.
parecia ser um material particularmente adequado para um trabalho de
historiador (SEVCENKO, 2006).
Em entrevista concedida a Revista de História, Sevcenko (2006)
destaca o momento em que a obra recebeu uma boa qualificação.
Segundo ele, foi só depois que a banca de doutorado, preenchida por 6

professores reconhecidos nacionalmente como Sergio Buarque de


Holanda, Rui Coelho, Boris Schneiderman e Maria Tereza Petroni5, que a
sua obra teria recebido legitimidade no campo científico. Para eles, a
História do tipo Cultural era relevante, sem contar a qualidade da obra de
Sevcenko.
Essa questão cultural também é visualizada em Orfeu Estático na
Metrópole, principalmente pela escolha das fontes, que são
majoritariamente literárias, além disso, a obra foi escrita em 1992 e
discute a relação entre cultura, modernização e urbanização da cidade de
São Paulo em 1920. O século XX é a especialidade de Nicolau Sevcenko,
principalmente pelas guerras e conflitos que influenciaram sua vida. Sua
família veio para o Brasil fugindo do contexto violento que se instalou na
Rússia com as ditas revoluções do início do século XX. Sevcenko (2006)
relata que ele e seus familiares vivem até hoje os traumas causados pelos
conflitos, e que a opção da família pelo silêncio sobre o passado vem
despertando grande curiosidade pela história do século XX que
compreende o contexto russo.

5 Dentre as obras desses autores encontram-se de Ruy Coelho: Os Caraíbas Negros de Honduras, Tempo
de Clima e Dias em Trujillo: um antropólogo brasileiro em Honduras; Boris Schneiderman com a obra
Guerra em Surdina: histórias do Brasil na Segunda Guerra Mundial; e Maria Tereza Petroni com a obra O
Barão de Iguape e O imigrante e a pequena propriedade.
No século XX, Sevcenko conviveu, e sem dúvida foi influenciado, por
Eric Hobsbawm (1995), com quem dividiu uma sala na Universidade de
Londres. Percebe-se a influência de Hobsbawm (1995), na obra de
Sevcenko (1992) principalmente quando ele trata da “Grande Guerra 6”, ou
mesmo, da “Guerra Total” e de outras questões mundiais que envolvem o 7

“Breve Século XX”.


Além de Hobsbawm, Sevcenko conviveu com Sergio Buarque de
Holanda7, principalmente na USP (Universidade de São Paulo). Segundo
Sevcenko (2006), a principal diferença entre Hobsbawm e Sergio Buarque,
é uma questão de olhar. Hobsbawm é mais do geral, universalista, ligada
ao marxismo, enquanto que Holanda, é do singular, do micro, ao invés de
ver o mundo a partir de uma dinâmica dominante. Sérgio Buarque enfoca
sua visão de mundo a partir dos elementos contingentes que constroem
dinâmicas próprias.
Conforme explica Sevcenko (2006), o historiador é capaz de
conciliar as duas formas de conceber o mundo, mas precisa “trabalhar
costurando entre uma e outra posição”, ele precisa conseguir articular o
micro e o macro a todo momento, “sem perder esse vigor da palpitação
da vida”, e assim, ampliar o horizonte de análise. Essa relação entre micro
e macro também é evidente na obra Orfeu Estático na Metrópole,
Sevcenko realizou uma viagem a Inglaterra em meados da década de 1980
que foi essencial para a escrita da mesma, principalmente pelo contexto
que o país vivia durante a revolução da microeletrônica. As

6
Esse conceito encontra-se na obra: Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991 (HOBSBAWM,
1995).
7
Entre as obras de Sérgio Buarque de Holanda, encontram-se Visões do Paraíso e Raízes do Brasil.
transformações estruturais e o “boom” da industrialização paulista do
início do século XX e sua influência na cultura e na mentalidade do povo
eram similares àquela situação causada pelos efeitos da microeletrônica
na Inglaterra. O sentimento de estar em uma cidade onde “Tudo o que é
solido desmancha no ar” é a principal questão a ser respondida na obra. 8

Assim como fez Berman (1986), em sua obra “Tudo o que é solido
desmancha no ar”, o objetivo de Sevcenko (1992), foi compreender a
modernidade, e por consequência, os seus efeitos sobre a sociedade. Essa
modernidade é um sentimento compartilhado por homens e mulheres do
mundo todo, é um conjunto de experiências. Tanto o tempo, quanto o
espaço são palcos de constantes transformações, de aventura, de poder e
de crescimento, mas também um sentimento de ameaça, em que a
própria modernidade destrói tudo o que é sólido, ou seja, as posses, os
saberes e as existências.
A conhecida frase de Karl Marx “tudo o que é sólido desmancha no
ar” é utilizada por Berman (1986) e Sevcenko (1992) para elucidar o
contexto de desintegração do mundo moderno. Segundo Berman (1986),
a modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e
nacionalidade, de religião e ideologia, e nesse sentido pode-se dizer que a
modernidade une a espécie humana. Apesar disso, é uma unidade como
desunidade, porque ela nos despeja num turbilhão de permanente
desintegração, mudança, contradição e angústia. Nesse sentido, Berman
(1986, p. 15) afirma que “ser moderno é fazer parte de um universo no
qual, como disse Marx “tudo o que é sólido desmancha no ar”.
Outros elementos relevantes da obra de Sevcenko são, segundo
Dias (1992), a hermenêutica e a narrativa. O autor realiza a intersecção
entre dois polos, a hermenêutica dos processos culturais de forma
dialética, interpelando o cotidiano e as relações de poder entre os sujeitos
da década de vinte e de outros períodos. Já a narrativa de Sevcenko 9

(1992) é resultado de uma característica pessoal, a sua iniciativa de


produzir obras acessíveis e instigantes, que facilitem o contato com um
público cada vez mais amplo. Segundo Dias (1992, p. 17), Sevcenko se
aventura por uma linguagem poética e fragmentada.
O título da obra reflete também a intenção de Sevcenko (1992), ao
se preocupar com a cultura, na figura do “Orfeu”, ele destaca o papel do
invisível na história. Retirado da mitologia grega, o Orfeu era uma espécie
de músico sedutor, presidindo rituais de exaltação e de êxtase coletivo,
fazendo uso da prosa e verso (SEVCENKO, 1992, p. 17). Segundo Saliba
(1993, p. 01), “numa de suas inúmeras e obscuras versões, o orfismo
concebia duas almas para os homens, a psyche, espécie de alma visível
que desaparecia com a morte, e a alma invisível, eternizada em sucessivas
migrações”. Era com esta última que Orfeu se comunicava com os homens
através da catarse e do êxtase coletivos.
Nicolau Sevcenko (1992), utiliza o orfismo como uma metáfora para
a compreensão da história de São Paulo nos anos de 1920. E como aponta
ainda Saliba (1993, p. 01), “é o percurso do historiador da cultura que
também parece cheio das mesmas sombras, ciladas e complexidades do
orfismo, pois está fundado mais na sondagem das coisas invisíveis do que
das visíveis”. Sevcenko analisa a partir do invisível, do simbólico, da arte, e
da literatura, tudo aquilo que expressa a modernidade, ele procura captar
“o ser moderno” através dos rastros deixados pelas fontes literárias.
Nessa perspectiva, Sevcenko (1992, p. 18) explica porque usou a
figura do “Orfeu”:
10

Essa figura literária nos serve apenas como uma


imagem sugestiva, a fim de sondar o papel
desempenhado pelas projeções culturais numa
sociedade passando por um processo de exacerbações
de tensões, em curso de se tornar uma megalópole
moderna. Os anos 20 assinalam uma etapa decisiva
desse processo e tem particular significação pelas
iniciativas de definição de um padrão cultural de
identidades que caracterizam o período.

Os anos de 1920 se enquadram num processo de transformações


sociais, culturais e políticas, mas essa década “assinala uma etapa
decisiva”, porque representa um marco em muitas áreas que estão
prestes a ascender e a envolver a sociedade, uma nova sociedade.
Essa nova sociedade é cada vez menos fragmentada, pois, segundo
o autor, os anos de 1920 inauguram a era da coletividade. É na multidão
em movimento que a nova São Paulo irá desenvolver suas novas
habilidades, sendo elas a cultura, a arte e o esporte. Esses elementos
atraíram milhares de pessoas para as ruas, para as praças, para os
estádios; sendo necessárias reformas para comportar a todos. Outra
inovação é com relação às mulheres, que viviam condenadas ao lar e ao
“chá da tarde”8 salvas as exceções, ocuparam seus lugares em muitas
atividades da vida moderna.
A obra de Nicolau Sevcenko (1992, p. 18), demonstra esses
confrontos sociais entre classes, gêneros e gerações. Desses confrontos se
reorganizam os sistemas simbólicos e as percepções da coletividade, 11

resultado também do novo ritmo e intensidade da vida numa metrópole


moderna. Assim, o ambiente urbano se transforma cada vez mais no
ambiente das coletividades.
Essa perspectiva de Sevcenko (1992) pode ser comparada com
Bourdieu (2001). As percepções coletivas são resultado da formação de
um sistema simbólico, que exerce poder e influência, porque é
estruturado durante a construção da realidade social. Os símbolos são
instrumentos de integração e desintegração social, e as pessoas
envolvidas nesse sistema fazem parte de uma rede de poder, do poder
que ele denomina “simbólico”, união do capital econômico e cultural, que
só pode ser exercido com a “cumplicidade” daqueles que sofrem esse
poder.

A cidade de São Paulo observada pela Literatura


O capítulo de número um, de Orfeu Estático na Metrópole,
apresenta alusão aos primeiros acontecimentos da década de 1920. O
capítulo inicia com o subtítulo “Carnaval na Babilônia”, ligando as grandes
concentrações de pessoas para as festividades de carnaval no ano 1919 e

8
A expressão “chá da tarde” é utilizada para fazer a alusão a tradição de ocupação feminina, que é
superada com a mudança dos hábitos e com o preenchimento dos lugares públicos também pelas
mulheres a partir de 1920 (SEVCENKO, 1992, p. 50).
o surgimento dessa “nova babilônia” com novas paisagens e
sensibilidades.
Conforme destaca Sevcenko (1992, p. 24),

Desde os seus primeiros dias, o ano de 1919 trouxe 12


uma inusitada excitação as ruas de São Paulo, Era
alguma coisa além da turbulência instintiva, que o
calor um tanto tardio do verão quase tropical da
cidade naturalmente incitava nos seus habitantes. De
tal modo esse novo estado de disposição coletiva era
sensível, que os paulistanos em geral, surpresos
consigo mesmos, e os seus porta-vozes informais em
particular, os cronistas, se puseram a especular sobre
ele.

É, segundo o autor, “um novo estado de disposição coletiva”, visto


de diversos ângulos, e nessa obra analisado através de crônicas e de
outras fontes literárias da época. A expressão “porta-vozes informais” nos
remete a um assunto abordado no início desse artigo, Sevcenko ironiza a
falta de importância dada a fontes literárias, a ponto de serem
consideradas pelo campo cientifico 9 como “informais”, ou mesmo,
ficcionais.
Sevcenko (1992) utiliza diversas fontes literárias, inclusive crônicas
e reportagens, destacando uma cena retratada pelos cronistas do início da
década de 1920, principalmente porque ela reflete a mudança de
conjectura da cidade, sendo a passagem da segunda para a terça-feira de
carnaval em 1919. O carnaval é retratado como símbolo de mudança de

9
A concepção de Campo Científico pode ser visualizada em Bourdieu (1983).
época. Sevcenko (1992, p. 25) destaca a opinião de um cronista do jornal
“O Estado de São Paulo”, considerado “cavalheiro de respeito”: “Desta vez
me diverti de uma maneira que me permitirei qualificar de imoderada”.
No relato percebe-se que até um “cavalheiro de respeito” tomou parte em
um evento relegado a outras classes sociais. A euforia e a comoção 13

haviam tomado conta das pessoas, da coletividade.


A sequência da festa de carnaval também desperta diferentes
percepções sobre esse novo contexto. Conforme Sevcenko (1992, p. 28), a
cena na Avenida Paulista é preenchida por outros três grupos de
espectadores: os mascarados exultantes nos carros em disparada, as
catadeiras com o rosto esquálido de aflição, e as caras empoeiradas dos
lixeiros apressados. Cada indivíduo vive de maneira diferente a mesma
experiência, concentradas no mesmo espaço e no mesmo intervalo de
tempo, mas, “não são um espaço e um tempo qualquer”. Eles agem ao
mesmo tempo, embora sejam ações desconexas. Entre esses grupos talvez
não tenha nenhum tipo de comunicação, mas cada um percebe aquela
paisagem de forma diferente. A Avenida Paulista, segundo Sevcenko
(1992), é o mostruário da vocação da São Paulo moderna.
Nesta obra de Sevcenko (1992), a cidade de São Paulo é
incompreensível até para seus moradores, que inclusive, eram diversos e
complexos, quanto a identidade da cidade. Da mesma forma que seus
habitantes procuravam compreender o enigma da cidade, acabavam por
ter que lutar para “não ser devorados por ela”. Nas palavras do autor:
De tal modo o estranhamento se impunha e era
difuso, que envolvia a própria identidade da cidade.
Afinal, São Paulo não era uma cidade nem de negros,
nem de brancos e nem de mestiços; nem de
estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana,
nem europeia, nem nativa; nem era industrial, apesar
do volume crescente das fabricas, nem entreposto 14
agrícola, apesar da importância crucial do café; não
era tropical nem subtropical, não era ainda moderna,
mas já não tinha mais passado (SEVCENKO, 1992, p.
31).

Segundo o relato de um cronista, utilizado por Sevcenko, após os


conflitos da Primeira Guerra Mundial, um clima de efervescência tomou
conta da Europa, um clima de folia e de loucuras desenfreadas, e segundo
ele, esse clima assustava os moralistas, mas ele se perguntava: como
poderia assustar, costumes que tinham se tornado tão universais e
generalizados?
Essa postura é explicada por Saliba (1993, p. 02):

No contexto internacional, a cultura européia também


atravessava os impasses do período pós-guerra,
mergulhando numa atmosfera turva de
desenraizamento e fragmentação social, pelos efeitos
ambíguos e combinados da revolução tecnológica, da
própria guerra e das novas perspectivas do
conhecimento.

A situação é complexa, pois a modernidade é filha de quase todos,


grande parte dos cidadãos a desejava, mas ao mesmo tempo, não sabiam
lidar com aquilo que ela acarretava. Como aponta Sevcenko (1992, p. 45),
todos haveriam de pagar o preço da metropolização de São Paulo. Tudo
era novo e em constantes transformações. Para os jovens não era tão
difícil se adaptar, principalmente em relação ao próprio corpo. O autor
destaca as transformações que a “Grande Guerra” 10 acarretaram no
indivíduo. O corpo, preparado pelo esporte, e para atuar militarmente,
também é instrumento da modernidade, de onde seriam retiradas 15

energias para funcionar as engrenagens.

Os anos 20 e o florescimento da arte moderna


Nicolau Sevcenko (1992) destaca em Orfeu Estático o mundo da
cultura e a explosão de novos movimentos artísticos. Do balé ao jazz, do
cubismo ao futurismo, dos mitos fascistas à patafísica de Alfred Jarry 11, era
um misto de fragmentação de novos estilos e um desenraizamento
generalizado. E juntamente com a explosão cultural, algumas outras
características contrastavam criando um cenário contraditório. De um
lado a expansão das belas construções arquitetônicas, e de outro, a
formação de cortiços e bairros pobres.
Outro ponto importante da obra é a extensa análise da produção
modernista, em que a criação artística é vista com um conjunto vivo de
práticas e eventos, síntese antitética de todo aquele imaginário, de
ritualização de fantasias coletivas, forjado na São Paulo dos anos 20
(SALIBA, 1993, p. 03). Isso fica explícito quando Sevcenko (1992, p. 178)
elenca uma série de imagens analisadas como fontes históricas do

10
Esse conceito foi mencionado quando se comentou da relação entre Sevcenko (1992) e Hobsbawm
(1995).
11
Alfred Jarry foi poeta, romancista e dramaturgo francês, inventando a ‘Patafísica’, considerada a
ciência das soluções imaginarias. Jarry foi também, um dos inspiradores do movimento artístico
Surrealismo.
período, e que servem também como ilustrações para instigar o leitor. Ao
analisar uma imagem que retrata uma cena de cinema, o autor afirma que
“música e dança se tornam as linguagens básicas dos anos [19]20”
destacando questões como o corpo e seu impacto físico e a exposição dos
sentimentos. 16

Nas imagens, Sevcenko (1992) aborda outros temas além da arte,


ele retorna ao tema da Guerra Total que invade o espaço civil e que
produz a revolução tecnológica. Além disso, ele expõe imagens que
representam a urbanização, a expansão das construções e edificações, e
os eventos que reúnem multidões. Temas que Sevcenko (1992) destaca
novamente nos últimos capítulos, após mencionar a arte e a cultura.
Outro ponto fundamental no último capítulo da obra aqui estudada
é o contexto social da cidade de São Paulo antes da Revolução de 1930.
Segundo Sevcenko (1992), “no final da década os tempos se tornaram
convulsos”. Já o eram desde 1924 com os bombardeios e a revolta que se
instaurou nesse ano, não só em São Paulo, mas também no Rio de Janeiro,
a conhecida Revolta do Forte de Copacabana. A figura de Luiz Carlos
Prestes renasceria em Getúlio Vargas 12.
Ainda conforme Sevcenko (1992, p. 305), “o último ato da História
se abre num anoitecer refrescante do início de janeiro de 1930, sob a
espessa garoa paulista, nas mediações da Estação do Brás e do lago da
concórdia”, Getúlio Vargas, haveria de marchar pelas principais ruas de
São Paulo acompanhado de uma multidão eufórica. A marcha é expressa

12
Os 18 do Forte de Copacabana’ (1922), aconteceu no Rio de Janeiro e foi a primeira revolta do
movimento tenentista, seu objetivo era o fim da República Velha e das oligarquias do poder.
por um narrador direto citado na obra de Sevcenko (1992, p. 305): “Assim
que por volta das 20 horas despontou o cortejo na várzea do Carmo, tive
um arrepio. Não era possível o que via! Caminhava não um cortejo, mas
uma imensa multidão”. Para o autor não restam dúvidas de que foi
Getúlio quem aproveitou de toda essa euforia para se promover. Ele 17

compreendeu a situação do país e se apresentou como a própria solução,


“a máscara que cabia a Luiz Carlos prestes, amolda-se a sua fisionomia”
(SEVCENKO, 1992, p. 306). O autor expõe um discurso de Getúlio, onde o
mesmo afirma que o movimento de 1930 é o mesmo movimento de 1922
da Arte Moderna, para ele as forças de 1922 alavancaram também a
revolução de 1930, mas, segundo Sevcenko (1992, p. 307), “Getúlio estava
longe de ser ingênuo”, porque ele estava aprendendo a usar as
ferramentas disponíveis.

Considerações Finais
A obra de Nicolau Sevcenko (1992) é um referencial para estudos de
história e literatura. A linguagem é envolvente e ao mesmo tempo
profunda, a partir dela o leitor constrói sua própria análise do passado e
do presente. Além disso, a obra aqui apresentada contribui para uma
leitura mais ampla e profunda da literatura e da arte da década de 1920,
identificando os fios que a ligam a vida da metrópole paulista dessa
década.
Os conflitos mundiais após 1914 transportaram a arte francesa
para o resto do mundo e com uma velocidade jamais vista. Segundo
Sevcenko (1992), a Semana de Arte Moderna e a expansão de suas
produções nas grandes cidades brasileiras é um reflexo do processo de
desenvolvimento das comunicações a partir da Grande Guerra. O tempo
teria encurtado, definiu o autor, e o processo de desestabilização dos
sistemas de crenças e símbolos, construídos por séculos, estava por
desmoronar. 18

A arte moderna chega ao seu auge com os conflitos mundiais, e


sua principal característica, segundo Hobsbawm (1995), seria a de
expressar com autenticidade, os anseios e as experiências dos artistas
desse contexto, e é nesse momento que ela se tornou dramaticamente
politizada. Sevcenko (1992) encerra sua obra citando uma frase de Sergio
Buarque de Holanda, “só a noite enxergamos claro”, se referindo a
expressividade da arte moderna, sendo que para Holanda “ a obra de arte
não exprime nunca uma solução, mas simplesmente uma atitude”, e uma
atitude sempre nova diante de uma situação.
A obra Orfeu Estático na Metrópole esmiúça o contexto de
explosão da arte moderna e da transformação da Cidade de São Paulo, ao
mesmo tempo, que desencadeia uma série de outras questões. Dentre as
várias contribuições do livro, destacam-se duas. A primeira contribuição, a
“revolução” historiográfica que ele significou ao ser publicado no contexto
da escrita da História no Brasil da época. A segunda contribuição, a obra
auxilia na compreensão do “turbilhão” de transformações físicas e
culturais da atualidade, e ajuda a perceber que ele está inserido num
processo.
Para findar esse texto, retorna-se a Berman (1986) que foi
dialogado com Sevcenko (1992) neste texto, voltar atrás é uma maneira
de seguir adiante, e a atitude de lembrar pode ajudar a levar o
modernismo de volta as suas raízes. Apropriar-se das modernidades de
ontem é ao mesmo tempo, uma crítica às modernidades de hoje e um ato
de fé nas modernidades, nos homens e mulheres modernos de amanhã.
19

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: Ortiz, Renato (org.). Sociologia.


São Paulo: Ática, 1983, p. 122-155.
______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: as aventuras da


modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1982.
DIAS, Maria Odila Leite. Prefácio. In: SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na
metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São
Paulo, Companhia das Letras, 1992.
HOBSBAWM, Eric. A era da guerra total. In: ______. Era dos Extremos: o
breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SALIBA, Elias Thomé. Cultura Modernista em São Paulo. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, p. 128-137.
SEVCENKO, Nicolau. A história como missão (entrevista). 2006. Disponível
em: < http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/nicolau-
sevcenko>. Acesso em 2 fev. 2016.
______. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos
frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
A EDUCAÇÃO E O “MUNDO DA CRIANÇA”: INTERFACES ENTRE
ESCOLA, GÊNERO E SEXUALIDADE

Georgiane Garabely Heil Vázquez1


1

RESUMO: Este artigo tem por objetivo debater acerca das interconexões possíveis entre a
categoria analítica de gênero e o espaço escolar. Neste sentido, a discussão aqui
problematizada abarca um debate conceitual sobre gênero bem como a analise do espaço
escolar destacando a educação infantil. Acredita-se que neste primeiro momento da
educação formal de crianças existe uma pluralidade de representações e práticas vinculadas
a categoria analítica de gênero. Tais representações acabam por influenciar ou até mesmo
moldar parte dos sujeitos que, desde a primeira infância, são induzidos a se comportar desta
ou daquela maneira, dependendo dos papéis de gênero que são atribuídos a seus sexos.
PALAVRAS- CHAVES- gênero, criança, escola.

ABSTRACT: This article aims to discuss about the possible interconnections between the
analytical category of gender and school space. In this sense, the discussion here covers a
problematic conceptual debate on gender as well as the analysis of the school highlighting
childhood education. It is believed that at this moment the formal education of children
there is a plurality of representations and practices linked to analytical category of gender.
Such representations end up influencing or even shaping the subjects that from early
childhood, are induced to behave this way or that, depending on the gender roles that are
assigned to their gender.
KEYWORDS-gender, child, school

1
Doutora em História da Universidade Federal do Paraná- nível Doutorado. Bolsista CAPES.
Notas preliminares

Os corpos pesam. Pesam, não apenas os quilogramas apontados em


balanças. Os corpos pesam por suas sexualidades e sobre os corpos pesam as
representações que são atribuídas a homens e mulheres. Pesam os papéis 2
sociais destinados por outrem, papéis definidos sobre corpos alheios. Existe
uma espécie de “política discursiva” sobre os corpos, sobre a materialidade
corporal e, portanto, sobre o sexo e sobre o gênero.2

Os corpos são alvos de um processo de construção social, que os substitui


por práticas discursivas e de poder, e as materializações que os corpos vão
adquirindo ao longo da vida indicam os processos nos quais estes se inscrevem
no tecido social. Partindo-se deste pressuposto, pode-se mencionar que os
sujeitos, as identidades e subjetividades que formam os indivíduos, são
formadas em virtude de ter passado por este processo de “sentir o peso” do
corpo, ou seja, o processo de assumir um sexo- vinculado com uma identidade
sexual.

Assim, o imperativo sexual possibilita certas identificações sexuadas –


sexuais e impedem ou negam outras. Fica claro que dentre as variadas relações
sociais existentes entre os seres humanos, as interações que envolvem os
papéis de gênero ganham destaque deste os primeiros anos de vida. Existem
em nossas sociedades diferentes mecanismos que transformam o corpo
“bruto”, ou seja, o corpo natural\ biológico em algo muito mais sofisticado e
sutil. Ao corpo biológico tais mecanismos sociais, com destaque para a escola,

2
Sobre a temática dos corpos ver BUTLER, Judith. Cuerpos que importam: sobre los limites materiales y
discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paídos, 2002.
iniciam um processo de atribuição de gênero. Neste sentido, por exemplo, ao
nascer biologicamente com um aparelho genital de mulher ou de homem o
individuo é exposto e, muitas vezes até convencido, de que deve agir de
determinada maneira em virtude de seu órgão sexual.
3
É neste sentido que é feita a materialização dos corpos, pois a partir das
atribuições dos pesos dados para cada corpo é que paulatinamente vão se
formando os sujeitos sociais. Os corpos pesam, porque é por meio desta
articulada engrenagem de moldura de mulheres e homens que boa parte da
sociedade acaba por dar uma “identidade social” aos corpos e, é por meio
desta identidade que alguns são socialmente aceitos, enquanto outros são
marginais, corpos desviantes.(BUTLER, 2002, p.23.)

Ao compreender que nossos corpos possuem um peso social, um peso de


um sexo e um peso de gênero pode-se argumentar que as crianças, cujos
corpos, via de regra, são pouco pensados, estariam a margem destes
mecanismos de pesos. Todavia, é justamente o oposto que ocorre. As crianças,
muitas vezes antes mesmo de nascerem já são mergulhadas nas engrenagens
de gênero. Um exame de ultrassonografia que aponte para a frase: “é uma
menina!” é motivo suficiente para comprar para aquele bebê apenas
determinado tipo de roupa, apenas algumas poucas cores de brinquedos, de
enfeites, de agasalhos. A simples frase : “ é uma menina” ou então “ é um
menino” é capaz de mergulhar o universo daquele futuro indivíduo em um
mar de representações de gênero e a partir destas representações estabelecer
toda uma lógica binária de planos, expectativas, sonhos e medos.
Se materializa sobre o corpo da criança, ainda no ventre materno, o peso
de seu gênero. Tal peso encontra reforço em toda teia familiar e, em seguida é
sistematicamente reforçado por um sistema escolar centrado na definição
clássica de papéis atribuídos a cada um dos sexos. A escola muitas vezes acaba
4
por ditar que “ meninos são assim, meninos agem assim. Meninas são desta
forma, agem desta forma!”.

A limitação e o peso atribuído aos corpos pela sociedade em geral e pela


escola deste a educação infantil acabam por podar ou ao menos diminuir a
felicidade, o prazer e até o desejo de conhecer e desfrutar do corpo. Entender
como tais limitações são sutilmente introduzidas no cotidiano escolar é o
caminho que será percorrido a partir de agora.

O feminismo e a criança

Para se refletir sobre a escola e as relações de gênero lá existentes, se faz


necessário entender como as desigualdades entre homens e mulheres
passaram a ser denunciadas para a sociedade. Neste sentido é importante
analisar a própria história do movimento feminista e de sua relação com a as
crianças e a maternidade.

O feminismo, como um movimento social, é um movimento moderno que


tem seu embrião nas ideias iluminista e nas concepções e transformações
efetivadas a partir das Revoluções Francesa e Americana. Tais movimentos
podem ser considerados fundadores dos ideais feministas na medida em que
almejavam a igualdade de direitos sociais e políticos. A ideia de que era
possível uma igualdade entre os homens levou a concepção desenvolvida por
algumas mulheres de que também era possível uma igualdade entre homens e
mulheres. Como nos lembra Costa (2009) neste primeiro momento, que
podemos historicamente classificar como meados do século XIX, a luta maior
do feminismo, ou talvez única, era pela igualdade jurídica. Desta forma o auge
5
da chamada “primeira onda” do movimento feminista foi com a luta sufragista.

No que tange a crianças, maternidade e infância, a chamada primeira


onda do feminismo, que se estende até as primeiras décadas do século XX,
adotou uma postura bastante maternalista. As reivindicações do movimento
no que se refere aos cuidados com crianças versavam sobre os direitos da mãe,
muitas vezes incorporando direitos trabalhistas como luta pela criação da
licença maternidade e a construção de creches para auxiliar as mães que
trabalhavam fora de casa. Dentro desta perspectiva percebe-se que o
feminismo deste momento não questionava de forma alguma o papel que a
maternidade exercia sobre a vida das mulheres. Tal fato se deve a vitoriosa
articulação feita por diversos agentes, como o religioso e o médico, entre a
felicidade feminina e a maternidade. A ideia de mulher-mãe era tal
naturalizada neste momento histórico que nem mesmo o movimento feminista
lembrou de problematizá-la.

Segundo Alves e Pitanguy (2009) para que a criança e a maternidade


fossem analisadas em suas dimensões multifacetadas foi necessário que tais
atores e práticas sociais fossem analisadas pelo viés do movimento feminista
em sua chamada ‘ segunda onda’. Este movimento não apresentou uma
homogeneização de ideias e muito menos de formas de atuação. Contudo,
pode ser considerado como um dos mais importantes movimentos sociais do
século XX, pois suas reivindicações provocaram mudanças significativas em
vários campos da sociedade. Essas mudanças se verificam deste a possibilidade
do voto feminino, como já mencionado, até questões vinculadas ao direito
reprodutivo e familiar como o aborto e o divorcio, fatos que modificaram
6
estruturalmente as normas familiares e sociais e que apresentaram reflexos na
escola e nas relações de gênero travadas dentro deste espaço.

Esta etapa do movimento, chamada de 2º onda, pode ser considerada


como um marco, como um divisor de águas, entre o feminismo igualitarista
(que foi chamado de 1º onda do feminismo e defendia majoritariamente a
igualdade civil) para um feminismo centrado na mulher, ou seja, onde a mulher
é sujeito das preocupações, iniciando desta forma a politização das chamadas
“questões privadas”, é o chamado feminismo da diferença. (Alves; Pitanguy
2009).

Para Scavone (2001) a partir da 2º onda do feminismo, a maternidade e


principalmente o cuidado com as crianças, o educar crianças e o “ser mãe”
começaram a ser compreendidos como uma construção social que designava o
lugar da mulher na família e na sociedade. Com esta reflexão as feministas do
pós-guerra denunciavam que a maternidade e a educação dos filhos ou de
crianças em geral como a principal causa da dominação do sexo feminino pelo
sexo masculino.

Sendo assim, neste momento do feminismo a relação com a criança, a


infância e os cuidados com os filhos foi reconhecida como um defeito que
acabava por confinar as mulheres em uma espécie de ‘bio-classe’. Desta forma,
a recusa a maternidade junto com a recusa de ser problematizar sobre as
questões de gênero na infância, seriam para essas feministas o primeiro passo
para eliminar a dominação masculina e possibilitar que as mulheres buscassem
ampliar seus horizontes, principalmente no espaço público. Uma das máximas
defendidas no período pelo feminismo era “os filhos que eu quiser e quando eu
7
quiser”, o que tornava evidente a reivindicação da livre escolha da maternidade
e não da obrigação de maternidade.

Tais reivindicação acarretaram em alguns direitos como a


descriminalização do aborto em boa parte dos países europeus e nos Estados
Unidos, além da revolução da pílula dos anos de 1960. Sendo assim, o
feminismo conseguiu reelaborar, ao menos parcialmente, as representações
sobre a maternidade e ampliou o que poderia chamar de ‘identidade feminina’,
uma vez que até este momento histórico a maternidade e a criança eram a
peças fundamentais na construção do sujeito mulher e, a partir dos
questionamentos feitos pela segunda onda do feminismo, a ‘identidade
feminina’ passou a ser vista de forma mais ampla e mais completa, buscando
novas potencialidades para a mulher em sociedade.

Após esta fase, chamada por alguns de feminismo radical, veio a pergunta:
será que as mulheres querem ser definidas sem a maternidade, e sem o
cuidado com as crianças? E a partir de então se estabelece um novo momento
na relação feminismo-criança.

A partir da década de 1970 o movimento feminista estabelece um diálogo


mais intenso com as ciências humanas e sociais de forma geral, fato que
reforça essa nova abordagem dada à relação com o mundo das crianças. O
feminismo passa a considerar algumas teses lacanianas que valorizavam o
protagonismo da mulher durante a gestação. O poder da mulher residia
justamente na capacidade de gestar o ‘outro’ dentro de si mesma. Para Cornell
(1987) dentro desta concepção, pela maternidade as mulheres poderiam se
relacionar com ‘o outro’ sem cair na armadilha de abdicar de sua própria
8
identidade. As crianças e a própria maternidade em si, que foram renegada
pelas feministas dos anos de 1950 e 1960 passaram a ser resignificadas e
percebidas como um potencial de poder insubstituível das mulheres, algo
quase que invejado pelos homens. Assim, a compreensão da maternidade
passou a ser de um poder bio-psico-social. Esta articulação entre maternidade
e poder serviu para aproximar o movimento feminista das demais ciências
sociais, como a psicologia e a própria antropologia (KITZINGER, 1978 ).

A partir dessas reflexões o movimento feminista apontou para uma


articulação entre as corretes mencionadas acima. O feminismo chegou ao final
do século XX ainda inquieto com relação a maternidade e as crianças. Porém,
neste momento não é apenas um fato biológico (maternidade) que determina
a posição das mulheres nas relações de gênero, mas a opressão ainda se dá
pelo significado social dado à maternidade, ou seja, a dominação de um sexo
sobre outro só pode ser explicada social e não biologicamente .

Cabe aqui dizer que a própria concepção de gênero pautada


exclusivamente na ideia da diferença ruiu. A ideologia da diferença de gêneros
força o sujeito diferenciado a uma guerra consigo mesmo e esta batalha é
travada não no campo biológico apenas, mas majoritariamente no campo
social. Assim, a opressão contra a qual as feministas lutavam e lutam não se
expressa pelo ‘destino biológico’ da maternidade, mas da significação e dos
discursos sociais atribuídos a maternidade. Esta abordagem que extrapola o
biológico pode ser verificada quando Gayle Rubin afirma:

“Gênero é uma divisão dos sexos imposta socialmente...


Homens e mulheres são, evidentemente, diferentes. Mas não o
são tão diferentes como dia e noite, terra e céu, yin e yng, vida e 9
morte. De fato, do ponto de vista da natureza, homens e
mulheres estão mais perto um do outro do que qualquer outra
coisa – por exemplo, montanhas, cangurus, ou palmas de
coqueiros. A idéia de que homens e mulheres são mais
diferentes um do outro do que qualquer outra coisa deve provir
de algum lugar que não seja a natureza” (Rubin, 1975, 179).

Esta nova abordagem do movimento feminista e do feminismo como


uma área na academia das ciências humanas e sociais, além de repensar as
questões vinculadas a mulher como cuidadora de crianças iniciou uma
revolução na própria categoria analítica de gênero. Se as chamadas ‘feministas
radicais’ da segunda onda denunciavam a maternidade como auge da opressão
feminina pois domesticava e limitava seus corpos de acordo com
determinações discursivas da religião, da ciência e da própria sociedade, o
feminismo do fim do século XX iniciou o questionamento desta diferenciação
biológica como sendo causador da discriminação.

Este momento do feminismo busca extrapolar as divisões, muitas vezes


limitadoras, do próprio gênero. Em ultima analise, uma revolução feminista
completa, libertaria mais que as mulheres. Libertaria formas de expressão
sexual, e libertaria a personalidade humana da camisa-de-força do gênero.
(CORNELL; THURSCHWELL, 1987).
Todavia, a maternidade, e a “obrigação” de cuidar de crianças, ainda é
um dos debates mais calorosos nesta discussão, tendo em vista que o útero é
um órgão impar no corpo da mulher, um órgão que não encontra similar no
corpo masculino. Assim a capacidade de gestar uma nova vida poderia colocar
10
sim a mulher em idade fértil como um ser diferenciado. Porém, as discussões
deste ‘novo feminismo’ se articulam no sentido de que a ideia de diferença
esta ligada a ideia de a autêntica diferença é inseparável de uma noção de
relacionalidade. Desta forma, se argumenta que Gênero não é uma substância
ou essência que, de modo exato, defina ou limite o que somos.

A tentativa audaciosa da desconstrução binária da categoria de Gênero


busca afirmar a multiplicidade e ao mesmo tempo inaugura a possibilidade de
que “o outro’ não está ali como limite. Assim, o próprio movimento feminista
inicia uma reflexão sobre suas práticas e discursos, principalmente no que se
refere as crianças.

Tal remodelamento dos papéis afetivos vinculados maternidade ou


simplesmente a criação de crianças vai ao encontro de uma negação veemente
de papéis estanques de gênero. Segundo Balbus (1987), Foucault considerou a
psicanálise como a “tecnologia-mestra” usada na sociedade contemporânea
para se tentar definir um Eu social. Isso se deu pelo uso de procedimentos que
incitavam os indivíduos a revelar ‘verdades ocultas’ sobre si mesmos na
tentativa de definir um sujeito individual que assume um determinado papel
sexual.

Ao criticar tal prática da psicologia Foucault questiona também a ideia de


identidade sexual individual e até a possibilidade de uma identidade individual.
Para ele o apego a uma identidade que se reconhece e é reconhecida por
outrem não resulta simplesmente de uma interação social, mas, sobretudo, é
resultado das formas de interações peculiares às ‘tecnologias da formação do
Eu’ que proliferam na chamada sociedade disciplinar. Desta forma a elaboração
11
de uma identidade individual, aqui analisada como a identidade de gênero, não
contesta, mas apenas confirma a força disciplinadora de alguns discursos.

Neste sentido é que o feminismo da contemporaneidade pretende


romper com categorias fixas e fechadas para o Gênero, pois a luta contra a
sociedade disciplinar, que tanto oprimiu as mulheres por meio do ideal
estereotipado de feminilidade, deve ser travada contra, e não em favor de uma
identidade sexual. Assim, acredita-se que o copo da mulher (e a maternidade
vinculada a ele) pode ser um dos elementos essenciais na formulação feminina
com o mundo. Mas o corpo não é suficiente para defini - lá como mãe nem
como mulher, ou seja:

“ (...) podemos voltar àquela promissora sugestão de Simone de


Beauvoir, a saber, que as mulheres não têm essência
absolutamente alguma [nem materna], e, pois, nenhuma
necessidade natural, e que, de fato, o que chamamos essência
ou fato material não passa de uma opção cultural imposta que
se tem disfarçado como verdade natural” (Butler, 1987, 154)

A educação infantil e a formação de sujeitos

A escola é um espaço multifacetado para a interação social.


Provavelmente um dos primeiros ambientes em que as crianças são inseridas
após o contato com os familiares e, muitas vezes, um ambiente profícuo para a
reconstrução ou perpetuação de valores tradicionalmente arraigados em nossa
cultura.

No que tange a ideia de escola, busca-se refletir especificamente sobre a


educação infantil, ou seja, o período escolar compreendido como aquele 12
frequentado por crianças de 0 a 6 anos incompletos. Sabe-se que a escola não
é o único espaço pedagógico ao qual a criança tem contato, todavia, se optou
por tratar aqui apenas do espaço pedagógico oficial, que tem na escola o seu
único representante. A educação e os atos educativos podem ser
desenvolvidos, debatidos e apreendidos em diversos locais e tal fato implica
em considerar a Pedagogia não como um mero domínio de habilidades ou
técnicas, mas como um modo de produção cultural diretamente envolvido na
forma como o poder e o significado são utilizados na construção e na
organização do conhecimento.

É notável que diversos estudiosos procuram pesquisar sobre o processo


educativo em diferentes níveis. Assim, os estudos voltados para a educação
infantil, a criança pequena e suas capacidades cognitivas, bem como o papel
da escola na vida de tais crianças têm aumentado consideravelmente nos
últimos anos. Mas as relações desenvolvidas no espaço escolar por estas
crianças não acompanham a mesma quantidade de pesquisas e investigações.
Fulvia Rosemberg (1990, 1994) nos chama atenção para o fato de que, via de
regra, os estudos e pesquisas sobre a educação infantil giram em torno
principalmente de questões referentes a desenvolvimento motor, afetivo e
cognitivo da criança, bem como a questões mais ligadas à formação de
profissionais, propostas pedagógicas e curriculares e políticas públicas para a
faixa etária de zero a seis anos. Segundo Rosemberg (1994) muitos desses
trabalhos são relatos de experiências vivenciadas no cotidiano das escolas
infantis, porém não chegam a tratar das relações de gênero ali presentes, ou
seja, pouco se escreveu sobre a educação de meninos e meninas,
13
principalmente na educação infantil. Temas como organização do currículo e
relação professor- aluno aparecem com frequência em trabalhos sobre a
educação infantil, mas as relações de gênero não são pensadas como
fundantes no processo pedagógico de crianças pequenas.

Destarte, é possível perceber que a maioria das pesquisas educacionais


ignora o fato de que a escola é um lugar que se constrói determinando e
sendo determinada pelas relações de gênero. A escola marca o gênero nos
corpos, reflete e até impõe um padrão de comportamento de gênero para
meninas e para meninos. A escola é um espaço sexuado, onde o sexo e a
sexualidade são marginalizados constantemente. Uma possível explicação para
esse fenômeno de “ocultação” do debate e da problematização sobre sexo e
gênero no ambiente escolar nos foi apontada por Tomaz Tadeu da Silva (1995),
pois para ele a explicação seria a existência de uma tradição crítica em
educação no Brasil, rigidamente apegada a esquemas fechados e estáticos de
análise, indiferente ao reconhecimento e incorporação da importância de
novos atores sociais. Neste viés, caberia apenas debater no ambiente escolar
questões voltadas para o cognitivo, o intelecto e no máximo, algumas
desigualdades sociais econômicas. Pontos vinculados as temáticas de gênero
não possuem uma tradição de debate público na pedagogia infantil do Brasil.
Verifica-se portanto, que a educação básica, em especial a educação
infantil, parece não se considerar a sexualidade como um dos participantes do
cotidiano escolar. Desta forma, a escola em seu modelo tradicional busca se
esvaziar dos debates e dos significados de gênero que constituem seu
14
cotidiano. Ambiente de convivência de meninos e meninas, homens e
mulheres, troca de olhares, de carícias e carinhos, troca de sonhos e de
amores, a escola nega seu papel de “sociabilidade afetiva”. Muitas vezes opta
por simplesmente proibir qualquer tipo de contato entre os sexos, proibir
qualquer tipo de manifestação de afeto e bem querer, na tentativa (sempre
frustrada) de “assexualizar” seu espaço.

Outro ponto importante é que ao não pesquisar as relações de gênero na


escola, pode-se não estar percebendo o modo como esta instituição social é
mais do que uma mera “reprodutora”, sem conflitos e problemas, de uma
determinada visão do que seja tradicionalmente masculino e feminino. A
escola reforça os padrões de gênero mas, as alunas e alunos não são vítimas
passivas desta construção social. Muitas vezes resistem, contestam e podem
apropriar-se diferentemente do corpo de conhecimentos sobre sexualidade
com os quais entram em contato na escola, formal e informalmente.

Como nos alerta Guacira Lopes Louro (2001) a escola é produtora de


diferenças, distinções e desigualdades. A primeira e grande desigualdade, da
qual muitas vezes nem nos damos conta, é a radical separação entre adultos e
crianças estabelecidas pela escola. Outras distinções também são feitas como
maior ou menor sutileza, como por exemplo, a separação de ricos de pobres e
também de meninos de meninas. Herdamos, e agora de muitas maneiras
mantemos, uma importante instância de fabricação de meninos e meninas,
homens e mulheres, que aprendem por meio da escola a usar apenas o espaço
destinado ao seu gênero. A demarcação rigorosa de banheiros em feminino e
masculino pouco foi questionada, até mesmo pelos estudos de gênero. Só
15
recentemente, com as questões de alunos homossexuais, transexuais e
travestis este debate foi paulatinamente sendo introduzido no cotidiano
escolar, mas ainda de forma muito rudimentar.

Assim, a escola pode ser caracterizada como um importante aparelho de


formação de corpos e de comportamentos sobre os corpos, uma vez que
determina e delimita trajetos, ações e reações dos corpos, desde a infância.
Todavia, como nos lembra Louro os indivíduos nunca assumem de forma
totalmente passiva estes papéis pois, “ativamente eles se envolvem e são
envolvidos nessas aprendizagens — reagem, respondem, recusam ou as
assumem inteiramente.”. ( 1997, 61) . Com isso, se observa a complexidade das
relações sociais traçadas na escola e as múltiplas facetas que as relações de
gênero pode assumir neste espaço tão peculiar.

O corpo, e em especial o corpo da criança é alvo constante das práticas


disciplinares. Há um aparato instrumental e institucional que busca
constantemente disciplina- lo quando busca fugir e escapar, seja por meio de
mecanismos repressivos, seja por um discurso que impõe às crianças uma
imagem estigmatizada de si mesmas (Frangella, 2000).

Existem teorias que pretendem justificar os comportamentos sociais de


meninos e meninas por seu sexo. Da forma que existem argumentações que
visam demostrar que os meninos são mais aptos para jogos, raciocínio lógico,
são mais competitivos e as meninas, mais doces e delicadas. Tais afirmações
baseadas no senso comum não levam em conta a influência dos processos de
socialização sobre a cognição, e neste ponto a escola assume papel central.

Deve-se, portanto, ter em mente que 16

“a denúncia do pretenso caráter fixo e binário de categorias


como feminino e masculino, contido nas explicações biológicas
para as diferenças cognitivas entre homens e mulheres, tem no
conceito de gênero parte do reconhecimento do caráter social e
historicamente construído das desigualdades fundamentadas
sobre as diferenças físicas e biológicas. As preferências não são
meras características oriundas do corpo biológico, são
construções sociais e históricas. Portanto, não é mais possível
compreender as diferenças entre meninas e meninos com
explicações fundadas na teoria do determinismo biológico e seu
uso consequente da anatomia e da fisiologia como justificativas
para as relações e as identidades de gênero na sociedade
moderna. (Vianna; Finco; 2009; p.269)
A revelia de tantas lutas do movimento feminista e mesmo de estudos de
gênero em diferentes áreas, nossa sociedade ainda é fortemente marcada pela
desigualdade entre homens e mulheres. Tal desigualdade pode até mesmo
afetar as pesquisas sobre o desempenho e o desenvolvimento cognitivo de
meninas e meninos, reforçando algumas verdades do senso comum sobre as
diferenças dos sexos. É de urgência demostrar que tais desigualdades não são
formuladas na esfera do biológico mas, são socialmente produzidas.

Para Vianna e Finco (2009), será somente ultrapassando as desigualdades


de gênero que será possível compreender o caráter social de sua produção.
Somente quando o “véu do silêncio” sobre as relações não igualitárias de
gênero no ambiente escolar for retirado a nossa sociedade compreenderá a
maneira como opõe, hierarquiza e naturaliza as diferenças entre os sexos,
reduzindo-as às características físicas tidas como naturais e,
consequentemente, imutáveis. “Implica perceber que esse modo único e
difundido de compreensão é reforçado pelas explicações oriundas das ciências
17
biológicas e também pelas instituições sociais, como a família e a escola, que
omitem o processo de construção dessas preferências, sempre passíveis de
transformações.” (Vianna; Finco, 2009, 273).

A escola e as relações de gênero: etnografias possíveis

Neste ponto gostaria de compartilhar as experiências de algumas


pesquisadoras da área de educação sobre suas observações no espaço escolar.
Tal espaço, como já mencionado anteriormente, é em sua essência plural e
multifacetado, todavia, quando pesquisadores conseguem ir além das questões
pedagógicas e cognitivas e analisam as relações de sociabilidades, de poder e
de gênero existentes de forma implícita ou explicita na escola, percebem o
quando o caminho para uma sociedade mais igualitária passa necessariamente
pela igualdade de gênero.

Segundo Daniela Auad (2006) foi somente na metade dos anos de 1980
que os pesquisadores de educação no Brasil, iniciaram a crescente a
necessidade de saber como a escola, em suas atividades habituais e rotineiras,
está implicada nos processos de diferenciação e de desigualdade entre o
feminino e o masculino. Esse desejo de conhecer as relações de gênero na
escola originou-se, em grande parte, nos movimentos sociais, com destaque
para o movimento feminista, nas universidades e nos grupos de pesquisa, ou
seja, não partir necessariamente dos educadores e educadoras da educação
infantil ou do ensino fundamental. Assim, ao longo da década de 1990, já havia
algumas pesquisas educacionais que buscavam saber qual uso era feito das
relações de gênero para organizar o trabalho na escola e, em contrapartida,
como o trabalho escolar poderia influenciar as relações de gênero socialmente
18
vigentes. Porém, cabe destacar que mesmo nos dias de hoje, as pesquisas
vinculando as relações de gênero e o espaço escolar não são muito numerosas.

Auad (2006) analisa as práticas escolares e as relações de gênero em uma


determinada escola, denominada por ela de modo fictício como Escola do
Caminho. Nesta escola, as professoras, ao se referirem ao grupo classe, não
diferenciavam meninos e meninas. Ao falarem com pesquisadoras, pais, mães e
com as colegas sobre situações em que queriam se referir ao grupo, como um
elemento pedagógico. Com frequência as professoras utilizavam apenas termo
neutro, apenas “alunos” ou “classe”. Tal neutralidade remete a um discurso no
qual se observa a adoção do masculino genérico, que desconsidera tanto o
sexo dos participantes do processo educativo quanto o masculino e o feminino
dos sujeitos e das práticas. Contudo, Auad observou que as professoras
pareciam não ter em mente tal desigualdade e talvez acreditassem que, ao
acatarem a comum neutralidade oficial, poderiam estar corroborando uma
ideia e uma prática de igualdade entre os gêneros.

Por meio de suas observações na escola do caminho, Daniela Auad


também procurou observar o comportamento da professoras. Muitas vezes as
professoras traziam à tona características consideradas tipicamente masculinas
ou femininas em situações de conflito, nas quais ocorriam problemas de
disciplina. Assim, várias vezes, para tentarem manter a classe em silêncio, as
professoras diziam, em tom de reprovação: “Até as meninas estão matracas
hoje!”.

Ao relatar esta frase a pesquisadora nos informa que as professoras, via


de regra, reproduziam os ideais e os estereótipos tradicionais de gênero, ou 19
seja, aos meninos cabia a fala, a locomoção constante e até em alguns casos a
agressividade. Já ao sexo feminino era reservado um papel mais delicado, de
respeito e silêncio. A reprovação ao comportamento falante das meninas
demostra claramente o quanto os estereótipos de gênero são reforçados na
escola.

A pesquisa de Auad (2006) ainda nos foi significativa ao mostrar que na


Escola do Caminho, são os meninos que marcadamente apresentam
“problemas de disciplina”. Mosconi destaca que uma explicação possível para
isso seria “a maior facilidade dos meninos de exteriorizarem sua recusa à
autoridade da professora, contestando-a” (MOSCONI, 1989, p.110). Várias
pesquisas na área de educação acabaram por observar que muitas vezes os
meninos indisciplinados sentando-se no fundo da sala, como que usando de
uma estratégia para marcar geograficamente a recusa da autoridade da
professora. Na escola do caminha estudada por Auad (2006) meninos
individualmente e em grupos, sendo indisciplinados, são muitas vezes
repreendidos, mas são também, e sobretudo, percebidos como exercendo seu
“papel” e sua independência na escola. No caso das meninas, a indisciplina
costuma ser menos tolerada. Para os meninos, parece haver a percepção de se
tratar de uma reação, como uma necessária mani- festação de sua
masculinidade. No que se refere às meninas, a indisciplinsa é vista até mesmo
como comportamento “avesso a natureza” por não fazer parte dos
estereótipos construídos socialmente para uma menina, ainda mais em
ambiente escolar. É como se de algum modo, se reunir em grupos, falar alto,
correr, etc. não estariam incluídos no que é previsto para o seu gênero
20
(MOSCONI, 1989, p.118).

Auad (2006), por meio de sua “etnografia da escola do caminho” observou


que de alguma maneira, tal interdição às meninas quanto a formarem grupos
parecia surtir efeito também no pátio. Isso se verificou ao observar que, na
maioria do tempo, as meninas estavam em trios ou duplas na hora do recreio.
Os grupos maiores eram compostos geralmente por meninos.

O direito a uma educação infantil de qualidade inclui a discussão das


questões de gênero. As relações das crianças na educação infantil apresentam-
se como uma das formas de introdução de meninos e meninas na vida social,
principalmente porque oferecem a oportunidade de estar em contato com
crianças oriundas de diversas classes sociais, religiões e etnias com valores e
comportamentos também diferenciados.

E é por meio desta pluralidade de contatos que começam a serem


travados na educação infantil que a criança vai formando sua construção sobre
o corpo, o sexo e o gênero. A educação infantil não só cuida do corpo da
criança, como o educa: ele é o primeiro lugar marcado pelo adulto, em que se
impõem à conduta dos pequenos os limites sociais e psicológicos. É o emblema
no qual a cultura inscreve seus signos.
O corpo é produzido, moldado, modificado, adestrado e adornado
segundo parâmetros culturais, e o corpo da criança é um campo profícuo para
a inscrição dessas modificações sociais, uma vez que é um corpo em formação.
O fato de pedir para uma menina a tarefa de ajudar na limpeza e ao menino
21
para carregar algo já demonstra como as expectativas são diferenciadas para o
corpo.

O minucioso processo de “feminilização” e “masculinização” dos corpos,


presente no controle dos sentimentos, no movimento corporal, no
desenvolvimento das habilidades e dos modelos cognitivos de meninos e
meninas está relacionado à força das expectativas que nossa sociedade e nossa
cultura carregam. Existem, portanto, diferentes formas de controle disciplinar
de meninas e meninos. Tais mecanismos estão intrinsecamente relacionadas
ao controle do corpo, à demarcação das fronteiras fixas entre feminino e
masculino e ao reforço de características físicas e comportamentos
tradicionalmente esperados para cada sexo nos pequenos gestos e nas práticas
rotineiras da educação infantil.

Daniela Finco (2009) em seu doutorado sob orientação de Claudia


Vianna(USP) pesquisando a educação infantil realizou trabalho de entrevistas
com professoras. Segue abaixo alguns trechos para análise:

“Normalmente as meninas são mais tranquilas que os meninos.


As meninas falam muito e os meninos são mais agitados assim
com o corpo. As classes com mais meninos são mais agitadas. As
meninas, eu costumo chamá-las de princesas, então é uma
relação mais meiga, mais doce mesmo. E os meninos são os
meus rapazes,… os meus rapazes são mais ativos, gostam de
correr, de pular, não param quietos no lugar” (Finco; Vianna,
2009 p 272 )

Esse conjunto de expectativas e práticas faz com que a criança pequena


22
que transgrida as fronteiras de gênero seja acompanhada e investigada
profundamente de forma individual, tornando-se um “caso”. Cria-se um
sistema comparativo que estabelece informações que comporão as bases para
o estabelecimento das normas para os “transgressores.” O “caso” é o indivíduo
tal como pode ser descrito, mensurado, medido, comparado a outros e isso em
sua própria individualidade; e é também o indivíduo que tem que ser treinado
ou re-treinado, tem que ser classificado, normalizado, excluído, etc.

Em outro trecho de entrevista com a professora, Finco (2009) apresenta o


relato de total demarcação dos papéis de gênero e como os “desviantes” são
vistos com desconfiança por parte dos adultos.

Tenho um caso de um menino que quer vestir vestido de noiva. A primeira


vez ele chegou para mim e disse: “Coloca em mim este vestido de noiva?” Eu
falei: “Nossa, esse vestido de noiva?” Ele me disse: É, é!” Então eu coloquei,
não falei nada. Ele ficou rodando para lá e para cá com aquele vestido todo
rendado, ficou um tempão com o vestido gostando muito. Já numa segunda
vez eu falei: Pega uma outra fantasia, você pega sempre a mesma, tem outras
tão bonitas!” Ele insistiu, ele queria pôr e eu coloquei o vestido nele na
segunda vez. Mas na terceira vez eu juro que não pus..., falei “Ah, vai lá, pega
outra fantasia, essa não!”, e ele foi lá e voltou com uma fantasia de rumbeira,
aquelas coisas cheias de babados, ah meu deus! Eu ainda tentei dizer “Mas isso
não te serve”, tentei fazer com que ele esquecesse da fantasia, mas não
adiantou. É muito difícil ele ir lá e pegar uma coisa que seja de menino, ele se
atrai pelas fantasias de menina. (Finco, Vianna 2009, p 276).

Pelo relato se percebe até uma certa indignação da professora com 23


relação a postura do menino. A masculinidade, para ela, foi colocada de lado.
Por diversas vezes a professora retoma o “caso” do menino e procura
demonstrar seu interesse em coloca-lo dentro dos padrões demarcados para o
sexo daquela criança, conforme trecho da entrevista :

Quando chega à brinquedoteca ele vai logo para as fantasias.


Chegou um dia que ele vestiu o vestido e me disse que ia se
casar com o Pedro, para mim foi o basta. Quer dizer que ele
tinha a ideia que ali de noiva ele ia se casar com o Pedro, ele
poderia falar que iria se casar com a Julia, ainda tudo bem, né?
Mas não, ele dizia que ia se casar com o Pedro, ele era a noiva
mesmo no caso. As outras crianças não deram muita atenção
para ele com o vestido, não ligaram... Uma menina um dia
passou e disse “Ih, tia, olha!” Ela riu e já foi andando brincar
com outra coisa. E para ele também não tem problema nenhum,
ele riu também, para ela está tudo bem. Agora é difícil ele pegar
o vestido, às vezes dá uma luz nele e ele pega o vestido, mas
não é uma coisa que acontece constantemente. (Finco, 2009, p.
276).
Outro relato referente aos “desviantes” feito pela professora e relatado
na pesquisa de Daniela Finco foi:

“A mesma menina que gosta de jogar futebol, usa tênis com


cores diferenciadas. Se é uma menina nos moldes normais não
vai comprar um tênis bem masculino, vai comprar um tênis da
Barbie, da Hello Kit. Não vai querer um tênis verde musgo com
uma boca cheia de dentes na frente. Por isso nesse momento
ela fugiria dos padrões normais. E para ela isso é muito
tranquilo, e para as outras crianças da classe também, nunca
ninguém fez um comentário, nem percebem” (Finco, 2009, p.
277).

Assim como no caso dos gestos, as vestes, as operações que o corpo deve 24
efetuar no manuseio dos objetos requeridos pelo desenvolvimento da
atividade são submetidas a uma forma de poder, a “articulação corpo-objeto”.
Existe uma prática de controle apresentada por meio de uma relação entre o
corpo e o brinquedo, e nesta relação as representações e os estereótipos de
gênero marcam os corpos, moldando-os e classificando-os. A análise dessas
interações remete-nos a uma espécie de “vigilância hierárquica”; ao controle
sobre o corpo alheio, integrado por redes verticais de relações exercidas por
dispositivos que obrigam pelo olhar, pela visibilidade dos submetidos e
produzem efeitos de poder sobre os corpos, sejam eles infantis ou não. Tais
redes de vigilância com seus padrões de comportamentos e ações, acabam por
produzirem sujeitos...ou então, sujeitados.

Considerações Finais

A transgressão dos padrões socialmente aceitos costuma ser socialmente


mal vista e ridicularizada, uma das maneiras mais eficientes de reafirmar que
cada um teria que se conformar aos padrões tradicionais de gênero e,
principalmente, ao lugar que lhe cabe na sociedade. São preconceitos que não
resistem à razão, nem aos novos tempos.

As relações sociais trazem mecanismos que transformam o corpo


biológico, atribuindo-lhe SEXO e GÊNERO. E essa atribuição torna possível a
existência dos corpos na vida social. Assim, os corpos aceitos são aqueles que
vestem as roupagens que lhes foram designadas socialmente. Já os corpos
marginais, os corpos desviantes, os corpos que sobre eles pesam olhares e
desvios, nem sempre conseguem um lugar digno na teia social.
25
Os corpos são vividos no cotidiano como manifestações concreta das
práticas discursivas e de poder. Nesta configuração entram em jogo corpos e
“identidades” socialmente aceitas ou marginalizadas, todavia, como nos
lembra Butler (2002) não existe “identidade de gênero” pois a “identidade” é
performativamente construída.

Os “desviantes” são vistos como seres abjetos, culturalmente


inintelegíveis, ou seja, corpos que não importam. Contudo, Louro (2001)
lembra que esses seres abjetos são socialmente indispensáveis já que fornecem
o limite, a fronteira que não deve ser cruzada. Ainda nos falta um longo
caminho a percorrer para que consigamos uma sociedade mais igualitária, de
relações entre os gêneros onde a pluralidade e o respeito sejam a diretriz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, B. PITANGUY, J. O que é feminismo 8ed. São Paulo: Brasiliense, 2003.


BUTLER, Judith. Cuerpos que importam: sobre los limites materiales y
discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paídos, 2002
BALBUS, ISAAC D. Mulheres Disciplinantes: Michel Foucault e o poder do
discurso feminista. IN:CORNELL, D. (org) Feminismo como crítica da
modernidade. Releitura dos pensadores contemporâneos do ponto de vista da
mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 1987.
CORNELL, D. ; THURSCHWELL, A. Feminismo, negatividade, intersubjetividade.
IN------------ Feminismo como crítica da modernidade. Releitura dos
26
pensadores contemporâneos do ponto de vista da mulher. Rio de Janeiro: Rosa
dos tempos, 1987
COSTA, Ana A. A. O Movimento feminista no Brasil: dinâmica de uma
intervenção política. IN: PISCITELLI, A.; PUGA, V. ET ALL. OLHARES FEMINISTAS.
Brasilia: imprensa oficia, 2009
FRANGELLA, Simone Miziara. Fragmentos de corpo e gênero entre meninos e
meninas de rua. Cadernos Pagu (14), Núcleo de Estudos de Gênero –
Pagu/Unicamp, 2000, pp.201-234.
KITZINGER, S. Mães: um estudo antropológico da maternidade. Portugal:
Presença, 1978
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-
estruturalista. Petrópolis, Rio de Janeiro, Vozes, 1997.
____________________ (org.). O corpo educado :pedagogias da sexualidade.
Belo Horizonte, Autêntica, 2001.
MOSCONI, Nicole. La mixité dans l’enseignement secondaire: um faux-
semblant? Paris: Presses Universitaires de France, 1989.
RUBIN, G. “The Traffic in women : notes on the political economy of sex” New
York: Monthly Review Press, 1975.
ROSEMBERG, Fúlvia. Educação e gênero no Brasil nos anos 80 - versão
preliminar. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1994
ROSEMBERG, Fulvia. Mulher e educação formal no Brasil: estado da arte e
bibliografia. Brasília: INEP/Fundação Carlos Chagas, 1990
SCAVONE, L. A maternidade e o feminismo: dialogo com as ciências sociais.
Cadernos Pagu. São Paulo: 2001
27
SILVA, Tomaz Tadeu da Territórios contestados: O currículo e os novos mapas
políticos e culturais. São Paulo: Vozes, 1995.
VIANNA, Claudia; FINCO, Daniela. Meninas e meninos na Educação Infantil:
uma questão de gênero e poder. Cadernos Pagu (33), julho-dezembro de
2009:265-283
QUADRINHOS COMO FONTE:
POSSIBILIDADES DE ENTRE A FOICE E O MARTELO PARA
O ENSINO DE HISTÓRIA
Gildson Nascimento Pereira Vieira
1

RESUMO: Não é de hoje que a História em Quadrinhos é percebida como objeto de


estudo e de reflexo da sociedade que a produz, contudo, o seu uso como material
didático ainda possui restrições, muitas vezes não tão claras. Este trabalho pretende
acompanhar a ideia de que as histórias em quadrinhos podem ser usadas como fonte
de um estudo/discussão sobre determinado fato histórico em aulas de Ensino
Fundamental, ao sugerir a série Entre a Foice e o Martelo (2004), de Mark Millar, para
discutir a Guerra Fria e seu papel ideológico.

Palavras-chave: Super-Homem, Guerra Fria, Quadrinhos

Abstract: It is not new that comic books are known as na object os study and reflection
of the society that produces it, however, its use as teaching material still has
restrictions, often not so clear. This work intends to follow the idea that comics can be
used as a source of a study/discussion of certain historical facts in elementary school
classes, suggesting the series Entre a Foice e o Martelo (2004), by Mark Millar, to
discuss the Cold War and its ideological role.

Key-words: Superman, Cold War, Comics.


Talvez a personagem de histórias em quadrinhos mais icônica de todos os
tempos, o Super-Homem é aquela figura que aglutina todo um way of life
a que estamos acostumados a conviver a partir dos tempos de
globalização. Essa conexão de ideias que nos chega através da indústria
cultural e sua comunicação de massa compõem as vivências, as práticas e 2

os costumes a que, enquanto sociedade organizada e pautada por


elementos globais, estamos inseridos. Dessa forma, as histórias em
quadrinhos, elemento da comunicação de massa, espelham conceitos,
eventos, espaços e personagens que revelam nossas inquietudes,
enquanto observadores e agentes do espaço social em que vivemos.
A mitificação da figura do Super-Homem, assim como de qualquer
outro símbolo agregador de conscientes coletivos, oferece pauta para
análise do imaginário social de que tanto nos preocupa, sendo assim, a
utilização da personagem e dos seus símbolos já nos interessa por um
estudo de conceitos em si. Nesse patamar, Umberto Eco, por exemplo,
trata de nos alertar sobre a representação crítica da identidade humana
do Super-Homem, o tímido jornalista Clark Kent. Embaraçoso e motivo de
piada no trabalho, Clark Kent seria a crítica do Super-Homem à raça
humana, e aquele que o leitor logo se apoiaria; “através de um óbvio
processo de identificação (...)” o leitor “nutre secretamente a esperança
de que um dia, das vestes da sua atual personalidade, possa florir um
super-homem capaz de resgatar anos de mediocridade” (ECO, 2006, p.
248).
Os caminhos são diversos no mundo dos quadrinhos, contudo, o
que é proposto neste trabalho é a descrição de uma experiência pautada
no encadernado Red Son, 2003 (“Entre a Foice e o Martelo”, em
português) que trata da possibilidade do Super-Homem ter crescido na
antiga União Soviética e, numa espécie de “determinismo ideológico”,
tornando-se defensor da ideologia comunista durante os anos de Guerra
Fria. A utilização das histórias em quadrinhos e seus personagens em sala 3

de aula já não é mais tabu nas instâncias do país. Contudo, as precauções


para que estas não se tornem apenas instrumento de distração e
direcionem os leitores à reafirmação de estereótipos, precisam ter a
atenção da escola que pretende trabalha-las.
Nas aulas de História, esses estereótipos, por exemplo, podem ser
discutidos em sala, a fim de criar uma “consciência das possibilidades
representadas pelos quadrinhos, bem como dos vícios que predominam
na indústria que os veicula” (SRBECK, 2006, p. 24.). O professor Túlio Vilela
nos oferece mais possibilidades do uso dos quadrinhos em aulas de
História; (1) trabalhar conceito de tempo e suas dimensões: sucessão,
dimensão e simultaneidade, (2) ilustrar ou fornecer uma ideia de aspectos
da vida social de comunidades do passado, (3) estudar a época em que o
quadrinho foi produzido, assim como, o período em que a estória é
ambientada, entre outros. Importante salientar que “nem toda história
em quadrinhos é necessariamente ficcional. Muitas histórias em
quadrinhos tem caráter autobiográfico ou semi-autobiográfico” (VILELA,
2009, p. 116), ou seja, algumas histórias em quadrinhos, como o trabalho
de Art Spiegelman, tratam do uso da memória como fonte de seus contos.
Uma outra discussão, além das sugestões do professor Vilela (2009)
é sobre personagens históricos representados em histórias em
quadrinhos. Em Entre a Foice e o Martelo (Mark Millar, 2004), por
exemplo, a figura histórica de Josef Stálin (1922-1953) está presente e tem
como destino morte por envenenamento ainda no primeiro volume do
encadernado. Ainda assim, sobre Stálin, a história em quadrinho oferece
além de um texto, uma imagem criada da figura do “grande pai” da nação 4

soviética, devotado pelo povo, estadista nato e líder do Partido Comunista


soviético. Stálin, importante personalidade histórica do século XX, logo
poderá ser observado sobre o ângulo de uma história em quadrinho
produzida por um escritor escocês-“americanizado” no século XXI, outro
ponto que pode sofrer análise.
Idealizada em 2003 pelo escocês Mark Millar (1969-), Red Son não
faz parte da cronologia “oficial” do Super-Homem, e sim das séries
especiais da personagem. Porém, utiliza a personagem para criar uma
vertente da história da Guerra Fria (1945-1991) e, assim, contar uma
versão nos quadrinhos para esse evento histórico. É importante salientar
que a maioria das histórias em quadrinhos não se utiliza de temas
políticos, como este de um conflito mundial como a Guerra Fria, contudo,
deve-se fazer valer que as HQs em geral possuem muitas referências
políticas que podem não estar tão claras na narrativa factual histórica,
mas que partem de seu próprio criador.
Os temas que são trabalhados em Entre a Foice e o Martelo vão de
encontro a uma abordagem mais séria e que necessitam de um
entendimento de conceitos históricos para melhor entender o segmento
da narrativa que a revista apresenta. Em um dos grandes momentos da
série Entre a Foice e o Martelo, por exemplo, vemos a posição do Super-
Homem contra a estrutura do Estado para resolver problemas sociais,
numa nação; a personagem não acredita que se sentiria capaz de suceder
Stálin e comandar uma instituição tal como ela é construída. Porém, é
num momento em que encontra uma fila de necessitados que pedem por
comida que ele “é constrangido a acreditar que pode suceder Stalin no 5

poder do Estado e resolver os problemas sociais” (MARQUES; ATAÍDES,


s/d, p. 06).
Fig. 01 (Entre a Foice e o Martelo, vol. 1, página 48)
Talvez o Super-Homem tenha entendido que “o marxismo é um
instrumento para mudar o mundo através do conhecimento que, como
políticos, então usamos. Não é um meio de vencer discussões políticas”.
(HOBSBAWN, 1985, p. 124), trazendo-o para a ação no cenário político
como líder da nação pós-Stálin. Este momento citado do quadrinho 6

externa o pensamento da burocracia estatal que sempre apresenta a


classe trabalhadora como um agente submisso e estático que espera pela
vinda do salvador. Contudo, engana-se aquele que acredita que esta é
uma visão exclusivamente soviética, em ambos os lados da Guerra Fria,
nos EUA ou na URSS, há pessoas que pedem pela ajuda de uma força
superior que trouxesse consigo a vitória sobre o outro.
Neste trabalho, iremos identificar os temas de alguns trechos do
primeiro volume de Entre a Foice e o Martelo que também podem ser
utilizados em aulas de História da Guerra Fria para turmas do 9º ano do
Ensino Fundamental. Vejamos alguns deles:
 Os EUA descobrem a existência de um Super-Homem soviético e
passam a noticiar o fato através das mídias. Super-Homem deixa de
ser sujeito e se torna uma arma de destruição em massa, segundo a
ótica dos americanos. Cenário típico do pavor da Guerra Fria que,
apesar de ser considerada como um conflito não militar e de
concessões dos dois lados, a histeria coletiva da possibilidade de
uma guerra nuclear era bem mais visível. (Fig. 2. Entre a Foice e o
Martelo, vol. 1, página 05).
7
 Como uma das características da Guerra Fria, a política de vigilância
e consequente espionagem das superpotências envolvidas,
causando a histeria pela perda do ambiente privado. (Fig. 3, Entre a
Foice e o Martelo, vol. 1, página 06).
8
 O poder da propaganda política soviética, que enaltece a nação
proletária e sua força poderosa, a partir da sua principal arma: o

Super-Homem. No trecho, assim como ao longo dos três volumes da


história em quadrinho, existem citações a instituições, pessoas,
lugares, etc., que pertencem ao mundo real e que podem ser
melhor contextualizados pelo professor no momento em que seus
alunos sintam a dificuldade em entendê-los. (Fig. 4.1 e 4.2, Entre a
Foice e o Martelo, vol. 1, página 07).
10

 Super-Homem, um “campeão do campesinato” numa nação


proletária. Discussão plausível para entendimento sobre de que tipo
de comunismo estamos falando. O marxismo se fundamentou no
trabalho do operário das grandes indústrias e não no mundo
camponês a qual o Super-Homem faria parte. (Fig. 5, Entre a Foice e
o Martelo, vol. 1, página 19).
 Quanto à discussão ideológica, o marxismo é uma palavra comum 11

nos discursos sobre a teoria política que vigora em Entre a Foice e o


Martelo; há, inclusive, a discussão de que o Super-Homem, na
verdade, seja a representação de uma contradição, ao defender o
marxismo e ainda sendo bem mais que um homem comum. Criação
de modelos para o capitalismo e/ou socialismo, de representação
de uma ideia e se, de fato, há marxismo na ideia de governo do
campesinato, entre outras que podem ser abordadas e debatidas
em sala. (Fig. 6, Entre a Foice e o Martelo, vol. 1, página 26).
No campo das histórias em quadrinhos, muitas podem ser as visões
sobre determinadas questões a que nos interessam, disto nós já falamos.
Contudo, por algum motivo as histórias em quadrinhos ainda possuem
uma ausência significativa nos anais das Ciências pelo mundo. Vítimas de 12

uma “visão redutora que o grande público tem da HQ como um todo: um


entretenimento colorido, fácil e consensual, que não exige esforço para
pensar” (GROENSTEEN, 2004, p. 21), ou de dificuldade no manejo
direcionado à educação, as histórias em quadrinhos estão ainda no limbo
dos usos em sala de aula, como suporte em várias outras disciplinas.
No caso específico de Entre a Foice e o Martelo, a utilização desse
quadrinho pode se estender além do tema da guerra improvável, mas não
impossível, a Guerra Fria, ou das teorias políticas que traduziram o
período; há inúmeras possibilidades encontradas neste conto, da própria
utilização de cores, letras e outros símbolos, passando pela competição
bélica entre as duas superpotências, a utilização de mapas e da possível
existência de um “determinismo ideológico”, onde o lugar que um
indivíduo cresce direcionará aquilo que ele defenderá, até a citação a
Norman Rockwell (1894-1978), importante ilustrador norte-americano
que trabalhava com a visão patriótica estadunidense em suas obras. A
certeza é só uma, em Entre a Foice e o Martelo encontramos bem mais
que uma história em quadrinhos.
Referências Bibliográficas
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Trad. Pérola de Carvalho. São
Paulo: Perspectiva, 2006.

GROENSTEEN, Thierry. História em Quadrinho: essa desconhecida arte 13


popular. Trad. Henrique Magalhães. João Pessoa: Marca de Fantasia,
2004.

HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Trad.
Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

________. Revolucionários. Trad. João Carlos Victor Garcia e Adelângela


Saggioro Garcia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

MARQUES, Edmilson; ATAÍDES, Marcos. A guerra fria em Entre a Foice e o


Martelo. Disponível em:
<http://www.ufpel.edu.br/ifisp/ppgs/eics/dvd/documentos/gts_llleics/gt4
/g4edmilson.pdf> Acesso em: 05 de fevereiro de 2016.

MILLAR, Mark. Superman: Entre e a Foice Martelo; roteiro Mark Millar;


desenhos e capa Dave Johnson. Vols. 1, 2 e 3. Tradução: Jotapé Martins.
São Paulo: Panini Comics, 2004. Disponível em:
<http://www.4shared.com/rar/PxNBJ30V/file.html> Acesso em: 02 de
fevereiro de 2016

SRBECK, Wellington. Quadrinhos & outros bichos. João Pessoa: Marca de


Fantasia, 2006.

VILELA, Tulio. “Os quadrinhos na aula de História”. In: VERGUEIRO,


Waldomiro; RAMA, Angela (orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos
na sala de aula. 3 ed. São Paulo: Contexto, 2009.
O PASSADO COMO PAUTA: CULTURA HISTÓRICA NA REVISTA A
DIVULGAÇÃO (1947-1954)

Gilvana de Fátima Figueiredo Gomes1


1
Resumo: O artigo investiga um conjunto de textos dedicados a narrar o passado, publicados
no periódico paranaense A Divulgação. Trata-se de um corpus documental que, embora não
comprometido com os protocolos científicos de pesquisa histórica, interpelava o passado
com o fito de estabelecer uma versão verídica dos eventos relatados. A análise proposta
opera a partir da noção conceitual de cultura histórica e toma como objeto as
interpretações dos eventos pregressos, produzidas e publicadas na revista. A conjuntura do
período, as relações do impresso com o movimento paranista, os vínculos institucionais dos
responsáveis pelas narrativas históricas, bem como, os temas privilegiados naquelas páginas
indicam uma dupla representação do passado: um período de ações grandiosas que deveria
servir como orientação para os contemporâneos e um tempo em vias de ser destruído pela
marcha do progresso.

Palavras-chave: Cultura histórica; História paranaense; Imprensa e intelectuais; Paranismo.

Résumé: L'article examine un ensemble de textes consacrés à raconter le passé, publiée


dans la revue Paranaense A Divulgação (La Divulgation). Il s’agit d’un corpus documentaire,
bien que pas commis aux protocoles scientifiques de la recherche historique, ceci renseigne
le passé dans le but d'établir une véritable version des événements rapportés. L'analyse
proposée fonctionne à partir de la notion conceptuelle de la culture historique et prend
pour objet les interprétations des événements de l'histoire précédente, produites et
publiées dans le magazine. La conjoncture de la période, les relations du quotidien avec le
mouvement Paranista, les liens institutionnels des responsables de récits historiques, ainsi
que les thèmes privilégiés dans ces pages montrent une double représentation du passé:
une période de grandes actions qui devrait servir de guide aux contemporains et un temps
dans le processus d'être détruit par le mars du progrès.

Mots-clés: Culture historique; Histoire Paranaense; Paranismo; Presse et intellectuels;


Paranismo.

1
Mestranda em História - Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras -
UNESP/Assis, Brasil. Bolsista CAPES. Email: fichamentoshistoria@gmail.com.
Introdução
Toda sociedade possui e articula representações do passado. A assertiva,
embora genérica, tem se mostrado eficiente ao evidenciar que os
2
agrupamentos humanos, mesmo operando a partir de distintas lógicas
culturais, relacionam-se de alguma maneira, com aquilo que lhes precede.2 No
ocidente, a partir do século XIX, essas representações de outros tempos
passaram a ocupar a agenda de uma ciência nascente: a História. O esforço em
sistematizar um método que orientasse a construção do passado, levado a
cabo por diversas gerações de historiadores não logrou, contudo, suprimir
outras formas de se referir ao passado. Para além da historiografia científica, a
literatura, a imprensa, o cinema, as músicas e outras tantas manifestações
culturais se ocupam de articular o passado, no presente.
Todas essas leituras do passado que constroem no presente um lugar
social e usos para os eventos, personagens e processos do pretérito são sinais
visíveis de uma cultura histórica. Neste artigo, tal noção conceitual é
mobilizada com a intenção de compreender as caracterizações do passado
construídas por sujeitos ligados ao projeto periódico A Divulgação. Para tanto,
a relação do periódico com as propostas paranistas, notadamente aquelas que
confluíam para a chamada História do Paraná, as filiações institucionais dos

2
A título de exemplo, é interessante citar as sociedades africanas, cuja história foi negada por muitos
pensadores ocidentais; entre elas, é possível encontrar formas de organizar o tempo e de narrar o passado.
Bobou Hama e Joseph Ki-Zerbo, em O lugar da história na sociedade africana, demonstram que diversas
formas de organizar o passado, o presente e o futuro permitem evidenciar que para as comunidades africanas
havia alguma noção sentido histórico. Reforçam, contudo, que apesar atribuir ao passado força considerável,
uma função modelar, diversas comunidades africanas não deixam de se reconhecer como agentes de seu
tempo. HAMA, Bobou. KI-ZERBO, Joseph. O lugar da história na sociedade africana. KI-ZERBO, Joseph. História
geral da África I: Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010. pp. 23-35.
intelectuais responsáveis pelos pelas narrativas sobre o passado e os temas
privilegiados são postos em cena.

Cultura Histórica e História no Paraná


3
Em livro publicado recentemente no Brasil, o historiador colombiano
Rénan Silva argumenta contra “*...+ a ideia de que [a História] se trata de uma
prática espontânea que não requer mais que um interesse pelas curiosidades e
antiguidades” (SILVA, 2015, p. 107); para o autor, há uma concepção
vulgarizada de que basta saber de algo para poder escrever a história desse
algo, processo confirmado pela amplitude de livros devotados a narrar o
passado sem preocupação com os métodos que individualizam a análise
histórica. Deriva dessa concepção um duplo perigo: primeiro, o método
histórico estaria gradativamente sendo anulado e, dentro em pouco, não
haveria mais exigência e distinção para as obras orientadas pelos protocolos de
pesquisa; segundo, as obras de caráter historiográfico, que pouco circulam fora
de grupos especializados, fatalmente não teriam público algum frente à
concorrência das narrativas não científicas.
O problema elaborado por Rénan Silva pode ser desdobrado na seguinte
questão: o passado é um domínio exclusivo dos historiadores? Resposta
complexa. É válido ressaltar, destarte, que História, historiadores e passado são
noções elaboradas na diacronia e podem ser postas em suspensão,
investigadas como qualquer outro objeto historiográfico. No entanto, é
possível supor que para alguns profissionais da História, o tempo pregresso
deveria sim ser um objeto exclusivo de homens e mulheres qualificados para
tal função;3 ainda assim, com quase dois séculos de afirmação e reformulação
constante do método historiográfico e, segundo Frank Ankersmith (1989), em
um período marcado pela superprodução de historiografia, o passado continua
a ser interpelado por sujeitos cuja trajetória profissional não os qualifica como
4
historiadores. E mais, os escritos produzidos por esses indivíduos circulam de
maneira surpreendente entre o público.
Se o passado não é domínio exclusivo dos profissionais da História e
basta ligar a TV, ir ao teatro, caminhar em espaços públicos que encampam
monumentos aos heróis e eventos do pretérito, ou analisar os catálogos de
editoras abarrotados de biografias e romances históricos para se certificar
dessa situação, como os historiadores imbuídos de teoria e método podem
avaliar tal conjunto documental?
Para Jacques Le Goff, essa vasta produção cultural, de matriz
historiográfica ou não, pode ser analisada a partir da noção de cultura
histórica. Cultura histórica é entendida como o conjunto de relações
heterogêneas estabelecidas entre uma determinada sociedade e seu passado,
e não se evidencia somente nos produtos elaborados a partir dos moldes
científicos da disciplina História, mas em todas as representações do passado
que articulam interações entre um grupo social e aquilo que lhe antecedeu:4

3
No Brasil, dois casos sugerem a resistência dos historiadores profissionais diante de outras vias
interpretativas do passado: a Coleção Terra Brasilis e 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e
uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil de autoria,
respectivamente, de Eduardo Bueno e Laurentino Gomes (ambos jornalistas) provocaram críticas
contundentes por parte dos profissionais da história. Algumas dessas reações que, se não reclamam o direito
de posse dos historiadores sobre o passado, procuram evidenciar os deméritos das narrativas não
historiográficas, podem ser encontradas em: BONALDO, Rodrigo Bragio. Presentismo e presentificação do
passado: a narrativa jornalística da História na coleção Terra Brasilis de Eduardo Bueno. Dissertação (Mestrado
em História), Porto Alegre: UFRGS, 2010.
4
Le Goff emprega o conceito baseado nas reflexões de Bernard Guenéé e alerta para o risco de unificar sob um
mesmo termo, as vastas e variadas representações do passado. Contudo, compreende que historiadores
“[...] a moda retro, o gosto pela história e pela arqueologia, o interesse pelo
folclore, o entusiasmo pela fotografia, criadora de memórias e recordações, o
prestígio da noção de patrimônio *...+” (LE GOFF, 1990, p. 228) seriam alguns
dos indícios da correspondência coletiva mantida com o passado.
5
No Brasil, as reflexões de Le Goff foram aproveitadas por Ângela Castro
Gomes e é válido destacar que, para a autora, a cultura histórica, além de não
ter como base exclusiva os conhecimentos produzidos por historiadores de
ofício, apresenta:
[...] diferenças evidentes de amplitude e de natureza entre
o que se pode considerar cultura histórica e o que se pode
entender por conhecimento/saber histórico produzido em
uma época, não havendo sincronia necessária entre os
dois. E, do mesmo modo como as culturas políticas são
plurais, pode-se pensar em mais de uma cultura histórica
convivendo, disputando, enfim, estabelecendo vários tipos
de interlocução entre si e com a produção historiográfica
em determinado período (GOMES, 2007, p. 48-49).

Dessa maneira, é possível inferir que se não há sincronia necessária


entre o saber histórico e a cultura histórica, também não é seguro descartar
trocas interpretativas, pontos de entrelaçamento entre anseios coletivos e
usos do passado condizentes com o estado da arte historiográfica.
Para os investigadores interessados na cultura histórica, portanto:
[...] o objeto da história é bem este sentido difuso do
passado, que reconhece nas produções do imaginário umas
principais expressões da realidade histórica e
nomeadamente da sua maneira de reagir perante o seu
passado. [...] o passado não é história, mas o seu objeto (LE
GOFF, 1990, p. ).
diligentes podem construir reflexões pertinentes ancorados nas perspectivas fornecidas pela cultura histórica.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora Unicamp, 1990.
Por que retomar o passado? Quais eventos, temas e recortes temporais
são compreendidos como dignos de figurar no presente? Quem e em que
situações, fabrica o passado? Quais são as características que fornecem
univocidade a esse tempo marcado pela heterogeneidade e contingência? Em 6

suma, qual é o lugar social do passado no presente? São algumas das questões
pertinentes à reflexão sobre a cultura histórica.
No caso paranaense, o final do século XIX e primeira metade do século
XX são períodos profícuos em arregimentação do passado. A publicação, em
1899, da obra A História do Paraná,5 de autoria de Romário Martins, pode ser
tratada como o marco fundante de uma determinada interpretação do
pretérito.6 Se outros analistas locais já haviam se dedicado a narrar eventos de
outros tempos, o mérito de Romário Martins reside na unificação dessas
diversas informações sob o dístico: História do Paraná. O texto, que
originalmente contava com pouco mais de 200 páginas, foi adotado pelo
Estado como obra oficial para o ensino de história. Além da fortuna intelectual
de Romário Martins, a iniciativa influenciou a formação de inúmeras gerações
de estudantes e construiu, de certa forma, uma relação com o pretérito que
adentra o século XX.

5
O livro teve origem na monografia apresentada por Romário Martins - que na época tinha 24 anos – para o
Ginásio Paranaense; depois da primeira edição, a obra foi publicada em outras três ocasiões: 1937, 1953 e
1995, sempre com auxílio financeiro do Estado.
6
Michel Foucault usa o termo “fundadores de discursividade” para referir-se a autores cuja produção textual
permitiu a emergência de outros textos que, ora complementavam a reflexão inicial, ora a negavam. Nas
palavras do autor: “Esses autores têm de particular o fato de que eles não são somente os autores de suas
obras, de seus livros. Eles produziram alguma coisa a mais: a possibilidade e a regra de formação de outros
textos. Nesse sentido, eles são bastante diferentes, por exemplo, de um autor de romances que, no fundo, é
sempre o autor do seu próprio texto. Pois [...] abriram o espaço para outra coisa diferente deles e que, no
entanto, pertence ao que eles fundaram.” FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Disponível em:
http://acervo.novacartografiasocial.com.br:8088/xmlui/bitstream/handle/738738/1772/FOUCAULT,%20Miche
l.%20O%20que%20%E9%20o%20autor.pdf?sequence=1 Acesso: 13 Set. 2016.
Martins se tornou o pai da História paranaense, e sua filha dileta, foi
importante instrumento de conformação identitária para o estado. Naquele
final do século XIX, a obra recorria ao modelo analítico então em voga e
proposto, sob os auspícios do IHGB, por Carl Friedrich Phillip von Martius.7 A
7
história paranaense - assim como a história brasileira - se desenvolvia na
perspectiva de von Martius, compartilhada por Martins, no imbricado das três
raças: brancos de origem europeia, negros e indígenas. A primeira fatalmente
suprimiria as outras em favor da civilização, dado o espírito desbravador e
conquistador desse “mais poderoso e essencial motor” (VON MARTIUS, 1845,
p. 31). A narrativa histórica, fundada a partir de documentos variados e oficiais,
cumpria a função de ordenar os eventos prescritos, colocando-os no seu
devido lugar, dentro desse modelo explicativo.
Ao postular a fraternidade entre os povos no Paraná, mesmo diante de
uma babel de raças (MARTINS, 1995, p. 352), ao construir uma narrativa
homogênea que unificava em linearidade, eventos contingentes, Martins fez
emergir um objeto de análise que encontrou frutíferos desdobramentos não
somente entre pesquisadores de História, mas também, contribuiu para a
fabricação de um certo sentido para os tempos pretéritos, uma cultura
histórica.

7
Trata-se do texto Como se deve escrever a História do Brasil, texto premiado pelo IHGB como melhor
programa para a escrita da História Nacional. O trabalho está disponível no link:
https://umhistoriador.files.wordpress.com/2012/03/martius-carl-friedrich_como-se-deve-escrever-a-
histc3b3ria-do-brasil.pdf e uma problematização pode ser encontrada em: GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado.
História e natureza em von Martius: esquadrinhando o Brasil para construir a nação. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702000000300008 Acesso: 24 Set. 2016.
Assim como outras regiões do país, o Paraná no início do século XX
conheceu notórios esforços de interpretação identitária. 8 Destaque-se o
movimento paranista, outro filho de Romário Martins que, com a colaboração
de demais sujeitos, estruturou nos anos finais de 1920 um programa
8
estruturado em manifestos, periódicos, atividades artísticas e ações na política
institucional; intelectuais, artistas, jornalistas, políticos, entre outros,
mobilizaram-se com o fito de identificar e valorizar as características do
Paraná. Diante do cadinho cultural que dificultava o estabelecimento de uma
identidade singular optou-se, ao invés de definir o paranaense, por caracterizar
os paranistas:
O neologismo fez com que todos muito folgassem. A
definição era tão vaga, tão abrangente, que a alcunha de
paranista podia ser distribuída, sem contradições, ao
criador de um bezerro-campeão, ao presidente da
República, às burguesas que espantavam o tédio em
associações beneficentes, aos operários mais comportados,
aos fabricantes de bolachas amanteigadas, aos
excelentíssimos senhores ministros e às demais
autoridades militares e civis. (DUDEQUE, 2001, p. 60).

Segundo Romário Martins, o termo se aplicaria a “todo aquele que tem,


pelo Paraná, uma afeição sincera, e que notadamente a demonstra em
qualquer manifestação de atividade digna, útil à coletividade paranaense"
(MARTINS Apud SOUZA 2002, p. 75). Para além da origem, do lugar ocupado na
sociedade, do compartilhamento de uma visão de mundo, ingredientes

8
Dois exemplos da historiografia analisam os esforços de interpretação identitária, para além do Paraná:
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. O engenho anti-moderno: a invenção do nordeste e outras artes. Tese
(Doutorado em História). Campinas: Unicamp, 1994. FERREIRA, Antonio Celso. A epopeia bandeirante:
letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940). São Paulo: Editora UNESP, 2002.
frequentemente utilizados para a construção identitária, o apresso por esse
“torrão da pátria” ligava os habitantes da terra das araucárias.
Deflagrado em várias frentes, o movimento paranista também se ocupou
do passado e investiu na construção de heróis e narrativas épicas; diante de
9
um Estado jovem – afinal o Paraná havia se emancipado somente em 1853 –
recorreu-se ao recuo temporal que, aportado em estudos de arqueologia,
apontava a longevidade da organização social nos terras paranaense. O esforço
paranista em promover uma identidade viável para o Estado articulava-se na
tríplice temporalidade: o passado de origem comum, o presente de ação e
futuro de progresso.
Na leitura dos paranistas o passado da região era unificado, um bem
comum pertencente não somente aos nascidos no Paraná, mas a todos que
aqui construíram algo; tempo notório, contudo, negligenciado. Entretanto, os
paranistas viram seu projeto enfraquecer-se diante da ascensão, em 1930, de
um programa nacionalista capitaneado por Getúlio Vargas. Novos projetos de
nação foram paulatinamente construídos e, em seu bojo traziam a exigência
primordial de sacrificar a região em prol da unidade do país. Os tempos
pregressos foram recrutados para atender ao programa do governo federal
“enquanto realidade fundamental para a compreensão da nação. Um passado
que não podia, como tradição, coexistir com o presente, mas que, exatamente
por isso, era fonte de explicação para o novo” (GOMES, 2007, p. 57).
Na segunda metade da década de 1940, já findado o Estado Novo, o
paranismo foi reclamado por um periódico paranaense recém-inaugurado: A
Divulgação, projeto que encampou a complexa tarefa de (re)criar a região do
Paraná em meados do século XX; novamente, os impulsos do presentes foram
utilizados na urdidura do tecido histórico (ARRUDA, 2007, p. 27).

O passado nas páginas de A Divulgação


10
A Divulgação passou a circular no Paraná em novembro de 1947, por
iniciativa do militar baiano Arnauld Ferreira Velloso. 9 Publicada
initerruptamente até novembro de 1965, a publicação conheceu no decorrer
de seu percurso, mudanças consideráveis de projeto editorial: 10 de 1947 até
1954, prevaleceram características similares às notadas nas chamadas revistas
culturais; entre 1955 e 1957, a revista oscilou entre a publicação de crítica
política e o colunismo social para, a partir de 1958, firmar-se enquanto
periódico de cobertura social voltado para o público feminino.
Na primeira fase editorial, ou seja, entre 1947 e 1954, a revista publicava
avultado conjunto de artigos com temáticas variadas,11 assinados por
intelectuais destacados no Paraná e no Brasil, 12 cuja intenção era equacionar as
questões relevantes do período. História, Economia, Política e ações
governamentais, Cultura, Saúde, Turismo, Imigração, Geografia, entre outros

9
Arnauld Ferreira Velloso nasceu em Alagoinhas/BA, em 1904, em família de militares. Na década de 1920,
mudou-se para o Rio de Janeiro e formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras. Nos final de 1930, veio
residir no Paraná para atuar na 5ª Região Militar; aqui, casou-se com Isolda Maria Carnascialli Velloso, jovem
oriunda da elite local que mantinha contato direto com nomes como Romário Martins e David Carneiro. O
matrimônio aproximou Velloso das pautas do paranismo e foi importante para a captação de recursos
intelectuais para a revista que fundou e dirigiu, de 1947 a 1965.
10
As fases editoriais da revista A Divulgação foram estabelecidas a partir da análise minuciosa dos aspectos
materiais do periódico (capas, diagramação, disposição do conteúdo, presença e ausência de iconografia, entre
outros) e dos conteúdos publicados.
11
A análise do conteúdo publicado entre 1947 e 1954, revelou os seguintes dados: História, 70 artigos; Política
e ações governamentais, 45; Economia, 44; Comportamento e cotidiano, 39; Cultura, 29. Além dessas rubricas,
outras 21 foram mapeadas, mas em quantidades menores.
12
Publicaram na revista, entre outros: Raul Gomes, Francisco Leite, Alceu Chichôrro, Pedro Calmon, Rodolfo
Garcia, Serafim França, Temístocles Linhares, Homero Braga, Maria França, Rosy de Sá Cardoso, Osvaldo Piloto,
Vasco José Taborda, Helena Kolody, Malba Tahan.
temas, eram constantemente debatidos.13 Igualmente digno de nota foi o
intento, declarado já no primeiro número da publicação, de filiar-se à herança
intelectual do paranismo: “Nossa revista – A DIVULGAÇÃO – não alimenta a
veleidade de preencher lacunas ou suprir deficiências. Ela se propõe
11
simplesmente propagar as ideias e realizações “paranistas” por todo o Brasil
(VELLOSO, 1947, P. 01)”. Para cumprir tal objetivo, as narrativas sobre o
passado foram prioridade: 70, dos 391 artigos publicados, tinham como pauta
os eventos pretéritos.
A retomada do paranismo acompanhava ações do governo paranaense,
posto que no mesmo período, o então governador Moysés Lupion empenhou-
se em recuperar o conjunto simbólico construído na década de 1920 por obra,
principalmente de Romário Martins - autor da lei, enquanto deputado
estadual, que instituiu a bandeira e brasão de armas do Paraná. Como forma
de demonstrar seu apoio ao propósito governamental, A Divulgação publicou a
íntegra do Decreto 2.457, de 31 de março de 1947: 14
Considerando que a instituição desses símbolos em nada
concorre para o enfraquecimento da coesão nacional,
antes contribui para reforçar essa coesão pela emulação
que desperta entre as unidades federadas; considerando
que a Pátria não é uma criação abstrata, senão uma soma
de regiões, com suas peculiaridades, usos, episódios
históricos, lutas e sacrifícios isolados; considerando que do
espírito de um sadio regionalismo é que emerge, mais forte
e mais puro, o ideal cívico dessa grande alma que é a
Nação [...] decreta: Art. 1º :Ficam restabelecidos a
Bandeira, o Hino e Escudo do Estado do Paraná, conforme

13
Havia, além de artigos, reportagens e seções, espaço para produção literária e publicidade.
14
A publicação desse decreto oficial não foi um episódio singular na trajetória do periódico A Divulgação e
seria cansativo expor ao leitor a lista de textos oficiais editados naquelas páginas. Cabe destacar, no entanto,
que tal ato editorial sugere vínculos entre a revista de Velloso e as elites políticas do Paraná.
vigoram à época de sua extinção [...] (A Divulgação, 1948,
p. 21).

O texto oficial indicava reação às propostas vigentes durante o Estado


Novo: referendar os símbolos regionais não prejudicaria a nação, já que esta se 12
constituiria em unidade com base em esforços regionais. As representações
engendradas por Romário Martins ganhavam novo fôlego, pela ação do Estado
e pelo programa d’ A Divulgação; o pai da história paranaense apadrinhou a
revista e recepcionou a inciativa: “A ideia da fundação de uma revista
divulgadora de assuntos de nossa terra, e que no caso será A Divulgação a ser
lançada pelo ilustre escritor e jornalista Major Arnauld F. Velloso, é
sobremaneira feliz. Nós precisamos dizer o que somos, o que valemos e o
pretendemos ser”. 15 Outro indício das afinidades entre o periódico e o grande
paranista, foi a cessão de variados materiais elaborados por Martins que
preencheram as páginas da revista mesmo após seu falecimento, em 1948.
Foi no reforço aos projetos desenvolvidos em um primeiro momento
pelos paranistas que A Divulgação empenhou seus primeiros esforços. As
narrativas sobre o passado ocuparam papel destacado e, é valido ressaltar que
tais textos não guardavam preocupação com qualquer método historiográfico
vigente naquele quartel, ainda que, os eventos e personagens descritos fossem
apresentados como verdades sobre as quais não cabia problematizações; a
história, como descrição pormenorizada daqueles episódios de outrora, não
carregava, portanto, mediações do presente.

15
O depoimento de Romário Martins a respeito do lançamento da revista A Divulgação foi escrito em outubro
de 1947, portanto, antes do lançamento do periódico. No primeiro número da publicação uma fotografia do
texto foi reproduzida; valorizava-se, dessa maneira, a trajetória de Romário Martins que emprestava, de
próprio punho, valor ao periódico. O original desse documento foi preservado por Arnauld Ferreira Velloso e
cedido à autora desta pesquisa em 2014.
A legitimidade das narrativas provinha, sobremaneira, da trajetória e
vínculos institucionais de seus autores; sujeitos nascidos na virada do século
XIX para o XX, e que nutriam interesse diletante pelo passado, formados a
partir da perspectiva uniformizada da história do Paraná, conforme postulado
13
de Romário Martins. 16 Ademais, frequentavam as mesmas agremiações
intelectuais, com destaque inicial 17 para a Academia Paranaense de Letras e o
Centro de Letras do Paraná, instituições notadamente paranistas, que nutriam
interesse especial pela produção literária local. Além dessas, os articulistas do
periódico estavam envolvidos com Instituto Histórico e Geográfico do Paraná
(IHGPR) e o Círculo de Estudos Bandeirantes (CEB), projetos intelectuais
relevantes no estado, principalmente, no que respeita ao fomento de
pesquisas sobre o passado. 18
O IHGPR congregava pesquisadores locais interessados em história e
seguia os moldes do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.19 Pertencer aos

16
O conjunto de colaboradores da revista A Divulgação foi pesquisado com a intenção de mapear as interações
desses autores para além do periódico. Idade, formação, profissão, atuação em associações intelectuais e
publicações foram utilizadas na construção de um perfil desse coletivo. Nesse texto, enfatiza-se brevemente,
as informações recolhidas sobre os articulistas da rubrica História.
17
A importância das sociabilidades intelectuais foi destacada por Jean-François Sirinelli, para quem elas “*...+
secretam, na verdade, microclimas à sombra das quais a atividade e o comportamento dos intelectuais
envolvidos frequentemente apresentam traços específicos”. As redes de sociabilidade evidenciam não
somente as relações sincrônicas entre intelectuais, mas também permitem, a partir da noção de microclima,
compreender o microcosmos intelectual, angariando para a análise relações de outros tempos, de admiração
ou recusa frente à posturas intelectuais e, que no objeto e tempo em analise, são perceptíveis. SIRINELLI, Jean-
François. Os intelectuais. In: REMOND, René. (org). Por uma história política. 2 ed. Rio de Janeiro. Editora FGV,
2003, p. 252.
18
Dentre os articulistas de História pertencentes ao quadro do IGHPR estavam: Aluizio França, Dulcídio Tavares
de Lacerda, Homero de Barros, Osvaldo Pilotto, Romário Martins, Serafim França, Vasco José Taborda; Aos
quadros do CEB pertenciam: Aluizio França, Arnauld Ferreira Velloso, Homero de Barros, Osvaldo Pilotto,
Romário Martins, Temistocles Linhares, Vasco José Taborda. Correspondências de outros autores, não
efetivamente associados às duas instituições, indicam trocas culturais não formalizadas e fluídas.
19
Sobre o IHGPR, ver: BELTRAMI, Rafael C. de C. Da Poesia na Ciência. Fundadores do Instituto Histórico e
Geográfico do Paraná, uma história de suas ideias. Dissertação (Mestrado em História). Curitiba: UFPR, 2002;
ROSEVICS, Larissa. O Instituto Histórico e Geographico Paranaense e a construção de um imaginário regional.
Dissertação (Mestrado em Sociologia). Curitiba: UFPR, 2009.
quadros do IHGPR (vinculado ao IHGB) garantia legitimidade aos autores que
se aventurassem a narrar eventos do passado, uma vez que ambas eram
instituições norteadoras da produção historiográfica nacional e regional. Já o
Círculo de Estudos Bandeirantes, por sua vez, apoiado em projetos de cunho
14
religioso, foi formado com o intuito de estimular atividades de pesquisa por
parte de seus integrantes e desenvolver a cultura local. Deve-se destacar,
ainda, o papel destacado do CEB na formação dos primeiros universitários de
História.20O grupo retomava, no nome da instituição, a figura dos
bandeirantes, sugestão da interpretação do passado que orientava proposta:
Aos que tomaram um dia a iniciativa de fundar em Curitiba
um Círculo de Estudos, espontaneamente lhes acudiu o
nome genérico daqueles vanguardeiros da civilização em
terras sul-americanas. Bandeirantes! pois não era, acaso, o
projetado Círculo uma nova “bandeira” sui generis, que se
arrojava para os sertões do saber, à cata das verdes
esmeraldas e das áureas pepitas da verdade; [...] Pois que
outro mais expressivo título poderia ajustar-se à projetada
fundação? [...] Aí está: – somos também Bandeirantes de
novo gênero, mas da velha estirpe que nos arrojamos, na
mais aventurada e na mais venturosa das conquistas à
conquista do saber! [...]. Núcleo – que como os
Bandeirantes de outrora – ao partir o companheiro
querido, aqui fica confiante na eficiência do teu valor
humano, mas volve os olhos para o magnífico céu do Brasil
invocando a proteção divina para quem sempre soube
honrar a cultura e tradição cristãs (FERRARINI, 2011. p. 84-
85).

20
A respeito, ver: FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra. História, historiador e identidade profissional. Sobre a
história do Curso de História da Universidade Federal do Paraná. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 27, nº
54, p. 295-315, jul.-dez. 2014.
Se nos dizeres de Pollak, “a referência ao passado serve para manter a
coesão dos grupos e instituições que compõe uma sociedade, para definir seu
lugar respectivo, sua complementariedade[...]” (POLLAK, 1989, p. 09) é possível
compreender que como ponto de encontro, essas agremiações unificavam as
15
leituras e interpretações dos eventos precedentes e, a um só tempo,
construíam um lugar para o passado e a própria auto legitimidade narrativa.
Compenetrados em recolher os registros transatos, narrar os eventos e
personagens históricos de maneira positivada e vulgarizar tais interpretações
esses homens, e suas respectivas instituições, impulsionavam uma
caracterização do passado.
Hobsbawm (1997) defende que a consciência do passado, como aquilo
que antecedeu as memórias registradas do indivíduo, é uma dimensão
permanente e mutável da experiência humana. Nessa perspectiva, os
envolvidos com o projeto de A Divulgação procuram inscrever uma
determinada consciência do pretérito no imaginário coletivo. Recorria-se ao
passado, em primeiro lugar, para encontrar um antídoto aos males
contemporâneos:
Não há dúvida que é preciso opor alguma coisa a essa
debacle. Mas, o que opor, se o exemplo vem das
culminâncias e dos que tudo mandam e desmandam? Será
que, por vezes, a sugestão de uma leiturazinha a respeito
das nossas grandes figuras do passado, daria certo?
Poderá, o influxo dessas luzes, chocar proveitosamente?
Acreditamos e não acreditamos na eficiência do método.
[...] Urge, a despeito de tudo, irmos cooperando para o
término do festim de Baltazar. Sejamos renitentes e
cacetes. Falemos dos nossos valores do pretérito. Há de
resultar alguma coisa. Uma fraçãozinha de entusiasmo
providencial há de ficar [...]. (PILOTO, 1952, p. 41).
A característica de antídoto atribuída aos tempos idos relacionava-se ao
fato de que era à ausência de conhecimento sobre os feitos de antanho que se
creditavam os “problemas nacionais”. O passado era um dado referencial, nele
16
residiam os parâmetros orientadores que faltavam aos contemporâneos do
articulista. Diante da preocupação com os problemas nacionais, no entanto,
recorria-se a história paranaense, indício de que o antídoto tinha função
regional e os problemas que mobilizavam tal recurso eram locais.
A conjuntura paranaense, em meados do século XX, reclamante de
discernimento sobre o passado, envolvia os eventos comemorativos do
centenário de emancipação política do Estado -ocorrido em 1953 –, a que se
acrescentavam os projetos de remodelação urbana da capital paranaense
Curitiba,21 e a questão da entrada dos imigrantes no estado com o fim da 2ª
Guerra.22
Para comemorar o centenário, eventos distintos foram inventariados
como marcos fundadores do Paraná,23 ponto culminante de um processo em
que homens nobres e resistentes se debateram para a concretização de um

21
Os projetos de remodelação de Curitiba inspiraram múltiplos debates sobre quais modelos arquitetônicos
deveriam prevalecer, mas sobretudo, sobre o que deveria ser posto abaixo. Sobre o tema, ver: CAROLLO,
Bráulio. Alfredo Agache e sua visão de urbanismo. Dissertação (Mestrado em Arquitetura). Porto Alegre:
UFRGS, 2008.
22
A chegada de imigrantes sobreviventes do segundo conflito mundial e a consequente discussão na imprensa
paranaense ocupou as reflexões de STEIN, Marcos Nestor. “O oitavo dia”: produção de sentidos identitários na
colônia Entre Rios – PR (segunda metade do século XX). Tese (Doutorado em História) – Florianópolis: UFSC,
2008.
23
A emancipação do Paraná, na historiografia contemporânea, é interpretada a partir dos interesses
monárquicos frente à possível aliança entre São Paulo e Rio Grande do Sul. Autores enfatizam, ainda, que a
elite local não tinha força política para articular a emancipação, versão diversa da difundida em A Divulgação,
na qual o fato é tomado como uma espécie de destino manifesto, no qual indivíduos e eventos do período
colonial figuram de forma a criar uma linha de ações que desembocou na separação. A respeito, ver: PRIORI,
Ângelo et al. História do Paraná: Séculos XIX e XX. Maringá: EDUEM, 2012. Disponível em:
http://books.scielo.org/id/k4vrh/pdf/priori-9788576285878-12.pdf. Acesso em: 19 Set.. 2016.
ideal político;24 as narrativas estabeleciam uma racionalidade etapista para
episódios contingentes e atribuíam marcas valorosas não só para os feitos, mas
também aos personagens daquele projeto político.
A estratégia de valorização de personagens pregressos foi fundamental
17
em A Divulgação e opunha-se a interpretação de Brasil Pinheiro Machado,
elaborada em 1930, que afirmava: “[...] O paranaense não existe, dentro do
complexo brasileiro (...). O Paraná é um estado sem relevo humano. Em toda
a história do Paraná nada houve que realmente impressionasse a
nacionalidade.” (MACHADO, 1930, p. 08-09). Para dotar o Paraná de relevo
humano mais da metade dos artigos publicados no periódico ocuparam-se de
avaliar trajetórias individuais na política,25 educação,26 literatura,27 atividades
militares,28 cultura e desenvolvimento geral do estado. 29
As narrativas voltadas para personagens com atuações distintas em
recortes temporais igualmente diversos (do século XVI ao XX) argumentavam
que tais indivíduos representavam a síntese histórica das características do
Paraná: resistência às condições geográficas, inciativa política e econômica, e
um inexorável destino rumo ao progresso. Frequentemente retomadas, essas
caracterizações formavam linhas de continuidade que exigiam dos
contemporâneos atitudes similares.

24
OSVALDO, Piloto. A criação da província do Paraná. A Divulgação, Ed. especial, p. 07-, Dez. 1953. BARROS,
Homero de. Centenário do Paraná. A Divulgação, Ed. Especial, p. 129-131, Dez. 1953.
25
CARNEIRO, David. Homens e palavras: as frases do general Carneiro para defini-lo. A Divulgação, Ano I, p. 07-
08, Ago.-Set.-Out. 1948.
26
LEITE, Francisco. João Batista Brandão de Proença: o 1º professor do Paraná. A Divulgação, Ano I, nº. 05-06,
p. 27-30, Abr.-Maio 1948.
27
BORGES, Durval; Icílio Saldanha. Pequenas notas biográficas. A Divulgação, Ano VIII, p. 44, Jan. 1954.
28
CARNEIRO, David. O Combate Cormorant. A Divulgação, nº. 14-15-16, p. 03-04, Jan.-Fev.-Mar. 1949
29
LACERDA, Dulcídio T. Histórico da Ligação Ferroviária Riozinho- Guarapuava. A Divulgação, Ano VIII, p. 14,
Set. 1954; Engenheiro Westermann. A Divulgação. Ed. Especial, p. 35, Dez. 1953; GOMES, Raul. Alfredo
Andersen, pai da pintura paranaense. A Divulgação. Ed. Especial, p.62-63, Dez. 1953.
Além disso, feitos da história de São Paulo foram apropriados e inseridos
na homogeneidade do passado paranaense. O foco, nesse caso, foram as
atividades de ocupação territorial e ações políticas, que na interpretação do
periódico, vaticinavam o futuro grandioso do Estado.
18
Hoje que somente Curitiba tem dez vezes mais população
do que ao tempo tinha a comarca inteira, hoje que não
temos índios bravios a perturbar nossa ação de indústria
ou de que seja, bem podemos imaginar a montanha de
dificuldades desse homem de ferro que se arvorara
governador do futuro Paraná [...] Foi um gigante! [...] há
duzentos anos, aquele português de fibra, de aço, de ouro
tornou possível o trabalho de outros. Devemos-lhe muito,
mais do muito, tudo! (CARNEIRO, 1947, p. 10).

Se o paranaense não existia e o Paraná era insignificante no quadro


nacional, A Divulgação esforçou-se para combater tais interpretações,
construindo um passado que inserisse o Estado nos eventos inflexíveis da
Histórica Nacional. Em outros tempos, o estado havia sido lugar de grandes
conquistas, ambiente de batalhas espirituais e militares, razão pela qual se
construía sua grandeza de outrora e se incentivava ações no presente e no
futuro. Contudo, a remodelação de Curitiba evidenciava um risco: o passado,
esse útil orientador do presente, poderia se perder:
Disse Gustave le Bom em Psycologie des foules: “Sem
tradição não pode haver cultura, mas sem a lenta
destruição das tradições não pode haver progresso” Esses
dois elementos da vida das sociedades organizadas, a
cultura e o progresso são como dois extremos que
procurassem entredevorar-se, mas que não puderam
deixar de andar sempre juntos. O nosso país com suas
preocupações excessivas de acelerar a evolução, sobretudo
no sentido material, descuida-se demasiadamente de
basear sua marcha à frente em elementos estáveis, em
fundações definitivas. Por isso mesmo, estamos ficando no
ar (especialmente aqui no Paraná), como se fossemos
todos membros das gerações atuais, seres humanos sem
antepassados, enjeitados marginas da civilização euro-
americana, que progredimos sem conhecimento das 19
origens remotas do progresso material realizado. A falta de
certo equilíbrio, de ponderação real em quase todos os
atos da vida diuturna, quer social quer política que
assistimos, só tem explicação no abandono de tradições
respeitáveis que, aos poucos vão se tornando, mesmo para
uso puramente intelectual, completamente irrestauráveis,
além de serem completamente desconhecidos pela massa
popular (CARNEIRO, 1950-1951, p. 08).

David Carneiro, o principal articulista a tratar da História 30 em A


Divulgação, compartilhava com Valfrido Piloto a ideia de que narrar o passado
era fundamental para os dilemas do presente. Valorizavam-se, sobretudo, os
indícios da presença lusitana, principalmente, diante da destruição iminente
dos monumentos via “picareta do progresso” (VELLOSO, 1952, p. 01). À ideia
de que o passado funcionava como antídoto, defendida nas páginas de A
Divulgação, acrescentava-se a noção de que era um tempo em perigo; risco
que era aumentado diante da entrada de imigrantes no Paraná, após a II
Guerra Mundial:
Pouco se tem lembrado que os imigrantes tão desejados
serão os troncos de futuras gerações de brasileiros. No
processo natural de aculturação eles e seus descendentes
serão fatores de miscigenação ao se cruzarem com os
nacionais, cruzamento esse que é até preconizado para

30
David Carneiro assinou 23 artigos, dos 70 que foram identificados como relativos à história. Sobre a
trajetória deste autor, ver: MACHADO, Daiane Vaiz. O percurso intelectual de uma personalidade curitibana:
David Carneiro. Dissertação (Mestrado em História). Curitiba: UFPR, 2012.
evitar a formação de “quistos” cuja existência causa tanto
alarme aos que pouco confiam nas nossas organizações
policiais. E incorporando-se à família brasileira .para ela
trarão suas taras, suas deficiências e defeitos hereditários
[...] (BRAGA, 1950, p. 08).
20
A perspectiva diacrônica reclamada no artigo indicava preocupação com
futuro da sociedade paranaense e brasileira, mas, incluiu-se também, um olhar
para o espaço de experiência. David Carneiro argumentava contra a entrada de
imigrantes, pois a história já havia mostrado os equívocos dessa opção. O
ranço cultural dos imigrantes, comparável a “alimentos pesados”, havia sido
resistente a assimilação, razão pela qual se comprometeu a identidade local:
práticas culturais diversas sobreviviam na imprensa, em clubes, na língua, nos
projetos e formas de organização social dos imigrantes e comprometiam os
interesses do Estado:
É que o Paraná com as suas correntes imigratórias, perde
cada vez mais, o seu real civismo. Já não é mais o Paraná
do início do século, vibrando a todo instante por assuntos
vários da questão dos limites com Santa Catarina. Vai lhe
faltando o contato com seu próprio passado. Decrescem-
lhe[sic] as vibrações anímicas, consonantes e sincrônicas
aos grandes movimentos nacionais e locais. Perde em
profundidade, em coração, em ardor patriótico, tudo
aquilo que ganha em aparência. Cresce-lhe a hipocrisia e
tartufismo[sic] vence-o. Passa a ser um soldado de
paradas, bem vestido, muito garbo, com capacidade
duvidosa e bravura de interesse... Hoje falta nas famílias, o
relembrar de tradições. Falta nas escolas primárias, que as
mestras ensinem os nomes dos que derramaram seu
sangue, pelo bem coletivo, afim de que tais lições sejam
códigos de civismo (CARNEIRO, 1950, p. 03).
O passado, a partir de pesquisas e da proteção física dos registros de
outros tempos, deveria ser salvo naquele presente e ser usado como forma de
resistir ao encontro cultural que traria prejuízos à identidade. que se pretendia
estabelecida. Para levar a cabo essa nobre missão, os intelectuais do estado
21
deveriam ocupar-se de salvar os monumentos históricos, produzir narrativas
relevantes e vulgariza-las pelos mais diversos meios, combatendo assim o
maior mal paranaense: o “*...+ desprezo por *suas+ tradições históricas”
(CARNEIRO, 1951, p. 11).

Considerações finais
É que, onde a História semeia os seus prelecionamentos
[sic], aí ela nos deterá sempre, como se nos descerrasse
atualidade a mais presente. O indispensável do que é
exemplo. Mestra sempre será continuamente atual.
Coerente na diversidade, no anacronismo de fatos ou
fenômenos contidos em épocas desiguais. A
extemporaneidade das evocações desaparece ante a
crueza e a utilidade do que nos deixa em sabedoria. Os
recursos, os dias, os indivíduos, fica tudo como que
exatissimamente igual, a despeito dos giros, por vezes os
mais completos, do diferente (PILOTO, 1952, p. 39).

Em Futuro Passado (2006), Reinhart Koselleck argumenta que a virada do


século XVIII para o XIX viu nascer a concepção de que o tempo histórico era
singular; diante das revoluções políticas e do apogeu da razão, o horizonte de
expectativa havia se ampliado de tal maneira que a tópica ciceroniana da
História Magistra Vitae não encontrava mais sustentação. O autor estava
interessado em avaliar a superação das narrativas pautadas pela ideia de que o
passado lançava luzes ao presente e apontava que, naquele contexto, os
exemplos de outros tempos chegavam sempre tarde demais. (KOSELLECK,
2006, p. 60).
As narrativas sobre o passado publicadas em A Divulgação, como
apontado anteriormente, não estavam preocupadas com o cabedal
22
historiográfico construído ao longo do século XIX e início do XX, embora
tivessem como propósito afirmar uma versão verídica dos fatos relatados e
como inspiração o pensamento histórico de Romário Martins e dos paranistas
de primeira hora. Recorriam, ao mesmo tempo, a um modelo norteador da
escrita histórica pré-moderna: em A Divulgação, em pleno século XX, o passado
clareava o presente, a história era mestra da vida. Diante da aceleração das
mudanças, ao invés de abandonar essa postura, ela era reforçada e os eventos
do pretérito chamados ora como antídoto aos males contemporâneos, ora
como indícios de algo que precisava ser salvo do progresso avassalador.
História e passado foram apresentados como se fossem, praticamente,
sinônimos: o segundo existiria em si e à primeira, restava somente transferir
para escrita os dramas do pretérito, sem supor qualquer mediação dos
interesses contemporâneos.
Retomava-se constantemente o passado porque se entendia que ele
estava se perdendo, mas também porque poderia curar o presente. Para
alcançar esse objetivo, homens atentos aos acontecimentos que tornavam
registros remotos suscetíveis, lançaram-se em campanha para descrevê-lo e
convencer sociedade leitora, via imprensa periódica, da necessidade de
proteger a materialidade de outros tempos e fazer sobreviver a grandeza do
Paraná; afinal, apenas dessa maneira ela continuaria possível. A
homogeneização da contingência dos outros tempos era uma necessidade
premente do presente, experimentado de maneira complexa e fragmentada. O
exercício que “*...+ que ilumina-obscurece, silencia-exalta, congela-reaquece,
mas também oblitera o lugar de onde se fala, transformando
permanentemente o passado sob os influxos do presente.” (ARRUDA, 2007, p.
23
27) não era exclusividade, contudo, de quem publicava em A Divulgação, mas
um anseio que encontrava homologia na sociedade paranaense daquele
período.
Por fim, retorna-se às reflexões iniciais deste artigo: se a análise histórica
não é uma atividade espontânea, o mesmo se aplica à produção e
reverberação de uma cultura histórica, pois esta depende, em primeira e
última instância do sentido que faz no seio das sociedades em que é elaborada.
Além disso, é válido sublinhar que o passado dificilmente foi (ou será) objeto
exclusivo dos historiadores e, a história, compreendida “como narrativa sobre
o tempo e sobre a experiência humana no tempo” (BAUER, NICOLAZZI, 2016,
p.819) foi disputada e usada, politicamente e publicamente, por historiadores
formados na academia e também por não historiadores. Reconhecer esses
usos como parte integrante das dinâmicas culturais que articulam a tríplice
temporalidade requer disposição para o diálogo com outras topografias do
passado.

Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. O engenho anti-moderno: a invenção do


nordeste e outras artes. Tese (Doutorado em História). Campinas: Unicamp,
1994.
ANKERSMITH, Frank. Historiografia e pós-modernismo. Topoi, pp. 113-135, Rio
de Janeiro, Mar. 2001.
ARRUDA, José Jobson de Andrade. Cultura histórica: territórios e
temporalidades historiográficas. Saeculum, V. 16, pp. 25-31, Jan.-Jun, 2007.
BAUER, Caroline Silveira; NICOLAZZI, Fernando Felizardo. O historiador e o
falsário: Usos públicos do passado e alguns marcosda cultura histórica
contemporânea. Varia história [online]. vol.32, n.60, pp.807-835, 2016.
24
BELTRAMI, Rafael C. de C. Da Poesia na Ciência. Fundadores do Instituto
Histórico e Geográfico do Paraná, uma história de suas ideias. Dissertação
(Mestrado em História). Curitiba: UFPR, 2002;
BONALDO, Rodrigo Bragio. Presentismo e presentificação do passado: a
narrativa jornalística da História na coleção Terra Brasilis de Eduardo Bueno.
Dissertação (Mestrado em História), Porto Alegre: UFRGS, 2010.
CAROLLO, Bráulio. Alfredo Agache e sua visão de urbanismo. Dissertação
(Mestrado em Arquitetura). Porto Alegre: UFRGS, 2008.
DUDEQUE, Irá Taborda. Espirais de Madeira: Uma história da arquitetura em
Curitiba. São Paulo: Studio Nobel, 2001.
FERREIRA, Antonio Celso. A epopeia bandeirante: letrados, instituições,
invenção histórica (1870-1940). São Paulo: Editora UNESP, 2002.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Disponível em:
http://acervo.novacartografiasocial.com.br:8088/xmlui/bitstream/handle/738
738/1772/FOUCAULT,%20Michel.%20O%20que%20%E9%20o%20autor.pdf?se
quence=1 Acesso: 13 Set. 2016.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora Unicamp, 1990.
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. História e natureza em von Martius:
esquadrinhando o Brasil para construir a nação. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
59702000000300008 Acesso: 24 Set. 2016.
GOMES, Ângela Castro. Cultura política e cultura histórica no Estado Novo. In:
ABREU, Martha. SOIHET, Rachel. GONTJO, Rebeca. (Orgs.) Cultura política e
leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007.
HAMA, Bobou. KI-ZERBO, Joseph. O lugar da história na sociedade africana. KI-
ZERBO, Joseph. História geral da África I: Metodologia e pré-história da África.
Brasília: UNESCO, 2010. pp. 23-35.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora Puc-RJ, 2006.
MACHADO, Brasil Pinheiro. Instantâneos Paranaenses. A Ordem. Ano X, p. 08-
09, fev. 1930.
MACHADO, Daiane Vaiz. O percurso intelectual de uma personalidade
curitibana: David Carneiro. Dissertação (Mestrado em História). Curitiba: UFPR, 25
2012.
MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995.p.
352.
MARTIUS, Carl Friedrich Phillip von. Como se deve escrever a História do Brasil.
https://umhistoriador.files.wordpress.com/2012/03/martius-carl-
friedrich_como-se-deve-escrever-a-histc3b3ria-do-brasil.pdf Acesso: 21 Set.
2016.
PRIORI, Ângelo et al. História do Paraná: Séculos XIX e XX. Maringá: EDUEM,
2012. Disponível em: http://books.scielo.org/id/k4vrh/pdf/priori-
9788576285878-12.pdf. Acesso em: 19 Set.. 2016.
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n.
3, p. 3-15. Rio de Janeiro, 1989.
ROSEVICS, Larissa. O Instituto Histórico e Geographico Paranaense e a
construção de um imaginário regional. Dissertação (Mestrado em Sociologia).
Curitiba: UFPR, 2009.
SILVA, Rénan. Lugar de dúvidas: sobre a prática da análise histórica, breviário
de insegurança. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: REMOND, René. (org). Por uma
história política. 2 ed. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2003.
STEIN, Marcos Nestor. “O oitavo dia”: produção de sentidos identitários na
colônia Entre Rios – PR (segunda metade do século XX). Tese (Doutorado em
História) – Florianópolis: UFSC, 2008.
EXERCÍCIO DOCENTE EM FOCO:
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA
Giovana Maria Carvalho Martins

1
Resumo: O presente artigo traz reflexões acerca do ensino de História e o exercício
docente, levando em consideração que, hoje, os trabalhos neste campo são voltados
para a perspectiva da cognição histórica – ou seja, o ensino-aprendizagem de História
não pode ser trabalhado da mesma maneira que se trabalham as outras disciplinas.
Assim sendo, a famosa “decoreba”, que muitas vezes caracteriza o ensino da disciplina,
não é suficiente na realidade das salas de aula da atualidade, mesmo que muitos
professores ainda utilizem dela (cf. DIAS, 2007; SCHMIDT, CAINELLI, 2004). Para que
haja uma aprendizagem significativa, é necessário ter em mente que o aluno não é
tábula rasa, e sim, agente ativo do conhecimento, trazendo para a escola seus
conhecimentos prévios que devem ser levados em conta. Abordamos ainda o
cotidiano em sala de aula (RODRIGUES, 2007), bem como aspectos da psicologia da
criança e do adolescente (MATHEUS, 2002) e os desafios do fazer-se professor (PAIM,
2006), que são aspectos que permeiam o ensino e a aprendizagem de História.
Palavras-chave: Educação Histórica; Exercício Docente; Sala de aula

Abstract: This article brings reflections about History education and teacher practicing,
considering that, nowadays, the works on this field are based on the perspective of
historical cognition – that is, the teaching and the apprenticeship of History can’t be
worked the same way the other subjects are worked. Therefore, the famous
“memorization”, that most of the times portrays History teaching, is not enough on
today’s reality inside the classrooms, even if many teachers still use it (cf. DIAS, 2007;
SCHMIDT, CAINELLI, 2004). For the existence of a meaningful apprenticeship, it is
necessary to have in mind that the student is not a blank slate, and that he is, indeed,
an active agent of the knowledge, bringing to school his previous knowledges that
must be considered. We also talk about the classroom’s routine (RODRIGUES, 2007), as
well as the aspects of children and teenagers’ psychology (MATHEUS, 2002), and the
challenges of becoming a teacher (PAIM, 2006), that are aspects that permeate the
teaching and the learning of History.
Keywords: History Education, Teacher Practicing; Classroom

As discussões acerca do Ensino de História são muito variadas e


congregam muitos aspectos distintos tanto da prática docente quanto da
aprendizagem dos alunos. Além disto, é sabido que o Ensino de História na
atualidade requer a presença de diversos aspectos que interferem e
complementam o ensino em sala de aula. Hoje, muitos pesquisadores
trabalham com a perspectiva da existência de uma cognição histórica, de
maneira que não se pode trabalhar História com os alunos da mesma
maneira que se trabalha outras disciplinas, e é necessário pensar as aulas 2
para que se possa desenvolver uma aprendizagem efetiva de História, e
não apenas a famosa “decoreba” que estava (e ainda está) presente na
metodologia de muitos professores. Assim, é importante pensar os
aspectos que interferem e complementam o ensino em sala de aula, seja o
próprio cotidiano da sala de aula, seja a psicologia da criança e do
adolescente (pois trabalhamos, em sala de aula, com alunos nestas faixas
etárias), seja aspectos relacionados ao próprio ensino e à pesquisa em
História.
Sobre a “decoreba” no ensino de História e o papel do aluno no
ensino, Dias (2007) afirma que, até os anos 1950, o que predominava era
um “modelo tradicional de Ensino”,

no qual predominam os conteúdos que, segundo uma


concepção positivista a ele subjacente, são um saber
feito, objectivo e ordenado cronologicamente deste a
pré-história até à actualidade, ou seja um saber com
carácter enciclopédico que pretende transmitir uma
visão “completa” mas superficial da História.*...+. O
aluno só tem que armazenar e reproduzir esse
conteúdo numa prova escrita ou oral. Todo o processo
é orientado de fora para dentro, tendo o aluno como
um ente passivo e reprodutor do saber histórico,
transmitido magistralmente pelo professor a partir do
manual [...] (DIAS, 2007, p. 88).
Porém, a autora afirma que tal modelo parece ser muito utilizado
ainda hoje nas escolas, o que contribui para uma visão por vezes
deturpada do valor da disciplina de História, seja pelos alunos ou pela
sociedade em geral (cf. DIAS, 2007, p. 88). Schmidt e Cainelli (2004)
também concordam com esta questão, comentando que, ainda hoje, há a
predominância “*...+ de uma metodologia do ensino da História baseada
na repetição enfadonha dos conteúdos pelos alunos” (SCHMIDT; CAINELLI,
2004, p. 30). Desta maneira, não podemos pensar o aluno como mera
tábula rasa que apenas recebe o conteúdo ensinado pacificamente, já que
todos trazem conhecimentos e pré-conceitos aprendidos seja na própria 3
escola, seja em seu ambiente familiar, seja na cultura histórica que os
cerca, que não deve ser ignorado e que deve, portanto, ser levado em
consideração para que os saberes não sejam negligenciados e para que os
possíveis preconceitos possam ser desconstruídos
O aluno é, então, visto como um agente ativo, “*...+ capaz de criar o
seu próprio significado do que aprendeu e de impulsionar a evolução das
suas estruturas em resultado da experiência e das competências que vai
adquirindo *...+” (DIAS, 2007, p.89), atribuindo um significado próprio aos
estímulos vindos do exterior. O ensino de História deve pressupor,
fundamentalmente, tomar a experiência do aluno como ponto de partida
para o trabalho com os conteúdos, pois o aluno deve se identificar como
sujeito da história e da produção do conhecimento histórico. Assim, a
História ensinada deve levar em conta a multiplicidade e a
multilinearidade históricas, bem como a concepção, que hoje é aceita
pelas diferentes correntes historiográficas, de que a História não é mais
feita pelos heróis ou personagens importantes, e sim que ela é construída
no cotidiano de todos os homens (cf. SCHIMIDT; CAINELLI, 2004, p. 50).
Sobre o público-alvo das aulas de História, tratam-se, sobretudo, de
pré-adolescentes e adolescentes, que terão aulas de História até o final do
Ensino Médio (que é o fim do ciclo escolar no Brasil). Desta maneira, é
importante considerar algumas questões ligadas à psicologia da criança e
do adolescente. O autor Matheus (2002) aborda sobre a passagem do
mundo infantil para o adulto e seus desafios, questões que estão
presentes em sala de aula visto que os jovens em idade escolar estão
vivenciando esta etapa da vida. O autor cita Ruffino ao dizer que a
juventude é um fenômeno socialmente construído, e a passagem pela
adolescência em sociedades mais tradicionais e comunitárias seria menos
conflituosa por causa de três fatores: primeiro, “as exigências sociais para
ir se tornando adulto não eram tão distantes do cotidiano da criança”
(MATHEUS, 2002, p. 84); segundo, uma relativa proximidade entre o
indivíduo e seus familiares e a comunidade era mais constante por conta
das experiências vividas no cotidiano, isso minimizava o impacto da 4
puberdade; “terceiro e mais importante, havia rituais de passagem que,
devido ao valor que lhes era atribuído, ofereciam referenciais
compartilhados pela coletividade, que operavam como organizadores do
processo” (MATHEUS, 2002, p.85). Assim, o autor considera que a
passagem da juventude na sociedade ocidental atual é complexa e muitas
vezes, conflituosa, e o professor do ensino básico deve ter em conta que
este é seu público-alvo, e que muitos dos conflitos em sala de aula advêm
do fato de os adolescentes estarem em fase de transição, de conflitos
internos e externos. Isto não justifica, é claro, determinadas atitudes
extremas, mas explica muitas vezes a introversão ou “rebeldia” que alguns
alunos podem manifestar, de maneira que o professor deve levar em
consideração estes fatores (além de diversos outros) na hora de preparar
e ministrar suas aulas.
Hoje, há um movimento grande de professores e pesquisadores que
buscam modificar a concepção do ensino de História tradicional, e “*...+ o
que se procura é uma prática docente distanciada o mais possível da
imagem do ‘professor-enciclopédia’, detentor do saber, buscando a
construção de uma ‘professor-consultor’, que contribui para a construção
do conhecimento *...+” (SCHMIDT; CAINELLI, 2004, p. 30). Desta maneira,

ensinar História passa a ser, então, dar condições ao


aluno para poder participar do processo de fazer o
conhecimento histórico, de construí-lo. O aluno deve
entender que o conhecimento histórico não é
adquirido como um dom *...+. O aluno que declara “eu
não sirvo para aprender História” evidencia a
interiorização de preconceitos e incapacidades não
resolvidas (SCHMIDT; CAINELLI, 2004, pp. 30-31).

Outro aspecto a ser considerado, e que se relaciona não só com o


ensino de História, mas também com o ensino de maneira geral, é o
cotidiano da sala de aula. O autor Rodrigues (2002) defende que “a sala de
5
aula, como espaço social, representa um campo plural e permanente de
construção de saberes a partir de interações e representações que
constituem as estruturas de produção de saberes” (RODRIGUES, 2002, p.
1). Isto acontece pois, apesar de o cotidiano escolar sofrer, de certa forma,
limitações das normas institucionais e sociais, alguns eventos que ali
acorrem demonstram a existência de uma independência relativa em
relação a tais conformações, de modo que tais eventos assumem um
sentido particular. Refletir sobre as práticas pedagógicas do cotidiano
escolar é procurar compreender dimensões e sentidos muito particulares
das ações que acontecem no contexto genérico tanto social quanto
educacional, e como tais práticas se articulam com a realidade mais ampla
(cf. RODRIGUES, 2002, p. 2). Deve-se levar em conta que o cotidiano tem
como principal característica a espontaneidade – alguns aspectos podem
sim ser planejados, mas “*...+ características geográficas, a história dos
sujeitos e a posição que ocupam na hierarquia social do lugar onde se
situa a escola, têm reflexos nas condições sócio econômicas, modos de
ser, nas percepções sobre escola, trabalho e vida de professores leigos e
alunos *...+” (RODRIGUES, 2002, p. 2), e tem também reflexos na maneira
com que as atividades são desenvolvidas e com que os sujeitos interagem
em sala de aula.
As autoras Schmidt e Cainelli (2004) também trazem apontamentos
sobre a questão da sala de aula, colocando que ela não é apenas o espaço
onde se transmitem informações, sendo, sobretudo, “*...+ o espaço onde
se estabelece uma relação em que interlocutores constroem significações
e sentidos” (SCHMIDT; CAINELLI, 2004, p. 31), carregada de tensões, e
onde se estabelece uma relação em que os interlocutores constroem
significações e sentidos – e a aula de História em si
[...] é o espaço em que um embate é travado diante
do próprio saber: de um lado, a necessidade de o
professor ser o produtor do saber, de ser partícipe da
produção do conhecimento histórico [...]; de outro, a
opção de se tornar tão somente eco do que já foi dito
6
pelos alunos (SCHMIDT; CAINELLI, 2004, p. 31).

O autor Paim (2006) reflete sobre a realidade encontrada por jovens


professores em sua transição de estudantes para jovens profissionais do
ensino. Ele considera que o período de transição é um “choque de
realidade”, tido como um tempo de tensões e de muita aprendizagem em
contextos geralmente desconhecidos, em que os professores principiantes
urgem adquirir conhecimentos profissionais (além de necessitarem
manter um equilíbrio pessoal). É um período marcado pela conhecida
fórmula da tentativa e erro, pela “lógica da sobrevivência” (cf. PAIM, 2006,
p. 129), visto que, mesmo que os estudantes entrem em contato com a
realidade escolar durante os anos da faculdade, esta é diferente e mais
intensa quando os “professores em formação” se tornam, efetivamente,
professores, e passam a ter uma turma que é agora sua, e não mais estão
sob a supervisão de outro professor, como acontece nos estágios. Paim
menciona Guarnieri e afirma ainda que a própria sala de aula fornece
pistas para que o professor articule os conhecimentos provenientes de sua
formação e aqueles advindos da própria prática e do contexto escolar, de
maneira que “*...+ a relação entre formação e prática dificulta a
identificação de quais os acontecimentos pertencem à formação e quais
conhecimentos são provenientes da prática” (GUARNIERI apud PAIM,
2006, p. 130).
Moreira e Candau (2003) também abordam sobre as dificuldades
encontradas por professores em sala de aula, especialmente em relação a
dois aspectos: “*...+ tanto de tornar a cultura um eixo central do processo
curricular, como de conferir uma orientação multicultural às suas práticas”
(MOREIRA; CANDAU, 2003, p.156), de maneira que é frequente deparar-
se, no exercício docente, com dúvidas ligadas à forma de ensinar o
conteúdo do livro didático aos alunos, ou como lidar com as grandes
diferenças que encontramos em sala de aula, ou mesmo como relacionar
o que se aprende na escola, de forma efetiva, com a experiência de vida
dos estudantes. Os autores defendem que as salas de aula, no mundo
globalizado de hoje, são “invadidas” por diferentes grupos sociais e 7
culturais que antes eram ausentes nestes espaços, de maneira que tais
questões não dão conta do inevitável caráter multicultural das sociedades
contemporâneas, e também não respondem às demandas e contradições
geradas a partir dos processos de globalização econômica e mundialização
da cultura (cf. MOREIRA; CANDAU, 2003, p. 156). É necessário levar em
conta que

a problemática das relações entre escola e cultura é


inerente a todo processo educativo. Não há educação
que não esteja imersa na cultura da humanidade e,
particularmente, do momento histórico em que se
situa. A reflexão sobre esta temática é co-extensiva ao
próprio desenvolvimento do pensamento pedagógico.
Não se pode conceber uma experiência pedagógica
“desculturizada”, em que a referência cultural não
esteja presente. (MOREIRA; CANDAU, 2003, p. 159).

Acreditamos que esta é uma reflexão significativa para o trabalho


tanto do historiador quanto do professor-historiador para que o ensino
não seja colocado como “inferior” à pesquisa, para que não seja
negligenciado. O professor também é um pesquisador, e há a necessidade
inerente ao trabalho histórico de comunicar aquilo que foi pesquisado, de
maneira que mesmo os pesquisadores que estão distantes das salas de
aula necessitam da função didática da História para divulgar suas
pesquisas.
Em suma, há muitos aspectos que influem e confluem para o ensino
de História e o exercício docente. O objetivo deste trabalho foi realizar
uma reflexão sobre alguns dos aspectos que consideramos mais
relevantes, tendo em mente que o trabalho do professor é
essencialmente ligado às pessoas, de maneira que suas histórias
particulares e concepções são levadas à sala de aula, e devem ser
consideradas para que a aula de História (e de todas as outras disciplinas)
não sejam “chatas”, ou mesmo ligadas apenas à memorização. Outro 8
ponto a ser destacado é a necessidade de valorizar o ensino-
aprendizagem, e não somente a pesquisa, pois um está ligado ao outro e
se complementam.

REFERÊNCIAS
BARCA, Isabel. Concepções de adolescentes sobre múltiplas explicações
em História. In: BARCA, Isabel. Perspectivas em Educação Histórica.
Braga: Universidade do Minho, 2001, p. 29-43

DIAS, Paula (2007). As explicações de alunos sobre o Conflito Israelo-


Árabe: um estudo no 3º ciclo do Ensino Básico. Currículo Sem Fronteiras,
v. 7, n. 1, pp. 86-114, jan/jun 2007. Disponível em:

<http://www.curriculosemfronteiras.org/vol7iss1articles/dias.pdf>.

GAGO, Marília. Educação e cognição em História. In: GAGO, Marília.


Pluralidade de olhares: Construtivismo e Multiperspectiva no processo de
aprendizagem. Moçambique, EPM/CELP, 2012, p. 60-86.

GOLDMAN, Luciana. Resenha de MATHEUS, Tiago C. Ideais na


adolescência: falta (d)e
perspectivas na virada do século. In: INTERAÇÕES, vol. VII, nº 13, p. 129-
131, JAN-JUN 2002.
LEE, Peter. Por que aprender História? Educar em Revista, Curitiba, n. 42,
p. 19-42, out./dez. 2011. Editora UFPR.

MATHEUS, Tiago C. Ideais na adolescência: falta (d)e perspectivas na


virada do século. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2002. 199 p.
MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa. CANDAU, Vera Maria. Educação escolar
e cultura(s): construindo caminhos. Educação escolar e
cultura(s): construindo caminhos. Rev. Bras. Educ. [online]. 2003, n.23,
pp. 156-168.

PAIM, Elison Antonio. Chegando à escola: um momento de fazer-se


9
professor. Revista do Centro de Educação e Letras, Unioeste, Foz do
Iguaçu, v. 8, nº9, pp.125-139, 2006.

RODRIGUES, José Ribamar Tôrres. A sala de aula e o processo de


construção do conhecimento. Trabalho apresentado no II Encontro de
Pesquisa da UFPI. 2002. Disponível
em:<http://www.ufpi.br/subsiteFiles/ppged/arquivos/files/eventos/event
o2002/GT.2/GT2_14_2002.pdf>.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora, e CAINELLI, Marlene. Ensinar História. São


Paulo: Scipione, 2004.
A COMISSÃO NACIONAL DE MORAL E CIVISMO E A
EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Amanda Marques de Carvalho Gondim 1

1
Resumo
O processo de ampliação da rede de ensino público no Brasil entre os anos de 1960 e
1980 atendeu a interesses específicos da conjuntura política e social do país. Um deles
foi a produção da identidade nacional a partir da afirmação de verdades instituídas
pelo governo. Um dos caminhos para inserir os discursos no meio educacional foi a
retomada da Educação Moral e Cívica, pautada em valores morais ligados à religião
cristã. Para a sua legitimação, execução e fiscalização foi criado um órgão, a Comissão
Nacional de Moral e Civismo (CNMC).
Palavras-chave: Comissão Nacional de Moral e Civismo, Identidade Nacional, Discursos.

Abstract
The process of expansion of the public school system in Brazil between the years 1960
and 1980 met the specific interests of the political and social situation of the country.
One of them was the production of national identity from the assertion of truths
imposed by the government. One way to enter the speeches in the educational
environment was the resumption of Moral and Civic Education, based on moral values
related to the Christian religion. For its legitimacy, enforcement and monitoring has
created a body, the National Commission of Moral and Civics (CNMC).
Keywords: National Commission for Moral and Civics, National Identity Discourses

1
Mestre em Educação – UFPE
A Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC) surgiu no contexto do
regime militar brasileiro e perdurou mesmo depois de findo o governo
militar e a volta da democracia. Instituída pelo Decreto nº 68.065, de 14
de janeiro de 1971, possuía entre suas atribuições promover o
conhecimento do Decreto-lei nº 869, de 12 de setembro de 1969. Na 2

alínea a, que dispunha das finalidades da Educação Moral e Cívica (EMC),


está a proposta de uma relação intrínseca entre o princípio democrático e
o espírito religioso, pois afirma-se que o segundo é a base do primeiro.
A disciplina de Moral e Civismo e suas correlatas, Organização Social
e Política do Brasil (OSPB) e Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB) foram
idealizadas com esse objetivo. Embora a EMC tenha existido em outros
momentos da história da educação brasileira, foi no final dos anos 1960 e
no decorrer dos anos 1970 e 1980 que passou a ter uma estrutura
fomentadora das ideias do governo militar. A CNMC pregava a dualidade
da democracia espiritualista e do comunismo ateu (FILGUEIRAS, 2006, p.
87). Essa ideia encontrava espaço na Doutrina de Segurança Nacional
(DSN) pregada pelos militares e uma instituição educacional foi criada
especialmente para atender a essa demanda.
O período compreendido entre os anos de 1969 e 1993 foi marcado
por grandes mudanças na ordem social e política do Brasil. A educação
naquele momento foi palco para a institucionalização de um projeto de
identidade nacional voltado aos interesses de um grupo que afirmava
defender a democracia. Foi criada uma disciplina com base nesse
princípio, a Educação Moral e Cívica, instituída pelo decreto presidencial
nº 869, de 12 de setembro de 1969. A Comissão Nacional de Moral e
Civismo, inicialmente ligada diretamente ao Ministro de Estado e
posteriormente subordinada ao crivo do Ministro da Educação e Cultura,
tinha suas atribuições voltadas para a implantação e manutenção da
“doutrina” da Educação Moral e Cívica, de acordo com a lei.
Um órgão foi criado exclusivamente para fazer com que o Decreto 3

realmente existisse nos estados e instituições de ensino de todos os níveis.


Dessa forma, cabia à Comissão, entre outras finalidades, cultuar a Pátria,
seus símbolos, tradições, instituições e grandes vultos de sua história. De
acordo com essa finalidade, seria sua atribuição estimular a realização de
solenidades cívicas ou promovê-las.
A disciplina, instituída não apenas para ser lecionada na escola, teve
papel importante na divulgação de discursos instituídos no sentido de
estabelecer uma verdade. Um dos elementos ressaltados foi a ausência de
preconceitos no país por meio da afirmação de que vivíamos uma
democracia não apenas no campo político, mas também social e cultural.
Assim, faz-se inferência ao surgimento de uma educação voltada para a
cidadania nos moldes do contexto brasileiro da ditadura militar. Entende-
se, por meio de um esforço realizado pelo governo brasileiro, a
institucionalização de mecanismos para a inserção de ideias, conceitos e
discursos formadores de uma identidade nacional.
Silva (2006) em seu Dicionário de Conceitos Históricos afirma que
“toda identidade é uma construção histórica” (p. 204) e, portanto,
encontra-se sujeita ao tempo histórico em que é criada. Desse modo, cada
tempo histórico pode ser capaz de produzir uma identidade que procura
estabelecer-se na condição precípua e imutável. A reformulação de
conteúdos, com a posterior inserção da Educação Moral e Cívica,
representou mais um exercício do poder, no caso, político, sobre uma área
importante da sociedade, a educação. Popkewitz (2008) afirma que
“aprender gramática, ciências ou geografia é também aprender
disposições, consciência e sensibilidades em relação ao mundo que está 4

sendo descrito” (p. 185). Assim, a inclusão ou exclusão de uma matéria


escolar representa também um objetivo a ser alcançado na elaboração de
um discurso. Dessa maneira, a Educação Moral e Cívica, a partir do
decreto-lei que a institucionaliza em todas as esferas educacionais, é
apontada pelo estudo com o status de disciplina constituinte de uma
identidade nacional brasileira nesse período.
Entender uma identidade permite que seja compreendido o modelo
de identidade que se procurava estabelecer. A educação configura-se
como um dos campos de maior destaque não só na produção, mas na
imposição de afirmações e pensamentos identitários. Subirats (2000)
afirma ser a finalidade da educação “a produção de personalidades
capazes de viver em sociedade” (p. 195). Mas, como se produzir uma
personalidade capaz de viver em sociedade? Para o governo militar
brasileiro o caminho seria a criação de uma educação moral e cívica como
disciplina obrigatória. O Decreto-lei nº 869, de 12 de setembro de 1969,
foi sancionado pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da
Aeronáutica Militar, valendo-se dos Atos Institucionais, que lhe conferiam
plenos poderes.
Assim como no início da chamada idade moderna na Europa, a
massificação da educação escolar aconteceu para atender uma suposta
necessidade social de estabelecer ordem social por meio de padrões de
valores religiosos, sociais e morais. A escola brasileira, na segunda metade
do século XX, conheceu o início de sua expansão e massificação. A
educação escolar passa a ser obrigatória a todas as crianças, a partir dos 7
anos de idade. A reforma educacional proposta pela lei 5.692, de 11 de 5

agosto de 1971, estabeleceu a obrigatoriedade. De acordo com dados


apresentados por Romanelli (2006), houve um aumento acentuado no
ensino em geral a partir de 1964.
O crescimento da oferta de ensino no Brasil entre as décadas de
1960 e 1980, com sua posterior massificação, atende a interesses bem
específicos. Do ponto de vista econômico, é impossível não relacionar o
crescimento industrial e urbano com a demanda por mais vagas nas
escolas. A taxa de escolarização, na década de 1970, representava 53,72%
da população em idade escolar enquanto que na década de 1950 era de
26,15%, representando, pois, a duplicação desse percentual em vinte
anos.
De acordo com a reflexão do sociólogo Florestan Fernandes (APUD
Romanelli, 2006, p. 69), a educação promovida pelo governo, em 1960,
era um Estado “fundador de escolas”, cumprindo apenas a função de
construir, administrar e supervisionar o sistema nacional de educação. A
concentração das pessoas nas áreas urbanas passou a ser maior do que
nas rurais a partir do final da década de 1960 e início da década de 1970,
gerando com isso uma demanda cada vez maior pelo ensino escolar. Para
resolver esse problema premente, o governo brasileiro adotou uma série
de medidas com o objetivo de minimizar o déficit oferecido na educação
escolar pública.
A legitimação do poder político dos militares encontrou na
educação escolar um caminho viável para inserir na sociedade vários
discursos. Promover conceitos tais como homogeneidade entre os grupos 6

sociais e regiões do país, contribuindo para a afirmação de uma identidade


nacional refletia, de maneira apropriada, o interesse em salvaguardar a
segurança nacional e o desenvolvimento econômico.
De acordo com Fonseca (2005), “o projeto delineado nos planos e
programas de desenvolvimento, na legislação e nas diretrizes
governamentais representa o ideário educacional dos setores políticos
dominantes” (p.16). Assim, os discursos elaborados e transmitidos por
meio da Educação Moral e Cívica atendiam a interesses específicos de
parcela da população, a quem interessava manter a sociedade na mais
completa ordem social ‘como sempre havia sido em toda história do país’.
A construção de uma identidade nacional harmoniosa e sem conflitos
pode ter sido um dos motes na elaboração de projetos e atividades em
todas as esferas as quais a Educação Moral e Cívica atuava, com os seus
órgãos de normatização e gerência do ensino.

Referências Bibliográficas
BRASIL. Decreto-lei nº 869, de 12 de setembro de 1969. Dispõe sobre a
inclusão da Educação Moral e Cívica como disciplina obrigatória, nas
escolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de ensino no País,
e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 15 set. 1969. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-869-
12-setembro-1969-375468-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 28
jan. 2016. 7

BRASIL. Decreto nº 68.065, de 14 de janeiro de 1971. Regulamenta o


Decreto-lei nº 869, de 12 de setembro de 1969, que dispõe sobre a
inclusão da Educação Moral e Cívica como disciplina obrigatória, nas
escolas de todos os graus e modalidades dos sistemas de ensino no País, e
dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 15 jan. 1971. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-68065-
14-janeiro-1971-409991-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 28 jan.
2016.
BRASIL. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para
o ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 12 ago. 1971. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5692-11-agosto-
1971-357752-norma-pl.html>. Acesso em: 28 jan. 2016.
FILGUEIRAS, Juliana Miranda. A educação Moral e Cívica e sua produção
didática: 1969 – 1993. 2006. 222 f.. Dissertação (Mestrado em Educação)
– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.
Disponível em:
http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3301
Acesso em: 2014-06-26.
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de história:
Experiências, reflexões e aprendizados. 4 ed. Campinas, SP: Papirus, 2003.
POPKEWITZ, Thomas S. História do currículo, regulação social e poder. In:
O sujeito da educação: estudos foucaultianos. SILVA, Tomaz Tadeu da
(org.), 6. ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. p. 173-210. 8

ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil:


1930/1973. 30 ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2006. 267 p.
SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionário de conceitos históricos. 2. ed. São
Paulo: Contexto, 2006.
SUBIRATS, Marina. A educação do século XXI: a urgência de uma educação
moral. In: A educação no século XXI: os desafios do futuro imediato.
IMBERNÓN, F. (org.). Trad. Ernani Rosa, 2. ed., Porto Alegre: Artes
Médicas Sul, 2000.
A POLIARQUIA BRASILEIRA: DA ALIANÇA ENTRE MIDIA E
GOVERNOS À LIBERDADE DE OPOSIÇÃO SOCIAL
ORGANIZADA DURANTE OS GOVERNOS COLLOR E FHC

Guilherme Augusto Batista Carvalho 1


1

Resumo
O presente artigo pretende realizar uma discussão sobre o papel da mídia brasileira no
apoio à hegemonia governista, na ainda jovem democracia que tentava se estabelecer
na década de 1990 no país. Para tal, buscamos realizar uma discussão teórica
fundamentada em quatro conceitos basilares: “Poliarquia”, “Simbolismo”,
“Hegemonia” e “Vontade”. Além disso, buscaremos nos debruçar sobre a conjuntura a
qual esse trabalho se propõe a analisar, a fim de enrobustecer nosso diagnóstico final.
Frente a tais proposições, buscaremos realizar uma análise qualitativa dos fatos,
através de um método observacional das bibliografias pertinentes, como artigos e
livros que mostram o histórico da temática, além de dados coletado na época, como
desemprego, inflação e satisfação/insatisfação. Assim, o artigo levanta uma questão
estrutural: a participação da mídia na manutenção da governabilidade interferiu na
proeminência democrática de oposição organizada? Concluímos que ambos governos
terminaram extremamente fragilizados devido aos escândalos, e números de baixa
aprovação, nos levando a concluir que a participação de grupos opositores de cunho
social organizado, se fortaleceram frente ao descrédito desses governos, apesar da
oposição feita pela mídia a esses movimentos, nenhum consenso foi alcançado.
Palavras-chave: Poliarquia; Collor; FHC.

1
O autor é Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás e Pós-
Graduando em Políticas Públicas pela Universidade Federal de Goiás. Contato:
guilherme.rel1404@gmail.com.
Abstract 2
This article intends to hold a discussion on the role of the Brazilian media in
supporting the government's hegemony in the still young democracy trying to
establish in the 1990s in the country. To this end, we made a theoretical discussion
based on four basic concepts: "Polyarchy", "Symbolism", "Hegemony" and "Desire". In
addition, we will seek dwell on the situation in which this work is to analyze in order to
make robust our final diagnosis. Faced with such propositions, we will seek to carry out
a qualitative analysis of the facts through an observational method of relevant
bibliographies, such as articles and books that show the History of the subject, as well
as data collected at the time, such as unemployment, inflation and satisfaction /
dissatisfaction. Thus, the article raises a structural issue: the media's interest in
maintaining the governance interfered in democratic prominence of organized
opposition? We concluded that both governments ended extremely fragile due to
scandals and low approval numbers, leading us to conclude that the participation of
opposition groups organized social, strengthened against the discredit of these
governments, despite opposition from the media to these movements, no consensus
has been reached.
Keywords: Polyarchy; Collor; FHC.

Introdução
O gradual retorno à democracia no Brasil levou a novos
questionamentos sobre a vida pública nacional. Foi encontrada nos anos
1980, uma manifestação de novos atores políticos e sociais, que há muito
estavam suprimidas. O surgimento de novos partidos, que tem suas
origens políticas ligadas à luta pela democracia, oportunidades de 3

participação e de contraposições de ideias, se aglutinaram no antigo MDB


– atual Partido do Movimento Democrático Brasileiro PMDB –, desde os
conservadores, aos liberais, também socialistas e os nascentes social
democratas, representaram a pluralidade de pensamento e posições
políticas que existiam, mas não se manifestavam com toda a liberdade.
Na alvorada da Constituição Federal de 1988, definiram-se regras
para que houvesse a clareza no que se tange aos limites da participação e
da liberdade de contestação. As construções do cenário político e social
brasileiro de certa forma promoveram uma releitura do cenário da
cidadania, buscando retificar a herança da formação elitista da política
nacional. Compreendeu-se pelos constituintes que era necessário
problematizar as configurações e entendimentos do papel e atuação dos
movimentos e suas expressões populares, suprimidos pelo movimento
não democrático que se arrastou de 1964-1985, e que representou a
continuação da supressão do direito de participação e de oposição.
Os trabalhadores, sindicatos e os movimentos de base que em meio
às suas demandas, sempre encontraram dificuldades políticas, pela
primeira vez, no art. 10 da Constituição Federal, se depararam com uma
interlocução com o poder: “É assegurada a participação dos trabalhadores
e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus
interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e
deliberação”2. Outro ponto amplo e de um profundo desejo dos grandes
empresários e intelectuais, era a liberdade de imprensa, que na
constituição se manifestou no art. 220 da seguinte forma: “A
manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob 4

qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição,


observado o disposto nesta Constituição” 3.
A intensidade com a qual se buscou a consolidação de um projeto
econômico e social específico, fez com que as eleições de 1989, 1994 e
1998 levassem projetos partidários muito parecidos, no que tange às
propostas de resoluções dos problemas brasileiros, ao poder.
A primeira eleição direta no Brasil, em 1989, trouxe consigo um
amplo arcabouço de propostas das mais diversas correntes de
pensamento, oriundos da liberdade de expressão promovida pela
Constituição aprovada no ano anterior. Também, destaca-se a apreensão
popular pela possibilidade da primeira participação eleitoral direta na
escolha de um presidente desde 1961 com a eleição de Jânio Quadros
(PDC).
Dentre os candidatos, sobressaem os dois que chegaram ao
segundo turno. Lula, para Albino, Rubim e Colling (2004) representava
para a classe trabalhadora nacional, a superação da ditadura e a busca de
uma justiça social no país. Já Collor, inaugurou em nível nacional, uma

2
BRASIL. Constituição Da República Federativa Do Brasil. Brasília: Biblioteca Digital da Câmara dos
Deputados, 2012. p.20.
3
BRASIL. Constituição Da República Federativa Do Brasil. Brasília: Biblioteca Digital da Câmara dos
Deputados, 2012. p.13.
possibilidade política de privilegiar o mercado como princípio regulador da
sociedade, e ainda utilizou outro dispositivo da Constituição de 1988:
“Collor, em moldes marcantes e inovadores bem como uma política
configurada pela existência de um padrão midiático [...] acionou e
esbanjou marketing, sondagens de opinião, produção de imagem 5

pública”4.
O projeto social e econômico proposto pelo Partido dos
Trabalhadores – PT –, em 1989, denominado “Frente Brasil Popular”, que
fez com que houvesse a adesão do Partido Socialista Brasileiro – PSB –
integrando a aliança a partir do vice da chapa, Paulo Bisol. No segundo
turno das eleições, o candidato Luis Inácio da Silva, Lula, do PT, teve a
participação do Partido Comunista do Brasil – PCdoB5 –, também do
Partido do Movimento Democrático Nacional – PMDB6 –, assim como do
Partido Democrático Trabalhista – PDT7 – e do Partido Comunista
Brasileiro – PCB8 –, em sua rede de apoiadores. No segundo turno, porém,
a Frente Brasil Popular foi derrotada pelo candidato Fernando Collor de
Mello, do Partido da Reconstrução Nacional, que obteve 20.611.011, ou
30,47% dos votos, enquanto a Frente obteve 11.622.673 votos, ou 17,18%
dos votos, naquela ocasião.

4
RUBIM, A. A. C; COLLING, L. Mídia, cultura e eleições presidenciais no Brasil contemporâneo. In:
Correia, J. C. (org.). Comunicação e política. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2005. p.76.
5
O PCdoB já integrava a chapa desde o primeiro turno.
6
O PMDB nas eleições de 1989 ofereceu a candidatura do Deputado Ulysses Guimarães, que conseguiu
apenas 3.204.932 votos, ou 4,73% dos votos totais.
7
O PDT concorreu com o nome do Governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, conseguindo o 3° lugar,
com 11.622.673, ou 16,51% dos votos totais.
8
O PCB teve como candidato o Deputado, Roberto Freire, que conseguiu 769.123, ou 1,13% dos votos.
As eleições de 1994 foram extremamente afetadas pela conjuntura
que o Plano Real construiu no Brasil, já em seu primeiro ano. A Frente
Brasil Popular mais uma vez apostou na candidatura de Lula, que contou
com Aloísio Mercadante, também do PT, como vice em sua chapa. A
Frente Brasil Popular, nessa ocasião, contou com a adesão de mais 6

Partidos do que na eleição de 1989. Novamente integraram o PSB, PCdoB


e PCB, porém houve a adesão do Partido Popular Socialista – PPS –,
Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado – PSTU – e Partido Verde –
PV. A outra chapa, porém, representante da continuidade do projeto
econômico do governo anterior, representada principalmente pelo PSDB
com seu candidato, FHC, teve a adesão do Partido da Frente Liberal – PFL
–, compondo a chapa com o vice Marco Maciel e o Partido Trabalhista
Brasileiro – PTB. A Frente Brasil Popular e seu projeto oposicionista ao
plano econômico vigente, novamente foi derrotada, porém dessa vez em
primeiro turno, conseguindo apenas 27,04% dos votos, ou 17.112.255. Já
a chapa vencedora, que tinha o ex-Ministro da Fazenda como seu cabeça,
FHC, venceu, com 54,28% dos votos válidos, ou 34.350.217.
As eleições de 1998, porém, contaram com o retorno da
participação do PDT na coligação, que tinha novamente Lula como cabeça.
O PDT, dessa vez, além de aderir à coligação, ofereceu Leonel Brizola 9
como vice da chapa. O PSB, novamente integrou a chapa, tendo sido,
junto ao PCdoB, que também integrava a chapa, os Partidos que mais

9
Brizola havia sido 3° colocado em 1989, com 16,51% dos votos e 5° nas eleições de 1994, com apenas
3, 18% dos votos válidos. Brizola se destacou nesses anos, pelas intensas críticas tanto aos governos
como aos candidatos à Presidência, inclusive a Lula, candidato que em 1998, ele apoiou como cabeça de
sua chapa.
apoiaram as candidaturas de Lula à presidência da República. Houveram
também a participação do PCB, que desde 1992, havia se separado, dando
origem ao PPS, que por sua vez apostou na candidatura de Ciro Gomes à
Presidência e Roberto Freire à vice. O candidato à reeleição, fato que
havia sido aprovado em sua primeira gestão, FHC, retornava com PFL e 7

PTB em sua coligação e também com o Partido Progressista Brasileiro –


PPB – e o Partido Social Democrático – PSD –, conseguindo o primeiro
lugar, novamente em primeiro turno, com 35.936.540 votos, ou 53,06%
dos votos válidos. A chapa liderada pelo PT, obteve 21.475.218, ou 31,71%
dos votos totais.
A necessária análise das variáveis nesse trabalho, para uma melhor
explicitação de nossos objetos, segundo Sartori (1970) 10, vem a partir da
determinação adequada dos conceitos, para então desenvolver
categorias, e assim pensar nas cunhar nuanças. Nesse sentido, esse artigo
se propõe a compreender conceitos diretamente ligados ao tema
proposto, que são peças-chave para um ponto de partida na abrangência
temática possível, como “Poliarquia”, “Simbolismo”, “Hegemonia” e
“Vontade”. E para um ponto de partida, iniciaremos uma discussão teórica
visando abordar a temática a partir de um ponto de vista ontológico, para
que assim tenhamos uma visão mais robusta dos fatos a serem
apresentados.

10
SARTORI, Giovanni. “Concept misformation in comparative politics.” American Political Science
Review. N°. 4, pp. 1033, Dec, 1970.
2 Poliarquia, seus simbolismos e vontades
Robert Alan Dahl na obra “Poliarquia: Participação e Oposição”
(1997) tem em sua obra a máxima análise sobre democracias recentes, e
que necessitam de alguns fatores básicos para constituírem democracias
robustas. Poliarquias para o autor, são “regimes que foram 8

substancialmente popularizados e liberalizados, isto é, fortemente


inclusivos e amplamente abertos à contestação pública 11. Na visão de
Joseph Schumpeter em sua única obra sociológica, denominada
Capitalismo, Socialismo e Democracia (1961), a participação é restrita às
elites, não no sentido econômico apenas, mas no sentido decisório, o que
inviabiliza a participação das massas. Para Miguel (2014) a visão de
Schumpeter12 é um tanto quanto atomística em relação à vida social,
ignorando os processos de produção de vontades individuais e que
constroem vontades coletivas, pois Schumpeter acredita que as vontades
populares em relação à vida política estão restritas apenas ao voto, ato
esse que instrumentaliza a manutenção do status quo. Mesmo de uma
forma cética, a teoria schumpeteriana tem muito a contribuir para se
pensar o papel da participação popular e sua relação com os centros de
poder.
Para o professor Florestan Fernandes (1986), há um pacto
conservador no Brasil no sentido de afastar as massas das esferas de
influência política: “zerar a presença popular em todos os processos
cívicos e políticos, de alguma magnitude, monopolizados pelas elites

11
DAHL, R. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: EDUSP, 1997.
12
SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. — Rio de Janeiro: Editora Fundo de
Cultura, 1961.
culturais [...] manter as rédeas presas para que a massa e trabalhadores
sejam premente banidas do exercício do poder”13. A partir dessa discussão
que Fernandes realiza, a liberdade de expressão parece ser apenas mais
uma válvula da manutenção do equilíbrio entre a legitimação da minoria
elitizada e a sensação de contemplação da vontade da maioria por uma 9

ideia de liberdade de contestação, que para o autor estaria muito mais


vinculada a uma perspectiva econômica.
Em uma visão talvez mais otimista, Dahl considera que em um
regime democrático, há uma constante disputa pela consciência da
sociedade. Para o autor em um regime poliárquico é necessário que hajam
condições básicas: “Liberdade de formar e aderir a organizações;
Liberdade de expressão; fontes alternativas de informação; liberdade de
exprimir preferências; Liberdade de formar e aderir a organizações; direito
de líderes políticos disputarem apoio” 14. Para Dahl (1997), a contestação é
um mecanismo, que ocorre a partir da oposição individual, que se
aglutinada, formam grupos que reivindicam o direito a participação e de
contestação da administração pública.
um novo regime de caráter democrático, algumas medidas são
necessárias, vindas dos centros decisórios, para haver de fato a existência
de democracia. Dahl (1997) estabelece algumas dessas medidas, que
vamos expor na figura abaixo:

13
FERNANDES, Florestan. Que tipo de república? 2° e.d. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986. p.44.
14
DAHL, Robert A. A Preface to Democratic Theory. Reed. Chicago: University of Chicago Press, 2006.
p.63.
Figura 1: Requisitos para a existência de uma democracia

10

Fonte: Dahl (1997) 15


Portanto, o autor considera que, para além de garantir a liberdade pela
concorrência dos votos, o sistema democrático necessita de diversas
medidas que sejam capazes de ampliar em muito a participação política,
que no caso brasileiro há muito se encontrava restrita.
Dahl, diferente de Schumpeter, acredita que as eleições ocupam
um papel central, pois: “aumentam imensamente o tamanho, o número e

15
DAHL, R. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: EDUSP, 1997. p. 10-11.
a variedade de minorias cujas preferências têm de ser levadas em conta
pelos líderes quando fazem escolhas políticas”16. Nesse sentido, o autor
acredita que a participação das massas através das eleições é parte de um
processo decisório através da delegação. Axel Honneth (2009) entende a
busca por participação como sendo parte de uma luta pelo 11

reconhecimento e da gramática moral dos conflitos sociais. O autor é um


dos principais expoentes contemporâneos da chamada “teoria do
reconhecimento”, a qual dialoga bastante com o nosso tema. Sobre a
questão da participação da classe dos trabalhadores, Honneth (2003),
ainda postula: “mesmo as lutas por redistribuição material devem ser
entendidas como sendo, em primeiro lugar, clamores por
reconhecimento”17.
Dahl (1997) nos trouxe importantes contribuições, ao postular uma
noção conflitiva entre governantes e governados demonstrando o temor
dos governantes em cederem participação aos governados: “Qualquer
transformação que dê mais oportunidades aos opositores do governo
traduzir seus objetivos em políticas aplicadas pelo Estado traz consigo a
possibilidade de conflito com representantes dos indivíduos” 18. Nesse
sentido cabe questionar se há um temor por parte dos governantes pós-
Constituição na abertura para os questionamentos e participação
popular? Max Weber na obra “A Política Como Vocação” (2003), contribui

16
SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. — Rio de Janeiro: Editora Fundo de
Cultura, 1961.
17
HONETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2.ed. São Paulo:
Editora 34, 2009. p.113-114.
18
DAHL, Robert A. A Preface to Democratic Theory. Reed. Chicago: University of Chicago Press, 2006.
p.136.
conosco ao também nos oferecer uma definição própria para participação
política: “constitui o conjunto de esforços tendentes a participar da
divisão do poder, influenciando sua divisão, seja entre Estados, seja entre
grupos num Estado”19.
Para Marx e Engels em “A ideologia alemã” (1998), a ideologia faz 12

parte da consciência crítica e dos conceitos de liberdade e justiça. Essa


consciência, nessa visão, é o que move os grupos sociais a lutarem em prol
de seus benefícios, seja utilizando seus recursos disponíveis ou impedindo
que as outras classes os utilize. A ideologia, bem como as instituições do
Estado, para os autores pertencem ao âmbito do que eles chamam de
superestrutura. “As ideologias se desenvolvem com um grau de
autonomia, de acordo com a matéria tradicional acumulada, exerce
influência retroativa sobre a base econômica e condicionam as formas de
desenvolvimento histórico”20. Norberto Bóbbio, em uma releitura do
conceito de superestrutura, encontra um elemento fundamental, a
sociedade civil: “pode ser chamado de 'sociedade civil', e de sociedade
política ou Estado, que correspondem à função de 'hegemonia' que o
grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de domínio
direto"21. Para Antônio Gramsci em “Cartas de cárcere” (1978), hegemonia
é uma forma de se obter consenso, no qual o grupo dominante a exerce
em toda a sociedade, e se expressa no Estado e no que ele chama de
“governo jurídico”.

19
WEBER, Max. A política como vocação. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003. p.9.
20
MARX, Karl; ENGELS, Friederich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.23.
21
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade para uma teoria geral da sociedade. Rio de Janeko:
Paz e Terra, 1987. p.39-40.
Seguindo a leitura da superestrutura marxiana, a sociedade civil se
apresenta como alicerce da sociedade política, e a ideologia se apresenta
como parte da matéria acumulada do desenvolvimento histórico.
Norberto Bóbbio em sua obra “Estado, Governo e Sociedade”, faz uma
releitura do conceito de superestrutura em Gramsci, e acaba se 13

deparando com um elemento fundamental para nossa leitura sobre


participação e oposição: a sociedade civil como superestrutura. “A
sociedade civil representa a eticidade, através da qual uma classe
dominante obtém o consenso; o Estado representa o momento político
[...] para a conservação do poder, ao menos até quando o poder for
exercido por uma classe restrita” 22. O autor entende que esse consenso
perpassa os limites individuais, e atinge grupos, formando hegemonias.
Para Antônio Gramsci em “Cartas de cárcere” (1999)23, hegemonia é um
conceito que não se expressa pela imposição, mas sim pelo consenso, no
qual o grupo dominante a exerce em toda a sociedade, e se expressa no
Estado, mantendo-o coeso.

2.1 A disputa pela consciência coletiva


Gramsci (1999) argumenta que o consenso depende do grau em que
o embate pela superestrutura se dá, ou seja, no nosso caso da disputa
materializada pela correlação de forças para a formação de uma
hegemonia frente à sociedade civil em prol de um determinado projeto
político. Esse embate, segundo o autor depende de homogeneidade,

22
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade para uma teoria geral da sociedade. Rio de Janeko:
Paz e Terra, 1987. p.40.
23
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 1, 1999.
autoconsciência e organização dos diferentes grupos, assim viabilizando a
formação de uma estrutura social que pode “conquistar” a superestrutura
através do aumento da coesão de uma ideia dentro da sociedade, pois os
grupos organizados criam estruturas sociais, lutam, e unificam-se um prol
de uma agenda de interesses, para então formar uma hegemonia. 14

A busca pela hegemonia gera uma “cultura de disputas” no campo


social e político que transcende para as questões que impactam na
superestrutura, nesse caso no campo econômico, onde o emprego,
salário, inflação e condições de trabalho se tornarão símbolos dessa
disputa. “Se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também
econômica, não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva
que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade
econômica”24.
Sobre o prisma da ideia do pensamento sobre hegemonia de
Gramsci, os símbolos construídos em torno de uma determinada
atividade, ou tema, têm como fim abrir dialogo com as estruturas – grupos
da sociedade civil não organizada como universidades, escolas, famílias,
comércio, indústrias etc –, obter consenso dentro dela através do
simbolismo – nesse caso os fatores econômicos –, assim chegar à
hegemonia. Em nosso caso, os grupos sociais organizados – CUT, UNE,
MST, Partidos de oposição, parecem se colocar na tentativa de obtenção
de uma coesão com a sociedade civil em prol de uma oposição no campo
econômico e político. Já a mídia, parece ter se colocado a favor dos

24
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, Vol. 2, 2000.
p.48.
projetos políticos, econômicos e sociais dos dois governos aqui
pesquisados. Porém, o que mais chama a atenção, além do ainda muito
recente debate livre entre campos opostos, é que os discursos de ambos
parecem tentar dialogar com a sociedade, e talvez, em prol de obter um
consenso, por isso é necessário dialogar com o conceito de hegemonia. 15

Para Bourdieu (1989) 25, há um processo de construção de


simbolismos que efetivamente através de uma produção de conceitos,
impõe vontades de atores. Esses atores para o autor manifestam através
de um conjunto de símbolos, as relações de poder, expressas pela criação
de categorias de percepção e de apreciação e de expectativas
inconscientes, além disso há também um foco na construção simbólica de
condições objetivas interiorizadas e disposições para a recepção simbólica.
O sociólogo polonês, Zygmunt Bauman (1977), traz uma abordagem
bastante relevante para o conceito de vontade e seu simbolismo político:
“despojar a discussão dos fenômenos políticos do conceito de vontade,
intenções, objetivos [...] transcende a idiossincrasia individual [...] as
atividades humanas permanecem comprimidas entre os fenômenos da
ação política”26. Assim, o individualismo materializado em vontades,
efetivamente não compõe as ações coletivas que levam ao consenso
hegemônico. Os simbolismos são construídos por grupos que necessitam
transcender as esferas individuais para obterem apoio político, sem um
simbolismo que transcenda vontades restritas, não se viabiliza o consenso,
e por consequência a hegemonia.

25
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Editora DIFEL, 1989.
26
BAUMAN, Zygmunt. Por Uma Sociologia Crítica: Um ensaio sobre senso comum e emancipação. Rio
de Janeiro: Editora Zahar, 1977. p.25.
2.2 A tentativa da construção do consenso
A mídia desenvolve um papel fundamental na destinação e
enquadramento das vontades políticas, e que pode abrir espaço para um
consenso. Max Weber acredita que a mídia tem um papel fundamental na
criação de aliados e opositores dos projetos políticos. O autor define: 16

“Naturalmente qualquer político de importância, precisa contar com a


influência da imprensa e assim cultivar laços com o meio jornalístico”27.
Para Gramsci (1999), os meios de comunicação em geral são parte daquilo
que ele entende como “aparelhos privados de hegemonia”, logo a
abertura de diálogo com a imprensa como Weber sugere, é justamente o
diálogo com as vontades individuais que podem se constituir em vontades
coletivas. Essas vontades coletivas para Bourdieu (2007) podem ser
melhor referenciadas em Durkheim. Para o autor, elas são desenvolvidas
através das relações domésticas, familiares, e podem surgir como relações
de dominação ou subordinação econômica e política – correspondendo a
premissa de Gramsci –. Bourdieu acredita que existem relações
construídas a partir de um princípio de não consciência que “impõe que se
construa um sistema de relações objetivas nas quais os indivíduos se
encontram inseridos e se exprimem de modo adequado na economia e na
morfologia dos grupos através das opiniões e intenções manifestas pelos
sujeitos”28. Essa perspectiva do autor, ao nosso ver, é o que baliza a
junção de vontades individuais, e constroem uma coesão a partir de uma
determinada temática.

27
WEBER, Max. A política como vocação. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003. p.47.
28
BOURDIEU, Pierre. A Economia Das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. p.24.
Habermas (1997) acredita que a opinião pública tem um papel
importante na dinâmica de participação dos atores não elitizados nas
esferas decisórias, e isso é o que de fato exerce o controle sobre a mídia.
“A opinião pública gera influência, se transforma em “poder
comunicativo” através de eleições; este por sua vez, se torna “poder 17

administrativo” por meio da legislação” 29. Nessa visão, a mídia cumpre um


papel fundamental de equilíbrio no processo da formação de um corpo
político-administrativo do Estado, porém os movimentos sociais
organizados por vezes se contrapõem a ela de forma incisiva, através da
junção de outras vontades, formando uma oposição.
Para John Rawls (apud Miguel, 2014), há um “véu de ignorância”
que impede que as pessoas conheçam sua posição social. Os fatores que
contribuem com o aumento do consenso em relação ao que é transmitido,
nesse sentido a mídia se estende como um importante mecanismo, ou
mesmo as “fibras” desse véu. Bohman (1996) 30 acredita que o
reconhecimento subjetivo do que está sendo transmitido aumenta o êxito
na realização de uma deliberação pública, em que se cria uma falsa ideia
de participação do processo: “reconhecem que contribuíram e
influenciaram o resultado final, mesmo discordando dele” (Bohman, 1996,
p.33). Dessa forma, Bohman se aproxima da análise schumpeteriana.
Miguel (2014) confirma o caráter conservador da análise de schumpeter e
de Bohman, pois “o ideal deliberativo pode se revestir de um caráter

29
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997. p.189-190.
30
BOHMAN, James. Public Deliberation: Pluralism, Complexity and Democracy. Cambridge: MIT Press,
1996. p.33.
profundamente conservador. A exigência de consenso, em especial,
paralisa a ação política preservando o status quo” 31. Assim, o consenso
pode obedecer tanto a parte que quer mudar, quanto à parte que quer
conservar algo.
18

3. A Mídia e o status quo governista de Collor à FHC


As estratégias de investimentos na mídia nacional renderam
grandes resultados a Collor. “Nos dias que se seguiram, a TV Globo
selecionou partes dos debate, favorecendo Collor. A tendência eleitoral
definiu-se e Lula perdeu a eleição (Collor 42,75% e Lula 37,86%)” 32. O
apoio midiático na interlocução com a sociedade se mostrou
extremamente expressivo, tendo em conta que só a TV Globo, segundo
Avelar (1992), possuía uma audiência diária de 80 milhões de
telespectadores. Para Avelar (1992), a Rede Globo, pelo Jornal Nacional,
dedicou 87% do seu noticiário político à sucessão. O Jornal da Rede
Manchete, 92%, e o Jornal Bandeirantes, 92%.
Tendo assumido em 1990, Fernando Collor de Mello chega ao poder
apoiado pela Constituição Federal, mídia nacional, grande parte da classe
média e o grande empresariado. As camadas sociais mais baixas, porém,
sofriam mais que as demais classes, pelas altas inflações e o desemprego
que desde os primórdios dos anos 1980 assolavam o país. Segundo Filho
(1992), a política salarial adotada pelo governo Collor, achatou os salários

31
MIGUEL, Luis F. Democracia e Representação: territórios em disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
p.81.
32
AVELAR, Lúcia. As Eleições na Era da Televisão. Revista de Administração de Empresas, São Paulo,
32(4): 42-57, Set-Out. 1992. p.43.
na tentativa de conter o processo inflacionário. Além disso, o autor
destaca que os planos Collor I e II, foram apresentados pelo Presidente
como planos de reconstrução nacional, que na época já enfrentavam uma
inflação média de 80% ao dia, e uma taxa real de desemprego de 16,1%.
Frente aos crescentes números negativos, o partido de um dos 19

principais opositores do presidente e ex-candidato à Presidência da


República, Lula, e naquela época um dos principais interlocutores com os
ainda nascentes movimentos sociais organizados, proferiu declarações a
respeito do descrédito ao qual o governo se encontrava, em uma
resolução nacional partidária: “Collor vive, portanto, entre a recessão e a
retomada da inflação, com riscos de uma hiperinflação [...] impôs,
especialmente aos trabalhadores e pequenos produtores, perdas salariais
e de renda, além de imobilizar novamente o governo” 33. Souza (2000)
mostra que em 1990, 71% da população acreditava que Collor faria um
governo ótimo ou bom, o prestígio popular do presidente cai
drasticamente, quando em 1991 o número é de 36% que consideravam
um governo ótimo ou bom. Um ano depois, apenas 24% acreditavam na
possibilidade de um bom governo. Seis meses antes de a Câmara dos
Deputados autorizar o processo de impeachment, apenas 15% mantinham
esta avaliação positiva.
Em meio ao aumento da pressão política, o Presidente Collor se
encontrou sem base de apoio no Congresso Nacional, e muito menos
tinha uma base social. A situação se agravou, quando segundo Filho

33
PARTIDO DOS TRABALHADORES. Comissão Executiva Nacional. Circ. CEN/007/92 – Informes e
decisões do Diretório Nacional (reunião de 31 jan., 1º e 2 fev. 1992). São Paulo, 4 fev. 1992. s.p.
(1992), o irmão do Presidente, Pedro Collor, deu uma entrevista à Revista
Veja, acenando um possível amplo esquema de corrupção liderado pelo
seu irmão, o Presidente. “Um dossiê, apontou o empresário Paulo César
Farias, antigo amigo e colaborador de Fernando Collor e responsável pela
coordenação financeira de sua campanha presidencial, como chefe de 20

uma quadrilha que rouba, extorque e corrompe” 34.


A posição midiática em relação a Collor é mudada, os principais
veículos de comunicação do país começam a cobrir o inicio do movimento
que ficou conhecido como “caras pintadas”. Rocha e Lúcio (2010) 35
mostram que em Agosto de 1992, a Câmara Federal aprovou a abertura
do processo de impeachment contra Collor e, em 29 de setembro ocorre a
votação decisiva com 441 votaram a favor, 38 contra, 23 não votaram e
um se absteve. A votação foi transmitida ao vivo pela TV e telões foram
montados nas praças das principais cidades brasileiras. A euforia popular
tomou conta das ruas. Foi a primeira grande manifestação nacional desde
as “Diretas já”, obtidas através da pressão e insatisfação popular e
também descontentamento de classes que detinham poder econômico.
Collor, assim teve seus direitos políticos cassados, e seu vice, Itamar
Franco (PMDB), assumiu a Presidência da República.

3.1 Do pós impeachment à era FHC


O combate à inflação era uma proposta comum a todos os
candidatos à Presidência da República no Brasil pós-redemocratização, e

34
FILHO, Calino P. Emprego e Salário: saldos do governo Collor. ZERO HORA, Porto Alegre, 1992. p.43
35
ROCHA, José Aparecido da S; LÚCIO, Antônio B. Protesto Social no Brasil: Os jovens nos movimentos
Diretas já e Fora Collor. Congresso Alas, Recife, vol.1, pp.1-9, 2010.
nos preparativos para a eleição de 1994, não foi diferente. Após
incansáveis planos econômicos, uma proposta em especial de combate à
inflação ganhou força. Essa proposta ocorreu durante o governo de Itamar
Franco, sucessor do ex-Presidente Collor, através do Plano Real: “a era do
Real teve o significado de uma “conjuntura crítica”, isto é, de uma grande 21

mudança na posição relativa dos atores políticos e sociais em relação aos


instrumentos de poder e às preferências” 36. A ideia do “Real”, por um lado
enfrentou grande contestação por parte dos movimentos sociais e seus
representantes, como na fala do então Governador do Rio de Janeiro,
Leonel Brizola – PDT –: “Outra vez, trata-se de soluções artificiais,
simplesmente financeiras, que não atingem a essência do processo
inflacionário. É um plano para beneficiar as grandes empresas e os bancos
às custas da população trabalhadora”37.
A mídia, mas mais em especial a imprensa escrita, se mostrou
bastante aliviada com a chegada de Fernando Henrique Cardoso – FHC –
do PSDB à chefia do Ministério da Fazenda do governo Itamar Franco –
PMDB –. Por exemplo, o jornal “O Globo” (apud RENAULT, 2008), destaca
que FHC revelou, na careira política, ser imune à força deformadora do
radicalismo e poderia dar um sentido pragmático e ao programa de
privatização, livrando-o da artificial disputa ideológica que o ameaçava. E
não foi por acaso que os meios empresariais e os mercados receberam
com serenidade a nomeação de FHC. O sucesso do Plano Real no combate

36
COUTO, Claudio G; ABRUCIO, Fernando. O segundo governo FHC: coalizões agendas e instituições.
Tempo Social, São Paulo, pp. 269-301, novembro de 2003. p.276.
37
FOLHA DE SÃO PAULO. Do PT ao próprio governo, Plano Real enfrentou resistência para a
aprovação. Visto em: < http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/06/1473092-do-pt-ao-proprio-
governo-plano-real-enfrentou-resistencia-para-aprovacao.shtml >. Acesso em: 19/12/15. s.p.
à inflação atingia grande popularidade já em 1994, e junto a ele, a
popularidade do novo Ministro da Fazenda também subia
gradativamente. “Para se ter uma ideia, em junho de 1993, o último mês
antes do real, a inflação foi de 50%. Um ano depois estava em torno de
2%. Fernando Henrique ficou conhecido como o “pai” do real, o Plano e a 22

moeda”38.
Claras mudanças econômicas pairavam no ar após a eleição de
1994 com a eleição do ex-Ministro da Fazenda, FHC, que tinha em tese o
intuito de garantir a preservação do ganho de estabilização do Plano Real.
Oliveira e Turola (2003) 39 sintetizam essas mudanças ordenando-as por
mandatos do novo Presidente: 1°mandato: introdução de medida de
controle das finanças dos governos estaduais e municipais; aumento do
déficit primário; aumento da despesa com juros; déficits crescentes em
conta corrente. 2° mandato: Ajuste fiscal voltado para a geração de
superávits primários, baseado em aumento de receitas e redução de
despesas; metas de inflação; reversão dos déficits em conta corrente.
Para Teixeira e Pinto (2012), dentre as tendências econômicas do
governo FHC, cabe ressaltar as aberturas comercial e financeira, uma
política extensiva de privatizações além de reformas favorecendo o
mercado. Houve assim uma condução de uma política econômica voltada
para juros altos e contenção de gastos correntes – gasto público –, além
disso, um aumento no desemprego real. “Em 1995, a taxa de desemprego

38
RENAULT, David. A construção da imagem de FHC na mídia impressa (1993 – 1994). Comunicação e
Espaço Público, Ano XI, nº 1 e 2, 2008. p.110.
39
OLIVEIRA, G; TUROLLA, F. Política econômica no segundo governo FHC: mudança em condições
adversas. Revista Tempo Social, v. 15, n. 2, nov. 2003.
real era de 4,6% a.a. [...] em 1998 se elevara para 7,6% [...] a segunda fase
do governo, por sua vez começou com uma taxa de 7,6% a.a. e encerrou
com 7,1% a.a. [...] o governo FHC apresentou um aumento de mais de 50%
no desemprego”40. Frente ao programa econômico e o governo de modo
geral, Castro (2009), ressalta que dentre as principais organizações 23

oposicionista eram: o Partido Comunista do Brasil – PCdoB –, Partido


Democrático Trabalhista – PDT– e o Partido Socialista Brasileiro – PSB –.
Dentre os movimentos sociais organizados cabe destacar a Central Única
dos Trabalhadores – CUT –, União Nacional dos Estudantes – UNE – e o
Movimento dos Trabalhadores sem Terra – MST.
Em 1997, é dado o inicio aos protestos contra o governo FHC,
através de uma marcha até Brasília, liderada pelo MST. Após os primeiros
efeitos nos salários, aumento do desemprego Diante dos desacordos
entre movimentos sociais em relação à política econômica, e ao governo
de modo geral, a CUT em um congresso nacional em 1999, fez uma pauta
com os principais temas de luta contra o segundo mandato do Presidente:
“Reposição das perdas salariais das categorias, e reajuste mínimo de 10%;
Redução da jornada de trabalho sem redução de salários; Combate à
miséria; Revogação de todas as medidas do governo que precarizam as
relações de trabalho; Fora FHC” 41. Durante essa plenária, algo também
chama a atenção é em sua conclusão, onde é argumentado que é
necessário que os movimentos de trabalhadores organizados

40
CHRISTO, Dirce Cristina. Evolução do desemprego no Brasil de 1995 a 2010: análise dos governos
FHC e Lula. 2013. Monografia (Graduação em Economia), Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre. p.20.
41
TRABALHADORES, Central Única. Resolução da 9° Plenária da CUT “Santos Dias”. São Paulo: Central
Única dos Trabalhadores, 1999. p.87.
desmistifiquem a propaganda difundida nos canais midiáticos liderados
pelo governo, que dizem que a precariedade dos serviços prestados nos
órgãos públicos é de responsabilidade dos trabalhadores.
Segundo Carvalho (2006) 42, no segundo mandato de FHC foram
promovidas ações pelo Fórum Nacional de Lutas que reuniram diversas 24

entidades de cunho social, trabalhista e estudantil. Este fórum realizou as


maiores manifestações populares desde o impeachment contra Collor,
como as marchas pela reforma agrária e a marcha dos cem mil. Em meio
ao crescimento dos protestos, concomitantemente também cresceu a
política midiática de tentativa de descredibilização dos movimentos
sociais organizados opositores. “A mídia brasileira, em especial a imprensa
assumiu a tarefa de desqualificar os movimentos sociais questionando
suas ações e criminalizando seus atos” 43.
Entre 1995 e 1998, o governo se deparou com diversas dificuldades
de ordem estrutural. Foram de crises econômicas que geraram impactos
sociais através do aumento de juros e redução do superávit, até diversos
casos de corrupção. Alguns desses casos chamaram bastante a atenção da
opinião pública, como as chamadas “farra do PROER” e os “grampos do
BNDES”, mas que não ganharam tanto destaque na mídia nacional. “A
venda da empresa de telecomunicações e os acordos velados entre
governo e mídia redefiniram a imagem do governo e do próprio

42
CARVALHO, Rodrigo. A imprensa escrita na era FHC: Análise dos editoriais dos jornais Folha de São
Paulo e O Globo no período 1995-2002. 2006. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Mercado) –
São Paulo, Faculdade Cásper Líbero.
43
VIEIRA, Fernando Antônio C; ROEDEL, Hiran. Rompendo o monopólio da mídia: o MST e a construção
de uma mídia alternativa. Magistratura Fluminense pela Democracia, Rio de Janeiro, Ano 1, outubro /
dezembro de 2003. p.8.
presidente [...] resultaram no apoio ao governo e às suas políticas
econômicas estampado nos principais jornais e revistas” 44. Além de apoio,
a mídia por diversas vezes se mostrou omissa à prática da vinculação de
notícias contrárias ao governo FHC. “Todas as denúncias de corrupção, do
caso SIVAM à “pasta rosa”, da compra de votos para reeleição ao caso do 25

grampo no BNDES e ao dossiê das Ilhas Cayman, assim como surgiram,


desapareceram, graças à ação do governo e a colaboração da mídia”
(Lesbaupin, 1999, p.10-11).
Para Tavares (2012), no segundo mandato de FHC (1999-2002) a
mídia se manteve fiel ao projeto de econômico e ideológico do governo.
Esse apoio foi determinado principalmente pelas privatizações das
telecomunicações nas concessões de novas frequências de transmissão de
rádio e TV e de áreas de exploração de TV a cabo, mantendo o monopólio
midiático próximo ao governo. Além disso, para Carvalho (2006),
houveram diversos acordos entre complexos midiáticos, como os Jornais
Folha de São Paulo e O Globo, e o Palácio do Planalto para não divulgarem
alguns números ruins, dentre eles, destaca-se a alta nos preços do
petróleo que no inicio de 1999 sofreu uma variação entre 30% e 100%.

4. Conclusão
A intensidade com a qual se deram os primeiros embates, sejam
entre classes econômicas ou classes políticas, fizeram com que, em certa

44
TAVARES, Michelle S. FHC e os Escândalos Políticos: Os ‘modos de dizer’ de Veja e Istoé sobre as
crises personalizadas. 2012. Dissertação (Dissertação em Comunicação e Cultura Contemporânea).
Salvador: UFBA. p.14.
medida, houvesse uma luta de classes mais consciente no Brasil. Essa
consciência se deu, por vezes, através das campanhas de seus
representantes durante as eleições e acabaram sendo correspondidas, em
parte, nas ruas, através de manifestações sociais, com plenas liberdades, e
em outra pela adesão da mídia ao projeto econômico e social, tendo 26

ambos os lados as garantias democráticas, conforme demonstrado no


modelo poliarquico de Dahl.
Baseados nas discussões, tanto teóricas quanto factuais, aqui
apresentadas, concluímos que o processo de construção de apoios da
mídia aos governos Collor e FHC, de fato buscaram, através da força dessa
aliança, construir uma base consensual na sociedade no Brasil para
implementar suas políticas econômicas de austeridade. Porém, os
fracassos dessas medidas engrossaram a voz dos nascentes movimentos
organizados que se colocaram na contramão de tais políticas. A grande
questão da liberdade de oposição, em nossa visão, pareceu se manter
intacta como prevista na Constituição Federal de 1988, não sendo a mídia
um impeditivo dessa oposição, porém sendo a defesa enfática do lado
oposto, reforçando a noção da liberdade de expressão tanto de um lado
quanto de outro.
ESTA AGORA É A CASA DO TAL ROCK N'ROLL: ROCK E
ENSINO DE HISTÓRIA EM QUATRO ACORDES

Gustavo Silva de Moura1

Resumo:
Nesse breve ensaio em quatro acordes, temos como objetivo visualizar possibilidades
do uso do Rock nas aulas de História, mostrando essa nova perspectiva temática no
ensino. Usaremos comunicações de quatro eventos acadêmicos internacionais
ocorridos no Paraná, com o intuito de dar exemplos dos locais em que a temática Rock
e Ensino de História estão sendo debatidas.

Palavras-chave
Rock – Ensino de História – Abordagens educacionais

Abstract
In this short essay in four chords, our objective is see possibilities for the use of the
Rock in lessons of History, showing this new thematic perspective in teaching. We will
use communications four international academic events in Paraná, aiming at give
examples of places where Rock and History Teaching theme are being debated.

Keywords
Rock - History teaching - Educational Approaches

1Mestrando em História pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. E-mail:


mouragustavo80@gmail.com
PRIMEIRO ACORDE: INTRODUÇÃO
A história vem se moldando durante as últimas décadas no Brasil,
na área da pesquisa, assim como, na área do ensino em todos os níveis,
estreitando as relações e mostrando a inevitável junção entre essas duas
categorias, tendo a figura do professor-pesquisador em acensão nas 2

discussões atuais. Portanto temos como exemplo dessa junção programas


de pós graduação que tem como publico professores das redes publicas de
ensino, no caso da História temos o ProfHistória.
Esses programas de incentivo a formação continuado faz com que
os professores troquem experiencias e reflitam sobre suas metodologias,
construindo e trocando conhecimento sobre à área Ensino de História,
sendo uma forma de levar novamente os professores há uma discussão de
suas práticas e metodologias na sala de aula e no âmbito escolar. Paulo
Freire nos chama atenção para o seguinte ponto: “a reflexão critica sobre a
prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática” (FREIRE, 2006. p.
22), nisso vemos a importância da reflexão sobre as práticas de ensino na
disciplina História.
Essas transformações fizeram com que fossem colocadas nas mãos
dos historiadores novas ferramentas, para o manejo de novas fontes, onde
a escola é um espaço de disputas, seja ela política, intelectual ou das
fontes históricas. (SILVA;FONSECA, 2010, p. 31). Nisso temos uma
aproximação maior com a realidade dos indivíduos que agora conseguem
enxergar a história com nitidez no seu cotidiano. Temas como música,
literatura, artes plásticas, dentre outros, se ampliaram em suas analises
nas ciências humanas.
Pegamos como exemplo para fundamentar nossa reflexão neste
trabalho as comunicações e conferencias apresentadas no I Simpósio
Eletrônico de Ensino de História, estando elas publicas em forma de livros
eletrônicos de livre acesso no site do evento, intitulados: Tecendo
Amanhãs e Sobre Amanhãs. Usaremos também os dois livros publicados 3

na segunda edição do mesmo evento, intitulados: Para um novo amanhã e


Por um outro amanhã.
Outro local que será empregado nossas analises é sobre os anais
do I e II Congresso internacional de Estudos Sobre Rock, mais
especificamente no GT Rock e Educação, focando nos trabalhos que tem
como foco a contribuição ao ensino de História.

SEGUNDO ACORDE: LIMITES E POSSIBILIDADES


A música teve analises de vários estudiosos das ciências humanas
conhecidos que se debruçaram mostrando a sua importância para
compreensão da sociedade em seu entorno, sendo alguns dos nomes
Nietzsche, Adorno, Bourdieu dentre outros, mas sempre se voltando para
a música clássica uma temática que recebia uma atenção que podemos
chamar de prioritária dos pesquisadores do campo, levando em
consideração a época em que viviam queremos deixar claro que
entendemos essas percepções sobre música clássica como importantes
quando analisamos Música, sociedade e cultura.
Segundo Marcos Napolitano, temos a grosso modo três campos de
analise da música Grosso modo, a abordagem acadêmica da música
divide-se em três grandes áreas: a Musicologia histórica, a
Etnomusicologia e um terceiro campo, que ele considera ainda confuso,
intitulado de "Estudos em música popular" , congregando Sociologia,
Antropologia e História, onde o mesmo considera que nós historiadores
chegamos atrasados em relação as outras áreas (NAPOLITANO, 2008. p.
254). 4

Isso tudo reflete diretamente no ensino, pois, essas novas


pesquisas começam a ser trabalhadas em âmbitos acadêmicos, formando
profissionais que estão envoltos nessas novas questões e que futuramente
estarão trilhando o caminho do ensino na maioria dos casos. Portanto
essas temáticas que foram trabalhadas anteriormente nas graduações em
história e instigaram o aluno, será levada aos níveis de ensino, sendo eles
fundamental e médio, mostrando a importância da inter-relação que
todos os níveis de ensino devem ter.
Atualmente estamos vivendo um período no Brasil onde o ensino
vive vários questionamentos em todas as suas estruturas, um desses
exemplos são as discussões sobre as bases curriculares nacionais, não
iremos nos aprofundar nesse assunto, mas isso nos traz a reflexão sobre a
importância do ensino de História, importante essa que queremos
enfatizar como primordial na formação de um cidadão reflexivo e critico
diante da sociedade capitalista em que vivemos, essa importância é
evidenciada quando nos períodos em que o Brasil viveu infelizmente
governos ditatoriais, a História figurou como um dos primeiros alvos das
adequações de ensino, sendo suprimida e eliminada.
Diante das conquistas populares a disciplina história conseguiu se
de certo modo se (re)estabelecer como uma das bases do ensino
brasileiro, assim como vários outros direitos, que continuam a serem
(re)conquistados diariamente. Isso nos traz ao objetivo desse texto, onde
queremos mostrar como as transformações da sociedade brasileira se
refletem no ensino de História no ensino fundamental e médio, estando
como protagonista o Rock, mostrando como o seu uso nas aulas pode ser 5

de grande importância quando abordado temáticas sejam elas nos


âmbitos globais, nacionais e locais, trazendo uma pluralidade.
Desde seu aparecimento o Rock vem participando de forma
relevante de vários fatos históricos, sendo colocado algumas vezes como
trilha sonora de uma geração, isso se dá pelas suas raízes, onde sua
preocupação central é dar voz a uma percepção social, geralmente de
alguém reprimido e perseguido socialmente, sendo a arma de resistência
de um grupo, isso fica evidente quando empregamos analises como a do
historiador estadunidense Paul Friedlander, chamada “Janela do Rock”,
onde a sociedade e sua recepção de publico são uma das bases desta
metodologia (2012, p. 425).
O uso do Rock pode ser uma grande arma para o educador, por ser
uma temática atual e que desperta uma grande atenção dos jovens, pode
ser usado para o principal objetivo do ensino de história que é mostrar as
relações da sociedade no tempo, nisso é indispensável as artes, sendo elas
presentes e atuantes. Essa temática: Rock e Ensino, vem sendo trabalhada
nos últimos anos, mostrando como metodologicamente podemos fazer
seus uso, temos exemplos na grande rede de professores que usaram do
Rock e foram bem sucedidos.
Temos como exemplo a reportagem publicada na revista de
História da Biblioteca Nacional, onde um professor de História de Santa
Catarina, fez shows em escolas e gravou um CD, usando o Rock para
ensinar vários temas de História. Temos também o icônico exemplo do
Professor Dewey Finn interpretado pelo Músico e Ator Jack Black no filme 6

Escola do Rock, onde se passando por Ned um professor passa a dar aulas
numa escola tradicional, mostrando a partir do filme uma música
considerada transgressora pela direção da escola, sendo que as aulas
realizadas fora dos olhos da direção da escola, sempre quando o diretor se
apresentava o professor maquiava sua abordagem, mas mesmo sem
formação especifica e somente com a paixão pelo rock os alunos
conseguiam assimilar os conteúdos programáticos.

TERCEIRO ACORDE: ROCK E ENSINO DE HISTÓRIA


Uma das formas de divulgação dos conhecimentos produzidos são
os eventos, sem eles simpósios, congressos, dentre outros, sendo uma
forma de juntar pesquisadores de varias localidades em prol de uma
temática comum, propondo assim novas concepções e visões sobre o
campo de pesquisa. Por essa razão iremos usar como exemplo nesse
trabalho dois eventos científicos, os dois coincidem sua realização no
estado do Paraná. São eles:
I Congresso Internacional de Estudos do Rock e II Congresso
Internacional de Estudos do Rock , as duas edições ocorrem na cidade de
Cascavel, a primeira entre os dias 25 e 27 de setembro de 2013 e a
segunda entre os dias 04 a 06 de Junho de 2015, realizado pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, Colegiado de
Pedagogia, Programa de Pós-graduação em Educação/Campus de Cascavel
e co-promoção da Facultad de Periodismo y Comunicación Social de La
Univesidad Nacional de La Plata – Argentina, usaremos os cadernos de
resumos publicados ao fim de cada evento. 7

Nesse tópico também usaremo os dois livros lançados no 1º


Simpósio Eletrônico Internacional de Ensino de História e os dois livros
lançados na segunda edição do mesmo evento, esse evento teve como
uma das suas particularidade a interação com os participantes por vias
online, isso fez com que houvesse no site do evento mais de 20.000 visitas,
quase 1000 perguntas e mais de 500 participantes, segundo estatísticas
da própria organização. Na segunda edição as dimensões foram maiores
levando em consideração o sucesso de sua primeira edição no ano de
2015.
O primeiro evento ocorreu entre os dias 11 a 15 de Maio de 2015
e o segundo entre os dias 7 e 11 de Março de 2016, sendo realizados pelo
LAPHIS - Laboratório de Aprendizagem Histórica da Universidade Estadual
do Paraná – UNESPAR, Campus União da Vitória.
Nas duas edições do Congresso Internacional de Estudos do Rock
houve o simpósio temático intitulado “Rock e Educação”, sua proposta era
de que houvessem pesquisas e experiências pedagógicas que discutam os
fenômenos educativos relacionados, direta e indiretamente, ao rock e ao
consumo e fruição deste; à utilização do rock como fonte e opção
metodológica no processo de ensino-aprendizagem; à análise de letras
que se detenham sobre a Educação; entre outros temas similares (2013;
2015).
Na primeira edição o Simpósio teve 21 trabalhos apresentados,
sendo que dentre as varias áreas que envolvem o processo educativo e
que tiveram destaque, o Ensino de História figurou diretamente em 5 8

trabalhos. Na Segunda edição foram 15 trabalhos, dentre eles 4 tiveram a


História no seu foco. Isso mostra que a preocupação com a interligação de
varias praticas culturais para o ensino da disciplina faz com que o Rock seja
importante ferramenta metodológica na educação na atualidade.
No 1º Simpósio Eletrônico Internacional de Ensino de História não
houve grupos temáticos específicos, mas uma temática central, condizente
com a temática do evento. Dentre as conferencias as artes foram
amplamente discutidas no processo de ensino/aprendizagem do professor
de História, tendo no cinema uma atenção maior. Entre as comunicações
temos um trabalho em que o Rock é usado para debater questões sobre
gênero, onde há escolha pela produção da roqueira brasileira Pitty para
empregar suas analises (ZALUSKI, 2015, P. 131-137). Na segunda edição
vemos que a música começa a conquistar um espaço maior, tendo quatro
trabalho voltados diretamente para esta temática, onde temos dois que
privilegiam o Rock, um sobre as possibilidade do Rock e do Ensino de
História e outro com o uso do Rock brasileiro das décadas de 1970 e 1980.
Mesmo que timidamente na primeira edição, na segunda já vemos
uma crescente, tendo temas relacionados com Rock figurando entre a
produção relacionada ao Ensino de História nesses eventos, esses
números pode ser atribuído a formato online, sendo um formato que só
vem a contribuir para interligar pesquisadores de todo o mundo.

QUARTO ACORDE: BREVE (IN)CONCLUSÃO


Vemos que há uma ampliação dos limites e possibilidade quando 9

levamos em consideração o uso do Rock no ensino de História, assim


como em qualquer disciplina, seja ela na área de humanas, exatas ou
ciências naturais, nesses dois eventos percebemos essa multiplicidade.
Nosso objetivo foi mostrar a partir deste trabalho como as relações do
Rock e Educação vem sendo abordada e suas vantagens diante da escola
atual, trazendo ao professor armas metodológicas, com uso de um tipo de
mídia de grande difusão, sendo ela uma mídia de massa.
Esperamos com isso mostrar para o professor que a empatia e
busca da aproximação de conteúdos que figura na realidade do aluno são
as melhores vias numa reformulação da educação no país, dando armas
para compreensão da realidade por parte desses alunos, diante da
sociedade capitalista atual. O Rock é uma arma social ainda hoje usada
diante de todas essas mazelas, trazendo em suas letras e melodias à
contextualização social em que está inserida, tentando assim trazer
reflexões para seus públicos, isso faz com que seu uso na aula seja
totalmente viável e recomendável.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton. [organizadores]
Tecendo Amanhãs: o Ensino de História na Atualidade. Rio de
Janeiro/União da Vitória: Edição Especial Sobre Ontens, 2015.

_____. Pensando Amanhãs: Falando sobre o Ensino de História. Rio de


Janeiro/União da Vitória: Edição Especial Sobre Ontens, 2015.
10
_____. Para um novo amanhã: visões sobre aprendizagem histórica. Rio
de Janeiro/União da Vitória: Edição LAPHIS/Sobre Ontens, 2016

_____. Por um outro amanhã: apontamentos sobre aprendizagem


histórica. Rio de Janeiro/União da Vitória: Edição LAPHIS/Sobre Ontens,
2016.

CUNHA, Gabriela Nogueira. Rock 'n' Aula. In: Revista de História da


Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, Ano 8, n. 96. Setembro de 2013. p. 10.
FIUZA, Alexandre; ATAIDE; Antonio Marcio; LACOWICZ, Stanis David
(COORDENAÇÃO). Caderno de resumos do II Congresso Internacional de
Estudos do Rock. UNIOESTE: Cascavel- PR: 2015.

FIUZA, Alexandre; ATAIDE; Antonio Marcio; LACOWICZ; VAILLÕES, Silvana


(COORDENAÇÃO). I Congresso Internacional de Estudos do Rock: caderno
de resumos, Cascavel, 25 a 27 de setembro de 2013. UNIOESTE: Cascavel-
PR: 2013.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 33. Ed. São Paulo:Paz e Terra,


2006.

FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: Uma história social. 7. Ed. Rio de
Janeiro: Record, 2012.

NAPOLITANO, Marcos. Fontes audiovisuais: A História depois do papel. In:


PINSKY, Carla Bassanezi (Org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto,
2005.
SILVA, Marcos Antônio da; FONSECA, Selva Guimarães. Ensino de História
hoje: errâncias, conquistas e perdas. In: Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 31, n. 60, p. 13-33 – 2010.

FILME:
Escola do Rock. Direção: Richard Linklater. Paramount Pictures, 2003. 1
DVD (109 min). Título original: School of Rock. 11
PÉS AMARRADOS - VIDAS EM LAÇOS
UMA REFLEXÃO SOBRE O RITUAL DOS PÉS DE LÓTUS E A
FORÇA DA AMIZADE ENTRE AS MULHERES DO SÉCULO
XIX, NA CHINA E A EDUCAÇÃO DAS MENINAS NO BRASIL
1
Helayne Cândido

Resumo
Nesse artigo, analisaremos o romance histórico "Flor de neve e o leque secreto", e
suas possíveis contribuições para o ensino de História. O Romance se passa na China
do século 19. Ele aborda os relacionamentos de amizade femininos, e suas formas
particulares de comunicação, como a escrita secreta Nushu. Trata, igualmente, das
questões de gênero na sociedade chinesa. A partir dessa análise, buscaremos mostrar
como romance pode ser usado como instrumento didático e pedagógico no ensino de
História brasileiro. Estabelecendo comparações, mostraremos como discutir questões
de gênero e igualdade em sala de aula.
Palavras Chave: China; Gênero, Ensino de História

Abstract
In this article, we analyze the historical novel "Snow Flower and the Secret Fan", and
their contributions to teaching History. The Romance is set in 19th century China. It
covers the female friendship relationships, and their particular forms of
communication, such as the secret writing Nushu. Our text also covers the gender
issues in Chinese society. From this analysis, We seek to show how the romance can be
used as a didactic and pedagogical tool in teaching of Brazilian history. Establishing
comparisons, We show how to discuss issues of gender and equality in the classroom.
Keywords: China; Gender; Teaching HIstory
O propósito deste texto é elaborar uma comparação e a reflexão sobre os
padrões de beleza impostos para as mulheres, a partir do caso chinês, e
relacionando-o com fins educativos ao caso brasileiro, tendo como base o
livro “Flor de Neve e o Leque Secreto” [2005], escrito pela autora
americana Lisa See. 2

O livro aborda as difíceis condições femininas da China do século


XIX, nos quais as mulheres eram submetidas a terríveis práticas sociais e
estéticas. A estrutura do texto funciona como um diário, em que Lisa See
usa a personagem Lily como narradora, e descreve a maneira como ela é
colocada no mundo das mulheres adultas, com o objetivo de obter um
bom casamento. De maneira mais objetiva, trata-se do ritual dos “Pés de
Lótus”

[...] Setenta e cinco anos se passaram, e eu ainda me lembro


da sensação da lama entre meus dedos, da água correndo
sobre os meus pés, do frio contra a minha pele. Lua Linda e eu
éramos livres de uma forma que jamais seríamos de novo. (p.
27)

E qual relação este acontecimento de uma cultura tão distante possui com
nosso país? Vejamos: vivemos em um país de mulheres exuberantes, com
corpos milimetricamente desenhados por cirurgiões plásticos, verdadeiras
esculturas, o que não me parece uma ideia diferente do processo dos Pés
de Lótus, dependendo do seu objetivo. Aqui saliento que a mulher é livre
para fazer o que bem entende com o seu corpo, desde que ela tenha
consciência disto, do seu lugar na história e porque de seu desejo. O que
se pretende observar são as cobranças pelas quais as mulheres passam
para se sentirem aceitas ou incluídas na sociedade.

Tudo o que eu sabia era que a bandagem dos pés me tornaria


um partido melhor e, portanto, me aproximaria daquilo que é
3
a maior alegria e a maior paixão da vida de uma mulher – um
filho homem. Para tanto, o meu objetivo era conseguir um
par de pés perfeitamente contidos com sete atributos
distintos: eles deveriam ser pequenos, estreitos, retos,
pontudos e arqueados, além de cheirosos e macios. De todos
esses atributos, o tamanho é o mais importante. Sete
centímetros – mais ou menos o tamanho de um polegar – é o
ideal. [...] Se eu conseguir isso, minha recompensa será a
felicidade. (p. 41)

Descrição, no mínimo chocante, aos nossos olhos ocidentais. Mas o que


podemos julgar como sendo aterrorizante, quando em nosso próprio país
também há meninas com esse objetivo, tendo como plano de vida, a
busca pelo corpo perfeito para um bom casamento, em pleno século XXI.
A intelectual Naomi Wolf denunciou esse fenômeno em seu livro O Mito
da Beleza (1992), explicitando que um dos desafios da história da mulher
seria superar a ideia de que a beleza é uma ponte para o sucesso social.
A história se passa na China, durante o século XIX. Meninas de
algumas aldeias são submetidas ao ritual dos Pés de Lótus, para
conseguirem um bom futuro. Não que isto seja garantido, visto que o não
nascimento de um filho homem poderia lhe acarretar vergonha, e
sabendo que trabalhariam exaustivamente para sua sogra, com a qual,
provavelmente, não teria uma boa relação. Seria isso, ou viver a margem
da sociedade chinesa. Difícil comparar o que seria menos pior naquela
época.
Descrevendo toda uma cultura daquele período, Lisa See conta
sobre os sentimentos de amor e amizade desenvolvidos no emaranhado
da vida dessas meninas, que se unem para suportar a dor física, por um 4

futuro melhor. Essa dor, sentida por essas meninas de cinco ou seis anos,
até mesmo três, não era importante. Suas vontades, seus pensamentos,
seus sentimentos, não eram levados em consideração. Expressar tudo isso
era proibido.

A ideia estava além da minha compreensão. Meus pés


latejavam. Poucos minutos antes eu estava tão segura da
minha coragem. Agora fiz o possível para conter as lágrimas,
mas não consegui.
Titia bateu no ombro de Lua Linda.
- Levante-se e ande.
Terceira irmã ainda estava no chão, soluçando.
Mamãe arrancou-me da cadeira. A palavra dor não descreve o
que eu estava sentindo. Meus dedos estavam presos sob
meus pés, de modo que todo o peso do meu corpo caía sobre
eles. Tentei me equilibrar sobre os calcanhares. Quando
mamãe viu, me bateu. (p. 44)

Porém, houve uma forma de tornarem todo esse sofrimento, um tanto


quanto, acalentado. Algumas mulheres desenvolveram uma linguagem
própria, chamada nushu. A escrita nushu realmente existiu, como
podemos atestar nessa introdução histórica do livro feita pela própria
autora.1 Uma reconhecidamente linguagem feminina. Elas usavam tais
caracteres em lenços e leques, escrevendo seus desabafos em forma de
pequenas frases ou canções e poemas. Muitas dessas meninas tinham
suas histórias unidas para formarem uma aliança de afinidades e
companheirismo para o resto da vida, como uma melhor amiga, chamada 5

laotong. Flor de Neve era a laotong de nossa Lisa See, a pequeno Lírio.

[...] Minha tia começou a me ensinar o nu shu. Na época, não


entendi bem por que ela se interessou particularmente por
mim. [...] Mas minha tia estava na verdade torcendo para
trazer a escrita para as nossas vidas, para que Lua Linda e eu
pudéssemos compartilhá-la para sempre. (p.39)

Mas qual a relação disso tudo com o Brasil e/ou com a educação? Ora,
vivemos em tempos em que as mulheres lutam por seus direitos e muito
foi avançado nesse sentido, graças à luta de nossas antepassadas. Em
contrapartida, muitas mulheres também não entenderam o que é de fato
o feminismo, e vivem como que presas a uma ideia de submissão aos
maridos, de falta de amor próprio, de não aceitação de seu corpo. Esses
fatores se apresentam nas escolas, e como muitas vezes a maneira de
pensar ou o despertar para uma outra visão acontece nela, nós como
professores e professoras temos que debater tais assuntos com nossos
alunos e alunas. Instigar a dúvida, essa é nossa missão. Como criticar
meninas que se submetiam a tal tortura, no século XIX, se em pleno século

1
http://www.lisasee.com/onwriting.htm
XXI, no ocidente, deste lado do mundo, mulheres repetem ou são
cobradas no mesmo sentido? E por quê?

Cabe a educação de nossas meninas, questionar um futuro pré-


estabelecido a elas e torná-las conscientes de suas possibilidades. Mas, de 6

maneira alguma, deve-se julgar as meninas que se submetiam ao ritual


dos “Pés de Lótus”. Devemos sim, admirá-las em sua força, coragem e
ousadia em criarem o nu shu. E esses três elementos devem ser plantados
em nossas meninas.
Durante a leitura do livro, percebe-se que estas meninas não sofrem
apenas a dor física da bandagem em seus pés. Elas também sofrem,
indiretamente, uma pressão psicológica. Como ainda muitas meninas, e
tendo na figura da mãe como um ser que as ama, o que as mães lhe faz
passar é cruel, mas também é um ato de amor. E se elas se recusam ao
ritual, não estariam agradando sua mãe. É uma relação um tanto
complexa, para meninas tão pequeninas conseguirem compreender, com
clareza, o que está acontecendo com elas. E tudo isso dentro de suas
casas! O que ao fazermos uma relação com a sociedade brasileira,
sabemos que muitas mulheres também sofrem os mais variados tipos de
violência, dentro de seus próprios lares.

[...] dentre todos os tipos de violência contra as mulheres


existentes no mundo, aquela praticada no ambiente familiar é
uma das mais cruéis e perversas. O lar, identificado como
local acolhedor e de conforto passa a ser, nestes casos, um
ambiente de perigo contínuo que resulta num estado de
medo e ansiedade permanentes. Envolta no emaranhado de
emoções e relações afetivas, a violência doméstica contra a
mulher se mantém, até hoje, como uma sombra em nossa
Sociedade (Revista Unifebe, p.3, 2004).

Uma atividade para a aula


7
Como proposta de atividade, sugiro que ao abordamos os aspectos da
cultura chinesa, para além do livro didático, seria interessante realizar a
leitura de um trecho do livro de Lisa See, sobre a bandagem dos pés das
meninas. Em seguida, realizar uma troca de ideias sobre tal acontecimento
e instaurar a dúvida se este processo ainda ocorre na China. Logo, a
pesquisa seria solicitada e talvez até uma exposição com cartazes seria
interessante. Junto a isso, seria preciso salientar que antes de qualquer
comentário sobre tal prática, precisamos observar o que em nosso próprio
país acontece com meninas, precocemente também. Até que ponto essas
meninas possuem poder de escolha, consciência sobre tais atos, e de que
forma podemos modificar tais situações?

Por ser mais velha, fui a primeira, e estava determinada a


mostrar o quanto era corajosa. Mamãe lavou os meus pés e
esfregou-os com alume, para contrair o tecido e limitar as
inevitáveis secreções de sangue e pus. Cortou minhas unhas o
mais rente possível. Durante esse tempo, minhas ataduras
ficaram de molho, para que quando secassem na minha pele
ficassem ainda mais apertadas. Em seguida, mamãe pegou
uma das pontas de uma atadura, colocou-a na parte de
dentro do meu pé, depois puxou-a por cima dos meus quatro
dedos menores para iniciar o processo de empurrá-los para
baixo. Dali, passou a atadura pelo meu calcanhar. Mais uma
volta ao redor do tornozelo para prender e estabilizar as duas
primeiras voltas. A ideia era fazer com que meus dedos se
encontrassem com o meu calcanhar, criando uma fenda, mas
deixando de fora o dedão para eu caminhar sobre ele.
Mamãe repetiu esses passos até ter usado a atadura inteira;
titia e vovó ficaram olhando por cima do ombro dela o tempo
todo, certificando-se que não havia nenhum vinco no pano.
Finalmente, mamãe costurou a ponta bem apertada para que 8
as costuras não afrouxassem e eu não pudesse soltar o pé.
(p.42)

Num país onde a taxa de meninas grávidas é precoce, onde ainda separam
brinquedos para serem de meninos ou meninas ou a cor da roupa é
escolhida de acordo com o sexo, ou onde se escuta meninas de quatro
anos dizerem que querem colocar silicone quando crescerem, ler este
livro traz uma certa proximidade, quando lemos por exemplo que [...] nem
todos os meninos se tornam imperadores, mas todas as meninas se
casam.” (p. 97) Percebemos aqui, um futuro já determinado pelo seu sexo
e em nossa cultura, se você não tiver um corpo esbelto e rebolar
direitinho, não será aceita no grupo, não terá nem casamento, nem status
ou nem aparecerá na tv. Por causa disso, estatísticas recentes mostram
que ao menos uma mulher morre, por mês, de operações plásticas mal
sucedidas2; do mesmo modo, o número de meninas grávidas só teu
aumentado, implicando no abandono da escola a na formação de famílias
desestruturadas3. Sim, as mulheres hoje alcançaram muitas conquistas,

2
http://noticias.r7.com/saude/ao-menos-uma-pessoa-morre-por-mes-em-cirurgias-plasticas-
no-brasil-25022013
3
http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/03/no-brasil-75-das-adolescentes-que-tem-
filhos-estao-fora-da-escola.html
mas a preocupação precisa estar voltada a que consciência elas tem disso.
O porquê desejam fazer, o para quê e qual o objetivo?

Se houve, nos anos 60, um convite à libertação do


corpo, essa libertação mostra-se, muitas vezes,
9
limitada pelo controle político da corporeidade. Le
Breton (2007) questiona e critica esse convite, pois, na
verdade “o homem só será “libertado” quando
qualquer preocupação com o corpo tiver
desaparecido” (p.87). Frente à propagação de infinitos
discursos especializados, esse ideal parece cada vez
mais distante (BOLTANSKI, 2004). Segundo
Goldenberg (2007), se, por um lado, o corpo da
brasileira emancipou-se de antigas servidões (sexuais,
procriadoras ou indumentárias), de outro está mais do
que nunca submetido às regulações estéticas.
(Aquino, p.31)

O que penso ser necessário é tornar nossas meninas donas de si!


Conscientes de seus direitos e da liberdade que possuem como pessoas,
podendo ser o que elas quiserem, independente do tamanho do sutiã. É
na escola que esse debate e o exercício para a reflexão devem acontecer.
Conhecer o texto de Lisa See, nos proporciona uma ferramenta para
contribuir na educação de nossas meninas, para que elas percebam onde
estão inseridas e para que possam questionar o que o senso comum dita
como regra.
Referências:
AQUINO, Thalita Ágata Moura de. Do “se esconder” ao “se mostrar”:
cirurgia plástica e normalização entre mulheres jovens de classe popular.
Disponível em:
https://www.ufpe.br/pospsicologia/images/Dissertacoes/2009/aquino%2 10

0thalita%20gata%20moura%20de.pdf.pdf
Acesso em fevereiro de 2016
Revista da Unifebe. Violência doméstica contra a mulher: breve análise
sobre a igualdade entre homens e mulheres no decorrer de situações
históricas Diego Vinícius Mattos da Rocha Mariane Gonçalves Michele
Darossi Disponível em:
https://www.unifebe.edu.br/revistadaunifebe/2009/artigo030.pdf Acesso
em: fevereiro de 2016.
SEE, Lisa. Flor de Neve e o Leque Secreto / Lisa See; tradução de Léa
Viveiros de Castro. – Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
WOLF, Naomi. O Mito da Beleza. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
OS FENÍCIOS: UMA EXPERIÊNCIA DE ENSINO DE
HISTÓRIA ANTIGA A PARTIR DA PERSPECTIVA HISTÓRICO
CULTURAL
Isaias Holowate1
1
Resumo:
Partindo do pressuposto da necessidade de compreensão do surgimento e das
especificidades do desenvolvimento da escrita no decorrer da História como uma das
possibilidades para a compreensão do desenvolvimento das culturas do Oriente
Próximo, o presente trabalho trata-se de uma reflexão sobre o Plano Didático aplicado
durante as atividades da Disciplina de Estágio I aos alunos de quatro turmas do 6º ano
do Ensino Fundamental do Colégio Estadual Edison Pietrobelli, em Ponta Grossa, no
mês de agosto de 2014. O Projeto utilizou-se dos princípios da teoria cognitiva
histórico cultural, de Vygotsky, e teve por objetivos ensinar sobre o surgimento da
civilização Fenícia com enfoque em aspectos culturais buscando clarificar a influência
das características de seu sistemas de escrita para o desenvolvimento dessa sociedade.
A realização do projeto além de permitir a compreensão da escrita como uma prática
histórica, cuja historicidade influencia na forma com que ela é compreendida pela
sociedade, buscou também, atraindo a atenção do aluno para a aprendizagem de
História Antiga, possibilitar uma melhor compreensão das características da sociedade
Fenícia, da forma com que se relacionavam com o mundo, a sua religião, a sua
estrutura política, comercial e cultural.
Palavras-chave: Ensino; Escrita; História Antiga.

Abstract:
Following the necessity of comprehension about the start and specificities on the
development of the written word as one of the possibilities for the understanding of
the cultural development on the Near East, the following paper presents thoughts
about the Didactic Plan that was applied during the activities of the Subject of
Internship I to the students of classes of the 6th year of the Middle School of the State
High School Edison Pietrobelli, in Ponta Grossa, in August of 2014. The Plan used the
principles of the historical cultural cognitive theory, of Vygotsky, with the objective of
teaching about the appearance of the Phoenician civilization focusing on cultural
aspects trying to clarify the influence of the characteristics of its writing systems in the
development of this society. The accomplishment of the Project objectified to give a
better understanding of the characteristics of the Phoenician society and its
relationships with the world, its religion, political, commercial and cultural structure.
Keywords: Ancient History; Teaching; Written Word.
1
Graduando em História pela UEPG; Email: isaiasholowate@gmail.com
Introdução

No ano de 1851, o surgimento da escrita foi pela primeira vez


utilizado pelos historiadores como o parâmetro de separação entre os
tempos Pré-histórico e Histórico. Nessa época de ascensão do
2
Historicismo Alemão (BARROS, 2012, p. 392) em que a História como
conaquistava espaço como disciplica científica, historiadores como
Leopold Von Ranke defenderam a importância do documento escrito
como a fonte histórica que relataria a verdade (MARTINS, 2010). Nos
tempos posteriores, após a ascensão da Escola dos Annales, diversos
historiadores contestaram essa pretensão de verdade da História,
demonstrando a presença de diversos discursos e subjetividades
presentes nos estudos das fontes escritas.
Nos livros didáticos de História Antiga, a historicidade da escrita
costuma aparecer apenas em breves citações, de forma pouco
aprofundada. A Hitória da escrita é citada apenas como o ponto de divisão
entre Pré-história e História e alguns breves apontamentos sobre a escrita
hieroglífica egípcia, as escritas cuneiformes Mesopotâmicas, o alfabeto
Fenício, o alfabeto Grego e as escritas ideográficas e logográficas Chinesas
e Japonesa.
Contudo o desenvolvimento da escrita, foi um importante fator
aglutinador no desenvolvimento das sociedades. Desde o período
paleolítico, quando os grupos de caçadores-coletores faziam suas pinturas
nas paredes das cavernas, representando suas caças, esses signos
pictográficos tinham um significado intrínseco para o grupo. Seu
surgimento foi um dos marcos no desenvolvimento das civilizações
alterando de forma drástica a estrutura dessas sociedades e
complexificando suas estruturas políticas, sociais, econômicas e culturais.
A compreensão das especificidades dos processos de seu surgimento da
escrita e suas características nessas sociedades nos permite uma 3

compreensão mais aprofundada da forma com que essas culturas se


estruturavam.
O projeto de ensino sobre a cultura fenícia teve como objetivos a
compreensão dos laços de identidade e diferenças entre práticas culturais
letradas do passado e do presente, buscando possibilitar um
entendimento da História como um processo dinâmico, em que as
práticas quotidianas da sociedade contemporânea descendem de
inovações ocorridas no decorrer do tempo. Também buscou-se
dimensionar a importância da escrita no desenvolvimento das civilizações
buscando possibilitar uma melhor compreensão da influência escrita na
estrutura social da atualidade.

A escrita na História

A Fenícia foi uma sociedade que entre aproximadamente os anos


3000 A.C. e 300 A.C. ocupou o território do atual do Líbano, organizada
em diversas cidades-estados, onde a escrita esteve ligada ao
desenvolvimento do comércio, possibilitando o contato com povos
distantes, e permitindo o florescimento de uma cultura bastante
diferenciada dos outros Estados existentes no período. Mantiveram uma
estrutura política descentralizada e sem um poder absoluto. Sua cultura
influenciaria de forma drástica a cultura grega, chegando até nós,
notadamente através da invenção do alfabeto fenício. Esse sistema de
escrita possibilitou a comunicação entre povos distantes e teve grande
importância no desenvolvimento de toda a cultura ocidental (HARDEN, 4

1971).
A civilização fenícia se baseou principalmente no comércio
marítimo. Seus barcos comercializavam com a Ilha de Chipre, Egito,
península Itálica e a Espanha. Foram também fundadores de importantes
colônias, das quais a principal foi Cartago, que dos séculos VI até o III A.C.
era uma das mais importantes potências navais do Mediterrâneo
Ocidental.
A grande revolução na arte da escrita introduzida pelos Fenícios foi
o alfabeto constituído de apenas 22 sinais, que representavam apenas as
consoantes, não havendo sinal para as vogais. Esses signos quando
combinados, podiam representar qualquer palavra na língua Fenícia,
enquanto que outros sistemas de escrita, como o hieroglífico, possuíam
centenas de signos.

Materiais e métodos

Pensamos o processo de ensino-aprendizagem como um processo


de estímulos culturais em que as apropriação do conhecimento ocorre no
ensino que está dentro da Zona de desenvolvimento próximo (VYGOTSKI,
1984) aos quais o aluno consegue realizar associações cognitivas.
O professor, no processo de ensino-aprendizagem, deve funcionar
como um mediador do conhecimento, de forma à compreender as
necessidades e especificidades do ambiente social ao qual realiza suas
atividades, buscando promover um ensino que forme cidadãos
autônomos, capazes de pensar e questionar a sociedade em que vivem 5

(FREIRE, 2002).
Na escolha pelo tema “Os Fenícios”, foi optado por trabalhar “a
escrita na História”, dando ênfase na revolução do alfabeto Fenício, com o
objetivo de ensinar a História partindo do presente para o estudo do
passado, situando o aluno no tempo e espaço, apreendendo o dinamismo
do processo histórico, em que as práticas históricas do presente
descendem de outras práticas surgidas no passado.
As aulas começaram com uma exposição sobre o tema. O objetivo
dessa exposição era permitir aos alunos reconhecer laços de identidade e
diferenças entre práticas culturais letradas do passado e do presente,
compreender o dinamismo da História e dimensionar a importância da
escrita no desenvolvimento das civilizações. A exposição partiu do
presente para estudar o surgimento da escrita na Mesopotâmia no quarto
milênio antes de Cristo, e passando pela escrita Hieroglífica egípcia, pelo
surgimento do alfabeto Fenício e pelo alfabeto grego.
Em seguida, foi realizada uma dinâmica com o objetivo de
possibilitar aos alunos compreender a importância das diferentes formas
de escrita nas sociedades antigas.
Na parte final das atividades, os alunos montaram com apoio do
professor, um quadro teórico sobre as estruturas sociais, políticas e
culturais da sociedade fenícia e a partir dos resultados dos quadros, foi
discutida as mudanças e continuidades dessa sociedade em relação à
sociedade brasileira atual.

Resultados 6

Os resultados obtidos foram bastante positivos, embora, sendo o


processo de aprendizado individual, cada aluno atingiu níveis variáveis de
aprendizagem. A maioria conseguiu compreender a processualidade da
História no estudo desse tema, de como algumas continuidades se
mantém no tempo, sendo que inclusive alguns conseguiram tanto
dimensionar a importância da escrita no desenvolvimento das civilizações,
como compreender as mudanças que esta sofreu no decorrer do tempo,
com debates questionando a influência da escrita na atualidade.
O objetivo de promover uma formação de uma consciência de si
como ser histórico por parte do aluno é algo que demanda tempo e
atuação constante do professor de forma mediar junto ao aluno uma
formação capacitada para o enfentamento dos desafios da historicidade
humana, pois a consciência histórica se organiza a partir da necessidade
do ser humano de se orientar no tempo e espaço, de forma a responder
questões que a convivência em grupo impõe para o indivíduo. Tal como
defende Rusen (2001, p. 57) ao afirmar uma necessidade de pesquisa
histórica a partir das carências de orientação na vida prática, pois essas
carências e as pesquisas em relação a elas é o que determina a forma com
que a sociedade vai construir a sua visão de mundo. Por isso, pensando
numa formação que respeitasse o estágio de aprendizagem do aluno, o
projeto buscou atuar de forma a formar um indivíduo autonomo e
consciente de seu espaço na sociedade.

Considerações finais 7

As atividades realizadas realizadas permitiram uma melhor


compreensão da processualidade do ensino, assim como das trocas sociais
no ato de ensinar, sendo que ao mesmo momento em que ensinamos os
alunos, também aprendemos a ensinar observando e refletindo sobre a
aprendizagem do aluno. Também, o ensino da História Cultural aparece
como extremamente importante para a formação do aluno como ser
social, capaz de compreender e respeitar as diferentes culturas,
conhecendo a história do passado para compreender a atualidade.

REFERÊNCIAS

BARROS, José D’Assunção. Historicismo: notas sobre um paradigma.


Revista Antíteses, v. 5, n. 9, p. 391-419, jan/jul 2012, Londrina, UEL.

BRAICK, Patrícia Ramos. Estudar a História: Das origens do Homem à Era


digital; Patrícia Ramos Braick. _ 1º ed. _ São Paulo: Moderna, 2011;

BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos


Annales 1929-1989 /Peter Burke; tradução Nilo Odália. – São Paulo:
Editora Universidade Estadual Paulista, 1991.

CHARTIER, R. A História cultural: entre práticas e representações. Lisboa:


Difel, 1990.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 92p

HARDEN, Donald Bazum. Os Fenícios. Traduzido por: M. Farinha dos


Santos. Editora Verbo; Lisboa, 1971;

RAMOS, Ronald. Cultura fenicia. In: www.monografias.com. Acesso em 5 8


de julho de 2014.

RANKE, Leopold von. O Conceito de História Universal. In: MARTINS,


Estevão Rezende (org.) A História Pensada. Teoria e Método na
Historiografia Europeia do Século XIX. São Paulo: Contexto, 2010, pp.
202-216.

RUSEN, J. Razão histórica. Brasília: Editora da UnB, 2001.

VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. São Paulo: 4º ed. Martins


Fontes, 2008.

______ . A formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.


OS CANDOMBLÉS DE MARACÁS: PECULIARIEDADES DOS
TERREIROS E DO POVO DE SANTO NO SERTÃO BAIANO

Ivana Karoline Novaes Machado 


Itamar Pereira de Aguiar**
1

Resumo: Este artigo pretende analisar os elementos de cultura presente na


religiosidade afro, indígena, brasileira em Maracás-Ba e destacar as peculiaridades de
sua formação baseada num contexto histórico, econômico e étnico no sertão da Bahia.
Para tanto, recorremos ao método etnográfico utilizado por Clifford Geertz (2014) e à
categoria de análise “candomblés do sertão”, criada por Itamar Pereira Aguiar (2012).
Além disso, fundamentamos nossa discussão nas obras de Eric Hobsbawm editada em
(1997), Pierre Bourdier (1998), Ronaldo Senna (1998), Júlio Braga (2005), Josildeth G.
Consorte (2009) e Erivaldo F. Neves (2011), dentre outros, principalmente, dos que
escreveram sobre Maracás.

Palavras-chave: Candomblés; Afro-indígena; Sertão.

Abstract: Abstract: This article aim to analyze of the culture elements present in the
Brazilian African-Indian religiousness, in the city of Maracás, Bahia state, highlighting
peculiarities into their formation based on historical, economic and ethnic context of
the Bahia backwoods. Therefore, we resorted the ethnographic method of Cliffor
Geertz (2014) and the “candomblés do sertão” analysis category by Itamar P. Aguiar
(2012). Furthermore, we discussed substantiated of the workmanship of Eric
Hobsbawm (1997), Pierre Boudier (1998), Julio Braga (2015), Josildeth G. Consorte
(2009) and Erivaldo F. Neves (2011) among others, mainly, of which wrote about
Maracás.

Key words: Candomblés; African-Indian; Bahia backwoods.


Licenciada em Letras pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Especialista em
Antropologia com ênfase em Culturas Afro brasileiras (UESB). Mestranda no Programa de Pós-
Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidades (PPGREC-UESB). E-mail:
novaes.ivanakaroline@gmail.com
**
Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (1979). Especialização em Metodologia do
ensino Superior pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1986). Mestrado em Ciências
Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999), Doutorado em Ciências Sociais com
ênfase em Antropologia, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007) e Pós Doutorado em
Ciências Sociais, pela UNESP, campos de Marília – SP (2014). Professor Titular da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: itamarpaguiar@hotmail.com
Introdução
O presente artigo trata da tradição religiosa afro, indígena, brasileira
da cidade de Maracás, no estado da Bahia. As relações étnicas ali
estabelecidas compõem as peculiaridades dos terreiros e dos filhos de
santo daquele Município. A atividade econômica centralizada na 2
agropecuária criou um cenário fundamental na invenção das tradições, na
qual a figura do boi, do boiadeiro e os elementos provenientes dessas
atividades influenciaram rituais e práticas do povo de santo daquela
cidade. Propomos investigá-las tomando como base as pesquisas de
Aguiar (1999, 2012) e Senna (1998), a fim de verificar, se as tradições
religiosas de matriz africanas, podem ser ali definidas como “Candomblés
do Sertão”.
Frederick Barth define que a etnicidade é uma forma de organização
social, baseada na atribuição categorial que, em sua concepção, classifica
as pessoas em função da sua origem, que se acha validada na interação
social pela dinâmica de signos culturais socialmente diferenciadores 1.
Nessa perspectiva, para entender e caracterizar essa formação
religiosa do sertão Nordestino, criou-se a categoria “Candomblés do
Sertão”, fenômenos culturais, essencialmente sincréticos e “suas
sincretudes foram construídas a partir do encontro entre negros, índios e
europeus no sertão”2. Em suas pesquisas sobre tradição local em Vitória
da Conquista - BA, Aguiar conclui: “em que pese às várias denominações

1
PHILIPPE, Poutignat; STREIFF-FERNART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade seguido de Gupos Étnicos e
suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.
2
Aguiar, Itamar Pereira de. Os candomblés do sertão: a diversidade religiosa afro-indígena-brasileira.
Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiros, ISSN 2179-9636, Ano 2, nº 5, março
de 2012.
de cultos de matriz africana naquela cidade, há em cada uma das casas,
guardando as especificidades, algo de semelhante ‘aos Jarês das Lavras
Diamantinas’” 3. Maracás se encontra próxima à Chapada Diamantina,
onde ocorre o Jarê, e à cidade de Vitória da Conquista distante, cerca de
250 km, onde foram realizados os primeiros estudos sobre os Candomblés 3

do Sertão4.
A atividade econômica de Maracás, baseada na pecuária e na
agricultura, estabeleceu as relações entre o gado, o vaqueiro, o boiadeiro,
o agricultor e a terra. Sem dúvidas, essas relações influenciaram a
realidade local de modo peculiar. Desta forma, criou-se uma tradição
religiosa, fundada na cultura de criação do gado. Aguiar 5 afirma que o boi
é o mito fundador do sertão da Bahia. Para onde foram levados escravos,
indivíduos africanos de diversas etnias, principalmente bantos e, dentre
estes, predominantemente, angolanos.
As relações econômicas e simbólicas amalgamaram os elementos
das principais culturas: a indígena (presente na memória local, ao que
tudo indica da etnia cariri), a europeia (composta por portugueses,
italianos e alemães) e a africana (principalmente por povos bantos).
Assim, dos elementos de tradição local que constituem os candomblés da
cidade, resultou cultos sincréticos6 e, da formação urbana e rural, os
hábitos e costumes dos seus cidadãos.

3
Idem. p. 13.
4
Ibidem.
5
Aguiar, Itamar Pereira de. Os candomblés do sertão: a diversidade religiosa afro-indígena-brasileira.
Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiros, ISSN 2179-9636, Ano 2, nº 5, março
de 2012.
6
Sobre esta categoria de análise ver: Consorte, Josildeth Gomes. Sincretismo, anti-sincretismo e dupla
pertença em terreiros de Salvador.
Para melhor compreender as relações éticas elencadas acima,
precisamos reunir algumas informações acerca da história do município,
desde a sua formação até o século XX, apontando a presença de cada um
desses povos na corrente do tempo. Começaremos, contudo, por uma
breve explanação acerca de suas características geográficas e econômicas. 4

Maracás está localizada na região Sudoeste do Estado da Bahia, na


Mesorregião do Centro-sul baiano a 365 km da capital. Tem como
municípios limítrofes, ao Norte, Marcionílio Souza e Planaltino; ao Leste,
Lajedo do Tabocal; ao Sul, Manoel Vitorino; ao Sudeste, Lafaiete Coutinho
e Jequié; ao Oeste, Iramaia. É povoada por 24.615 habitantes, numa
extensão territorial de 2.435,201 Km², com altitude de 976 metros,
segundo dados do IBGE (2010). A temperatura média da cidade é de 19,2º
C, o que a coloca entre as cidades consideradas mais frias do Estado. O
seu nome está relacionado aos índios que habitavam a região:

O topônimo Maracás está associado aos seus


primeiros habitantes, os índios cariris que se
distinguiam das tribos circunvizinhas pelo uso de
instrumento musical: o maracá. A história do
município *…+ inclui entre outros fatos a luta entre
índios e portugueses – e entre eles os jesuítas no
trabalho de catequese – passagem de bandeirantes
paulistas em busca do ouro do interior central do
Brasil; importante palco do coronelismo baiano que
influenciou a configuração do poder estadual; a
presença de imigrantes italianos e colônia de
isolamento pra alemães, na segunda guerra (SILVA;
MOTA 2000: p. 175).
A econômica do município está centrada, na pecuária e agricultura.
De acordo com Marina Silva e Valeria Mota 7, a base econômica do
município é agropastoril e predomina ainda os métodos de produção mais
rudimentares. Destacando-se o café, a mamona a horticultura e a
floricultura, principalmente, o tomate e uma produção expressiva de 5

mandioca.
Por volta de 1651, segundo João Reis Novaes (2009), no local onde
hoje é situada Maracás, iniciou-se o seu povoamento. Este processo se
deu pelo governo da capitania da Bahia para tentar pôr fim aos constantes
ataques dos indígenas às vilas do Recôncavo, além de permitir a ligação
entre o sertão e o litoral. O governo incentivou e financiou a ação de
entradas e bandeiras que se dirigiam ao interior da Capitania. Contudo,
para atingir os seus objetivos, foi preciso enfrentar os nativos. Novaes
afirma que, dentre esses nativos, estavam os índios Maracás, os quais
eram guerreiros, valentes, pertinazes na luta e seguros no golpe 8, o que
motivou grande combate aos indígenas:

A princípio, o governo passou a incentivar e, às vezes,


financiar as ações dos Bandeirantes que combateriam
os Maracás, que, inicialmente, foram liderados pelos
“capitães residentes na Bahia Gaspar Dias Adorno,
Pedro Gomes, João Peixoto Viegas, Antonio Guedes de
Brito e Francisco Dias D’Ávila dentre outros”. Os
núcleos de povoamento que surgiram durante a
7
SILVA, Marina Helena Chaves; MOTA, Valeria Lessa. Festa de São João em Maracás: as velhas tradições
se mantêm. In: Lemos, Maria Teresa Toribio Brittes; BAHIA, Luiz Henrique Nunes (orgs.) Percursos da
Memória: construções do imaginário Nacional. Rio de Janeiro: UERJ, NUSEG, 2000. p. 176.
8
NOVAES, João Reis. De tropeiro a coronel: ascensão e declínio de Marcionílio Antônio de Souza (1915-
1930). Dissertação (mestrado) Universidade Federal da Bahia, faculdade de filosofia de Ciências
Humanas, p. 24, 2009.
investida desses bandeirantes – a partir de 1651 –
sofreram violentos ataques por parte dos índios.
Procurando vencer os nativos, o governador Alexandre
de Sousa Freire, em 1671, escreveu para as Câmaras
de São Vicente e São Paulo solicitando ajuda. Pouco
tempo depois, os paulistas, liderados por Baião
Parente, Braz Rodrigues de Arcão, auxiliados por 6
grupos de baianos, travaram sangrentos combates
com os indígenas, que acabaram dominados,
passando, os bandeirantes de contratos, a terem
direitos sobre as terras conquistadas e sobre os
silvícolas aprisionados. Isso na época era uma prática
constante. (NOVAES, 2009: p. 24).

Esse ato, ainda segundo Novaes (2009), mais tarde resultou na


distribuição de várias sesmarias. Assim, os colonos que as recebiam
ficavam encarregados de desenvolver, nesses locais, atividades da
pecuária e da agricultara, em virtude de uma dita fertilidade dessas terras
e de suas boas pastagens. Com o passar dos anos, esses sesmeiros e ex-
bandeirantes compuseram uma elite local que exerceu influência na
implantação de um governo com funções próprias de Estado. Isto
acarretaria, juntamente com a chegada dos missionários do convento do
Carmo – que também recebeu uma sesmaria de quatro léguas quadradas,
em 1673 – no aumento da população na região. Posteriormente, com a
doação, realizada por Maria da Paixão, de mais uma légua quadrada da
fazenda Água Fria à Igreja, iniciam-se novas construções habitacionais e
também de uma Capela em homenagem a Nossa Senhora das Graças.
A partir de então, formou-se o povoado e mais tarde, em 1855, foi
criado o Município de Maracás, desmembrado de Mucugê. Nesta época
fazia parte de Maracás uma considerável extensão de terras que
atualmente constituem os municípios de Milagres, Jequié, Manoel
Vitorino, Jaguaquara, Itiruçu, Lajedo do Tabocal e Contendas do Sincorá 9.
Ainda no fim do século XIX, em virtude de incentivo promovido pelo
governo na primeira república, assim como em várias regiões do país, 7

também para Maracás houve uma considerável migração de italianos, que


ajudaram a compor, com o passar dos anos, a elite econômica local.
Posteriormente (no período da Segunda Guerra), foi instalada na cidade
uma colônia de Alemães 10, controlados pelo governo por fins de estratégia
militar, razão pela qual algumas famílias passaram a se estabelecer ali.
Essas três nacionalidades (portugueses no início da colonização,
italianos no fim do século XIX, alemães na década de 1940) compuseram
as famílias ditas tradicionais, o que contribuiu para acentuar os conflitos
raciais e o fortalecimento da Igreja Católica. O contato entre esses
indivíduos e descendentes das demais etnias (principalmente dos índios
cariris e negros bantos) contribuiu para a peculiaridade das religiões de
matriz africana e indígena em Maracás.

Uma abordagem sobre as tradições afro, indígena, brasileira


Para compreender a cosmologia dos candomblés dessa cidade foi
preciso, um estudo sobre suas ligações com as demais religiões afro,
indígena, brasileira e um levantamento étnico das influências que

9
NASCIMENTO, Washington Santos. Africanos e negros na Região Sudoeste da Bahia: histórias, culturas
e influências. In: Santana, Marise de (org.). ODEERE: formação docente, linguagens visuais e legado
africano no sudoeste baiano. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2014, p. 29-59.
10
Silva, Marina Helena Chaves. E eis que chegam os Alemães! Alteridade e Memória em Maracás.
Dissertação (mestrado em memória social e documento) – Universidade do Rio de Janeiro e
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Jequié, 2001.
compõem suas sincretudes. Não podemos perder de vista que as tradições
vigentes foram inventadas e instaladas numa sociedade, a partir de
elementos culturais e marcos histórico. Em virtude disso, surgiram as que
hoje têm raízes remotas.
8
Por tradição inventada entende-se um conjunto de
práticas, normalmente regulada por regras tácita ou
abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual
ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas
de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente, uma continuidade em
relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-
se estabelecer continuidade com o passado histórico
apropriado (HOBSBAWM; RANGER, 1997: p. 9).

As entidades, assim como, as demais tradições religiosas, também


migram. Por conseguinte, podem ser incorporadas a outras denominações
e sofrer mudanças enriquecendo o quadro da diversidade cultural 11. Isso
significa dizer que um orixá, vodum, inquice, santo, caboclo, espírito, guia
e outros, podem surgir em diferentes manifestações, com o mesmo nome
ou não, mas sempre com alguma marca distintiva que nos permite
identificá-las. Esse fenômeno explica, pelo menos em parte, o que
chamamos aqui de sincretismo ou diversidade compartilhada. Vejamos a
seguinte definição:

A despeito de suas diferentes conotações, há um


elemento comum a todas as definições de sincretismo
que pode ser identificado como a junção, a
interpretação ou associação de elementos
11
PRANDI, 2000, p. 7.
pertencentes a universos culturais distintos, que
ocorrem em situação de contato. *…+ Assim,
entendido trata-se de um fenômeno universal
inerente à dinâmica cultural que se desencadeia em
tais situações, o que não o exime, no entanto, de ser
vivenciado de formas as mais diversas, nos diferentes
contextos em que ocorre e de receber o mais variados 9
tratamentos teóricos. (CONSORTE, 2009: p. 39).

Os processos do sincretismo, ou os decorrentes dele, se constroem


como caminhos que nos levam a entender as influências de diversas etnias
nas religiosidades, de forma geral. Por meio destes, é que as heranças de
nossos ancestrais indígenas e africanos povoam o imaginário deste país.
Nos candomblés brasileiros, os elementos do sincretismo podem ser
fundamentados à luz da definição de Consorte supracitada.
Roger Bastide refere-se ao candomblé como uma própria África aqui
no Brasil. Fato revelador que possibilita identificar os elementos culturais,
legados africanos, incorporados às nossas tradições através da
religiosidade.

Em meio às bananeiras, às buganvílias, às árvores


frutíferas, às figueiras gigantes que trazem em seus
ramos os véus esvoaçantes dos orixás, ou a beira das
praias de coqueiros, entre a areia dourada, com suas
cabanas de deuses, suas habitações, o lugar coberto
onde à noite os atabaques com seus toques chamam
as divindades ancestrais, com sua confusão de
mulheres, de moças, de homens que trabalham, que
cozinham, que oferecem às mãos sábias dos velhos
suas cabeleiras encarapadinhas para cortar, com
galopadas de crianças seminuas sob o olhar atento das
mães enfeitadas com seus colares litúrgicos, o
candomblé evoca bem essa África [...] de novo
florescendo (BASTIDE, 1971: p. 312-313).

A umbanda no Brasil, embora mais recente que o candomblé, não


deixa de apresentar uma doutrina com elementos afro, indígena
brasileiro. Apesar de ter sofrido a influência do espiritismo kardecista e do 10

catolicismo, preservou, em parte, o culto aos orixás, muitas vezes


sincretizados, mas que em seus universos simbólicos representam,
inegavelmente, relações com os mitos africanos. Ortiz afirma sobre o
cosmo religioso da Umbanda que:

A religião umbandista fundamenta-se no culto dos


espíritos e é pela manifestação destes, no corpo do
adepto, que ela funciona e faz viver suas divindades;
através do transe, realiza-se assim a passagem entre o
mundo sagrado dos deuses e o mundo profano dos
homens. A possessão é, portanto, o elemento central
do culto, permitindo a descida dos espíritos do reino
da luz, da corte de Aruanda, que cavalgam a montaria
da qual eles são os senhores. A idéia segundo a qual o
neófito é o cavalo dos deuses, o receptáculo da
divindade, é uma herança dos cultos afro-brasileiros,
onde a possessão desempenha um papel primordial;
nesses cultos a celebração das festas religiosas
culmina sempre com a descida dos deuses africanos
(ORTIZ, 1999: p. 70).

O estudo de Ortiz é voltado para as transformações da Umbanda na


sociedade, seus elementos históricos, econômicos e estruturais, bem
como suas sincretudes com o espiritismo kardecista, o catolicismo e o
candomblé. Nesta perspectiva, os adeptos da Umbanda, também, se
caracterizam como disseminadores das tradições africanas e seus
ancestrais. Mesmo que a própria organização proposta por ela,
essencialmente brasileira, como afirma Ortiz (1999), não seja idêntica a
dos candomblés tradicionais.
Já as encantarias são fenômenos importantes para entender os 11

personagens que compõem o leque das religiões afro, indígenas


brasileiras. Os encantados, os caboclos, mestres e outras entidades,

concebidos como espíritos de homens e mulheres que


morreram ou então passaram diretamente deste
mundo para um mundo místico, invisível, sem ter
conhecido a experiência de morrer: diz-se que se
encantaram. No universo plural das religiões afro-
brasileiras, ou afro-índio-brasileiras, essas entidades
constituem o panteão especialmente brasileiro,
justaposto ao panteão de origem africana formado
pelos orixás iorubanos, voduns jejes e inquices bantos.
(PRANDI, 2004. p. 7).

Ele ainda afirma que, dos cultos aos encantados, a Umbanda é o


mais conhecido. No entanto, nos mostra em seu trabalho que, existem
várias representações religiosas que os cultuam, entre elas, o candomblé
de caboclo, o próprio candomblé dos orixás, o Jarê, o catimbó e a Jurema:

A jurema é uma árvore que floresce no agreste e na


caatinga nordestina. Da casca do seu tronco e de suas
raízes faz-se uma bebida mágico-sagrada que alimenta
e dá força aos „encantados do outro mundo‟.
Acredita-se também que é essa bebida que permite
aos homens entrar em contato com o mundo
espiritual e os seres que lá residem. Tal árvore é
símbolo e núcleo de várias práticas mágico-religiosas
de origem ameríndia. De fato, entre os diversos povos
indígenas que habitaram ou habitam o Nordeste, se
fazia e ainda se faz o uso ritual dessa bebida
(BRANDÃO; RIOS, 2004: p. 160).

Brandão e Rios lembram o episódio em que Nimuendaju obteve 12

junto aos índios Santa Rosa, da Bahia, um depoimento em forma de visão


profética ou extática, como uma “visagem” do mundo espiritual,
disponível para aqueles que ingerem a bebida sagrada produzida com
partes da Jurema. Os Santa Rosa eram descendentes de tupiniquins e
kamuru-kariri. O relato dos índios acerca da experiência mística com a
bebida foi assim transcrito:

A jurema mostra o mundo inteiro a quem bebe: Vê-se


o céu aberto, cujo fundo é inteiramente vermelho; vê-
se a morada luminosa de Deus; vê-se o campo de
flores onde habitam as almas dos índios mortos,
separada das almas dos outros. Ao fundo vê-se uma
serra azul; vêem-se as aves do campo e flores: beija-
flores, sofrês e sabiás. À sua entrada estão os
rochedos que se entrechocam esmagando as almas
dos maus quando estas querem passar entre eles. Vê-
se como o sol passa por debaixo da terra. Vê-se
também a ave do trovão, que é trovão, que é desta
altura (um metro). Seus olhos são como os da arara,
suas penas são vermelhas e no alto da sua cabeça ele
traz um enorme penacho. Abrindo e fechando este
penacho, ela produz o raio e, quando corre para lá e
para cá, o trovão (NIMUENDAJU, apud BRANDÃO;
RIOS, 2004: p. 161).
O panteão do Candomblé de Caboclo, além dos Caboclos, Santos, e
alguns Orixás, a exemplo de Ogum, Oxossi e Iansã, compõe-se de diversos
encantados, esses podem ser de índios, de vaqueiros, mineiros, ciganos,
turcos, marinheiros ou marujos, baianos, Pombagira e outros. Eles são
caracterizados por manter contato direto com o público e por sua 13

natureza predominantemente alegre, sempre lembrando festa. Também


podem representar o poder da cura e da sabedoria:

Acredita-se que os caboclos conhecem


profundamente os segredos das matas, podendo
assim receitar com eficácia, folhas para remédio e
banho medicinais. No imaginário popular, o caboclo é
a um só tempo valente, destemido, brincalhão e
altruísta, capaz de nos ajudar para o alívio das aflições
cotidianas (PRANDI, 2004: p. 121).

Dessa forma, ele assume o papel do companheiro mais próximo das


pessoas. Para os adeptos desta tradição, os encantados são uma
esperança que nunca lhes deve falhar. Diferentemente do orixá, o caboclo
exerce, o poder do ser que a tudo em sua volta vê, conhece e domina sob
uma perspectiva humana nativa, mais próxima da realidade do seu povo,
podendo aconselhá-lo, sobre os problemas do dia a dia. Isto, por ser
considerado “o dono da terra” (Santos,1995). Segundo Prandi:

A origem dos candomblés de caboclo estaria no ritual


de antigos negros de origem banta, que na África
distante cultuavam os inquices – divindades africanas
presas à terra, cuja mobilidade geográfica não faz
sentido – e que no Brasil viram-se forçados a
encontrar um outro antepassado para substituir o
inquice que não os acompanhou à nova terra. O termo
candomblé de caboclo teria surgido na Bahia entre o
povo-de-santo ligado ao candomblé de nação queto,
originalmente pouco afeito ao culto de caboclo,
justamente para marcar sua distinção em relação aos
terreiros de caboclos (PRANDI, 2004: p. 121).
14
O autor supracitado ressalta uma forte ligação do Candomblé de
Caboclo com os símbolos nacionais. Podemos, por exemplo, citar como
pertencente aos seus universos, a Bandeira do Brasil justamente porque o

Apelo a uma cultura indígena, quase sempre


idealizada, proporciona ao candomblé de caboclo uma
valorização de elementos nacionais, fazendo dele, na
concepção popular, uma religião “brasileira por
excelência”. Elementos simbólicos nacionais são
ressaltados, como a menção às matas, as cores verde
e amarelo, o sincretismo católico e a miscigenação
racial (PRANDI, 2004: p. 123).

Embora o Candomblé de Caboclo tenha referências comuns em suas


origens, não podemos deixar de apontar que ele incorpora, muito mais
que apenas elementos dos candomblés jêje, nagô e angola, mas também,
os legados de origem indígena. Embora essa incorporação tenha se dado,
ao que parece de forma indireta. Braga, assim, define o Candomblé de
Caboclo:

a) Trata-se de uma variante do candomblé que


incorporou um número considerável de elementos da
cultura religiosa indígena, e de outras práticas
religiosas como, por exemplo, o espiritismo popular;
b) a incorporação de elementos indígenas se
processou quase sempre de forma indireta, resultante
da presença das religiões africanas em regiões
definidas culturalmente pela cultura indígena (BRAGA,
2005, p.164).

O Jarê, religião afro, brasileira da Chapada Diamantina, inventada


15
no contexto social da cultura do diamante e carbonato, também, se
apresenta de forma peculiar e foi de início, categorizada como um tipo de
Candomblé de Caboclo, com suas especificidades. Os estudos sobre este
fenômeno contribuem, com conhecimentos acerca de tradições religiosas,
dentre outras, de povos bantos, embora sincretizadas, posteriormente,
com elementos de tradição Jeje-nagô e, segundo o primeiro intelectual a
pesquisá-lo:

O Jarê foi, inicialmente, uma das religiões “africanas”


“produzidas” no sertão baiano, traduzindo elementos
de cultura identificados e vinculados a determinados
agrupamentos de escravos que, trazendo seu
“sincretismo” cristalizado pela “diáspora” africana,
instalavam-se em uma determinada região econômica
e em um determinado contexto social. É de crer que o
Jarê foi, na sua formação na Chapada Diamantina,
mais especificamente na região das lavras, na época
do “rush”, uma religião de origem banto a qual se
superpuseram, durante o processo de formação da
urbe, elementos nagôs (SENNA, 1998: p. 65).

Diferentemente dos candomblés do recôncavo (ditos tradicionais) e


da Umbanda instalada na Bahia, os candomblés de Maracás se
apresentam de forma singular, em virtude de suas relações étnicas
(recebeu influências definidoras de elementos de cultura do povo
indígena que habitou a localidade e dos europeus e africanos no decorrer
de sua invenção). A economia, nesse caso, a pecuária e a agricultura –
onde o boi é protagonista – também tiveram papel fundamental em tudo
isso. Tradições semelhantes a esta, com especificidades locais, Aguiar
(2012) denominou de Candomblés do Sertão e estamos pesquisando-as 16

em Maracás, com a finalidade de verificar se estas tradições, que hora


estudamos, também podem ser denominadas Candomblés do Sertão.

Características religiosas do sertão: um destaque para as raízes da


tradição simbólica local
Vivaldo da Costa Lima em, A família de Santo, publicado pela
primeira vez em 1977, afirma que, a realidade da Cultura Banto, nos
candomblés da Bahia, foi negligencia por autores que, priorizaram as
tradições Iorubanas, dizendo:

Os autores que melhor estudaram o candomblé da


Bahia são unânimes em ressaltar a predominância dos
modelos nagôs e jêjes das casas de santo,
contrastando-os com os candomblés das nações de
congo, angola e caboclo. De modo geral, esses autores
seguem o ponto de vista de Nina Rodrigues,
modificando-o apenas na construção de outras
culturas africanas atuantes na formação dos
candomblés da Bahia. [...] Nina Rodrigues desconhecia
candomblés congos e angolas que certamente havia
na Bahia de seu tempo. E coube a Carneiro chamar
atenção para a existência de candomblés organizados
dos grupos de língua banto (LIMA, 2003: p. 20).

Ainda hoje, as pesquisas sobre as culturas Iorubanas são a maioria,


em detrimento daquelas que se dirigem ao sertão e se dedicam aos
estudos de caboclos e encantados, considerando as influências da história
local dos índios, negros e europeus para a tradição religiosa distinta,
certamente, das organizações dos terreiros do recôncavo da Bahia.
Nosso estudo, observando principalmente as pesquisas de Aguiar e
Senna, visa lançar alguma luz sobre essa lacuna, indicando, além das 17

relações entre economia e religiosidade, as possíveis influências banto na


construção imagética e mitológica dos encantados que se apresentam nas
casas de santo em Maracás.
Podemos afirmar que nessa cidade há terreiros e “quartinhos de
santos”12 que funcionam regularmente, realizando rituais de festas
púbicas e práticas de cura, dentre outras do interesse dos filhos de santo e
dos adeptos ou “clientes” que os procuram.
Os sacerdotes (de terreiros, quartos de santo ou centros), com
exceção dos que não são naturais do município, ou dos que passaram a
infância e juventude em outras cidades ou estados, afirmam serem filhos
de santo, ou terem iniciado a sua vida religiosa com um dos três grandes
nomes da tradição local de Maracás: Sifrone, Astero e Chico Dias13. Além

12
Estes “quartos de santo” aos quais nos referimos, são, geralmente, pequenos cômodos, ou até mesmo
o próprio quarto residencial, onde há um altar, geralmente montado em uma pequena mesa, com uma
quantidade significativa de imagens de santos católicos, orixás e encantados comuns à tradição local.
Geralmente, são menores que os altares dos salões/barracões/aruandas dos terreiros no Município. Os
devotos desses santos, muitas vezes, oferecem bebidas, comidas, ervas e frutas, além do que, realizam
alguns trabalhos sobre e sob esses altares. Não raro, encontramos algumas imagens ou objetos trazidos
de Bom Jesus da Lapa, Bahia e depositados entre as imagens reunidas. São esses costumes, que
caracterizam os “quartos de santos” num universo simbólico do sagrado.
13
Os três tinham terreiros e trabalharam em Maracás por várias décadas do século XX. Não conseguimos
muitas informações sobre a precisão das datas ou a forma de seus cultos. Mas pudemos constatar que
Sifrone trabalhava na área da cidade hoje conhecida como Maracasinho, juntamente com famílias vindas
do Boqueirão, possivelmente, uma comunidade quilombola. A casa de Astero se localizava na Avenida
Brasília e tinha contato estreito com algumas famílias da Rua do Cuscuz. O pai Cirineu, por exemplo, que
era morador do Cuscuz até a adolescência, afirma que as primeiras experiências de transe, ainda na
infância, aconteceram na casa de Astero, que era ajudado por uma das tias biológica de Cirineu. Chico
desses, alguns também são muito citados, entre os mais importantes na
memória do povo de santo local, como por exemplo, seu Edízio 14,
Benedito Brazil15, Antônio Spínola 16 e Dona Alice17. É possível afirmar, com
base em dados empíricos, que todos estes sacerdotes citados cultuavam
ou cultuam o boiadeiro, conforme a tradição local de Maracás. 18

Nesta cidade, uma de suas especificidades é a opção por não


atribuir nome aos centros, salões ou terreiros. Geralmente, esses templos
são popularmente conhecidos pelo nome do pai, mãe de santo e curador
ou curandeiro. Por exemplo: “Terreiro de Seu Edízio” ou “Samba de Zé
Pezão” e até “casa de madrinha Alice”, “casa do curador Chico Dias” e
assim sucessivamente, a depender de como este sacerdote é conhecido.

O sertão se encanta: as especificidades do povo de santo de Maracás


Candomblés do Sertão é uma categoria recente. Ela foi criada, como
vimos, por Aguiar. No momento deste artigo, estamos pesquisando em
Maracás sob a hipótese de que engloba elementos dos “candomblés”, das
“Umbandas”, dos “Candomblés de Caboclo”, entre outros, para verificar

Dias, por sua vez, atendia algumas pessoas da zona urbana, mas seu trabalho se concentrava, sobretudo,
na zona rural, compreendendo desde as localidades próximas a Planaltino (ao norte da sede) até Pé de
Serra (a leste).
14
Ainda vivo, mas que no momento evita fazer festas públicas na zona urbana, devido, sobretudo, à
idade avançada. Na zona urbana, no fundo de sua residência particular, há um salão que já recebeu os
filhos de santo e realizou festas durante noites. Ele é filho do orixá Ogum (sincretizado com Santo
Antônio de Jesus) e tem o preto velho e o boiadeiro como entidades auxiliadoras de trabalhos. A sua
outra casa localiza-se na zona urbana do município de Iramaia, onde, segundo sua declaração, ainda há
festas, sambas e trabalhos.
15
Já falecido. Seus cultos têm continuidade hoje por meio de Benito Brazil, o seu filho, em uma fazenda
da família. Este afirma, categoricamente, ter acompanhado seu pai desde os nove anos de idade nesta
tradição religiosa.
16
Ainda tem pequeno terreiro na zona rural de Maracás.
17
Já falecida. Segundo familiar, Madrinha Alice tinha Oxalá como o santo de sua cabeça e realizava
trabalhos de cura com pessoas da região dos povoados de Capivaras, Caldeirão dos Mirandas e Morro do
Tatu, entre as décadas de 70 e 90.
as semelhanças e possíveis diferenças, acerca do verificado por ele que,
com as especificidades locais, decorrem diretamente da sincretização dos
símbolos e outros elementos das culturas desses povos trazidos para a
região, com a dos indígenas que nela habitava. Ainda segundo o mesmo
autor: 19

Os Candomblés do Sertão são fenômenos culturais


essencialmente sincréticos, suas sincretudes foram
construídas a partir do encontro entre negros, índios e
europeus no sertão, onde cada grupo étnico em
diálogos com os ecossistemas específicos; com o
cosmos, as atividades econômicas e os seus elementos
de culturas religiosas, contribuíram cada um com o
seu quinhão, ritualizaram os seus sotaques em
linguagens, as emoções trançadas como se trança a
esteira em que deita a Iaô e o chapéu de palha que
cobre a cabeça do Preto Velho; como tiras de couro
trançadas em laços, couros costurados em chapéu,
jaleco, gibão, perneiras e as botas de seu Boiadeiro;
como as rendas de bilros trançadas em babados que
adornam o altar e enfeitam as saias de Oiá; as rezas,
as garrafadas, as curas, zuelas e chulas, as danças, as
comidas, as manhas os carinhos e dengos, o feitiço
que encanta (AGUIAR, 2012: p. 2).

Nessa categoria de candomblé, diferenciada pelas influências de


uma tradição local maracaense, observamos a figura do boiadeiro, do
vaqueiro, do próprio boi e das relações com a terra, como protagonistas
de um universo sagrado. O chapéu de couro e o gibão aparecem, muitas
vezes, durante os rituais não só com instrumento de decoração, mas
também, e principalmente, como força capaz de trazer energia para a casa
e os seus filhos.
Além disso, a mesa de santo apresenta fundamental importância
para o cenário religioso. Ela compreende o local onde está depositado
uma gama de imagens e outros símbolos. É lá que se encontram os 20

elementos, a sacralização e a correspondência simbólica entre os orixás,


santos, caboclos e encantados. Como afirmamos anteriormente, essa
mesa de santo pode compor o altar ou pode se tratar de uma espécie de
cantinho sagrado encontrado nos terreiros ou quartos de santos. Nesses
locais, há muitos objetos: velas brancas e coloridas, fitas de várias cores,
fotos de filhos de santos, imagens de preto-velho, boiadeiro, índios,
ciganas e alguns orixás, copos cheios d'agua, perfumes, fios de contas,
bebidas feitas a base de ervas nativa, vinhos, doces, flores naturais e
artificiais, chapéus de palha e de couro, orações impressas, búzios, bíblias,
crucifixos, suvenir trazidos da cidade de Bom Jesus da Lapa (Bahia),
imagem de Padre Cícero, fotografias do papa João Paulo segundo,
prefeitos e outras personalidades, bem como, siglas de partidos políticos.
Encontramos em alguns terreiros, o que nos despertou curiosidade,
uma pedra transparente de forma irregular, localizada ao centro dessas
mesas, semelhantes a um cristal, ao questionarmos a respeito,
descobrimos que tem seus significados e importância para os trabalhos da
casa, funcionando como uma espécie de equipamento para consultas
espirituais.
Em conversa com pais de santo, descobrimos que o chapéu de
couro, localizado nas mesas ou nas paredes da maioria dos templos, pode
trazer tanto má sorte (quando não respeitado e cultuado corretamente),
quanto boa sorte para o seu povo, o vaqueiro, trabalhador e outras
pessoas. Depositá-los aos pés da imagem do caboclo ou na mesa de santo
são gestos que fazem parte da religiosidade do povo de santo de Maracás.
Vejamos: 21

Uma vez, um filho de santo meu, lá de São Paulo que


“munta” em Boi, ia participar de um concurso [...]. Ele
nunca mais tinha ganhado nada, tava triste, tu
precisava ver! Aí, ele pediu que eu fizesse alguma
coisa. Se ele ganhasse, dividia o prêmio comigo para
ajudar. Aí, eu botei o nome dele ali [debaixo da
imagem do boiadeiro] e pedi ao velho boiadeiro *…+.
Ele ganhou sete mil reais! Me deu três mil. Logo, ele
veio aqui e colocou o chapéu de couro alí [sob uma
imagem do boiadeiro e pendurado numa espécie de
cabide]. Está aqui até hoje! É esse! Tá vendo? (Pai Zé
Pezão).

Podemos observar a forte expressão de poder que o entrevistado


atribui ao caboclo boiadeiro na cena descrita acima. Uma vez amparado
pela crença na entidade, sempre protegido por ela. Essa proteção é
baseada no perfil dessa entidade e do filho de Santo. Não se trata de um
mero desejo, mas de uma relação sagrada entre o filho e o pai de Santo
para com o caboclo. Fé dotada de valores espirituais peculiares e
conhecimentos ancestrais que se traduzem em rituais, segredos e magias.
Sobre o assunto, Bastide explica que está na base das “seitas” africanas:

Uma fé na onipotência dos Orixás, nas sanções


sobrenaturais, que punem os que violam os tabus,
uma fé que se apoia em milhares de casos, de
histórias infantis de deuses punidos por sua
desobediência, de profanos curados por sacrifícios, ou
depois de terem dado de “comer suas cabeças”, uma
fé prévia, herdada dos antepassados e transmitida de
geração a geração (BASTIDE, 1971: p. 311).
22
O boiadeiro e o boi compõem essencialmente os candomblés de
Maracás. Isto porque não só representam poder na maioria dos terreiros,
como também é símbolo de ordem, bravura, competência e esplendor,
eficiente nos processos de cura para o povo de santo que os recebem em
cada “cavalo”. É o Boiadeiro que põe ordem na casa, no trabalho e na
vida, em virtude de que tudo aconteça em paz, mesmo que para isso, seja
necessário o combate.
Como prova de tal fato, testemunhamos em visita de campo a casa
do Pai Zé Pezão, numa festa pública dedicada ao Caboclo Boiadeiro a
seguinte cena: o “Velho Boiadeiro” enfrenta uma mulher visivelmente
embriagada, ele exige respeito à religião e ao local em que se encontram,
pois para todos os presentes é chão sagrado. Neste episódio, o Boiadeiro a
desafia vestir o jaleco de couro e suportar as chicotadas em suas costas,
assim como ele as suportou sem pestanejar, naquele momento. Além de
intimidá-la, a entidade incorporada exige que a visitante se retire ou faça
silêncio. Não havendo consenso, Boiadeiro apela, põe a mão sobre a
cabeça da visitante, como quem deseja acalmá-la com um gesto de
sabedoria e rigidez, fazendo-a cair ao chão em transe. Logo em seguida,
ela se acalma e permanece calada até o fim da festa.
Ainda, no mesmo ritual, percebemos a competência de “Seu
Boiadeiro” no manejo do laço, laçando por vezes consecutivas as filhas e
filhos de santo, durante a gira (dança em círculo) sem errar uma só vez e
os puxando com vigor para junto de si. Essa demonstração de
competência e eficácia, leva ao entendimento de que o Caboclo detém o 23

poder da cura com igual propriedade.


Em Maracás a pecuária e a agricultura de sobrevivência, assumiam
e, de certa forma ainda assumem, importância considerável na economia
do município e na vida das pessoas. Assim, o boiadeiro que domina a
economia do boi e, o vaqueiro que conhece o gado e a terra do seu
patrão, constitui o fundamento e tradição desse município transmitida,
oralmente, de geração a gerações. E essa tradição está muito bem
representada na religiosidade afro, indígena, brasileira maracaense.
A devoção pelo boiadeiro e o vaqueiro na religiosidade, como vimos
anteriormente, está na importância que o boi, representou para a
sobrevivência e existência do homem no sertão nordestino. Vejamos o
que Neves em estudo sobre a pecuária no sertão da Bahia e Pernambuco,
afirma:

A expansão pecuarista desenvolveu-se a partir das


regiões açucareiras (Bahia e Pernambuco) em três
fases, como vislumbrou Nelson Werneck Sodré, sem,
entretanto, as suas supostas “relações feudais no
pastoreio”: na primeira, o gado se constituía na peça
essencial da propriedade escravista, que dependia do
fornecimento de alimentos, particularmente ao
escravo, da força de tração para transporte e moagem
da cana e também para o deslocamento de
mercadorias em pequenas distâncias; na segunda,
quando o couro se tornou fundamental como matéria-
prima e objeto de exportação, a separação entre o
engenho e o curral fora consequência da multiplicação
dos rebanhos e da expansão dos canaviais, e da
incompatibilidade entre a criação extensiva de gado e
a grande lavoura canavieira; e na terceira, rompeu-se 24
a articulação direta da pecuária com a monocultura,
mas permaneceram os vínculos de interdependência
econômica ou de interatividade do gado com a cana-
de-açúcar (NEVES, 2011: p. 259).

Assim, a própria relação gado/senhor/escravo e índio podem ser


confirmadas através do papel que essa atividade econômica
desempenhou pelo sertão baiano. Portanto, não seria de estranhar se
fosse diferente acerca da cultura e da religiosidade popular, além do que,
dentre os africanos trazidos como escravos para a região, muitos já
tinham relação mística com o gado bovino desde as suas tribos na África.
A cultura de um povo é refletida através de hábitos e costumes
calcados numa tradição ancestral. Se a história da pecuária e da
agricultura foi essencial para o povo brasileiro e, especialmente, para o
sertanejo, a religiosidade a absorve de alguma forma. A chegada do boi ao
Brasil e no alto sertão baiano é algo remoto que, aos poucos foi tomando
dimensão e ocupando lugar nas terras e na vida das pessoas por aqui:

Na América portuguesa, o gado vacum foi introduzido


durante o governo de Tomé de Souza (1549-1552),
através das capitanias da Bahia, de Pernambuco e de
São Vicente. A chegada despertou muita curiosidade
dos indígenas, que tinha a anta ou tapiruçu como o
maior animal da terra. [...]. O gado aportado na Bahia
multiplicou-se rapidamente. Garcia D’Ávila, que
recebera duas vacas no valor de quatro mil réis que o
governo colonial lhe devia por serviços prestados
como almoxarife, em 1552 já solicitava mais terras ao
governador-geral, de quem talvez fosse filho bastardo,
para expandir seu criatório de “perto de 200 cabeças
de gado, fora porcos, cabras e éguas”. Esse rápido 25
crescimento do seu rebanho indica que ele adquirira
gado de outros beneficiários dos primeiros lotes
chegados. Em pouco tempo d‟Ávila já possuía 10
fazendas, que se expandiam por cerca de 15 léguas de
terras, nas quais criava milhares de cabeças de gado e
se destacava entre os homens mais ricos da capitania
(NEVES, 2011: p. 253, 254).

Nesta citação percebe-se, a partir da exuberância e tamanho desse


animal, o impacto e o espanto que deve ter provocado nas comunidades
indígenas, o interesse e satisfação de africanos e descendentes na lida
com esse elemento mítico, o interesse financeiro por parte dos senhores
de terras, a importância econômica para a população e para os
governantes. Tudo isso, transformou, sem dúvidas o cenário da economia
do país. No sertão baiano ele chega e se expande pelo vale do Rio São
Francisco e seus afluentes, o que provavelmente foi entendido como o
encontro entre dois elementos míticos, o boi e a água numa região árida,
pelos povos africanos e indígenas brasileiros que se irmanaram na
reinvenção de suas tradições.

O avanço para o interior deveu-se às condições


naturais de clima favorável e pastagens nativas, e a
razões de natureza econômica, proporcionadas por
um mercado litorâneo de carnes, couros e de animais
para o trabalho, em permanente elasticidade,
impulsionado pelo desenvolvimento da agro
exportação, através de feiras como a de Capoame,
entre os atuais municípios de Camaçari e Dias d‟Ávila,
nos séculos XVII e XVIII, e a de Santana dos Olhos
d‟Água, hoje Feira de Santana, no XIX e no XX. A
pecuária extensiva constituiu-se num dos principais 26
fatores da ocupação do interior, porque o gado
dispensava a proximidade do litoral, a si próprio
transportava em longas jornadas, adaptava-se bem
nas regiões impróprias ao cultivo da cana, dependia
de pouca mão-de-obra e de pequeno investimento de
capital, multiplicava-se sem interstício, fornecia boa e
constante alimentação de alto valor nutritivo (NEVES,
2011, p.258).

Desta forma é que o gado, a pecuária e a agricultura de


subsistência, fortaleceram os sertões nordestino, mais precisamente, o
interior da Bahia. E onde há impacto econômico, sem dúvidas, há o
impacto sociocultural. Aqui, estudamos esses impactos, se é que podemos
falar assim, e tratarmos de temas como esses, na religiosidade de
Maracás.
Os elementos, tais como, o chifre do boi transformado em utensílios
para se tomar água na Aruanda 18; o chapéu, o chicote e o laço,
representando a força e a ordem num terreiro; bem como, o gibão,
perneiras, botas e o chocalho são símbolos que integram o universo
sagrado dos “Candomblés do Sertão”, como a porta que se abre para a
entrada de Seu Boiadeiro.

18
Chamam-se comumente de Aruanda, o espaço dentro de uma casa, salão ou centro religioso onde há
a representação dos mitos e a realização de ritos, tanto em atividades restritas, quanto em festas
públicas em Maracás-Ba.
Sincretismo: os legados indígena, africano e europeu em Maracás
Os povos bantos foram os primeiros a chegar ao país, trazidos como
escravos: “estudos mostram que foi através do Rio de Janeiro e de
Pernambuco que chegaram ao Brasil os maiores contingentes de povos
27
bantos” (AGUIAR, 1999: p. 28). Enquanto que os nagôs só chegaram entre
o final do século XVIII e durante o XIX. Assim, não é difícil encontrarmos
referências a essa primeira etnia nos sertões da Bahia. De acordo com
Aguiar, “o fato de ter sido a Bahia, a principal porta de entrada de
Sudaneses no Brasil, não exclui o ingresso pelo porto de Salvador, de
contingentes bantos levados para o Recôncavo.”19.
Segundo Nascimento (2014), por falta de uma pesquisa mais
sistemática a respeito do tráfico interno dos negros no sudoeste da Bahia,
não é fácil afirmar quais eram as etnias dos africanos desta localidade.
Porém, suas pesquisas demonstram uma predominância de escravos
bantos se deslocando para o sertão baiano. Segundo ele, há outros
fatores, que solidificam essa hipótese, as “práticas culturais e religiosas da
região ligadas ao terno de reis, a umbanda, ao samba da umbigada etc., o
que nos remete a tradições, também banto” (NASCIMENTO, 2014: p. 30).
Ele afirma ainda que “a própria maleabilidade cultural desses africanos em
suas relações com indígenas e europeus e o caráter igualmente maleável
do que chamaremos de cultura popular sertaneja, são fatores que só
fortalecem o que por hora é só uma hipótese” (NASCIMENTO, 2014: p.
30).

19
AGUIAR, 2009: p. 29
No entanto, ao remetermos à própria história da escravização dos
negros no Brasil, veremos estudos de alguns historiadores que apontam
dados nos quais há uma predominância de povos das etnias Angola e
Congo no sertão da Bahia. Como, por exemplo, Almeida e Pinto (2014)
que analisam, respectivamente, a população negra de Rio de Contas e no 28

médio São Francisco no século XIX. Além das análises dos estudos de
Erivaldo Fagundes Neves, realizados por Aguiar que diz:

Os negros trazidos como escravos para a região eram


oriundos de diversos lugares da África e pertencentes
a distintas etnias: Angolas, Minas, Benguelas, Hauçás,
Nagôs, Congos, Rebolos e outros de origem étnica não
identificada, conforme mostra os dados apurados por
Neves em uma tabela da qual extraímos as
informações de que existiam 64 africanos, 396
brasileiros e 63 sem identificação. No que diz respeito
aos africanos, apuramos que maior contingente de
escravos era de bantos (30), contribuindo para o
percentual de 46,88% do total e que dentre estes,
predominavam os angolanos (24), com 80% dos
bantos e, 37,88 dos africanos. Os sudaneses (11),
representando 17,19% do total (AGUIAR, 2011: p.
680).

Em virtude de Maracás se encontrar relativamente próxima a essas


localidades apresentadas, podemos supor que parte dessas etnias
também povoaram o município, justificando a predominância dos povos
Bantos.
Sobre a presença de negros na região de Maracás, entre os anos de
1882 e 1888, Nascimento (2014) afirma que, “A maioria da população de
cor (quer escrava ou liberta) era nascida no Brasil, 74,8% eram
considerados como pardos, crioulos, cabras e mulatos e apenas 14,63%
eram nascidos no continente africano, merecendo, por isso, denominação
como preto, africano e fulo” 20.
Na religiosidade, os seus legados podem ser muito bem 29

representados pela alegria dos filhos de santo, em cultuar os caboclos.


Segundo Reginaldo Prandi, “os caboclos são espíritos dos antigos índios
que povoavam o território brasileiro, os antigos caboclos, eleitos pelos
21
escravos bantos como os verdadeiros ancestrais em terras nativas” .
Mas, também, não exclui da linhagem os caboclos boiadeiros, que,
segundo ele, teria um dia vivido no sertão na lida com o gado e que usam
o chapéu característico de sua ocupação 22.
Os caboclos constituem a base do panteão dos candomblés de
Maracás, onde a relação deles com o seu povo é o que fundamenta a
maioria dos rituais afro, indígenas, brasileiras, evidenciando, assim, o
legado banto. Estes não são divididos em estruturas coerentes de nações,
ou seja, Keto, Angola e Jejê, pode até haver uma ou outra casa de pais de
santo cuja feitura se deu em terreiros ditos de Keto, como dois casos que
encontramos, nos quais a presença dos caboclos é predominante ao
ponto de regerem seus fundamentos. Quanto aos orixás, não há
manifestações, eles aparecem sincretizados com os caboclos, o que Aguiar
e Senna (2014) categorizaram como caboclarização dos Orixás. Neste

20
NASCIMENTO, 2014, p.37
21
PRANDI, 2004: p. 125
22
Idem. p. 125
caso, os caboclos é que são os donos dos terreiros maracaenses,
sobretudo, o Boiadeiro.
As marcas de um legado europeu podem ser visualmente
percebidas em alguns monumentos históricos distribuídos pelo município,
por exemplo, a imagem da santa Nossa Senhora das Graças, no interior da 30

igreja matriz (a memória coletiva da cidade, afirma que ela foi esculpida
por mãos alemãs); a imagem da Senhora Sant'Ana (até hoje está erguida,
numa espécie de molde, ao fundo de um terreno, atualmente sem
morador, mas onde funcionava a sede do sindicato dos trabalhadores,
também foi construída por um alemão) e a própria Igreja Católica. Porém,
a influência religiosa da cultura católica, se manifesta na devoção dos seus
fieis, nas cantigas e objetos ditos sagrados. Esses e outros legados podem
ser observados nas práticas cotidianas do povo de santo em Maracás que,
também, se declaram católicos.
A fé católica não foi inteiramente abandonada pelos terreiros dessa
cidade. A devoção à figura da cruz e do cristo, aos terços, rosários, a bíblia
e as imagens dos santos católicos convivem com símbolos de outras
etnias, quando o objetivo é transmitir os elementos de cultura dos seus
antepassados. O sincretismo, a correspondência simbólica, a dupla
pertença, e a diversidade compartilhada expressam o universo de valores
vivenciados nessas tradições. Talvez, a busca pela legitimação dos
processos simbólicos tenha gerado esses sincretismos atuais:

Tendo em vista que o interesse religioso tem por


princípio a necessidade de legitimação das
propriedades materiais ou simbólicas associadas a um
tipo determinado de condições de existência e de
posição na estrutura social, dependendo portanto
diretamente dessa posição, a mensagem religiosa
mais capaz de satisfazer o interesse religioso de um
grupo determinado de leigos, e de exercer sobre ele o
efeito propriamente simbólico de mobilização que
resulta do poder de absolutização do relativo e de 31
legitimação do arbitrário, é aquela que lhe fornece um
(quase) sistema de justificação das propriedades que
estão objetivamente associadas ao grupo na medida
em que ele ocupa uma determinada posição na
estrutura social (BOURDIEU, 1998: p. 51).

Essa busca pode estar no campo da razão e também da emoção,


principalmente, ao incluir símbolos do catolicismo, como um legado nos
espaços religiosos de matriz africana e indígena.
O Senhor Bom Jesus e a cidade de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, por
exemplo, assumem um valor simbólico para o povo de Santo de Maracás.
Muitos sacerdotes iniciaram suas vidas espirituais ali e cumprem suas
promessas devotadamente todos os anos em romaria. Bom Jesus da Lapa
completa o quadro da religiosidade local de Maracás, ao funcionar como
uma extensão dos terreiros daquela cidade. Em virtude de que muitos pais
e filhos de santo trazem imagens lavadas nas águas benzidas de lá e só,
depois disto então, as consideram sagradas. Bem como, faz parte da
tradição, algum objeto se sacralizar geralmente pelo fato de ter vindo da
Lapa do Bom Jesus.
Além de que no calendário de alguns terreiros maracaense, há a
inclusão daquele dia da romaria ou pagamento de promessa do seu
sacerdote. Não é raro uma festa ser interrompida devido as obrigações na
cidade de Bom Jesus. Onde, inclusive, foi espaço de iniciação e
continuidade de determinados trabalhos espirituais em Maracás. O valor
de sagrado é atribuído a quase tudo que vem da Lapa, até mesmo
brinquedos e suvenis.
Podemos observar que esse fenômeno é unânime ao povo de santo 32

de Maracás. Não é simplesmente uma mera romaria, é antes de tudo, a


continuidade de uma tradição que integra os rituais dos terreiros e a
devoção dos seus filhos. A romaria a Bom Jesus da Lapa tornou-se uma
obrigação para os pais e filhos de santo dali. Desta forma, os segredos e os
mistérios fazem sentido, vez que, estabeleceram correspondência
simbólica entre Bom Jesus da Lapa e o Caboclo Boiadeiro, inventando-se o
mito ao afirmar, segundo Aguiar que “Na gruta do bom Jesus caiu o boi, o
cavalo e o vaqueiro”:

Os pais e mães de santo têm obrigação de frequentar


a romaria de Bom Jesus da Lapa, cujo dia de festa é
seis de agosto. Bom Jesus da Lapa é o santo católico
com o qual o boiadeiro é sincretizado. Conta uma
lenda, que há muitos anos caiu, no buraco da gruta da
Lapa do Bom Jesus, um boi, um vaqueiro e seu cavalo
e que, quando os boiadeiros da região do São
Francisco conduziram suas boiadas e se aproximavam
da gruta, os bois empacavam e ficavam por algum
tempo girando em círculo e berrando, tendo os
vaqueiros que aguardar a sua disposição para seguir
em frente, contam ainda que nas paredes das grutas
encontram-se desenhados, pela própria natureza, os
trajes de boiadeiro: jaleco, chapéu, laço, gibão e
perneiras, feitos de couro (AGUIAR, 2011: p. 685 e
686).
Nos terreiros de Maracás, as orações católicas podem ser ouvidas
nas festas para iniciar os trabalhos. As cantigas, os benditos, as rezas e as
ladainhas integram os rituais de festa pública para o Boiadeiro, cujo dia a
ele consagrado é o mesmo que o de Bom Jesus da Lapa: 06 de agosto. Não 33
podemos esquecer-nos de mencionar que o local, hoje ocupado pela
cidade da Lapa, antes foi uma fazenda de gado (fazenda Itaberaba) e,
conforme o mito, a história do local se relaciona com as tradições
católicas, as quais teriam atribuído ao senhor Boiadeiro atualmente
cultuado nos “candomblés do sertão” de Maracás, o sentido de sagrado:

Bom Jesus da Lapa antes de passar à condição de


cidade e a de importante santuário, onde ocorre
grande romaria, foi uma fazenda de criação de gado e,
enquanto santo da igreja católica povoando o
imaginário dos habitantes da região, andou pelo
mundo disfarçado de vaqueiro (AGUIAR, 2011: p. 687).

Diante de tudo, não podemos negar um legado católico para o


Boiadeiro, se afirmamos sua sincretude, ou correspondência simbólica
com o santo Bom Jesus da Lapa.
Observamos outros marcadores dessa herança católica presentes na
religiosidade afro, indígena dessa cidade: o apego e devoção aos santos,
como por exemplo, a Nossa Senhora das Graças, padroeira da Cidade;
uma linguagem semelhante a das missas “Louvado seja nosso senhor
Jesus Cristo/Para sempre seja louvado”; a realização de orações comuns
aos católicos: o Pai Nosso, Ave Maria e Salve Rainha; além da ligação entre
os padres e os pais de Santo. Assim como, a presença de bíblias, terços,
rosários e outros símbolos nas paredes, nos altares ou mesas de santo.
Tudo isso, são legados de europeus vigentes na tradição religiosa popular
de Maracás.
Sobre o legado dos indígenas, que aqui viveram há muito tempo,
deixaram influências que repercutiram na religiosidade do povo de Santo. 34

Como por exemplo, a simbologia com os encantados de índios, pela


presença da jurema nos cultos. Segundo Cascudo (1951), a jurema é uma
árvore do sertão, com espinhos, da qual se extrai uma bebida capaz de
provocar o sono e o êxtase. Elas são plantas da família das leguminosas
mimosáceas que brotam nas caatingas do nordeste. Suas sementes,
cascas e raízes ainda são utilizadas na fabricação de bebidas e banhos para
tratamento espirituais. Muitos são os estudiosos do culto à Jurema que
apontam uma origem indígena ao rito 23. Entre esses, Bastide (1971) que
cita Luiz da Câmara Cascudo e Gonçalves Fernandes.
A relação dos povos indígenas com esta planta foi reelaborada com
a chegada dos colonizadores ao Brasil, mas ainda se preservou a “magia”
espiritual dessa árvore, tão comum ao sertão nordestino e ao município
de Maracás. A representação da Jurema é, ao mesmo tempo de força e
misticismo, capaz de transcender a outros mundos. É “nos pés da Jurema”
que se depositam os “trabalhos de cura”, pois são entendidos como local
de energia. O seu valor simbólico é representado desde a raiz, às folhas
para os cultos e os trabalhos realizados nos terreiros.
Encontramos a figura simbólica de uma “cabocla Jurema” que é
representada por uma índia encantada, a qual está presente em muitas
23
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Editora da USP, 1971. p. 244.
casas. Essa cabocla traz proteção e lida com trabalhos de cura. Em alguns
terreiros ela aparece em escultura, em outros por desenhos e fotos. Há
algumas casas, que chegam a dedicar a ela, fios de contas 24 e, os atribui
um valor sagrado, de modo que, não são todas as pessoas que os podem
tocar. 35

A influência de tradições indígenas é também, representada, pelo


uso dos maracás25: “um cilindro de madeira ou cabaça, oco e com pedras
pequenas em seu interior” (NASCIMENTO, 2014: p. 33). O seu ritmo,
durante os ritos, é muitas vezes acompanhado pela dança das pessoas
incorporadas por Caboclos e Encantados no barracão, acompanhados do
arco e flecha que além de compor o espetáculo da dança e da música,
ornamentam juntamente com folhas, flores e frutos, o altar devotado aos
índios.
A sacralização dos índios, em terreiros por nós visitados, se
manifesta numa espécie de força guerreira. Ora caçador que conhece bem
a terra, ora dotado de força e coragem que impede maldades,
enfrentando o que for preciso enfrentar. Como podemos notar na
transcrição da seguinte “cantiga”:

“O velho caboclo índio


Ele não guarda segredo
Ele tem a testa grande
Testa de quebrar lajedo“ 26.
24
Contas, ou guias para a Umbanda, são colares feitos de missangas nas cores do caboclo ou orixá que
têm um significado simbólico importante para o povo de santo.
25
O maracá era um instrumento usado por índios guerreiros, encontrados por essa região do sertão
baiano, que assim ficaram conhecidos, por conta do uso desse instrumento.
26
Cantiga proferida para um caboclo de índio no Terreiro do Pai Zé Pezão, o campo faz parte de nossas
pesquisas de mestrado no Programa de Relações Étnicas e Contemporaneidade – PPGREC/UESB, Jequié
Na manifestação dos caboclos de índios, os filhos de santo usam o
cocá e outros adereços confeccionados com penas. As entidades mais
cultuadas neste universo de representação são: “Pena Branca”, “Sutão das
Matas”, “a cabocla Jurema”, “o índio tupinambá” e “Pele vermelha”, esses 36
dois últimos caboclos se manifestam, até então, apenas na casa do Pai Zé
Pezão, provavelmente por influência da Umbanda paulista, vez que este
zelador saiu de Maracás já iniciado e residiu por algum tempo na Cidade
de São Paulo.
As bebidas a base de ervas, tidas como medicinais; as imagens e
fotos de índios como símbolo de amuleto de proteção dentro de uma
casa; o culto à cabocla Jurema e a outras entidades compõe o panteão dos
Caboclos e Encantados, que por mais estilizados que pareçam, são
interpretados e povoam o imaginário dos adeptos destas tradições. Isso
deve ser entendido enquanto legado dos indígenas que habitaram a
região onde hoje se localiza o município Maracás.
O legado africano nos terreiros é, a priori, notado na alusão a alguns
Orixás27. Que vez por outra, aparecem nas casas e no discurso do povo de
santo da Cidade. Notamos a presença de Oxalá (muito raro, só
encontramos em dois casos), Oxóssi, Ogum, Nanã (também raro),
Iemanjá, Iansã, os Erês (chamados São Cosme e Damião) e Xangô, os

Bahia.
27
O aparecimento dos Orixás nos terreiros de Maracás, não são como entidades espirituais
manifestadas, aqui, eles aparecem apenas discursivamente e sincretizados com caboclos e encantados.
Aquela figura manifestada dos orixás, comuns às nações keto, não foi possível encontrarmos nos cultos
da cidade.
demais orixás não foram encontrados nem mencionados nas casas que
visitamos.

Considerações finais
Na pesquisa bibliográfica encontramos uma afirmação de
37
Nascimento (2014) sobre o legado banto na cidade. Embora, ele não
confirme tal influência por falta de dados empíricos, o autor nos dá pistas
sobre essas culturas na religiosidade através de dados históricos. Para
isso, recorreu às pesquisas de Evans-Pritchard:

Ao levar em consideração nossa hipótese de que há


um protagonismo banto na região sudoeste da Bahia,
as análises de Evans-Pritchard são muito reveladoras.
Sua pesquisa foi publicada inicialmente em 1937, fruto
de uma longa pesquisa localizada no Sudão e no
Nordeste do Congo, na África, durante a década de
1920 [...]. O mais interessante nas análises de
Pritchard (2005: p. 255) é mostrar que “os ritos
mágicos não formam um sistema coerente e não há
nexo entre um rito e outro. Cada um é uma atividade
isolada de modo que eles todos não podem ser
descritos de uma forma ordenada (NASCIMENTO,
2014: p. 49).

E completa afirmando que “não se pode esperar dos curandeiros


existentes no sudoeste baiano nenhum tipo de coerência coletiva de
práticas”.28
Nos terreiros dessa cidade, realmente não encontramos uma
estrutura coerente entre as casas. O que nos parece, e o que pudemos

28
NASCIMENTO, 2014, p.50
deduzir a partir de algumas entrevistas aos sacerdotes, é que cada pai ou
mãe de santo segue uma tradição pautada em moldes particulares.
Observamos razões diversas para os ritos nos terreiros que se
diferenciavam uns dos outros no que tange a uma organização lógica
coletiva. Mas, obviamente, que a importância da presença do boiadeiro e 38

demais caboclos se davam de forma similar entre as casas, os pais e mães,


curador e seus respectivos filhos de santo.
Outros fatores pelos quais identificamos o legado africano dos
povos bantos nos terreiros de Maracás é o uso das mãos para tocar os
atabaques, tradição comum nos Candomblés de nação Angola. Porém,
como afirmamos anteriormente, diferentemente dessas tradições, nestes
terreiros os Orixás não são os protagonistas. São os caboclos (boiadeiro,
preto-velho, índios) que assumem a principal importância nos rituais.
Observamos em algumas casas, alusão a “negra ou negro nagô”.
Essas entidades são sincretizadas com o Orixá de origem Jejê, Nanã. A eles
são atribuídos um significado de cautela e medo, o sentido de quem tudo
sabe e tudo vê, por terem vindo de um local de caráter exótico. Assim,
essa entidade representa a figura da feiticeira e feiticeiro que trouxe de
longe conhecimentos perigosos que nem todos podem lidar. Fato, que
indica a naturalidade dos caboclos e o exotismo dos orixás.
A pesquisa que realizamos, ao tomar os fenômenos aqui
apresentados e os relacionar à categoria “candomblés do sertão”,
possibilitou a produção deste artigo visando contribuir com os estudos e
discussões sobre religiosidade popular no sertão baiano.
REFERÊNCIAS

AGUIAR, Itamar Pereira de. As Religiões afro-brasileiras em Vitória da


Conquista: caminhos da Diversidade. Dissertação (Mestrado) –
Apresentada sob a orientação da Dr. Josildeth Gomes Consorte na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1999.
39
__________. Os candomblés do sertão: a diversidade religiosa afro-
indígena-brasileira. Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade
Eça de Queiros, ISSN 2179-9636, Ano 2, nº 5, março de 2012.

__________. O Caboclo Boiadeiro: o ser dos pastos sujos. In: NEVES,


Erivaldo Fagundes (org.). Sertões da Bahia. Salvador: Editora Arcádia,
2011. p.p. 671-709.

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Livraria


Pioneira editora. Editora da Universidade de São Paulo, 1971.

BRAGA, Júlio. Cadeira de ogan e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pallas,


2005.

BRANDÃO, Maria do Carmo; RIOS, Luís Felipe. O catimbó-jurema do


Recife. In: PRANDI, Reginaldo (org). Encantaria brasileira: o livro dos
mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004. p.p. 160 -
181.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Ed.


Perspectiva 1998.

CASCUDO, Luiz da Câmara. Meleagro: depoimento e pesquisa sobre a


magia branca no Brasil. Rio de Janeiro: Agir, 1951.

CONSORTE, Josildeth Gomes. Sincretismo, anti-sincretismo e dupla


pertença em terreiros de Salvador. In. Negrão, Lísias Nogueira (org.).
Novas tramas do sagrado: trajetórias e multiplicidades. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, FAPESP, 2009.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2014.

HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1997.

NASCIMENTO, Washington Santos. Africanos e negros na Região Sudoeste


da Bahia: histórias, culturas e influências. In: Santana, Marise de (org.). 40
ODEERE: formação docente, linguagens visuais e legado africano no
sudoeste baiano. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2014, p. p. 29-59.

NEVES, Erivaldo Fagundes. Curraleiro, crioulo, peduro: a pecuária como


fator da formação socioeconômica do semiárido. In: NEVES, Erivaldo
Fagundes (org.). Sertões da Bahia. Salvador: Editora Arcádia, 2011. p. p.
253-281.
ORTIZ, Renato. A morte Branca do Feiticeiro Negro: umbanda e sociedade
brasileira. 2ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999.

PRANDI, Reginaldo. Introdução. In: PRANDI, Reginaldo (org.). Encantaria


brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro:
Pallas, 2004. p. p. 7-9.

PRANDI, Reginaldo; VALLADO, Armando; SOUZA, André Ricardo de.


Candomblé de caboclo em São Paulo. In: PRANDI, Reginaldo (org.).
Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de
Janeiro: Pallas, 2004. p. p. 120-145.

SANTOS, Jocélio Teles. O dono da terra. Salvador Letras, 1995.

SENNA, Ronaldo de Salles. Jarê: uma face do candomblé; manifestação


religiosa na Chapada Diamantina. Feira de Santana: UEFS, 1998.

SILVA, Marina Helena Chaves; MOTA, Valeria Lessa. Festa de São João em
Maracás: as velhas tradições se mantêm. In: Lemos, Maria Teresa Toribio
Brittes; BAHIA, Luiz Henrique Nunes (orgs.) Percursos da Memória:
construções do imaginário Nacional. Rio de Janeiro: UERJ, NUSEG, 2000. p.
p. 175-180.
SILVA, Marina Helena Chaves. E eis que chegam os Alemães! Alteridade e
Memória em Maracás. Dissertação (mestrado em memória social e
documento) – Universidade do Rio de Janeiro e Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia. Jequié, 2001.

PHILIPPE, Poutignat; STREIFF-FERNART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade


seguido de Gupos Étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: 41
Editora da UNESP, 1998.
TRATADOS COM O “DIABO”: ANÁLISE DO INICIO DA
SEGUNDA GUERRA MUNDIAL A PARTIR DA DIPLOMACIA
NAZISTA

Jean Marcos Bonatto1


1

Resumo
Os documentos diplomáticos como fonte histórica proporcionam ao historiador
diversos caminhos para abordagem da pesquisa, sejam em temas sobre economia,
política, cultura ou estudos etnográficos. Este artigo irá analisar a partir de dois fatos
da Segunda Guerra Mundial (Anschluss e Anexação da Checoslováquia) como a
diplomacia atuou nos diversos fatores que marcaram o inicio do conflito, bem como
sua correlação com o teatro das operações, e ainda como tais fatores acabaram por
alterar a Geopolítica europeia.
Palavras-chave
Diplomacia, Geopolítica, Segunda Guerra Mundial.

Abstract
The diplomatic documents as historical source provide to the historian several roads
for approach of the research, whether on issues of about economy, politics, culture or
studies ethnographic. This article will analyze starting from two facts of the Second
World War (Anschluss and Annexation of Checoslováquia) as the diplomacy acted in
the several factors that marked the beginning of the conflict, as well as the
participation in the theater of the operations, and still as such factors ended for
altering the European Geopolitics.

Keywords
Diplomacy, Geopolitics, Second World War.

1
Graduando do curso de História da Universidade Estadual do Paraná – campus de União da Vitória.
Introdução

De acordo com Clausewitz: “É perfeitamente sabido, evidentemente,


que a única fonte da guerra é a política” 2, mais do que isso, é durante a
guerra que as relações políticas se intensificam, e é da diplomacia a
2
função de “fazer política”, logo, podemos dizer que a diplomacia também
tem a função de “fazer guerra”? Ao analisarmos o contexto da Segunda
Guerra Mundial a resposta com certeza será sim, a diplomacia esteve
presente nas decisões importantes de ambos os lados, aliada a
propaganda, foi uma das – senão a mais importante – armas para
promover a guerra, foi assim nos anos que antecederam a Segunda
Guerra Mundial.

Embora muito se diga o período entre a Primeira e a Segunda


Guerra não foi uma época de paz absoluta, com destruição de enormes
parcelas da sociedade europeia de Nações e os diversos conflitos internos
na Rússia, abriram-se brechas anos mais tarde para a ascensão dos
regimes totalitaristas, não obstante, a criação da Liga das Nações veio em
conjunto com o Acordo de Versalhes para tentar manter esse momento
de “paz conturbada”.

A Liga foi idealizada em 1919 após a Primeira Guerra Mundial na


cidade de Versalhes, a Liga das Nações fora criada em função de assegurar
a paz e regular a disposição e reorganização dos territórios (tal como a
ONU foi criada após a Segunda Guerra) ela foi baseada principalmente a
partir dos Quatorze Pontos de Woodrow Wilson o presidente dos Estados
2
CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra; trad. Luiz Carlos Nascimento e Silva do Valle , p. 717.
Unidos à época, em suma, os quatorzes Pontos elaborados por Wilson
previam: abolição da diplomacia secreta, liberdade de comercio e tráfego
marítimo, eliminação das barreiras econômicas entre as nações, limitação
dos armamentos nacionais, ajuste imparcial das pretensões coloniais,
evacuação da Rússia, restauração da independência da Bélgica, restituição 3

da Alsácia e da Lorena à França, reajustamento das fronteiras italianas,


desenvolvimento autônomo dos povos da Áustria-Hungria, restauração da
Romênia, da Sérvia e do Montenegro, desenvolvimento autônomo dos
povos da Turquia, independência da Polônia, e a criação uma Liga das
Nações3.

A organização foi responsável em um primeiro momento em


elaborar o Tratado de Versalhes, e por estabelecer uma nova ordem de
potências dominantes na Europa. A Alemanha e a Rússia recusaram-se em
um primeiro momento em assinar a carta da Liga, segundo Davies 4 a Liga
era uma “promissora conquista”, não apenas na questão da segurança
internacional, mas também na ordenação das questões internacionais, de
acordo com Watson:

O Acordo de Versalhes (inclusive os tratados


acessórios e o estabelecimento da Liga das Nações) é
frequentemente contado como o primeiro ato

3
Yale University; The Avalon Project; 20th Century 1900 – 1999; President Woodrow Wilson's
Fourteen Points; in: http://avalon.law.yale.edu/20th_century/wilson14.asp
4
DAVIES, Norman. Europa na Guerra. tradução Vitor Paolozzi. Rio de Janeiro: Record, 2009,
p.158.
constituinte de auto regulação global por parte de
uma sociedade que se tornara mundial. 5

Embora os esforços malsucedidos da Liga, ela foi responsável por


promover a abertura de um diálogo entre as nações, diálogo esse que era 4
antes limitado apenas aos países potencialmente fortes e seus aliados, e
em um fluxo reduzido, digamos que a Liga foi responsável por quebrar
esse individualismo dialógico e abrir brechas para tramites diplomáticos
mais amplos e na direção das democracias.

Um dos fatores da esfera geopolítica que influenciou no inicio da


Segunda Guerra Mundial foi à dissolução da Liga das Nações. Este artigo
irá tratar dos fatos que promoveram o enfraquecimento da Liga das
Nações, principalmente o acordo de Munique que marcou o fim dos
acordos entre a Checoslováquia e os países europeus, e culminou na
intensificação do atrito entre os países, e da quebra da grande leva de
“Pactos de não-agressão” ou de mútua ajuda que tomou toda a Europa.

O jogo diplomático que pôs fim a Liga das Nações iniciou-se com as
articulações nazistas para a retomada de alguns territórios que foram
tirados dos alemães no Tratado de Versalhes, permitam me delinear aqui
os dois pontos que enfraqueceram a Liga das Nações: o Anschluss e o
Tratado de Munique ambos ocorridos em 1938, é importante frisar que tal
enfraquecimento foi provocado por países que nem sequer faziam parte
da Liga das Nações, que eram a URSS e a Alemanha, esses dois

5
WATSON, Adam. A evolução da sociedade internacional: uma analise histórica comparativa;
trad. Rene Loncan. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004, p. 391.
acontecimentos são o marco do fim da Liga, não obstante, os
acontecimentos que os precederam foram o golpe de misericórdia da
organização, Hitler usou da diplomacia para angariar esses territórios sem
que um tiro fosse disparado, as principais nações que compunham a Liga
das Nações como a França e o Reino Unido foram apáticas quanto às 5

movimentações nazistas naquele momento, somente após a tomada da


Polônia que esses países agiram reativa e diretamente.

O Anschluss (anexação) se deu na Áustria no dia 12 de março de


1938, quando o exército alemão marchou território austríaco adentro e
proclamou um chanceler nazista, muita habitantes da Áustria de
descendência germânica apoiavam a anexação, diga se de passagem o
Anschluss foi o primeiro grande passo nazista sob o território europeu. De
acordo com Shirer, Hitler já vinha alimentado a vontade de unir a Áustria a
Alemanha antes mesmo de chegar ao poder: “No primeiro parágrafo de
Minha Luta, recordemos, Hitler escrevera que “a união da Áustria com a
Alemanha era uma tarefa a ser apoiada com todos os recursos a nosso
alcance”.6, ao meu ver a Áustria era o primeiro passo importante e o mais
sensato para Hitler em 1938, pois não era hora de causar inquietação
entre as potências europeias, o momento era de extrema cautela,
naquele exato momento a Alemanha não estava preparada para um
conflito de proporções bélicas sem precedentes.

Tratado de Munique foi assinado em 29 de setembro de 1939 em


Munique na Alemanha, após uma série de reuniões envolvendo as
6
SHIRER, Willian Lawrence. Ascensão e queda do Terceiro Reich. vol. II. trad. Pedro Pomar.
5º edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1967, p.12 .
principais potências europeias, o principal motivo dessas reuniões era
decidir o futuro da região dos Sudetos 7 na Checoslováquia, que estava
sendo requerida pelo partido nazista da Alemanha que alegava que aquele
território era de etnia predominantemente alemã, a Checoslováquia por
sua vez nem fora convidada a participar das reuniões, apenas compareceu 6

para receber o veredito, que foi favorável a Alemanha. O fato ficou


conhecido pelos Checos como a “traição de Munique”, pois quebrou uma
série de tratados de mútua ajuda entre a Checoslováquia e países que
participaram da reunião como a França e o Reino Unido, foi nessa ocasião
o primeiro ministro Britânico Neville Chamberlain falou a famosa frase
“paz para o nosso tempo”, ele se referia ao acordo alcançado em Munique
no dia 29 de setembro de 1938, Chamberlain se pronunciou no aeroporto
no dia seguinte ao acordo quando voltava da ultima reunião do tratado.
Mal sabia ele que fatidicamente estava sendo enganado.

Vale frisar que a permanência do Reino Unido e da França como


potências militares estava intimamente ligada ao controle da Liga das
Nações, embora a Liga fosse apenas uma organização simbólica, sem
instrumentos de coerção direta, quando a Liga ruiu frente às potências
emergentes os dois países também se enfraqueceram politicamente, e
não teriam potencial econômico muito menos militar para sustentar uma
agressão direta da Alemanha, a troca de acordos era constante entre os
países europeus, pois não se sabia o que poderia encontrar além das
demarcações de seu país, e embora Woodrow Wilson tivesse elencado

7
Sudetos ou Sudetolândia: região noroeste da extinta Checoslováquia onde se localizava a
Boemia e a Moravia, a região era de etnia predominantemente germânica.
logo no primeiro de seus Quatorze Pontos, que a diplomacia secreta
deveria ser abolida, isso acontecia com frequência, principalmente nos
três anos que precederam a Segunda Guerra Mundial.

7
Primeiro passo: a Áustria

O espírito de Dollfuss 8 já não atormentava mais Adolf Hitler, que


vivia dias de euforia e dias de cólera, os ventos sopravam a seu favor, o
cenário diplomático não era nada favorável para a Áustria, o chanceler
Alemão expressou isso diretamente para o chanceler austríaco
Schuschnigg em uma reunião promovida por Von Papen para decidir o
futuro da Áustria 9 segundo o chanceler alemão a Inglaterra, que, diga-se
de passagem, tinha o papel de “promotora da ordem” europeia fora
apática, a Itália já havia estabelecido as alianças com os países do eixo e
não tinha do que discordar, e a França poderia lhe ter detido na Renânia,
mas não o fez, Hitler estava mais confiante que nunca, a Áustria estava a
um passo de ser varrida do mapa, a Liga das Nações tomada pela apatia
de seus padrinhos começa então a definhar.

Áustria era um prato cheio para o Estado Alemão, muitos fatores


facilitavam a anexação, um dos mais marcantes fora que boa parte da
população era de descendência germânica, tal como Hitler. Vale ressaltar
também que a Áustria reunia uma pluralidade de etnias devido às diversas
modificações territoriais, a julgar pelos fatores geográficos, a Áustria era

8
Chanceler austríaco assassinado pelos nazistas em junho de 1934.
9
Op. Cit. p. 77.
um lugar de posicionamento estratégico caso alguma agressão fosse feita
futuramente a Checoslováquia. Na perspectiva alemã ganhava-se livre
acesso a Itália caso precisasse deslocar rapidamente um exército para lá. A
Suíça seria um território considerado ganho, pois ficaria entre os dois
gigantes: Alemanha e Itália, e a Áustria seria uma primeira fonte de 8

exploração econômica para alavancar uma máquina de guerra. Além do


mais, a Europa era como um castelo de cartas que Hitler começara a
desmontar geopoliticamente pelo topo. Não precisaria ser nenhum
estrategista meticuloso, ou um Gênio Militar ao modelo de Clausewitz
para saber que a Áustria e a Checoslováquia deveriam ser incorporadas
primeiro, visto que, tudo estava a favor do Regime Alemão: A geografia, a
geopolítica, as relações exteriores, a propaganda, o contingente humano,
os artefatos bélicos, e perder essas oportunidades seria um fracasso
imensurável na perspectiva da liderança de Adolf Hitler.

A Alemanha anexou a Áustria, quebrando o tratado Saint-Germain-


en-Laye firmado entre os participantes da Liga e a Áustria que previa que a
Áustria e a Alemanha não poderiam se unir10, não obstante, essa vontade
que Adolf Hitler tinha de anexar a Áustria já estava expresso no Programa
do Partido Nazista: “Exigimos que o povo alemão deve ter direitos iguais
aos de outras nações; e que os Tratados de Paz de Versalhes e St. Germain

10
Art. 88: A independência da Áustria é inalienável, exceto com o consentimento do Conselho
da Liga das Nações. Consequentemente Áustria compromete-se, na ausência de
consentimento do referido Conselho a abster-se de qualquer ato que pode, direta ou
indiretamente, ou por qualquer meio que seja comprometer a sua independência, em particular,
e até a sua admissão como membro da Liga das Nações, pela participação na assuntos de
outro poder.
devem ser revogados.”11. Não é de se espantar que a Áustria assim como a
Polônia e a Checoslováquia estivesse na mira dos Nazistas muito antes das
movimentações diplomáticas do agora Chanceler Alemão mostrando suas
intenções.
9

Ensaio para a traição

Com a Áustria sob seu controle, a atenção alemã se volta para a


região dos Sudetos, o objetivo agora era esmagar politicamente os
Checos, as pretensões do chanceler nazista caminhavam a passos largos. A
guerra estava mais perto do que se imaginava, 1938 foi o ano em que as
tensões politicas se deram com mais força, o Estado Alemão começara a
promover hostilidades diplomáticas a fim de gerar conflitos internos nos
países onde prevalecia a maioria alemã, a Áustria foi a primeira, logo seria
a vez da Checoslováquia.

Provavelmente o acordo de Munique não ocorreu por acaso, e as


cláusulas não foram criadas do dia para a noite, a Alemanha já havia
esboçado um ataque a Checoslováquia, tal como aconteceu no ataque a
Áustria. O próprio Adolf Hitler já previa que isso aconteceria em 1938 e as
mobilizações favoráveis ao partido nazista já ocorriam na região, Shirer
aponta que o principal intermediador do partido nazista com os alemães
na região dos Sudetos era o S.D.P. (Partido Sudeto Alemão), e como seu
mentor Konrad Henlein, Henlein teria se reunido com Hitler, Ribbentrop e

11
Segundo fundamento do Programa do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores
Alemães in: http://avalon.law.yale.edu/imt/nsdappro.asp
Hess após o Anschluss, e segundo Shirer, Hitler teria resumido a reunião
com a seguinte frase: “Devemos continuar exigindo tanto, de modo a que
jamais possamos ser atendidos”, não era de se esperar essa atitude de um
hábil estrategista como era o chanceler alemão em que cada passo era
milimetricamente estudado. No caso de avanço sobre a Checoslováquia 10

houve uma última tentativa da França e Grã-Bretanha em esfriar os


ânimos nazistas.

O documento do tratado em si é bem objetivo, a preocupação das


nações envolvidas não estava ligada ao destino da Checoslováquia e sim
da demarcação dos territórios, as demarcações etnográficas, e as datas
em que uma evacuação aconteceria, e por parte da Alemanha, que a
Checoslováquia preservar-se a integridade das instalações, e que fossem
libertos os prisioneiros acusados de crimes políticos:

Cláusula 2: O Reino Unido, França e Itália concorda


que a evacuação do território deve estar concluída até
10 de outubro, sem quaisquer instalações existentes
tendo sido destruídos, e que o Governo da
Checoslováquia será responsável pela realização da
evacuação sem danificar as referidas instalações.

Cláusula 8: (...) o Governo da Checoslováquia vai


dentro do mesmo período libertar prisioneiros
alemães dos Sudetos que estão servindo penas de
prisão por delitos políticos12.

As cláusulas do acordo falam por si só, a Alemanha era objetiva nos 11


requerimentos, as demais potências sem objeções cederam os Sudetos,
era o preço a ser pago pela paz, pois não tinham meios de conter a
Alemanha naquele momento. Pode-se deduzir que a Checoslováquia foi
para os países que assinaram o acordo, uma forma de testar a sensatez de
Hitler, uma forma de conhecer de fato com quem se estava tratando, e foi
ingenuamente por esse motivo que Chamberlain estava confiante de que
a “paz para o nosso tempo” fora assegurada com aquele tratado.

Como nos mostram as atas das reuniões da Comissão Internacional,


no início da invasão a Checoslováquia tinha dois problemas para se
preocupar: as demarcações etnográficas e a propaganda “anti-Checa”
promovida pelos nazistas. O encarregado da Checoslováquia de compor a
Comissão Internacional até tentou sanar esses problemas, mas produziu
pouco efeito. Quanto à propaganda ele ainda tentou dialogar com os
ministros das relações exteriores dos países que exerciam influência sobre
o Reich, de pouco adiantou, a propaganda nazista continuou até a
incorporação total da Checoslováquia, segundo o encarregado da
Checoslováquia a propaganda “dificulta a execução do Acordo

12
Yale University; The Avalon Project; 20th Century 1900 – 1999; Munich Pact, September 29,
1938. in: http://avalon.law.yale.edu/imt/munich1.asp
de Munique” 13, vemos que a execução do tratado o mais rápido possível
também era um desejo dos Checos, visto que eles queriam assegurar o
que lhes restou do território, ficando também, a espera de uma possível
defesa por parte dos “traidores” caso alguma hostilidade fosse cometida
pela Alemanha, embora, é evidente que nem França nem o Reino Unido 12

interviriam.

Notadamente, vemos que ao analisar as atas das reuniões que


engendraram a execução do acordo que ambas as nações que
participavam do mesmo pouco se importavam com o destino dos Sudetos,
e que os acordos antes tratados com a Checoslováquia pouco valiam, pois,
mesmo sem a chegada do representante da Checoslováquia na primeira
reunião da comissão internacional, que definiria como se daria a anexação
dos Sudetos ao Reich, o presidente da comissão internacional já fora
escolhido. Sendo este escolhido o Ministro das Relações Exteriores do
Reich Ernst von Weizsäcker, e as nações participantes já concordavam em
iniciar os trabalhos, a proposta talvez fosse entregar os Sudetos
rapidamente, como previsto na segunda cláusula: O Reino Unido, França e
Itália concorda que a evacuação do território deve estar concluída até 10
de outubro14

As apreensões se voltaram todas para a invasão, qualquer


hostilidade por parte do exército alemão seria visto como um sinal verde
para a guerra, entretanto, por mais apreensivas que estivessem as nações,
13
Telegrama do Encarregado de Negócios da Checoslováquia ao Ministério das Relações
Exteriores No. 523 de 30 de Setembro
14
Yale University; The Avalon Project; 20th Century 1900 – 1999; Munich Pact, September 29,
1938. in: http://avalon.law.yale.edu/imt/munich1.asp
a apatia ainda tomava conta. Hitler não hesitou, seis meses após a
invasão aos Sudetos, incorporou o que restou da Checoslováquia.

Nas reuniões da Comissão Internacional, Weizsäcker tentava a


príncipio promover uma política que apaziguasse as tensões e a mágoa
13
dos Checos para com os traidores, segundo Ritter, Weizsäcker expressou
na primeira reunião que as deliberações “deveriam ser conduzidas num
espirito de amizade e reconciliação” 15 o momento era delicado, a Liga das
Nações dependia do bom senso dos nazistas. Após a Incorporação da
Checoslovaquia as ações de Hitler e o exercito alemão já teria
reconstituido a Alemanha tal como era antes da Primeira Guerra, só
restaria o corredor polaco16, mas as ambições territoriais nazistas estavam
longe de acabar.

Essas frequentes hostilidades diplomáticas vieram a enfraquecer


ainda mais a Liga das Nações, e naquele cenário o quadro se revertera,
não teria mais utilidade uma sociedade elaborada por “vencedores”,
vencedores esses que demarcaram as fronteiras, sem analisar mais a
fundo quais eram as reais demarcações geopolíticas, levando em
consideração também as etnias que prevaleciam naquelas regiões.

Fora a má formulação do tratado de Versalhes e da Liga das Nações


que acendeu o ódio nos países vencidos, e abriu brechas para o
totalitarismo, que acabou exacerbando o modo de governar e

15
Ata da Nona Reunião da Comissão Internacional, 21 de novembro de 1938.
16
Estreita faixa de terra (que explica a expressão “corredor”) situada ao noroeste da Polônia,
que foi tirada da posse da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, essa faixa de terra ligava
a Alemanha aos países Bálticos.
estimulando os conflitos, não obstante, a Alemanha tinha a sua frente um
homem que as pretensões iam além da justiça que se queria promover. A
capacidade da Alemanha e seu Führer de articular defesa e promover
ataques, tanto no âmbito militar quanto no diplomático era
surpreendente, todos esses aspectos, ligados aos erros do passado 14

levaram a Europa ao colapso.

O cenário antes da Segunda Guerra nos mostra como se


encaminhou a política dali em diante, as pessoas da época já projetavam o
futuro recente que estava por vir, então, a guerra àquela altura era
inevitável? Sim, se partimos do pressuposto político, conforme observado
por Clausewitz, “Se a guerra é parte da política, esta determinará o seu
caráter”, a política da época era propensa ao inicio de um conflito, a
sociedade era marcada por um histórico de guerras globais, de várias
modificações territoriais e etnográficas, aliadas ainda a fortes crises
econômicas e a regimes que suprimiam os direitos dos homens, a Europa
era um lugar de recortes etnográficos irregulares, podemos dizer então
que a guerra àquela altura era a única solução para os problemas
mundiais? Barbara Tuchman em seu livro A Torre de Orgulho toma a
afirmação de Charles Péguy para explicar os motivos político-sociais pelos
quais os conflitos acontecem:

Quando rebenta uma grande guerra ou uma grande


revolução, é porque um grande povo, uma grande
raça precisa explodir, e isso porque tem qualquer
coisa a mais, sobretudo paz a mais. Isto se traduz
sempre numa enorme massa que sente e sofre uma
necessidade violenta, uma misteriosa necessidade de
uma atitude gloriosa... uma repentina sede de gloria,
de guerra, de fazer historia, que corresponde a uma 15

explosão, a uma erupção...17

Mesmo que muitos a abominem, a guerra poderia ser o fim para os


problemas, para os genocídios contínuos, a guerra seria o pretexto para
que a sociedade mundial olhasse para o mundo tal como se encaminhava
para o abismo, é cedo para se dizer, mais a Segunda Guerra, quando vista
a posteriori, pode ter evitado uma catástrofe de proporções ainda
maiores, a Alemanha se agigantaria cada vez mais se não fosse impedida
naquele momento.

A diplomacia tem um papel ainda maior e mais importante durante


um conflito do que se imagina, vão além de correspondências, reuniões de
gabinete, telegramas, entre outros modos que se manifesta, a diplomacia
é mais do que meramente “rasgação de seda” ou um campeonato de
“tapas de luva”, a diplomacia como instrumento da política é fundamental
na vida social e econômica da população mundial, um bom diplomata é
aquele que atinge os objetivos conforme as pretensões de sua nação,
quaisquer sejam as medidas que tenham que serem tomadas.

17
TUCHMAN, Barbara W. A torre do orgulho: um retrato do mundo antes da Grande Guerra,
1890-1914; trad. João Pereira Bastos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 232.
Na diplomacia não há mocinhos nem bandidos, mais sim, pessoas
cujas ações levam em consideração os interesses de sua própria nação,
apropriar-me-ei das palavras de Norman Davies como forma de
interpretação da “paisagem moral” das ações diplomáticas:
16

Todos os julgamentos morais firmes funcionam com


base em que os padrões aplicados a um dos lados de
uma relação devem ser usados para todos os lados.
Não é aceitável que certos atos de uma parte menos
favorecida possam ser condenados como “assassinato
abominável” enquanto atos semelhantes de uma
parte mais favorecida possam de algum modo ser
desculpados ou ignorados18.

O estudo da diplomacia como fonte histórica é privilegiado, pois nos


fornece uma vasta documentação. Neste trabalho pude constatar como a
diplomacia atuou mais fortemente em três fatores durante a Segunda
Guerra Mundial: na política, na economia e no meio social em geral.
Fossem em negociações econômicas como nas correspondências trocadas
entre nazistas e soviéticos sobre as indústrias Skoda que nações de
ideologias opostas dialogaram por um interesse em comum, ou fossem
em propósitos de demarcações etnográficas, como ocorreu nas anexações
dos Sudetos e da Áustria pelos nazistas, a diplomacia teve um papel
fundamental nos fatos que norteiam a Segunda Guerra Mundial.

18
DAVIES, op. cit. p. 81
Fontes:

Yale University http://www.yale.edu/. The Avalon Project: documents in


Law, History and Diplomacy. 20th Century Documents, 1900 – 1999:
17
The Munich Pact and Associated Documents. Retiradas do endereço
digital: http://avalon.law.yale.edu/subject_menus/munmenu.asp

Mutual Agreement Between the United States and the Union of Soviet
Socialist Republics : June 11, 1942. Retirado do endereço digital:
http://avalon.law.yale.edu/20th_century/wwii/amsov42.asp

Nazi - Soviet Relations 1939-1941 : Documents from the Archives of the


German Foreign Office. Retiradas do endereço digital:
http://avalon.law.yale.edu/subject_menus/nazsov.asp

The Treaty of Versailles; June 28, 1919. Retirado do endereço digital:


http://avalon.law.yale.edu/20th_century/imt/menu.asp

Tripartite Pact, September 27, 1940. Retirado do endereço digital:


http://avalon.law.yale.edu/20th_century/wwii/triparti.asp

Woodrow Wilson's Fourteen Points; 1918. Retirada do endereço digital:


http://avalon.law.yale.edu/20th_century/wilson14.asp

World War II - Documents; 1940-1945, Retirados do endereço digital:


http://avalon.law.yale.edu/subject_menus/wwii.asp

Treaty of Saint-Germain-en-Laye. Retirado do endereço digital:


https://en.wikisource.org/wiki/Treaty_of_Saint-Germain-en-Laye

Bibliografia
BOBBIO, Norberto, Dicionário de política I Norberto Bobbio, Nicola
Matteucci e Gianfranco Pasquino; trad. Carmen C. Varriale et ai.; coord.
trad. João Ferreira; - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1 la ed.,
1998.
18
BOBBIT, Philip. A guerra e a paz na historia moderna: o impacto dos
grandes conflitos e da política na formação das nações. Tradução de
Cristiana Serra. Rio de Janeiro: Campus, 2003.

CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra; trad. Luiz Carlos Nascimento e Silva do


Valle. versão digital.

DAVIES, Norman. Europa na guerra. Tradução Vitor Paolozzi. Rio de


Janeiro: Record, 2009.

KEEGAN, John. Uma historia da guerra. trad. Pedro Maia Soares. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.

MASSON, Philippe. A Segunda Guerra Mundial: história e estratégias. 1ª


ed. São Paulo: Contexto, 2014.

SHIRER, William L. Ascensão e Queda do III Reich. Tradução Leônidas


Gontijo de Carvalho. 5º ed. vol. I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1964.

SHIRER, William L. Ascensão e Queda do III Reich. Tradução Leônidas


Gontijo de Carvalho. 5º ed. vol. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1964.
SHIRER, William L. Ascensão e Queda do III Reich. Tradução Leônidas
Gontijo de Carvalho. 5º ed. vol. III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1964.

SHIRER, William L. Ascensão e Queda do III Reich. Tradução Leônidas


19
Gontijo de Carvalho. 5º ed. vol. IV. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1964.

TUCHMAN, Barbara W. A torre do orgulho: um retrato do mundo antes da


Grande Guerra, 1890-1914; tradução João Pereira Bastos. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1990.

WATSON, Adam. A evolução da sociedade internacional: uma analise


histórica comparativa. Tradução René Loncan – Brasília: Editoria
Universidade de Brasília, 2004.
INVENÇÃO E CONQUISTA: A DESMITIFICAÇÃO DA
DESCOBERTA DA MESOAMÉRICA EM EDMUNDO
O’GORMAN E TZVETAN TODOROV

Jessica Caroline de Oliveira 1


Lucas Padilha
Michel Kobelinski

Resumo: Ao realizarmos estudos sobre a história da Mesoamérica, logo nos


remetemos ao mito fundador e integrador deste espaço à cultural ocidental: a viagem
de 1492 de Cristovão Colombo, o qual oficializou o descobrimento das terras que
passariam a compor o que conhecemos como América. Nesta acepção, esta breve
apresentação objetiva refletir sobre a forma como se consolidou o emprego do termo
“descobrimento” dentro da historiografia e, deste modo, desconstruir essa ideia
através da análise das obras “A Conquista da América: a questão do outro”, de
Todorov e “A Invenção da América”, de O’Gorman. (1992) Buscando trabalhar com as
perspectivas conceituais de “invenção” e “conquista”, demonstrando como a história
da América foi inventada pelos espanhóis com o uso de relatos e manuscritos que,
mesmo contraditórios, traziam em sua literatura os elementos necessários para
compor uma justificativa espanhola frente ao acontecimento histórico. Vale ressaltar
que diferente dos demais continentes, a América inaugura a noção de
“descobrimento”, além disso, rompe com o imaginário e os medos que imperavam em
uma sociedade fortemente influenciada pela religiosidade, fato observável na
cartografia e nos discursos até então empregados. Neste sentido, demonstrar-se-á
também, como a ideia de “conquista” é aplicada ao contexto mesoamericano, através
do contato e da ação espanhola frente aos nativos americanos, possibilitando uma
reflexão de como o eu e o outro eram percebidos dentro de cada civilização. Além de
O’Gorman (1992) e Todorov (1998), serão empregados no debate historiográfico como
autores Gruizinski (2006) e Wolosky (2012).

Palavras-chave: Descobrimento. Invenção. Conquista.


INVENTION AND CONQUEST: DEMYSTIFYING THE DISCOVERY OF MESOAMERICA IN 2
EDMUNDO O’GORMAN AND TZVETAN TODOROV

Abstract: During our studies about Mesoamerica History, we were soon led to the
foundation myth that made this region join the western culture: the voyage of
Christopher Columbus in 1492 that formalized the discovery of the lands that
nowadays we know as America. In this sense, this brief presentation wants to
speculate about how the term “discovery” was consolidated in the historiography and,
thus, deconstruct this idea through the analysis of the books “The Conquest of
America: The Question of the Other” by Todorov (1998) and “The Invention of
America”, by O’Gorman (1992). Seeking to work with the conceptual perspectives of
“invention” and “conquest” demonstrating how the History of America was invented
by the Spanish using reports and manuscripts that, even self-contradictory, bring in
their literature the necessary elements to justify the Spanish actions in this historic
event. It is worth mentioning that, different than the other continents, America
inaugurates the notion of “discovery”, furthermore, it ends the imaginary and the fears
that prevailed in a society strongly influenced by religion, this fact can be observable
on the maps and discourses used at the time. In these terms, it is going to be
demonstrated how the idea of “conquest” is applied in the Mesoamerica context,
through the contact between the Spanish and the Native Americans, allowing to
discuss how myself and the other were understood by both civilizations. besides
O'Gorman (1992) and Todorov (1998), authors such as Gruizinski (2006) and Wolosky
(2012) are going to be employed on this debate.

Key words: Discovery. Invention. Conquest.

INTRODUÇÃO
Ao refletir sobre os aspectos que a historiografia utilizou para
edificar o que se conhece como história da América, logo se remete a ideia
de “descobrimento”, bem como, a viagem rumo às Índias em 1492, tendo
como figura principal deste fato histórico Colombo. Nesta acepção,
baseando-se nos autores O’Gorman (1992) e Todorov (1998), pode-se
3
perceber que anseios e intenções particulares e exteriores à Colombo
fizeram com que ele lançar-se ao ultramar, todavia, constituem elementos
que não são apontados no que pode-se chamar de “descobrimento”,
“oficialização” ou “mito fundador” da América. Nesta acepção, fez-se a
leitura das obras “A Conquista da América: a questão do outro”, de
Todorov (1998) e “A Invenção da América”, de O’Gorman, (1992) em que,
cabe salientar que ambos os autores já superaram a concepção de
“descobrimento” da América e, portanto, não fazem uso deste termo.
O’Gorman (1992) tem em seu título a palavra “invenção”, extremamente
adequado à sua obra, pois ele discorre sobre como a América foi de fato
inventada pela historiografia espanhola. Ao passo que, em Todorov
(1998), observamos a “conquista”, portanto, o processo que a
Mesoamérica sofreu com a chegada dos espanhóis e as ações destes para
obter a supremacia desse “novo continente”, por isso o termo
“conquista”.
O objetivo deste trabalho é, portanto, realizar um estudo
comparativo entre O’Gorman (1992) e Todorov, para se analisar os dois
tipos de estruturalismo que podemos encontrar em suas obras. O’Gorman
(1992) se utiliza de uma forma de Estruturalismo “historicizado”, como
nos diz WOLOSKY (2012):
Este último estructuralismo “historizado” no se limita a
edificar estructuras inconscientes, sino que introduce, bajo
la sombra de Heidegger, una insinuación de la historicidad
del ser y del lenguaje. Es aquí donde reencontramos,
dentro del rompecabezas del saber, a Edmundo O’Gorman.
(WOSLOSKY, 2012, s/n )
4

A vertente estruturalista utilizada por Tzevtan Todorov (1998) se


utiliza da semiótica, ou seja, os símbolos e seus significados, além de
trabalhar com a psychè dos sujeitos, ou seja, a sua forma de pensar e de
como esses sujeitos se comunicam. Pode ser identificada em várias partes
de seu texto, o que será feito breve no presente trabalho. Para além disso,
será dedicado espaço no presente texto, para uma discussão acerca da
questão do eu e do outro apresentado pelos autores, como eles trabalham
suas fontes e o contexto da época.

Considera-se que este estudo é importante para demonstrar como


ambos os autores pensam a história da América, não só a partir da
chegada dos espanhóis, mas também da questão dos povos
mesoamericanos que foram vitais para esse processo, pois graças a eles
utilizam-se os termos “conquista” e “invenção” ao invés de
“descobrimento”. Os contatos de espanhóis e indígenas, o processo de
conquista e de invenção que esses contatos suscitaram e as diferentes
visões dos autores são uma importante fonte de compreensão do
processo de “construção” do que se tornaria mais tarde, a América
Espanhola.
O recorte temático dividir-se-á em dois eixos de reflexão, o
primeiro, buscando discorrer acerca dos objetivos de Colombo e seus
desdobramentos tanto na América quanto na Europa, visto que, rompe
com o que se conhecia e se possuía como verdade (reconhecimento ou
não das novas terras/Índia). O segundo momento, tratará de como foi a
5
conquista deste novo espaço pelos espanhóis, demonstrando a forma
como isto se concretizou tanto pela violência espanhola, quanto pela
mentalidade dos ameríndios em aceitar, lidar e perceber esses novos
contatos. Cabe ressaltar ao leitor que, esta análise remete pesquisa
apenas sobre como novos termos podem substituir a ideia de
“descobrimento”, visto que, são recortes específicos para os muitos
desdobramentos que as obras versam em suas literaturas.

A INVENÇÃO
Entre os vários relatos e manuscritos (também tipificados por
O’Gorman), sobre a “descoberta” da América, Todorov (1998) afirma que
diferente dos demais continentes – africano e asiático –, os mesmos não
possuíam uma “descoberta”, pois já estavam presentes em suas memórias
desde suas origens, portanto, a América inaugura a ideia de
descobrimento. Sob esse viés, ambos os autores revelam a forte influência
da mentalidade e religiosidade da época, bem como, os medos do mar,
cosmografia, a crença em monstros marinhos, sereias e outro seres
míticos, não podendo esquecer a imagem de que o oceano possuía um fim
e cairia em um grande abismo. Dessa forma, nem mesmo Colombo estava
isento deste imaginário, descreve Todorov. (1998). De acordo com o mapa
a seguir, pode-se ter uma percepção da mentalidade e dos medos que
envolviam tanto a sociedade quanto as suas produções:

Figura 1. Representa os medos e formas de expressão da mentalidade


europeia em relação ao mar.

Em sua obra, Todorov (1998) destaca que entre os motivos que


levaram Colombo a aventurar-se em novas rotas às Índias, havia a cobiça
pelo ouro e o desejo por enriquecimento. Contudo, vale salientar que,
conforme expõe o autor, Colombo sabia da “capacidade atrativa que
podem ter as riquezas”, e com a promessa do ouro, ele não só acalmava a
sua tripulação, como seduzia os seus mandatários. O’Gorman (1992)
admite essa relação entre Colombo e a Coroa Espanhola, por assim dizer,
a intenção em juntar por uma nova rota a Espanha com a Ásia, sendo
assim, recebeu patrocínio para esse arriscado empreendimento, baseado
em antigas cartografia medievais que apontavam algumas ilhas que
poderiam ser encontradas. Ainda que, declaradamente, às Índias fosse o
seu propósito inicial, o que possibilitaria um domínio sobre os Oceanos.
Em sua obra, O’Gorman (1992) lista uma série de autores que
abordam as intenções de Colombo, os quais podem-se dividir os mesmos
7
em três grupos: aqueles que consideram duvidoso/mentiroso o piloto
anônimo (relato onde se menciona que Colombo sabia a existência de
terras desconhecidas), aqueles que consideram verídico o relato do piloto
anônimo, aqueles que acreditam no providencialismo sobre o fato
histórico, afirmando que Deus conduziu Colombo à sua descoberta.
Por sua vez, Todorov (1998) apresenta que, embora o ouro tenha
exercido influência na empreitada de Colombo, o mesmo não pode ser
apontado como fim único, afinal, o autor atenta que, havia o intuito de
encontrar “o Grande Gan, ou imperador da China”, e entregar-lhe as
cartas de Sua Majestade, o que lhe propiciaria reconhecimento perante
seu soberano. Além disso, o autor argumenta sobre um anseio particular
de Colombo: a expansão da fé católica. Neste sentido, ambos os autores
discorrem sobre a questão de que Colombo considerar-se um encarregado
divino, no qual, sob a intervenção de Deus, encontrou novas terras/nova
rota à Índia. O que pode ser comprovado tanto pelos relatos em seu
Diário, apontados por Todorov (1998), quanto também por Las Casas,
arrolado por O’Gorman (1992).

A necessidade de dinheiro e o desejo de impor o


verdadeiro Deus não se excluem. Os dois estão até unidos
por uma relação de subordinação: um é meio, e o outro,
fim. Na verdade, Colombo tem um projeto mais precioso
do que a exaltação do Evangelho no universo, e tanto a
existência quanto a permanência deste projeto revelam sua
mentalidade. Qual um Dom Quixote atrasado de vários
séculos em relação a seu tempo, Colombo queria partir em
cruzada e libertar Jerusalém! Só que a ideia é extravagante
em sua época e como, por outro lado, não há dinheiro,
ninguém quer escutá-lo. (TODOROV, 1998, p.10)
8

Nesta acepção, lançar-se ultramar era uma possibilidade de


reconhecimento, legitimidade e financiamento. Todorov (1998) descreve
que havia três elementos que comprovavam que Colombo encontrara um
novo espaço terreno: “a abundância de água doce, a autoridade dos livros
santos, e a opinião de outros homens encontrados” o que revela “a
existência de três esferas que dividem o mundo de Colombo: uma é
natural, outra divina, a terceira humana”.
No que diz respeito a esta grande extensão de terra, O’Gorman
(1992), através das narrativas por ele estudadas, descreve que Colombo
pensou ter chego ao seu objetivo, ou a uma ilha próxima, do qual, acredita
ter advindo os primeiros descendentes de Kan, ou seja, Colombo via
aquilo que ele queria ver: estava na Índia. Colombo estava obstinado com
seu objetivo, portanto, mesmo que todos os indícios mostrassem que ele
estava em outro lugar, ele recusava-se a aceitar a verdade, (O’GORMAN,
1992, p. 105).
A viagem de Colombo gerou novos sentido e significados para sua
época, no qual, O’Gorman (1992) argumenta que, a partir do momento
em que homem cruzou o Oceano, o imaginário e o conhecimento cultural
foram alterados. Os discursos religiosos apontavam, até então, para a
existência de uma única e enorme ilha criada por Deus para que todos
vivessem em benevolência, sendo gratos e servos do senhor.
Esta concepção de terra única era conhecida por orbis terrarum, no
qual, a “Ilha Terra” era uma enorme extensão cercada pelo mar, sendo
assim, primeiramente, considerou-se ter encontrado a tão almejada nova
9
rota à Ásia. Conforme demonstra a imagem abaixo:

Figura 2 Orbis typus universalis no Ptolomeu de 1531 (atribuído a


Walscemuller). Duas penínsulas. O’GORMAN, Edmundo. A Invenção da
América. São Paulo: UNESP, 1992. Página 124.

Porém, com a dúvida gerada pela viagem de Colombo, essas


estruturas construídas pela igreja começaram a ser questionadas. Dessa
forma, ambos os autores afirmam que com a integração desta nova
porção de terra, foi entendida por Colombo como Paraíso, “onde ninguém
pode chegar se não for pela intervenção divina”, (TODOROV, 1998, p.17)
logo, pode-se perceber o quanto sua crença influência sobre o seu
julgamento.
Por fim, Todorov (1998) considera Colombo ausente de empirismo
10
moderno, pois ele sabia que encontraria algo, ainda que considerasse ser
um novo caminho às Índias. O’Gorman (1992) concorda com esta ideia ao
afirmar que esperavam que Colombo provasse de forma empírica e
inquestionável suas teorias e não pela sua “paixão”. Demonstrando,
assim, que não se tratava de um arquipélago, e sim de uma vasta região
de terras. Deste modo, autor ressalta que na sua primeira viagem,
Colombo se depara com a tão esperada extensão de terras, acreditando
ter alcançado a sua almejada rota, enquanto que, sua segunda viagem é
apontada como fracassada e, sua terceira viagem, encontra pessoas mais
brancas do que as até então encontradas, presença de água doce em larga
escala, o que o fez ficar sem explicações, pois não havia argumentos ou
livros da época que pudessem esclarecer sobre estas terras, restando-lhe,
apenas, encontrar semelhanças com a Costa da Ásia. Por fim, percebe
caracterizar-se por espaços desconhecidos.
À Colombo, a única explicação possível era a intervenção divina, no
qual, fizera dele um mensageiro de Deus, conforme já apontado, todavia,
sem saber-se ainda, se estava ou não conectado às terras asiáticas.
Segundo O’Gorman (1992), esta teoria além de herética, tornou-se de
difícil aceitação. Neste sentido, outras viagens foram realizadas para
tentar comprovar este raciocínio, logo a grande quantidade de terras fora
aceita e a possibilidade de ser ou não o Paraíso ainda não podia ser
negada. Um novo mundo separado do orbis da terra, incógnito pelos
antigos e desconhecido até então, marca uma diferença fundamental. Os
novos espaços terrestres tinham um nome que os individualizava, eram
chamadas de América.
11

A CONQUISTA
Chegando ao ponto do contato com os indígenas, cabe ressaltar que
esta é uma questão complexa, a qual Todorov (1998) nos dá um
panorama, enquanto O’Gorman (1992) se foca na discussão do imaginário
europeu. Os astecas foram de vital importância para essa conquista
realizada pelos espanhóis. Eles ocupavam a região onde hoje é o México,
sua capital se chamava Tenochtitlán, seu líder na época da chegada dos
espanhóis era Montezuma. Eles ocupavam um espaço que antes havia
pertencido aos toltecas, e de lá expandiram seu império, conquistando
outros povos e cobrando taxas destes. Como observa Todorov (1998), os
espanhóis pareceram aos povos dominados pelos astecas, primeiramente
como libertadores da tirania se aliando a eles para lutar contra os astecas.

As principais civilizações ameríndias são categorizadas por Todorov


(1998), assim como sua crença inicial na divindade dos invasores,
relacionada com seus respectivos sistemas de escrita. Os incas não
possuíam escrita, os astecas possuíam pictogramas e os maias tinham uma
escrita fonética. Os incas acreditaram na divindade dos espanhóis, os
astecas só por um tempo e os maias nunca, isso por que os maias já
tinham conhecido outras invasões estrangeiras, enquanto os demais
apenas dominavam os povos “menores”. Portanto, os maias já conheciam
o outro, ou seja, conheceram o estrangeiro, em um mesmo nível que o
seu eu, os outros povos, por sua vez, divinizaram, colocando o estrangeiro
como superiores ao seu eu. A esta relação de entender o eu e o outro se
dá o nome de alteridade.
12

Essa divinização dos espanhóis não se deu sozinha. É importante


notar o papel de Cortez neste processo. Com um pequeno exército, ele
consegue subjugar a grandiosa civilização asteca, mas como? Além da
superioridade tecnológica e das doenças, Todorov (1998) aponta os signos
como um dos motivos. A construção de legitimidade perante a população
local que Cortez realizou foi sem igual e teve papel fundamental neste
processo. Cortez foi o primeiro a tentar entender o outro antes de
domina-lo, para ser mais eficaz. Por exemplo, como diz Todorov (1998),
ele substituiu os ídolos indígenas por imagens católicas em seus próprios
templos, para que eles entendessem que os santos também eram
divindades. A imagem a seguir demonstra bem este fato, pois no México a
imagem foi bem aceita pelos descendentes dos índios mexicanos, pois se
tratou de uma espécie de sincretismo com a deusa asteca Coatlicue.
13

Figura 3. A Virgem de Guadalupe apresenta sincretismo com a


Deusa Asteca Coatlicue, mãe das estrelas e da lua. Elementos presentes
também na imagem da padroeira do México. GRUZINSKI, Serge. A guerra
das imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019). Trad.
Rosa F. d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Página 168.
14

Figura 4. Deusa Coatlicue antes da chegada dos europeus. Disponível em:


http://sobreleyendas.com/wp-content/uploads/2009/02/coatlicue-1.jpg Acesso em:
02 Set 2013

Esse foi um passo importante na conquista, pois como afirma


Gruzinski (2006, p.54), “as imagens do adversário são intoleráveis quando
são imagens de culto”. Além dessa, várias outras medidas foram tomadas
por Cortez para mostrar superioridade diante dos astecas. Cortez também
é muito eficaz na comunicação, manipulando as suas mensagens, de
forma a mostrar aos índios o seu poder para conseguir aliados e confundir
seus inimigos. “Cortez se apresenta simultaneamente como inimigo e
aliado, tornando impossível, ou, em todo caso, injustificável qualquer ação
de Montezuma contra ele” (TODOROV, 1998, p.54). Ele faz com que os
astecas acreditem que ele era o deus Quetzalcoatl, usando artifícios e
aproveitando-se do imaginário local para construir a sua legitimidade.
Enquanto isso, ainda no quesito do imaginário, O’Gorman (1992)
discute como foi aceita na Europa a ideia de um novo continente. O
conceito de mundo, por exemplo, que era empregado para regiões
habitadas/habitáveis por seres humanos, sendo assim, a designação de
“Novo Mundo” significa duas coisas: 1) que foi descoberta uma nova área
15
para a habitação de seres humanos; 2) Portanto, os seus habitantes
originais não necessariamente humanos.

Além dos símbolos, Todorov (1998) também analisa as formas de


comunicação e de pensar, e mais, aponta que as divergências entre esses
aspectos em astecas e espanhóis foram as principais causas da vitória
espanhola. Ao dar ouro aos espanhóis, Montezuma acreditava que estes
iriam embora, mas ele despertou ainda mais a cobiça. Ameaçando-os, ao
invés de amedronta-los causou um sentimento de vingança. Segundo as
fontes, conclui-se que os astecas também não sabiam mentir nem
dissimular, e que essas ações eram tidas para eles como atitudes cristãs.
Davam gritos de guerra e os chefes, como Cuauhtemoc usavam insígnias
reais durante a batalha. Outra das razões da vitória dos espanhóis foi seu
diferente estilo de guerra: o de devastar o exército adversário, enquanto
os índios pretendiam deixar sobreviventes para seus sacrifícios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise destas duas obras, pode-se perceber como cada
autor trabalhou a questão da construção, conquista ou invenção, da
América pelos espanhóis, possibilitando perceber que, para além de uma
história do que se apresenta sobre a Mesoamérica, há elementos que
escapam ou foram deixados de lado pela historiografia.
16

Nesta acepção, o estudo das obras de O’Gorman (1992) e Todorov


(1998) foram importantes para a percepção do eu e do outro, como
também, a possibilidade de construção de um saber histórico voltado para
a crítica e reflexão histórica, questionando, assim, a visão tradicional da
história, verdades míticas e construções respaldadas em posicionamentos
historiográficos ausentes de reflexão.

Vale ressaltar que, a temática possibilita perceber tanto a


mentalidade europeia frente à chegada à América e o questionamento a
estas estruturas mentais, quanto os mesoamericanos e suas visões de
mundo e do outro, como também, sua relevância para a escrita da
história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GRUZINSKI, Serge. A guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a Blade
Runner (1492-2019). Trad. Rosa F. d’Aguiar. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
O’GORMAN, Edmundo. A Invenção da América. São Paulo: UNESP, 1992.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: A Questão do Outro. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
WOLOSKY, Alejando Cheirif. La metodología de Edmundo O’Gorman y su 17
contexto disciplinario, Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En línea],
Coloquios, Puesto en línea el 26 junio 2012.
IMPERIAL FAZENDA DE SUA MAJESTADE O IMPERADOR:
UM ESTUDO SOBRE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO
BRASIL IMPERIAL
João Batista Correa 1
1
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar a história administrativa da Imperial Fazenda de
Santa Cruz através das gestões administrativas dos administradores e
superintendentes que passaram pela fazenda, buscando analisar suas possíveis
implicações na estrutura da fazenda e o impacto de suas medidas na população
escrava no decorrer do século XIX.

Palavra Chave: Fazenda de Santa Cruz, Escravidão, Jesuítas, Administração.

Abstract

The purpose of this article is to analyze the administrative history of the Imperial Farm
of Santa Cruz through the administrative steps of the managers and superintendents
who passed the farm, trying to analyze their possible implications for the structure of
the farm and the impact of its measures in the slave population during the century XIX.

Keyword: Farm of Santa Cruz, Slavery, Jesuits, Administration.

1
Mestrando em História do Brasil na Universidade Salgado de Oliveira – Niterói RJ. Linha de Pesquisa:
Sociedade, Cultura e Trabalho. Orientador: Carlos Engemann. E-mail jobacorrea@gmail.com
Imperial Fazenda de Sua Majestade O Imperador: Um estudo sobre a
Administração Pública no Brasil Imperial

O estudo sobre o processo de formação e ocupação da fazenda de


Santa Cruz na capitania e província do Rio de Janeiro, resultou em vários 2

trabalhos acadêmicos abordando temáticas de pesquisas como a


escravidão, economia e catolicismo. Comumente, estes estudos dividem a
história da fazenda em três períodos.
O primeiro seria a Era Jesuítica de 1589 a 1759, período no qual a
fazenda esteve sobre a administração dos inacianos, considerada um
modelo de tratamento aos escravos e bom rendimento econômico, sendo
a pecuária principal atividade econômica em todo esse ciclo. 2Um segundo
momento seria a Era Real de 1759 a 1821 3, sob administração da coroa
portuguesa e uma última etapa seria a Era Imperial de 1822 a 1889 4 sob a
tutela do império brasileiro. Poderia se falar num período republicano,
mas com o advento da república, a fazenda de Santa Cruz transformou em
Abatedouro de Santa Cruz e perdeu as principais características que a
singularizavam como uma fazenda escravista.
A Companhia de Jesus permaneceu no Brasil durante boa parte do
período colonial, com o intuito missionário de cristianização e conversão
dos indígenas, tendo grande importância na expulsão dos franceses da
Baia de Guanabara no período da administração do governador geral
Mem de Sá. Os inacianos se fixaram em vários pontos da América colonial

2
FREITAS, Benedito. Santa Cruz: Era Jesuítica 1567-1759, Volume 1. Rio de Janeiro: 1985.
3
FREITAS, Benedito. Santa Cruz: Vice-Reinado 1760-1821, Volume 2. Rio de Janeiro: 1986.
4
FREITAS, Benedito. Santa Cruz: Império 1822-1889, Volume 3. Rio de Janeiro: 1987.
espanhola e portuguesa, sendo que uma destas localizações mais
importantes da presença jesuítica foi na cidade do Rio de Janeiro, onde
fundaram o colégio de São Sebastião. A organização jesuítica funcionava a
partir de um tripé formado pelo colégio, entidade local de gerência e
controle, além de funcionar como casa dos padres e irmãos da 3

Companhia; administravam as fazendas responsáveis pelo abastecimento


e por boa parte do sustento da Companhia no Brasil; e estabeleciam o
trabalho missionário por excelência: o aldeamento.
Segundo Fridman5, os inacianos foram grandes proprietários de
terras e imóveis na capitania do Rio de Janeiro, sendo eles possuidores de
inúmeras fazendas tais como: Fazenda de São Cristóvão, Engenho Novo,
Engenho Velho, Papucaia, São Francisco, Campos do Goiatacazes e Macaé.
No entanto, a mais extensa propriedade fundiária dos padres de Santo
Inácio no Rio de Janeiro foi a fazenda jesuítica de Santa Cruz, que será o
foco deste trabalho.
Segundo Carlos Engemann, as terras que deram origem à fazenda
chegaram às mãos dos jesuítas por meio de doação, permuta ou compra. 6
A doação foi realizada por Marquesa de Ferreira, seguida de uma permuta
com sua filha Catarina. Marquesa era viúva do primeiro ouvidor-mor da
cidade do Rio de Janeiro, que recebeu as terras em sesmaria por sua
participação na expulsão dos franceses. A compra foi feita aos irmãos
herdeiros de Manuel Velloso de Espinha, ficando a monumental extensão

5
FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do Rei. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1999.p.15-30
6
ENGEMANN, Carlos. De laços e nós. Rio de Janeiro: Apicuri. 2008. p.61-62.
da fazenda totalmente formada e pertencente ao Colégio Jesuíta do Rio
de Janeiro em finais do século XVII.
A fazenda de Santa Cruz tinha uma grande importância para a
Companhia na Capitania do Rio de Janeiro. Mas além da importância para
a ordem, as terras de Santa Cruz também eram estratégicas para a cidade 4

do Rio de Janeiro. Isso porque ficavam próximas ao caminho da Capitania


de São Vicente, que era a rota que escoava toda a prata que vinha da
região de Buenos Aires, e local que as embarcações vindas com os
minérios de prata de Potosí paravam para comprar gado. 7Além disso, a
fazenda era parte do Caminho Novo da Piedade para Minas, que descia de
lá pelo Vale até encontrar o Caminho de São Paulo.
Os jesuítas permaneceram no Brasil de 1549 a 1759, quando a sua
expulsão de todo o império colonial português foi ordenada pelo Marques
de Pombal8 e os bens da Companhia de Jesus foram tomados e
incorporados ao poder real. Para que se possa entender e dimensionar a
estrutura da fazenda no período da expulsão dos jesuítas, partiremos da
análise do inventário feito pelas autoridades responsáveis pela expulsão,
em1759.
Segundo o inventario de 1759 9, a fazenda constava de 22 currais,
contendo em torno de 8 mil cabeças de gado, 200 de carneiros, 1.200
cavalos, vários burros de serviço e 1.016 escravos.

7
FRIDMAN, 1999, p.186.
8
O Marques de Pombal, foi primeiro ministro no reinado de D. Jose I de 1750 a 1777.
9
Inventário dos Bens da Real Fazenda de Santa Cruz, RJ, 1759. Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Portugal.
Outra riqueza deixada pelos padres ao Estado foram as grandes
extensões de pastos. Terras originalmente alagadiças converteram-se em
pastos secos graças às inúmeras obras hidráulicas projetadas pelos
jesuítas. Esses novos pastos também poderiam ser alugados a terceiros
para a engorda de rebanhos que vinham de várias regiões do Brasil, como 5

Minas Gerais e São Paulo, que aguardavam por um período de tempo até
conseguirem melhorias nos preços para serem vendidos na cidade do Rio
de Janeiro.10
Na agricultura, as terras eram utilizadas no cultivo do arroz
aproveitando as áreas alagadiças que ficavam próximas as valas, canais e
rios, onde se observa a grande engenhosidade dos inacianos, através das
construções hidráulicas existentes na fazenda. Cultivava-se também a
mandioca, algodão, feijão, milho, hortaliças, legumes e frutas, sendo a
fazenda auto- suficiente e ainda abastecendo o colégio e aldeamentos
próximos.
A sede da fazenda de Santa Cruz, consistia de uma igreja,
hospedaria de residências, senzalas, roças, oficinas e escravos. A igreja era
onde se realizavam as cerimônias religiosas para os habitantes da fazenda,
as residências eram formadas pelas celas dos padres e uma hospedaria
para os visitantes ou viajantes que estavam de passagem pelos caminhos
no interior de suas terras ou que levavam o gado para engordar nos
pastos da fazenda. As senzalas consistiam na habitação da escravaria,
sendo que a fazenda constava também de uma escola, hospital, botica e
uma biblioteca que ficava na residência dos padres.

10
ENGEMANN, 2008. p. 63.
Uma questão importante a ressaltar, durante o sequestro dos bens
da Companhia de Jesus na província do Rio de Janeiro, muitas das
fazendas jesuíticas foram divididas em lotes, e vendidas a terceiros; exceto
a fazenda de Santa Cruz, que permaneceu em seu tamanho original sendo
incorporada ao tesouro português. Entre 1759 a 1822, a fazenda passou a 6

ser chamada de Real Fazenda de Santa Cruz sendo agora ligada aos
interesses econômicos do Império Português.
Segundo Sonia Vianna 11, os anos de 1765 a 1781 a fazenda passou
pelo período de maior decadência econômica, que foi observado nas
áreas de produção agrícola e pastoril, as quais ficaram em péssimo estado,
as plantações e pastos estavam abandonados e os rebanhos bravios não
sendo mais possível domá-los. Em relação aos escravos, estes estavam
desorganizados e abandonados, ocasionando fugas e rebeliões sendo
necessário o uso das milícias para combater tal situação. No ano de 1791,
foram adotadas medidas para modificar tal situação em que se encontrava
a fazenda, buscando seu melhor aproveitamento econômico.

Treze ou quinze annos contados do de 1768 até o de 1781 com


pouca diferença, fazem uma época assignalada, pois nella se
exerceram os maiores absurdos, estragos, e extorsões, que
trazemos à memória, e em que as mais execráveis confusões e
ruínas chegaram á sua perfeição, com incrível velocidade, a

11
VIANNA, Sonia. “A fazenda de Santa Cruz e a crise no sistema colonial”. Revista de História da USP. N.
99. 1974, p. 67.
destruir os melhores e mais importantes ramos do
estabelecimento. 12

Já Sonia Vianna 13, nos mostra alguns fatores que originaram este
interesse por parte da coroa portuguesa no melhor aproveitamento de 7

Santa Cruz. Segundo Viana, neste período iniciava-se o declínio da


mineração na região de Minas Gerais, o que fazia com que, por conta da
grande dependência econômica de Portugal a Inglaterra, o governo
português fosse pressionado a buscar novas formas de rendimentos
econômicos. Nesta política de busca de rendimentos extras, Santa Cruz é
apresentada como uma possibilidade de fazer algum dinheiro. Isso pode
ter se dado por duas formas, ou vende-la, ou torna-la rentável. Houve
quem trabalhasse pela primeira opção. Segundo o Coronel Manoel
Martins Couto Reis:

não cessaram os enredos, as innovações e intrigas;


antes mais ateados o orgulho de tantos opostos,
surgiram infinitos abusos e pareceres, que tudo
devoravam com o occulto e especioso fim de invalidar
ou desmanchar até as raizes o merecimento d’este
grande prédio, máxima certamente a mais expedita de
que se podiam lembrar para reduzi-lo a retalhos, e

12
REIS, Manoel Martins do C. “Memórias de Santa Cruz”. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Tomo V. 1843. p.130. Estas memórias foram escritas no final do século XVIII, possivelmente
como estudo prévio para que o autor assumisse o cargo de administrador.
13
VIANNA, 1974, p. 61-62.
entrega-lo nas mãos de tantos cobiçosos
pretendentes.14

Expressava assim os movimentos dos que pretendiam reduzir a


fazenda em “retalhos” para vendê-la, já que o montante para a aquisição 8

da fazenda inteira seria inviável a particulares. Porém, os planos de Couto


Reis que foi administrador da fazenda mais à frente, eram outros. Para
ele, um conjunto de medidas deviam ser aplicadas no intuito de
reorganizar a fazenda e torná-la produtiva. Dentre as propostas estavam:
reviver as antigas medidas jesuíticas na administração dos escravos no
ensino de ofícios mecânicos; na agriculta desenvolver culturas de
produtos mais lucrativos e de maior aceitação no comercio do Brasil e
Portugal; restauração do campo e do gado que estavam abandonados
sendo estes a maior renda econômica da fazenda e a construção de
engenhos de açúcar.15 Quando se tornou administrador da fazenda, Couto
Reis implementou boa parte de seu plano, buscando torná-la mais
produtiva e rentável.
No entanto, o que se viu nos idos dos anos de 1803, foi que a coroa
portuguesa, contrariando os pareceres de Couto Reis, tomou a decisão de
realizar a venda da Fazenda de Santa Cruz para o pagamento da dívida real
de Portugal, alegando a má administração da propriedade e a
incapacidade administrativa dos funcionários. A fazenda não foi vendida
na época porque não houve comprador que tivesse dinheiro suficiente

14
REIS, op.cit., p. 166.
15
REIS, 1804, p.156-158.
para comprá-la inteira. Só ocorreram a venda dos 2 engenhos de açúcar
que existiam no interior da propriedade, que foram planejados e
construídos na administração do então Inspetor Geral Couto Reis 16.
A fazenda durante todo o período que esteve nas mãos do Estado
Português, e depois com o governo do Brasil possuiu um corpo 9

administrativo. Depois da expulsão dos jesuítas, a nova administração era


composta de inspetor geral, administrador, 2 ajudantes, 3 escreventes,
um fiel de armazém, 8 feitores maiores, 8 feitores menores e um
campeiro mor. 17 O objetivo deste estudo é contar um pouco da história de
Santa Cruz através das gestões administrativas dos administradores e
superintendentes que passaram pela fazenda, buscando analisar suas
possíveis implicações na estrutura da fazenda e o impacto de suas
medidas na população escrava no decorrer do século XIX.

Administradores no Período dos Vice-Reis


Logo que as terras de Santa Cruz foram incorporadas ao poder da
coroa portuguesa, então ficaram subordinadas administrativamente ao
vice-rei que se localizava na cidade do Rio de Janeiro, cabendo a ele
nomear os possíveis administradores da fazenda. Vale ressaltar que este
cargo era muito importante na estrutura política da época, sendo na
maioria das vezes ocupado por homens de confiança da autoridade

16
No período do vice-reinado o órgão público responsável pelas terras de Santa Cruz era a Junta Real,
sendo a Real Fazenda de Santa Cruz subordinada a este, que constituía do Desembargador, Inspetor e o
administrador, todos nomeados pela autoridade real, vale notar que Santa Cruz estava ligada
diretamente ao seu administrador, que na maioria das vezes não residia nesta, sendo dirigida pelo
ajudante, observa-se nisto também um dos fatores do abandono da fazenda.
17
VIANNA, 1974, p. 70.
colonial tais como: nobres, militares e apadrinhados. Percebe-se, no
decorrer da história administrativa da fazenda, que a maioria dos
ocupantes deste cargo era composta de militares ou membros da
pequena nobreza, que iriam aplicar seus conhecimentos técnicos
modificando ou aprimorando a estrutura administrativa da fazenda. Na 10

verdade, é possível dizer que a fazenda passou dos padres aos militares.
Acreditando a coroa que os conhecimentos destes contribuiriam para uma
melhor gestão administrativa das terras de Santa Cruz.
Nos anos de 1760, o vice-rei era o Gomes Freire de Andrade, Conde
de Bobadela, nomeando para o cargo de administrador da fazenda o
tenente José Correia Vasques, que permaneceu no cargo por 5 anos e 3
meses tendo o cabo de esquadra Domingos Furtado de Mendonça como
ajudante. Segundo Benedito de Freitas, esta administração foi de grande
produtividade, pois estavam se beneficiando das riquezas encontradas
após o sequestro da fazenda. 18 Com o falecimento do tenente Vasques,
em 1765, foi designado para o cargo seu antigo ajudante Furtado de
Mendonça, que também era sobrinho do Marquês de Pombal.
Segundo Freitas, na gestão de Furtado ocorreram grandes abusos
por parte da administração: os índios da aldeia de Itaguaí foram
perseguidos e expulsos de suas terras com o pretexto de estar
atrapalhando a ordem pública, a escravaria estava indisciplinada
executando furtos nas regiões próximas e fugas para lugares vizinhos. Sob
a ordem da corte, Furtado Mendonça foi destituído do cargo e preso,
sendo seus bens sequestrados.

18
FREITAS, 1986, p. 11.
Substituiu ao cargo Brás da Silva Rangel, cuja administração durou 2
anos e 4 meses saindo em 1770. Sua administração se incumbiu
unicamente no arrecadamento das rendas provenientes da fazenda. Os
problemas existentes permaneceram, e as feitorias, currais e valas ficaram
todos abandonados. O rebanho estava sendo roubado ou entrava mata à 11

dentro. O prejuízo para os cofres da fazenda pôde ser medido ao observar


que 1768 a fazenda continha 9 mil cabeças de gado, quando Rangel
deixou a fazenda o rebanho havia sido reduzido para apenas 3 mil
cabeças. Não obstante a isso, em reconhecimento pelos seus serviços
prestados à Real Fazenda de Santa Cruz, Rangel foi agraciado com uma
sesmaria nas terras de Santa Cruz sendo o primeiro sesmeiro da região. 19
Domingos Furtado, voltou ao cargo de administrador da fazenda no
ano de 1770. Este retorno, de certo modo, foi uma reparação dos vexames
sofridos. Foi nomeado como seu ajudante o cabo de esquadra Antônio da
Silva Rangel, filho do antigo administrador e morador da fazenda. A
administração de Mendonça que durou 10 anos não mudou em nada a
condição da fazenda, conforme atesta Freitas:

Furtado deixou os negócios sob sua administração


entregues a própria sorte. A decadência do grande e
riquíssimo patrimônio continuou em marcha
vertiginosa. As cercas dos currais ruíam uma após as
outras e não eram restauradas. O gado, em
consequência, desaparecia nas selvas próximas,

19
FREITAS, 1986, p. 13.
tornando-se bravio, impedindo sua captura e
recondução. A indústria já reduzidíssima, anulava-se
gradativamente. Enfim, tudo fracassava e toda sorte
de falcatruas ocorria constantemente. 20
12

Durante este período, o vice-rei era o marquês do Lavradio, que, ao


que tudo indica, acreditava na viabilidade das terras de Santa Cruz,
buscando seu melhor aproveitamento. Houve o desenvolvimento das
culturas do anil, fumo, café e a guaxima 21 que era utilizada na confecção
dos morrões dos canhões. A administração de Domingos Furtado acabou
com o seu falecimento em 21 de fevereiro de 1780, sendo que seus bens
foram sequestrados para indenizar os prejuízos e desfalques constatados
após sua morte. Foi neste período a tentativa da coroa portuguesa de
vender as terras de Santa Cruz. Mesmo Lavradio acreditando na
viabilidade das terras, recebeu ordens para coloca-la a venda. Não houve
comprador que tivesse dinheiro suficiente para comprar a fazenda inteira.
Segundo Freitas, com o falecimento de Furtado, o administrador
passou a ser o ajudante Antônio da Silva Rangel, que por não ter certeza
da garantia do cargo que ocupava 22 tratou de usufruir do patrimônio para
seu enriquecimento, prática que será observada na fazenda de Santa Cruz
em vários momentos do século XIX. Rangel utilizou a escravaria no

20
FREITAS, op.cit., p.14.
21
Plantas de fibras têxteis.
22
Infelizmente Benedito Freitas, que fornece diversas informações importantes sobre Santa Cruz não
revela a documentação usada para obtê-las. Resulta desta falha do seu trabalho a impossibilidade de
averiguarem-se certas afirmações como a motivação de Silva Rangel na incerteza quanto à ocupação do
cargo de administrador para usar os recursos da fazenda em seu próprio benefício.
trabalho de seus negócios sendo um desses o engenho que fora
construído na sesmaria de seu pai. Alugou escravos a particulares sendo
as contas não registradas para a fazenda, distribuiu as melhores terras aos
seus parentes e amigos, além de pôr a sua marca de propriedade no gado
da fazenda. Foi aberta uma devassa na fazenda e quando foram 13

encontradas provas, sua prisão foi determinada.

Tão esmagadora foram as provas, que a comissão


encarregada da devassa, opinou pela imediata prisão
e consequente processo do acusado, agravado com
desfalque de 3:893$611 e a venda, fiado, de grande
quantidade de bois a marchantes e boiadeiros seus
amigos, transação esta na importância de 1:678$5000,
soma vultosa para a época, levando-se em conta o
preço do boi, variando entre dez a doze mil réis. Aos
intrusos que proliferavam na fazenda, acusados de
devastarem as matas uns, em prejuízo da lavoura e
não pagarem os foros outros, foram expedidas ordens
para desocuparem as terras no prazo de oito dias. 23

Após esta fase foi nomeado um novo administrador, que foi o


sargento-mor Manoel Joaquim da Silva e Castro, que ficou à frente da
fazenda por 4 anos. Uma de suas medidas foi a reativação da cultura do
fumo que estava abandonada, limpeza das valas, consertos dos currais e a

23
FREITAS, 1986, p. 18.
volta das oficinas em produção. No ano de 1790, o vice-rei conde de
Resende nomeou como administrador da fazenda o sargento-mor Manoel
Rodrigues Silvano e como ajudante o Tenente José Caetano de Moraes.
Silvano foi do esquadrão da guarda do conde e fora promovido a coronel
do regimento de milícias do distrito da vila de Paraty em 1799, 14

permaneceu em Santa Cruz até 1794, sendo o iniciador das obras do


engenho de Itaguaí.
Em 1794, foi nomeado inspetor e administrador 24 geral da fazenda
de Santa Cruz o tenente coronel de engenharia Manoel Martins do Couto
Reis, que permaneceu até o ano de 1804. Couto Reis adotou medidas que
mudaram a situação social e econômica da fazenda, gerando lucros para a
coroa. Dentre estas medidas se destacam: melhor distribuição da
escravaria, utilizando os escravos com ofícios no trabalho de construção
de obras e prestação de serviços à coroa; na agricultura desenvolveu a
cultura do arroz, linho e café; arrendou terras abandonadas para 180
famílias, ação esta que gerou uma renda de foreiros para a fazenda e a
reconstrução de 20 currais para criação de gado vacum.
Na sua administração, Couto Reis terminou a construção de dois
engenhos de açúcar o Itaguaí e Piauí, que foram vendidos em 1803 para
Antônio Gomes Barroso, na ocasião de mais uma tentativa de venda das
terras de Santa Cruz. Couto Reis criou um ordenado fixo de pagamento de
salários anuais aos empregados da fazenda, que foi aceito pela Junta Real.

24
Na sua gestão, Couto Reis ocupou os dois cargos relacionados a administração da fazenda.
Tentando com isso evitar possíveis roubos ou uso indevido dos recursos
da fazenda pelos administradores e funcionários. 25

Tabela 2: Rendas anuais dos funcionários administrativos da fazenda


Santa Cruz, por Couto Reis (1804) 15

Cargo Renda
Anual
Inspetor 800$000
Administrador 400$000
1º Ajudante 120$000
2º Ajudante 120$000
1º Escriturário 150$000
2º Escriturário 120$000
3º Escriturário 100$000
Fiel dos Armazéns 150$000
Feitor Maior 100$000
2º Feitor Maior 100$000
Feitor Maior 100$000
Feitor Menor 25$000
Outro de Menor 32$000
Dito 32$000
Campeiro Mor 150$000
Soma 2:499$000
Fontes: REYS, Manuel Martins do Couto. “Memórias de Santa Cruz”. Revista do IHGB.
Tomo V, 1804; e FREITAS, Benedito. Santa Cruz: Vice Reinado 1760-1821, Volume 2.
Rio de Janeiro: 1986.

25
REIS, 1804, p. 168.
Com base na análise de ordenados deixados por Couto Reis,
podemos construir um pouco de como funcionava a estrutura
administrativa da fazenda, sendo o cargo de inspetor responsável pela
supervisão administrativa de todas as terras de Santa Cruz tendo o
administrador como seu subordinado direto. Ao administrador cabia toda 16

a direção da fazenda e de seus funcionários, tendo os ajudantes para lhe


auxiliarem; os escriturários eram os responsáveis pelo setor de contas da
fazenda; ao fiel dos armazéns cabia o controle de entrada e saída de
mercadorias; os feitores controlavam a lida com a escravaria e os
campeiros trabalhavam no manejo do gado nos diversos currais existentes
na fazenda. 26
Com base nos salários anuais dos funcionários identificados, que era
uma quantia de grande valor para época, podemos imaginar os privilégios
e direitos políticos que os ocupantes destes cargos poderiam possuir
durante o vice-reinado e durante todo o período Imperial. Isto demonstra
a grande importância dos cargos administrativos pertencentes a
administração de Santa Cruz, e o possível poder político, econômico e
social que estes exerciam na cidade do Rio de Janeiro e na localidade das
terras de Santa Cruz no decorrer do século XIX.
Couto Reis, em suas Memórias de Santa Cruz 27, relata o seu
desentendimento com o desembargador Luís Beltrão de Gouveia, antigo
inspetor que foi substituído por Couto Reis nos cargos de inspetor e
administrador. As motivações destes desentendimentos eram o que se

26
FREITAS, 1986, p. 29.
27
REIS, 1804.
deveria fazer com as terras de Santa Cruz. De um lado estava Beltrão de
Gouveia, defensor da venda das terras da fazenda, que sairia vitorioso se
houvesse quem pudesse pagar pela grande extensão de terra, e do outro,
Couto Reis, partidário da sua manutenção e produtividade, que sofreu
uma derrota significativa com a venda dos engenhos que ele havia 17

projetado e mandado construir. Possivelmente, as derrotas políticas de


Couto Reis – terras postas à venda e venda dos engenhos – fizeram com
que ele solicitasse sua dispensa do cargo de inspetor e administrador da
fazenda, sendo esta aceita pelo vice-rei Marques de Aguiar.
Após a saída de Couto Reis, Santa Cruz entrou em completa
decadência econômica. As rendas provinham somente dos aforamentos e
da exploração de pastos e madeiras. Continha nesta época a fazenda em
torno de 237 foreiros e arrendatários sem fiscalização, com negócios
vantajosos para si e gerando prejuízo para a fazenda. Couto Reis foi um
dos últimos administradores do período do vice-reinado.

A Corte no Brasil e Santa Cruz


No início do século XIX, nos idos dos anos de 1808 a 1821, o Brasil
presenciou a permanência da Corte portuguesa na cidade do Rio de
Janeiro, gerando grandes mudanças nas estruturas políticas, econômicas,
demográficas e sociais do país. A cidade do Rio de Janeiro que até então
era capital da colônia passava a ser o centro político e econômico de todo
o Império português, ocasionando uma grande demanda de gêneros
alimentícios, que ocasionou em mudanças na estrutura de abastecimento
da cidade. Em função disso, a Fazenda Real de Santa Cruz voltou a passar
por novas mudanças administrativas para suprir essa demanda de
abastecimento da cidade e da corte portuguesa.
Santa Cruz que até então estava em estado de abandono, passou a
ter suas estruturas administrativas subordinada a Mordomia da Casa Real
e elevada à condição de superintendência possuindo certa autonomia 18

administrativa. A antiga casa dos jesuítas foi elevada à condição de palácio


e se tornou um lugar de veraneio para a família real durante sua
permanência no Brasil.
A Fazenda de Santa Cruz neste período tornou-se responsável por
parte do abastecimento da cidade do Rio de Janeiro. O abastecimento
consistia em fornecimento de gêneros alimentícios produzidos na fazenda
tais como feijão, mandioca, legumes, frutas, e a pecuária com a criação e
corte de gado, carneiros, galinhas e porcos 28. Para cumprir esta função,
houve na agricultura várias tentativas de melhorar o aproveitamento das
terras de Santa Cruz através de novas técnicas de cultivo, principalmente
na passagem de dois ingleses que administraram a fazenda, sendo John
Mawe em 1808, e Samuel Bennet em 1811, ambos foram administradores
quando o conselheiro Leonardo Pinheiro de Vasconcellos foi
superintendente.
No decreto real de 20 de setembro de 1808 29, podemos verificar
como se estruturou a administração da Superintendência da Real Fazenda
de Santa Cruz. Conforme o decreto, esta passou a contar com um

28
CARVALHO, Marieta Pinheiro de. Um lugar modelo para o Império: abastecimento e agricultura na
Fazenda de Santa Cruz (1808-1812). In: ENGEMANN, Carlos. AMANTINO, Marcia. (Org.). Santa Cruz: de
legado dos jesuítas a pérola da Coroa. Rio de Janeiro: Ed. Eduerj, 2013. p. 273-290.
29
Coleção de Leis do Império do Brasil de 1808 a 1820. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio/colecao1.html
superintendente, dois administradores, um tesoureiro, um almoxarife e
dois escriturários. A partir desse documento, elaboramos uma tabela com
a relação dos ordenados e outros benefícios dos funcionários da fazenda.
Observa-se que os valores e os benefícios foram maiores em relação a
1804 e que será observado durante toda a história da fazenda provando a 19

importância econômica e política dos cargos oriundos de Santa Cruz.

Tabela 3: Cargos, ordenados e benefícios dos administradores da


fazenda Santa Cruz segundo o Decreto Real de 20 de setembro de 1808.
Cargos Ordenados Benefícios
Superintendente Não consta o
ordenado
1° Administrador 800$000 1 ração de farinha, carne fresca,
legumes, 2 escravos a seu serviço e um
cavalo
2° Administrador 400$000 1 ração de farinha, carne fresca e um
cavalo a seu serviço
Tesoureiro 400$000 1 ração de farinha, carne fresca e um
cavalo a seu serviço
Almoxarife 400$000 1 ração de farinha, carne fresca,
legumes e um cavalo ao seu serviço
Escriturário Não consta o
ordenado

Fonte: Coleção de Leis do Império do Brasil de 1808 a 1820.

Neste decreto foi atribuída às funções concernentes aos cargos e


suas respectivas atribuições, ao superintendente; foi lhe dada total
liberdade de ação administrativa, tendo todos os empregados da
administração e o trabalho na fazenda sobre sua subordinação, sendo
responsável pelos trabalhos da agricultura e indústria da fazenda. 30

Hei por bem autorizar ao dito superintendente, para 20

que possa promover e dirigir à administração da


mesma fazenda, como melhor parecer, e de acordo
com o primeiro administrador nomeado, que todavia
lhe será subordinado, bem como todos os demais
empregados na dita fazenda, dando-me conta pelo
presidente do meu Real Erário.31

Foi nomeado para o cargo de superintendente o conselheiro


Leonardo Pinheiro de Vasconcelos, para o de primeiro administrador o
viajante inglês e mineralogista Johw Mawe, sendo sua permanência
passageira, para segundo administrador e tesoureiro foi nomeado João
Fernandes da Silva e para almoxarife dos paços, Francisco Damaso.
Leonardo Pinheiro de Vasconcelos permaneceu na direção da
fazenda de 1808 a 1815, e neste período a fazenda presenciou a vinda de
imigrantes chineses que realizaram o cultivo do chá, uma bebida muito
apreciada por Dom João VI e pelo mercado inglês, e também presenciou a
estada dos naturalistas Spix e Martius que permaneceram no Brasil por
alguns anos e publicaram o livro “Viagens ao Interior no Brasil”. Leonardo

30
Neste caso indústria não tem o mesmo sentido de hoje, refere-se ao fabrico de açúcar e cachaça,
tecelagem, olaria e outras atividades semelhantes desenvolvidas em Santa Cruz.
31
Coleção das Leis de 1808 a 1821.
renunciou ao cargo em 1815 por queixas sofridas contra sua
administração, acusado de estar deixando a fazenda em estado de
abandono, assumindo a função o Marquês de Aguiar até 1817. 32
Sobre a administração do Marques de Aguiar, não encontramos
fontes que dão detalhes acerca de suas medidas a frente da fazenda. Após 21

o Marquês de Aguiar quem assumiu a direção da fazenda foi Joaquim José


de Azevedo, o visconde do Rio Seco, que perdurou no cargo no período de
1817 a 1821 sendo ele o ultimo administrador da fazenda no período real.
Realizou a construção das feitorias de Peri-peri, Bom Jardim, Santarém e a
construção de um palácio para família real. A fazenda neste momento
recebeu a visita da missão artística francesa, que legou uma das únicas
pinturas sobre a sede administrativa com o título “Vista do Castelo
Imperial de Santa Cruz” do pintor Jean Baptista Debret, que através de
suas pinturas mostrou um pouco do cotidiano da vida urbana da cidade do
Rio de Janeiro oitocentista.

32
FREITAS, 1987, p. 76-78
FIGURA 3- Paisagem da fazenda de Santa Cruz por Debret

22

FONTE: ACERVO BIBLIOTECA NACIONAL.

O curioso, é que o outro desenho produzido no mesmo período,


com menos de 10 anos de diferença, de autoria da escritora inglesa Maria
Graham, omite inteiramente os dois bairros de senzalas existentes à
frente do palácio Santa Cruz. Segundo Engemann 33, as 360 senzalas que
compunham os bairros Pacotiba que ficavam à esquerda da igreja e o
Limeira que ficavam à direita, foram claramente representadas na
aquarela de Debret. Mas, literalmente sumiram no traço de Maria
Graham, que fez um palácio em campo aberto, limpo e livre de

33
ENGEMANN, Carlos. Os Servos de Santo Inácio a Serviço do Imperador: Demografia e relações sociais
entre a escravaria da Real Fazenda de Santa Cruz, RJ. (1790- 1820). 2002. Dissertação de Mestrado em
História Social. UFRJ, Rio de Janeiro, 2002. p. 105.
interferências. Apenas umas pequeninas construções no lado direito
fazem companhia para o palácio imperial.

FIGURA 4 – Vista da Fazenda de Santa Cruz por Maria Graham


23

FONTE: ACERVO BIBLIOTECA NACIONAL

Administradores do Período Imperial


Nos anos de 1821 a 1822, quem retornou à direção de Santa Cruz
foi o tenente general Manoel Martins do Couto Reis, que no pouco tempo
que permaneceu no posto realizou novas medidas que buscavam
melhorias na fazenda. Segundo Freitas 34, Couto Reis elaborou um

34
Segundo a obra de Benedito de Freitas, este regulamento está fixado conforme a portaria de 8 de
maio de 1822, não nos sendo possível encontrar esta portaria nos anais das leis do império. No entanto,
regulamento que consistia em 40 artigos que norteavam as funções,
rotinas e salários dos funcionários, no qual podemos perceber novos
indícios da estrutura da fazenda através dos dados abaixo:

Tabela 4: Cargos e remunerações no plano de Couto Reis na 24

administração 1821-1822
Cargos Observações
Superintendente 1 ração
Administrador Geral 292$000 e uma ração
Capelão Eram dois capelães ambos escolhidos pelo
superintendente, ambos com soldo de 293$000 e uma
ração
Campeiro Mor 200$000
Ajudante do Campeiro Mor 100$000
Moço do Campo 116$800
Armazém 171$600
Feitor 153$600
Fonte: FREITAS, Benedito. Santa Cruz: Império 1822-1889, Volume 3. Rio de
Janeiro: 1987.

Através destes dados, podemos perceber as mudanças de valores


de ordenados de determinados cargos. Conforme mudava a
administração, percebe-se a ausência de valores de alguns cargos e o
acréscimo de outras funções. Podemos constatar neste regulamento, a
permanência de antigos valores jesuíticos no trato com a comunidade
escrava de Santa Cruz, como o direito de um escravo possuir diversos
animais como porcos, cavalos, e ter para si os trabalhos de finais de

como foi reproduzido na integra na obra do autor, mesmo sendo ele a única referência a este
regulamento, o tomaremos como existente.
semanas e dias santos para a sua subsistência nas terras da fazenda 35.
Outro dado relevante abordado neste regulamento, citado por Freitas, é a
existência das funções de mestre da banda de música, sendo um indicio
da existência da prática musical nas terras de Santa Cruz desde o tempo
dos jesuítas que utilizavam a música como forma de evangelização e 25

civilização.

Artigo 51: O mestre de música terá a obrigação de dar


parte ao inspetor de todas as alterações que tiver nos
discípulos das músicas, não lhe permitindo irem para
as senzalas quando se acham doentes nem encobrir-
lhe faltas, não os poderá empregar em serviço seu
fazendo que estejam na escola de manhã e de tarde
naquelas horas determinadas para o ensino, não
poderá sair para fora da fazenda sem que primeiro o
participe para por este modo o inspetor poder aplicar
os discípulos em outro qualquer serviço durante a
ausência do mestre, e não ficarem vadios todos
aqueles dias que o mestre anda fora.36

Após a independência do Brasil, as terras de Santa de Cruz passaram


a ser chamada de Fazenda Imperial de Santa Cruz e foram incorporadas ao
patrimônio público e de uso de D. Pedro I e de seus sucessores. Ficou à

35
FREITAS, 1987, p.110-124.
36
FREITAS, 1987, p.122.
frente da fazenda o capitão de mar e guerra João da Cruz dos Reis, que
permaneceu de 1822 a 1824. Nesta época, a principal fonte de renda da
fazenda eram os foreiros. Reis, permitiu a permanência de intrusos nas
terras da fazenda, na qual deu títulos de foreiros aos que estavam sem
documentação. Estes eram do quantitativo de 59 famílias que pagavam 26

580$000 e 435 galinhas anualmente pelos direitos de aforamentos. Ele foi


demitido em 182437.
Nos anos de 1824 a 1834, ficaram à frente de Santa Cruz várias
personalidades dentre elas: Boaventura Delfim Pereira, o Barão de
Sorocaba, que era cunhado da marquesa de Santos (1824-1829),
Conselheiro João da Rocha Pinto (1829-1830), João Maria Velho da Silva
(1830-1831) e o Tenente Coronel Francisco Manoel de Moraes (1831-
1834).38
Segundo Fridman39, em 1832 Santa Cruz foi elevada à condição de
curato incluindo os bairros de Santa Ifigênia, Cantagalo de Dentro e Curral
Falso. Possuía uma escravaria de 1.524 escravos e uma produção anual de
3.822 arrobas de açúcar ao ano. Nos anos de 1834 a 1846 esteve à frente
das terras de Santa Cruz o Coronel Francisco Gonçalves Fernandes Pires,
que incrementou a lavoura de arroz, criação de gado e a instalação da
primeira agência dos correios no Brasil em 1842 em Santa Cruz. Para
melhor entender como estava Santa Cruz nos idos da década de 1830 a

37
FRIDMAN, 1999, p.198.
38
FRIDMAN, 1999, p.198-200.
39
FRIDMAN, 1999, p. 200.
1840, analisaremos os dados contidos no relatório 40 elaborado pelo
deputado Rafael de Carvalho em sua visita a fazenda no ano de 1837, na
qual constam informações sobre a estrutura física e econômica da fazenda
e a comunidade escrava santa-cruzense.
Segundo Rafael de Carvalho, a sede administrativa da fazenda tinha 27

uma estrutura quase urbana, que era constituída de um palácio na qual


era usado como moradia da família real, sendo que em sua volta localizava
a povoação, abrangendo as senzalas dos escravos, casas dos 465 foreiros,
ocupando 37 prédios na povoação da fazenda e as oficinas de curtume e
olaria. No campo se desenvolvia as culturas de arroz, milho, mandioca, e
na pecuária a fazenda constava 8 currais com os seguintes quantitativos
de animais: 2.613 cabeças de gado, 964 cavalos, 128 muares, 378
lanígeros, 30 burros e contava também com 3.600 bois de pasto
pertencentes a particulares que ali estavam esperando a engorda, prática
esta da qual a fazenda recebia proventos.
No tocante a escravaria ela continha 1.772 escravos, que se
ocupavam do trabalho do campo, sendo um grande despropósito, pois,
todo o serviço do campo utilizava em torno de 30 pessoas segundo a visão
do deputado. Os escravos tinham suas roças e nelas se empregavam nos
sábados, domingos e dias santos. Ainda segundo o deputado, a fazenda
tinha uma linguagem e disciplina própria com uma grande influência dos
antigos costumes dos jesuítas, que eram percebidos nas vestimentas das
mulheres, nas práticas de casamento, cotidiano e alimentação,

40
Resolução nº 144 de 1837, de autoria do Deputado Rafael de Carvalho membro da Comissão das
Contas do Tutor de S. M. e AA. Imperiais e tutor de S.M. e AA. II. (I-PAN-14.8.837-Car.rs - Arquivo do
Museu Imperial de Petrópolis - R. J.)
Observando este relatório do deputado Rafael de Carvalho,
percebemos que Santa Cruz continuava numa situação de abandono,
baixa lucratividade, não atendendo as suas reais capacidades de retorno
financeiro, sendo mais uma das propriedades públicas com os interesses
voltados a particulares, conforme atesta o deputado quando afirma no 28

documento “a fazenda de Santa Cruz, esta viúva aflita e desamparada, é


uma propriedade gigantesca de utilidade pigmea”.

Imperial Fazenda de Santa Cruz após 1850


Segundo Fridman41, quem assumiu a administração da fazenda de
1846-1856 foi o Coronel Conrado Jacob Niemeyer, que incentivou as
culturas do chá, café e seda. A povoação de Santa Cruz dispunha dos
serviços urbanos de dois boticários, seis casas de secos e molhados, uma
padaria e três ranchos, e o número de foreiros aumentou para 700. Sobre
este período que compreende os anos de 1850, que está a administração
de Niemeyer, encontramos uma notícia de um jornal da cidade do Rio de
Janeiro, o Correio da Tarde de Segunda feira, 25 de fevereiro de 1856 42,
com o título “O Sr. Coronel Conrado Jacob de Niemeyer e a Imperial
fazenda de Santa Cruz”, sendo que esta publicação relata aspectos
referentes a escravaria, que tentaremos discutir brevemente.
Num trecho da notícia, o jornal relata o agradecimento por parte
do administrador a todos os empregados da fazenda, inclusive aos
escravos tecendo a eles diversos elogios. Também na mesma matéria,

41
FRIDMAN, 1999, p. 202.
42
CORREIO DA TARDE.
descreve as ações de Neimeyer relacionadas à construção e reforma das
senzalas dos escravos, fato importante este, pois o único resquício sobre a
estrutura das senzalas da fazenda foi a pintura de Debret do início do
século XIX:
29

As poucas senzalas que na fazenda existiam então


quase geralmente cobertas de palha, e hoje não se
encontra uma só, das muitas mandadas construir pelo
Sr Conrado, que não seja coberta de telha. A este
importante serviço prestado em favor de uma
escravatura na sua maioria laboriosa e honesta,
acrescem outros de não melhor quilate, que passamos
a esboçar de leve.43

Robert Slenes, em seu livro Na senzala uma flor 44 descreveu as


senzalas das grandes fazendas de café na região cafeicultora de São Paulo,
onde suas estruturas eram em forma de galpão ou cabanas de palha. Já
segundo Engemann45 a estrutura das senzalas de Santa Cruz, conforme
ilustra a pintura de Debret, eram de cabanas cobertas de palha. Nesta
notícia do jornal, podemos perceber que houve uma melhoria e novas
construções de senzalas com tetos de cerâmica para a escravaria de Santa

43
CORREIO DA TARDE.
44
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: Esperanças e recordações na formação da família escrava.
Campinas: Editora Unicamp, 2011. P. 149-180.
45
ENGEMANN, Carlos. 2002. P. 110-120.
Cruz, trabalho este muito importante, pois, segundo o jornal, tratava-se
em sua maioria de uma escravaria honesta e trabalhadora.
No tocante ao tamanho da escravaria, a nota do jornal nos diz que
era algo em torno de 2.200 escravos. Há também, referência a construção
de uma muralha em volta das senzalas, fato este que nos leva a 30

questionar qual seria a utilidade e função desta muralha, se tratando de


uma escravaria em sua maioria, honesta e trabalhadora, conforme diz o
jornal. Duas possíveis razões para a construção desta muralha seriam:
primeiro a minoria que não era honesta e trabalhadora, e portanto,
precisava ser controlada; outra possibilidade seria a existência de
quilombos próximos a Santa Cruz que trariam ameaça a tranquilidade e a
privacidade da escravaria e do administrador conforme cita Freitas em sua
obra.

e a numerosa escravatura da fazenda, que sobe de


2,200 pessoas. A construção de uma muralha, que
cercando as senzalas, tem diferentes portões por
todos os lados, e um de bela construção fronteira a
casa de residência do superintendente. 46

Quem se seguiu na direção das terras de Santa Cruz foi Inácio José
Garcia (1856-1867), conhecido como o “Carrasco do Cruzeiro” título este
recebido por ter retirado a cruz dos jesuítas de frente do palácio da

46
CORREIO DA TARDE.
fazenda, tendo colocado o pelourinho para aplicação de castigos físicos
aos escravos.
Garcia foi um dos administradores que mais usufruiu dos benefícios
e poderes que o cargo lhe conferia, através das fontes abordadas até o
momento. Além disso, deve-se a ele maus tratos à escravaria, o abandono 31

da fazenda, os desvios de verbas, a utilização dos escravos ao seu serviço,


a manipulação do comercio local para enriquecimento próprio, também
fizeram sua fama de administrador terrível, aspectos estes que são
denunciados nos jornais da época. Sua gestão foi tão tumultuada que no
período houve uma tentativa de assassinato contra ele em 1865 e termina
com sua morte suspeita e questionável para a época. 47
Durante sua administração a fazenda de Santa Cruz passou por um
dos momentos mais conturbados da sua história, fatores políticos,
econômicos e sociais de esfera nacional acabaram repercutindo no modo
de administrar de Garcia e tiveram consequências na escravaria.
Acontecimentos estes, como a criação da lei Eusébio de Queiroz de 1850
que ocasionou extinção efetiva do tráfico negreiro, que mudou a visão
sobre o processo de exploração do trabalho escravo nas grandes fazendas;
o conflito na bacia do Prata envolvendo o Brasil numa guerra com a
república do Paraguai que perdurou de 1864 a 1870, que acarretou na
demanda de homens para lutar nos campos de batalhas, sendo que
muitos destes eram escravos que iam a guerra em busca de sua tão

47
FRIDMAN, 1999, p. 203.
sonhada carta de alforria 48. Santa Cruz teve uma grande quantidade de
escravos enviados a guerra, gerando uma falta de mão de obra masculina
na fazenda49 ocasionando mudanças no cotidiano da fazenda.
Após este período conturbado da administração de Garcia, a
fazenda passou para as mãos do major João da Gama Lobo Bentes (1867- 32

1869). Bentes já havia trabalhado nas terras de Santa Cruz como


encarregado das obras e medições de terras em 1849 e a execução da
obra do teatrinho imperial. Deixou Santa Cruz em 1869 para assumir o
comando do Estado Maior de Artilharia.
Após a saída de Bentes, a localidade de Santa Cruz recebeu como
seu administrador o senhor Jose Saldanha Gama, que permaneceu à
frente da fazenda nos idos dos anos de 1869-1872 e na sua permanência
houve uma importante mudança no tocante à escravidão. Os escravos da
fazenda de Santa Cruz foram libertos pela lei do ventre livre de 1871, o
que fez com que fossem necessárias algumas mudanças em suas
estruturas, para se adaptar a esta nova fase que estava se iniciando.
Saldanha da Gama era engenheiro e botânico e se destacou por ser
um dos historiadores de Santa Cruz junto com general Couto Reis, sendo
suas obras umas das únicas referências sobre a atuação e o legado dos
jesuítas naquela localidade. Na sua permanência foi criada a “sociedade 3
de maio protetora das famílias dos empregados da Imperial Fazenda de

48
PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. Trabalho, folga e cuidados terapêuticos: a sociabilidade
escrava na Imperial Fazenda de Santa Cruz, na segunda metade do século XIX. Tese de Doutorado em
História das Ciências e da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2011.
49
SOUZA, Jorge Prata de. Escravidão ou Morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai. Mauad,
Rio de Janeiro, 1996.
Santa Cruz”, que tinha como finalidade dar assistência financeira aos
funcionários da fazenda.
Na sua administração aconteceu também a construção do
matadouro municipal para a compra e venda de carne verde e a criação de
uma escola primária. Saldanha criou um cadastro de foreiros para a 33

fazenda buscando regularizar a arrecadação dos foros. Neste período as


instalações do paço receberam iluminação pública a gás, e a instalação do
telégrafo em 187250. A partir do ano de 1872, conflitos entre os libertos e
administradores marcarão as gestões seguintes.
Após a saída de Saldanha da Gama quem permaneceu na
administração da fazenda foi Pedro Fiel Monteiro de Bitencourt de 1872 a
1876, que exercia anteriormente função de professor na escola do curato.
Não podemos descrever mais detalhes acerca de sua administração pois
não encontramos fontes que nos dessem indícios de sua atuação na
fazenda. Logo após, assumiu ao cargo de administrador o marechal
Justiniano Galdino da Silva Pimentel, de 1876 a 1878, conhecido também
como o superintendente urbanista 51. Na sua gestão a fazenda recebeu a
instalação de bondes e a criação da estação de trem em Santa Cruz em
1878.
O Conselheiro Antônio Henrique de Miranda Rêgo foi administrador
da fazenda de 1878 a 1887, na sua permanência houve a criação da Escola
Pública Mista da Imperial Fazenda de Santa em 1885. Ocorreu também
algumas reformas urbanísticas no interior do curato entre elas: construção

50
FRIDMAN, 1999, p. 204.
51
FRIDMAN, 1999, p. 204.
de leitos de ruas; nivelamento das praças, aberturas de bueiros; reformas
de prédios e aberturas de hotéis.52 O último administrador da Imperial
Fazenda de Santa Cruz foi o Comendador Major Manoel Gomes Archer de
1887à 1889.
Após a proclamação da república em 15 de novembro de 1889, a 34

fazenda passou a chamar Fazenda Nacional de Santa Cruz, os imóveis e


bens materiais pertencentes à família imperial foram leiloados, e as
instalações da fazenda foram disponibilizadas para o uso do exército
brasileiro, se constituindo ainda hoje num batalhão de engenharia.
Ao fim desta análise da história da fazenda de Santa Cruz no
decorrer do século XIX, podemos perceber que após a expulsão dos
jesuítas em 1759, estas terras não voltaram a ter grande rentabilidade
econômica que um dia tiveram e poderiam ter. Percebe-se a tentativa por
parte do governo português e depois brasileiro para nomear pessoas
capacitadas para assumir as funções relativas à fazenda.
Entre os diversos administradores que exerceram a função de
administradores percebemos que muitos tinham formação em
engenharia, medicina e outras profissões. Constatamos que algumas
medidas destes homens a frente da fazenda deram certo em algum
momento da história, entre eles temos o tenente coronel Manoel do
Couto Reis, Coronel Conrado Neyemier e Jose Saldanha da Gama.
Mas, constatamos também a cultura do uso privado dos bens
públicos que tão profundamente marcam a nossa história até os dias de

52
FRIDMAN, 1999, p. 204.
hoje. Entre estes administradores podemos citar: Furtado de Mendonça,
Brás da Silva Rangel e Ignácio Jose Garcia.
Nota-se a grande permanência de nobres e, principalmente,
militares na administração da fazenda, os quais em muito contribuíram
para a administração de tão gigantesca fazenda e em alguns casos o uso 35

desta para seus interesses particulares. Podemos chegar à conclusão que


a administração das terras de Santa Cruz passou dos jesuítas para os
militares, no que podemos constatar que mesmo após a proclamação da
república a fazenda continuou com estes, tornando-se uma base militar.

Fontes Impressas
GAMA, José Saldanha da. “História da Imperial Fazenda de Santa Cruz –
Primeira Parte”. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Tomo 38. Parte II. 1875.
REYS, Manuel Martins do Couto. “Memórias de Santa Cruz”. Revista do
IHGB. Tomo V, 1843.
Constituição do Império do Brasil de 1824. DF. Biblioteca Digital da
Câmara dos Deputados.
Coleção das Leis de 1808 a 1820. DF. Biblioteca Digital da Câmara dos
Deputados.

Fontes Manuscritas
Arquivo Nacional
Inventário dos Bens da Real Fazenda de Santa Cruz, RJ, 1791. Arquivo
Nacional, Códice 808, Volume 4.
Traslado do Inventário dos Bens do Colégio do Rio de Janeiro: autos do
sequestro dos bens da fazenda de Santa Cruz, Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, Portugal.
Inventário dos Bens da Real Fazenda de Santa Cruz, RJ, 1759. Arquivo
Nacional. 36

Fazenda Nacional de Santa Cruz, Códice 1122, Volume 01.


Fazenda Nacional de Santa Cruz, Cartas de Liberdade, Códice 1100.

Arquivo do Museu Imperial de Petrópolis


Resolução nº 144 de 1837, de autoria do Deputado Rafael de Carvalho
membro da Comissão das Contas do Tutor de S. M. e AA. Imperiais e tutor
de S.M. e AA. II. (I-PAN-14.8.837-Car.rs - Arquivo do Museu Imperial de
Petrópolis - R. J.)
Diário do Imperador D. Pedro II

Periódicos
Biblioteca Nacional
Jornal Correio da Tarde
Correio da Tarde, 25 de Fevereiro de 1856.
Correio da Tarde, 22 de Março de 1856.

Bibliografia
BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
BRUGGER, Silvia Maria Jardim. Compadrio e Escravidão: Uma análise do
apadrinhamento de cativos em São João del Rei 1730-1850. X Encontro
Regional de História. ANPU – RJ, 2002.
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil
meridional. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. 37

CARVALHO, Jose Murilo de. A construção da Ordem. Rio de Janeiro:


Editora UFRJ: 1996.
CARVALHO, Jose Murilo de; NEVES, Lucia Maria bastos Pereira das.
Repensando o Brasil do Oitocentos: Cidadania, Política e Liberdade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira. 2009.
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma história das últimas
décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. São Paulo: Difusão Europeia do
Livro, 1966.
ENGEMANN, Carlos. De laços e de Nós. Rio de Janeiro: Editora Apicuri:
2008.
ENGEMANN, Carlos. Os Servos de Santo Inácio a Serviço do Imperador:
Demografia e relações sociais entre a escravaria da Real Fazenda de Santa
Cruz, RJ. (1790- 1820). 2002. Dissertação de Mestrado em História Social.
UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.
ENGEMANN, Carlos; Amantino, Marcia. Santa Cruz: de legado dos jesuítas
a pérola da coroa. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013.
FERREIRA, Lusirene Celestino França. Nas Asas da Imprensa: A repercussão
da abolição da escravatura na província do Ceará nos periódicos do Rio de
Janeiro (1884-1885). Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 2013.
FLORENTINO, Manolo; e GÓES, J. R. A Paz da Senzala. RJ: Civilização
Brasileira, 1997.
FONER, Eric. Nada além da liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e terra.
1988.
FREITAS, Benedito. Santa Cruz: Era Jesuítica 1567-1759, Volume 1. Rio de 38

Janeiro: 1985.
FREITAS, Benedito. Santa Cruz: Império 1822-1889, Volume 3. Rio de
Janeiro: 1987.
FREITAS, Benedito. Santa Cruz: Vice-Reinado 1760-1821, Volume 2. Rio de
Janeiro: 1986.
FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do Rei. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar. 1999.
GINZBURG, Carlo. A Micro-História e Outros Ensaios. Rio de Janeiro:
Editora Bertrand, 1989.
GOUVEIA, Maria de Fátima Silva. O Império das Províncias: Rio de Janeiro,
1822-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2008.
MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os Significados da Liberdade
no Sudeste Escravista – Brasil, Século XIX. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira. 1998.
MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Editora
Brasiliense. 1990.
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira. 2000.
OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto: seu mundo e os outros. São
Paulo: Editora Corrupio. 1988.
PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. Trabalho, folga e cuidados
terapêuticos: a sociabilidade escrava na Imperial Fazenda de Santa Cruz,
na segunda metade do século XIX. Tese de Doutorado em História das
Ciências e da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2011.
REIS, João Jose; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: História 39

dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 1996.


SANTOS, Antônio Carlos dos. Os Músicos Negros: Escravos da Real fazenda
de Santa Cruz no Rio de Janeiro (1808-1832). São Paulo: Anablume. 2009.
SILVA, Eduardo; REIS, João Jose. Negociação e Conflito: A resistência
escrava no Brasil escravista. São Paulo: Editora Companhia das Letras.
1989.
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: Esperanças e recordações na
formação da família escrava. Campinas: Editora Unicamp, 2011.
SOUZA, Jorge Prata de. Escravidão: Ofícios e Liberdade. Rio de Janeiro:
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, APERJ. 1998.
SOUSA, Jorge Prata de. Escravidão ou Morte: Os brasileiros na Guerra do
Paraguai. Mauad, Rio de Janeiro, 1996.
VIANA, Sonia Bayão Rodrigues. “A fazenda de Santa Cruz e a crise no
sistema colonial”. Revista de História da USP. N. 99.
XAVIER, Regina Célia Lima (Org). Escravidão e Liberdade: Temas,
Problemas e Perspectivas. São Paulo: Alameda, 2012.
POEMA QUE TECE O PASSADO: CONTRIBUIÇÕES DA
LITERATURA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA

João Pedro Pereira Rocha

Resumo: Dentre as discussões que mobilizam os pesquisadores no campo do Ensino de


Historia, boa parte está preocupada com as estratégias de ensino e aprendizagem
desenvolvidas em sala de aula. Nesse sentido, o presente trabalho faz uma reflexão
acerca do uso de poemas nas aulas de História. O caminho trilhado seguiu dois
momentos: primeiro, fez-se um estudo sobre alguns escritos do poeta Castro Alves
presentes nas obras Os Escravos e Espumas Flutuantes, com o intuito de identificar
poemas entendidos como fontes de inspiração em uma determinada época e passíveis
de uso nas aulas de História. Em um segundo momento, optou-se pela reunião de
alguns textos e reflexão a partir de bibliografia que versa sobre o uso de documentos
autênticos nas aulas de História, sobretudo os estudos de Circe Bittencourt (2011) e
Selva Guimarães Fonseca (2012). A poesia, como perspectiva para o ensino e
aprendizagem de História permite ao professor visualizar o poema como um gênero
cultural de uma época, com marcas e registros de seu tempo, elementos possíveis de
serem utilizados em sala de aula.
Palavras-chave: Ensino de História. Poesia. Ensino Aprendizagem.
Résumé: Les discussions qui mobilisent des chercheurs en ce qui concerne
l'enseignement de l´Histoire, sont axées, en partie, sur les stratégies de l'enseignement
et de l'apprentissage développées en classe. Suivant cette voie, ce travail propose une
2
réflexion sur l'usage de la poésie en classe d´Histoire. Le parcours comprend deux
moments: d´abord, une étude sur des textes de Castro Alves, qui font partie des
recueils Les Esclaves et Écumes fluctuantes ayant le but d'identifier des poèmes
considérés comme des sources représentatives de la pensée d'une époque et
susceptibles d’être utilisés en classe d´Histoire. Dans un second moment, on a réalisé
une réflexion sur les textes à partir d'une bibliographie concernant l'utilisation de
documents authentiques en classe d´Histoire, surtout des études de Circe Bittencourt
(2011) et de Selva Guimarães Fonseca (2012). Le choix de la poésie comme perspective
pour l'enseignement et l'apprentissage en classe d´Histoire permet à l'enseignant de
visualiser le poème comme un genre textuel qui témoigne de la culture d´une époque
et comme porteur des marques et des registres de son temps, éléments possibles
d'appropriation en classe.
Mots-clés: Enseignement de l´Histoire, poésie, enseignement et apprentissage.
A relação ente História e Literatura, muito facilmente, acarreta
conflito, que surge de seus respectivos discursos, sobretudo quando a
primeira busca aproximações com a segunda. O imperativo em questão
diz respeito à dicotomia que pode haver quando o historiador privilegia a
literatura em sua análise sobre o passado. Embora a literatura seja uma 3

arte humana, produto de homens no tempo, o conflito diz sobre a


natureza ficcional da literatura, que não tem obrigatoriedade com a
veracidade dos fatos. Em sentido oposto o historiador caminha em busca
de representações alicerçadas em documentos que o aproxima do
acontecimento real.
Entretanto, as contribuições da Literatura para o Ensino de História
tornam-se ainda mais possíveis quando refletimos sobre o papel da
História, na escola. Como afirma Rafael Ruiz, sobre a edificação do
conhecimento histórico no meio escolar:

...significa ensinar a construir conceitos e aplica-los


das variadas situações e problemas; significa ensinar a
selecionar, relacionar e interpretar dados e
informações de maneira a ter uma maior
compreensão da realidade que estiver sendo
estudada; ensinar a construir argumentos que
permitam explicar a si próprios e aos outros de
maneira convincente a apreensão e compreensão da
situação histórica, significa, enfim, ensinar a ter uma
percepção o mais abrangente possível da condição
humana, nas mais diferentes culturas e diante dos
mais variados problemas. (RUIZ, 2012, p. 78)

Seguindo as especificações de Rafael Ruiz (2012), sobretudo naquilo


que se refere a uma percepção abrangente da condição humana, pelo 4

estudante em sala de aula, é possível identificar o uso positivo da


Literatura nas aulas de história, uma vez que, a literatura permite o
contato com possibilidades que não afloradas, em momentos de tensão
da História. Para Selva Guimarães Fonseca, a literatura, enquanto
elemento social, “... ao problematizar a realidade, oferece ao historiador,
ao professor e aos alunos pastas e propostas reveladoras da identidade
social e coletiva” (GUIMARÃES, 2012, p.318). Com isso a Literatura pode
representar ferramenta importante ao trabalho de professores e
estudantes, nas aulas de história.
A partir dessas considerações, o presente texto tem por objetivo
fazer um estudo sobre as contribuições da poesia para Ensino de História.
Isso será feito a partir da observação e pontuação do discurso literário
presente nos escritos de Castro Alves, poeta baiano do século XIX, e crítico
declarado ao sistema econômico escravista vigente no Brasil da época. As
reflexões e considerações serão feitas a partir de poemas presentes nas
obras “Espumas Flutuantes” (1870) e “Os Escravos” (1883).
Castro Alves foi decididamente um crítico às questões de seu
tempo, algo perceptível na literatura das obras citadas, onde o autor faz
menção a dois acontecimentos marcantes no Brasil do século XIX: a
Guerra do Paraguai e a Escravidão de Negros. Em relação ao primeiro a
historiografia tem evidenciado ser este um momento importante para a
História Nacional, sobretudo pelo caráter nacionalista empreendido nas
missões militares, mesmo que em grau embrionário.
Em sala de aula, a Guerra do Paraguai é um tema que o professor de
história pode vir a explorá-lo sobre diversas formas, como a partir das 5

possíveis, causas e consequências que determinaram o embate entre


nações no Cone Sul. Se o professor de história opta por explorar a
realidade da Guerra sob uma ótica mais aproximada da realidade social,
interrogando sobre os sujeitos históricos que compunha a formação
militar brasileira, certamente encontrará da poesia de Castro Alves um
documento de época que aponta para as condições de milhares de
soldados. Isso está explicito no poema “Quem dá aos pobres, empresta a
Deus”, uma crítica ao tratamento dado pelo Estado aos soldados mortos
nas batalhas.

E esses Leandros, do Helesponto novo / Se resvalaram


– foi no chão da história / Se tropeçaram – foi na
eternidade / Se naufragaram foi no mar da glória... / E
hoje o que resta dos heróis gigantes? / Aqui – os filhos
que vos pedem pão / Além a ossada que branqueia a
lua, / Do vasto pampa, no funéreo chão. (ALVES, 2009,
p.41)

Outo momento no qual o autor faz referência a Guerra do Paraguai


é representado no poema “Ao dois de julho”, também presente na obra
Espumas Flutuantes. Nele Castro Alves faz menção à batalha naval
(Riachuelo) vencida pela marinha do Brasil na Guerra do Paraguai, em
1865. O poema é de 1867.

Ao dois de julho 6

Basta!... Curvai-vos, ó povo!... / Ei-los os vultos sem


par, / Só de joelhos podemos / Nest’hora augusta fitar
/ Riachuelo e Cabrito / Que sobem para o infinito /
Como jungidos leões / Puxando os carros dourados /
Dos meteoros largados / Sobre a noite das nações /
(ALVES, 2009, p. 52).

Na obra Os Escravos os autor traça linhas que o consagraram o


título de “poeta dos escravos”. Questões abolicionistas e de denúncia ao
processo de escravização salta dos versos e permiti uma visão, construída
pela literatura, sobre aspectos da escravidão de negros no Brasil do século
XIX. Chama atenção os relatos sobre as condições que passavam os
escravizados, cotidianamente e durante o trafico entre África e Brasil.
Uma ficção que buscava denunciar e evidenciar a desumanidade presente
na escravidão, e presente nos poemas a seguir:

A canção do africano
O escravo então foi deitar-se / Pois tinha de levantar-
se / Bem antes do sol nascer / E se tardasse, coitado, /
Teria de ser surrado, / Pois bastava escravo ser.
(ALVES, 2009, p. 37)

O navio negreiro
Ontem a Serra Leoa, / A guerra, a caça ao leão / O 7

sono dormindo à toa / Sobre as tendas da amplidão! /


Hoje... O porão negro, fundo. / Infecto, apertado,
imundo, / Tendo a peste como Jaguar... / E o sono
sempre cortado / Pelo arranco de um finado / E o
baque de um corpo no mar. (ALVES, 2009, p. 101)

O tratamento dado aos negros escravizados é de longe um traço


forte no processo de escravidão no Brasil, que durante séculos teve sua
economia alicerçada pela força do trabalho dos negros vindos da África.
Sobre esse aspecto Michell Bergmann afirma que: “Na travessia,
costumavam ficar presos, em parte pelo medo de motins, em parte para
evitar que se jogassem ao mar, em gesto suicida.” (BERGMANN, 1976, p.
39), algo que concorda e complementa os escritos de Castro Alves em “O
navio negreiro”. O aspecto complementar em questão esta no campo da
percepção, segundo a qual o suicídio pode ser interpretado como ato de
resistência à exploração, algo não perceptível no poema, mas que o
professor de história poderá explorar em sala de aula. Assim os estudos de
natureza não literária (antropológicos, históricos e sociológicos, por
exemplo) podem suplantar uma limitação natural ao discurso literário,
que não tem compromisso com os acontecimentos em suas
particularidades mais específicas.
O trato da literatura como documento em sala de aula pode ser
percebida a partir da relação dialógica construía entre autor e leitor,
informada por Mikhail Bakhtin (1997), e que amplia as possibilidades de 8

interpretações sobre os acontecimentos, na medida em que permite a


construção da cultura a partir da relação entre esses sujeitos. No caso dos
poemas indicados neste trabalho, às visões construídas de modo a
problematizar o tema em questão, podem dizer sobre a identidade do
autor, o contexto da época, a forma como tais versos eram socialmente
difundidos. Nesse contexto, e seguindo as indicações feitas por Roger
Chartier (2010), que aponta a importância da posição do leitor frente ao
texto, é importante identificar nos poemas de Castro Alves uma
possibilidade de reflexão para professores e estudantes.
A literatura construída por Castro Alves é um registro de seu tempo,
por isso pode ser tratada pelo professor de história sob a ótica da inserção
de documentos em sala de aula. Nesse sentido, e como afirma Circe
Bittencourt (2011) e Selva Guimarães (2012) é preciso problematiza-lo a
luz do conteúdo didático posto, e não mais como simples ilustração ou
complemento novidadeiro. No caso particular deste trabalho os
conteúdos, Guerra do Paraguai e Escravidão no Brasil, ganham quando o
professor de história decide fazer uso das representações sociais
presentes nos poemas de Castro Alves. Com isso, modos de vida,
expectativas, lutas, resistências, opressão, são questões que saltam dos
escritos, e que permitem ao estudante leitor uma visão sobre o espaço
temporal dos acontecimentos, dimensões ausentes ou que podem
estarem fragilizadas nos manuais didáticos.
Uma aproximação entre Literatura e História, pode vir a ser algo
representativo e importante para o campo do Ensino de História, uma vez
que a escola pode ser percebida como um espaço público de produção e 9

disseminação do conhecimento histórico, ações possíveis, sobretudo por


meio da interdisciplinaridade. A trajetória dessa produção/disseminação
para as normas historiográficas atuais deve estar alicerçada em uma serie
de conhecimentos produzidos pelas mais diversas culturas. Tal
aproximação, por meio de uma abordagem interdisciplinar em muito
contribui para construção de um conhecimento histórico escolarizado e
capaz de oferecer ao estudante o contato com múltiplas representações
do passado, algo percebido por meio das artes, e da arte literária presente
nas obras de Castro Alves. Com isso, há um ganho significativo para a
construção do conhecimento histórico em sala de aula, uma vez que aos
sujeitos envolvidos nesta ação, professores e estudantes, tem a sua
disposição uma linguagem sobre uma dada realidade social que lhes
permite problematizar a sua própria realidade, isso em movimento
constante de verificação das identidades sociais.
Por fim vale dizer que, sobre ensinar história, e de seu papel, o
Ensino de História, tal como o movimento historiográfico nos últimos
tempos, ganhou com o diálogo interdisciplinar entre a História e a
Literatura no ambiente escolar. Tais aproximações permitem ao professor
de história novos horizontes, novos documentos, conseguinte, novas
possibilidades para o processo de ensino aprendizagem na disciplina
história. O trabalho em sala de aula, a partir do gênero literário poesia
mostra inúmeros caminhos e alternativas de discussão para conteúdos
tradicionais na disciplina história. Para além da beleza estética, os versos
de Castro Alves denunciam seu tempo, seja na Guerra do Paraguai ou
sobre a Escravidão no Brasil, sua militância política põe em evidência 10

sujeitos históricos marginalizados e auxiliam professores e estudantes no


contato com a diversidade da condição humana no tempo passado, na
História.

Referências Bibliográficas
ALVES, Castro. Espumas Flutuantes. São Paulo: Martin Claret, 2009.
_____________. Os escravos. São Paulo: Martin Claret, 2007.
BAKHTIN, Mikhail. O contexto de valores (autor e contexto literário). In:
Estética da Criação Verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2ª
ed. — São Paulo: Martins Fontes — (Coleção Ensino Superior), 1997, p.
208-215.
BERGMANN, Michel. A condição escrava no Brasil. In: Nasce um povo. 2ª
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1976, p. 39-51.
BITTENCOURT, C. M. Usos didáticos de documentos. In: Ensino de
História: fundamentos e métodos. 4ª Ed. São Paulo: Cortez, 2011, p. 325-
338.
BLOCH, Marc. A história, os homens e o tempo. In: Apologia da história ou
o ofício do historiador. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001,
p.51-68.
CHARTIER, Roger. História e Literatura. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, 2010,
p. 197-216. Disponível:
http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi01.htm Acesso
em: 02/02/2016.
RUIZ, Rafael. Novas formas de abordar o ensino de história. In: História na 11

sala de aula: conceitos, práticas e propostas. KARNAL, Leandro (org.).


Contexto, 2012, p. 75-91.
GUIMARÃES, Selva. Literatura. In: Didática e Prática de Ensino de História:
experiências, reflexões a aprendizado. 13ª ed. rev. e ampl. Campinas-SP:
Papirus, 2012, p. 314-324.
UMA INVASÃO ORIENTAL EM PLENO BRASIL COLONIAL:
ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE AS CHINESICES
SÍNICAS EM TERRITÓRIO MINEIRO
Kamila Czepula1 1

Resumo: As reflexões a seguir apresentam de maneira breve o que se entende


teoricamente por chinesices, sua origem, sua base temporal-estilística. Diante deste
contexto, será discutido a presença desse gênero na ornamentação sacra da Capitania
de Minas Gerais, e os elementos que configuram uma chinesice como sendo sínica.
Palavras-chave: Chinesice, Igrejas católicas, Minas Gerais.

Abstract: The following reflections briefly present what is understood theoretically by


chinoiserie, its origin, its temporal stylistic basis. In this context, be discussed the
presence of this genus in the sacred ornamentation of the Captaincy of Minas Gerais,
and the elements that configure a chinesice as being sinica.
Keywords: chinoiserie, catholic churches, Minas Gerais.

[...] em nenhuma outra área americana o palanquim, a


esteira, a quitanda, o chafariz, o fogo de vista, a telha
côncava, o banguê, a rótula ou gelosia de madeira, o xale e
o turbante de mulher, a casa caiada de branco ou pintada
de cor viva e em forma de pagode, as pontas de beiral de
telhado arrebitadas em cornos de lua, o azulejo, o coqueiro
e a mangueira da Índia, a elefantíase dos Árabes, o cuscuz,
o alfeolo, o alfenim, o arroz-doce com canela, o cravo das
Molucas, a canela de Ceilão, a pimenta de Cochim, o chá da
China, a cânfora de Bornéu, a muscadeira de Bandu, a
fazenda e a louça da China e da Índia, os perfumes do
Oriente, haviam se aclimado com o mesmo à vontade que
no Brasil (FREYRE, 1977, cap. 9).

1
Mestranda em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (UNESP). Bolsista
Capes.
A presença do Oriente no Brasil colonial se faz perceptível na
culinária, na arquitetura de palacetes, nos móveis e artigos luxuosos de
casarões, nos modos de viver, de trajar e de transportar-se da época, até
mesmo, em espaços imagináveis, como na ornamentação de Igrejas
católicas, podemos encontrá-las. 2

Tal informação pode soar como algo inusitado, mas não é de hoje,
que curiosas decorações presentes na Capela Santo Antônio, Capela Nossa
Senhora do Ó, Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Sabará;
na Igreja Sede de Nossa Senhora da Assunção, em Mariana; na Igreja
Matriz Nossa da Conceição, em Catas Altas; na Matriz de Santo Antônio,
em Ouro Branco; e nas Igrejas Nossa Senhora do Pilar e Santa Efigênia, em
Ouro Preto; saltam aos olhos dos visitantes. Entre os entalhes dourados e
as pinturas em tons vermelhos que encobrem os painéis contidos em
algumas paredes desses templos católicos; pagodes, alguns seres oníricos,
motivos de flora e faunas orientais, personagens bíblicos com feições
chinesas ou portando indumentárias orientais, se destacam e despertam
interesse.
Cientificamente, essas pinturas foram classificadas como chinesices
- gêneros artísticos ornamentais, que fazem referências diretas ou
adaptadas ao repertório visual das artes extremo-orientais (Japão, China,
Índia). Já a nomenclatura chinesices (como são chamadas em território
brasileiro) possivelmente veio do termo francês chinoiserie utilizado
desde, pelo menos, o século XVII na França (PIMENTEL, 1989, p. 118).
Conforme delineia Maria João Ferreira (2015), as chinesices teriam
surgido na Europa, quando a oferta de produtos orientais ofertados no
mercado não supria a procura. Percebendo a aura de raridade que
envolvia estes artigos, e o interesse que despertavam, assim como, o
avultado preço que aos mesmos se associava, iniciou-se o
desenvolvimento em larga escala, de uma indústria de imitação, na qual a
imaginação que se fazia sobre os povos orientais desempenhou um papel 3

cada vez mais importante. Devido às diferentes fases temporais das


chinesices e suas variações de país para país, Álvaro Samuel Guimarães
Mota (1997, p.20) propõe como base temporal-estilística para uma
melhor compreensão teórica, a subdivisão em três períodos, realizada por
A. Bergmans (1991). O primeiro período seria

Entre fins do século XVII e a primeira metade do século


XVIII, como o momento da cópia e da imitação na cerâmica
e nas técnicas chinesas aplicadas ao mobiliário de estilo e
concepção europeus e da integração dos objetos
importados na decoração de interiores. Uma iconografia
sumária restringia-se à cópia de animais, de plantas e de
figuras humanas exóticas e, mesmo para a arquitetura, o
pavilhão chinês inspirava-se nos pagodes tipificados pelas
ilustrações em circulação. Num segundo período, mais
fantasioso, nas telas ou tapeçarias, verificava-se uma
associação de rocailles com pássaros, árvores e frutos
exóticos a par de figurações de arquiteturas de traços
asiáticos; e também um segundo tipo de decoração, o das
representações de cenas de gênero, povoadas por
personagens chinesas e européias, em atividades
cotidianas como a caça a pássaros, a pesca ou a cerimônia
do chá, assim como de variantes adaptadas de temas
iconográficos, como o dos cinco sentidos. Numa terceira
fase, apelidada de chinoiserie romantique, e datada a partir
de 1770, multiplicaram-se os interiores cobertos com
papéis pintados chineses, conjugados com a representação
de plantas exóticas, flores e animais de todas as espécies,
enquadrando cenas de um imaginado quotidiano chinês.
Esta iconografia decorativa é considerada como a da
criação de um jardim ilusório de interior (MOTA, 1997, p.
20)

Para a pesquisadora Andrea Longobardi as chinesices encontradas 4

na Capitania das Minas Gerais

podem ser localizadas entre esses dois primeiros períodos.


Sendo que algumas das obras encontradas na Capitania
seguem a temática indicada como imitação de flora e
fauna, personagens estilizados (tais como a da Igreja do Ó e
da Conceição de Sabará), e em algumas obras também se
pode encontrar a temática das cenas de gênero, com a
representação de cenas cotidianas, de forma exótica, como
a do Cadeiral de Mariana (LONGOBARDI, 2011, p.16)

Além de conter todos esses elementos expostos, as chinesices


sínicas detêm de algumas características próprias, que seguem a técnica
de pintura shanshui (montanha-água), que possibilita distingui-las das
demais. Com o passar dos anos os signos e modelos do gênero shanshui se
multiplicaram, todavia, a estrutura básica que corresponde: a ordenação
das imagens entre montanhas, nuvens e rios, nas quais, as ações
humanas, são representadas como limitadas pela ação do tempo e pela
gigantesca presença dos elementos naturais, podem ainda, ser facilmente
detectadas.
De acordo com Longobardi (2011), em Minas Gerais, os elementos
que caracterizam a pintura como sendo uma chinesice sínica são:
 Vegetais que seguem uma forma alongada e entortada, saindo das
pedras e extendendo-se tortuosamente.
 O pinheiro sendo representado de forma tortuosa típico de regiões
montanhosas do sudoeste da China.
5
 Vegetações brotando de pedras, ladeadas por templos ou casebres
orientalizados.
 O chorão oriental com tronco sinuoso e a miudez das suas folhas.
 A representação da fênix, ou outros pássaros ornamentais.

Um terreno fértil de controvérsias

Como pinturas com referências orientais puderam ser tão


densamente retratadas em Igrejas católicas? Seria apenas uma exceção
encontrada em território mineiro? Porém, estas imagens não iam contra o
que as grandes ordens religiosas pregavam na época? E a alusão ao
oriente foi realizada de forma explícita? Ou ainda, seriam esses
ornamentos apenas uma reprodução européia, do que era tido no período
como ‘belo – tendência’?
Tomando essas indagações como ponto de partida, observamos
várias divergências nos estudos historiográficos que procuraram sanar
esses, e muitos outros questionamentos que pairavam sobre as
chinesices. Num primeiro momento, esta liberdade de poder criar foi
apontada como uma consequência da proibição que a Coroa portuguesa
fez sobre a entrada de ordens religiosas em território mineiro, com fins de
fiscalizar a entrada e saída do ouro de grandes centros de mineração, o
que possibilitou a formação de uma cultura sem grandes raízes a tradição
religiosa.
Esse fato é salientado por Rodrigo Almeida Bastos (2011) ao
demonstrar que a arte sacra, na Capitania das Minas Gerais, muitas vezes
se transformou no contexto de sua produção, deixando de lado os dogmas 6

e estatutos tridentinos. O exemplo citado por Bastos, para comprovar o


mesmo, é o da construção de igrejas não voltadas ao nascente – batendo
de frente com a orientação do Concílio. Neste sentido

tais variações com relação às ordenações tridentinas


freqüentemente existiram na América portuguesa, e
especialmente na Capitania das Minas Gerais,
porquanto na primeira metade do século 18 nem
mesmo as ordens clericais puderam assumir a
diligência da produção artística sacra local. A
adaptação às culturas locais, o gosto daqueles que
primeiro encomendaram obras para ornamentar tais
templos, muitas vezes orientavam a produção artística
de um modo que não se adequava totalmente às
ordenações católicas romanas (LONGOBARDI, 2011, p.
76).

Uma vez, que a Coroa proibiu o estabelecimento de Ordens


religiosas, as capelas e igrejas, poderiam ser construídas tanto por Ordens
Terceiras, quanto, por associações seculares, devotas semelhantes a
modelos portugueses que mesclavam guildas artesãs e agremiações
religiosas sob a insígnia de um Santo de devoção, como é o caso da
irmandade de Nossa Senhora da Expectação do Parto, em Sabará. Neste
contexto, teriam sido as irmandades as responsáveis pela inserção das
chinesices na Capitania? E logo, as responsáveis por essa influência sínica?
Roberto Teixeira Leite (1999) nos aponta outro caminho, ao atribuir
à pintura dos painéis da capela Nossa Senhora do Ó, em Sabará, ao então,
padre - pintor Jacinto Ribeiro, proveniente de Macau (colônia portuguesa 7

na China), baseado na constatação, de que esse jesuíta estaria em


território luso-brasileiro no período em que a construção da capela se
deu. Todavia, até o momento não foi encontrado nenhum vestígio
histórico que comprovasse de fato, a presença deste padre em território
mineiro, assim como, não se tem conhecimento de nenhuma
documentação coeva que revele os meios que deram origem ao elenco
iconográfico que compõe a ornamentação da capela Nossa Senhora do Ó.
Por ora, sabemos que o pedreiro contratado se chamava Luis Vieira da
Motta, contudo, nada foi localizado em outro documento, que não o de
contratação da construção da Igreja. Outra hipótese sugere que era
possível, que houvesse algum vínculo entre o Capitão-Mor que contratou
as obras da Igreja (Capitão Lucas Ribeiro de Almeida) com o mestre de
obras contratante, e algum comerciante que possuísse relações com o
Oriente - Extremo.
A possibilidade de um pintor ou pintores, que tivessem tido contato
com as artes de Macau por um bom tempo, terem sido os responsáveis
por tais pinturas, se faz presente, como podemos observar no seguinte
enxerto:

com suas ruas estreitas, seus telhados de telha,


assemelhava-se a uma aldeia da Europa. Em suas
igrejas, de molduras rebuscadas, paredes vermelhas e
azuis, observei com surpresa aqui, nos afrescos, Jesus,
os anjos e os santos, tinham os olhos amendoados: os
pintores portugueses tinham estado em Macau”
(BEAUVOIR, p. 479, 1995.)

8
A referência, de que as chinesices encontradas nessas igrejas fosse
uma reprodução da porcelana chinesa, também foi cogitada. Como
podemos observar no seguinte fragmento:

conhecidas como ‘chinezives’, estas pinturas talvez


tenham sido recolhidas da louça de Macau, bastante
usual no Brasil de então, sendo de observar-se sua
ocorrência freqüente em Minas Gerais (Sé de Mariana,
Matriz de Sabará, Capela do Senhor do Bonfim em
Catas Altas, oratório de Nova Era, etc) ao passo que no
resto do país não são encontradas (VASCONCELLOS, p.
14 -1976).

Entretanto, a presença da louça chinesa, assim como, as


reproduções de mobiliário em território mineiro, só foi possível devido
uma relação já antiga do povo lusitano com o oriente, logo, esse contado
permitiu que muitos livros de gravuras sobre a arte chinesa se
espalhassem por toda Europa e o ‘exótico’ passava a ser cada vez mais
requisitado pela elite européia. Podemos observar tal fato, presente no
depoimento, realizado em 18 de Setembro de 1806, pela viúva de Junot,
na ocasião, embaixatriz da França em Lisboa, que registrou em Souvenirs
d’une ambassade et d’un séjour en Espagne et au Portugal as seguintes
opiniões:
os chineses são nossos desconhecidos, eu sei. [...] As
relações são frequentes entre Portugal e a China. Na
época de que falo sobretudo, navios ricamente
carregados chegavam diariamente da China e traziam
uma profusão de objectos raros e preciosos, fossem
eles sedas, ébano, madrepérola e sobretudo marfim. 9
A Inglaterra, que parecia prever o que se tornou uma
espécie de mania, comprava já e mesmo bastante
caro, todas estas coisas enviadas pelos chineses.
Quanto a nós detestávamo-las e esse momento de
transição das modas gregas e romanas para o luxo
verdadeiramente rico e bonito que o Império deu,
nada tinha em comum com as chinesices de
porcelana, os capacetes ferrugentos e todas essas
coisas que agora estão tão em moda [1813-1814] e
são tão desejadas! Que pena não ter previsto isso
naquela época! E como me teriam custado barato!
(ABRANTES, p. 102, 2008.)

Diante desse relato, poderíamos supor que a reprodução das


chinesices em território mineiro, se deu, de início, por meio da sua elite
local, que também se deixou tomar pelo o que era tido como a moda tão
desejada da época. Por conseguinte, os painéis acoroados dos templos
mineiros com referência a signos orientais, seriam “fruto da disseminação
desse gênero na Europa Ocidental, e de um gosto pelas referências a um
“Oriente” exótico” (LONGOBARDI, 2011, p. 174) que fora adaptado ao
próprio contexto da Capitania das Minas Gerais.
Todavia, eis que a porta esquerda da sacristia da Matriz Nossa
Senhora da Conceição, em Sabará, se não derruba tal teoria, ao menos
aponta vestígios históricos que podem revelar novos fatos. Já que é
possível, observar a utilização de uma iconografia especificamente sínica,
além de algumas técnicas de composição extremamente oriental na
mesma. Teria sido importada da China? Ou, Sabará teria contado com a
presença de artistas chineses, vindos de Macau?
No Brasil, contamos até o presente momento, com apenas dois 10

estudos teóricos sobre as chinesices presentes na arte sacra das Minas


Gerais, um deles, foi realizado por Dalva de Oliveira Abrantes, em
dissertação de mestrado defendida em 1982 na Escola de Comunicações e
Artes da USP, que por meio de uma pesquisa pioneira, apresentou o tema
com uma ótima abordagem historiográfica, relacionando-o sobre tudo ao
empreendimento ultramarino português. A segunda pesquisa foi
desenvolvida por Andrea Piazzarolo Longobardi, em dissertação de
mestrado defendida em 2011 no Programa de pós-graduação em História
da UFMG, na qual, realizou um excelente estudo voltado para a História
da Arte, comprovando a presença da influência sínica em muitos signos
contidos nas igrejas católicas do território mineiro. Os demais autores
brasileiros, ao se referir as chinesices, fizeram de maneira breve e
superficial, não raro, por meio de uma nota de rodapé, destacando esse
gênero como um elemento “curioso”, até mesmo “fora do comum”, ou
ainda, como um exemplo ilustrativo, que comprovaria uma suposta
multiplicidade congênita de culturas nas artes decorativas da época.
As afirmações, hipóteses, e dúvidas que compõem o debate
historiográfico em torno das chinesices existentes em território nacional
ainda são vastas, entretanto, esses enigmas só serão sanados, quando as
influências orientais recebidas pelo Brasil ao longo de sua história forem
entendidas como uma ramificação do seu multiculturalismo, e não, um
mero apêndice.

Referência bibliográfica 11

ABRANTES, Dalva de Oliveira. Chinoiserie no barroco mineiro. São Paulo:


Escola de Comunicação e Artes da Usp, 1982. Dissertação.

ABRANTES, Duquesa de. Recordações de uma Estada em Portugal (1805-


1806), Portugal e os Estrangeiros, BNL, Lisboa, 2008.

BASTOS, Rodrigo Almeida. “Decoro, engenho e maravilha nos largos e


igrejas de Santa Bárbara e Catas Altas”. PER MUSI. n. 24. Belo Horizonte:
2011. pp.67-78.

Ferreira, M.J.P. “Chinoiserie”; in Alexandra Pelúcia, cient. coord., E-


cyclopaedia of Portuguese Expansion, Lisbon, Centro de História de Além-
Mar, 2015.

FONSECA, S. M. Orientalismos no Barroco em Minas Gerais e a


Circularidade Cultural entre o Oriente e o Ocidente. Revista de Cultura,
Macau, v. 22, 1995.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: José Olympio,


1977.

JACOBSON, Dawn. Chinoiserie. Londres: Phaidon, 1999.

LEITE, José Roberto Teixeira. A China no Brasil. Campinas: Editora da


Unicamp, 1999.

LONGOBARDI, A. Fragmentos de Visualidades Chinesas nos setecentos


mineiro (1720). Minas Gerais: Universidade Federal de Minas Gerais, 2011.
Dissertação.
MOTA, Álvaro Samuel Guimarães. Gravuras de Chinoiserie de Jean-
Baptiste Pillement. 2 vols. Dissertação de mestrado em História da Arte
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto,
1997.

PEREIRA, Ana Luiza de Castro. Viver nos trópicos com bens do Império: a
circulação de pessoas e objectos no Império Português. Anais do XIV 12
Seminário sobre a Economia Mineira, 2010. Acessado em 14/10/2014 in:
http://ideas.repec.org/s/cdp/diam10.html

PIMENTEL, Antonio Filipe. “Chinoiseries” in José Fernandes Pereira (dir.)


Dicionário de Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989.

VASCONCELLOS, Sylvio de. “Igrejas e capelas de Sabará”. In: Revista


Barroco, Belo Horizonte, 8:12-27 Jul/1976.

_________________. Capela Nossa Senhora do Ó. Belo Horizonte:


Imprensa Nacional, 1964.

ANEXOS
13

Imagem 1 e 2 são detalhe da pintura do Cadeiral do Bispado da Igreja


Sede de Nossa Senhora da Assunção, em Mariana.
14

Detalhe do douramento dos retábulos do Santíssimo sacramento da Igreja


Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Catas Altas.

Detalhe do douramento do retábulo de Sant´Anna na Matriz de Santo


Antônio, em Ouro Branco.
15

Porta da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição, em Sabará.

Capela Nossa Senhora do Ó, em Sabará.


MEMÓRIAS DE UM CONFLITO: O ÍNDIO NO DIÁLOGO
ENTRE O COTIDIANO E O CONTEXTO SOCIAL
ENVOLVENTE
Luan Moraes dos Santos*
José Adelson Lopes Peixoto** 1

Resumo: Este trabalho tem como principal objetivo descrever fatos rotineiros da
comunidade indígena Xukuru-Kariri da Mata da Cafurna (Palmeira dos Índios-AL) em
contextos sociais decorrentes do processo de assimilação da cultura dos não índios.
Permeia os conceitos de memória e história oral, tendo como fontes metodológicas
principais, relatos colhidos durante pesquisa de campo na Aldeia Indígena Mata da
Cafurna. Pretende-se analisar de que forma o cotidiano da comunidade indígena vem
se relacionando com o desenvolvimento do Município de Palmeira dos Índios. A
pesquisa é fundamentada em pressupostos teóricos de Carrara (2003), Le Goff (1994),
Peixoto (2011), Silva (2007) e Silva Júnior (2013). Este estudo contribui com a discussão
sobre o cotidiano indígena na aldeia frente ao processo de demarcação territorial que
tramita na justiça e ocupa o centro das discussões na cidade de Palmeira dos Índios-AL.
Palavras-chave: Etnografia. História. Memória.

Resumen: Esto trabajo tiene Xukuru-Kariri del bosque de Cafurna (el árbol de Palmera
de índios - AL) como el objetivo principal de describir los hechos rutinarios de la
comunidad autóctona en contextos sociales en curso del proceso de la asimilación de
la cultura de los non indios. Se extienden por los conceptos de la memoria y la historia
oral, cuidan tan fuentes metodológicas principales, informes escogieron durante
investigación de campo en las matanzas de pueblo indígenas de Cafurna. Quiere que
analizar eso moldee el diario de la comunidad autóctona venir con el desarrollo del
distrito municipal del árbol de Palmera de los Índios si se relacionando. La
investigación es fundada hacia dentro presupuesto teórico de Carrara (2003), Le Goff
(1994), Peixoto (2011), Silva (2007) y Silva Júnior (2013). Este estudio contribuye con la
discusión sobre el diario autóctono del delantero de pueblo al proceso de
demarcación.
El Word-la tecla: Etnografía. Historia. Memoria.

*
Graduando do Curso de História da Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL Campus III Palmeira dos
Índios, membro do Grupo de Pesquisa em História dos Povos Indígenas de Alagoas – GPHI/AL e
pesquisador voluntário PIBIC/FAPEAL.
**
Graduado em História pela UNEAL. Mestre em Educação e Antropologia. Professor de História
Indígena no Curso de História da UNEAL Campus III Palmeira dos Índios e coordenador do Grupo de
Pesquisa em História dos Povos Indígenas de Alagoas – GPHI/AL.
Notas introdutórias: a necessidade de situar a pesquisa
Quando propomos no título a ideia de ‘memórias’, é porque a
pretensão desta pesquisa é formular discussões quanto ao que podemos
observar nos relatos deixados pelos mais velhos e como esses causos
podem se revelar como representativos de uma história de lutas e 2

conquistas. Tendo em mente que o conteúdo oral deve ser questionado,


pois, nem sempre representa a lembrança da comunidade e, como tal,
pode simplesmente traduzir a ótica de uma pessoa ou de um grupo
restrito.
Os fatos aqui relatados são, em sua maioria, fragmentos do
cotidiano da comunidade que vive na Aldeia Indígena Mata da Cafurna,
localizada a 6 km do centro da cidade de Palmeira dos índios - AL. As
terras nas quais se formou a Aldeia foram retomadas em 01/12/1979 e
desde então abrigam uma comunidade que se faz presente pela força de
seu artesanato, cultura e também nas apresentações do Toré, dança típica
dos povos indígenas do Nordeste.
O processo histórico de formação e consolidação do município de
Palmeira dos Índios presenciou o silenciamento da cultura indígena local,
quer por preconceito ou pela imposição dos poderes políticos, de modo
que os indígenas desenvolveram desconfiança indo habitar a região
serrana de onde a visão é mais ampla e caso de invasão e ameaça. Ao
longo da história, foram obrigados a se negar enquanto etnia e a se
misturar com culturas estranhas a sua, a realizar seus rituais sagrados na
escuridão da noite e na ilegalidade.
Ainda na atualidade o preconceito é latente, são taxados de
preguiçosos, de ladrões e até mesmo de interesseiros. Isso sem falar da
maneira pejorativa que são vistas suas danças e rituais, sendo este último
elemento mantido fora do alcance, do controle e da interferência do não
índio, sendo o principal elemento diacrítico da sua identidade. Por outro 3

lado, são usados de forma lucrativa, uma vez que seu etnônimo “Xucuru”
jaz estampado em vários estabelecimentos comerciais da cidade e são
referenciados em antigas lendas sobre a fundação e emancipação de
Palmeira dos Índios.
A história de Palmeira dos Índios é ancorada na história do povo
Xucuru-Kariri, mas este povo não é reconhecido como verdadeiro dono
desta terra, isso ocorre por causa do jogo político que, envolve a disputa
pela posse das suas terras, até então parceladas e ocupadas por pequenos
produtores, na sua maioria, manipulados pelos grandes oligarcas, com os
quais está a maior parcela de tal território, marcado pelos vestígios1
comprobatórios da posse imemorial dos indígenas.

A ideia Positivista de assimilação: reafirmação e ressurgência dos


Xukuru-Kariri
Tentativas de integrar o povo indígena a população nacional não
cessaram. Como por exemplo, a extinção de seus aldeamentos e a
proibição do culto a sua religião. Eles tiveram a existência de suas aldeias

1
A terra que compõe a área em litígio é marcada por cemitérios indígenas, como já foi comprovada por
achados arqueológicos de Clóvis Antunes (1973), Luiz B. Torres (1973) e Estevão Pinto. Alguns materiais
líticos e cacarias das escavações encontram-se expostos no Museu Xucurus de História, Artes e
Costumes, no centro da cidade de Palmeira dos Índios.
negadas e se viram cerceados no direito a vivência da sua cultura. “Nesse
caso, o silêncio tem razões bastante complexas.” (POLLAK, 1989, p. 6)
Emudeceram suas vozes e maracás, para garantir a sobrevivência de seu
grupo.
Não restaram muitas formas de sobreviver senão, formulando e 4

reformulando estratégias de invisibilidade cultural e inserção no cotidiano


da sociedade que os circundava, “*...+ prosseguem seu trabalho de
subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível *...+” (POLLAK,
1989, p. 4) sobre isso Aldemir B. da Silva Júnior enfatiza que:

Dentre essas estratégias está a da invisibilidade,


entendida como referência à existência de um
movimento indígena subterrâneo, em construção.
Nesse contexto, o índio é apresentado como sujeito
ativo no processo de aldeamento, mesmo que este
resulte na instalação do Posto Indígena. Ao observar
as iniciativas dos índios nesse período, percebe-se a
aldeia como avanço estratégico, algo pretendido pelos
grupos. (SILVA JÚNIOR 2013, p 15)

Segundo o evidenciado acima, a criação de postos indígenas levava


consigo interesses não só dos índios, mas também os interesses das
classes mais privilegiadas da sociedade envolvente, que buscava fazê-los
depender de suas vontades, tendo que se conformar com o que lhes
coubera; “*...+ afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e
exacerbados. A memória entra em disputa.” (POLLAK, 1989, p. 4)
É durante este processo, que surge primeiramente a Aldeia
Fazenda Canto, tendo como órgão responsável o Posto Indígena Irineu dos
Santos, e no final dos anos setenta, do século XX, a Aldeia Mata da
Cafurna. Até chegar aos dias de hoje sob a tutela da FUNAI, tendo se
formado ainda outras Aldeias (Coité, Cafurna de Baixo, Boqueirão, Serra
do Amaro e Capela).
Passemos agora a descrição e análise de um dia junto aos 5

habitantes da Aldeia indígena Mata da Cafurna, memórias de histórias e


conversas despretensiosas que revelam o quanto ainda existe da
colonização no seio das comunidades tradicionais. Vale lembrar que estas
análises partem de pesquisa de campo realizada na aldeia desde o ano de
2013.

Visitando a Aldeia Indígena Mata da Cafurna: Ecos de um passado ainda


presente
A Mata da Cafurna abriga a barragem que, abastecia a cidade de
Palmeira dos Índios, até os anos sessenta do século XX com a chegada da
Casal, quando o Estado assumiu o abastecimento da região. Daí por diante
a Barragem ficou abandonada, o que causou tensão entre os Índios e os
habitantes da cidade de Palmeira dos Índios. A barragem foi reformada
nos dias atuais, depois de um longo processo que fomentou medo tanto
por parte da população quanto por parte dos Índios.
Durante visita a Aldeia Indígena Mata da Cafurna em 2013,
encontramos por lá Dona Salete Santana sentada em sua varanda,
costurando em sua máquina e contando as histórias que sua experiência
de vida lhe relegou, uma fêmea de papagaio estava dependurada de
cabeça para baixo, no telhado, espreitando curiosamente os visitantes.
Nessa ocasião fomos bem recebidos por ela e seu esposo o Sr. Antônio
que esperava ansioso, sentado em sua cadeira preguiçosa, pelo futebol.
Convidou-nos a tomar um cafezinho e durante a socialização e movida por
comentários quanto à procedência de tal máquina, dona Salete nos
relatou o seguinte: 6

Eu juntava uns pedacinho(sic) de pano e costurava à


mão para fazer umas roupa, mas era difícil e o meu
sonho era ter uma máquina de costurar para poder
fazer mais rápido as roupas pros menino, e Antônio
tava(sic) trabalhando como pedreiro na construção da
Igreja. Então ele pediu ao Padre Odilon para comprar
a máquina pra mim que depois era só ir tirano no
dinheiro que ele tinha que pagar a Antônio (sic).

Ao falar que seu esposo trabalhou na “construção da igreja” (sic),


D. Salete quis explicar que, estava sendo feita uma reforma na da Catedral
diocesana de Palmeira dos Índios de acordo com Tiago B. da Silva:
“Começam os trabalhos da última grande reforma da Catedral Diocesana
de Palmeira dos Índios no dia 04 de Abril de 1968 perdurando os trabalhos
até 1976. *...+” (SILVA, 2009 p. 34) O padre comprou a máquina de
costuras para ela e acertou que descontaria o valor, em parcelas, do
pagamento do trabalho que o Sr Antônio realizava na reforma da catedral.
Com isso constatamos que o contato entre os índios e a igreja era comum.
O relato anterior evidencia o contato dos índios com a igreja e
como esta aplicava a mesma política do Estado ao incorporar sua mão de
obra, é o que “entende-se por proletarização étnica a integração do índio
ao sistema capitalista por meio da venda de sua força de trabalho”. Este é
um exemplo da maneira como o cotidiano do índio tem influenciado no
contexto social e também na história da cidade de Palmeira dos Índios,
pois participaram da construção de um monumento de importância,
mesmo que tenha passado como despercebido eles deixaram indícios de 7

sua proletarização, e de como aprenderam técnicas de construir e edificar,


as quais incorporaram a sua cultura.
Após o relato minucioso de D. Salete sobre a compra da máquina
de costuras, fomos visitar a Escola Estadual Indígena Mata da Cafurna que
oferece alfabetização e o ensino fundamental I (do 1º ao 5º ano) as
crianças da Aldeia. A escola, na ocasião da visita havia sido recentemente
reformada, e contando com um laboratório de informática. Visitamos
cada sala e, ao ir no pátio, nos deparamos com uma Jaqueira que, se
encontra dentro da área da escola. Segundo Dona Tânia, diretora da
Escola, foi por mais de um ano o abrigo do seu povo recém-chegado ao
que mais tarde seria a Aldeia. Ela era ainda criança na época quando se
deu a retomada da terra, que estava destinada a construção de uma
faculdade. Temendo a destruição da mata lá existente eles se mobilizaram
e ocuparam a terra, obtendo seu direito de uso-fruto.
Segundo Le Goff , “A memória é a propriedade de conservar certas
informações, propriedade que se refere a um conjunto de funções
psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações
passadas, ou reinterpretadas como passadas. ” (LE GOFF, 1994 p. 419)
Partindo dessa ideia, é possível dizer que os Xukuru-Kariri foram sofrendo
influências de outras culturas, assimilando conhecimentos e adquirindo
elementos importantes para fortalecer sua cultura como os ofícios de
pedreiro, carpinteiro, marceneiro e ajudante que foram preponderantes
para a mudança das tradicionais habitações para as atuais.
Como resultado dessa intensa assimilação cultural, incorporaram
novos elementos ao cotidiano, pois ao se adaptarem às novas culturas, 8

certamente abriram mão de elementos particulares e significativos da sua


cultura, e assimilaram elementos novos que vieram a ser utilizados como
diacríticos ou marcadores sociais para (re)definir sua identidade cultural.
Um bom exemplo disso é a mudança das ocas, ou as tradicionais
casas de taipa para as casas de alvenaria, devido ao medo de terem suas
ocas queimadas, ou por questões de saúde, pois as casas de taipa podem
se tornar abrigo do barbeiro, o vetor da doença de Chagas. A situação
obrigou-os a se adaptarem e a se redefinirem enquanto membros de uma
comunidade específica.
A memória resultante do processo de assimilação cultural norteia
esta pesquisa. Portanto podem revelar o contexto social em que a
comunidade indígena se encontrava em dada época. Aquilo que foi
apreendido pela consciência dos indivíduos, se aderiu ao cotidiano deles e
mudou a forma de ver o mundo, grosso modo, aconteceu também uma
troca de ideologia. Sobre isso, o professor Edson Silva enfatiza que:

A análise de narrativas colhidas por meio de


entrevistas nos permite perceber como
acontecimentos históricos foram relidos [...] em
determinados contextos e situações, também como a
essas leituras foram atribuídos significados para a
afirmação da identidade indígena. (SILVA, 2007, p. 01)

Ao atuar na reforma da igreja matriz de Palmeira dos Índios, os


indígenas fizeram com que o padre lhes ajudasse, em troca de sua força 9

de trabalho; os índios passam então a tornar seus os hábitos e os


momentos históricos importantes, pois isto convinha para sua
sobrevivência e a permanência do povo como um coletivo. E das serras,
contemplam a cidade que se formou encima dos túmulos de seus
ancestrais; a mesma cidade onde de dia trabalham, tirando seu sustento.
A trajetória dos povos Xukuru-Kariri de Palmeira dos Índios –
Alagoas está marcada, pela luta épica contra a opressão dos posseiros e
da mídia local. Também foi possível observar que os índios tiveram que se
adaptar as mudanças sociais e a se camuflar entre os habitantes da
cidade, não assumindo sua etnia e até mesmo sendo considerados
extintos, seres do passado. Mas que através de sua religião e cultura
passaram a assumir suas origens se organizando e retomando uma ínfima
parte seu território, contudo ainda enfrentam os posseiros que tem se
organizado, atuando dentro e fora dos plenários.
Os relatos aqui apresentados constituem parte do cotidiano da
Aldeia Indígena Mata da Cafurna; um cotidiano que penetra no imaginário
social de Palmeira dos Índios, formando uma imagem generalizada e
taxativa; dos índios como marginais, preguiçosos e hediondos, pois que as
elites latifundiárias detêm a posse da mídia. Assim:
As experiências de cada um nos falam dos lugares
sociais ocupados pelos diversos sujeitos que habitam,
moram, trabalham e se divertem na cidade, e elas são
constantemente ressignificadas e atualizadas pelas
memórias, que nos chegam pela via das narrativas.
(CARDOSO, 2007, p. 178) 10

Nesse ínterim “*...+ as representações sustentadas pelas influências


sociais da comunicação constituem realidades de nossas vidas cotidianas e
servem como o principal meio para estabelecer as associações com as
quais nós nos ligamos uns aos outros.” (MOSCOVICI, 2003, p. 8) E é assim,
por meio de representações sociais que, o povo de Palmeira dos Índios
enxerga os Xukuru-Kariri como dilapidadores negando qualquer indício de
sua cultura, pois não se aparentam como os índios amazônicos já que são,
tecnicamente, misturados.

Notas conclusivas: perspectivas de uma nova realidade


Ao observar a situação da aldeia nos tempos atuais, foi possível
constatar que problemas comuns ao ambiente da cidade também se
encontram, mesmo que de formas diferentes inseridos no seio da
comunidade indígena, que são resultados da assimilação cultural descrita.
Entretanto, a sociedade envolvente, tem seus olhos vendados pela mídia
local que está sob o controle dos grandes posseiros e políticos da região.
Assim influenciados passam a atribuir vários adjetivos e impropérios aos
Índios que buscam maior reconhecimento perante a sociedade.
Os conflitos oriundos na disputa pela posse da terra têm criado
momentos de enfrentamento e de reclusão, de visibilidade e de
invisibilidade como recursos de sobrevivência do povo Xucuru-Kariri que
se esforça para resgatar e transmitir seus costumes e crenças, todavia
mesmo com o dialeto nativo já perdido, eles têm passado alguns 11

vocábulos restantes aos mais novos. Desta forma deve-se dar ênfase a
importância da escola no seio da Aldeia, como importante percussora da
cultura.
No entanto o Índio que é apresentado hoje é resultado das
sucessivas perseguições, do escravismo, da catequese, do preconceito e
da privação de sua terra e religião. E ainda, mesmo que a sociedade tente
permanecer relutante em aceita-lo não como uma simples parte da
História, mas como parte essencial, pois sua presença já não pode mais
ser simplesmente ignorada já que estão ganhando espaço nos vários
setores da sociedade e até mesmo na política. Pois a invisibilidade não
tem mais sentido, já que só se tem atenção quando ganha visibilidade,
deixando de ser uma lenda para confirmar sua presença na realidade.

Referências
CARDOSO, Heloisa Helena Pacheco. Os “anos dourados”: memória e
hegemonia. ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 14, p. 169-184, jan.-jun. 2007
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1994 p.
419.
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia
social; editado em inglês por Gerard Duveen; traduzido do inglês por
Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silencio. IN: Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
SILVA, Edson. História, memórias e identidade entre os Xukuru do
Ororubá. 2007.
SILVA, Tiago Barbosa da. Poder Sagrado: A Visibilidade e a Projeção da
Igreja
Católica em Palmeira dos Índios. Trabalho de Conclusão de Curso 12
apresentado ao Curso de História da Universidade Estadual de Alagas –
UNEAL Campus III Palmeira dos Índios, 2009.
SILVA JÚNIOR, Aldemir Barros da. Aldeando Sentidos: os xucuru-kariri e o
serviço de proteção aos índios no agreste alagoano. Maceió: EDUFAL
2013.
DAOISMO, CONFUCIONISMO E BUDISMO:
PENSAMENTOS DE UMA CHINA LONGÍNQUA

Lucas Rodrigues Pereira da Silva

1
Resumo
Budismo, Confucionismo e Daoismo são as três correntes filosóficas mais conhecidas
na China, entretanto, muito pouco se sabe sobre elas no ocidente, sendo assim, torna-
se muito importante dá uma maior relevância para estas doutrinas, seja para entender
um pouco mais sobre a história chinesa, tal como para preencher o grande vácuo
histórico deixado pelo longo período sem um contanto formal entre China e o ocidente;
então, para que se tenha uma melhor compreensão é necessário também saber que
cada uma das doutrinas se desenvolveram de formas diferentes, cada uma possuíam
objetivos diferentes, todas tiveram bons e maus momentos ao longo da história. Será
também abordado um pouco sobre o objetivo de cada corrente e como elas foram
mudando ao longo do tempo, sendo assim, a dinastia Han servirá de periodização para
uma melhor análise, pois durante este período a China conseguiu unir muitas
doutrinas, formando novos pensadores e novas correntes de pensamento; entretanto,
esta mesma dinastia é cercada de mitos que acabam dificultando ainda mais o
entendimento da história chinesa. Também se torna importante analisar se existe ou
não religião na China, pois grande parte das doutrinas não segue uma divindade, para
tal torna-se muito importante saber a origem do termo “religião”.
Palavras-chave: Daoismo, Confucionismo, Budismo.
Abstract
Buddhism, Confucianism and Daoism are three philosophical currents better known in
China, however, western just know a little about them, therefore it’s very important
give more importance to these doctrines, be for understand a little more about the
history of China, such as fill the great historic vacuum left by the long time without a
formal contact between occident and China; so, to a better understanding is need to
know that each doctrine developed differently, each one had different objectives, by
having good and bad moments over the history. Will be discussed a little about the
objective of each philosophical current and their change over the time, thus, the Han
dynasty will be analyzed, because in this dynasty many new philosophical currents and
thinkers arose, but, this same dynasty is surrounded for many myths about the
Chinese history. It’s so important to analyze the Chinese religion, because there’s a
great difference between occident and orient about religion meaning.
Keywords: Daoism, Confucianism, Buddhism.
Daoismo
Ao falar de filosofia chinesa é muito comum lembrar-se de um
símbolo bastante curioso que consiste num círculo dividido em duas
partes, sendo um lado branco e o outro preto, cada lado ainda possui um
pequeno círculo com a cor do lado oposto, este é o símbolo do daoismo 2

(ou taoismo). Daoismo, 道学 (dào xué) em chinês, é uma corrente


filosófica que surgiu na China durante as antigas dinastias, os historiadores
atribuem Lao Zi (老子 – Lǎo Zi) como pioneiro desta linha de pensamento.
Naturamente tem-se a curiosidade de saber qual o significado do
termo, mas não há como encontrar um termo para tal, pois para o
daoismo tudo tornar-se relativo, nada pode ter um significado único, nada
pode chegar a uma conclusão, o caractere 道 (dào) significa caminho, e
um caminho que é percorrido mudará sempre ao longo do tempo; o
daoismo tenta mostrar que cada coisa no mundo tem sua particularidade,
o exemplo mais claro é a pergunta: um cavalo branco é um cavalo? Pode
parecer uma pergunta óbvia, mas quando bem analisada percebe-se que
quando é dito que não há diferença entre os animais acaba-se simplificado
muito dois seres que são distintos, esta pergunta também pode ser feita
com diferentes animais e nota-se que quando a resposta é negativa
sempre haverá um diminuição muito grande de um dos animais, isto pode
ficar mais claro quando a pergunta é feita usando pessoas como exemplo
ou até objetos. Usando esta linha de raciocínio entende-se um pouco mais
o, já supracitado, símbolo do daoismo, pois tudo “[...] assume um duplo
aspecto, o bom e o mau interpenetram-se, o yin e o yang, são duas partes
de um mesmo todo. Daí a solidez, a agilidade e a inovação permanente do
pensamento taoista [...]”1.
Pode-se imaginar que a doutrina não tenha pé nem cabeça, mas
caso fosse assim ela não atrairia tantos adeptos, chegando até a ser
adotada pela dinastia Han (汉 – Hàn), entretanto um daoismo diferente, 3

tido como neodaoismo, ou seja, com algumas mudanças e releituras dos


escritos de Lao Zi; Wang Bi deu início a esta nova corrente filosófica, esta
era totalmente diferente do daoismo de Lao, Wang chegava a afirmar que
“[...]Confúcio e Lao não eram completamente incompatíveis”2. A dinastia
foi uma era de mudança para o daoismo tradicional, a filosofia começaria
a ser entendida também como uma religião; Wang Bi deu início a uma
multipolarização do sentido do daoismo. Wang não estava tão errado em
afirmar que as filosofias de Confúcio e Lao podiam coviver harmonia,
ambas tentavam buscar a paz e o bem do homem, certamente que por
meios diferentes, mas o objetivo final sempre era o mesmo.
Wang Bi pode estar certo ao dizer que Lao e Confúcio podem ser
compatíveis, mas durante o período em que estavam vivos não faria
sentido que ambos dessem as mãos, é necessário entender a situação
particular de cada um e a situação em que a China se encontrava na época;
Lao Zi possivelmente vem de uma família de prisioneiros ou escravos,
explicando assim sua repulsa com relação ao excesso da burocracia
confucionista, quase sempre aplicada na aristocracia 3. O daoismo inicial

1
ABREU, Antonio Graça. Lao Zi e o Taoismo. In: Bueno, André; NETO, José Maria.
Antigas Leituras: Visões da China Antiga. União da Vitória: UNESPAR, 2014.
2
ROBERTS, J.A.G.. História da China. Lisboa: Texto e Grafia, 2012.
3
Idem.
pode ser tido como uma filosofia de caráter mais direto, pois condenava
os rituais, de qualquer natureza, inclusive a própria burocracia que era
tida por necessária para Confúcio, Lao considerava tudo isto supérfluo 4.
Hoje em dia quando pergunta-se a um chinês qual sua religião ele
responderá dizendo que não tem, mas provavelmente dirá que ele e sua 4

família são daoistas; talvez ele sequer saiba a origem disto tudo, mas,
como já abordado, durante a dinastia Han novas linhas de pensamento
deram caras novas para as antigas filosofias, porque como qualquer outra
filosofia, o daoismo também modificou-se ao longo do tempo, podendo
ser interpretado de diversas maneiras dependendo da situação em que a
China se encontrava.

Confucionismo
Durante a dinastia Zhou (周 – Zhōu), período em que a China estava
bastante dividida em pequenos reinos, sendo conhecido como período
dos estados combatentes, o país era sempre acometido por guerras
internas, é neste cenário que surge a figura de 孔子 (Kǒng Zǐ), ou Confúcio,
como é conhecido no ocidente, diferente de Lao, Confúcio vinha de uma
família nobre, mas não de uma alta nobreza 5, sendo assim, ele estudava
bastante para ter acesso a um emprego melhor em cargos públicos, as
provas exigiam muito dos participantes, devia-se saber escrever bem,
conhecer as leituras clássicas e também possuir um bom entendimento
dos rituais.

4
Idem.
5
Idem.
Confúcio não se mostrava feliz com o período em que seu país
passava, segundo ele todo mal que acometia o país era devido ao não
cumprimento dos rituais por parte dos governantes, os rituais consistiam
em: apreciar músicas, leitura dos clássicos, fazer honras funerárias dignas
de acordo com a hierarquia do falecido, tudo isto devia ser seguido 5

ferrenhamente segundo ele, seus ensinamentos colocavam o


cumprimento dos rituais acima de quaisquer outras responsabilidades;
Confúcio passou um bom tempo exilado, era perseguido por líderes de
pequenos estados devido a suas fortes críticas, seus discípulos deixaram
seus ensinamentos escritos; apesar de estudar bastante, Confúcio nunca
conseguiu almejar completamente seus objetivos, antes do exílio
costumava ocupar pequenos cargos públicos, suas ideias não foram tão
bem aceitas para a maioria dos líderes políticos de sua época.
Pode-se indagar de onde Confúcio tirou suas ideias, serão todas de
inspiração própria? Certamente não são de inspiração própria, é
necessário entender que ele vem de uma família nobre, sendo assim, seus
pais o instruía a ler os clássicos para que ele futuramente pudesse
alcançar um cargo público, algo tão desejado entre os letrados, o próprio
Confúcio diz que gosta dos antigos e se inspira neles (CHIN, Annping,
2008)6; seus ensinamentos mostram como uma família nobre chinesa
deveria viver à sua época; constantes guerras civis fariam com que
Confúcio culpasse os líderes pela preponderância da violência, pois uma
vida inserida em ritos não deixaria tempo para guerras ou sequer

6
CHIN, Annping. O Autêntico Confúcio: uma vida de pensamento e política. São Paulo.
JSN, 2008.
interesse por elas; os ensinamentos de Confúcio também sofreram
modificações durante a dinastia Han, mas a essência original de seus
ensinamentos ainda persiste: o respeito, seja aos mais velhos, neste caso
podendo ser o mestre, pais ou professor, como também respeito às
tradições, sem nunca deixar os rituais de lado. 6

Budismo
O budismo já era conhecido pelos chineses, desde a época da rota
da seda7, mas foi a partir da dinastia Han que o budismo começou a ter
um papel mais importante no cenário chinês; de início o budismo sofria
uma forte resistência, tanto por parte dos daoistas como dos
confucionistas; a filosofia budista deixava todo e qualquer plano terreno
em segundo plano8, demorou um bom tempo para deixar de ser olhado
com desconfiança, mas até o final da dinastia Han o budismo já estava
espalhado pela China e muitos governantes aderiram ao budismo.
Mas por que abordar o budismo? Uma doutrina que sequer é
chinesa. Muitas pessoas se confundem com relação às origens do budismo,
muitos dirão que o budismo é chinês, ou seja, nota-se o quão a doutrina
conseguiu se inserir na China que chega até a ser confundida como algo
puramente chinês; a partir da dinastia Han muitas doutrinas sofreram
fortes mudanças, algumas chegando a mesclar-se entre si, e o budismo
não ficou de fora, muitos neoconfucionistas e neodaoistas converteram-se

7
ROBERTS, J.A.G, op. cit, loc. cit.
8
Idem.
ao budismo9, sendo assim, trazendo uma nova bagagem intelectual para o
budismo; mas certamente o budismo não perdeu seus objetivos iniciais
que são o desapego da vida terrena e a busca do nirvana.

A grande dinastia Han? 7

A dinastia Han é tida como a principal das antigas dinastias chinesas,


de fato foi a que mais perdurou no poder, e ainda deixou um grande
legado para a China em muitos aspectos; a dinastia Han deixou um vasto
legado dando a ideia de que a China apenas prosperou nesta época, mas é
um grande erro a observar deste modo, suas antecessoras puderam ser
tão prósperas quanto ela; o pouco que se sabe das dinastias: Xia (Xià – 夏),
Shang (Shāng – 商), Zhou e Qin (秦 – Qín) já mostra o quão ricas elas
poderiam ter sido; foi no período Zhou que Lao e Confúcio propuseram
suas ideias para uma China melhor, foi toda uma bagagem histórica que
levou a dinastia Zhou a ser o que foi, mas parece que a dinastia Han é
autossuficiente, que tudo surgiu devido a ela, a dinastia Han pode ser
denominada como um período de junção de grande parte do pensamento
chinês. As marcas deixadas pela dinastia Han ainda podem ser vistas
atualmente na China, os chineses falam a língua dos Han (汉语 – Hàn Yǔ),
a maioria étnica chinesa é Han (汉 – Hàn), é inegável dizer que os Han não
fizeram bem o seu papel.
“Atualmente, a estrutura do pensar chinês encontra-
se calcada nas investigações e sínteses criadas na
época Han [...] Torna-se indispensável, assim,

9
Idem.
considerar a produção deste período como uma fase
significativa de sua história, sem que o tornam-se
impossíveis ou inoperantes quaisquer formas de
conectar o pensamento atual chinês com seu passado
fundador”10

8
Entretanto, não se pode cair no tão combatido anacronismo
histórico, sugerindo que os Han criaram tudo de forma independente e
inovadora, é necessário compreender que tal como os Zhou, os Han
também usufruíram de uma boa bagagem intelectual no decorrer do
tempo; a dinastia Zhou foi um terreno propício para o surgimento de
várias correntes filosóficas, esta dinastia foi marcada por fortes conflitos
internos, a China estava se destruindo aos poucos, muitos escritores
surgem neste período, seus escritos são bem variados, tem-se Sun Tzu
(Sūn Wǔ – 孙武) e sua obra “A Arte da Guerra” e os já conhecidos
Confúcio e Lao, seguidamente há a curta dinastia Qin, para só então surgir
a dinastia Han, lembrando ainda que a dinastia Zhou foi bastante
prolongada; conclui-se que os Han tiveram influência dos Qin, certamente
uma forte influência Zhou, sem contar com Shang e Xia.
O momento em que cada dinastia passava também era um fator
determinante na formação das ideologias de cada dinastia, comparando
os Han com os Zhou percebe-se que este passava por um período mais
tenso da história chinesa, Confúcio escrevia com pesar sobre os reis e as
guerras que maltratavam seu país; já os Han não tinham tanta

10
BUENO, André. O pensamento chinês durante a dinastia Han. In: Bueno, André;
NETO, José Maria. Antigas Leituras: Visões da China Antiga. União da Vitória: UNESPAR,
2014.
instabilidade política, o terreno estava mais fértil para a propagação de
novos pensamentos e discussões filosóficas, neste período pensamentos
estrangeiros como o budismo já estavam sendo menos hostilizados.

Religião ou Filosofia? 9

“Não existe um termo que possa designar a religião


tradicional chinesa como um todo. Por mais concreta
que fosse, não deixava de ser uma fusão de elementos
e era aceita como tal. O instinto popular aderiria
respeitosamente ao confucionismo, ao taoismo e ao
budismo com ‘as três crenças que são uma só.” 11

Na mente de um ocidental é muito difícil atribuir um sentido


religioso aos ritos chineses, há uma generalização em dizer que não há
religião na China, porém, muito pelo contrário há uma ideia teor religioso
nos rituais chineses, pois religião é a “crença na garantia natural de
salvação, e técnicas destinadas a obter e conservar esta garantia” 12, as
religiões ocidentais em sua maioria profetizam uma salvação póstuma,
diferentemente de grande parte das religiões chinesas. Religião vem do
latim, religio, que se referia a qualquer conjunto de regras e interdições 13,
entretanto, o termo utilizado em países com maioria cristã, sendo assim,
religião comumente será associado a ritos com divindades, entretanto
muitos países não tiveram influência de correntes que idolatravam

11
BLUNDEN, Caroline; ELVIN, Mark. Grandes Civilizações do Passado: China Ontem e
Hoje. Apud.
12
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
13
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos.
São Paulo: Editora Contexto, 2005.
divindades, é o caso do budismo, confucionismo e daoismo, todas estas
três correntes diferem bastante do das religiões ocidentais, por vezes o
budismo é confundida como uma religião ocidental, pois os budistas se
inspiram em Buda, um homem que alcançou o estado de perfeição
máxima de uma pessoa, ou seja, os budistas não consideram o nirvana 10

como algo divino, mas sim como algo que pode ser alcançado pelo próprio
ser humano14.
Os rituais sempre estiveram presentes na vida do ser humano,
desde a pré-história eles seguem uma série de rituais para sua
sobrevivência, uma parte destes rituais receberam o termo “religião”,
sendo assim, o termo acabou sintetizando bastante o que poderia ser ou
não tido como religião, por isto muitas crenças não são reconhecidas
como religião, mas sim como seitas ou correntes filosóficas; mas cada
crença, seja entendida como religião ou não, tem o objetivo de levar seus
seguidores sempre a algo melhor, com exceção de algumas antigas
religiões mesoamericanas. O confucionismo sustenta que os costumes e o
respeito devem ser sempre preservados para que uma sociedade não caia
em desgraça; Lao ia contra a doutrina confuciana, dizia que os ritos eram
um perda de tempo e de certo modo afastava as pessoas da felicidade;
Buda deixava qualquer valor terreno sempre em segunda plano, pois
interesses terrenos afastavam as pessoas do estágio perfeito da
humanidade.
Certamente os ocidentais nunca entenderão de fato o pensamento
chinês, ambos possuem uma história e modo de ver as cosias bastante

14
Idem.
diferente; mas isto não impede com que se tenha um mínimo
entendimento do outro, talvez o maior erro seja tentar interpretar
totalmente o outro, entretanto, segundo o Geertz, não há como se ter
uma certeza total sobre o que uma cultura diferente pensa, o historiador,
neste caso, já possui seu modo de interpretar as coisas e SUS 11

interpretação, por melhor que seja, sempre será de segunda mão; deste
modo percebe-se que há religiões na China, mas quando o termo religião
é associado apenas cultos que veneram divindades ou seres sobrenaturais,
torna-se impossível estudar as religiões chinesas.

Considerações Finais
A China é repleta de doutrinas filosóficas, entretanto as três
abordadas são as mais conhecidas tanto fora como dentro do país; pode-
se imaginar que suas ideias continuam as mesmas desde o dia em que
foram criadas, mas é impossível uma ideia manter-se imutável ao longo do
tempo, uma ideia que imutável dificilmente acompanhará a natural
mudança da sociedade, todas estas correntes surgiram em contextos
diferentes. A dinastia Han mostrou bem como várias correntes de ideias
podem se mesclar e acabar fundando novas maneiras de enxergar a
realidade, certamente o budismo chinês e o indiano têm o mesmo
objetivo, mas usam diferentes meios para alcançá-lo, pois cada país possui
uma realidade diferente.
O presente trabalho não pretendeu se aprofundar muito em cada
uma das três formas de pensamento, mas sim mostrar o quanto cada uma
delas mudou ao longo do tempo e que o fato de a China possuir uma
cultura milenar não implica dizer que a mesma é imutável ou arcaica e não
se adapta às necessidades de cada período. Que o presente trabalho
aguce um pouco mais a curiosidade do leitor com relação ao oriente; e
que mostre que ocidente e oriente não são tão diferentes com relação à
formação e adaptação de suas ideias. 12

Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes,
2007.
ABREU, Antonio Graça. Lao Zi e o Taoismo. In: Bueno, André; NETO, José
Maria. Antigas Leituras: Visões da China Antiga. União da Vitória:
UNESPAR, 2014.
BUENO, André. O pensamento chinês durante a dinastia Han. In: Bueno,
André; NETO, José Maria. Antigas Leituras: Visões da China Antiga. União
da Vitória: UNESPAR, 2014.
CHIN, Annping. O Autêntico Confúcio: uma vida de pensamento e política.
São Paulo: JSN, 2008.
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da
cultura. In: A interpretação das Culturas. Rio de Janeira:LTC, 2008.
ROSS, Stwart. Histórias da Antiguidade: China Antiga. São Paulo:
Companhia das Letrinhas, 2009.
ROBERTS, J.A.G.. História da China. Lisboa: Texto e Grafia, 2012.
SILVA, Kalina Vanderlei; Silva, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos
Históricos. São Paulo: Editora Contexto, 2005.
ECOS DA RECLUSÃO: O ENSINO DE HISTÓRIA PARA
ADOLESCENTES EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO DE
LIBERDADE

Luciana Mendes dos Santos 1


1

Resumo: Este artigo está centrado na experiência do ensino de história para jovens em
espaços de privação de liberdade na região da Grande Florianópolis, abordando a
situação dos jovens em reclusão, a conjuntura política quanto a questão da maioridade
penal e a vivência em sala de aula com os educandos. A experiência é vista a partir dos
conceitos de educação abordados por Paulo Freire (1987), das possibilidades da
História segundo Walter Benjamin (2005) e das visões de experiência de Jorge Larrosa
(2002).
Palavras-chave: reclusão, sistema socioeducativo, ressignificação.

Resumen: Este artículo está centrado en la experiencia en la enseñanza de la história


para jóvenes en los centros de privación de libertad en la región de la Grande
Florianópolis, abordando la situación de los jóvenes en reclusión, la situación política
en la cuestión de reducción de la mayoridad penal y la experiencia en la clase con los
estudiantes. La experiencia es vista desde los conceptos de educación abordados por
Paulo Freire (1987), de las posibilidades de la Historia, según Walter Benjamin (2005) y
las vistas de Jorge Larrosa (2002).
Palavras clave: reclusión, sistema socieducativo, resignificación, enseñanza de História.

1
Discente de mestrado do curso de pós-graduação em História na Universidade do Estado de Santa
Catarina (Udesc), professora licenciada em História pela Universidade de São Paulo (USP).
No ano de 2015 recebi a proposta de trabalhar como professora de
História para turmas formadas por adolescentes em conflito com a lei que
cumprem medidas socioeducativas privativas de liberdade no Centro de
Atendimento Socioeducativo (Case) da Grande Florianópolis. Esse não foi
o primeiro contato com adolescentes infratores que tive em minha vida 2

profissional, posto que já havia atuado em um projeto sobre o patrimônio


de São Paulo pela Fundação Energia e Saneamento com adolescente em
liberdade assistida (LI), no entanto era a primeira vez que seguiria um ano
letivo inteiro com alunos em reclusão dentro de um espaço de privação de
liberdade. Não aceitei essa proposta como um desafio, no sentido do
obstáculo a ser superado ou de uma competição a ser vencida, encarei
como uma possibilidade de experiência, colocando-me como sujeito de
um processo em que era essencial suspender alguns preconceitos e rever
algumas cautelas, dando oportunidades para que as coisas me aconteçam
nessa jornada, me expondo. Assim como argumenta Jorge Larrosa Bondia,
“É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe
acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega,
nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre” (2002, p. 25).
As instalações do Case da Grande Florianópolis substituíram o
antigo Centro Educacional São Lucas, também destinada à internação de
jovens infratores e interditada em 2010 por descumprir o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) e as normas do Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (SINASE). O Case da Grande Florianópolis é
uma unidade modelo para os outros municípios e suas atividades tiveram
início em outubro de 2014, com capacidade de atendimento para até 90
adolescentes, sendo 70 em internação definitiva e 20 em internação
provisória, segundo a Secretaria de Justiça e Cidadania. A escolarização
dos adolescentes era uma das premissas para que a instituição pudesse
iniciar suas atividades, e optou-se por estruturar uma escola dentro das
dependências do Case em parceria entre a Secretaria de Educação e de 3

Justiça do Estado de Santa Catarina.


Por conta da exposição pela mídia de crimes hediondos cometidos
por adolescente nos últimos anos, a discussão sobre os jovens infratores
no Brasil se tornou intensa e surgiram projetos de lei que defendem a
alteração da maioridade penal para 16 anos sustentados pelo argumento
de que as medidas socioeducativas são ineficientes no controle da
criminalidade e estimulam a prática criminosa, fortalecendo a crença que
a punição e a repressão são as melhores armas. Segundo o Instituto de
Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), no ano de 2013 tínhamos 23,1 mil
adolescentes privados de liberdade por medidas socioeducativas. Estas
medidas são definidas pelo Eca e possuem a função de educar, buscando
estruturar o adolescente para que não haja a reincidência do ato e o
tratamento é diferenciado por considera-lo penalmente inimputável entre
os 12 e os 18, por conta da ausência de maturidade psíquica para
entender a gravidade do ato infracional.
O Case atendia em média 35 adolescentes entre internos e
provisórios entre 15 e 18 anos, e grande parte deles tinha cometido atos
infracionais como roubo e tráfico. As salas de aula são formadas por
turmas pequenas, até cinco alunos, que eram divididas inicialmente por
“casas”, como são chamados os espaços onde os adolescentes vivem, e no
segundo semestre foi adotada a seriação. A maioria dos adolescentes
evadiu a escola e alguns não eram alfabetizados, o que colocava a nós, os
docentes, em situações complexas de ensino, criando a necessidade
constante de refletir sobre nossa prática e realizar trabalhos
multidisciplinares tentando, sobretudo, evitar mais uma exclusão desses 4

adolescentes do processo educativo.


Em nossas conversas e reuniões, onde conseguíamos trocar nossas
experiências, era lugar comum entre os docentes a ideia de que seria
muito difícil realizar um trabalho em educação com os jovens sem
considerar a vivência de cada educando, sem olhar para as histórias dos
nossos jovens e as experiências acumuladas por eles em suas vidas, e
refletíamos também sobre como trabalhar com a grande responsabilidade
que assumimos de dialogar sobre possibilidades de vida e apresentar
opções aos adolescentes que até então só viam a alternativa da
criminalidade como caminho viável para uma vida confortável. Assim
como defende Paulo Freire, a liberdade não é uma dádiva oferecida a
alguém, ela deve ser conquistada em sociedade, “Ninguém liberta
ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em
comunhão” (1987, p. 29), o nosso processo educativo era baseado pelo
diálogo, pelo questionamento e pela reflexão, construindo um espaço
onde o educando podia expressar e questionar sua percepção da
realidade, buscando formas de se libertar de sua presente situação.
Quando iniciei o meu trabalho os adolescentes tive a possibilidade
de construir meu planejamento em conjunto com os educandos. Na
primeira semana de trabalho sugeri que todos pensassem em temas
históricos que lhes fossem interessantes ou que eles quisessem
aprofundar seus conhecimentos. Pedi que eles sugerissem algo que fosse
próximo a sua realidade e que lhe chamassem a atenção, porque era a
partir dessas sugestões que seria feito o cronograma de nossas aulas, e
que se eles precisassem de apoio podiam consultar os livros disponíveis na 5

biblioteca da instituição. Como conhecimento em História dos educandos


não estava de acordo com a seriação de muitos, selecionei alguns temas
de trabalho sobre a História do Brasil como sugestão, como período
colonial e o tráfico negreiro, as revoltas no período monárquico e Ditadura
Militar de 1964, pensando que discutir algo da História do país seria mais
fácil pela proximidade cultural. Nenhum deles chamou a atenção dos
jovens, porque o que eles realmente tinham interesse em saber era sobre
as guerras, principalmente sobre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial,
e eles queriam aprender sobre esse período a partir de filmes, histórias
em quadrinhos e sobre as armas utilizadas pelos soldados.
Segundo Hobsbawm (1995), não é possível entender o século XX
sem entender a Guerra Mundial. E utilizando o conceito de Guerra Total
do autor, considerando os dois conflitos como único, tencionei trabalhar a
vida dos indivíduos que estiveram envolvidos nos campos de batalha e dos
civis que sofreram com os reflexos da guerra, buscando assim uma
compreensão dos processos do conflito. Com os adolescentes do Case, eu
considerei importante focar nas experiências pessoais da guerra e não
apenas na construção do fato, para tentar aproximar e refletir sobre as
relações entre os homens em uma situação de desumanização, cenário
conhecido por muitos dos jovens em situação de reclusão. Como
ferramentas de trabalho eu utilizei o filme Gloria Feita de Sangue (1957),
dirigido por Stanley Kubrick, fotografias dos campos de batalha e das
armas utilizadas, cartas de soldados e da família de combatentes, e uma
história em quadrinhos feita pelo site Capinaremos.2
Segundo Benjamin (2005), a relação entre o presente e o passado 6

não pode ser unilateral: o presente ilumina o passado com todas as lutas
que se formam no contemporâneo e o passado iluminado torna-se uma
força no presente “Como flores que voltam suas corolas para o sol, assim
o que foi aspira, por um certo heliotropismo, a voltar-se para o sol que
está a se levantar no céu da história” (IN: LOWY, 2005, p. 58). Realizar a
abertura do passado com as experiências de guerra trabalhadas em sala
poderiam servir como estopim de outras possibilidades de presente e de
futuro para os adolescentes.
Trabalhamos com uma breve contextualização dos conflitos para
que os adolescentes pudessem entender em qual conjuntura a Guerra
Total estava se formando com o auxílio da história em quadrinhos. Nessa
etapa utilizamos também slides como ferramenta de trabalho e sugerimos
pequenos projetos de pesquisa entre os jovens com o apoio do material
presente na biblioteca. Depois de apresentado os resultados da pesquisa,
todos assistiram o filme Gloria Feita de Sangue, de Stanley Kubrick,
discutindo a banalização da vida durante a guerra como tema central. Os
professores de geografia, de português e de ciências começaram a
trabalhar em conjunto com o projeto, refletindo sobre a vida do indivíduo
em um processo de total violência, onde o sujeito se perde em benefício

2
www.capinaremos.com acesso: 22 de jan. 2016.
de algo que é considerado um bem maior. Nas conversas com os
adolescentes, a assimilação com as situações de violência vivida por eles
era inevitável e essa troca foi muito enriquecedora por possibilitar um
diálogo entre a realidade dos adolescentes e as vivências da guerra pelos
combatentes e os civis. O compromisso em ser o mais objetivo possível 7

com a história era claro, e não tentamos igualar as experiências desses


sujeitos com daqueles que viveram entre 1914 e 1945. Mas o objetivo
inicial foi alterado com o processo: não bastava agora apenas entender os
fatos relativos à Guerra Total, era necessário refletir sobre essa
subjetividade onde o adolescente do século XXI observa os lampejos de
sua vivência nessas experiências.
Quando iniciei o trabalho com as cartas dos combatentes um dos
educandos chegou a comparar a vida na guerra como a vida numa prisão,
porque os jovens criaram relações diretas entre as cartas dos soldados
com as cartas que eles escreviam para suas famílias, amigos e namoradas.
Separei cerca de dez cartas de combatentes alemães, ingleses, franceses e
russos e discutimos como as comunicações se davam naquele momento,
como as cartas chegavam aos seus destinos e como elas chegaram até
nós. A sugestão de atividade para essa etapa do trabalho foi chamada Ecos
da Trincheira, onde os adolescentes deveriam escrever cartas como se
estivessem nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, e ela rendeu
ótimos resultados. Eles utilizaram toda a discussão realizada com as
turmas para fundamentar seus argumentos nas cartas, questionando e
refletindo sobre a situação de um soldado nos campos de batalha. Um dos
adolescentes, W*. de 17 anos, escreveu como um soldado alemão e disse
seguinte em sua carta:

“Querido amigo, venho firme e forte dizer que a guerra


estava fácil, mas com a entrada dos Estados Unidos vai 8

ficar difícil. A Rússia tinha desistido, mas o que adianta


um país forte desistir e outro mais forte ainda comprar
a parada”.

Nas cartas há uma mescla do que eles aprenderam com o que eles estão
sentindo no momento. O adolescente M., de 16 anos, inicia sua carta
dizendo que sente muita falta de sua mãe agora que ele está longe, e
pede que ela não se afaste de sua mulher e de seu filho caso ele morra,
outro, A. de 15 anos pede que a família não se preocupe com ele porque
ele está lutando pelo o que ele acredita.
O encerramento da atividade foi uma exposição chamada Ecos das
Trincheiras, organizada no espaço da biblioteca com as cartas produzidas
pelos adolescentes. Nesse espaço a família dos jovens puderam ver os
trabalhos produzidos pelos educandos, o que foi emocionante para todos
e os estimulou positivamente a continuar produzindo materiais durante o
processo educativo. Outra troca interessante foi entre os adolescentes
que leram as cartas dos colegas e comentaram entre si, fazendo elogios e
sugerindo alterações.

*
Os nomes foram preservados em respeito aos adolescentes.
Com este processo, percebo que os estudantes do Case
conseguiram pensar historicamente e refletir sobre sua realidade,
questionando alguns lampejos do passado em sua contemporaneidade,
assim como afirma Walter Benjamin, analisando o passado eles não o
conheceram tal como ele foi, e sim buscaram um lampejo desse passado 9

para observar as possibilidades de futuro (LOWY, 2005). E outras


possibilidades de futuro é o que devemos buscar em conjunto para os
adolescentes em situação de risco.

Referências Bibliográficas
BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência
IN: Revista Brasileira de Educação [online]. 2002, n.19, pp. 20-28.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003
acesso: 02 de fev.2016.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
HOBSBAWN, Eric J. A Era dos Impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo, Companhia das Letras,
1995.
LOWY, Michael. Walter Benjamin. Aviso de Incêndio: Uma leitura das
teses “Sobre o Conceito de História”. Trad. Wanda N. C. Brant, Jeane M.
Gagnebin, Marcos L. Muller. São Paulo: Boitempo: 2005.
SILVA, Enid R. A., OLIVEIRA, Raissa M. O Adolescente em Conflito com a Lei
e o Debate sobre a Redução da Maioridade Penal: esclarecimentos
necessários IN: Nota técnica. Nº 20. Brasilia: Ipea, 2015.
O GRANDE LEVIATÃ:
Uma breve contextualização do conceito de Estado

José Anastácio Barbosa da Silva 1


1
José Nilson Silva de Oliveira2
Luziano Pereira Mendes de Lima 3

Resumo: Este trabalho tem como escopo pesquisar o conceito de Estado nos principais
teórico-estudiosos da temática. O Estado que é um termo que passa por diversas
ressignificações no decorrer da História, compreende várias facetas. E isto, é o que
pretendemos demonstrar no transcorrer desta pesquisa, evidenciando os seus
principais aspectos, suas funções e caracterizações. Sendo assim, a principal fonte
metodológica utilizada nesta pesquisa, se refere à pesquisa bibliográfica, tomando
inicialmente como pressupostos teóricos os trabalhos de autores contratualistas como
Hobbes, Locke e Rousseau, e ainda autores como Engels, M. Florenzano, Marx,
Norberto Bobbio e Rothbard. Almeja-se tentar compreender o Estado através destas
bases teóricas, que perpassam o jargão da História, no decorrer do tempo.

Palavras - Chaves: Nação. Poder. Teoria.

Abstract: This article aims to search the concept of state based on the main
theorictians in the theme. The state is a term that goes through many resignifications
throughout History, and it envolves many facets. That is what we intend to
demonstrate in the course of this research, showing its main aspects, functions and
characterizations. Therefore, the main methodological source used in this article,
refers to the bibliographic research, taking the theorical concepts of the contractualist
authors such as Hobbes, Locke, Rousseau, and others like, Engels, M Florenzano, Marx,
Norberto Bobbio e Rothbard. It aims to try to understand the state through these
theoretical bases, which underlie the jargon of History over time.

Keywords: Nation. Power. Theory.

1
Graduando do curso de História da Universidade Estadual de Alagoas - (UNEAL), E-mail: jose-
anastacio27@hotmail.com
2
Graduando do curso de História da Universidade Estadual de Alagoas - (UNEAL) e voluntário do PIBIC, E-
mail: josenilson2030@hotmail.com
3
Professor assistente da Universidade Estadual de Alagoas e coordenador do Núcleo de Estudos Políticos
Estratégicos e Filosóficos - NEPEF. E-mail: luzmendes@hotmail.com
Considerações Iniciais
A escolha de destacar o conceito de Estado deve-se ao fato de sua
grande relevância na “sociedade civilizada” atual. Este Estado moderno
que conhecemos atualmente, outrora, nem sempre foi deste modo
concebido; ele passou e ainda passa por diversas interpretações e 2

discussões sobre seu autêntico caráter. Porém, cada um tem o livre


arbítrio para interpretá-lo como quiser. O aparelho estatal está
umbilicalmente interligado á política, que perpassa a sociedade e que em
certos casos, ainda se relaciona intimamente com a economia. Ou seja, ele
esta presente nas principais esferas de nossa sociedade.
Deste modo, esta pesquisa pretende demonstrar o que é o Estado
teoricamente. No primeiro tópico destacar-se-á a concepção de Estado
sobre o prisma dos autores contratualistas, como Hobbes, Locke e
Rousseau, onde salientam que o Estado teria surgido através de um
contrato aonde os homens estabeleceram regras para o convívio social e
subordinação política. É esboçada a percepção de cada autor em relação
ao Estado, que apesar de serem contratualistas, apresentam algumas
divergências de como deveria ser o caráter do Estado – absolutista, liberal,
democrático, etc.
No segundo tópico tem-se uma discussão mais ampla sobre o
conceito de Estado, patenteando-se várias visões acerca do mesmo. É um
estudo mais vinculado ao Estado moderno, utilizando-se das ideias de
Engels, M. Florenzano, Marx, Norberto Bobbio eRothbard. Em suma,
procura-se mostrar o aparelho estatal sob vários prismas, corroborando
assim, certa heterogeneidade enquanto sua concepção.
O Estado Contratualista
Falar sobre o Estado em nosso senso comum nos remete logo a
cogitar que o Estado é constituído por um território, um povo e um
governo, além de vários aparatos burocráticos, como por exemplo, um
exército, as fronteiras, uma língua comum, um hino, uma bandeira, a 3

tripartição do poder – executivo, legislativo e judiciário, etc. Ele


assemelha-se a um leviatã4 (monstro marinho esboçado por Hobbes) onde
nos abarca e nos aperta; deste modo, é certo que vivemos de acordo com
o que ele nos sanciona, desde o nascimento até o óbito.
Destarte, a concepção de Estado é uma construção, que levou
muito tempo para ser concebida como é nos dias de hoje; não sendo ele
de certa forma “neutro”, já que há sempre nele um interesse de
determinada camada ou classe social implícito. Falaremos inicialmente
sobre o Estado contratualista (jus naturalismo), delegado por Hobbes,
Locke e Rousseau.
Este Estado refere-se à ideia de que teria ele surgido através de
um contrato, aonde os homens estabeleceram regras para o convívio
social e subordinação política, transferindo suas vontades e anseios ao
Estado. Começaremos então por Hobbes. Ele acreditava que o homem, no
seu estado de natureza, vivia num autêntico estado de guerra. Na
ausência de um poder e absolutista (que era a corrente sugerida pelo
autor), o homem tende a atacar o próprio homem, tornando-se deste

4
Hobbes se refere a este monstro marinho esboçado em sua obra que se auto intitula: “Leviatã ou
Matéria, forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil”.
modo, lobo do próprio homem – é de fato ‘a guerra de todos contra
todos’.
Deste modo, para Hobbes, era necessário que existisse um Estado
dotado de espada, armado, para forçar os homens ao respeito mútuo,
pois “[...] os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para 4

dar qualquer segurança a ninguém” (1988, p. 103). Era uma necessidade


constituir um contrato/pacto, onde Hobbes salienta que “a transferência
mútua de direitos é aquilo a que se chama contrato” (1988, p. 80). Sendo
assim, o autor narra que:

Desta lei fundamental de natureza, mediante a qual se


ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva
esta segunda lei: Que um homem concorde, quando
outros também o façam, e na medida em que tal
considere necessário para a paz e para a defesa de si
mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas,
contentando-se, em relação aos outros homens, com
a mesma liberdade que aos outros homens permite
em relação a si mesmo. (1988, p. 79)

Em outras palavras, há uma necessidade de existir a paz mútua, e


o mecanismo que corroborará esta paz será a criação de um Estado Civil,
como será esboçado mais adiante. Os homens reunidos numa multidão de
indivíduos, pelo pacto social, passam a constituir um corpo político, uma
entidade artificial criada pela ação dos homens e que hoje conhecemos
por Estado. Em suma, para Hobbes:

Diz-se que um Estado foi instituído quando uma


multidão de homens concordam e pactuam, cada um 5

com cada um dos outros, que a qualquer homem ou


assembléia de homens a quem seja atribuído pela
maioria o direito de representar a pessoa de todos
eles (ou seja, de ser seu representante ), todos sem
exceção, tanto os que votaram a favor dele como os
que votaram contra ele, deverão autorizar todos os
atos e decisões desse homem ou assembléia de
homens, tal como se fossem seus próprios atos e
decisões, a fim de viverem em paz uns com os outro e
serem protegidos dos restantes homens. (1988, p.
107)

Esta é uma forma de Estado percebida pelo autor. No entanto, vale


ressaltar que ele apoia/sugere um “Estado soberano” indivisível, que
estaria acima das leis e acima das constituições. Agora veremos o Estado
sob uma concepção Lockeana. Assim como Hobbes, para Locke o Estado
passa a existir a partir do contrato social e tem as mesmas funções da
teoria do pensamento político contratual. De acordo com Bobbio, Locke
sustentava que o “Estado tem o direito de limitar a Liberdade de alguém
unicamente quando for necessário proteger os direitos fundamentais de
outro...” (1998, p.721).
No entanto, a principal finalidade do Estado é a de garantir o
direito natural de propriedade. Isto se deve ao fato de que, o autor era
defensor de um Estado liberal (diferente de Hobbes), tendo o Estado de 6

respeitar a liberdade econômica dos proprietários privados. Ainda


segundo ele, a sociedade política-civil teriam suas origens embrionárias na
família.
Locke considera que “[...] o objetivo capital e principal da união
dos homens em comunidades sociais e de sua submissão a governos é a
preservação de sua propriedade” (1994, p.156). É de fato uma não
intervenção do Estado, nos interesses econômicos ligados aos grandes
proprietários; é a limitação do poder do soberano através das leis e de
certa forma, é uma teoria em prol da burguesia ascendente que se
desenvolvia naquele contexto, principalmente na Inglaterra. Locke
esboçará o seguinte:

Assim, o ponto de partida e a verdadeira constituição


de qualquer sociedade política não é nada mais que o
consentimento de um número qualquer de homens
livres, cuja maioria é capaz de se unir e se incorporar
em uma tal sociedade. Esta é a única origem possível
de todos os governos legais (legítimos) do mundo. [...]
Assim sendo, todas as suas sociedades políticas
começaram a partir de uma união voluntária e do
acordo mútuo de homens que escolhiam livremente
seus governantes e suas formas de governo. (1994, p.
141-43)

É o limiar das sociedades civis- políticas; este é o argumento 7

genuinamente lockeano em relação às praticas políticas em conjunto, que


se dão “voluntariamente”. Em síntese, no Estado em consideração, o
parlamento irá limitar o poder do governo central (ex. rei), proteger a
propriedade privada, ele se tornará o mediador de conflitos, e garantirá a
ordem, desenvolvimento e as regulamentações da sociedade. Resumindo,
Locke em relação à sociedade política-estatal patenteia:

A natureza dá o primeiro destes poderes, ou seja, o


pátrio poder, aos pais, no interesse de seus filhos
durante a sua minoridade, para suprir sua ausência de
habilidades e sua falta de entendimento sobre como
administrar sua propriedade. (É preciso que se saiba
que, aqui como em qualquer outra parte, por
propriedade eu entendo aquela que o homem tem
sobre sua pessoa, e não somente sobre seus bens.)
Um acordo voluntário concede o segundo, ou seja, o
poder político, aos governantes para o benefício de
seus súditos, para garanti-los na posse e no uso de
suas propriedades. E o confisco proporciona o
terceiro, o poder despótico, aos senhores para seu
próprio benefício, sobre aqueles que são desprovidos
de toda propriedade. (1994, p. 189)

Este é o Estado-político projetado pelo autor de caráter


explicitamente liberal. Um Estado que não pode contrariar os direitos dos 8

indivíduos, mas deve ser meramente um Estado-mediador: respeitar a


propriedade privada e a livre concorrência sem a intervenção direta do
aparelho estatal, onde o legislativo é quem de fato comanda.
Discorreremos agora sobre o conceito de Estado em Rousseau.
Rousseau acreditará que é na divisão do que passa a ser meu e
seu, ou ainda, no surgimento da propriedade privada que se dará o
surgimento da sociedade como a conhecemos hoje. “Os homens nascem
bons, a sociedade é quem os corrompe”, declarará Rousseau. No Estado
rousseuniano subsistem complexidades, acerca de definir seu exato
caráter (democrático, totalitário...). No entanto, o autor diferentemente
dos autores explicitados anteriormente, considerava que os homens no
Estado de natureza não eram subordinados uns aos outros, sendo,
portanto, livres e iguais.
Com o limiar da sociedade civil, os homens são racionais, mas
vivem escravos. Sendo assim, o autor propõe um novo modelo político
denominado “contrato social”, que tenta associar á razão e a liberdade. O
contrato social para Rousseau era o amadurecimento da humanidade, o
contexto em que os indivíduos estariam exercendo plenamente sua
racionalidade, portanto, sua liberdade; neste contrato caracteriza-se o
povo como sendo súdito e soberano (uma relação governo-povo), na qual
coexistem direitos e deveres. A este Estado caberia conciliar a vontade
individual e o bem coletivo. Rousseau expõe que:

Esta passagem do estado de natureza ao Estado civil


produz no homem uma mudança notabilíssima, 9

substituindo em sua conduta o instinto pela justiça, e


dando as suas ações a moralidade de que não
dispunha anteriormente. [...] o que o homem perde
pelo contrato social é sua liberdade natural e um
direito ilimitado a tudo o que o tente e que pode
alcançar; o que vem a ganhar é a liberdade civil e a
propriedade de tudo que possui. (s/d, p. 31)

Fantástica está declaração do autor, onde ele expõe a passagem


do estado de natureza para o Estado civil, apresentando o que se perde e
o que se ganha com o advento deste mecanismo, onde se evidencia a
substituição do instinto pela justiça, e consequentemente os homens
adquirindo a moralidade, a liberdade civil e a propriedade de tudo que lhe
pertence. É neste sentido uma sociedade democrática. Enfim, para
esboçar este Estado concebido pelo autor, nada melhor que ele mesmo
para mostrar seu processo:

Esta pessoa pública, que é formada destarte pela


união de todas as outras tinha antigamente o nome de
cidade e agora o de república ou de corpo político, que
é chamado por seus membros Estado quando é
passivo, soberano quando ativo, potência
comparando-o a seus semelhantes. Quanto aos
associados, recebem coletivamente o nome de povo, e
se chamam individualmente cidadãos, como 10

participantes da autoridade soberana, e súditos, como


submetidos às leis do Estado. (s/d, p. 28)

Retrocedendo, como foi afirmado no começo do trabalho, o termo


Estado é uma construção, um processo audacioso que vai sendo lapidado
no decorrer da história, é como se fosse a argila na mão do moleiro
dando-a forma e consistência. Ainda em relação ao Estado, Rousseau
apontará que:

[...] pois o Estado quanto a seus membros, é senhor de


todos os seus bens pelo contrato social que, no
Estado, serve de base a todos os direitos, mas não o é,
frente a outras potências, senão pelo direito de
primeiro ocupante, que tomou dos particulares. (s/d,
p. 32)

O Estado é quem tem o julgo das posses de seus membros em seu


território, o contrato passa a ser de certa forma o “meio” para se entrar
em consenso, sendo deste modo “os meios justificando os fins”. Em
síntese, no Estado rousseuniano o povo é soberano, todos tem direito a
igualdade e consequentemente todos são cidadãos, onde vão adquirir
direitos e deveres; e isto vai se refletir nas revoluções subsequentes que
estavam por vir.

O Estado sobre outros prismas 11

Agora que vimos o Estado contratualista, sabemos que estas ideias


irão influenciar consideravelmente as concepções de Estado
subsequentes. Vários autores vão beber da fonte clássica do
contratualismo, porém, o termo Estado receberá múltiplos enfoques
divergentes dos autores que o analisavam enfadonhamente. É sabido, que
o leitor já deve ter percebido que o termo Estado não é homogêneo, e
indubitavelmente, também não é neutro. Então, mostraremos a seguir
concepções que se imortalizaram na História 5, acerca do conceito Estado.
Comecemos inicialmente por F. Engels, onde assinalava que “[...] O
Estado pressupõe um poder público especial, distinto do conjunto dos
cidadãos que o compõem.” (s/d, p. 107). Ou seja, é um poder público
distinto da massa do povo. Suas ideias não serão muito divergentes da de
Marx, já que ambos “andavam de mãos dadas”. Para melhor compreender
Engels, ele mesmo explica que:

Em resumo, a riqueza passou a ser valorizada e


respeitada como bem supremo e as antigas
instituições da gens foram pervertidas para justificar a

5
Não desmerecendo os autores contratualistas, que foram de certa forma, fundamentais na construção
do conceito Estado.
aquisição de riquezas pelo roubo e pela violência. Só
faltava uma coisa: uma instituição que não só
protegesse as novas riquezas individuais contra as
tradições comunistas da constituição gentílica, que
não só consagrasse a propriedade privada, antes tão 12

pouco estimada, e declarasse essa consagração como


a finalidade mais elevada da comunidade humana,
mas também imprimisse o selo do reconhecimento da
sociedade às sovas formas de aquisição da
propriedade, que se desenvolviam umas sobre as
outras e, portanto, a acumulação cada vez mais
acelerada das riquezas; uma instituição que não só
perpetuasse a nascente divisão da sociedade em
classes, mas também o direito de a classe possuidora
explorar aquela que pouco ou nada possuía e a
dominação da primeira sobre a segunda. [...] E essa
instituição nasceu. Foi inventado o Estado. (p. 119-20)

Muito riquíssimo este esboço do autor em relação ao nascente


Estado. Ele traz um contexto, mostrando vários pontos e mecanismos,
como a acumulação de riquezas, a corrosão da gens, e os outros aspectos
patenteados no texto, que vão desembocar em sua criação. Em suma,
“[...] o Estado se ergueu sobre as ruínas da organização gentílica” (s/d, p.
183). Sendo assim, o Estado é de fato segundo o autor:
[...] o resumo da sociedade civilizada, sendo, sem
exceção, em todos os períodos que podem servir
como modelo, o Estado da classe dominante e, de
qualquer modo, essencialmente máquina destinada a
reprimir a classe oprimida e explorada. (s/d, pg. 190) 13

Vemos que a influência de Marx, também se corrobora e


materializa-se em suas palavras; já que Marx acreditava que o Estado era
um instrumento da classe dominante/ possuidora, especificamente a
burguesia ascendente, que estava a todo vapor, abocanhando os
principais âmbitos burocráticos. Porém, isto fora um acontecimento
gradativo, que foi se desenrolando no decorrer da História.
Observamos, nesta assertiva apresentada por Engels, que o
mesmo ver o Estado como o resumo da nossa audaciosa civilização. O
Estado é apresentado como uma máquina, mas não meramente uma
ingênua máquina, ou seja, é o aparelho da repressão e omissão da camada
subalterna. E para ruminar ainda mais este conceito, ele surge da
necessidade de conter as oposições de classe, aliás, sintetizando o
aparelho estatal engeliano, ele nos apresenta que:

Como o Estado surgiu da necessidade de conter as


oposições de classes, mas ao mesmo tempo, surgiu no
meio do conflito subsistente entre elas, ele é, em
regra, o Estado da classe mais poderosa, da classe
economicamente dominante, classe que, por
intermédio dele, converte-se também em classe
politicamente dominante, adquirindo assim novos
meios para a repressão e exploração da classe
oprimida. Assim, o Estado antigo era, sobretudo, o
Estado dos senhores de escravos para manter os 14

escravos subjugados, tal como, o Estado feudal era o


órgão de que se valeu a nobreza para manter a
submissão dos servos e camponeses dependentes. E o
moderno Estado representativo é o instrumento da
exploração do trabalho assalariado pelo capital; que
se serve o capital para explorar o trabalho assalariado.
[...] Surgem excepcionalmente, entretanto, períodos
em que as lutas de classes se equilibram de tal modo
que o poder do Estado, como aparente intermediário,
adquire certa autonomia em relação às classes. (s/d,
p.186)

Este é a cogitação do autor evidenciando o Estado, nos seus vários


e principais aspectos. O Estado vem como uma obrigação de abafar os
conflitos entre as classes, como já fora esboçado anteriormente,
amortecendo o choque entre a classe dominante e a classe subalterna, se
constituindo desta forma, num mediador de conflitos. No caso de Marx,
sobre o aparelho estatal, de acordo com Mayer, ele insistia:
[...] explicitamente em que o Estado era “uma
entidade separada, além e fora da sociedade civil”, e
que “a independência do Estado só se encontra hoje
em dia naqueles países onde os estamentos ainda não
se desenvolveram completamente em classes, onde 15

os estamentos, eliminados em países mais avançados,


ainda têm um papel a desempenhar, e onde existe
uma mescla, países [...] onde nenhuma parcela da
população consegue uma dominância plena sobre as
demais”. (1987, p. 134)

Em outras palavras o Estado é utilizado por quem domina, para


aumentar ainda mais seu poderio, mantendo a massa social á margem da
participação estatal, considerando-a dissolvida sua participação.
Ruminado mais as ideias de Marx, vemos que “Nas épocas anteriores da
história encontramos, quase por toda parte, uma completa estruturação
da sociedade em Estados ou ordens sociais, uma múltipla gradação das
posições sociais” (1998, p. 05).
Neste sentido as posições sociais já existiam, antes da História e
consequentemente criando determinadas ordens de indivíduos, para
comandar/orientar a tribo; e é claro já poderia haver conflitos entre estas
castas (pelos melhores pastos, lagos, utensílios, etc.).Se voltando agora
para outro prisma, nos voltemos agora para M. Florenzano, que delineia
sobre o desenvolvimento do termo Estado no contexto euro-ocidental, ele
salientará que:
Como quer que seja, a questão da origem e do
desenvolvimento do Estado moderno na Europa
Ocidental foi tratada pela historiografia do século XIX,
e da primeira metade do século XX, de tal maneira que
acabou por se confundir, por um lado, com a questão 16

da formação do sentimento nacional e da


nacionalidade, e, por outro lado, simultaneamente,
com a questão do próprio advento da modernidade,
aparecendo o Estado como portador e realizador de
ambas. (2007, p. 15-16)

Como vemos, o termo em estudo se torna bastante complexo e


ambíguo quando o estudamos a fundo; ele pode estar entrelaçado á
vários outros fatores relevantes, como a formação do sentimento
nacionalista (a ideia de pertencer a uma nação), e o limiar da
modernidade, como destacou Florenzano acima. Em suma, para
Florenzano, o Estado permitiu a luta de classes, mais ainda, que uma
classe subjuga-se a outra. Esquematizando mais claramente este Estado o
autor sustenta que:

Do Estado moderno, “da geração”, nas palavras de


Hobbes, “daquele grande Leviatã, ou antes, daquele
Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus
Imortal, nossa paz e defesa”, ousaria dizer,
concluindo, que os italianos o criaram, os franceses e
ingleses o desenvolveram e aos alemães restou o
consolo de o interpretarem. (2007, p. 37)

Ele delineia sobre o conceito estatal e seu desenvolvimento nos


principais países europeus pioneiros neste seguimento. O certo 17

“pioneirismo” italiano, estava presente nas palavras de Maquiavel, que


em seu livro O Príncipe, alega que “todos os Estados, todos os domínios
que tem havido e que há sobre os homens, foram e são repúblicas ou
principados”, ou quando no capítulo nove expõe que “o Estado tem
necessidade de seus cidadãos”. No entanto, Florenzano pondera que o
Estado ainda era inexistente nesta época, e salienta que:

[...] porque a verdade é que, no século XVI, o único


sentimento ou força ideológica capaz de mobilizar os
homens (e as mulheres) de todas as classes era a
religião. Tanto é assim que, nos dois primeiros países
em que, de fato, patriotismo e sentimento nacional
emergem identificados, Inglaterra e Holanda, foi a
religião que tornou isso possível. (2007, p.27)

Como já fora afirmado, o Estado é uma construção, ele não cai de


paraquedas na Historia. Outrora, quem assumia, grosso modo, o papel do
Estado era a religião que unia e movia o povo, era ela, um elemento trivial
entre os povos. Em outras palavras, tornou-se a religião um meio/método
para a construção do Estado nacional. Partindo para outra conjectura,
Rothbard apresenta um viés peculiar e especa que:

Se, então, o Estado não somos “nós”, se ele não é a


“família humana” se reunindo para decidir sobre os 18

problemas mútuos, se ele não é uma reunião fraterna


ou clube social, o que é afinal? Em poucas palavras, o
Estado é a organização social que visa a manter o
monopólio do uso da força e da violência em uma
determinada área territorial; especificamente, é a
única organização da sociedade que obtém a sua
receita não pela contribuição voluntária ou pelo
pagamento de serviços fornecidos, mas sim por meio
da coerção.[...] o Estado obtém o seu rendimento
através do uso da coerção; isto é, pelo uso e pela
ameaça de prisão e pelo uso das armas.(2012, p. 8-9)

Neste sentido, ele assemelha-se á Max Weber, que destaca que o


Estado tem o poder legítimo da violência. O Estado é quem tem a posse
autêntica da agressão e repressão, além de um forte poder tributário. O
termo democracia nos remete a acreditar que nós somos o governo e
concomitantemente o Estado, porém, de acordo com Rothbard “[...] o
termo coletivo útil “nós” permite lançar uma camuflagem ideológica sobre
a realidade da vida política” (2012, p. 07). O autor vai mais além
destacando que:
[...] o poder estatal, como vimos, é a apropriação
coerciva e parasítica desta produção — uma
drenagem dos frutos da sociedade para benefício de
indivíduos não produtivos (na verdade, 19

antiprodutivos), os quais se impõem como


governantes. (2012, p. 47)

Deste modo, o Estado é detentor do fisco e da rapinagem, já que


encaminha e “drena” as produções dos indivíduos para usufruto do dele
próprio. Ele se constitui no “apropriador” dos bens da sociedade, trazendo
regalias aos indivíduos que estão inseridos nesta grande máquina, que
rege nossa sociedade. Em suma, “uns nascem para governa-lo (Estado),
outros para sustentá-lo”; se constituindo, grosso modo, numa regra.

Considerações Finais
Longe de concluir o debate, sobre o conceito aqui referido esta é
uma discussão que vai longe e abre múltiplas definições que inclusive
você, leitor que esta lendo este trabalho, pode interpreta-la(s) a seu
critério. Porém, indubitavelmente estes teóricos trabalhados nesta breve
pesquisa, deixaram marcas profundas sobre a posteridade; ainda mais,
estas ideias perpassam o nosso senso comum. E se tem algo que estes
estudiosos têm em comum, é a singularidade, que cada um aborda o
Estado, mostrando deste modo, uma tremenda heterogeneidade em
relação a este termo tão ambíguo.
Sem dúvida, vemos nestes autores uma característica
fundamental: o Estado não é neutro. Ele é imposto, criado e formado para
uma determinada finalidade, seja ela, para manter um governo/regime no
poder, seja para dominar as massas e usá-las a seu favor, como se fosse
um adestramento; mantendo a “ordem social”, cuja base teórico-filosófica 20

é a pedra filosofal, para manipular este conceito, como o pastor manipula


as parábolas e ideias da bíblia. É como se cada tipo de governo tivesse
seus delegados intelectuais (Hobbes - absolutismo, Locke – Liberalismo,
Rousseau – democracia...).
Enfim, este é “o grande leviatã”, onde cada um em seu tempo/
contexto esboça-o a seu bel prazer, a imaginação é o carro chefe, porém,
a realidade é que ele nos acompanha desde nosso nascimento e mesmo
sucumbindo-se, ele continua a tutelar, assombrar e abarcar os indivíduos
ou cidadãos inseridos em seu território. Ele vem suprir a lacuna social, e
colocar literalmente, ordem na casa em todos os aspectos. O Estado é
uma minoria privilegiada que regula o que eu posso ou não posso fazer,
sob “seus acalentos consentimentos”. Está fora uma breve
contextualização do conceito Estado.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola.PASQUINO, Gianfranco. Dicionário


de Política; trad. Carmen C, Varriale, Gaetano,Lo Mônaco, João Ferreira,
Luís Guerreiro Pinto Cacais e RenzoDini; coord. trad. João Ferreira; rev.
geral João Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 11 ed., 1998.
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do
Estado; tradução de Ciro Mioranza.- 2. Ed.- São Paulo: Editora Escala, s/d.

FLORENZANO,Modesto.Sobre as Origens e o desenvolvimento do


Estado moderno no Ocidente; Lua Nova, São Paulo, 71: 11-39, 2007.

HOBBES, Thomas. 1588-1679. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um 21


Estado Eclesiástico e Civil; Tradução de João Paulo Monteiro e Maria
Beatriz Nizza da Silva. – 4. Ed. – São Paulo: Nova Cultural, 1988.

LOCKE, John, 1632-1704. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil: ensaio


sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil;
introdução de J.W. Gough; tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da
Costa. 3ed.Petrópolis –RJ: Editora Vozes – Coleção clássicos do
pensamento político – 1994.

MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. 1818-1883. Manifesto do Partido


Comunista; prólogo de José Paulo Neto. São Paulo: Cortez, 1998.
MAYER, Arno J. A Força da Tradição: a persistência do antigo regime,
1848-1914; tradução Denise Bottmann, consultor desta edição Francisco
Foot Hardman. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
ROTHBARD, Murray N. A Anatomia do Estado; tradução de Tiago Chabert.
São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises. Brasil, 2012. 50p.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social e Discurso sobre a
Economia Política; Tradução de Márcio Pugliesi e Norberto de Paula Lima.
– 1.ed. – São Paulo: Hemus, s/d.
“MUSAS FILHAS DE APOLO, TRAGAM-ME INSPIRAÇÃO,
PARA NARRAR UMA GUERRA, DE NAÇÃO CONTRA
NAÇÃO”: A LITERATURA DE CORDEL NO ENSINO DA
GRÉCIA ANTIGA, UM RELATO DE EXPERIÊNCIA EM
ESCOLAS PÚBLICAS DO PARÁ1 1

Geraldo Magella de Menezes Neto 2

Resumo: O presente artigo socializa um relato de experiência no ensino da Grécia


Antiga em turmas de 5ª série/6ª ano do ensino fundamental em escolas públicas do
Pará. Ao tratar do tema da mitologia grega, utilizamos a literatura de cordel, que
apresenta uma linguagem em versos rimados, de fácil compreensão para os alunos.
Destacamos que o cordel pode ser um recurso didático interessante para o ensino de
História, ao estimular a leitura e possibilitar a relação passado-presente.
Palavras-chaves: Ensino de História; Grécia Antiga; Literatura de Cordel.

Abstract: This article socialize a report of experience in the teaching of ancient Greece
in class of 5th grade / 6th grade of elementary school in the public schools of Pará
state, Brazil. When we discuss the Greek mythology theme, we use the cordel
literature that presents a language in verse rhymed, easy to understand for students.
We emphasize that the cordel literature can be an interesting educational resource to
the history teaching, to encourage reading and to allow past-present relationship.
Keywords: History teaching; Ancient Greece; Cordel Literature.

Introdução
1
Uma versão inicial deste trabalho foi apresentada no 2º Simpósio Eletrônico Internacional de Ensino de
História, organizado pela UNESPAR, realizado de forma online entre os dias 7 e 11 de março de 2016.
Agradeço ao Prof. Dr. André Bueno pelo convite para a publicação deste artigo.
2
Doutorando em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor da
Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA) e da Secretaria Municipal de Educação de Belém (SEMEC),
distrito Mosqueiro. E-mail: geraldoneto53@hotmail.com
Musas filhas de Apolo
Tragam-me inspiração
Para narrar uma guerra
De nação contra nação
Derramando sobre mim 2
A luz da imaginação. (VIANA, 2006, p. 1)

Contá-la com perfeição


Nessa hora é o que mais quero
Portanto caro leitor
Sua atenção eu espero
Pra voltarmos à história
Conforme narrou Homero. (VIANA, 2006, p. 3)

As estrofes acima fazem parte do início da narrativa do folheto de


cordel História de Helena e a guerra de Tróia, do poeta Antônio Klévisson
Viana. Viana narra em forma de versos de cordel a história da Ilíada, cuja
autoria é atribuída ao poeta grego Homero, sobre a guerra de Tróia.
O folheto de Klévisson Viana se apresenta como um interessante
recurso didático em sala de aula para tratar da temática da mitologia
grega. Além disso, a linguagem em forma de versos pode tornar a leitura
mais agradável para os alunos. Nesse sentido, o presente trabalho
pretende socializar uma experiência da utilização de folhetos de cordel no
ensino da Grécia Antiga. O texto será dividido em duas partes: na
primeira, explicamos as características da literatura de cordel e como ela
pode ser utilizada como recurso didático nas aulas de História; na segunda
parte, relatamos a experiência do uso do folheto História de Helena e a
guerra de Tróia, em turmas de 5ª série (6º ano) nas escolas Prof. Remígio
Fernandez e Prof. Abel Martins e Silva, do estado do Pará, no distrito de
Mosqueiro (Belém).3

A literatura de cordel: recurso didático para o ensino de História


Em primeiro lugar, o que é a literatura de cordel? O cordel é uma 3

poesia em forma de versos rimados, com temáticas variadas. Márcia


Abreu afirma que para adequar-se à ‘estrutura oficial’ da literatura de
cordel, um texto deve ser escrito “em versos setessilábicos ou em
décimas, com estrofes de seis, sete ou dez versos”. Deve seguir um
“esquema fixo de rimas e deve apresentar um conteúdo linear e
claramente organizado”. Deve, portanto, ter “rima, métrica e oração.”
(ABREU, 1999, p. 119). O principal suporte do cordel é o ‘folheto’, que é
impresso em papel pardo, de má qualidade, medindo de 15 a 17 x 11 cm.
Nas capas se estampam o nome do autor, os títulos dos poemas, o nome
da tipografia impressora e seu endereço. Algumas vezes, a data de
publicação, o preço, a indicação do local de venda (TERRA, 1983, p. 23),
além de uma imagem representando o tema da história. Em relação ao
número de páginas, Joseph Luyten aponta que o folheto é feito a partir de
uma folha tipo sulfite dobrada em quatro. Por isso, o número de páginas
da literatura de cordel deve ser múltiplo de oito, já que cada folha sulfite
dobrada em quatro dá possibilidade para oito páginas impressas. (LUYTEN,
2005, p. 45).
Vários autores destacam que a literatura de cordel pode ser um
recurso didático nas aulas de História. Lacerda e Menezes Neto apontam

3
Mosqueiro é um distrito pertencente a Belém, localizado cerca de 70 km da capital paraense.
os chamados “folhetos de acontecido”, aqueles que tratam de informar
sobre os “últimos acontecimentos” como “a melhor opção para os
professores de História”. (LACERDA; MENEZES NETO, 2010, p. 226). Maria
Ângela Grillo aponta que “inúmeros são os eventos do século XX contidos
nos folhetos que relatam o cotidiano da nossa História e nos quais são 4

dadas representações diversas das contidas nos livros didáticos” (GRILLO,


2006, p. 83).
Não só eventos do século XX são abordados nos folhetos. A
Antiguidade também é abordada pelos poetas, podendo ser também um
excelente recurso didático nas aulas de História. 4
No presente relato de experiência, trabalhamos com o folheto de
cordel História de Helena e a guerra de Tróia, do poeta cearense Klévisson
Viana.5 A história possui 14 páginas, sendo uma releitura da obra Ilíada, de
Homero. (MENEZES NETO, 2015). François Lefèvre afirma que, segundo a

4
Além do folheto de Klévison Viana, há outros folhetos sobre a Antiguidade, a exemplo de A Ilíada em
cordel, A Odisséia em cordel e A Eneida em cordel, todos do poeta Stélio Torquato Lima, da editora
Queima-Bucha, do Rio Grande do Norte. Além disso, o poeta Gonçalo Ferreira da Silva produziu várias
biografias em cordel de personagens da Antiguidade, como Homero, Anaximandro de Mileto,
Arquimedes, Hipócrates, Pitágoras e Sócrates. Esses folhetos podem ser consultados no site da Casa de
Ruy Barbosa:
<http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=CordelFCRB&pasta=Goncalo%20Ferreira%20da
%20Silva&pesq=>
5
No breve texto Releituras da Ilíada: a Guerra de Tróia em versos de cordel, destacamos algumas
particularidades do folheto de Klévisson Viana. No folheto, o poeta valoriza a personagem Helena, que
dá nome ao título, além da sua imagem aparecer na capa do folheto ao lado do cavalo de madeira. No
folheto de Viana, os deuses não aparecem na história, o poeta foca nas ações humanas. Desse modo,
Viana explica que a origem da guerra de Tróia deve-se ao rapto de Helena por Páris. Os personagens
citados por Viana são Helena, Menelau, Homero (narrou a Ilíada), Páris, Aquiles, Ulisses. O poeta não faz
referências, por exemplo, a Agamenon, Heitor, Briseida (escrava de Aquiles) e Pátroclo. Há que se
mencionar também que Aquiles é apresentado apenas na página 5. Depois não é mais citado, não sabe
o que aconteceu com ele. O poeta valoriza mais os personagens Ulisses e Menelau. Podemos supor que
a opção do poeta em não fazer referência aos deuses e ao limitar o número de personagens deve-se ao
número de páginas da história, que são 14. Soma-se a isso o fato de Viana não ter o objetivo de
contar toda a guerra nos seus detalhes, mas sim valorizar o rapto de uma mulher como originária de
uma guerra, e a força do amor para recuperá-la. Assim, a história termina com o amor entre Helena e
Menelau. (MENEZES NETO, 2015).
tradição, Homero é um aedo cego que viveu na Jônia no final do século IX
ou no século VIII. A Ilíada, que contém cerca de 15 mil versos, narra a
cólera de Aquiles, ocorrida no décimo ano da guerra de Tróia. (LEFÈVRE,
2013, p. 93). Segundo Pedro Paulo Funari, “as cidades citadas por Homero,
escavadas pela Arqueologia, existiram realmente, mas os detalhes 5

narrados são invenções poéticas.” (FUNARI, 2011, p. 21).

Imagem 1: Capa do folheto História de Helena e a guerra de Tróia. Acervo


pessoal do autor.

Na escolha do folheto História de Helena e a guerra de Tróia,


levamos em conta o que diz Circe Bittencourt em relação ao uso de
documentos no ensino de História: “é necessário lembrar que eles devem
ser motivadores e não se podem constituir em texto de leitura que
produza mais dificuldades do que interesse e curiosidade”. O objetivo,
segundo Bittencourt, é “favorecer sua exploração pelos alunos de maneira
prazerosa e inteligível, sem causar muitos obstáculos iniciais.”
(BITTENCOURT, 2004, p. 330).
Em relação a História Antiga na sala de aula, especificamente,
concordamos com Pedro Paulo Funari, que aponta dentre as novas
possibilidades analíticas, “a apresentação de uma Antiguidade construída 6

pela historiografia, antes que uma História dada, acabada, a ser decorada
pelo aluno”, além do “relacionamento entre a Antiguidade e o mundo
contemporâneo em que vivemos.” (FUNARI, 2012, pp. 98-99).

O uso do folheto História de Helena e a guerra de Tróia em sala de aula:


relato de experiência
Nos anos de 2014 e 2015, utilizamos o folheto de cordel História de
Helena e a guerra de Tróia em turmas de 5ª série (6º ano) para tratar do
tema da mitologia grega. O objetivo principal era fazer com que os alunos
conhecessem algumas histórias relacionadas aos deuses e heróis gregos
chamando a atenção para a importância da mitologia na sociedade grega
da Antiguidade.
Cabe esclarecer que quando nos referimos a Grécia Antiga, não
estamos falando de um Estado Nacional. Paul Cartledge aponta que a
Grécia “era uma entidade cultural mais do que estritamente política”,
definindo-se por:

uma ancestralidade comum (ora genuína, ora


inventada); por uma língua comum (todos os que não
falavam grego eram rotulados de “bárbaros” porque
suas línguas eram constituídas de um “bar-bar”, ou
seja, de um balbuciar de sons ininteligíveis); e por
hábitos comuns – pelo menos rituais religiosos
compartilhados. (CARTLEDGE, 2002, pp. 18-19).

Por outro lado, há vários estudos que questionam a ideia de “Grécia


Antiga” como uma unidade cultural.6 No entanto, por ser o termo mais 7

utilizado no saber histórico escolar, bastante veiculado nos livros


didáticos, preferimos manter a denominação “Grécia Antiga”, mesmo
sabendo de suas generalizações.
Segundo Richard Buxton, “a religião dos gregos estava tão
imbricada na sociedade que a ideia de separar ‘igreja’ e ‘estado, tão
fundamental para outras tradições religiosas, seria sem sentido no
contexto da Grécia Antiga.” (BUXTON, 2002, p. 425). Pedro Paulo Funari
afirma que “aos seus deuses, os gregos também reputavam histórias,
aventuras, narrativas fantásticas – os mitos – que eram passadas,
oralmente, de geração a geração”. Os gregos acreditavam que os mitos
eram “relatos que provinham dos antepassados e, por isso mesmo, eram
aceitos como acontecimentos de um passado distante.” (FUNARI, 2011, p.
58).
Nesse sentido, relacionamos a abordagem da mitologia grega com o
que é proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) de
História para o terceiro ciclo, destacando “as relações entre a sociedade, a

6
Norberto Luiz Guarinello cita, por exemplo, Jonathan Hall, que em estudo de 1997 aponta que “a
unidade cultural dos gregos não existiu desde sempre. A identidade dos gregos foi o resultado de um
lento processo histórico de comunicação e conflito entre comunidades que falavam línguas
semelhantes. Foi apenas aos poucos, e no confronto com outros povos, que se criaram os mitos e
formas religiosas que produziram sua diferença identitária. Essa identidade nunca foi perfeita e mudou
ao longo dos séculos.” (GUARINELLO, 2014, pp. 40-41).
cultura e a natureza, na História de povos do mundo em diferentes
tempos”: mitos de origem do mundo e do homem; a natureza nos mitos,
ritos e na religião; religiosidade, deuses zoomorfos, divindades femininas e
masculinas e valores sobre a vida e a morte. (BRASIL, 1998, p. 59).
Cabe ressaltar que os alunos já tinham um conhecimento prévio de 8

alguns personagens da mitologia grega a partir de filmes, desenhos, jogos,


a exemplo de: Hércules, Tróia, 300, Percy Jackson. A partir desse
conhecimento prévio, fizemos uma abordagem inicial da mitologia grega,
destacando suas características, os deuses e heróis principais, sua
influência na sociedade grega. Nessa atividade inicial, utilizamos duas
aulas de 45 minutos. Após essas aulas mais teóricas, passamos a trabalhar
com o folheto História de Helena e a guerra de Tróia, de Antônio Klévisson
Viana.
A primeira atividade realizada, seguindo a sugestão de Ana Marinho
e Helder Pinheiro foi a da leitura oral do folheto, considerada pelos
autores como “indispensável”. (MARINHO; PINHEIRO, 2012, p. 129).
Fizemos junto com os alunos a leitura do folheto, alternando as estrofes:
na primeira lia as meninas, na seguinte os meninos, na terceira todos liam
juntos. Para Marinho e Pinheiro, “diferentes e repetidas leituras em voz
alta é que vão tornando o folheto uma experiência para o leitor.”
(MARINHO; PINHEIRO, 2012, p. 129).
A leitura oral do folheto foi bastante animada, com os alunos
participando da atividade. Quando se deparavam com alguma palavra que
não conheciam, fazíamos uma pausa para soletrar e explicar o significado
da palavra, e logo em seguida retomávamos a leitura. Segundo Arievaldo
Viana Lima, na leitura de um folheto, “o texto deve ser analisado e
discutido por toda a classe, para que haja melhor aproveitamento.” (LIMA,
2006, pp. 57-58).
Acreditamos que o folheto de cordel é um recurso didático que
pode estimular a leitura. Nas turmas de 5ª série que trabalhamos, 9

constatamos que a leitura não era um hábito corrente entre os alunos, o


que prejudica na interpretação e entedimento das atividades. Diante
disso, concordamos com Vitória Rodrigues e Silva, que afirma que os
professores de História precisam estar comprometidos tanto em atingir
objetivos que são próprios da sua disciplina, quanto com o
“desenvolvimento da leitura e da escrita”. (SILVA, 2004, p. 71).
Além da mitologia grega, o folheto de Viana possibilita relacionar o
passado e o presente, a exemplo das estrofes abaixo:

Quanto ao “Cavalo de Pau”


E sua imagem, então
Entrou logo pra história
Representando armação
Pra tapear o inimigo
E ganhar uma questão. (VIANA, 2006, p. 14)

Quando você ganha algo


Que lhe traz desassossego
O nosso povo hoje em dia
Dessa expressão faz emprego
Quando o presente é ruim
Diz: - ‘É Presente de Grego!’. (VIANA, 2006, p. 14)
Essas estrofes remetem a expressões que são utilizadas hoje no dia-
a-dia. O “cavalo de pau” seria a ideia de enganar um inimigo. Durante a
leitura do folheto, também chamamos a atenção para o termo “cavalo de
tróia” relacionado à informática. ‘Cavalo de tróia’ são programas
maliciosos que executam ações não autorizadas pelo usuário.7 O ‘Cavalo 10

de Troia’ se passa por um programa ordinário, que abre as portas para


que o hacker invada o computador, desencadeando uma serie de ações
não autorizadas pelo usuário para excluir dados, bloquear dados,
modificar dados, copiar dados e atrapalhar o bom desempenho do
computador.8 Nesse sentido, a atribuição de tal termo tem uma óbvia
inspiração na história da Ilíada.
Outra expressão bastante comum é “Presente de Grego”, que se
refere a um presente ganho que não se gosta. Inspirado no cavalo de
madeira dado aos troianos pelos gregos, foi o presente que custou a
derrota a Tróia, pois os gregos escondidos no cavalo puderam abrir os
portões e atacar a cidade. Alguns alunos já conheciam a expressão.
Também abordamos a expressão “calcanhar de Aquiles”, cuja referência é
ao herói grego Aquiles, que segundo a narrativa da Ilíada, foi atingido por
uma flecha no calcanhar, seu único ponto fraco. Com isso podemos fazer a
relação passado-presente, destacando como a cultura da Grécia Antiga faz
parte do cotidiano dos alunos. Nesse sentido, concordamos com Jaime
Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky, que afirmam que “as aulas de História

7
http://brazil.kaspersky.com/internet-security-center/threats/trojans
8
http://www.mundotecnoweb.com.br/tecnologia/350-cavalo-de-troia-entenda-o-que-e-o-virus-de-
origem-grega-que-ataca-sua-maquina.html
serão muito melhores se conseguirem estabelecer um duplo
compromisso: com o passado e o presente”. (PINSKY; PINSKY, 2012, p. 23).
Após a leitura oral, realizamos um questionário sobre a história do
folheto para estimular a interpretação do texto. Perguntas como: Explique
os motivos para a guerra entre gregos e troianos; Quem era Helena? Qual 11

a fraqueza de Aquiles? Explique a ideia de Ulisses para terminar a guerra,


etc. Tratando-se de alunos de 5ª série, muitos com dificuldades de leitura
e escrita, não poderíamos elaborar questões muito complexas. Por outro
lado, o fato do cordel ser uma linguagem em forma de versos rimados
torna o texto mais compreensível para os alunos. Assim, sobre Helena, o
cordel aponta que “Não havia em todo o mundo/Beldade mais cobiçada”
(VIANA, 2006, p. 2); já em relação a fraqueza de Aquiles, “Se algum
opositor/Usasse de sutileza,/Ferindo seu calcanhar/O matava com
certeza” (VIANA, 2006, p. 5);
Nosso objetivo com o questionário era que os alunos identificassem
os principais pontos da narrativa para entendê-la melhor. Podemos dizer
que a maioria conseguiu responder as questões de forma correta e
entender a narrativa. Para a leitura do folheto e a atividade do
questionário utilizamos três aulas.
A última atividade realizada foi a elaboração de desenhos a partir do
folheto. Arievaldo Viana Lima sugere, por exemplo, “pedir a cada aluno
que escolha uma estrofe para ilustrar e depois montar uma exposição
sequenciada dos desenhos, conforme o texto.” (LIMA, 2006, p. 59). Nesse
sentido, solicitamos aos alunos que escolhessem as principais partes do
cordel História de Helena e a guerra de Tróia para desenhar.
12

Imagem 2: Desenho de aluna da 5ª série sobre o folheto História de


Helena e a guerra de Tróia. Acervo pessoal do autor, 2015.
13

Imagem 3: Desenho de aluna da 5ª série sobre o folheto História de


Helena e a guerra de Tróia. Acervo pessoal do autor, 2015.

A maioria dos alunos desenhou o rapto de Helena por Páris, as


batalhas entre gregos e troianos, a construção do cavalo de madeira por
Ulisses e a derrota de Tróia. Entendemos que o desenho pode ser uma
atividade que ajuda a reforçar a compreensão do texto pelos alunos, além
de ser um exercício que foge da rotina da escrita nas aulas de História.
Nesta atividade final do desenho, utilizamos duas aulas.
Considerações finais
Este breve relato de experiência buscou chamar a atenção para a
potencialidade da literatura de cordel enquanto recurso didático nas aulas
de História. Além de utilizar uma linguagem em forma de versos rimados,
de fácil compreensão aos alunos, o cordel tem o mérito de estimular a 14

leitura. Portanto, mesmo um tema aparentemente distante da realidade


dos alunos, como a mitologia grega, pode ser trabalhado de uma maneira
mais atrativa para os alunos, visando uma aprendizagem mais efetiva. No
total, foram cinco aulas com o recurso da literatura de cordel. Deixamos
de lado alguns assuntos? Não demos “todo o conteúdo” de Grécia Antiga?
A resposta para essas perguntas é sim, e estamos satisfeitos com isso, pois
acreditamos que essas cinco aulas foram mais significativas e atrativas
para os alunos do que se simplesmente continuássemos a copiar no
quadro a matéria, já que as escolas não dispunham de livro didático. O
texto fica aqui como objeto de crítica e discussão aos leitores.
Referências
Folheto de cordel:
VIANA, Antônio Klévisson. História de Helena e a guerra de Tróia. 2 ed.
Fortaleza: Tupynanquim Editora, dez. 2006.
15

Sites:
http://brazil.kaspersky.com/internet-security-center/threats/trojans
Acesso em 5 fev. 2016.
http://www.mundotecnoweb.com.br/tecnologia/350-cavalo-de-troia-
entenda-o-que-e-o-virus-de-origem-grega-que-ataca-sua-maquina.html
Acesso em 5 fev. 2016.

Bibliografia
ABREU, Márcia. História de cordéis e folhetos. Campinas, SP: Mercado de
Letras/Associação de Leitura do Brasil, 1999.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares
nacionais: história. Brasília: MEC/SEF, 1998.
BITTENCOURT, Circe. Ensino de história: fundamentos e métodos. São
Paulo: Cortez, 2004.
BUXTON, Richard. “Religião e mito”. In: CARTLEDGE, Paul. (org.). História
ilustrada da Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
CARTLEDGE, Paul. “Introdução: A glória que foi a Grécia”. In: CARTLEDGE,
Paul. (org.). História ilustrada da Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Ediouro,
2002.
FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2011.
__________________. “A renovação da História Antiga”. In: KARNAL,
Leandro. (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas.
São Paulo: Contexto, 2012.
GRILLO, Maria Ângela de Faria. História em verso e reverso. Revista de
História da Biblioteca Nacional. Ano 2, n. 13, outubro de 2006. 16

GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2014.


LACERDA, Franciane Gama; MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Ensino e
pesquisa em História: a literatura de cordel na sala de aula. Outros
Tempos. vol. 7, n. 10, dez. 2010, pp. 217-236.
LEFÈVRE, François. História do mundo grego antigo. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2013.
LIMA, Arievaldo Viana. (org.). Acorda cordel na sala de aula. Fortaleza:
Tupynanquim Editora/Queima-Bucha, 2006.
LUYTEN, Joseph. O que é literatura de cordel. São Paulo: Brasiliense,
2005.
MARINHO, Ana Cristina; PINHEIRO, Hélder. O cordel no cotidiano escolar.
São Paulo: Cortez, 2012.
MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Releituras da Ilíada: a Guerra de
Tróia em versos de cordel. Philía: Jornal Informativo de História Antiga, Rio
de Janeiro, Ano XVI, n. 51, p. 5, jul./ago./set. 2014.
PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi. “Por uma História prazerosa e
consequente”. In: KARNAL, Leandro. (org.). História na sala de aula:
conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2012.
SILVA, Vitória Rodrigues e. Estratégias de leitura e competência leitora:
contribuições para a prática de ensino em História. História. São Paulo, 23
(1-2), pp. 69-83, 2004.
TERRA, Ruth Brito Lêmos. Memória de lutas: literatura de folhetos do
Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global Editora, 1983. 17
TERRAS, ALMAS E ÍNDIOS: O SENTIDO DA EXPANSÃO
PORTUGUESA NO SÉCULO XVI
Marcondes Silva da Rocha 1

Resumo: Este estudo pretende fazer uma reflexão ao longo do processo histórico
sobre o índio brasileiro inserido no sistema colonial implantado no Brasil Colônia do 1
século XVI. Nesse sentido, o referido estudo analisa a ação dos colonizadores e o
processo de catequização dos indígenas, procurando apresentar os processos de
interação e suas possíveis consequências na vida e na cultura dos povos ameríndios.
Para a realização desse estudo se recorrerá a diversos autores, como Filipe Moreau;
Darcy Ribeiro; Agostinho Marques; Gilberto Azanha; Virginia Valadão, além de outros
teóricos. Portanto, constatou-se que o principal objetivo da catequização indígena era
impor o mercantilismo e a fé cristã em detrimento a crença indígena procurando
estabelecer a dominação ideológica e, sobretudo, mercadológica.

Palavras-chave: Índio brasileiro. Colonização. Catequização indígena.

Abstract: This study aims to reflect along the historical process of the Brazilian Indian
inserted into the colonial system implanted in colonial Brazil the sixteenth century. In
this sense, this study analyzes the action of the colonizers and the indoctrination
process of the natives, trying to present the interaction process and its possible
consequences in the life and culture of the Amerindian peoples. To carry out this study
makes use of several authors such as Philip Moreau; Darcy Ribeiro; Agostinho
Marques; Gilberto Azanha; Virginia Valadão, and other theorists. Therefore, it was
found that the main objective of indigenous indoctrination was to impose
mercantilism and the Christian faith to the detriment of indigenous belief seeking to
establish ideological domination and especially marketing.

Keywords: Brazilian Indian. Colonization. Indian catechizing.

No século XV a Europa vivia em tempo de euforia e a partir do


comércio, era o momento em que o regime absolutista dos reis e da igreja

1
Graduando do 8º período em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual de Alagoas –
UNEAL, Campus III – Palmeira dos Índios - AL. E-mail: marcondesrocha07@hotmail.com
careciam de muitas riquezas para serem sustentados. Dessa forma, os
monarcas se associaram aos comerciantes que estavam obtendo altos
lucros com os produtos vindos do Oriente, as chamadas “especiarias”,
produtos como pimenta, noz moscada, tabaco, seda, etc. Esse rentável
negócio estava exclusivamente ligado as cidades Italianas da república de 2

Veneza e Gênova, as quais detinham grande poderio monopolista do


comércio com o Oriente.
Nesse mesmo século, Portugal consegue se transformar em Estado
nacional com forte poder centralizado e absoluto do rei ligado ao desejo e
dedicação voltado ao comércio. Assim, tem-se início o período das
grandes navegações portuguesas, persistindo no desejo de encontrar
novas rotas que pudessem levá-los ao Oriente até as especiarias
quebrando o monopólio das repúblicas italianas sobre esses produtos de
tamanho valor na Europa.
Inúmeros foram os fatores que contribuíram para essa expansão
marítima portuguesa, que não se explica apenas por sua localização
geográfica favorável, mas por uma burguesia aliada ao rei e por um Estado
centralizado dispostos a investir. Desse modo, a expansão ultramarina
portuguesa interessava à monarquia que queria aumentar seu
fortalecimento, e também a uma nobreza interessada em posses de
terras. Vemos que a burguesia mercantil visava ampliar seus lucros e a
Igreja, por sua vez, na possibilidade de cristianizar outros povos. Nesse
sentido, é válido ressaltar o que afirma Darcy Ribeiro:
O motor dessa expansão era o processo civilizatório
que deu nascimento a dois Estados nacionais: Portugal
e Espanha, que acabavam de constituir‐se, superando
o fracionamento feudal que sucedera à decadência
dos romanos. Não era assim, naturalmente, que eles
se viam, os gestores dessa expansão. Eles se davam ao
luxo de propor‐se motivações mais nobres que as 3
mercantis, definindo‐se como os expansores da
cristandade católica sobre os povos existentes e por
existir no alem‐mar. Pretendiam refazer o orbe em
missão salvadora, cumprindo a tarefa suprema do
homem branco, para isso destinado por Deus: juntar
todos os homens numa só cristandade,
lamentavelmente dividida em duas caras, a católica e
a protestante. (RIBEIRO, 1999, p.39)

Contudo, o desejo por novas cruzadas ligadas aos interesses


mercantis disfarçados na questão da propagação da fé e da conversão de
almas pagãs ao cristianismo é fator primordial na expansão de Portugal,
Espanha e mais tardiamente outras potências, como França, Holanda e
Inglaterra. É o que o papa Nicolau V expressa em sua bula Inter Coetera,
de 4 de maio de 1493 legitimando o Novo Mundo e permitindo a
escravidão dos povos que fossem encontrados:

[...] por nossa mera liberalidade, e de ciência certa, e


em razão da plenitude do poder Apostólico, todas
ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas
ou por descobrir, para o Ocidente e o Meio‐Dia,
fazendo e construindo uma linha desde o pólo Ártico
[...] quer sejam terras firmes e ilhas encontradas e por
encontrar em direção à Índia, ou em direção a
qualquer outra parte, a qual linha diste de qualquer
das ilhas que vulgarmente são chamadas dos Açores e
Cabo Verde cem léguas para o Ocidente e o Meio‐Dia
[...] A Vós e a vossos herdeiros e sucessores (reis de
Castela e Leão) pela autoridade do Deus onipotente a
nós concedida em S. Pedro, assim como do vicariado
de Jesus Cristo, a qual exercemos na terra, para
sempre, no teor das presentes, vo‐las doamos,
concedemos e entregamos com todos os seus 4
domínios, cidades, fortalezas, lugares, vilas, direitos,
jurisdições e todas as pertenças. E a vós e aos
sobreditos herdeiros e sucessores, vos fazemos,
constituímos e deputamos por senhores das mesmas,
com pleno, livre e onímodo poder, autoridade e
jurisdição. [...] sujeitar a vós, por favor da Divina
Clemência, as terras firmes e ilhas sobreditas, e os
moradores e habitantes delas, e reduzi‐los à Fé
Católica [...] (RIBEIRO, 1999 apud SOARES, 1939,
p.25‐8)

Em linhas gerais, conforme visto a expansão marítima de Portugal


vai surgir no sentido de cruzadas baseadas nos desejos de interesses
comerciais da exploração, na busca de novos entrepostos comerciais e na
propagação da fé cristã. Consequentemente “ é nesse contexto que os
portugueses chegaram a uma terra desconhecida, que chamaram de
Brasil” (AZANHA; VALADÃO,1991, p.8) dando início a um longo processo
de colonização, opressão e desculturação para com os povos que
habitavam essas novas terras recém “descobertas” a princípio chamada
de Terra de Vera Cruz e logo depois de Brasil.

Os índios e os recém-chegados o primeiro contato e a obrigação


missionária civilizadora
A historiografia aponta como marco o ano de 1500 para a chegada
dos portugueses as novas terras até então, segundo muitos escritores,
desconhecidas. Ao chegarem tomaram posse da nova terra e logo se
depararam com uma população nativa segundo informa a carta do
escrivão Pero Vaz de Caminha “avistamos homens que andavam pela 5

praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que


chegaram primeiro. ” (CAMINHA in CARTA A EL REI D. MANUEL,1963, p.1).
Esses nativos logo foram chamados de índios, denominação a qual faz
referência aos povos das “ índias Orientais” que deveras pretendiam
encontrar. Eram povos de diferentes costumes dos europeus, pois os
índios andavam nus, descalços, com pintura por todo o corpo, com
costumes, crenças e ritos diferentes dos novos povos que aqui chegara.
Por serem “diferentes” logo foram chamados de “selvagens”. O primeiro
contato com os nativos habitantes da costa brasileira pode ser observado
na carta de Caminha enviada ao Rei de Portugal informando-lhe as
impressões dessa gente já nos primeiros encontros.

[...] A feição deles é serem pardos, um tanto


avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem
feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem
mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas
vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são
de grande inocência. [..] Ambos traziam o beiço de
baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de
comprimento de uma mão travessa, e da grossura de
um fuso de algodão, agudo na ponta como um
furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e
a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a
modo de roque de xadrez. [..] E trazem-no ali
encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe
estorvo no falar, nem no comer e beber. E andavam lá
outros quartejados de cores, a saber, metade de sua
própria cor e metade de tintura preta, um tanto
azulada [...] ali andavam entre eles três a quatro
moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muitos 6
pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão
altas e tão cerradinhas e tão limpas de cabeleira que,
de as nós muito bem olhamos não se envergonhavam
[...] (AZANHA; VALADÃO, 1991, p.9 apud VORGOT;
LEMOS, 1981, p.13)

Tamanha admiração do cronista escrivão do El-Rei pelos nativos e


suas perfeitas feições e ao costume de estarem nus, logo demonstram o
grande contraste em relação a Europa do século XVI, onde se deparavam
com costumes e dogmas religiosos severamente rígidos no que se refere
ao sexo e ao desejo carnal. Além do mais, nesse período boa parte da
Europa estava recuperando-se da grande avassaladora peste negra a qual
dizimou grande parte da população o que nos leva a imaginarmos um
paisagismo eminentemente descordante ao das novas terras que são tão
bem detalhadas e admiradas em grande parte no decorrer da carta de
Caminha. Nesse sentido, os índios passaram a ser nas palavras de Gilberto
Azanha e Virgínia Marcos Valadão “Povos a serem conquistados e
dominados, para que se pudesse explorar as riquezas de seus territórios
em benefício da Coroa portuguesa. Povos a serem “salvos” do paganismo
e convertidos à religião católica” (AZANHA; VALADÃO, 1991, p.12) nessa
perspectiva, tem-se todos os predicados mercantilista-religiosos para a
colonização das terras e da gente dessa região conforme Caminha
descreve ao El-Rei:

[...] Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata


nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. 7
Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e
temperados como os de Entre-Douro-e-Minho,
porque neste tempo d'agora assim os achávamos
como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal
maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-
se-á nela tudo; por causa das águas que tem!
Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar
parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser
a principal semente que Vossa Alteza em ela deve
lançar ... Quanto mais, disposição para se nela
cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a
saber, acrescentamento da nossa fé [...] (AZANHA;
VALADÃO, 1991, p.12)

O desejo de “salvação” dos índios está relacionado diretamente à


situação religiosa da Europa proveniente das publicações das 95 teses de
Martinho Lutero para protestar contra os dogmas da igreja católica
referente a salvação da alma dos fiéis, a partir da venda de indulgências.
Para Lutero, a salvação deveria ser adquirida proveniente da fé individual
e dos sacramentos como o batismo que rompia o homem do pecado
original. Embora Lutero não pretendesse formar uma nova igreja o
protestantismo ganhou forte influência e muitos fiéis afastaram-se da
igreja católica romana, consequentemente, essas pessoas deixaram de
doar terras, gados, colheitas como forma de pagar o dízimo ou pagar a
própria “salvação” e garantir o lugar no reino de Deus. Em meio a esse
contexto gerou a grande preocupação para o corpo sacerdotal, quais
sejam, as perdas econômicas do clero. A proposta de Lutero seria apenas
para a reforma religiosa da igreja romana. Esses protestos do pai do
protestantismo colocou a população europeia em grande inquietação e
dúvidas referentes a salvação da humanidade e de como seriam salvos. 8

Assim, nas palavras de Luiz Antônio Sabeh (2009, p.29):

A reação católica, [...], residiu na defesa de sua


posição salvífica. Diante das dúvidas que se colocavam
sobre a cura das almas, a Santa Sé precisava
consolidar a doutrina definida, assegurar a unidade
religiosa e trabalhar no fazimento de novos cristãos
para recuperar os fiéis perdidos às novas religiões que
nasciam na Europa. [...] a Igreja utilizou-se, na
Reforma Católica[...] para reestruturar as bases da fé,
vigiar os hereges e para converter as populações não
européias, tidas como pagãs, ao cristianismo.

Vê-se, pois, que foram estes os pressupostos religiosos na busca por


novas almas para a santa fé cristã e por consequente sua conversão com
uma visão mercantilista no encalço desse desejo colonizador. Outro fator
de interesse da igreja pelos ameríndios era levar a evangelização como
forma de civilizar o “selvagem”, a partir do pensamento europeu que se
tinha sobre o desconhecimento e da “ignorância” dos índios provenientes
de seu modo de vida. Fica nítida deveras, a falta de conhecimento por
parte também do europeu por não conhecerem as sociedades indígenas e
suas estruturas. Por isso os tinham como “bárbaros” e “ignorantes”,
porque não viviam segundo as civilizações da Europa. Segundo Norbert
Elias:

Civilização era um conceito que expressava a


consciência que o Ocidente tinha de si mesmo, que os 9
caracterizava e os orgulhava frente ao sentimento de
superioridade em relação às sociedades antigas ou
contemporâneas tidas como primitivas. Embora
existissem diferentes concepções de “civilização” nas
sociedades ocidentais (construídas a partir do
sentimento nacionalista), o conceito expressava a
diferença entre os povos e a tentativa de minimizar a
desigualdade do “outro” a partir do estabelecimento
do “dever ser” ocidental: imposição de costumes,
comportamentos, moral, visão de mundo e religião
que, uma vez assimiladas pelo “outro”, aludiam a uma
forma social considerada mais complexa e
desenvolvida, cujo reflexo era sentido no sistema
político, no nível de desenvolvimento tecnológico e de
sua cultura científica (ELIAS, 1994, p.23-27).

Nessa mesma perspectiva, em relação aos recém-chegados e o


contato com ameríndios mais adiante Darcy Ribeiro afirma:

A civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia


de pestes mortais. Depois, pela dizimação através de
guerras de extermínio e da escravização. Entretanto,
esses eram tao‐só os passos iniciais de uma escalada
do calvário das dores inenarráveis do extermínio
genocida e etnocida. (RIBEIRO,1995, p.47)

Como vimos nas citações, o sentimento de civilização do europeu


predominava em seus costumes e práticas desde sua formação,
autodenominando-se como os únicos povos civilizados. Civilização essa
que em nome da ganância matou e barbarizou inúmeras populações de
índios e negros no decorrer da história colonial em favor de uma política
mercantilista voltada ao lucro.
Pero Magalhães Gândavo também aponta motivos para a 10

doutrinação do índio quando em sua passagem pelo Brasil mostra que “a


lingua deste gentio toda pela Costa he, huma: carece de tres letras –
scilicet, não se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque
assi não têm Fé, nem lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e
desordenadamente”. (GÂNDAVO, 1980, p.52) dessa maneira a ausência de
fé, lei e rei na América também justificava a sua colonização e a obrigação
missionária e civilizadora dos portugueses.

A ação missionária

Com a implantação do sistema de Governo-Geral a Coroa


portuguesa pretendia reforçar seus interesses sobre a colônia americana
uma vez que o fracasso do sistema de capitanias hereditárias criado em
1534 para aguçar o processo de colonização e conter as invasões de
piratas franceses nas costas litorâneas, não obteve resultados
significativos visto que, não conteve as incursões inimigas e pela falta de
interesse dos donatários nas novas terras, não contribuíram dessa forma,
para o desenvolvimento do sistema de capitanias, exceto a capitania de
Pernambuco comandada por Duarte Coelho. Dessa maneira, em 29 de
Março de 1549 na província de Vera Cruz chegou o primeiro governador
geral Tomé de Souza, junto com os primeiros jesuítas comandados por
Manoel da Nóbrega e alguns padres, afim de elucidar tais contratempos
para a Coroa portuguesa.
Nesse contexto, o sistema de governo geral assumi inúmeras tarefas
para organizar a província com as atribuições da povoação para a 11

valorização econômica do território, construir fortalezas de proteção aos


invasores, promover a justiça e sobre tudo a obrigação de exacerbar a fé
cristã e, por conseguinte, a tarefa de converter os índios. Pressupostos
estes que notamos no regimento enviado pelo El-Rei à Tome de Souza em
17 de Dezembro de 1548:

Porque a principal coisa que me moveu a mandar


povoar as ditas terras do Brasil, foi para que a gente
delas se convertesse à nossa Santa Fé Católica, vos
encomendo muito que pratiqueis com os ditos
capitães e oficiais a melhor maneira que para isso se
pode ter; e de minha parte lhes direis que lhes
agradecerei muito terem especial cuidado de os
provocar a serem cristãos; e, para eles mais folgarem
de o ser, tratem bem todos os que forem de paz, e os
favoreçam sempre, e não consistam que lhes seja feita
opressão, nem agravo algum; e, fazendo-se-lhes, lhe
façam corrigir e emendar, de maneira que fiquem
satisfeitos, e as pessoas que lhes fizerem, sejam
castigados como for justiça. (INÁCIO; LUCA (orgs.),
1993, p.50)

De acordo com a citação, para o povoamento ter êxito seria preciso


garantir a conversão dos indígenas o que para Neves (1978), se tratava de
um projeto de integração dos “pagãos” ao mundo “civilizado”
consequentemente, as missões estavam vinculadas entre a Igreja e os
Estados ibéricos recém-formados. A existência de povos que não eram
cristãos não conhecendo por seguinte o Salvador, eram vistos por esses
povos dominantes como não civilizados, pois viviam em meio a natureza.
Desse modo, o estágio natural é apontado como algo bruto em espera de 12

ser moldado pela ação dos servos de Cristo, os homens civilizados.


Tem-se a ideia principal de transformação cultural dos índios, seus
costumes, crenças e hábitos era preciso que houvessem as quebras das
características e costumes dos índios como o nomadismo, ritos sagrados e
adorações a deuses ligados as forças da natureza, a poligamia, a
bebedeira, a nudez e sobre tudo a antropofagia, para se chegar ao que
vão demonizar de primeiro estágio da conversão ao cristianismo.
O ritual antropofágico dos povos indígenas do Brasil do século XVI é
visto pelos colonizadores como pressuposto máximo da barbárie e da
animalidade do indígena. Denominavam os nativos de bárbaros, seres
incapazes de receber a conversão, para reforçar a necessidade de
escravizá-los. Porém a prática ritualística era bem diferente do imaginário
europeu que é associada, a partir de estereótipos equiparando
antropofagia à prática alimentar. Para o ritual antropofágico ocorrer
“tomavam prisioneiros de guerra em número relativamente pequeno e os
sacrificavam num cerimonial muito elaborado, e depois os consumiam
(RIBEIRO, 1922-1997, p. 51). Apenas os grandes guerreiros das tribos
inimigas vencidas em combates eram aprisionados e destinados ao ritual.
Para Fernandes (1970), o canibalismo tupinambá exercia uma função
religiosa: a de gerar um molde coletivo de comunhão direta e imediata
com o sagrado. “Comendo o adversário, o guerreiro se apropriava dos
‘poderes’ incorporados à sua personalidade” (FERNANDES, 1970, p. 327).
Dessa forma, existia uma relação direta com o sagrado e o sacrifício em
forma de vingança só estaria completo apenas havendo a antropofagia.
De acordo com Serafim Leite (1954) apud Moreau (2003) as práticas 13

antropofágicas:

De certo não era como regime alimentar: tinha caráter


diferente, quer guerreiro, quer religioso. Alguns
autores modernos [ ... ] parecem dar a antropofagia
dos indígenas brasileiros sentido exclusivamente
religioso. De fato, a cerim6nia de matança em público
terreiro era pretexto para grandes ajuntarnentos e
festas com costumes, sempre idênticos, no espaço e
no tempo. Daqui a denominação [ ... ] antropofagia
ritual. Mas não terá, anterior a isso [ ... ], origem
econ6mica? Vivendo os índios politicamente
desagregados [ ... ], a necessidade de defender a caça,
a pesca, e os pequenos cultivos nas reduzidas
fronteiras, não seria a causa preponderante da caça
ao homem, o concorrente inc6modo? Cremos que
sim. Depois, acesa a inimizade, com mortes e lutas
mutuas, o sentimento de vingança era natural. E é
esta, efetivamente, a ideia acessível, que prepondera
nas observações do tempo. A este duplo sentimento
de defesa e revindita andava também unida uma
terceira ideia de superioridade e honra, que revertia,
primeiramente, para quem cativasse o inimigo, e
secundariamente, para todos que participassem do
banquete humano. (LEITE, 1954 apud MOREAU, 2003,
p.141)
Sem dúvidas, os jesuítas não conseguiram assimilar a ideia da
antropofagia como ritual religioso e travaram uma contínua luta para
mostrar aos índios o significado entre o bem e mal, o bem representando
a santidade, a salvação, a partir de Deus e o mal aos demônios, aos
espíritos maus, “as práticas indígenas condenadas pelos padres são 14

atribuídas a ação do diabo. São criticados em cena os costumes antigos


considerados inaceitáveis..., pois os costumes "abomináveis" estão
projetados no diabo, e, portanto, fora deles. (MOREAU, 2003, p.48).
Notamos dessa forma, a América como reino do mal e demoníaca e a
Europa como santa e reino de luz disposta a proporcionar a salvação.
Outro fator importante a ser ressaltado como grande empecilho as
práticas jesuíticas são as inconstâncias dos ameríndios. O nomadismo é
identificado como um grande mal que abrange as tribos, quando suas
aldeias estavam velhas e a região já não proporcionavam alimentos, os
povos indígenas migravam para outras regiões perdendo o contato com os
jesuítas. Assim, a inconstância passou a ser uma das características
atribuídas aos indígenas de maneira estereotipada do selvagem no
imaginário europeu, pois tais costumes dos nativos implicariam nas perdas
e esquecimentos de tudo que os jesuítas haviam ensinado justificando
dessa forma, a complexidade da cristianização dos gentios. Nessa
significação, nas palavras de Viveiros de Castro (1992) a inconstância
apresentou ser:

Um traço definidor do caráter ameríndio,


consolidando-se como um dos estereótipos do
imaginário nacional: o índio mal-converso que, à
primeira oportunidade, manda Deus, enxada e roupas
ao diabo, retornando feliz à selva, presa de um
atavismo incurável. A inconstância é uma constante da
equação selvagem (VIVEIROS DE CASTRO, 1992,
pp.186-7).
15
O comportamento tido como inconstância era o consentimento dos
indígenas a um concomitante de crenças e costumes os quais os
missionários apontavam como meramente maus costumes, não
entendendo à vista disso, o comportamento dos nativos e muitas vezes
alegando a sua oposição ao catolicismo e a missão catequizadora, mas
vale ressaltar que não havia oposição dos nativos para com a ação
missionária, uma vez que aceitavam com facilidade a palavra de Deus,
mesmo que em seguida voltassem para seus costumes e ritos. O nativo
aparece mostrando sua expressão ao se deparar com algo novo e
incompreensível e procurando manter sua identidade nesse novo espaço
de convivência e sobrevivência e indecisão a meio de defesa e submissão
e realmente nesse contexto que “agradaria a muitos portugueses, seria a
“constância” em entregar as terras, abandonar crenças e costumes,
tolerar a escravidão e o extermínio”. (MOREAU, 2003, p.178).
Os jesuítas travaram uma luta contínua para mostrar aos índios o
significado entre o bem e o mal, o bem representando a santidade, a
salvação por Deus e o mal os demônios, espíritos maus, por conseguinte,
buscar o bem era abandonar os costumes antigos que os índios tinham
adquiridos de gerações e gerações passadas e sua própria cultura. Nessa
mesma perspectiva, Felipe Moreau vai afirmar que:
[...] Nota aqui a representação da América como reino
de Satã, e da Europa como reino de luz e salvação. A
própria expansão marítima seda efeito da providência
divina, com a colonização, pelo mercantilismo e
cristianismo, anunciando o fim da miséria. Pela 16
oposição entre Bem e Mal se representa a alteridade
entre europeus e Índios, cujas existências são
mediadas pelo imaginário cristão. As "páginas em
branco'' estavam, primordialmente, sob o domínio do
Mal. (MOREAU, 2003, p.42-43).

Referente as “páginas em branco” Moreau (2003) deixa claro que


era preciso impor conhecimento para que os índios pudessem adorar e ao
mesmo tempo temer, incutindo as práticas do que podiam e não podiam
fazer e com isso, adquirirem os dogmas cristãos. Os jesuítas ensinavam as
crenças e costumes europeus tendo em mente o desejo utópico de
inserção dos indígenas no processo colonizador não como mão de obra
escrava, explorados e dizimados, mas como cidadãos, obedecendo as
ordens do governador-geral originando assim, uma sociedade cristã
espelho da europeia, porém sem vícios e maldades detectados na Europa.
Assim, o plano da catequese adequa o trabalho missionário ligado a
colonização e a ocupação de terras como fica evidente em cartas do
jesuíta Manoel da Nóbrega enviada ao Pe. Miguel de Torres em Portugal:

Este gentio é de qualidade que não se quer por bem,


se não por temor e sujeição como se tem
experimentado e por isso se S.A. os quer ver todos
convertidos mande-os sujeitar e deve fazer estender
os cristãos pela terra dentro e reparti-lhes o serviço
dos índios àqueles que os ajudarem a conquistar e
senhorear em outras partes de terras [...], sujeitando-
se o gentio, cessarão muitas maneiras de haver
escravos mal havidos muitos escrúpulos, porque terão
homens escravos legítimos, tomados em guerra justa
e terão serviço e vassalagem e a terra se povoará e
Nosso Senhor ganhará muitas almas e S.A. terá muita 17
renda nesta terra [...] A lei, que hão de dar, é
defender-lhes comer carne humana e guerrear sem
licença do governador; fazer-lhes ter uma só mulher,
vestirem-se pois têm muito algodão, ao menos depois
de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros, manter-lhes em
justiça entre si e para com os cristãos, fazê-los viver
quietos sem se mudarem para outra parte, se não for
para entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes
bastem e com estes padres da Companhia para os
doutrinarem [...] (NÓBREGA, 1558, p.280-281 Apud
NEVES,1983,p.69)

Conforme visto, era preciso alterações nas políticas de


catequização, uma vez que os trabalhos missionários dentro das aldeias
não surtira efeito, porque os índios tinham suas crenças e costumes além
da presença de pessoas notáveis dentro da aldeia graças aos seus
conhecimentos tradicionais espirituais e de manipulação de ervas
medicinais exerciam forte influência na vida dos gentios. Eram os pajés
que logo se tornaram os maiores inimigos dos jesuítas. Desse modo, a
primeira alteração foi a criação dos aldeamentos locais onde os índios de
várias aldeias eram reunidos para facilitar os trabalhos dos missionários e
consequentemente preparar os índios para o trabalho o que geraria uma
reserva de mão-de-obra domesticada e bastante desejada pelos colonos
garantindo a metrópole usufruto dos territórios conquistados.
O nativo sempre esteve submisso a uma relação de poder
politicamente falando que o marcava, sujeitavam e forçavam a aceitação
de uma outra realidade. A forma de índio aldeado de certa maneira
significava uma fuga de se tornarem mão-de-obra para os colonos e dos
castigos físicos. Segundo Bosi (1992) os aldeamentos eram espaços de 18

reconstruções de histórias e identidades em uma cultura que misturou


crenças, práticas e costumes.
Os aldeamentos não foram bem aceitos pelos colonos, acusavam os
jesuítas de defenderem os índios dificultando o aprisionamento dos
mesmos; atribuíram aos jesuítas a prática de domesticação dos nativos
para assim conseguirem escravos para si mesmos. Cresce dessa forma, a
discórdia de interesses políticos da colonização. De um lado os colonos
aplicavam a coerção direta, por meio da escravidão, do outro os jesuítas
que optaram seguir uma opinião teológica da questão, formando um
campesinato indígena para atender as demandas europeias, mesmo que
essa concepção não tenha demonstrado êxito. Diante disso, a Coroa se ver
coagida por um lado à risca de conceitos morais e teológicos visando
reconhecer a humanidade dos índios e com isso assegurar sua
evangelização coibindo a escravidão de forma ilegal; em contrapartida
enfrentava a realidade da economia colonial, que estabelece sua própria
lógica.
Nesse contexto, o que vemos nos séculos a seguir é um confronto
de interesses teológicos versus econômico mercantilista acarretando em
1759 o fim do sistema de aldeamentos e a expulsão da ordem jesuítica no
Brasil, acusados de criarem um Estado autônomo e insubordinado dentro
dos domínios da Coroa. Aos índios, seu destino foi desconhecido, tiveram
suas terras tomadas e incorporados em forças armadas usados como
artimanhas envolvidos nos conflitos regionais.

Considerações finais 19

Ao longo de mais de cinco séculos passados após a “invasão” alguns


historiadores tendem a omitir a presença do índio na formação do Brasil,
os quais foram nitidamente exterminados de várias formas seja no sentido
de coerção biótica, ecossistema, econômica e cultural. Tiveram seu lugar
ocupado por pessoas as quais nunca se identificaram, pessoas estas que
negaram seus costumes, ritos e cultura. Foram altamente forçados
manual e ideologicamente a produzirem mercadorias ou a vender sua
força de trabalho em primeiro momento por objetos fúteis e por seguinte
escravizados em prol da ganância do europeu.
O caráter histórico em muitos momentos da historiografia aponta
com uma certa frequência como inexistentes ou secundárias o papel do
indígena na formação do Brasil. Atribuem características negativas aos
nativos o que não ocorre com uma outra forma de trabalho também
escrava bastante utilizada no processo colonial, o escravo negro africano.
Tais contrates carecem serem analisadas separadamente entre esses dois
mecanismos de troca. O escravo negro foi sempre um bem capital dessa
forma, sua aquisição se dava a partir da condição econômica a qual
determinado colono tivesse, sendo esse apenas o fator determinante para
se obter um escravo negro.
Em relação ao índio ao contrário do escravo negro, passava por
uma política dos governadores, jesuítas até chegar ao colono
temporariamente ocasionando uma infinidade de regras e pressupostos
tornando inseguro o investimento nessa mão de obra, o que talvez
explique o baixo valor de comércio do índio em relação ao escravo negro. 20

Os índios passaram a serem vistos como rebeldes, perigosos, precisando


de amparo e civilização. Assim, enquanto o negro era considerado uma
mercadoria a reclusão e escravidão dos indígenas era explicado pela sua
conversão em cristãos. Nesse sentindo, os estereótipos negativos eram
cabíveis para assegurar os mecanismos da catequese, que ia criando e
recriando a imagem do índio como bravo, vadio e preguiçoso no decorrer
dos tempos.
Os índios de hoje são remanescentes desses povos que sofreram
chacinas tiveram seus filhos roubados e suas esposas violentadas, por
serem diagnosticados como selvagens. Presenciaram tudo isso sem
nenhum tipo de proteção exceto nas missões religiosas que não
respeitavam suas crenças, costumes e religião, tudo para convertê-los ao
cristianismo em um processo temporal e hediondo da expansão da
civilização europeia, marcada de violência sobre os povos indígenas onde
encontrou causando sobre eles um genocídio e um etnocídio de grandes
proporções amplas da história humana desses povos.
Conclui-se então que a expansão portuguesa existiu em um sentido
amplo de cobiça movimentada por uma ideologia religiosa voltada a
aquisição de novos convertidos a religião do cristianismo. Foi assim
negando e ignorando as dores e atrocidades causadas a milhares de
nativos que deu início o período inicial do Brasil, um começo amargo onde
a historiografia eurocêntrica tenta omitir durante muitas eras mas que
atualmente tais pressupostos estão sendo reescritos e mostrando o
verdadeiro valor daquele que tanto sofreu e resistiu durante vários
séculos, os nossos índios brasileiros. 21

REFERÊNCIAS

ANCHIETA, J. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões.


1988. Belo Horizonte, Itatiaia/São Paulo: Edusp, 1988.

AZANHA, Gilberto; VALADÃO, Virgínia Marcos. Senhores destas terras: os


indígenas no Brasil da colônia aos nossos dias. São Paulo: Atual, 1991.

BOSI, A. A dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras,


1992.

CASTRO, Eduardo Viveiro de. O mármore e a murta: sobre a inconstância


da alma selvagem. Revista de Antropologia. São Paulo, USP, 1992, v.35,
p.21-74.

__________. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Ed./ANPOCS, 1986.

CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a el-rei D. Manoel (1 de maio de 1500). In:
INÁCIO, Inês Conceição; LUCA, Tânia Regina de (orgs.). Documentos do
Brasil Colonial. São Paulo: Ática, 1993.

CUNHA, Manoela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. 2 ed.


São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. v. 1.


Rio de Janeiro: Zahar Editora,1994.
FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade
tupinambá. São Paulo, Pioneira/Edusp, 1970.

GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil e história da


província de Santa Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1980. 22

INÁCIO, Inês Conceição; LUCA, Tânia Regina de (orgs.). Documentos do


Brasil Colonial. São Paulo: Ática, 1993.

LEITE, Serafim S.J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1938.

MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio


histórico jurídico social. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1867.

MOREAU, Filipe Eduardo. Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta. São


Paulo:
Annablume, 2003.

NEVES, Luiz Felipe Baêta. O combate dos soldados de Cristo na terra dos
papagaios: colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1978.

NÓBREGA, M. Cartas do Brasil. 1549-1560. Rio de Janeiro: Officina


Industrial Graphica, 1931.

_________. Diálogo da conversão do gentio. Lisboa: Comissão do IV


Centenário da Cidade de São Paulo, 1974.

PAPAVERO, Nelson et al. O Novo Éden... 2ª ed. Belém: Museu Paraense


Emilio Goeldi, 2002.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2 ed.


São Paulo: Companhia das letras, 1999.
SABEH, Luiz Antônio. Colonização Salvífica: Os jesuítas e a coroa
portuguesa na construção do brasil (1549-1580). Dissertação de
Mestrado (Mestrado História) Faculdade de Ciências Humanas, Letras e
Artes – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009.

SOARES, José Carlos Macedo. Fronteiras do Brasil no regime colonial. Rio


de Janeiro, José Olympio, 1939. 23

VOGT, Carlos; LEMOS, J.A.G., (ogs.). Cronistas e viajantes. São Paulo, Abril
Educação, 1982.
PORTO DA FOLHA: UMA INVESTIGAÇÃO DESCRITIVA E
HISTÓRICO-GEOGRÁFICA1
Marquessuel Dantas de Souza 2

RESUMO
O presente texto apresenta de forma sucinta um estudo histórico-geográfico sobre
Porto da Folha-SE e sobre o sertão no baixo São Francisco em Sergipe. Busca apontar 1
alguns aspectos da época da colonização e do período imperial com o propósito em
mostrar a importância de Porto da Folha no contexto histórico e geográfico de Sergipe
d’El Rei e do Brasil. Ao traçar ou cruzar as informações de outrora com as mais recentes
o texto possibilita uma espécie de contribuição para a história de Sergipe, da sede do
município e para a região estudada. Investigar a historiografia e a geografia regional de
Porto da Folha-SE dando ênfase a conhecer a cultura do povo local buscando
compreender o significado do lugar estudado.

PALAVRAS-CHAVE: Porto da Folha; História; Geografia.

ABSTRACT
This paper briefly presents a historical-geographical study of Porto da Folha UP and the
backwoods down in San Francisco in Sergipe. Seeks to identify some aspects of the era
of colonization and imperial period in order to show the importance of Porto da Folha
in historical and geographical context of Sergipe d'el Rei and Brazil. To trace or cross
checking of yesteryear with the latest text provides a kind of contribution to the
history of Sergipe, the seat of the municipality and the region studied. Investigate the
historiography and the regional geography of Porto da Folha UP emphasizing know the
culture of the local people seeking to understand the meaning of the place studied.

KEYWORD: Porto da Folha; History; Geography.

1
Antes de iniciarmos é digno de nota esclarecer ao leitor que manteremos - durante todo o
texto - as inscrições originais do material coletado. Quer dizer, em virtude de algumas
bibliografias utilizadas como referência fundamental para a elaboração da presente
investigação ser bastante antigas, usaremos as inscrições originais a fim de enriquecer nossa
pesquisa. Bem entendido, muitos datam do século XIX e outros do início do século XX.
Portanto, apesar da grafia dos originais estar fora de uso, optamos por mantê-las sem
alterações.
2
Graduado em Geografia. Faculdade de São Paulo. São Paulo-SP
INTRODUÇÃO
Quem não conhece a sua história não pode amar
suficientemente a sua terra e o seu povo, porque só se
ama o que se conhece.
Eufrásio Moreira Feitosa,
2009.
2

O passado, para a história, nunca está morto. Ele está


contido no agora que anuncia o que vem.
Antônio Carlos Pereira, s/d.

O presente texto busca, por assim dizer, investigar a historiografia e a


geografia regional de Porto da Folha-SE, em particular o aspecto físico
com ênfase em conhecer a cultura do povo local. Em outras palavras,
investigar a toponímia, buscando compreender o significado do lugar
estudado. Portanto, nas páginas seguintes o leitor se envolverá numa
abordagem histórico-geográfica sobre Porto da Folha-SE. Não obstante,
para não ficarmos com hipóteses e/ou especulações devemos cruzar as
informações concernentes ao tema proposto. Neste contexto, pretende-
se uma investigação sobre o desenvolvimento da região onde atualmente
se localiza o município e a sede do mesmo. Em outros termos, faz-se
necessário analisar a espacialidade da área em questão para sabermos
como a mesma era em tempos de outrora - com o passar dos tempos - e
como a mesma se mostra constituída no século XXI.
De modo geral, para que tenhamos conhecimentos sobre esta
pesquisa, ou seja, já nas primeiras linhas que introduz o presente texto, é
de fundamental importância considerar algumas características básicas
sobre Porto da Folha-SE a fim de que possamos orientar o leitor sobre
aquilo que será discutido adiante.
O município localiza-se a noroeste (semiárido) do estado de Sergipe
cujas coordenadas geográficas são 09º 55’ 00’’ de latitude Sul e 37º 17’
44’’ de longitude Oeste, na margem direita do Rio São Francisco a 190 km
de Aracaju. Em sua topografia limita-se com os municípios sergipanos de
Gararu ao leste; Monte Alegre de Sergipe e Nossa Senhora da Glória ao
sul; Poço Redondo ao oeste e aos municípios alagoanos de Belo Monte e
Pão de Açúcar ao norte (Rio São Francisco). A sede do município é
banhada em três vertentes (Sul, Oeste e Norte) pelo rio Capivara, um
afluente do rio São Francisco. Situa-se em um planalto há
aproximadamente 60 metros de altitude acima do nível do mar entre a
serra da Lagoa Comprida, serra do Moreira, serra da Cal e a serra dos
Homens.
De um modo geral, o texto está divido em cinco partes. A primeira
3
etapa concentra-se em específico sobre a origem de Porto da Folha. Em
seguida, o texto aborda o desenvolvimento urbano da mesma. Na
sequência, o manuscrito se propõe em mostrar a importância do Curral de
Pedras (atual Gararu) no contexto histórico da região. Do mesmo modo
efetua apontamentos sobre o primeiro cemitério da cidade e sobre a
igreja matriz; também realiza uma síntese do termo buraqueiro, tão
evocado na região. Em continuidade à investigação, o escrito se propõe
em expor uma análise concernente à Ilha do Ouro e à Ilha de São Pedro,
duas localidades situadas às margens do rio São Francisco como
fundamento no contexto histórico da região. Logo após, a discussão se
volta para a importância da Ilha dos Prazeres, uma elevada penha situada
no leito do rio São Francisco defronte a Ilha do Ouro. Por conseguinte,
faz-se uma breve menção curiosa sobre Lampião nestas terras. Para tanto,
serão levantadas informações concernentes ao passado histórico e,
entrementes, a geografia da região às margens do referido rio e da sede
do município, em que os dados coletados nos informam sobre tempos
remotos quando da fundação, ou melhor, quando da origem do
povoamento da área estudada.
Outras informações serão adicionadas a fim de enriquecer a
pesquisa. E, não obstante, salientamos a importância dos registros/relatos
de viajantes que por essas terras passaram catalogando muito do que
ainda existe. Decerto, são considerações significativas sobre essas
terras/paisagens. - Ao falar da cidade e das vizinhanças sempre há algo
por descobrir, pois a riqueza imanente desse lugar causa-nos uma
curiosidade intensa que, para isto requer disciplina e compromisso do
pesquisador para com a pesquisa de investigação cultural.

SAUDADES DO FUTURO: PORTO DA FOLHA E SUAS ORIGENS (PRELÚDIO)


Ao iniciar este ensaio, devemos considerar que estudar a História e a
Geografia de um lugar é primordial para compreendermos a cultura de um
povo. Assim sendo, podemos ilustrar o que será investigado adiante da
seguinte maneira: “a Geografia não é outra coisa que a História no espaço,
o mesmo que a História é a Geografia no tempo” 3. Ou, conforme a
ilustração de Schopenhauer no qual este diz que “a HISTÓRIA [...] é para o
tempo o que a geografia é para o espaço”4. Em outros termos, a História
4
só acontece perante uma Geografia. A Geografia faz a História acontecer.
Em todo caso, “o homem não se separa da sua geografia nem de sua
história. Pois o homem faz sua história a todo instante numa geografia.
Seja em qualquer lugar ou em qualquer momento” 5. Portanto, para
sabermos um pouco mais sobre Porto da Folha somos levados a
interpretar a História e a Geografia deste lugar para não ficarmos com
impressões duvidosas. - Neste contexto citemos Elisée Reclus que nos
pronuncia o conhecimento geográfico brilhantemente. Para este “a
Geografia não é uma coisa imutável; se faz e se refaz todos os dias, e a
cada instante se modifica pela a ação do homem” 6. Ademais, para
Friedrich Ratzel os homens agem “no teatro dos acontecimentos” 7 - na
geografia - promovendo sua realização, sua história.
Pelos relatos dos viajantes de outrora e através de outros materiais
coletados para a elaboração desta investigação sabemos que todo o
acontecido sobre Porto da Folha remonta há tempos longínquos.
Retornemos ao passado primitivo, por assim dizer, do Brasil. Bem
entendido, a origem da história de Porto da Folha deve-se ao fato do
descobrimento do Rio São Francisco em 04 de outubro de 1501 quando o
navegante Américo Vespúcio chegou a sua foz no dia de São Francisco.
Quer dizer, com o intuito de entendermos a origem do município e da
3
RECLUS, Elisée. L’homme et la terre. Tome premier, 6. v. Paris: Librairie Universelle, 1905, p.
357, p. 04.
4
SCHOPENHAUER, Artur. Parerga y Paralipómena: escritos filosóficos sobre diversos temas.
(Trad. José Rafael Hernández Arias, Luis Fernando Moreno Claros e Augustín Izquierdo)
Madrid: Valdemar, 2009, p. 935. (Letras Clásicas)
5
SOUZA, Marquessuel Dantas de. A Filosofia na antropogeografia de Friedrich Ratzel. In:
Caderno de Geografia. (PUCMG), Belo Horizonte, v. 24, n. 42, pp. 155-168, jul./dez. 2014, pp.
158-159.
6
RECLUS, Elíseo. El hombre y la tierre. Tomo quinto, 6. v. (Versión española por A. Lorenzo;
bajo la rerisión de Odón de Buen) Barcelona: Escuela Moderna, 1908, p. 357.
7
RATZEL, Friedrich. Geografia dell’uomo (Antropogeografia): principî d’applicazione della
scienza geográfica alla storia. (Tradotta da Ugo Cavallero) Torino: Fratelli Boca Editore, 1914,
p. 13.
sede do mesmo devemos voltar no tempo histórico. - A partir do
momento que se descobriu a embocadura do referido rio começou desde
já sua exploração, no qual passaram a instalar no baixo São Francisco os
currais. “Daí por que, o rio chegou a ser conhecido como ‘Rio-dos-
Currais’”8 por haverem muitos currais implantados nas imediações de suas
margens - entre os diversos currais instalados à margem do grande rio
estava o ‘Curral de Pedras’ (Gararu) -. Porém, a denominação inicial (rio
5
São Francisco) é a que permanece até os dias atuais. Por conseguinte, com
a colonização da capitania de Sergipe d’El Rei a partir de 1590 por
Cristovão de Barros, as coisas se processaram de maneira mais acentuadas
quando da exploração das terras com o propósito de expandir o domínio
português em terras margeantes ao São Francisco. Sob o domínio da Bahia
de Todos os Santos, o governo da capitania de Sergipe d’El Rei se viu
obrigado a colonizar seu território e a expandir suas terras a fim de
garantir seu poder, seu domínio.
A origem do povoamento da região remonta ao século XVII “quando
Pedro Gomes, instituidor do morgado de Porto da folha, se serve dos
índios Orumarus (Aramurus) que aí habitavam para expulsar os
holandeses que então ocupavam a região do baixo São Francisco” 9. E para
recompensar-lhes a ação efetuada, Pedro Gomes lhes teria facultado
morarem em terras do dito morgado.
Os limites territoriais de Sergipe sempre foram proclamados entre o
Rio Real e o Rio S. Francisco, todavia, o maior problema estava a noroeste
deste território, que neste caso específico é o que vamos estudar: a região
onde hoje se encontra o sertão sergipano, em particular Porto da Folha. -
Um momento importante no que diz respeito à história da colonização das
terras sergipanas “é o período em que os holandeses dominaram uma
longa faixa da costa brasileira, compreendendo as terras entre as
capitanias de Sergipe d’El-Rei até o Ceará que ocorreu entre os anos de
1635 até 1653, sendo a Capitania de Pernambuco a sede do governo
holandês”10.
8
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Impactos sócio-ambientais à margem do rio São Francisco:
um estudo de caso. Dissertação (Mestrado em Geografia). Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciência Humanas da Universiodade de São Paulo. Área de concentração: Geografia Humana.
São Paulo, 2008, p. 23.
9
DANTAS, Beatriz Góis e DALLARI, Dalmo de Abreu. Terra dos Índios Xocó (Estudo e
Documentos). São Paulo: comissão Pró-Índio/Editora Parma Ltda, 1980, p. 13.
10
MENEZES, Catarina Agudo. Alagoas de Marcgraf. 17p. In: I Simpósio Brasileiro de Cartografia
Histórica. Passado presente nos velhos mapas. CRCH/UFMG. Paraty: 2011, p. 05.
Numa carta dos primeiros tempos foi possível
observar que o nome de Porto da Folha denominou
toda abrangência de um grande território à margem
do rio São Francisco. Constata-se que toda essa região
era a Sesmaria dos Burgos e outros, Vínculo da Família
Gomes Castello Branco, tendo como vizinhança a
Sesmaria Garcia D’Avila, este sendo um dos pioneiros
6
da ocupação territorial sergipana, oriundo da Bahia de
Todos os Santos 11.

Figura 01. Sesmaria de Burgos e outros. Vínculo da Família Gomes Castelo


Branco. Fonte: Prado, 1919. A inscrição grifada em vermelho indica o
território do morgado de Porto da Folha.

Há que frisar um emblemático problema em relação ao nome, ou ao


termo referente a Porto da Folha. Bem entendido, quer dizer quer:
conforme o levantamento de antiga bibliografia (informações) observou-
se que a origem do nome parte de duas vertentes distintas, contudo,
ambas as proposições, explicações principais para a origem do nome é o
que serão discutidos a seguir. Evocá-las as proposições a fim de fazermos
uma breve reflexão do passado deste lugar no semiárido sergipano. Por
sua vez, não fosse possível precisá-lo.
A relevância da tradição oral deve ser considerada significativamente.
Com efeito, a tradição oral portofolhense nos conta que devido às cheias
do rio Capivara, o mesmo trazia consigo (na correnteza) muitas folhas -

11
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Op. Cit., p. 29. Consta “que a sesmaria de Burgos que dá
origem ao morgado é de 29-11-1669” PRADO, Ivo do. A Capitania de Sergipe e suas Ouvidorias:
memórias sobre questões de limites (Congresso de Bello Horizonte). Rio de Janeiro: Papelaria
Brazil, 1919, p. 254. O que reforça nosso argumento da origem de Porto da Folha como região
no século dezessete.
por ser a Caantiga de épocas remotas muito densas – no qual em toda a
planície da várzea da Ilha do Ouro tais folhagens ficavam acumuladas por
certo período de tempo dando ideia de ‘porto das folhas’. Conforme o
volume de águas do São Francisco ser superior ao do rio Capivara, essas
folhas demoravam dias e até meses para deixarem todo o vale da várzea.
O que denota ser toda essa área um ‘porto das folhagens’ que ali
chegavam. Do mesmo modo o termo Porto da Folha pode se referir, por
7
assim dizer, ao ‘porto da Ilha do Ouro’ por onde era escoada toda a
produção da região, pois este era a principal via de acesso. Neste
contexto, percebe-se que a localidade Ilha do Ouro é mais antiga do que a
localidade da cidade de Porto da Folha. - A outra explicação é algo
desconhecido da população local. Para tanto, mencionemos para
compreendermos, juntamente com a proposição anterior, o significado do
vocábulo.
Acredita-se que a denominação do lugar não ocorreu
no momento de sua emancipação político-
administrativo, mas conservou o nome de extensa
região de terras banhadas pelo rio São Francisco
desde as primeiras explorações de suas margens, do
lado de Sergipe, resgatando informações de toponímia
de mapas antigos12.

Figura 02. Antiga carta de Sergipe d’El Rei, s/d e 1807, respectivamente.
Fonte: Prado, 1919.

Pois que, “não se descarta que a expressão Porto da Folha esteja se


referindo, desde o princípio, a porto fluvial e à folheta de ouro”13. Em

12
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Op. Cit., p. 156.
13
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Idem, p. 30, grifo do autor.
razão disso observa-se que sua origem é remota e “o nome Porto da Folha
existe desde o começo da expansão territorial de sua região” 14, de modo
que se preservou. Conforme Souza (1944), na Vila Nova 15 achavam-se
riquezas do reino mineral, além de ouro. “Os lugares indicados consoantes
a cartografia acima citada, na época, pertenciam a esta vila. Assim, é
possível observar que o nome Ilha do Ouro tenha se originado por ter sido
apontada a existência de ouro em sua direção”16. Haja visto que “na
8
Capivara se achou – uma folheta de ouro que tinha 06 oitavas” 17. Com
efeito, “é possível observar que parte do nome da cidade tem relação com
a expressão folheta de ouro”18.
O termo Porto da Folha, bem como a expressão do território em si e
da região de mesmo nome é muito antigo como já fora apontado
anteriormente. Remonta ao século XVII, pois que “em 1623 já existia a
povoação de Porto da Folha”19. Por sua vez, a povoação da sede onde se
localiza a cidade remonta ao século XVIII. O vocábulo Porto da Folha
aparece oficialmente pela primeira vez representada numa carta
cartográfica elaborada em 1807 (conforme imagem acima – figura 02),
cuja mesma é uma reprodução da carta cartográfica de 1643 de Georg
Marcgraf, que, por sua vez, é o primeiro mapa de Sergipe. - A referida
carta de 1643 aponta como já existente o Curral de Pedras, ou seja,
Gararu-SE. Muito embora, o nome Porto da Folha não apareça nesta
representação, é possível identificar um fenômeno ou acidente geográfico
natural que aponta e fundamenta o nosso argumento de que a sede do
município em séculos passados já fora banhada pelo São Francisco. Isto
quer dizer que desde o século XVII já havia habitações familiares ou,
povoações na região onde hoje se encontra a cidade de Porto da Folha.

14
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Idem, p. 33.
15
Vila Nova (atual Neópolis), grande extensão de terras que se estendia desde a foz do São
Francisco ao rio Xingó. Nestas terras se localizavam várias povoações margeando o São
Francisco entre elas Ilha do Ouro, isto por volta do século XVII.
16
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Idem, p. 30.
17
SOUZA, Marcos Antonio de. Memoria sobre a Capitania de Serzipe: sua fundação,
população, productos e melhoramentos de que é capaz (1808). 2ª ed. Aracajú: Departamento
Estadual de Estatística, 1944, p. 41.
18
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Op. Cit., p. 30, grifo do autor.
19
OLIVEIRA TELLES, Manoel dos Passos de. Limites de Sergipe (contra o 1º volume da
compilação do Dr. Braz do amaral, intitula Limites do Estado da Bahia). Aracaju: Imprensa
Oficial, 1919, pp. 44-45. Grifo do autor conforme o original. Devemos lembrar que este fato é
bastante duvidoso, porém, lúcido e emblemático para a nossa pesquisa de investigação.
Para tanto, Curral de Pedras (Gararu) e Ilha do Ouro constituíram-se
povoações antes mesmo da fundação da cidade.

Entre as formas representativas das relações entre


homem e espaço o desenho é, possivelmente, a
prática que agrega a maior quantidade de elementos
passíveis de interpretação, uma vez que permite
9
produzir visualmente, no caso de um território, por
exemplo, um panorama daquilo que se sabe, ou se
imagina, existir20.

As imagens a seguir, cuja arte implantada séculos depois ainda nos


provoca profundo encantamento nos dão uma nítida noção do que fora
descrito nos parágrafos anteriores. Tais imagens nos auxiliarão no
entendido do conhecimento imanente presente em cada representação
iconográfica.

Figura 03. Brasiliae Geographica et Hidrographica Tabula Nova 21, Georg


Marcgraf22, 1643. Fonte: Menezes, 2011.

20
MENEZES, Catarina Agudo. Alagoas de Marcgraf. 17p. In: I Simpósio Brasileiro de Cartografia
Histórica. Passado presente nos velhos mapas. CRCH/UFMG. Paraty: 2011, pp. 02-03.
21
“Este mapa se apresenta sob duas formas, a partir de quatro gravuras individuais que
consistem nos mapas propriamente ditos, utilizados por Gaspar Barléus, representando as
capitanias conquistadas; e como mapa mural, editado por Joan Blaeu, em 1647, confeccionado
a partir da sobreposição e colagem de onzes folhas e do acréscimo de textos em francês, latim
e holandês, e que recebe o título de Brasilia qua parte paret Beilgis” MENEZES, Catarina
Agudo. Alagoas de Marcgraf. 17p. In: I Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica. Passado
presente nos velhos mapas. CRCH/UFMG. Paraty: 2011, p. 08. Esta obra abrange as capitanias
de Sergipe (Ciriii), Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande. Além de informar em
detalhes sobre acidentes geográficos, povoamentos, caminhos, engenhos entre outras coisas.
10

a b
Figura 04. Praefectura de Cirîlî, vel Seregippe del Rey cum Itàpuáma,
adaptação de Barléu, 1647. Fonte: Miceli, 2011. A imagem A é uma
adaptação da imagem da figura 03. A imagem B representa o círculo em
vermelho que está presente na imagem A, cuja seta indica que o círculo é
a imagem B.

Devido à invasão holandesa na costa do “Brasil” o Conde Maurício de


Nassau solicitou o mapeamento de seus domínios a fim de controlá-los e
explorá-los. A partir deste momento fora elaborado o mapeamento de
toda região sob o domínio holandês no século XVII. Assim surgiram os
mapas aqui representados. Primeiramente o estudioso e naturalista Georg
Marcgraf elaborou o mapa de toda a colônia ou domínio holandês
(individualmente), estendendo-se desde a “Parahyba á Sergipe” 23. Anos
depois Gaspar de Barléu adaptou cada região (em particular) referida na
representação geral da colônia. Barléu fez um trabalho minucioso
descrevendo os pormenores existentes. Nesses termos Barléu nos fala:
“Nassau anexa ao domínio da Companhia o Sergipe ou a capitania do
Cirí”24. Para Nieuhof “a Capitania de Sergipe-d’El-Rei, também conhecida

Através desta gravura observa-se o primeiro mapa da capitania de Sergipe d’El Rei
representado na parte superior esquerda.
22
Georg Marcgraf, ou George Marcgrave chegou ao Brasil em 1638, “inicialmente como
auxiliar do naturalista Guilherme Piso, que veio a pedido de Nassau. Em 1644 partiu do Brasil
para Angola e lá faleceu precocemente, neste mesmo ano, vítima de uma febre tropical” HUIB
ZUIDERVAART apud in MENEZES, Catarina Agudo. Op. Cit., pp. 09-10.
23
FREIRE, Felisbelo Frmino de Oliveira. História de Sergipe (1575-1855). Rio de Janeiro:
Typographia Perseverança, 1891, p. 91.
24
BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil
(1647): o Brasil holandês sobre o Conde João Maurício de Nassau. (Tradução e anotações de
Cláudio Brandão) Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1940, p. 225.
por Cirigí”25, era uma porção de terras valiosas para o domínio holandês
avançar sobre a Bahia de Todos os Santos. Com efeito, a anexação de
Sergipe d’El Rei ao domínio holandês 26 ocorreu em 26 de Fevereiro de
1640, segundo Barléu. As imagens neste contexto falam por si.

11

Figura 05. Porto da Folha e o Rio São Francisco. Esta imagem de satélite
recente nos mostra perfeitamente a confluência representada no mapa
cartográfico de 1643, no qual aparece o rio da Porteira (seta central
superior), a Ilha dos Prazeres com a denominação de Ilha do Ouro e o rio
Ipanema, conforme a imagem B da figura 04. Fonte: Google Earth, 2008.
Acesso em 15 de setembro de 2013.

A descrição a seguir, nos mostra a dimensão do território que a visão


estrangeira tinha sobre as novas terras recém-descobertas, cujo nome
Brasil. Por sua vez, dividido em capitanias hereditárias.
Dividitur Brasilia, intra hos limites, in certas
Praefecturas (capitanias appellant vulgo Lusitani) &

25
NIEUHOF, Joan. Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil (1682). (Trad. Moacir N.
Vasconcelos; confronto com a edição holandesa de 1682, introdução, notas, crítica
bibliográfica e bibliografia por José Honório Rodrigues) São Paulo: Livraria Martins, 1942, p. 14.
- Joan Nieuhof viveu nas terras do Brasil (Nordeste) de 1640 a 1649, quando o mesmo fora
enviado para acompanhar a colonização holandesa das Índias Ocidentais. Diante disso,
Nieuhof registrou minuciosamente aquilo que o mesmo presenciou durante o período que se
encontrava nas novas terras sob o domínio holandês.
25
Recordemos que devido à invasão holandesa em terras sergipanas, em particular nas
povoações às margens do São Francisco, o povo de Porto da Folha possui algo em particular.
Muitas pessoas apresentam aspectos de polaco, holandês, sendo assim chamados de ‘Galegos
de Porto da Folha’.
26
Recordemos que devido à invasão holandesa em terras sergipanas, em particular nas
povoações às margens do São Francisco, o povo de Porto da Folha possui algo em particular.
Muitas pessoas apresentam aspectos de polaco, holandês, sendo assim chamados de ‘Galegos
de Porto da Folha’.
quidem vulgo in quatuordecim. Quarum prima versus
Boream est Para, sequuntur dehinc ordine
Maranhaon, Ciara, Potiyi ve, Rio Grande, Paraiba,
Itamaraca, Pernambuco, Quirimure vel Bahia de Todos
los Santos, cujus metropolis S. Salvador, Nhoecombe
vel Ilheos; Pacatâ, vel Porto Seguro; Espiritu Santo;
Nheteroya, vel Rio de Jeneiro, quem Ganabara vulgo
12
vocant Brasilienses; & S. Vincente 27.

Lembremos que, “analisando a carta dos primeiros tempos é possível


ratificar que [...] Porto da Folha já estava representada cartograficamente
como uma área de domínio de grande extensão territorial. Esta extensão
abrangia vários pontos identificados, todos margeando o principal rio da
bacia hidrográfica da região” 28, o Rio São Francisco.
Segundo a cartografia de Sergipe Del Rei (algumas
datas não sendo possível ser precisas por serem
trabalhos muito antigos), o atual rio ou riacho
Capivara já foi chamado de rio Ilha do Ouro e rio da
Porteira29. Aqui se refere ao princípio da Capitania de

27
MARCGRAVI, Georgi. Historiae Rerum Naturalium Brasiliae (liber octavus). In: GUILIELMI
PISONIS, M. D.; LAET, Ioannes de; MARCGRAVI, Georgi (de Liebstad). Historia Naturalis
Brasiliae: auspicio et beneficio illustriss. I. Mauriti Com. Nassau illius provinciae et maris summi
praefecti adornata – in qua non tantum plantae et animália, sed et indigenarum morbi, ingenia
et mores describuntur et iconibus supra quingentas illustratur. Lugdun. Batavorum, apud
Franciscus Hackium et Amstelodami apud Lud. Amsterdam: Elzevirium,1648, p. 261. Grifos do
autor conforme o original. “O BRASIL dentro dêstes limites está dividido em três Prefeituras
determinadas (Capitanias chamam vulgarmente os Lusitanos) e na verdade em número de
quatorze. Das quais a primeira na direção Boreal é Para, seguem depois em ordem Maranhão,
Ceará, Potiyi ou Rio Grande, Paraíba, Itamaracá, Pernambuco, Quirimure ou Baía de Todos os
Santos, cuja capital S. Salvador, Nhoecombe ou Ilhéos; Pacatâ, ou Pôrto Seguro; Espirito Santo;
Niterói ou Rio de Jeneiro que os brasileiros vulgarmente chamavam Guanabara; e S. Vicente”
MARCGRAVE, Jorge. História Natural do Brasil (Oito livros). (Tradução de José Procopio de
Magalhães) São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1942, p. 261.
28
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Op. Cit., p. 34.
29
Tanto na carta de Marcgraf de 1643 quanto nas cartas de Sergipe d’El Rei de 1807, *1809+
identifica-se o rio da Porteira. Na figura 04 B, a seta central indica o local do rio da Porteira (ver
imagem acima). O mesmo rio aparece com denominação de Ilha do Ouro em cartas
posteriores. Por sua vez, o rio com o nome Capivara não aparece em nenhuma carta. Acredita-
se, segundo a tradição oral portofolhense, que a denominação Capivara é devido ao fato de
haverem muitas capivaras nas imediações do referido rio. Isto, principalmente nas
proximidades da várzea da Ilha do Ouro. – A imagem B da figura 04 nos faz ver que o rio da
Porteira por ser um braço do Rio São Francisco - formando ao fundo um lago -, é possível
Sergipe (meados do século XVI). Ao mesmo tempo em
que a segunda denominação fluvial destacada
aparece, também se observava o nome da Ilha do
Ouro, atual povoado, o que pode apontar a origem da
Fazenda30 com essa denominação31.

Acreditamos que em épocas passadas (principalmente entre o final


do século XVII e o final do século XIX, onde hoje é a cidade) Porto da Folha 13
já foi banhado pelas águas do Rio São Francisco. Quer dizer, a sede do
município já esteve às margens do grande rio. Para tanto, um século
depois as coisas foram mudando e muito rapidamente, devido às
explorações intensas efetuadas nas regiões ribeirinhas.
Inferimos que a sede do município - sem as interferências acentuadas
de ações antrópicas no Velho Chico -, “era caracterizada de forma mais
marcante como margem do rio São Francisco”32. Haja vista ser a várzea da
Ilha do Ouro até o início do século vinte, aproximadamente, uma espécie
de braço do rio São Francisco, uma planície que contribuía para que a
água escorresse ou entrasse em direção ao sul do território deixando as
terras baixas locais inundadas. Algo que confirma a ideia de que Porto da
Folha ficava às margens do São Francisco. Do mesmo modo, se confirma
as informações da tradição oral local nas quais as pessoas mais velhas da
região diziam que “toda a área baixa em torno da cidade já foi rio, pois
que os pequenos morros nessas terras baixas eram pequenas ilhas
isoladas por águas claras, porém, paradas por estarem a uma légua do
curso do rio”33. Afinal, a tradição nordestina chama o rio São Francisco de
Mar do Sertão. Pelo grande volume que o mesmo apresenta (isto,
especificamente em séculos passados quando o seu volume era maior).
Diante disso, inferimos que a povoação onde hoje se encontro a Ilha
do Ouro, até meados do final do século XX era realmente uma pequena

inferir que: quando da fundação do povoamento de Porto da Folha ou Buraco, este, situava-se
às margens do grande Rio. Discussão que será vista doravante.
30
É curioso observarmos que a casa sede da Fazenda “ainda encontra-se erguida no povoado
Ilha do Ouro. Entretanto, sua estrutura não aparenta ter a duração que, cosoante à pesquisa,
pode ultrapassar os quatrocentos anos (isso, levando em consideração o início da exploração
do São Francisco)” SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Op. Cit., p. 31.
31
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Op. Cit., p. 29.
32
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Op. Cit., p. 48.
33
SOUZA, Maria de Lourdes Lima. Informação verbal concedida em entrevista a Marquessuel
Dantas de Souza. Porto da Folha-SE, Julho de 2013.
ilha cortada pelas águas do São Francisco em todas as suas vertentes. Não
raro, isto é apontado de forma sucinta por Santos (2008). Segundo Pereira
(s/d, p. 82), “em 1863” fora construída a capela da Ilha do Ouro cuja
mesma denominaram Nossa Senhora da Conceição. Não obstante, “em
1745, Ilha do Ouro estava entre as 13 fazendas do sertão do São
Francisco”34. Sendo assim, isto demonstra a importância desta localidade
dentro do cenário regional. Principalmente para o comércio da época em
14
questão.
Como dito anteriormente, a partir do século vinte o rio São Francisco
começou a recuar e, por assim dizer, a distanciar suas águas do lugar onde
hoje se encontra a sede municipal. E isto se processou acentuadamente
conforme nos ilustra o seguinte relato.
Até meados do século XX, a sede municipal era
caracterizada como margem do rio São Francisco por
causa das cheias naturais sobre a grande extensão de
planície fluvial que se estende desde a beira desse rio
até atingir o local através do riacho Capivara em que
se formava um só35. A pequena cidade que ficava
banhada pelas águas do São Francisco em razão dos
grandes volumes da cíclica inundação sobre a extensa
planície fluvial, hoje em dia fica a cerca de 6 km
distante do espelho d’água são-franciscano devido à
extinção do ciclo de cheias desse rio36.

Mesmo assim, deve-se considerar que “até final do século XX, por
causa dos grandes volumes das cheias do Velho Chico, a zona urbana
ficava caracterizada à margem deste rio” 37. Posto que,
Todos os finais de ano, impreterivelmente a partir de
dezembro, devido às chuvas de verão em Minas
Gerais, o rio se agigantava e transbordava para os rios
temporários e lagoas, em todo o percurso do Baixo
são Francisco [...]. Da Ilha do Ouro à cidade de Porto
da Folha formava-se um lago só. O espelho d’água do

34
PEREIRA, Antônio Carlos. Porto da Folha - Terra de Buraqueiros: esboço histórico do
município. [Porto da Folha]: Edição do Autor, s/d, p. 83.
35
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Op. Cit., p. 36.
36
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Op. Cit., pp. 26-27.
37
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Op. Cit., p. 39.
enorme lago era como que a unificação da Várzea da
Ilha do Ouro com a Lagoa Comprida, o Estreito, a
Lagoa de Beber, os Carretéis, a Restinga e a Lagoa
Salgada. Às vezes, até as várzeas do Poço Fundo, do
Brocotó e das proximidades do cemitério novo
ficavam inundadas. O volume d’água era tal, que as
cercas ficavam submersas e até as canoas de tolda
15
ancoravam em Porto da Folha, no porto das Pedras.
Quando o porto das Pedras ficava submerso, o local
de embarque e desembarque se mudava para o Pé da
Ladeira e Lagoa Salgada 38.

Conforme a imagem a seguir, temos uma breve noção de como era a


região de Porto da Folha ao longo do São Francisco. Em outras palavras,
de acordo com a imagem ilustrativa o São Francisco apresentava-se muito
volumoso que suas águas iam de encontro com a povoação de Porto da
Folha através da várzea da Ilha do Ouro como se observa no círculo
grifado em vermelho. Toda essa área permanecia alagada. Mais ainda
quando das cheias entre dezembro e fevereiro, épocas de muitas chuvas
na cabeceira do rio que fica em Minas Gerais.
Portanto, assim era Porto da Folha banhada - por intermédio do rio
Capivara - pelas águas claras do grande rio São Francisco até meados do
século XX (aproximadamente). Conforme a imagem da figura 06 deixa
nítido.

Figura 06. Topografia hipsométrico do município de Porto da Folha. Fonte:


Mapstore, 2013.

38
SOUZA, Manoel Alves de. Porto da Folha: fragmentos da história e esboços biográficos.
Aracaju/Porto da Folha: Edição do autor, 2009, p. 277. (Coleção Lindolfo Alves de Souza)
Por sua vez, o Rio São Francisco em meados do século XX
apresentou-se cada vez mais escasso quando das grandes cheias, que
logo, o povo ribeirinho passou a perceber que o Mar do Sertão estava
secando. Deveras, “em Porto da Folha a última grande cheia do rio São
Francisco ocorreu em 1992, quando as embarcações da Ilha do Ouro
aportaram no pé da Ladeira, transportando seus moradores para realizar a
feira da cidade, entre outras coisas”39.
16
Aliado ao incremento dos transportes rodoviários na
Região sertaneja, outros fatores contribuíram para a
extinção da navegação fluvial no São Francisco: a
morte de muitas nascentes e o rápido assoreamento
do rio, por conta dos desmatamentos; a sucessiva
construção de barragens no rio, desde a Bahia, para a
produção de energia elétrica; e o rápido controle da
vazão do rio pela CHESF. A soma desses fatores, além
de tornar inviável a navegação, extinguiu a produção
de arroz e reduziu a piscosidade do rio,
comprometendo assim as condições de vida da
população.
O caudaloso e pujante São Francisco de antes foi se
transformando num rio enfermo, como se pode
comprovar pela sua baixa profundidade e pelas
inúmeras coroas de areia que surgem ao longo do
leito, repletas de vegetação. Como as cheias das
lagoas passaram a ocorrer muito esporadicamente, as
valorizadas lagoas de arroz de antes perderam o valor,
e as consequências foram danosas para a
sobrevivência da população ribeirinha e para a
economia da Região 40.

- O Rio Capivara contorna a sede do município de Porto da Folha na


direção sul-oeste-norte cujos meandros acentuados na planície da várzea
da Ilha do Ouro vão de encontro ao Velho Chico. Com efeito, a geografia
local (relevo) torna-se exuberante em face de sua posição espacial. A

39
A referida Ladeira é a que dá início a Rodovia Porto da Folha/Ilha do Ouro. Informações estas
das recordações de infância do autor do texto quando na época contava 06 anos de idade.
40
SOUZA, Manoel Alves de. Op. Cit., p. 280.
cidade hoje é banhada em três vertentes apenas pelo rio Capivara que a
contorna e segue seu curso até sua foz no São Francisco. As imagens
seguintes mostram as curvas deste rio em torno da cidade e na várzea da
Ilha do Ouro ao encontro da foz no São Francisco.

17

Figura 07. Porto da Folha-SE e o Rio Capivara circundando-a em direção a


sua foz. Fonte: Google Earth, 2008. Acesso em 15 de setembro de 2013.
Como se pode observar, o rio faz uma acentuada curva na parte oeste da
cidade, lugar que deu origem ao povoamento de Porto da Folha. Do
mesmo modo observa-se que a área urbana atual se distancia muito do rio
São Francisco.

Figura 08. Mapa de localização do município de Porto da Folha/SE e sua


várzea principal. Fonte: Santos, 2008.
Figura 09. Imagem aérea de Porto da Folha e os meandros do rio Capivara.
Fonte: arquivo da Prefeitura de Porto da Folha-SE, 2008. Esta imagem
mostra o rio Capivara contornando a cidade ao Sul. Ao fundo (Norte)
temos o vale da várzea da Ilha do Ouro e o rio São Francisco. Na outra
margem vê-se o rio Ipanema.

O relevo local - da sede do município - “está sobre um pequeno


18
planalto de altitude que não atinge 100 m em relação ao nível do mar, se
bem que seu nível diminui em direção à zona oeste até sofrer intersecção
do riacho Capivara”41.

PORTO DA FOLHA: VIAJANTES E AS DESCRIÇÕES HISTÓRICAS


DORAVANTE
Ao longo da história diferentes manifestações podem
ser identificadas como forma de interpretação das
relações espaciais existentes entre o homem e o meio
em que vive, pois, desde tempos muito remotos o ser
humano procura compreender o espaço a sua volta, e
mesmo os lugares mais distantes. Tais manifestações
podem ser apresentadas sob a forma de textos
escritos, símbolos e desenhos, como produto da
necessidade não apenas de conhecer o território, mas,
sobretudo de se apropriar do mesmo, através da sua
racionalização e administração 42.

“De forma diferente das demais, Porto da Folha não foi localizada nas
margens do rio São Francisco, mas na margem do rio Capivara, a uns
quatro ou cinco quilômetros do São Francisco, o que naquele tempo não
era comum, talvez a primeira naquelas condições” 43. A cidade de “Porto
da Folha teve sua origem no serrote Restinga” 44, berço de seu
povoamento, que, por sua vez fica há poucos metros do rio Capivara.

41
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Op. Cit., p. 45.
42
MENEZES, Catarina Agudo. Op. Cit., p. 02.
43
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Histórias e Memórias: Porto da Folha e sua gente. Porto da
Folha: Edição do Autor, 2009, p. 15.
44
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Op. Cit., p. 17.
19

Figura 10. Porto da Folha e seu revelo. Fonte: Google Earth, 2008. Acesso
em 15 de setembro de 2013.
Nesta imagem é possível identificarmos todos os caminhos que fez Porto
da Folha surgir como povoamento. Algo que se consolida em todo o texto,
porém, para tal compreensão é necessário considerar todas as partes do
mesmo formando um todo. – Observe-se a topografia, principalmente no
que diz respeito à várzea (vale) da Ilha do Ouro e extensa faixa do elevado
relevo da serra da Lagoa Comprida (extensão aproximada de 18 km e
200m de altitude acima do nível do mar, no ponto mais alto). Este
acidente geográfico - serra da Lagoa Comprida - se estende desde Porto
da Folha ultrapassando a fronteira limítrofe com o município de Gararu.

Para Feitosa (2009), “Porto da Folha genealógico teve início na


primeira metade do século dezoito, aproximadamente pelos anos de
1730, com a chegada do primeiro casal: Francisco Cardoso de Souza, sua
esposa Isabel de Barros Lima e seus dez filhos, vindos provavelmente de
Pirambu”45. Porém, “quando Francisco Cardoso, com sua família, se
45
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Op. Cit., p. 48. Para Eufrásio Moreira Feitosa (2009), Francisco
Cardoso de Souza, sua esposa Isabel de Barros Lima e seus dez filhos são os fundadores de
Porto da Folha. - Apesar de constar nos registros dos primeiros inventários de Porto da Folha
que Francisco Cardoso de Souza fora a segunda pessoa a falecer, mesmo assim se confirma o
fato de que desde o século XVIII já existia pessoas habitando o vale que circunda o planalto
onde hoje está situada a cidade de Porto da Folha. Bem entendido, o primeiro inventário
consta de 1752 conforme a descrição a seguir. “Em 19/05/1752, deu entrada no cartório de
justiça o inventário de Antônio Teixeira de Souza ou Antônio Teixeira do Puxim, deixando viúva
estabeleceu no lugar onde hoje é Porto da Folha, já havia alguns
povoados: Boa Vista, que hoje é Ilha do Ouro; Curral de Pedras, que hoje é
Gararu; Cabaceiros, etc.”46. Neste contexto, se confirmam as imagens da
figura 04 quando já aparecem representados cartograficamente Ilha do
Ouro e Curral de Pedras, isto, em 1643.

20

Figura 11. Imagem aérea de Porto da Folha e da serra da Lagoa Comprida


ao fundo. Fonte: arquivo da Prefeitura de Porto da Folha-SE, 2008.

Tempos depois de sua fundação, ou melhor, mais tarde, quando os


primeiros habitantes já haviam se estabelecidos efetivamente próximos às
margens do rio Capivara ou rio Porto da Folha ou ainda rio da Porteira
(como já foi chamado o rio que circunda a cidade), em realidade na
Restinga, estes, para diferenciar a toponímia do povoado em relação à
região onde estavam localizados (morgado de Porto da Folha),
primeiramente o chamaram de Buraco em referência a ‘fazenda curral do
buraco’ que se achava cerca de três ou quatro quilômetros distantes do
serrote Restinga. Assim sendo, inferimos audaciosamente que a primeira
denominação que Porto da Folha recebeu quando depois de sua fundação
como povoação foi a de “Curral do Buraco do porto das folhas”. – Na
parte em que trataremos sobre a Ilha do Ouro entenderemos melhor esta
proposição.
Porto da Folha possui uma longa história. As terras da região já
pertenceu a Vila Nova (Neópolis), elevada à caegoria de vila em 1679, cuja

Leonor Rodrigues Fraga” FEITOSA, Eufrásio Moreira. Inventários dos Primeiros Habitantes de
Porto da Folha-SE. [Porto da Folha]: Edição do Autor, s/d. a, p. 12. Com efeito, Leonor
Rodrigues Fraga era filho do casal Francisco Cardoso de Souza e Isabel de Barros Lima. No
acervo dos arquivos dos inventariados consta que “no dia 13/12/1753, deu entrada no cartório
de justiça o inventário de Francisco Cardoso de Souza” FEITOSA, Eufrásio Moreira. Op. Cit., s/d.
a, p. 10.
46
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Op. Cit., 2009, p. 56.
imagem da figura 11 nos mostra perfeitamente (em verde ao longo do rio)
toda a vasta extensão que esta freguesia (Vila Nova) ocupava, desde a foz
do São Francisco (leste) ao rio Xingó ou rio do Sal (oeste). Do mesmo
modo, Porto da Folha já pertenceu à Propriá. Pois que “em 18 de outubro
de 1718”, a Vila de Santo Antônio do Urubú de Baixo (Propriá) “foi
desmenbrada da Villa Nova” 47. Esta freguesia (Propriá) se estendia até o
riacho Xingó ou rio do Sal, onde se encontrava o morgado de Antonio
21
Gomes Ferrão Castelo Branco. Morgado de Porto da Folha. A partir de
1821 “a freguesia de Santo Antônio foi desfalcada da maior parte de sua
área territorial com a criação da freguesia de São Pedro do Porto da Folha,
com sede na Ilha de São Pedro” 48. Cujo território dessa freguesia
compreendia o morgado de Porto da Folha com 30 léguas de extensão
desde “a Serra da Tabanga, cuja baze he banhada pelo Rio de S. Francisco,
com o qual se prolonga” 49 até o rio xingó ou rio do Sal. Entementes, toda
esta área de trinta léguas fazia fronteira com o território da Bahia, o que
causou muitos conflitos entre o posseiros destas terras.

Figura 11. Província de Sergipe. Atlas do Império do Brasil. Fonte: Cândido


Mendes de Almeida, 1868. Disponível em:
<http://eraofepidemics.squarespace.com/storage/Sergipe.jpg>. Acesso
em: 23 de agosto de 2013.

47
SOUZA, Marcos Antonio de. Op. Cit., p. 42.
48
FERREIRA, Jurandyr Pires. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (Sergipe e Alagoas) vol.
XIX. Rio de Janeiro: IBGE, 1959, p. 412.
49
CASAL, Manuel Ayres de. A Província de Sergipe d’El Rei. In: Corografia Brazilica ou Relação
historico-geografica do Reino do Brazil. Tomo II. Rio de Janeiro: Na Impressão Regia, 1817, p.
142, grifo do autor. A Serra da Tabanga está localizada nas imediações onde hoje é o município
de Nossa Senhora de Lourdes-SE.
O tombamento judicial do morgado de ou do Porto da Folha ocorreu
em 1745, “em cujos autos declarou-se que o morgado segue ao poente
pelo riacho grande do Xingó até suas cabeceiras, dividindo com as terras
da Bahia”50. Este assunto foi defendido/pronunciado por Coelho e Campos
em 1882 quando o mesmo falava dos limites territoriais entre Sergipe e
Bahia. Com efeito, “todos reconhecem que no oeste existem dois pontos
fóra de duvida [...] que são as vertentes do rio Real ao sudoeste, e o rio
22
Xingó até suas cabeceiras ao norte...” 51. A extensão e limites das terras do
morgado segundo o tombamento feito em “20 de dezembro de 1745” 52,
nos deixa uma ideia abrangente da importância da região quando da
divisão territorial entre Sergipe e Bahia. Entrementes, “a descrição do
vigário de Geremoabo, Januario José de Souza, em 1736” 53 declarando
que Jeremoabo se divide ao norte pelo sertão deserto com a freguesia do
Urubu de Baixo “até as primeiras fazendas do Porto da Folha do coronel
Alexandre Gomes Ferrão”54, nos faz ver que as terras orientais da antiga
freguesia de Jeremoabo e as terras ocidentais de Porto da Folha eram
questão de disputa diplomática entre os governos da Bahia e de Sergipe.
Ora, por Porto da Folha conhecia-se então a vasta
região que vai desde a serra da Tabanga em frente a
Traipu, até os confins do Município no sertão, na
distância de 30 léguas, primitivamente pertencente ao

50
LIMA JUNIOR, Carvalho. Limites entre Sergipe e Bahia (estudo histórico). In: Revista do
Instituto Histórico e Geographico de Sergipe. Aracaju, anno II, fascículo I, vol, II, pp. 09-48,
1914, p. 39.
51
OLIVEIRA CAMPOS, José de e VIANNA, Francisco Vicente. Estudo sobre a origem historica dos
limites entre Sergipe e Bahia. Salvador: Typographia do Diario da Bahia, 189, p. 10. É notório
citar a fala do Dr. Coelho e Campos: “é outro facto o do tombamento judicial do morgado do
Porto da Folha pelo ouvidor de Sergipe em 1745, a requerimento de seu terceiro
administrador, neto do instituidor do vinculo em terras que lhe foram dadas em sesmaria...”
COELHO E CAMPOS, José Luis. Sobre os limites entre a Bahia e Sergipe. In: CARVALHO, João de
Mattos. Sergipe e Bahia: questão de limites (ANEXOS). Aracaju: Empreza d’O Estado de
Sergipe, 1905, p. 12. - “Dr. José Luis Coelho e Campos – Discurso proferido como Deputado na
Assembléa Geral Legislativa em 14 de agosto de 1882, defendendo o seu projecto de Limites
com a Bahia” LIMA JUNIOR, Francisco A. de Carvalho. História dos limites entre Sergipe e Bahia
(estudo de litígio interestadual). Aracajú: Imprensa Oficial, 1918, pp. 663-664.
52
DANTAS, Beatriz Góis e DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. Cit., p. 48.
53
LIMA JUNIOR, Francisco A. de Carvalho. Op. Cit., p. 37.
54
LIMA JUNIOR, Francisco A. de Carvalho. Idem e ibidem, grifo do autor.
termo e município de Villa-Nova, e depois de Propriá
(freguesia do Urubú de Baixo), de 1802 em diante 55.
Não obstante, “em novembro de 1807, o fidalgo Dr. Antonio Gomes
Ferrão Castelo Branco56, registrou os seus títulos imobiliários na câmara
de Propriá declarando ser de 30 léguas a extensão de suas terras” 57. Essas
terras partiam das imediações da serra da Tabanga até o rio Xingó, ou rio
do Sal como também era conhecido o limite territorial oeste. 23
Para Prado (1919, pp. 253-254, grifo do autor):
Isto ainda, em 1808. Ora, é sabido, todos conhecem, é
notório que o patrimônio de família, chamado Porto
da Folha, comprehendia as terras do município que

55
LIMA JUNIOR, Francisco A. de Carvalho. Idem, p. 81.
56
Nesta nota mencionemos cronologicamente a família Gomes que instituiu o morgado de
Porto da Folha.
“PEDRO GOMES. Alferes e Capitão em Sergipe del Rei, fundador do morgado de Porto da
Folha. Natural de Setúbal, passou ao Brasil em 1625, na armada de D. Fradique de Toledo.
Lutou bravamente na guerra contra os holandeses. Embarcou na frota do Conde da Torre e
retirou, com Luiz Barbalho, do porto de Touros do Rio Real, ajudando a desalojar os
holandeses do Rio S. Francisco. Foi governador interino da Capitania do Rio de Janeiro,
professor da Ordem de Cristo. Em 1683 é denunciado à inquisição pela prática do nefando
pecado de sodomia, sendo um de seus parceiros, um escravo de Luiz Gomes, espancado até à
morte em castigo por tal “crime”. Morreu em 1692” MOTT, Luiz R. B. A presença de Sergipe
Del Rei no Catálogo Genealógico das principais famílias, de Frei Joaboatão e Pedro Calmon. In:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, nº 33, pp. 47-61, 2002, p. 55.
“ALEXANDRE GOMES FERRÃO CASTELO BRANCO. Morgado do Porto da Folha, neto do Capitão
Pedro Gomes, fidalgo da casa real, Coronel de Ordenanças dos distritos de Tabanga para cima,
preso em Sergipe em 1720 por ordem do Governador” MOTT, Luiz R. B. op. Cit., pp. 58-59.
“ANTÔNIO GOMES FERRÃO CASTELO BRANCO. Morgado do Porto da Folha, fidalgo cavaleiro
da Casa Real, Tenente Alcaide da Bahia, morou na vila de Penedo no fim da vida. Era natural da
freguesia de Bom Sucesso e Almas do rio S. Francisco, nascido em 1727. Seu filho Pedro Gomes
Ferrão Castelo Branco, nascido em 1763, o sucedeu no morgado a partir de 1794” MOTT, Luiz
R. B. op. Cit., p. 59.
PEDRO GOMES FERRÃO CASTELO BRANCO. “... nascido a 25 de novembro de 1763 *...+. Fidalgo
da Casa Real [...]. morgado do porto da Folha, em Penedo [...]. Faleceu a 09 de dezembro de
1814” CALMON, Pedro. Introdução e notas ao catálogo genealógico das principais famílias, de
Frei António de Santa Maria Jaboatão. Volume II. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1985,
pp. 573-574.
Em sua passagem de expedição pelo rio S. Francisco Vieira de Carvalho e Silva também deixou
sua impressão sobre esta família e o lugar. Em suas palavras: “o Sitio Porto da Folha que
principia o - morgado - pertencente a D. Maria Joaquina Gomes Castello Branco, mãi do Exm.
Barão da Cajaiba” (CARVALHO E SILVA, 1859, p. 248).
57
LIMA JUNIOR apud in PEREIRA, Antônio Carlos. Porto da Folha - Terra de Buraqueiros: esboço
histórico do município. [Porto da Folha]: Edição do Autor, s/d., p. 16.
hoje tem o mesmo nome e também partes de Curral
dos Bois, Massacará e Geremoabo, terminando, muito
acima do salto de Paulo Affonso, na margem do S.
Francisco.

“Em 19 de fevereiro de 1835, foi criada a VILA de São Pedro do Porto


da Folha”58. Isto é, foi criado o Município de Porto da Folha que a partir
24
deste momento já não pertencia à comarca de Propriá. Ademais, a Lei
provincial Nº 195, de 11 de novembro de 1896, eleva esta VILA à categoria
de CIDADE. “Ou seja, depois de funcionar durante 61 anos com sua sede
em VILA, o município de Porto da Folha tem a sua sede elevada à
categoria de CIDADE”59. Para termos uma breve compreensão das terras
de Porto da Folha observemos o parágrafo seguinte.
O Morgado de Porto da Folha era uma sesmaria com características
especiais, isto porque era vinculada, ou melhor, era um conjunto de bens
vinculados a certa família, que, por sua vez, não era possível dividi-la ou
vendê-la, passando ou se perpetuando por gerações (passando de pai
para filho, neto, bisneto e etc.). E “foi doado pelo rei de Portugal ao
fidalgo Pedro Gomes, na primeira metade do século XVII. Tinha como
limites a Serra da Tabanga, o rio São Francisco e o estado da Bahia, numa
extensão de 30 léguas, de Leste a Oeste e de Norte a Sul”60, conforme as
imagens da figura 01. Embora, o Morgado do Porto da Folha tivesse sido
“extinto e considerado devoluto a coroa em 1815” 61, passando a ser terras
do Estado, terras públicas, terras de heréu ou eréu62.
Segundo Souza (2009), “tal área seria mais tarde a Freguesia de
Nossa Senhora da Conceição do Porto da Folha e, a seguir, o Município de
Porto da Folha. A área correspondia a mais de 20% do território
sergipano”63. Abrangendo, toda a extensão de terras dos atuais municípios
de Itabi, Gararu, Nossa Senhora da Glória, Monte Alegre de Sergipe, do
seu próprio território (Porto da Folha), Poço Redondo e Canindé do São
Francisco. - No território baiano as terras do morgado de Porto da Folha se
58
SOUZA, Manoel Alves de. Op. Cit., p. 47.
59
SOUZA, Manoel Alves de. Idem e ibidem.
60
SOUZA, Manoel Alves de. Op. Cit., p. 94.
61
SOUZA, Manoel Alves de. Idem e ibidem.
62
Terras de heréu ou “terras de eréu, seria terras sem dono, sem proprietário, terras
abandonadas ou sem posse”. SOUZA, Antônio Dantas de. Informação verbal concedida em
entrevista a Marquessuel Dantas de Souza. Porto da Folha-SE, Julho de 2013.
63
SOUZA, Manoel Alves de. Idem e ibidem.
estendiam abrangendo parte dos atuais municípios de Santa Brígida,
Jeremoabo e Pedro Alexandre. Correspondendo assim há
aproximadamente 7.000 km² de extensão territorial. - Hoje o município de
Porto da Folha possui apenas 897 km² de sua área total.

CURRAL DE PEDRAS (GARARU); PORTO DA FOLHA TERRA DE


BURAQUEIRO; CEMITÉRIO VELHO E A IGREJA MATRIZ 25

Curral de Pedras (Gararu)


Como já foi apontado no início do presente texto, o Rio São Francisco
também já foi chamado de Rio-dos-Currais, isto, por haverem muitos
currais implantados nas imediações de suas margens, e entre os diversos
currais instalados à margem deste rio estava o ‘Curral de Pedras’, como se
pode observar no mapa de 1643 de George Marcgraf (figura 03 e 04). A
importância desta povoação para com a origem do povoamento de Porto
da Folha é relevante do ponto de vista histórico-cultural (tempo e espaço).
Anteriormente a presença do termo Porto da Folha em representações
cartográficas e/ou textuais, surge a esse respeito, representados já o
Curral de Pedras e mais adiante margeando o rio São Francisco a
denominação Ilha do Ouro (Marcgraf, 1643, vide figura 04). Com isso,
inferimos que desde tempos imemoriais toda a região desde a foz do São
Francisco a aproximadamente as cachoeiras de Paulo Afonso-BA já era de
algum modo povoado e, não obstante, conhecida por representantes da
colônia. Por conseguinte, isto comprova a existência de que as terras onde
hoje é Porto da Folha desde essa época já eram exploradas, tanto por
nativos quanto por colonizadores. Para tanto, os relatos dos viajantes que
efetuaram suas expedições através do Rio São Francisco tornam-se uma
fonte muito rica de informações sobre a região em análise.
O século XIX foi o auge das navegações de naturalistas e aventureiros
pelo rio São Francisco. Muito embora, essas viagens sempre ocorriam
partindo da foz do grande rio às cachoeiras de Paulo Afonso com suas
exuberantes quedas d’águas que atraiam inúmeros visitantes às suas
margens. Em outras palavras, o século dezenove nesta região ficou
marcado pelos registros dos viajantes que efetuaram expedições no Velho
Chico. Deveras, alguns desses registros foram publicados como diário de
bordo, cadernetas de anotações, cadernos de catalogação, registro de
dados coletados, entre outros. Por sua vez, muito bem elaborados e
minuciosamente detalhados.
“A região primitivamente chamou-se Curral de Pedras, topônimo que
lhe vem dos currais de paredes de pedras, hábil e seguramente
arrumadas, em que os primeiros habitantes fazendeiros locais prendiam
seus rebanhos...”64. A exploração no território fez-se por colonos
portugueses refugiados na serra da Tabanga devido à invasão holandesa
26
em Sergipe em 1637. Além disso, a região fora “ocupada por uma tribo
indígena cujo cacique se chamava Gararu” 65. - Daí que veio o atual nome.
Nas descrições dos viajantes a povoação de Curral de Pedras aparece
assim:
A Povoação do Curral de Pedras - dá presentemente
grandes esperanças - contem perto de 100 casas e
disputa a preferência de Villa à de Porto da Folha que
é atualmente, e que foi antigamente Povoação do
Buraco. Persuado-me que o engano que se encontra
nas cartas Topographicas do Visconde de Villieux - é
originada de haverem duas Villas do mesmo nome,
Porto da Folha - uma pertencente a esta Província66 - e
outra á de Sergipe, faz elle menção da Villa de Traipú e
do Porto da Folha, ambas á margem esquerda,
quando o Porto da Folha de Alagôas fica na esquerda
do ponto - Traipú - e o Porto da Folha de Sergipe no
ponto chamado por elle - Porto da Folha, que está á
margem direita, e perto de uma bôa légua para fora
da margem do Rio67.

Numa outra consideração/descrição encontramos a seguinte


passagem:

64
FERREIRA, Jurandyr Pires. Op. Cit., p. 310.
65
FERREIRA, Jurandyr Pires. Idem e ibidem.
66
Neste trecho o autor fala da existência de haverem duas povoações com o mesmo nome.
Para ele um equívoco. Porto da Folha ou Traipu em Alagoas e Porto da Folha em Sergipe. No
exato momento em que o autor cita a passagem... “nesta Província”, o mesmo refere-se à
Província de Alagoas. – No mapa de Halfeld de 1860, Traipú aparece sob a denominação de
Villa do Traipú ou do Porto da Folha.
67
CARVALHO E SILVA, José Vieira Rodrigues de. Viagem às Caxoeiras de Paulo Affonso. In:
Revista trimestral do Instituto Historico, Geographico e Ethonografico do Brasil. Tomo XXII. Rio
de Janeiro: Typographia Imparcial de J. M. N. Garcia, 1859. pp. 201-301, p. 247.
A população da villa do Curral de Pedras é calculada
em cerca de 2.000 almas. Provêm o seu nome de
serem os curraes cercados de pedras, e não com
madeiras ou estacas. Sobre a rocha crescem os caruás
e caruatás, de que se extrahe um fio fortíssimo, com o
qual se prepara a melhor corda que existe entre nós.
Apresentão d'ahi por diante as ribanceiras do rio
27
cercas de pedras, banheiros naturaes, pequenas
furnas formadas pelos rochedos. Bandos de patos
banhando-se nos remansos, enxames de pombas
fendendo os ares, e sumindo-se além dos montes
ferruginosos, communicão a este sitio o mais aprazível
aspecto68.
Em 17 de outubro de 1859 o imperador do Brasil Dom Pedro II em
seu périplo pelo rio São Francisco também deixou sua impressão sobre
este lugar. Em suas palavras:
Às 10 ½ fui ao Curral de Pedra, vila de recente criação,
voltando às 11. É povoação muito pequena com
capela decente, muitos cactos de folha oblonga e de
arestas, e alguns de espalmadas, sendo o terreno de
pedra lameliforme xistosa [...].
A sede da freguesia está a 5 léguas, pelo rio, e mais 1
para o interior69.

Em suma, o Curral de Pedras caracteriza-se como uma espécie de


berço para o povoamento ou origem, grosso modo, da cidade de Porto da
Folha. Dito de outro modo, esta localidade se configura como a
antecedência da povoação portofolhense. Isto, no mais singular sentido.
Posto que a História Humana se manifesta numa Geografia particular. E a
Geografia se concretiza inexoravelmente na realização da História dos
Homens.

68
SOUZA, Bernardo Xavier Pinto de. Assinada com as iniciais P. de S. (pseud.). Memorias da
viagem de Suas Magestades Imperiaes à provincia da Bahia. Tomo I. Rio de Janeiro:
Typographia Industria Nacional de Cotrim & Campos, 1867. p. 63-104, p. 81, grifos do autor.
69
PEDRO II, Dom. Viagens pelo Brasil: Bahia, Sergipe e Alagoas – 1859 (Diário). (Prefácio e
notas Lourenço Luiz Lacombe; Apresentação Renato Lemos) 2º ed. Rio de Janeiro: Bom
Texto/Letras & Expresões, 2003, pp. 120-121. Esta última descrição se refere à Vila de Porto da
Folha-SE.
Porto da Folha: terra de buraqueiro
Tradicionalmente o povo de Porto da Folha é chamado de
buraqueiro. No entanto, perguntemos: qual o motivo deste termo para
quem é natural desta cidade? Bem entendido, isto se direciona para
aqueles que nascem na sede do município. Curiosamente denota-se que o
nome “curral do Buraco se relaciona à topografia do acidentado relevo,
pois a área em que era localizado 70 se encontra cercado por íngremes 28
serras e colinas com ondulações desde pouco intensas até de difícil
acesso”71. Em realidade, na cidade observa-se que o planalto onde a
mesma está situada é, por assim dizer, cercado por serras. O que nos dá
uma ideia de buraco, muito embora a cidade atualmente não esteja
localizada sobre um vale e sim sobre um planalto. Em todo caso, esta
posição da cidade, considerando as serras em volta, nos fornece uma
impressão de que a cidade fica mesmo em um buraco. Do mesmo modo,
faz com que a mesma mantenha uma temperatura média de 26 ºC
durante todo ano. O que caracteriza ser Porto da Folha uma cidade muito
quente, principalmente na época de verão.
Para o Sr. Eufrásio Moreira Feitosa (2009), há outra versão para
entendermos o porquê da denominação Curral do Buraco. Haja visto,
Porto da Folha assim já fora conhecida.
Na verdade, o Curral do Buraco era uma fazenda que
pertenceu a Isabel de Barros (Moça), a filha mais nova
ou neta do casal Francisco Cardoso e Isabel de Barros.
Moça casou com Dionísio Eleotério de Sá (Diniz Loreto
de Sá), que veio de Itabaiana. Sendo ele um homem
muito caprichoso e arredio [...], não quis estabelecer-
se na margem da vale [...], indo se estabelecer a uns
quatro quilômetros no seio da floresta. Como fazia
parte da cultura da época chamarem buraco a
estabelecimentos desse tipo, situado em plena mata,
onde se abria uma clareira que visto de cima dava a
ideia de buraco, e este possuindo um bom e valioso
curral, mesmo que não tivesse um grande rebanho,

70
Quando o autor cita “era localizado”, na verdade o mesmo se refere ao local onde o curral se
situava, pois que hoje em dia não mais existe.
71
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Op. Cit., p. 33.
passaram a chamar a propriedade de Curral do
Buraco72.
O nome BURACO, como aqui empregado, deriva-se da
cultura portuguesa da época. Os portugueses
costumavam chamar assim todo estabelecimento
fundado no seio da mata inóspita, longe do rio ou do
mar. Era um buraco na floresta...73.
29

Portanto, independentemente das versões sobre a origem da


denominação Curral do Buraco, o fato é que o povo de Porto da Folha
mantém a tradição que não se extingue. Por isso, diz o dito popular local,
quem nasce em Porto da Folha é Buraqueiro.
O Cemitério Senhor dos Pobres (Cemitério Velho) e a Igreja Matriz (N. S.
da Conceição)
Ao iniciarmos esta seção acreditamos que ao considerar a história
destes monumentos, estaremos fundamentando ainda mais para com a
história e a geografia intrínseca sobre a fundação da cidade Porto da
Folha. A arquitetura local também se torna uma fonte primordial para
nossas argumentações. - O Cemitério Velho localizado na parte oeste da
cidade, bem como a Igreja Matriz situado na parte leste (hoje central) são
provas significativas da origem da cidade de Porto da Folha em épocas
remotas.
O primeiro cemitério da cidade fora “construído há bastante tempo,
provavelmente na década de 1730, pelos primeiros habitantes [...], na
ponta Oeste do serrote da Restinga, próximo da Lagoa Salgada e do
Pontal”74. Quando neste lugar chegaram seus fundadores Francisco
Cardoso de Souza e Isabel de Barros Lima.
Com o crescimento da povoação do Pontal, que
crescia de Oeste a Leste, foi construído um pequeno
cemitério, nas imediações da atual Igreja Matriz, que
era simples capelinha do pequeno cemitério, pois o
Cemitério Velho ficava distante dessas novas
residências. Entretanto, esta capelinha foi sendo
72
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Histórias e Memórias: Porto da Folha e sua gente. Porto da Folha:
Edição do Autor, 2009, p. 42.
73
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Op. Cit., p. 55.
74
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Op. Cit., p. 44.
reformada e transformou-se na Igreja Matriz da Vila.
Deixaram de enterrar os defuntos nesse cemitério,
sendo novamente utilizado apenas o Cemitério Velho.
Ao final da década de 1890, quando as ruas vindas do
pontal, no extremo Oeste, na direção Leste, ou seja,
na direção do Curral do Buraco, alcançavam uma
distância considerável do Cemitério Velho, dado o
30
aumento da população e da cidade, pois já se
passaram mais de 160 anos da sua fundação e Porto
da Folha já era elevada a categoria de cidade (1896),
surgiu a necessidade de se construir outro cemitério
para desafogar o Cemitério Velho, já que estava
pequeno e se encontrava muito distante, dado ao
crescimento da cidade na direção oposta 75.
A população dos vários núcleos ia aumentando -
Restinga, Lagoa Salgada e Borocotó -, principalmente a
do Pontal, de Oeste para Leste, em direção ao
segundo cemitério, formando duas filas paralelas de
casas no topo da serra onde hoje está a cidade. Ao
chegarem próximo do cemitério, essas duas filas de
cassas abriram, formando uma larga avenida, por
cerca de trezentos metros de comprimento e uns
cinquenta de largura, deixando a igrejinha e o
cemitério no centro76.

As imagens a seguir mostram, respectivamente, estas duas fileiras de


casas e, consequentemente a praça da igreja, que, grosso modo, deram
início ao crescimento da cidade no sentido Oeste-Leste. E, não obstante,
na imagem b podemos observar que - no momento do registro da foto -
era época das cheias do rio São Francisco, pois é possível identificarmos as
lagoas inundadas no fundo das casas do lado direito da imagem. – Em
realidade esta praça é conhecida popularmente na localidade como
Quadro da Igreja por formar um retângulo.

75
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Idem e ibidem.
76
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Op. Cit., pp. 135-136.
a b c
Figura 12. Praça da Matriz em Porto da Folha, respectivamente em 1941,
1959 e 2008. Fonte: Imagem a, arquivo pessoal de Pedro Souza. Imagem 31
b, Jurandyr P. Ferreira. Imagem c, arquivo pessoal de Alexsandro Dantas
de Souza.
“Tempos depois extinguiram esse cemitério da avenida, mas
conservaram e melhoraram a igrejinha” 77 ou capela, que passou por
reformas e hoje é a Igreja Matriz da cidade. - A primeira reforma data de
1861, quando a Igreja foi ampliada e construíram o coro e a fachada; a
segunda em 1875; a terceira de 1878 a 1888, logo após de 1888 a 1889,
quando foram feitos pequenos reparos de manutenção. “Estando a vila de
Porto da Folha, em 1889, prestes a ser promovida a cidade [...], foi
construída, então, a parte lateral norte, paralela à nave central, e o
campanário (a torre dos sinos)” 78. Quase três décadas depois, em 1918, foi
feita outra grande reforma. No qual fora “construída a sacristia, a
abóboda, a ala lateral Sul e a base da segunda torre” 79. Em 1932 efetuou-
se outra grande reforma com a construção da segunda torre. Quase uma
década depois, foram construídas as platibandas norte e sul. Por
conseguinte, no início da década de 1970 houve a última grande reforma
quando “foi substituído o forro de madeira por forro de concreto” 80;
demolido o altar-mor e feito a exuberante pintura na parede do fundo do
altar, cuja mesma retrata de forma sucinta a vida do povo portofolhense.

77
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Op. Cit., p. 48.
78
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Op. Cit., p. 136.
79
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Op. Cit., p. 137.
80
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Op. Cit., p. 138.
32
Figura 13. Representação do desenvolvimento cultural da comunidade
portofolhense estampada na parede do altar da Igreja Nossa Senhora da
Conceição, Porto da Folha-SE. Fonte: arquivo pessoal de Alexsandro
Dantas de Souza, 2008.

Figura 14. Igreja Matriz e Cemitério Velho. Fonte: arquivo pessoal de


Alexsandro Dantas de Souza, 2012 e 2013, respectivamente.
O cemitério Senhor dos Pobres ou Cemitério Velho, segundo outra
história da tradição oral local, diz que foi erguido em 1804. Antes, era
apenas uma área aberta, porém delimitada para enterrar as pessoas que
faleciam nas proximidades do mesmo. A partir de 1804 houve a
necessidade de construir um muro ou parede para evitar que os animais
soltos entrassem neste campo. Neste momento foi construído um muro
ou parede, espécie de cerca de pedra em envolta da área onde eram
enterrados os familiares do povo local. Essas pedras eram transportadas
em banguê de uma das serras nas proximidades, isto, pelos moradores
locais com a ajuda dos indígenas e animais domesticados. - Passados 182
anos da construção da cerca de pedras, em 29 de maio de 1986, o Sr.
Antonio Alves de Gouveia (Antonio Sereno) começou a arrecadar fundos
juntamente com a população local a fim de erguer/construir um muro ou
parede de concreto no mesmo ponto onde se localiza o cemitério. Com a
ajuda de comerciantes e moradores locais em geral, a obra foi concluída
oito meses depois, ao término de janeiro de 1987, onde fora inaugurado
no dia 11 de fevereiro de 1987, dia em que ocorreu uma grande festa em
benefício da população local. Com a morte do Sr. Antonio Sereno em 2010
aos 101 anos de idade, em continuidade aos trabalhos, seu parente e
colaborador Sr. Antônio Dantas de Souza assumiu o compromisso de
manter a administração do referido cemitério Senhor dos Pobres 81. Dando
sequência, assim, aos trabalhos.
33

ILHA DO OURO E ILHA DE SÃO PEDRO


Ilha do Ouro: gênese de Porto da Folha
Para o historiador Felisbelo Freire, quando das divisões de terras
pertencentes a Sergipe d’El Rei, foram doadas sesmarias a algumas
pessoas, entre estas, Freire cita Geronimo da Costa Taborda, que recebeu
a doação de sesmaria em 25 do Novembro 1669. Contudo, “em 1682
Taborda, morador de Sergipe, explorou estas terras, fundando um sítio da
Ilha do Ouro”82. Segundo o autor,
Não prosperou este sitio, porque os negros, reunidos
em mocambos, mataram o gado, e destruíram as
plantações. Em 1698 os índios Romaris destruíram o
mocambo; em vista disso novas entradas foram
abertas e se continuou a colonizar estas terras. Nellas
penetraram os parentes de Pedro Gomes e
determinaram todo o trabalho colonial realisado83.

- Muito embora estas citações sejam fundamentais para a nossa


pesquisa de investigação, devemos esclarecer que na bibliografia
consultada identificamos, por assim dizer, que este Taborda surge-nos
com certa imprecisão. Algo que defendemos como duvidoso.
Em todo caso, ao tratar da Ilha do Ouro torna-se de suma
importância atribuir a esta localidade seu privilégio geográfico ao margear
as claras águas do Mar do Sertão (Rio São Francisco). Esta povoação

81
As referidas informações deste último parágrafo foram gentilmente cedidas por Antônio
Dantas de Souza em entrevista a Marquessuel Dantas de Souza. Porto da Folha-SE, Julho de
2013.
82
FREIRE, Felisbelo Frmino de Oliveira. Op. Cit., p. 179, grifo do autor.
83
FREIRE, Felisbelo Frmino de Oliveira. Idem e ibidem.
caracterizou-se inegavelmente como ponte para a formação do que é hoje
a cidade de Porto da Folha. A seguir, por meio de uma sucinta análise
histórico-geográfica, assim acreditamos, iremos discorrer sobre a origem e
a importância deste lugar para o surgimento da cidade sede do maior
festival de gibão do sertão de Sergipe (Festa dos vaqueiros de Porto da
Folha-SE). Tida como a Rainha da Vaquejada. E mais, “convém ressaltar
que essa festa é o maior evento dos vaqueiros do estado de Sergipe” 84.
34
Como já defendido, o termo Ilha do Ouro surge pela primeira vez em
uma representação cartográfica datada de 1643 (vide imagem b da figura
04)85. Com efeito, é possível que a região já fosse conhecida desde bem
antes, quando do descobrimento da foz do rio São Francisco que, a partir
de então passaram a explorar suas margens principalmente na faixa que
vai da embocadura às cachoeiras rio acima (trecho navegável nesta parte
do território das novas terras portuguesas - contextualizando). O baixo
São Francisco desde tempos remotos vem sendo explorado, daí o
surgimento, por exemplo, da povoação de Penedo no século XVI, da
povoação de Vila Nova (Neópolis) e Urubú de Baixo (Propriá) ambas no
século XVII.
- Um marco da região da várzea da Ilha do Ouro, assim como de
Curral de Pedras (Gararu) é a cerca de pedra, a que os mais antigos
chamavam de cerca de pedras secas e no qual “as tradições attribuem
este feito à invasão Hollandeza” 86. Nesses termos, acredita-se que Ilha do
Ouro como povoação exista desde a primeira metade do século XVII.
Nos relatos dos viajantes, Ilha do Ouro não se deixar esquecer. Quer
dizer, alguns dos navegantes que passaram defronte a povoação
registraram o que avistaram. O médico alemão Avé-Lallemant em 1859 ao
enfrentar uma tempestade no rio registra que este fato ocorreu “perto da
bonita povoação Boa Vista”87.

84
MENEZES, Sônia de Souza Mendonça e ALMEIDA, Maria Geralda de. Vaquejada: a pega de
boi na caatinga resiste do sertão sergipano. In: Revista Vivência. UFRN: Natal, nº 34, p. 181-
193, 2008, p. 191.
85
Bem entendido, no mapa de 1643 o vocábulo Ilha do Ouro mostra ser o que hoje é a Ilha N.
S. dos Prazeres. Este detalhe nos chama atenção por ser a povoação Ilha do Ouro defronte a
Ilha dos Prazeres. Portanto, perguntemos: não seria este fato um dos motivos para a origem
do nome do que é hoje a povoação Ilha do Ouro? Acreditamos que sim.
86
CARVALHO E SILVA, José Vieira Rodrigues de. Op. Cit., p. 249.
87
AVE-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas Províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe
(1859). (Tradução Eduardo de Lima Castro) Belo Horizonte/São Paulo: Editora Itatiaia/Editora
da Universidade de São Paulo, 1980, p. 307. (Coleção Reconquista do Brasil – nova série; vol.
Em 17 de Outubro de 1859 - quando o Imperador do Brasil Dom
Pedro II visitou as povoações às margens do rio São Francisco - a região
desde Gararu-SE à Ilha do Ouro foi tida como um cenário propício para
que o próprio Dom Pedro II contemplasse este fragmento de Natureza e
deixasse registrado em seu diário de bordo outros detalhes além daqueles
que até então o mesmo apenas havia lido ou ouvido falar. Segundo seus
escritos, Porto da Folha também aparece em registro. Em seu diário o
35
imperador escreve: “às 10 ½ fui ao Curral de Pedras [...]. 1 menos 7’ –
Passamos pelo porto da Folha 88, em Sergipe, onde finda a terra do
morgado pela banda de baixo, segundo creio” 89. - Vieira de Carvalho e
Silva em 1854 em seu périplo pelo São Francisco também registra algo
sobre a Ilha do Ouro, que, por sua vez, influenciou a expedição do
Imperador. Porém, os registros dessa expedição só foram publicados em
1859.
A Ilha do Ouro é pequeno povoado bem fronteiro ao
do Panema; conta menos de 50 casas: dizem que o
nome corresponde á riqueza do logar, porém a este
respeito não vos sei dizer certezas.
O Riacho que tem o mesmo nome e que nas
enchentes ilha a Povoação tem de notável dar assim
navegação para canoas até a Villa do Porto da Folha,
conhecida também pela do Buráco -, e suas varzeas
são campos de arroz que produzem milhares de
alqueires, e de medida maior ainda que a do
Penêdo90.

19). Boa Vista foi uma denominação no qual já chamaram assim a Ilha do Ouro. Isto porque o
rio a montante chamava-se rio da Porteira ou rio Ilha do Ouro. Do mesmo modo, defronte a
povoação também se acha a Ilha dos Prazeres. Assim, para diferenciar o nome da povoação da
do rio que deságua no povoado a chamaram de Boa Vista. Isto também se caracteriza pelo fato
do povoado situar-se em um morro íngreme. Daí o nome Boa Vista, pois quem estava em cima
deste morro tinha uma visão agradável do exuberante rio São Francisco.
88
É curioso observarmos que na primeira edição do diário (1959), no mesmo trecho citado, a
palavra Porto da Folha (1959, p. 115) aparece com as iniciais maiúsculas; o que aqui
percebemos é que o termo porto surge em minúsculo. – Não sabemos qual a razão.
89
PEDRO II, Dom. Op. Cit., pp. 120-121.
90
CARVALHO E SILVA, José Vieira Rodrigues de. Op. Cit., p. 251.
36
a

b c
Figura 15. Imagens aéreas da Ilha do Ouro e da foz do Rio Capivara e do
Rio Ipanema. Fonte: arquivo da Prefeitura de Porto da Folha-SE, 2008. Na
imagem ‘a’ é possível observar ao fundo a cidade de Porto da Folha e do
lado direito à várzea da Ilha do Ouro e a foz do rio Capivara.

Logo após os últimos parágrafos e diante as imagens da figura 15, e,


não obstante, tratarmos da origem de Porto da Folha torna-se necessário
fazermos algumas considerações a mais. É muito estranho que em épocas
remotas, provavelmente no século XVIII, pessoas civilizadas deixassem a
margem do São Francisco, já com muitas povoações, por ser a única via de
comunicação entre elas, indo se estabelecer em um lugar de difícil acesso
e distante do rio principal. Com efeito, para Feitosa (2009) na primeira
metade do século XVIII, Francisco Cardoso e Isabel de Barros com sua
família ao chegarem à foz do rio Capivara, um afluente do São Francisco,
adentraram rio acima (cerca de 4 ou 5 km) e se estabeleceram em um
pequeno elevado, as margens do rio Capivara, onde deram origem a uma
povoação, cujo nome hoje Porto da Folha. Por conseguinte, indaguemos,
porque isto aconteceu? Para Feitosa (2009):
Como na época das cheias o rio São Francisco
transborda sobre suas margens e entra pela foz do rio
Capivara por mais de uma légua, deve ter sido nesse
período que Francisco Cardoso de Souza, encontrando
a bela e convidativa foz do rio Capivara cheia, gostou
da região e entrou por ela, deixando para trás, a uns
quatro ou cinco quilômetros, o povoado Boa Vista.
Parou para se estabelecer, talvez na Restinga, como
indicam vários fatores (FEITOSA, 2009, p. 53).
Quem sobe o rio Capivara pelo seu leito, vindo de sua
37
foz no rio São Francisco, tem que margear a Restinga
[...], que nas grandes cheias do São Francisco ou do
Capivara, naquele tempo muito frequentes,
transformava-se numa ilha [...]. O vale é de uns mil
hectares e naquele tempo era coberto por gigantescas
árvores como marizeiras, caraibeiras, trapiazeiros,
pageús, quixabeiras, etc, de grande densidade em
suas copas, a não ser nas depressões que ficavam com
água o ano inteiro, havendo aí abundância de peixes.
Todo o vale era coberto por densa floresta, porém,
estas depressões que ficavam com água o ano todo
ocupavam uma pequena parte do vale e exercia
grande influência sobre o mesmo91.

Como a Restinga era “cercado por rio e várzeas que de vez em


quando eram inundadas pelas cheias de São Francisco como pelas do rio
Capivara, não podia crescer muito” 92, o povo começou a deslocar-se para
o pontal na direção oeste subindo a serra. Fato este que fez a povoação
crescer neste sentido. A partir deste fato - diz a tradição oral local -, que
qualquer pessoa que se deslocava da Restinga em direção ao que é hoje a
Igreja Matriz, estava se encaminhando para a rua de cima por estar
subindo a serra naquela direção. Outra versão diz que tempos depois,
quando a povoação já de prolongava além da Igreja Matriz, esta rua
sempre esteve no sentido da cabeceira do rio São Francisco (subindo),
sendo assim chamada de rua de cima e a rua depois da, ou melhor, bem
acima da Igreja Matriz e do outro lado da cidade sendo assim chamada de
rua de baixo. – Devemos recordar que a tradição oral local também conta
que por ser a Restinga não muito comprida, alguns de seus habitantes se
91
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Op. Cit., 2009, p. 53.
92
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Árvores genealógicas que comprovam a origem de Porto da
Folha-SE. [Porto da Folha]: Edição do Autor, s/d. b. p. 09.
deslocaram para o outro lado do pontal, ou seja, começaram a erguer
habitações na outra margem do rio Capivara dando-lhe o nome de
Borocotó ou Brocotó, isto em virtude por ser um terreno escabroso e
obstruído com pedras. Diante estes fatos eis porque, diz a tradição oral
local, quem nasce na rua de cima é chamado de restingueiro. Nasceu nas
proximidades da Restinga.
Conforme visto, as condições geográficas (naturais) da região, como
38
o relevo da várzea com sua extensa planície, os meandros do rio Capivara,
as correntes de ar tanto de barlavento quanto de sotavento, a flora e a
fauna, em suma, a paisagem em geral, contribuíram, por assim dizer, para
que tudo se realizasse.
No entanto, conforme o que fora levantado até este ponto e
buscando compreender a informação de que a Igreja da Ilha dos Prazeres
fora construída por volta de 1694, como veremos adiante, e de que “em
1623 já existia a povoação de Porto da Folha”93, podemos dizer que a
povoação da Ilha do Ouro existe há aproximadamente 390 anos
(arqueologicamente para mais ou para menos). Acreditamos que a
primeira pessoa que ali se estabeleceu fazendo um rancho para se abrigar
date de 1623. - É muito difícil precisar o local exato, mas acredita-se que a
primeira pessoa que neste lugar chegou, foi se arranchar nas imediações
da foz do rio da Porteira ou rio Ilha do Ouro; hoje rio Capivara. Em
resumo, a Ilha do Ouro caracteriza-se como a gênese para o povoamento
ou fundação da cidade de Porto da Folha. Inegavelmente no mais singular
sentido do termo.
Ilha de São Pedro: um território indígena
As origens da missão de São Pedro do Porto da Folha remontam ao
século XVII. Esta surgiu entre os índios Aramurus, habitantes da margem
direita do rio São Francisco que tinham como chefe o “indígena
Pindaíba”94, “que no início do século XVII foram colhidos pela frente
pastoril e viram suas terras serem transformadas no extenso Morgado do
Porto da Folha, de cerca de trinta léguas doadas a Pedro Gomes” 95. Por
sua vez, Manuel A. de Casal (1817) falando da Vila de Própria nos remete a
seguinte descrição sobre a Ilha de São Pedro e seus habitantes:

93
OLIVEIRA TELLES, Manoel dos Passos de. Op. Cit., pp. 44-45, grifo do autor.
94
FERREIRA, Jurandyr Pires. Op. Cit., p. 412.
95
DANTAS, Beatriz Góis e DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. Cit., p. 146.
Dentro deste disctrito desta Villa está a freguezia de S.
Pedro situada na margem do rio de S. Francisco, num
terreno plano, que fica sendo ilha, logo que aquelle
começa a encher. Consta de oito vizinhos, ou com
pouca differença: quazi geralmente Indios, para os
quaes exclusivamente foi fundada. A colônia compõe-
se de duas tribos: Romaris, que sam o resto dos
39
Indigenas, e Ceocóces, transplantados da vizinhança
da serra do Pão d’Assucar...96.

Este fato narrado por Casal merece menção. Pois que, “a missão de
São Pedro, organizada inicialmente entre os Aramurus, aparece no século
XIX habitada por dois grupos indígenas distintos: Romaris e Ceocoses [...].
Os Romaris são talvez os Aramurus do início da missão. Quanto os
Ceocoses são decerto os Xocó”97. Nos relatos dos viajantes do século XIX,
a descrição feita por eles é, inegavelmente, uma fonte única de
informações sobre este lugar às margens do Rio São Francisco. Para Souza
(assinava P de S) que em 1867 visitou a cachoeira de Paulo Afonso através
do rio S. Francisco, suas impressões aqui são referidas por serem bastante
detalhadas.
A aldêa de S. Pedro é situada em uma ilha do mesmo
nome, na província de Sergipe, onde ha um convento
habitado por um só frade capuchinho que alli vive ha
muitos annos, e cujo procedimento é muito elogiado.
Fôrão os missionários Jesuitas, que, embrenhados
n'estas mattas, poderão reunir alguns Índios das tribus
Choco e Romaris, e que lhess edificárão uma igreja
com a invocação de S. Pedro, a qual é parochia desde
16 de agosto de 1832, comquanto já assim a
considerassem aquelles habitantes a contar da
extincção da Companhia. Os Índios d’esta aldêa são
domesticados, mas não degenerárão ainda de seus
costumes primitivos. Vivem da caça e da pesca, e só as
mulheres trabalhão no fabrico da louça. Foi junto
d'esta aldêa que se encontrárão tambem muitos

96
CASAL, Manuel Ayres de. Op. Cit., pp. 149-150.
97
DANTAS, Beatriz Góis e DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. Cit., p. 152.
ossos, que por seu grande tamanho foram julgados
(talvez sem muita razão) anudiluvianos 98.

“Na vizinhança desta Parroquia acharam-se, ha poucos annos, ossos


daquella desmezurada alimaria, que hoje não existe; e noutro ainda se
vêm alguidares ou panellões toscos, que indicam ter alli havido alguma
aldeã dos Indigenas na antiguidade” 99. Outro viajante que registrou a vida
na e da Ilha de São Pedro no século XIX foi o inglês George Gardner em 40
1838 quando também passou por essas terras sedutoras nas margens do
rio São Francisco. Gardner nos diz que no dia 26 de fevereiro do corrente
ano (1838) chegou a Ilha de São Pedro e nesta passou 15 dias. Em suas
descrições Gardner nos diz que aldeia de São Pedro
Está situada na ilha do mesmo nome, com cerca de
meia légua de comprimento por um quarto de largura,
sendo plana e de solo arenoso. A parte superior onde
fica a povoação, é descoberta, ao passo que a
extremidade oposta é densamente cheia de árvores e
moitas pequenas 100.
Despedi-me dos amigos índios no dia doze de março e
embarquei numa canoa que alugara para me levar a
Penedo, após ter permanecido na ilha exatamente
quinze dias101.

O Imperador do Brasil Dom Pedro II também deixou sua impressão


sobre este lugar quando de sua visita à ilha em 1859. Em 23 de outubro de
1859 depois de visitar as cachoeiras de Paulo Afonso-BA, Dom Pedro II
registrou a seguinte passagem no seu diário:
Largamos do Pão de Açúcar às 10. Às 10 e 40’ fomos
para São Pedro Dias e às 11 e 10’ o vapor tornou a
seguir. Haverá na aldeia cem índios, e muito
portugueses. Aqueles se queixam destes que lhes
aproveitam as terras. Já o diretor, frei Doroteu,
98
SOUZA, Bernardo Xavier Pinto de. Op. Cit., p. 84.
99
CASAL, Manuel Ayres de. Op. Cit., p. 150.
100
GARDNER, George. Viagem ao interio do Brasil: principamente nas províncias do Norte e nos
distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. (Tradução de Milton Amado;
apresentação de Mário Guimarães Ferri) Belo Horizonte/São Paulo: Editora Itatiaia/Editora da
Universidade de São Paulo, 1975, p. 69. (Coleção Reconquista do Brasil – nova série; vol. 13)
101
GARDNER, George. Op. Cit., p. 72.
capuchinho, diz que os índios são indolentes, e
quando não plantam, dão terras aos pobres às vezes
sem erigir renda alguma 102.
Algumas mulheres pediram-me para não sair de lá o
vigário encomendado, frei doroteu, e os mesmos
índios dizem que ele é mau diretor, porém bom
vigário, por ser muito religioso [...]. As pedras, de que
41
fala o Vieira de Carvalho, estão numa casa particular,
conforme disse frei Doroteu, mas não as vi porque o
sol está ardentíssimo [...]. Defronte da povoação há
grande coroa de areia e tive de passar da galeota para
uma canoa, e desta, em cujo banco me pus a princípio
a cavalo por segurança, prancha 103.
Com efeito, os índios Xocó representam “hoje o único grupo indígena
de Sergipe”104. Único grupo que não se extinguiu. Portanto, devemos
considerá-los significativamente como os remanescentes dos primitivos
nestas terras de Porto da Folha.

ILHA DE NOSSA SENHORA DOS PRAZERES: UMA BELEZA NATURAL


A Ilha dos Prazeres, localizada no rio São Francisco, na embocadura
do rio Ipanema e defronte ao povoado Ilha do Ouro pertencente ao
território de Alagoas, serviu de inspiração para escritores de diversas
vertentes quando passaram de visita pela mesma. O século XIX foi o
período de maior concentração de registros sobre esta ilha. Pois que, no
referido século as viagens pelo rio São Francisco partindo de sua foz em
direção às quedas d’águas da cachoeira de Paulo Afonso-BA se
intensificaram tanto a ponto de despertar interesses os mais variados
possíveis. Não obstante, devemos lembrar que viagens pelo rio São
Francisco são efetuadas desde seu o descobrimento em 1501. Por
conseguinte, é só recordar do mapa de Marcgraf de 1643, cujo mesmo faz
102
PEDRO II, Dom. Op. Cit., p. 143, grifo do autor.
103
PEDRO II, Dom. idem e ibidem.
104
SANTANA, Pedro Abelardo de. Aldeamentos indígenas em Sergipe Colonial: subsídios para a
investigação de Arquelogia Histórica. Dissertação (Mestrado em Geografia). Núcleo de Pós-
Graduação em Geografia da Universidade Federal de Sergipe. Área de concentração: formas e
processos tradicionais de ocupação do terrotório brasileiro: Estudos arqueológicos. São
Critovão, 2004, p. 15.
uma descrição pormenorizada das margens norte e sul do referido rio. De
forma magistral, o Sr. Vieira de Carvalho e Silva105 nos deixou registrado a
seguinte passagem quando de sua expedição ao rio São Francisco: “este
itinerário do magestoso rio de S. Francisco desde sua foz às caxoeiras de
Paulo Afonso terá grande valia no futuro, mormente quando mais
civilisadas aquelas regioens compararem seu presente com o passado aqui
descripto”106. Portanto, a partir deste momento a atenção se volta para os
42
escritos de eminentes e notáveis viajantes em suas expedições através do
Velho Chico.
Comecemos pela descrição mais antiga datada de 25 de fevereiro
1838 feita pelo naturalista inglês George Gardner. Este registrou em seu
diário de bordo a seguinte passagem:
Continuando a viagem, chegamos ao por do sol à vista
de uma ilhota, chamada Ilha dos Prazeres, com uma
igreja do mesmo nome no alto. Em frente à ilha, ao
norte, passamos pela foz de pequeno rio, chamado
Panema, que nasce no sertão da Província de Alagoas.
Na parte superior da embocadura deste rio há uma
pequena aldeia de poucas casas, chamada Barra de
Penema107.
Nos anos de 1852, 1853 e 1854 o engenheiro civil Wilhelm Halfeld
alemão a pedido do imperador do Brasil Dom Pedro II, realizou uma
viagem ao rio São Francisco desde a cidade de Pirapora-MG à sua foz
mapeando todo o percurso do mesmo a fim de levar os detalhes
existentes ao conhecimento do rei do Brasil. Muito embora, estes
levantamentos de dados só foram publicados posteriormente. O material
colhido por Halfeld serviu, por assim dizer, de itinerário, ou melhor, de
guia para o imperador quando de sua viagem em 1859. - Em sua descrição
temos a passagem a seguir:

105
É digo de nota observar que este viajante-autor com seus relatos influenciou
posteriormente alguns outros aventureiros, por assim dizer. Entre estes o Imperador do Brasil
Dom Pedro II, que também realizou uma viagem às cachoeiras de Paulo Afonso através do rio
São Francisco. E, nesta sua expedição visitou, tanto na ida quanto na volta várias povoações
em ambas as margens do rio.
106
CARVALHO E SILVA, José Vieira Rodrigues de. Op. Cit., pp. 253-254, grifo nosso.
107
GARDNER, George. Op. Cit., p. 69.
A Ilha de Nossa Senhora dos Prazeres divide o Rio 108
em dous braços, o mais profundo é aquelle que passa
ao lado occidental della; pela margem direita do Rio e
do dito braço entra o riacho da Ilha do Ouro, e sobre
ella, quasi no fim da legua, está a povoação da Boa
Vista109.
43

Figura 16. Mapeamento da Ilha dos Prazeres. Fonte: Halfeld, 1860. Nesta
imagem é possível observar a Ilha dos Prazeres e na margem Norte a Barra
do Ipanema pertencente à Lagoa Funda (atual Belo Monte-AL). Na
margem Sul identifica-se Boa Vista (atual Ilha do Ouro) pertencente a
Porto da Folha-SE. Grifamos em vermelho onde seria a localização da
cidade de Porto da Folha.

Como já defendido anteriormente, em 1854 o engenheiro brasileiro


José Vieira de Carvalho e Silva realizou viagem à cachoeira de Paulo
Afonso através do São Francisco, porém, os registros dessa expedição só
foram publicados em 1859, cerca de seis meses antes da viagem do
Imperador Dom Pedro II ao referido rio. Nesta sua expedição, Vieira de
Carvalho, como era chamado, descreveu coisas até então não conhecidas
na corte do Brasil. Quer dizer, o Rio de Janeiro, como capital do império
oferecia muito às publicações de caráter empírico, todavia, pouco se
conhecia das terras próximas ao leito do rio São Francisco. - Os escritos de
Vieira de Carvalho e Silva atuou como guia para a expedição do imperador

108
Referindo-se ao Rio São Francisco. Grifos do autor conforme o original.
109
HALFELD, Henrique Guilherme Fernando (Heinrich Wilhelm Ferdinand). Atlas e Relatório
Concernente à Exploração do Rio de São Francisco desde a cachoeira de Pirapóra até o Oceano
Atlantico. Rio de Janeiro: Lithographia Imperial/Typographia Moderna de Georges Bertrand,
1860, p. 48. Diante deste detalhe narrado por Halfeld, inferimos que nesta época, este ponto
do rio São Francisco media aproximadamente uma légua de largura (aproximadamente 6 km).
do Brasil Dom Pedro II quando de sua visita às povoações situadas às
margens do São Francisco. Assim como o atlas do engenheiro Halfeld.
Vieira de Carvalho e Silva conseguiu, por assim dizer, realizar algo
outro que culmina curiosamente com a origem da região de Porto da
Folha, qual seja, identificar a data de fundação da capela situada no alto
do morro dos Prazeres. Em outras palavras, de acordo com seu relato,
desde o século XVII, efetivamente, já existiam pessoas morando na região
44
onde hoje está Ilha do Ouro e Barra do Ipanema. O que confirma a
passagem citada por Felisbelo Freire quando o mesmo pronuncia que em
1682, alguém fundou um sítio, ou uma fazenda na Ilha do Ouro.
A Capella dos Prazeres dizem que foi edificada de
madeira, e cuberta de sóla por Maria Pereira - (não
sabendo se é a mesma do buraco) doou-lhe terras que
erão então pegadas ao montinho, porém não ha
vestigios d’isso: hoje possue a Capella a terra onde
está erecta, e a coroa [...]. Depois de Maria Pereira, o
primeiro Morgado que veio ao S. Francisco chamado
Castello Branco - fez o corpo, e capella Mór de pedra e
cal, de accordo com os habitantes da banda de
Pernambuco, e finalmente o Missionario - Corrêa, - fez
os corredores – tem a Capella a era de 1694 110.

Em outro relato, datado de 1859 (do jornalista P. de S, que


acompanhou a comitiva de Sua Majestade o Imperador Dom Pedro II em
viagem às cachoeiras de Paulo Afonso e a algumas comarcas nas margens
do São Francisco), no entanto, publicado em 1867, encontramos a
seguinte descrição.
O morro dos prazeres isola-se das margens do rio, e
fórma como que uma Ilha. D'alli se divisa um dos
panoramas mais encantadores do rio de S. Francisco.
Com effeito, á esquerda de quem sobe, vé-se a
pequena ilha do Ouro com algumas casinhas brancas
no meio d'um tapete de verdura; á direita, a barra do
Panema, também de linda perspectiva; e a ilha dos
Prazeres com sua poética capellinha; e no fundo,
dominando toda a scena, as serras azuladas do Pão de

110
CARVALHO E SILVA, José Vieira Rodrigues de. Op. Cit., pp. 253-254, grifo nosso.
Assucar. É uma vista soberba; talvez sem rival no
mundo!111.

Inspirado pela beleza natural deste lugar tendo em uma margem a


Barra do Ipanema, na outra margem a Ilha do Ouro e ao centro no leito do
rio a Ilha dos Prazeres com sua exuberante Capela, Carvalho Vieira e Silva
registrou os seguintes versos: “voici des Dieux l’asile aimable, gôutez des
cieux la paix durable – eis aqui dos Deoses, um asylo amavel, gozai dos 45
céus a paz duravel (Bernardis)”112.
Estas últimas descrições deixam-nos curiosos para com a beleza real
do lugar. Em realidade, o encanto deste lugar com sua beleza natural
seduzem e embriagam o olhar de qualquer pessoa que aí chegue e se
depare com tal fenômeno existencial, algo outro que nos faz transcender
(lembrando as ideais metafísicas de Schelling, Novalis e Heidegger).

Figura 17. Ilha de Nossa Senhora dos Prazeres com sua Igreja de mesmo
nome no alto da ilha. Nesta imagem o rio passa ao Sul da ilha. Fonte:
arquivo pessoal de Alexandro Dantas de Souza, 2008.

Fato curioso é que a Ilha dos Prazeres é a única penha elevada no Rio
São Francisco desde sua foz às cachoeiras de Paulo Afonso. Ou seja, desde
o pontal (foz) às quedas d’águas em Paulo Afonso-BA existem várias ilhas
no percurso do rio, porém, apenas a rochosa Ilha dos Prazeres é a que se
eleva acima do leito do rio. Todas as outras faixas de areias, por assim
dizer, não se elevam igualmente como a Ilha dos Prazeres. Com efeito,
esta ilha também é a única no qual possui uma obra de arquitetura sobre
si. Uma poética capelinha.
O viajante alemão Avé-Lallemant também em 1859 fez uma
expedição pelas águas do rio São Francisco e deixou em seus cadernos de
111
SOUZA, Bernardo Xavier Pinto de. Op. Cit., p. 81, grifos do autor.
112
CARVALHO E SILVA, José Vieira Rodrigues de. Op. Cit., p. 251.
anotações a seguinte passagem quando se aproximava da referida ilha:
“erguia-se aí no meio do rio uma grande penha arredondada, no cimo da
qual construíram uma bonita capelinha, sob a invocação de Nossa Senhora
dos Prazeres”113. Uma formosa ilha, chamado monte dos Prazeres.
Como já mencionado anteriormente, em sua passagem pela Ilha dos
Prazeres o Imperador do Brasil Dom Pedro II deixou sua impressão da
beleza da pequena penha comparando-a a do Rio. Sua observação feita
46
em 17 de outubro de 1859 chama bastante atenção: “neste lugar, às 2 e
10 encalhamos, avistando pela proa a bem situada capela de nossa
Senhora dos Prazeres, qual outra Penha do Rio de Janeiro” 114. - Durante
seu périplo por essas águas o imperador Dom Pedro II que também era
conhecido como filósofo, naturalista, pintor entre outras coisas registrou
em seu diário a imagem da ilha que o mesmo gravou em sua memória.
Efetuou ele uma gravura singular da pequena penha do Rio São Francisco,
imagem esta que data de 23 de outubro de 1859.

Figura 18. Vista do Pão de Açúcar, 23 de outubro de 1859. Desenho do


punho do Imperador. Fonte: Dom Pedro II, 2003. É curioso observarmos
que, apesar do título da gravura se denominar Vista do Pão de Açúcar, na
mesma página está representada a Ilha dos Prazeres e a igreja de mesmo
nome que se localiza sobre a mesma ilha. Outro fato curioso desta gravura
mostra que o Imperador Pedro II a desenhou quando estava na parte
norte do rio, ou seja, na Barra do Ipanema. E, entrementes, percebe-se
que há água em ambos os lados da pequena ilha. Algo que não ocorre nos
dias atuais.

Em 1858, “Porto da Folha possuía duas capelas uma no aldeamento


dos índios na ilha de São Pedro e a do senhor bom Jesus dos Aflitos, no
113
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Op. Cit., p. 307.
114
PEDRO II, Dom. op. Cit., p. 122.
Curral de Pedras (Atual Gararu)” 115. Na mesma época “a Freguesia possuía
quatro cemitérios: o da povoação de Porto da Folha, o da Ilha de São
Pedro [...]. o sítio de Entãs ou Intãs e o de Curral de Pedras. O principal era
o da Vila de Porto da Folha, antiga Vila do Buraco” 116.
Curiosidade sobre Lampião nestas terras: um rápido relato sobre o que
ocorreu
47
É digno de nota fazermos uma breve ressalva; o ano de 1938, ano da
morte de Virgulino Ferreira da Silva (vulgo Lampião), sempre é lembrado
devido ao fato ocorrido, por vezes, os historiadores quando tratam do
assunto não mencionam a localização geográfica exata do acontecimento.
Isto é, em 1938 a gruta do angico fazia parte do município de Porto da
Folha, pois que Poço Redondo emancipou-se em 1953, 15 anos após a
captura de Lampião. Desde modo, devemos frisar que no momento de
citar o lugar onde Lampião morreu não podemos esquecer que este foi
cercado, capturado, morto e decapitado no território do município de
Porto da Folha-SE, hoje município de Poço Redondo-SE e não
simplesmente em Poço Redondo. Muito embora, o próprio Lampião
jamais tenha entrado na sede do município de Porto da Folha. - Outro fato
interessante que deve ser apontado é que a filha de Lampião e Maria
Bonita - Expedita Ferreira de Oliveira Nunes - nasceu em Porto da Folha.
Ao sair do Raso da Catarina na Bahia e se dirigir ao sertão de Porto da
Folha em Sergipe, Lampião e seu bando se estabeleceram por cerca de
sessenta dias nas imediações da Lagoa da Volta (povoado do município) a
fim de manter sua esposa Maria Bonita longe dos perigos que a mata
fechada (a Caatinga) oferecia. Isto, devido ao seu estado em que se
encontrava, quer dizer, grávida.
Por desfrutar de prestígio e de alguma garantia neste
Estado, Lampião deixou na fazenda Enxu, de d. Elisa
Machado Tavares, município de Porto da Folha, a filha
Expedita, recém-nascida, para ser criada pela família
de seu Severo, pois d. Aurora, esposa de seu Severo,
estava também de recém-nascido. Seu Severo era
vaqueiro daquela fazenda, família de bem e
trabalhadora. A criança não nasceu na Bahia, como

115
PEREIRA, Antônio Carlos. Op. Cit., p. 10.
116
PEREIRA, Antônio Carlos. Op. Cit., pp. 10-11.
afirmam alguns autores. Nasceu ali mesmo, nas
imediações do riacho das Araras, entre a fazenda Enxu
e a fazenda Lagoa da Volta (hoje povoada), aonde
Lampião, Maria Bonita e alguns cangaceiros chegaram
um mês antes do nascimento da menina e partiram
um mês depois, assim que terminou e resguardo da
Maria Bonita117.
48
Portanto, a filha de Lampião e Maria Bonita é portofolhense de raiz,
isto é, nasceu no território de Porto da Folha-SE, inegavelmente. E tudo
isso perante a história do Brasil não pode passar despercebido. Em
realidade, muito sobre Porto da Folha ainda permanece oculto.

CONSIDERAÇÕES
A rica literatura deixada por viajantes e ou estudiosos sobre o rio São
Francisco próximo a sua foz tornam-se uma fonte riquíssima de relatos
(narrativas) documentais sobre aquelas terras de outrora. A maneira como
essas pessoas descrevem as paisagens das margens do São Francisco, o
comportamento do povo, a cultura local, o clima, a vegetação entre outras
coisas é algo significativo do ponto de vista cultural. Os detalhes
paisagísticos bem como o comportamento das próprias pessoas desses e
nesses territórios formam um verdadeiro vislumbre da história e para a
história dos lugares visitados e mencionados.
Neste sentido, podemos dizer que o presente trabalho realizou
aquilo que almejou em primeiro plano: discernir sobre um lugar
implantado no mundo. Mostrar um pouco da cultura local; como as coisas
foram se constituindo e como tais estão hoje estabelecidas. Torna-se
digno dizer que Porto da Folha é uma cidade singular.
O material coletado nos ofereceu, sem embargo, uma oportunidade
única para estudarmos Porto da Folha no semiárido (sertão) sergipano. As
fontes consultadas simbolizam os fatos ocorridos em terras distantes do
envolvimento e do desenvolvimento do Brasil de outrora, a saber, fatos
que aconteceram distantes do litoral. Em lugares outros desconhecidos.
Em outros termos, ao lembrarmos-nos da bibliografia de outrora e ao
voltarmos no tempo histórico observamos que toda a vida do Brasil

117
SOUZA, Manoel Alves de. Op. Cit., p. 284.
colônia e do Brasil império se deram ou ocorriam na parte costeira.
Contudo, estudiosos esquecem que no interior do grande território
existiam povoações com pessoas vivendo e contribuindo, por assim dizer,
para o desenvolvimento do todo. Muito embora, algumas dessas
povoações jamais tivessem somados para o avanço econômico do país.
Por conseguinte, contribuíram e muito para com a história da cultura do
Brasil.
49
O presente texto conseguiu - assim consideramos - atingir a primeira
etapa daquilo que se pretende mais adiante, qual seja elaborar uma
pesquisa mais completa sobre a origem de Porto da Folha. Diante disso,
nestas últimas palavras evocamos consideravelmente que por ora é isso o
que compreendemos.

BIBLIOGRAFIA
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas Províncias da Bahia,
Pernambuco, Alagoas e Sergipe (1859). (Tradução Eduardo de Lima
Castro) Belo Horizonte/São Paulo: Editora Itatiaia/Editora da Universidade
de São Paulo, 1980. 347p. (Coleção Reconquista do Brasil – nova série; vol.
19)
BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante
oito anos no Brasil (1647): o Brasil holandês sobre o Conde João
Maurício de Nassau. (Tradução e anotações de Cláudio Brandão) Rio de
Janeiro: Ministério da Educação, 1940. 505p.
CALMON, Pedro. Introdução e notas ao catálogo genealógico das
principais famílias, de Frei António de Santa Maria Jaboatão. Volume II.
Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1985. 680p.
CARVALHO E SILVA, José Vieira Rodrigues de. Viagem às Caxoeiras de
Paulo Affonso. In: Revista trimestral do Instituto Historico, Geographico e
Ethonografico do Brasil. Tomo XXII. Rio de Janeiro: Typographia Imparcial
de J. M. N. Garcia, 1859. pp. 201-301.
CASAL, Manuel Ayres de. A Província de Sergipe d’El Rei. In: Corografia
Brazilica ou Relação historico-geografica do Reino do Brazil. Tomo II. Rio
de Janeiro: Na Impressão Regia, 1817. p. 140-152.
COELHO E CAMPOS, José Luis. Sobre os limites entre a Bahia e Sergipe. In:
CARVALHO, João de Mattos. Sergipe e Bahia: questão de limites
(ANEXOS). Aracaju: Empreza d’O Estado de Sergipe, 1905.
DANTAS, Beatriz Góis e DALLARI, Dalmo de Abreu. Terra dos Índios Xocó
(Estudo e Documentos). São Paulo: comissão Pró-Índio/Editora Parma
Ltda, 1980. 186p.
50
FEITOSA, Eufrásio Moreira. Histórias e Memórias: Porto da Folha e sua
gente. Porto da Folha: Edição do Autor, 2009. 138p.
______. Inventários dos Primeiros Habitantes de Porto da Folha-SE.
[Porto da Folha]: Edição do Autor, s/d. a. 124p.
______. Árvores genealógicas que comprovam a origem de Porto da
Folha-SE. [Porto da Folha]: Edição do Autor, s/d. b. 164p.
FERREIRA, Jurandyr Pires. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros
(Sergipe e Alagoas). vol. XIX. Rio de Janeiro: IBGE, 1959. 496p.
FREIRE, Felisbelo Frmino de Oliveira. História de Sergipe (1575-1855). Rio
de Janeiro: Typographia Perseverança, 1891. 498p.
GARDNER, George. Viagem ao interio do Brasil: principamente nas
províncias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os
anos de 1836-1841. (Tradução de Milton Amado; apresentação de Mário
Guimarães Ferri) Belo Horizonte/São Paulo: Editora Itatiaia/Editora da
Universidade de São Paulo, 1975. 260p. (Coleção Reconquista do Brasil –
nova série; vol. 13)
HALFELD, Henrique Guilherme Fernando (Heinrich Wilhelm Ferdinand).
Atlas e Relatório Concernente à Exploração do Rio de São Francisco
desde a cachoeira de Pirapóra até o Oceano Atlantico. Rio de Janeiro:
Lithographia Imperial/Typographia Moderna de Georges Bertrand, 1860.
61p.
LIMA JUNIOR, Carvalho. Limites entre Sergipe e Bahia (estudo histórico).
In: Revista do Instituto Histórico e Geographico de Sergipe. Aracaju, anno
II, fascículo I, vol, II, pp. 09-48, 1914.
LIMA JUNIOR, Francisco A. de Carvalho. História dos limites entre Sergipe
e Bahia (estudo de litígio interestadual). Aracajú: Imprensa Oficial, 1918.
681p.
MAPA HIPSOMÉTRICO DO MUNICÍPIO DE PORTO DA FOLHA. Mapstore,
2013. Disponível em:
<http://mapstore.eco.br/mapa_carta_hipsometria_altitudes_relevo_srtm
_topo30_brasil_regiao_nordeste_sergipe_mesorregiao_sertao_sergipano 51
_microrregiao_sergipana_do_sertao_do_sao_francisco_municipio_de_por
to_da_folha_05604>. Acesso em: 12 de agosto de 2013.
MARCGRAVE, Jorge. História Natural do Brasil (Oito livros). (Tradução de
José Procopio de Magalhães) São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1942.
423p.
MARCGRAVI, Georgi. Historiae Rerum Naturalium Brasiliae (liber octavus).
In: GUILIELMI PISONIS, M. D.; LAET, Ioannes de; MARCGRAVI, Georgi (de
Liebstad). Historia Naturalis Brasiliae: auspicio et beneficio illustriss. I.
Mauriti Com. Nassau illius provinciae et maris summi praefecti adornata
– in qua non tantum plantae et animália, sed et indigenarum morbi,
ingenia et mores describuntur et iconibus supra quingentas illustratur.
Lugdun. Batavorum, apud Franciscus Hackium et Amstelodami apud Lud.
Amsterdam: Elzevirium,1648. 456p.
MENEZES, Catarina Agudo. Alagoas de Marcgraf. 17p. In: I Simpósio
Brasileiro de Cartografia Histórica. Passado presente nos velhos mapas.
CRCH/UFMG. Paraty: 2011. Disponível em:
<https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio/trabalhos_complet
os.htm>. Acesso em: 30 de agosto de 2013.
MENEZES, Sônia de Souza Mendonça e ALMEIDA, Maria Geralda de.
Vaquejada: a pega de boi na caatinga resiste do sertão sergipano. In:
Revista Vivência. UFRN: Natal, nº 34, p. 181-193, 2008. Disponível em:
<http://www.cchla.ufrn.br/Vivencia/publicados_layout.html>. Acesso em:
13 de janeiro de 2014.
MICELI, Paulo. A arte que sobrou da guerra. 18p. In: I Simpósio Brasileiro
de Cartografia Histórica. Passado presente nos velhos mapas.
CRCH/UFMG. Paraty: 2011. Disponível em:
<https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio/trabalhos_complet
os.htm>. Acesso em: 30 de agosto de 2013.
MOTT, Luiz R. B. A presença de Sergipe Del Rei no Catálogo Genealógico
das principais famílias, de Frei Joaboatão e Pedro Calmon. In: Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, nº 33, pp. 47-61,
2002.
52
NIEUHOF, Joan. Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil (1682).
(Trad. Moacir N. Vasconcelos; confronto com a edição holandesa de 1682,
introdução, notas, crítica bibliográfica e bibliografia por José Honório
Rodrigues) São Paulo: Livraria Martins, 1942. 389p.
OLIVEIRA CAMPOS, José de e VIANNA, Francisco Vicente. Estudo sobre a
origem historica dos limites entre Sergipe e Bahia. Salvador: Typographia
do Diario da Bahia, 1891. 209p.
OLIVEIRA TELLES, Manoel dos Passos de. Limites de Sergipe (contra o 1º
volume da compilação do Dr. Braz do amaral, intitula Limites do Estado
da Bahia). Aracaju: Imprensa Oficial, 1919. 219p.
PEDRO II, Dom. Viagens pelo Brasil: Bahia, Sergipe e Alagoas – 1859
(Diário). (Prefácio e notas Lourenço Luiz Lacombe; Apresentação Renato
Lemos) 2º ed. Rio de Janeiro: Bom Texto/Letras & Expresões, 2003. 340p.
______. Diário de Viagem ao norte do Brasil. (Organizado por L. L. L.)
Salvador: Publicações da Universidade da Bahia, 1959. 320p.
(Comemoração do centenário da viagem)
PEREIRA, Antônio Carlos. Porto da Folha - Terra de Buraqueiros: esboço
histórico do município. [Porto da Folha]: Edição do Autor, s/d. 124p.
PRADO, Ivo do. A Capitania de Sergipe e suas Ouvidorias: memórias
sobre questões de limites (Congresso de Bello Horizonte). Rio de Janeiro:
Papelaria Brazil, 1919. 411p.
RATZEL, Friedrich. Geografia dell’uomo (Antropogeografia): principî
d’applicazione della scienza geográfica alla storia. (Tradotta da Ugo
Cavallero) Torino: Fratelli Boca Editore, 1914. 596p.
RECLUS, Elisée. L’homme et la terre. Tome premier, 6. v. Paris: Librairie
Universelle, 1905. 570p.
RECLUS, Elíseo. El hombre y la tierre. Tomo quinto, 6. v. (Versión española
por A. Lorenzo; bajo la rerisión de Odón de Buen) Barcelona: Escuela
Moderna, 1908. 570p.
SANTANA, Pedro Abelardo de. Aldeamentos indígenas em Sergipe
Colonial: subsídios para a investigação de Arquelogia Histórica.
Dissertação (Mestrado em Geografia). Núcleo de Pós-Graduação em
Geografia da Universidade Federal de Sergipe. Área de concentração: 53
formas e processos tradicionais de ocupação do terrotório brasileiro:
Estudos arqueológicos. São Cristovão, 2004. 116p.
SANTOS, Regnaldo Gouveia dos. Impactos sócio-ambientais à margem do
rio São Francisco: um estudo de caso. Dissertação (Mestrado em
Geografia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas da
Universiodade de São Paulo. Área de concentração: Geografia Humana.
São Paulo, 2008. 194p.

SCHOPENHAUER, Artur. Parerga y Paralipómena: escritos filosóficos


sobre diversos temas. (Trad. José Rafael Hernández Arias, Luis Fernando
Moreno Claros e Augustín Izquierdo) Madrid: Valdemar, 2009. 1120p.
(Letras Clásicas)
SOUZA, Bernardo Xavier Pinto de. Assinada com as iniciais P. de S.
(pseud.). Memorias da viagem de Suas Magestades Imperiaes à provincia
da Bahia. Tomo I. Rio de Janeiro: Typographia Industria Nacional de
Cotrim & Campos, 1867. p. 63-104.
SOUZA, Manoel Alves de. Porto da Folha: fragmentos da história e
esboços biográficos. Aracaju/Porto da Folha: Edição do autor, 2009. 414p.
(Coleção Lindolfo Alves de Souza)
SOUZA, Marcos Antonio de. Memoria sobre a Capitania de Serzipe: sua
fundação, população, productos e melhoramentos de que é capaz
(1808). 2ª ed. Aracajú: Departamento Estadual de Estatística, 1944. 44p.
SOUZA, Marquessuel Dantas de. A Filosofia na Antropogeografia de
Friedrich Ratzel. In: Caderno de Geografia. (PUCMG), Belo Horizonte, v.
24, n. 42, pp. 155-168, jul./dez. 2014. Disponível em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/geografia/article/view/P.2318-
2962.2014v24n2p155>. DOI: 10.5752/P.2318-2962.2014v24n42p155.
Acesso em 18 de julho de 2014.

54
AS MUDANÇAS PARADIGMÁTICAS
E AS FILOSOFIAS DA HISTÓRIA

Matheus Mendanha Cruz1


Maytê Regina Vieira 2 1

RESUMO
O artigo foi feito sob a orientação da professora mestre Maytê Vieira, dentro das aulas
de Teoria da História II, disciplina oferecida pela UEPG – Universidade Estadual de
Ponta Grossa. O presente trabalho visa discutir, através de revisão bibliográfica, as
mudanças paradigmáticas desde o início do século XVIII até a transição para as Teorias
Históricas, buscando evidenciar que o Historicismo e a Escola Metódica trouxeram a
História o staus de ciência, rompendo com as Filosofias da História, não desmerecendo
o papel desta quanto o desenvolver do pensamento histórico. A bibliografia utilizada
foram os textos sugeridos, utilizados em aulas e, também, bibliografia complementar.

Palavras-Chave: Filosofias da História; Mudança de Paradigmas; História como Ciência.

ABSTRACT
The paper was made with the orientation of the teacher Maytê Vieira, in the classes of
Theory of History II, subject offered by the State University from Ponta Grossa. This
paper search discuss, through bibliography review, the paradigm shifts since the
beginning of the 18th century untill the transition to the Historic Theories, looking for
show that Historicism and the Methodical School brought to the History the status of
science, breaking with the Philosophies of History, without debunk its importance to
development of the historic thought. The bibliography used was the suggested texts,
discussed in the class and complement bibliography also.

Key-words: Philosophies of History; Paradigm Shifts; History like Science.

1
Acadêmico do Curso de Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG,
com experiência de trabalho na Rede Estadual de Ensino de Santa Catarina, na rede Estadual de Ensino
do Paraná e na rede particular da cidade de Ponta Grossa.
2
Possui Mestrado em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC (2013) e
Graduação (Licenciatura Plena) em História pela Faculdade Estadual de Filosofia Ciências e Letras de
União da Vitória - FAFIUV (2011). Experiência na área de História, com ênfase em Cinema e História,
atuando principalmente nos seguintes temas: cinema, sociedade contemporânea, cultura e imaginário.
Atualmente é professora colaboradora do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta
Grossa nos cursos de Bacharelado e Licenciatura.
1. INTRODUÇÃO
O texto a seguir começa fazendo uma discussão de trás pra frente,
ou seja, começamos por refletir sobre o Historicismo e a Escola Metódica,
escolas estas que trouxeram a História ao nível de ciência devido a sua
metoditização e mudança paradigmática de pensamento quanto aos 2

objetivos da História. Após esse debate faremos um breve levantamento


acerca da história da própria História, por fim, veremos o que são as
Filosofias da História e alguns de seus pensadores, os quais trouxeram a
questão do sentido histórico à tona, inflamando o debate e a reflexão
quanto a esta questão.
O século XIX foi conhecido como o século da História, afinal foi nele
que “as concepções de História e historiografia passaram por uma
mudança notável e decisiva” (E. d. MARTINS 2010, 7) e fez com que a
disciplina emplacasse de vez como ciência. O século XVIII apresentou ao
mundo mudanças sociais que o mesmo ainda não tinha conhecido. A
sociedade se encaminhava para um novo modelo tanto governamental,
como até mesmo mental de nação e por todas essas circunstâncias o
homem viu a necessidade de se justificar e compreender a nova dinâmica
nascente. É como auxiliadora desses objetivos que a ciência histórica
ganha força e respeito durante o século das grandes ideias que, mais
adiante, abalarão o mundo e protagonizarão duas guerras mundiais.
Malerba (2010, 8) explica tudo isso dizendo que o “século da História é
marcado pelo incandescente processo de criação dos Estados Nacionais na
Europa; a definição de suas fronteiras e povos, a invenção de identidades
a partir da ideia de nação, demandou como jamais o conhecimento
histórico” e podemos utilizar Vavy Pacheco (1985, 31) para complementar,
já que ela explica que “para compreender a história de cada nação,
preocupação geral do século, os historiadores voltam ao passado,
procurando caracterizar o espírito de cada povo; esse espírito é que
explica para eles sua situação e sua maneira de ser”. 3

O processo que a disciplina histórica galga até chegar ao patamar de


ser considerada uma ciência passa pela fundamentação dos primeiros
historiadores que fizeram uma escrita com responsabilidade e reflexão,
não apenas com “narrativas factuais sobre reinados, batalhas e
armistícios” (MALERBA 2010, 11), nem apenas uma escrita tendenciosa e
hagiográfica como era feita dentro dos mosteiros, escrita essa que vê a
história como fatídica e escatológica. Pecoraro (2009, 12) explica que
santo Agostinho defendia que a “história tem um começo e um fim, nasce
no pecado e na culpa, consuma-se na salvação e é universal porque é
unida, controlada e ordenada por um único Deus para uma única
finalidade”. Esse tipo de produção histórica que marcou o medievo acaba
sendo deixado de lado, embora ainda se carregue no século XVIII a
estrutura básica desse pensamento, que é o fim predeterminado a quem
todos estão submetidos.
Pecoraro (2009, 46,47) discute as novas tendências da modernidade
que irão contra as Filosofias da História que surgiram durante o Século das
Luzes. Inaugura essa contraposição o historiador Leopold von Ranke que
defende que a história não tem apenas um objetivo e não se dirige para
este. Também contra as ideias da Filosofia da História levanta-se Droysen
que não concorda com leis gerais para reger os eventos históricos, esses
são alguns dois principais nomes dessa nova geração que se contrapõe a
um fatídico fim para a história.

2. HISTÓRIA COMO CIÊNCIA


2.1 HISTORICISMO ALEMÃO 4

A História tem sua gênese científica dentro do que passou a ser


chamado de historicismo alemão, “é na Alemanha que surge a
preocupação de transformar a história em uma ciência” (BORGES 1985,
31). A tendência supracitada tem como um dos seus maiores expoentes
Leopold Von Ranke, que “desempenha um papel fundamental na
identidade nacional” (DOSSE 2010, 24). Dosse (2010, 24) continua
explicando que durante essa gênese esses primeiros historiadores
acreditavam que “a erudição alemã, apoiada no domínio das ciências
auxiliares, parece ser a única via para fundar a história”.
Entretanto, além das questões nacionais, “a história na Alemanha
não é apenas um fermento nacional, é um método” (DOSSE 2010, 24).
Estevão Rezende Martins (2011, 23) esclarece a importância social do
Historicismo quando afirma que este, “no espaço alemão, representou um
fator decisivo para o surgimento de um espaço público de cultura nacional
em que se constitui uma burguesia esclarecida, culta”, mas também
destaca como principal virtude do Historicismo o método, porque é essa
tendência que defende “o entendimento de que um tal conhecimento e
um tal pensamento histórico são científicos pro requererem o controle
metódico de suas operações” (E. C. MARTINS 2011, 18).
Esse método vai trazer em seu cerne a busca por um relato dos
fatos como eles realmente se passaram, o que mais tarde dará origem ao
chamado positivismo histórico (BORGES 1985, 32). Dosse (2010, 26) ainda
explica que Ranke defende que o historiador “deve ser modesto, evitar
raciocínios abstratos e demasiados generalizantes para se ater somente 5

aos fatos. Essa concepção estabelece uma separação entre a História e a


Filosofia”.
Estevão Rezende Martins (2011, 17) define, segundo Rüsen e
Jaeger, historicismo como “forma determinada do pensamento histórico e
da correspondente concepção da história como ciência”.
Uma das características que diferencia o historicismo das demais
tendências é a ideia de se partir do particular para o geral e nunca ao
contrário (E. C. MARTINS 2011, 30), como as demais ciências fazem. Deste
modo o empirismo se faz bastante presente e se faz História sempre na
prática.
Mesmo com essa diferenciação o Historicismo tem suas raízes no
Iluminismo, tendo aspecto, de certa forma nacionalista, surge para
defender uma burguesia, como o texto do Martins (2011) defende
também; depois ele passa a sofrer a influência da dialética hegeliana que
acaba por opor história e razão e passa a ser “a busca de si mesmo do
Espírito Absoluto”; o período romântico não identificará a História como
processo único e racional, individualizando assim a história,
desconstruindo a ideia de História Universal, sendo passado para História
Geral da Humanidade; o Neo-Historicismo (segunda metade do século XIX
e inícios dos anos do século XX) defende o método diferente das ciências
naturais, defendendo a História dentro de seus métodos (FALCON 1997,
15).
O Historicismo traz mudanças no modo de ver a História, Barros
(2013a, 128) explica isso quando afirma que:
6

O Historicismo, em diversos de seus setores, foi


apurando a percepção de que o historiador não pode
se destacar da sociedade como pressupunha o modelo
das ciências naturais preconizado pelo Positivismo e
outras vertentes cientificistas das ciências humanas.
Ao contrário disto, foi se afirmando cada vez mais no
universo historicista a ideia de que o historiador fala
de um lugar e a partir de um ponto de vista, é que,
portanto, não pode almejar nem a neutralidade nem a
objetividade absolutas, e menos ainda falar em uma
verdade em termos absolutos.

Justamente por começar a dotar-se dessa ideia de que o historiador


faz ciência a partir de um ponto de vista é que o Historicismo viu a
necessidade do método, pois a este sobreveio a incumbência de proteger
o sujeito de si mesmo, ou seja, daria credibilidade àquilo que o historiador
faz e o negaria a possibilidade de seguir as suas próprias vontades e
impulsos.
Outra modificação que o Historicismo imprime à História é a ideia
de que “inexistem leis de caráter geral que sejam válidas para todas as
sociedades; e qualquer fenômeno social, cultural ou político só pode ser
rigorosamente compreendido dentro da História” (BARROS 2013a, 131).
É importante destacarmos que o historicismo é vitima de
estigmatização porque durante as décadas de 1930 -40 foi alvo de ataques
dos Historiadores dos Annales; Também foi vitimado pelos Marxistas,
utilizando o termo materialista de modo depreciativo (FALCON 1997, 8).

2.2 ESCOLA METÓDICA


Após o Historicismo Alemão, os franceses lançaram-se a escrever 7

cientificamente a sua própria história inspirando-se no modelo germânico


como justificativa e guia para a construção de uma nova nação, com
identidade e orgulhosa de si mesmo, sem contar com o aspecto de
exemplaridade para a construção de Estados fortes e respeitáveis (DOSSE
2010, 24).
Além do fator nacionalista há autores que acreditam ser esta teoria
francesa ainda mais importante que a sua precedente alemã, como
Martins (2010, 8) defende:

A evolução decisiva para a historiografia deu-se com o


que se pode chamar de fundamentação metódico-
documental, basilar para a disciplina “acadêmica” (...)
(sendo esta) a origem da grande corrente
historiográfica que se chamou – de forma algo
exagerado, mas não totalmente imprópria - de
historiografia “positivista”.

Martins (2010) explicará mais adiante que a escola histórica


chamada positivista pode ser denominada também, e de forma mais
correta, de “escola metódica”, uma vez que se escrevia apenas uma
história factual e pautada em documentos, uma história com métodos
visando sempre à totalidade da verdade e a valorização da historiografia
como ciência. Uma História em que ao “historiador não competiria o
trabalho da problematização, da construção de hipóteses, da reabertura
do passado e da releitura de seus fatos. Ele reconstituiria o passado
minuciosamente, por uma descrição definitiva” (REIS 1996, 22).
Bourdé e Martin (1983, 97) ainda explicam que: 8

A Escola metódica quer impor uma investigação


científica afastando qualquer especulação filosófica e
visando a objectividade absoluta no domínio da
história; pensa atingir os seus fins aplicando técnicas
rigorosas respeitantes ao inventário das fontes, à
crítica dos documentos, à organização das tarefas na
profissão.

Pela citação anterior conseguimos ver alguns traços que são comuns
entre a Escola Metódica e a sua antecessora, o Historicismo Alemão. Esses
traços demonstram o quanto os ditos positivistas beberam das ideias
alemãs, afinal, embora sejam chamados de positivistas, os historiadores
da Escola Metódica baseiam-se em Ranke e não em Comte (REIS 1996,
15).
Antes de prosseguirmos com a discussão é importante explicar aqui
o porquê ficaram conhecidos como positivistas os historiadores da Escola
Metódica. Muito embora a tendência historiográfica não tivesse ligação
direta com as ideias positivistas comtianas, seus autores acabaram por
defender ideais positivistas, como a República, e iam contra o clericalismo,
sendo em sua maioria cristãos protestantes, embora a Revista Histórica,
maior divulgador desta Escola, não tivesse qualquer ligação religiosa
(BOURDÉ e MARTIN 1983, 98-100).
José Carlos Reis (1996, 21) também deixa bem claro que:

Os historiadores franceses do início do século XX não 9


são positivistas no sentido estrito, comtiano, do
conceito; podem ser considerados, talvez, como
historiadores 'positivos', isto é: apoiam-se em fatos,
na experiência, em noções a posteriori; temem a não-
objetividade e tendem ao concreto, evitando a
especulação, têm visão otimista, progressista da
história.

Mesmo com a maioria de seus autores sendo cristãos protestantes


a Escola Metódica tem a força de fazer a “‘ruptura epistemológica’ ao
afastar o providencialismo cristão, o progressismo racionalista, até mesmo
o finalismo marxista” (BOURDÉ e MARTIN 1983, 112). Essa é uma das
maiores modificações que os franceses aplicam através desta escola,
trazendo à História, como ciência, maior racionalidade metódica, embora
extrema, já que louva o apagamento do historiador frente à fonte.
Este último detalhe diferencia a corrente francesa do Historicismo
Alemão. Embora nem todos os historicistas concordassem com isso, mas a
corrente alemã defendia que o historiador está dentro de dado tempo,
isso acaba por influir em sua visão, já os franceses defendiam que quem
deveria ser sujeito na escrita da história deveriam ser as fontes, elas
deveriam ter a voz e a força para contar aquilo que ocorreu.
É interessantes destacarmos, para maior compreensão das ideias da
Escola Metódica, o que eles definiam como documentos, ou seja, o que
poderia ser utilizado para a escrita da História. São considerados
documentos para Langlois e Seignobos:

Documentos escritos, testemunhos voluntários –


cartas, decretos, correspondências, manuscritos 10
diversos; não pensam nos documentos não escritos –
por exemplo, locais arqueológicos, que reflectem a
vida económica, a estrutura social ou a organização
militar – nem os Testemunhos involuntários – por
exemplo, manuais de confessores que exprimem a
mentalidade religiosa (BOURDÉ e MARTIN 1983,
102,103)

Além disso, esta corrente historiográfica traz a inovação de dividir a


análise dos documentos em estilos, mostrando assim o quão metódico é o
seu pensamento. A análise pode ser dividida em: crítica externa, avaliação
do documento, retirar as informações dele; crítica interna, que são os
comentários a cerca dessa documentação. Após essa primeira
diferenciação segue a análise sintática através da conjugação de vários
documentos; depois se agrupa os fatos isolados em quadros gerais; em
terceiro deve-se ligar esses fatos; por fim, escolher os atos que a
pesquisas deverá abordar (BOURDÉ e MARTIN 1983, 103-104).
Outro fundamento importante da Escola Metódica é a dúvida.
Antoine Prost (2008, 62) esclarece que “a atitude crítica não é natural”,
logo o método serve tem como função primordial “educar o olhar do
historiador em relação a suas fontes; se quisermos, trata-se de uma
ascese e, de qualquer modo, de uma atitude aprendida, não espontânea,
mas que forma uma disposição de espírito essencial para o desempenho
do ofício” (PROST 2008, 61).
Tanto a Escola Metódica, como o Historicismo Alemão trouxeram
inovações à escrita da História, inovações estas que foram as grandes
responsáveis por levarem a História ao patamar de ciência. Essas duas 11

Escolas trouxeram ao meio historiografia o Método, sem o qual não


haveria sido conquistado o respeito frente as demais ciências que haviam
à época.

3. CAMINHO DA HISTÓRIA
Dentro do debate sobre a origem da História José Barros (2013a)
traz a discussão para a Grécia Antiga, debatendo se Heródoto seria
mesmo o pai da História, mostrando que, por exemplo, monarcas
acadianos já obrigavam seus escribas a escrever sua própria história. Ele
continua o debate elencando algumas características que a História
deveria ter como investigação, relato e testemunho ocular, isso para os
gregos. Deste modo, defende-se o papel importante de Heródoto e dos
primeiros historiadores gregos, o de poder escolher ser historiador e se
dedicar a busca da verdade e do relato do acontecido, dando maior valor
aos testemunhos orais de quem viveu o fato in loco, Pecoraro (2009, 9)
explica dizendo que “para os fundadores da historiografia ocidental,
Heródoto e Tucídides, um acontecimento é histórico apenas quando
narrado ou registrado por alguém que esteve presente, que o viu
pessoalmente”, embora aqui ainda não houvesse a valorização do
documento histórico e das fontes como a modernidade trouxe, toda a
credibilidade estava na pessoa do historiador.
Barros (2013a) continuará em seus escritos elucidando as questões
já antes debatidas sobre o surgimento da História como ciência,
demonstrando em alguns aspectos como o século XIX acaba por ser uma 12

continuidade do século anterior e deságua num cientificismo, atingindo


assim a História também. O autor em voga destaca as mudanças
ocorridas na filosofia trazendo do “inquérito metafísico sobre as causas
primeiras, a tarefa maior e mais nobre da Filosofia passa a ser vista, nos
século XVI e XVII, como aquela que é cumprida pelas teorias políticas”
(2013a, 48), mudanças estas que acabaram por deságua nas Filosofias da
História, do século XVIII, que impregnaram as Teorias da História do século
XIX.
Por fim, o autor trará um esquema (2013a, 69) que elucida bem as
diferenças entre o Positivismo, Escola Metódica, de perspectivas gerais,
com ideias de métodos universais e uma ciência objetiva, e o Historicismo
subjetivo, que defende leis para a área de humanidades diferentes das
que regem as ciências naturais e exatas e com perspectivas particulares
quanto ao objeto de estudo.
Para se compreender o desenvolvimento histórico da disciplina é
necessário que se olhe para as Filosofias da História, tendências essas que
só poderiam vim como uma radical transformação para dar objetivos, criar
paradigmas explicativos, a uma simples narração dos acontecimentos
(PECORARO 2009, 10).
Políbio inaugura algum tipo de sentido da História, entretanto deixa
ao acaso (fortuna) boa parte de suas explicações, derivando basicamente
disto virá durante a Idade Média uma sequência de pensamentos
fortemente ligados à religião e ao tempo linear escatológico, aonde todos
os acontecimentos convergem para a segunda vinda do Messias, sendo 13

isso visível quando como Agostinho, de certa forma, desmerece a queda


do Império Romano, uma vez que nada terreno poderia afetar ou tirar o
foco do porvir espiritual. A ideia de Agostinho é a de dualidade entre duas
cidades, uma santa e uma pagã, onde o maniqueísmo para a vida aqui na
terra é gritante, a sua defesa é de que:

(...) a história secular, empírica, na qual


acontecimentos e gerações surgem e desaparecem
em um devir insensato, caótico e confuso, desdobra-
se a cidade terrena (...) (e que) apenas a fé permite
vislumbrar um sentido, uma finalidade, um progresso
rumo à salvação eterna que consumará e redimirá a
própria história. (PECORARO 2009, 13-14).

Outra ideia surgida da religião vai ser a de Joaquim Fiore, ele


defendeu que a história deveria ser dividida entre as três pessoas da
trindade, tirando o foco agostiniano de Jesus Cristo. A concepção trinitária
divide-se na fase do Pai, que é a primeira, que se resume no tempo da lei
e do velho testamento; a fase do Filho, a segunda, que começa com a
vinda do Messias a terra e é da consolidação da Igreja, da graça e perdão;
por fim, a fase do Espírito, que é o período de realmente evolução aonde
chegará justiça, amor e paz (PECORARO 2009, 15).
O filósofo Vico defende a ideia de Providência Divina, e justifica que
o homem pode obter o conhecimento das nações e dos Estados, uma vez
que isso é sua própria criação e não divina, ele também explica que nada é
feito ao simples acaso, como defendeu Fiore, mas que tudo tem um
objetivo, mesmo que este não seja imediato. 14

Vico compreende que “a Providência divina é a força imanente que


fundamenta e orienta o movimento da história usando homens e nações
para a realização de seus próprios desígnios (...) e não existe um mundo
civil que não tenha sido fundado em alguma forma de religião”
(PECORARO 2009, 18), desta forma a Providência a reguladora social e a
base das leis humanas, orientando desta forma o destino da humanidade.
Vico sentencia, com seu determinismo histórico e a sua concepção
circular de tempo, que todas as nações devem passar por três estágios: o
primeiro é a Época dos Deuses, aonde o homem acredita viver sob o
governo divino; o segundo é a Época dos Heróis, aonde são valorizados as
grandes lendas e mitos sobre atos heroicos e guerreiros, alimentando
assim oligarquias fortes no poder; por fim, a Época dos Homens, aonde é
valorizada a razão humana, dando força para o surgimento das
monarquias (PECORARO 2009, 20).

4. FILOSOFIAS DA HISTÓRIA
Para que, enfim, tenhamos uma noção melhor da transformação
ocorrida com o advento do Historicismo e da Escola Metódica precisamos
compreender um pouco mais a fundo o que tanto falamos até aqui: as
Filosofias da História.
Com o movimento Iluminista firmou-se de vez as Filosofias da
História, ou seja, explicações metafísicas que visavam dar sentido a
história, ainda com muitos resquícios da teologia medieval, como a crença
num determinismo, não mais divino por certo, mas sob as forças do
espírito, como a maioria dos pensadores dessa época tratou, período este 15

que se encerrará com a conclusão da Escola Metódica de que “não é o


Espírito que produz a História, mas o povo-nação e os seus líderes
instalados no Estado” (REIS 1996, 15), uma afirmação em que facilmente
se consegue enxergar a época do fortalecimento dos Estados Nacionais.
Existe entre autores discussões sobre qual foi o maior rompimento, se foi
do período teológico para o metafísico, ou se foi deste último para o
positivo.
Julião (2010) em seu artigo defende, em suma, que a as Teorias
Históricas do século XIX não passam de uma continuidade do período
anterior, especulativo, e que a verdadeira ruptura de teorias está entre o
período das explicações voltadas ao divino para as explicações
transcendentais, mas pautadas na razão, ou seja:

A ruptura para com a análise teológica tradicional que


seria mais significativa do que aquela que a pretensa
reflexão científica do século XIX e do século XX
estabelecerá para com o período especulativo, visto
que no primeiro caso haveria uma mudança de
paradigma, enquanto no segundo caso haveria mais
propriamente um desdobramento de possibilidades
que teriam sido abertas justamente com a virada
especulativa da filosofia da história (JULIÃO 2010,
238).
Ele continuará a tratar como errônea a visão que defende as
mudanças ocorridas no século XIX como a grande revolução no
pensamento histórico, uma vez que tanto os autores do Historicismo
como do Positivismo não conseguem se desvencilhar totalmente daquilo 16
que eles mesmo combatem, que é uma visão explicativa metafísica para a
história, a única diferença, segundo Julião (2010), é que não se foi
postulada essas ideias.
A análise de Julião (2010) se apresenta sem prestar a devida
atenção ao fator processo como modificador de ideias e atitudes, ele
aparenta requerer como ruptura a total desvinculação entre as ideias sem
levar em consideração que conceitos novos acabam por serem frutos dos
antigos e que até os dias atuais carregam-se princípios baseados ainda nos
primeiros tempos da Filosofia Grega, não havendo assim nenhum corte
tão profundo a ponto de desvencilhar totalmente novas convicções das
antigas, ainda mais se a análise desses movimentos ideológicos ocorrerem
dentro da ótica dialética, uma vez que esta indicará que a síntese é o
produto da tese e da antítese, ou seja, carrega em seu escopo traços das
concepções originais, e esse resultado sofrerá ainda mutações mais
adiante no eterno espiral dialético. Vavy Pacheco (1985, 36) resume que
“a história é um processo dinâmico, dialético, no qual cada realidade
social traz dentro de si o princípio de sua própria contradição, o que gera a
transformação constante na história”.
Bourdé e Martin (1983, 44) defendem que até a atualidade ainda
existem correntes de pensamentos históricos envoltos e/ou com
resquícios das Filosofias da História, como as teorias que bebem da fonte
marxiana que vislumbram um mundo que caminha para o comunismo.
Pecoraro (2009) lista nomes importantes da gênese das Filosofias da
História que tem ligações com o Iluminismo, movimento este que trará
para o homem o foco de todas as explicações, ele começa com o francês 17

Montesquieu, uma vez que este pensador defendeu a ideia de


causalidade, partindo dos eventos históricos para a explicação, chegando
assim à compreensão dos fatos.
Em Voltaire o foco não é mais a “religião e os acontecimentos
político-dinásticos, mas, sim, as artes, os costumes, as instituições e as
realizações do espírito humano” (PECORARO 2009, 23) ele também visa,
como Nietzsche mais tarde, combater a visão judaico-cristã, ele na história
e o filósofo alemão na moral, provando através da civilização chinesa que
pode haver história fora da dinâmica cristã.
Outro pensador importante é Turgot, ele une as concepções laicas e
religiosas, dedicando ao cristianismo o importante papel de legar ao
homem conceitos de bondade e caridade que permitem uma vida
civilizada e agradável, torna possível uma sociedade civil estabelecida.
Condocert mantém a ideia laica de história, mas não abandona os
conceitos deterministas, pois defende que a “história universal é
caracterizada por dez fases ou épocas. Em sua sucessão do pior para o
melhor elas representam o progresso acumulativo da razão humana, cuja
finalidade, é a emancipação do homem, a sua completa liberdade social e
política” (PECORARO 2009, 25).
4.1. Principais Filósofos da História
As principais Filosofias da História surgiram “entre o final do século
XVIII e meados do século XIX” (PECORARO 2009, 27) com Kant, Hegel,
Marx, Heder e Comte, entre outros.
Kant é um pensador iluminista, sendo assim traz em suas ideias as 18

concepções do século das luzes, sendo elas, em destaque, o ateísmo e o


determinismo histórico. As ideias kantianas perpassam ainda pela moral,
como explicam Bourdé e Martin (1983, 46): “a história do filósofo não é
exatamente a do historiador; continua a ser uma história do sentido da
vida humana. Para Kant, a filosofia da história afirma-se como parte da
Moral”.
O determinismo kantiano indica como fim último da história a
cultura, não esse objetivo sendo guiado pelas mãos de Deus, mas sim pela
própria natureza, como Pecoraro (2009, 28) explica: “Kant confia no
‘propósito da natureza’, no seu ‘plano obscuro’ que a espécie humana
realizaria ao longo da própria história, mesmo sem ter nenhuma
consciência de está trabalhando para isso”.
Kant ainda defende que a história caminha para uma sociedade
universal, decorrente dos impulsos da natureza e, como explicado
anteriormente, com os homens agindo sem ter consciência que suas ações
estão desenhando esse destino.
São os pontos fundamentais da reflexão de Heder “a centralidade
do ‘Espírito dos Povos’ e a convicção de que a história da humanidade
possui uma racionalidade própria” (PECORARO 2009, 30). O filósofo Heder
vai contra as ideias iluministas que centralizam no soberano a força motriz
para as mudanças e consagra uma visão hierarquizada da dinâmica
política, ele acredita que “são os povos em sua individualidade, os fatos
locais, as produções populares de cada nação que, ao se entrelaçarem em
determinadas épocas e situações, dão forma ao progresso e injetam
sentido ao curso dos acontecimentos históricos”. 19

O filósofo alemão Hegel também traz consigo as marcas da


religiosidade e resquícios das ideias sobre a história que advinham da
Idade Média, isso pode ser notado através da afirmação de Bourdé e
Martin (1983, 48): “Hegel continua ligado à religião; vê na filosofia que
professa um desenvolvimento do protestantismo; é por isso que se
propõe levar a fé luterana do sentimento subjectivo à certeza racional”.
A convicção do professor alemão é altamente idealista, ou seja, tem
o mundo das ideias como governante do mundo físico, por consequência
dessa certeza vê a razão como a grande regente do mundo. Hegel acredita
que o mundo está em progresso constante e que não está entregue ao
acaso e que “a realização perfeita do fim do universo opera-se pelo
andamento do Espírito (...) e o aspecto mutável que o Espírito reveste é
essencialmente um progresso” (BOURDÉ e MARTIN 1983, 49).
Ainda sobre a questão da não repetição, ou seja, segundo Hegel o
tempo não era cíclico. Bourdé e Martin (1983, 49) afirmam:

O espírito, actor principal da história, não toma


consciência de si mesmo directamente, mas por um
movimento dialéctico, por uma operação de ritmo
ternário. O movimento dialéctico comporta três
momentos: a tese (o ser); a antítese (o não-ser); a
síntese (o devir).

Uma das influências mais importantes das ideias hegelianas é a


introdução da dimensão de temporalidade, fato este comum atualmente, 20
mas que não era levado em consideração durante a Idade Média,
entretanto a ideia que ficará realmente para a posteridade e marcará o
modo de pensar ciência é a ideia da dialética, como afirmam Bourdé e
Martin (1983, 49): “Hegel não se limita a enunciar um idealismo puro, faz
corrente no século XVIII; inventa o movimento dialéctico, que vai dominar
o pensamento do século XIX”.
Hegel também defende que o fim último do homem é a liberdade,
entretanto ele acredita que esse objetivo só pode ser alcançado através
dos Estados Nacionais, como afirma Pecoraro (2009, 38) quanto as ideias
de Hegel: “definitivo nesse processo é o papel do Estado Moderno, a única
instituição capaz de realizar a plena liberdade dos indivíduos e de lhes
confiar um destino, uma tarefa, uma finalidade universal cujo
desdobramento se dá na história política”.
Quanto ao modo de escrever a história Hegel defende que existem
três: a História Original, a História Reflexiva e a História Filosófica. A
primeira é típica dos historiadores clássicos e medievais, pois valoriza a
presença in loco do que narra, permite o uso de outras narrativas, explora
um curto período de tempo, sem fazer reflexões profundas, e, entre
outras mais características, não inclui o mito como explicação histórica; a
História Reflexiva divide-se em História Universal e História Pragmática;
por fim, a História Filosófica é aquela feita pelo filósofo em que há mais
influência da filosofia do que da história, propriamente dita (HEGEL s.d.,
45-52).
Spengler é outro filósofo alemão, este acredita que as grandes
civilizações, que nascem como cultura, são como as estações do ano que 21

tem seu início e seu fim, embora não muito aceito durante a sua vida
acadêmica ganhou força com a derrota da Alemanha durante a I Guerra,
sendo a teoria capaz de explicar a derrota e os acordos vexatórios
celebrados com o Tratado de Versalhes, deste modo amenizando assim a
dor no ego germânico.
Um dos aspectos interessantes da sua linha de pensamento é a
defesa feita contra a tendência da época de crer que a ciência não é
universal, como explica Bourdé e Martin (1983, 55): “Spengler anuncia,
num sentido, o estruturalismo. O seu postulado inicial é que a ciência não
é universal”.
Sepengler se assemelha a Hegel quando defende que o homem é
escravo da história, sendo uma espécie de fantoche que não toma
consciência do destino que está desenhando.
Toynbee é um ensaísta e historiador nascido na Grã-Bretanha no
final do século XIX e que produz durante o século XX. Para deixar claro a
abordagem desse autor queremos defender sua importância, embora o
seu recorte temporal seja mais recente do que os demais é significativo
que deixemos algumas coisas sobre ele ditas para que possamos
compreender melhor a profundidade das Filosofias da História.
O inglês se coloca contra a hierarquização entre o setor manual e o
setor intelectual, defendendo que este modelo é fruto da divisão social do
trabalho advindo da Revolução Industrial. Uma das principais ideias de
Toynbee é o modelo que se aparenta muito o de Spengler, que divide em
três estágios a vida das civilizações em nascimento, crescimento e 22

decadência. Sua publicação, como Spengler, ganha força com um fato


histórico: O desmonte do Império Colonial Inglês. Ele também defende
que os impérios são forjados nas dificuldades e não nascem das
facilidades. Bourdé e Martin (1983, 58) afirmam que “uma civilização pode
aparecer quando esbarra com um obstáculo, quando enfrenta uma prova;
nasce da dificuldade e não da facilidade”.
Karl Marx é considerado até os dias atuais um dos mais importantes
pensadores do mundo. O filósofo e economista alemão considera a
história como um leito que desaguará num modelo de vida Comunista.
Pecoraro (2009, 40-41) explica em linhas gerais as ideias marxistas quanto
à questão histórica, sempre voltada para um devir político-social.
Auguste Comte, filósofo e sociólogo francês, desenvolveu uma
“orgânica doutrina científico-positiva da história cujo desfecho é uma
visão místico-religiosa que põe em seu centro o culto à humanidade”
(PECORARO 2009, 31). A teoria de Comte é baseada nas leis dos 3 estados:
teológico, metafísico e positivo; todos esses numa escala de evolução até
alcançar-se o objetivo do homem e a sua razão está no centro de toda a
explicação, não mais estando os porquês nas mãos de Deus e sim sob a
égide da razão humana. Esta teoria é explicada por Bourdé e Martin
(1983, 52) quando afirmam que “esta lei consiste em que cada uma das
nossas concepções principais, cada ramo dos nossos conhecimentos,
passa sucessivamente por três estados teóricos diferentes: o teológico, ou
fictício; o estado metafísico, ou abstrato; o estado científico, ou positivo”.
Embora Comte tenha sugerido uma teoria que buscava o real e não
mais as questões metafísicas, acabou por se enveredar por um caminho 23

religioso, criando uma Religião da Humanidade, aonde “o dogma assenta


numa trindade curiosa: O Grande Meio (o Espaço), O Grande Ídolo (a
Terra), O Grande Ser (a Humanidade); cujo culto supõe a existência de
padres, de templos, de sacramentos e orienta-se para a adoração a
Mulher”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observar as mudanças ocorridas desde o século XVIII com as
Filosofias da História até o nascimento da História como ciência no século
XIX nos da a possibilidade de observar que a própria História é filha do seu
tempo, assim bem como as pessoas que dedicam-se a escrevê-la. Pode-se
observar isso no fato de Spengler e Toynbee serem aceitos apenas por
motivos óbvios de um descarrego do peso da derrota, Alemanha da guerra
e Inglaterra na perda do império colonial.
Discutir a dinâmica das ideias que acabaram por dar origem às
teorias da Escola Alemã, da Escola Metódica e, mais tarde, da Escola dos
Annales, nos permite refletir sobre as rupturas entre os séculos, é claro
que tendo em mente que ideias mudam com um processo e não
cronologicamente como o passar do dia de hoje para o de amanhã.
Por fim, analisar as Filosofias da História nos permite questionar o
nosso presente e perceber que não há certezas plenas em ciência e que os
paradigmas estão em eterno redirecionamento, sendo assim o que hoje é
considerado como óbvio daqui alguns anos a dinâmica dialética pode
empurrar para o desuso e passará a ser visto como um absurdo 24

ultrapassado, deste modo gera-nos a consciência de que toda a realidade


é particionada pelos campos e subcampos de estudo e que as verdades
absolutas só existem nas utopias de alguns poucos cientistas alienados.

Bibliografia
BARROS, José D'Assunção. Teoria da História: II. Os Primeiros Paradigmas:
Postivismo e Historicismo. Petrópolis: Vozes, 2013a.
BORGES, Vavy Pacheco. O que é História? São Paulo: Brasiliense , 1985.
BOURDÉ, Guy, e Hervé MARTIN. A Escola Metódica. Tradução: Ana
RABAÇA. Mem Martins: Europa-America, 1983.
DOSSE, Fraçois. “História e Historiadores no século XIX.” In: Lições de
História: o caminho da ciência no longo do século XIX, por Jurandir
MALERBA (org.), 15-31. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
FALCON, Francisco J. Calanzas. “"Historicismo": a Atualidade de uma
Questão aparentemente Inatual.” Tempo v.4 (1997): 5-26.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razão da História: Uma Introdução
Geral à Filosofia da História. Tradução: Beatriz SIDOU. Centauro, s.d.
JULIÃO, José Nicolao. “Ensaio de Introdução à Filosofia da História.”
Veritas v.55, n. n.3 (2010): 236-250.
MALERBA, Jurandir. “Prefácio.” In: Lições de História: O caminho da
ciência no longo século XIX, por Jurandir MALERBA (org.), 7-14. Rio de
Janeiro: FGV, 2010.
MARTINS, Estevão C. de Rezende. “Historicismo: o Útil e o Desagradável.”
In: A Dinâmica do Historicismo: Revisando a Historiografia Moderna, por 25

Valdei Lopes de Araújo ARAÚJO et. al., 15-48. Belo Horizonte, MG: Fino
Traço, 2011.
MARTINS, Estevão de Rezende. “Introdução: O Renascimento da História
como Ciência.” In: A História Pensada: teoria e método na historiografia
europeia do Século XIX, por Estevão de Rezende (org.) MARTINS, 7-14. São
Paulo: Contexto, 2010.
PECORARO, Rossano. Filosofia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2009.
PROST, Antoine. “Os Fatos e a Crítica Histórica.” In: Doze Lições sobre a
História, por __________., tradução: Guilherme João de Freitas. TEXEIRA,
53-73. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2008.
REIS, José Carlos. A História entre a Filosofia e a Ciência. São Paulo, SP:
Editora Ática, 1996.
A DIDÁTICA DA HISTÓRIA ORIENTADA PELA VIRADA
PARADIGMÁTICA ALEMÃ DOS ANOS 60 E 701
Max Lanio Martins Pina 2

1
Resumo
Neste artigo apresentaremos a Didática da História com sua conceituação definida na
bibliografia alemã referente ao movimento que ficou conhecido como virada
paradigmática dos anos 60 e 70, bem como discutiremos as influências desse grupo na
ampliação desse conceito no Brasil a partir da última década. Contextualizaremos esse
movimento com suas características sociais e históricas peculiares, para mostrar como
essa disciplina foi expulsa e reintroduzida no campo da Ciência Histórica. Analisaremos
essa disciplina como subdisciplina da Ciência da História com o seu caráter
metateórico na reflexão da práxis historiográfica e por fim vamos expor os atuais
rumos dessa área no Brasil.
Palavras-chave: Didática da História. Virada Paradigmática. Anos 60 e 70.

Abstract
In this article we will present the didactics of history with its concept defined in the
German literature on the movement that became known as paradigmatic turn of the
60s and 70s, as well as discuss the influence of this group in the expansion of this
concept in Brazil in the last decade. Contextualize this movement with its peculiar
social and historical characteristics, to show how this discipline was expelled and re-
introduced in the field of Historical Science. We will analyze this discipline as a sub-
discipline of History of Science with its metatheoretical character in reflection
historiographical praxis and finally we will expose the current directions of this area in
Brazil.
Keywords: Didactics of History. Paradigmatic Turn. Years 60s and 70s.

1
Este artigo tem como finalidade sintetizar as ideias e reflexões realizadas nos últimos anos pelo
professor Dr. Rafael Saddi, o qual se tornou um dos principais intelectuais no Brasil a discutir e defender
a Didática da História como práxis metateórica na função historiográfica. Nesse sentido, consideramos
ser necessária a compreensão dessas discussões por parte daqueles que desejam efetuar investigações
relacionadas a esse campo, tendo em vista as mudanças ocorridas nessa área que foram provocadas
pela literatura alemã especializada.
2
Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Professor da Universidade
Estadual de Goiás (UEG), Campus Porangatu. Endereço eletrônico: maxilanio@yahoo.com.br.
Nos últimos anos a área tradicionalmente conhecida na nação
brasileira como ensino de história vem passando por transformações
paradigmáticas no seu campo epistemológico. 3

No Brasil, as pesquisas sobre ensino e aprendizagem da 2


História adquiriram grande impulso nas últimas décadas, o
que pode ser observado pela expansão das linhas de
pesquisa nos cursos de pós-graduação e pelo aumento da
produção e da publicação nessa área.4

Essas mudanças estão sendo provocadas pela influência da


literatura alemã especializada na Didática da História, a qual tem
estimulado a ampliação conceitual dessa disciplina, permitindo assim a
ampliação do seu objeto de investigação.
Para o historiador Rafael Saddi conceituar a Didática da História
não é uma tarefa fácil, uma vez que a definição dessa área está longe de
ser consensual entre os intelectuais brasileiros envolvidos com esse
campo.5
No entanto, no Brasil

a formulação da didática da história passa pela constituição


de um código disciplinar, isto é, de uma tradição
configurada historicamente que estabelece um conjunto de

3
SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos. Cultura histórica e aprendizagem histórica. Revista
NUPEM, Campo Mourão, v. 6, n. 10, jan./jun. 2014, p. 32.
4
CAINELLI, Marlene Rosa; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Desafios teóricos e epistemológicos na pesquisa
em educação histórica. Antíteses, v. 5, n. 10, jul./dez. 2012, p. 509.
5
SADDI, Rafael. O parafuso da didática da história: o objeto de pesquisa e o campo de investigação de
uma didática da história ampliada. Acta Scientiarum. Education: Maringá, v. 34, n. 2, p. 211-220, July-
Dec., 2012, p. 212.
ideias, valores e rotinas que definem e delineiam a função
educativa da história. 6

Através dessa constituição da função educativa da História, que no


Brasil passa por um código disciplinar estabelecido tradicionalmente e
3
historicamente Rafael Saddi sustenta que existe a partir daí pelo menos
quatro reduções do conceito de Didática da História.
Em primeiro lugar verifica-se que a Didática da História esta
limitada “à metodologia do ensino de história, e muitas vezes, à técnica de
ensino, apresentando, dessa forma, um caráter funcional”, 7 e desta
maneira ela é entendida apenas como uma ferramenta que serve para
auxiliar na formação de professores de história para o Ensino
Fundamental e Médio. Conforme Aline do Carmo Costa Barbosa, a esta
área é delegada a tarefa de refletir a respeito dos métodos que serão
facilitadores da aprendizagem na sala de aula, nesse sentido, ela limita a
própria reflexão, porque os métodos “elaborados ou discutidos sem
relação com a ciência histórica, tornam-se diversas vezes recursos
didáticos ou meros facilitadores de aprendizagem”. 8 A afirmação de
Barbosa só confirma essa visão reducionista da Didática da História no
Brasil.

6
SCHMIDT, 2006; URBAN, 2009 apud SADDI, 2012, op. cit., p. 212.
7
SADDI, Rafael. O parafuso da didática da história: o objeto de pesquisa e o campo de investigação de
uma didática da história ampliada. Acta Scientiarum. Education: Maringá, v. 34, n. 2, p. 211-220, July-
Dec., 2012, p. 212. Ver também: SADDI, Rafael. Didática da História na Alemanha e no Brasil:
considerações sobre o ambiente de surgimento da neu geschichtsdidaktik na Alemanha e os desafios da
nova didática da história no Brasil. OPSIS, Catalão-GO, v. 14, n. 2, p. 133-147 - jul./dez. 2014, p. 140-141.
8
BARBOSA, Aline do Carmo Costa. Didática da História e EJA: investigações da consciência histórica de
alunos jovens e adultos. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Goiás, Goiânia,
2013, p. 31.
No “segundo lugar, a didática da história reduz-se ao ensino
‘escolar’ da história”. 9 Nesse caso, ela perde todo seu caráter de
ampliação, porque não pode ser usada para compreensão da consciência
histórica na sociedade, e muito menos para fazer a relação da História
com a vida prática humana e por causa disso, a Didática da História deixa 4

de levar em conta e também reduz suas reflexões sobre os vários espaços


que a História influencia.
De acordo com Barbosa

Se entre o que preocupa a didática da história não estão os


elementos que são produzidos fora do ambiente escolar,
que se revelam como fundamentais quando, por exemplo,
notamos que jornais, revistas, novelas, museus, filmes, etc,
produzem concepções acerca do passado quanto emitem
interpretações históricas em nossa sociedade, então esta
área de investigação acaba por ignorar os mais diversos
espaços que fornecem orientação histórica no presente. 10

Em terceiro lugar, “a didática da história aparece como uma área


externa à ciência histórica que deve buscar em outras áreas os
procedimentos e métodos para definir como ensinar História nas
escolas”.11 Nessa situação ela é compreendida como uma disciplina ligada
a Ciência da Educação e em específico a Pedagogia, ficando longe de
poder estabelecer sua análise pela Ciência Histórica. Para Barbosa esta
situação pode ser percebida no Brasil pela divisão ou separação existente
9
SADDI, 2012, op. cit., p. 212.
10
BARBOSA, 2013, op. cit., p. 31.
11
SADDI, Rafael. O parafuso da didática da história: o objeto de pesquisa e o campo de investigação de
uma didática da história ampliada. Acta Scientiarum. Education: Maringá, v. 34, n. 2, p. 211-220, July-
Dec., 2012, p. 212.
na formação do profissional da Ciência Histórica, entre licenciatura e
bacharelado, como ela declara, pressupõe-se uma história a ser ensinada
e outra a ser pesquisada, de tal maneira que essas duas esferas não se
comunicam. 12
Por último, tem-se a visão de que “o caráter disciplinar e científico 5

da didática da história não é claro, aparecendo, por vezes, meramente


como uma área de formação”. 13 Constitui-se aqui um dos grandes
problemas dessa área no Brasil, porque ela não é encarada como “um
área aprovada cientificamente” 14 e muitas vezes é vista somente como
campo de formação técnico e prático que serve apenas como ferramenta
para formação de professores de História.
Em um artigo publicado em 2008, Oldimar Cardoso buscava uma
definição para a Didática da História. Segundo ele, no Brasil essa disciplina
era frequentemente compreendida como uma temática que estaria
subordinada a área da educação, porque existe uma crença de que a
função da Didática da História é a de adaptar para o conhecimento escolar
a produção da Ciência Histórica. 15 Essa crença está baseada no código

BARBOSA, Aline do Carmo Costa. Didática da História e EJA: investigações da consciência histórica de
alunos jovens e adultos. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Goiás, Goiânia,
2013, p. 31.
13
SADDI, 2012, op. cit., p. 212.
14
SADDI, Rafael. Didática da História na Alemanha e no Brasil: considerações sobre o ambiente de
surgimento da neu geschichtsdidaktik na Alemanha e os desafios da nova didática da história no Brasil.
OPSIS, Catalão-GO, v. 14, n. 2, jul./dez., 2014, p. 141.
15
CARDOSO, Oldimar. Para uma definição de Didática da História. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 28, nº 55, 2008, p. 154.
disciplinar que estabeleceu de forma tradicional as normas, as ideias e a
rotinas do ensino de História. 16
Ancorado em autores alemães da Didática da História, como Klaus
Bergmann, Jörn Rüsen, Bernad Schönemann e Hans Jürgen Pandel, o
pesquisador Oldimar Cardoso justifica que a Didática da História 6

(Geschichtsdidaktik) como é expressa em alemão “não é um mero


‘lubrificante’ que se passa sobre a História para que ela possa ser
ensinada, e também não se resume ao ensino e à aprendizagem da
História no contexto escolar”, 17 e acrescenta que a “didática circunscrita
pelo conceito de Geschichtsdidaktik pertence à História, é uma parte
indissociável dela. A Geschichtsdidaktik abrange mais do que a realidade
escolar, ela estuda a ‘consciência histórica na sociedade’”. 18
Os intelectuais alemães acima citados concluíram nos anos da
virada paradigmática das décadas de 60 e 70 que a Didática da História é
uma subdisciplina que pertence ao campo da Ciência Histórica, e não uma
disciplina que é ligada à área da Educação, deste modo, ela deve constituir
seu objeto, sua metodologia e seu campo conceitual a partir da
epistemologia da História.

16
Como já havia sido citado anteriormente o código disciplinar da História que delineou de forma
tradicional e histórica as práticas e funções e também a rotina do ensino dessa disciplina na nação
brasileira. In: SCHMIDT, 2006; URBAN, 2009 apud SADDI, 2012, op. cit., p. 212.
17
CARDOSO, Oldimar. Para uma definição de Didática da História. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 28, nº 55, 2008, p.158.
18
CARDOSO, 2008, op. cit., p. 158.
Os alemães e a Didática da História
Ao discorrer a respeito das influências da literatura alemã sobre a
Didática da História no Brasil é necessário primeiro expor uma série de
problemas que foram observados pelo professor Rafael Saddi19, o qual
percebeu a partir de seus estudos dos principais autores desse campo na 7

Alemanha, quatro incoerências por parte dos pesquisadores e


historiadores brasileiros envolvidos com esse campo 20.
A Primeira incoerência está relacionada a partir da constatação de
que muito do que foi produzido pelos alemães em termos de literatura no
que se refere à Didática da História, não se tornou conhecido no Brasil.

Com a contribuição especial do professor Estevão Rezende


Martins, da professora Maria Auxiliadora Schmidt e de
outros colegas, existe um número razoável de traduções de
textos e livros de Rüsen para o português. Porém, com
exceção deste autor, a literatura alemã disponível em
língua portuguesa se reduz a um artigo de Klaus Bergmann
(1990) e um artigo do Bodo Von Borries (2012).21

As reflexões ocorridas nesse campo foram debatidas na Alemanha


por vários historiadores, no entanto, por causa do pequeno volume

19
Vale ressaltar que o referido historiador, juntamente com outros como Luís Fernando Cerri, Maria
Auxiliadora Schimdt e Oldimar Cardoso, influenciados pela bibliografia alemã tem se destacado no Brasil
na tentativa de propor a ampliação do campo de investigação da Didática da História. Cf. SADDI, Rafael.
Didática da História na Alemanha e no Brasil: considerações sobre o ambiente de surgimento da neu
geschichtsdidaktik na Alemanha e os desafios da nova didática da história no Brasil. OPSIS, Catalão-GO,
v. 14, n. 2, p. 133-147 - jul./dez. 2014.
20
Esses autores foram lidos por Rafael Saddi na língua original, e a partir de então ele detectou os
problemas que envolvem a Didática da História no Brasil que é orientada pela literatura alemã. In:
SADDI, 2014, op. cit.
21
SADDI, Rafael. Didática da História na Alemanha e no Brasil: considerações sobre o ambiente de
surgimento da neu geschichtsdidaktik na Alemanha e os desafios da nova didática da história no Brasil.
OPSIS, Catalão-GO, v. 14, n. 2, jul./dez., 2014, p. 134.
traduzido para o português, conhece-se pouco do que foi publicado
durante os anos que se seguiram as décadas de 60 e 70, momento de
ampla produção desses pensadores. Por isso, percebe-se que “o extenso e
profundo impacto da historiografia alemã na didática da história do Brasil
se contradiz com o baixo e estreito conhecimento sobre a enorme 8

produção didático-histórica alemã”, isto é, as reflexões realizadas no Brasil


perdem por não conhecer todas as produções intelectuais desse campo na
língua alemã, pois esses autores refletiam a partir de suas carências de
orientação que eram específicas, as quais não são as mesmas dos
brasileiros, pois pertenciam “a questões próprias de seu tempo e
espaço”.22
O segundo problema observado foi o fato de que no Brasil há uma
espantosa evidência na ideia que atribui a Jörn Rüsen a concepção do
conceito consciência histórica. De acordo com Saddi “a enorme ênfase
em Rüsen produz a noção, pouco refinada, de que ele fora formulador de
uma concepção única e individual”. 23 Não se credita esse conceito
absorvido pelas pesquisas em Didática da História e pela metodologia da
Educação Histórica a outros autores alemães, tais como “Schörken,
Bergmann, Pandel e, especialmente, Jeismann”. 24 Essa segunda situação é
proveniente da primeira, a falta de traduções e o difícil acesso a língua
germânica, criam esses equívocos. Entretanto, ainda na opinião de Saddi

22
SADDI, 2014, op. cit., p. 134.
23
SADDI, 2014, op. cit., p. 134.
24
Esses autores alemães fazem parte do grupo de pensadores da Didática da História, que foram os
responsáveis pela elaboração de uma nova reflexão sobre as influências da História para vida humana
prática no momento de crise de legitimação da História e também do ensino de história na Alemanha,
permitindo assim a ocorrência virada paradigmática dos anos de 60 e 70.
não se pode desprezar de todo a importância desse intelectual na
coautoria desse conceito, pois coube a ele o mérito de desenvolver de
uma forma profunda a visão sobre a consciência histórica. 25
Já o terceiro equívoco apontado por Saddi e que também é
proveniente do primeiro, é o fato de “pensar que a didática da história 9

alemã é homogênea”. 26 A pouca bibliografia disponível em língua


portuguesa sobre esse campo dificulta a percepção das “várias correntes e
várias divergências entre os autores alemães dos anos 1970, inclusive
entre aqueles que se situavam no interior destas novas abordagens da
didática da história”. 27
Por fim, tem-se a confusão criada em torno da Educação Histórica
(History Education), porque a mesma é sempre confundida com a Didática
da História. Essa primeira pertence à tradição inglesa, embora tenha
surgido no mesmo período da mudança de paradigma da Didática da
História alemã é entendida como uma metodologia, que visa investigar as
“ideias históricas de sujeitos em situação escolar”. 28 O relacionamento
entre esses dois campos no Brasil é visto por Saddi como positivo,
conforme seus argumentos foram os pesquisadores brasileiros da
Educação Histórica que tiveram uma importante função na divulgação “de
diferentes conceitos formulados pela didática da história alemã, tais como

25
SADDI, Rafael. Didática da História na Alemanha e no Brasil: considerações sobre o ambiente de
surgimento da neu geschichtsdidaktik na Alemanha e os desafios da nova didática da história no Brasil.
OPSIS, Catalão-GO, v. 14, n. 2, jul./dez., 2014, p. 134.
26
SADDI, 2014, op. cit., p. 135.
27
SADDI, 2014, op. cit., p. 135.
28
SADDI, 2014, op. cit., p. 135.
os conceitos de consciência histórica, aprendizagem histórica e cultura
histórica”. 29
Entretanto, é fundamental para compreensão das mudanças
ocorridas na Didática da História nos últimos anos, a análise de dois textos
divulgados por esse grupo de pesquisadores alemães que assimilaram e 10

avaliaram aquilo que ficou conhecido como virada paradigmática ocorrida


nos anos de 60 e 70 do século XX. 30
O primeiro texto foi publicado no Brasil em 1990, de autoria do
historiador Klaus Bergmann com o título “A História na reflexão
didática”,31 nele o autor faz uma análise das relações existentes entre a
Didática da História com a pesquisa empírica, com a ciência histórica e
com o ensino de História. O segundo texto é do historiador e filósofo Jörn
Rüsen, publicado dezesseis anos depois intitulado “Didática da História:
passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão”, 32 no qual ele
descreve a trajetória da Didática da História na Alemanha, dando ênfase
as mudanças ocorridas nos anos 60 e 70, e na segunda parte do texto ele
apresenta as áreas de atuação dessa disciplina em seus país. Ambas as
publicações foram apresentadas ao público especializado pela primeira
vez na Alemanha na década de 1980, e fazem parte de uma

29
SADDI, 2014, op. cit., p. 135.
30
Na dissertação de mestrado de Aline do Carmo Costa Barbosa, defendida em 2013, na Universidade
Federal de Goiás, na qual faz uma análise da consciência histórica de alunos da EJA, ela afirma que as
publicações das obras de Jörn Rüsen e o artigo de Klaus Bergmann, foram importantes para influenciar
as mudanças na Didática da História no Brasil. In: BARBOSA, Aline do Carmo Costa. Didática da História e
EJA: investigações da consciência histórica de alunos jovens e adultos. Dissertação (Mestrado em
História). Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2013, p. 33.
31
BERGMANN, Klaus. A história na reflexão didática. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.9, n.9,
pp. 29-42, set.89/fev.90.
32
RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis
Educativa: Ponta Grossa. v. 01, n. 02, jul./dez., 2006, p. 07-16.
discussão/reflexão que visava aproximar e recolocar a Didática da História
no campo da Ciência Histórica.33
O historiador Luís Fernando Cerri acredita que do período em que
esses textos foram expostos ao público brasileiro até a presente data, já
são notórios os avanços nesse campo de conhecimento e não há como 11

negar a importância das reflexões que foram provocadas por eles.34


Nesse sentido, o historiador alemão Klaus Bergmann inicia seu
texto chamando a atenção para a necessidade de uma reflexão “histórico-
didática”, o que para ele ocorre quando

na medida em que investiga seu objeto sob o ponto de


vista da prática da vida real, isto é, na medida em que, no
que se refere ao ensino e à aprendizagem, se preocupa
com o conteúdo que é realmente transmitido, com o que
podia e com o que devia ser transmitido. 35

Do ponto de vista do pensamento alemão presente na Didática da


História, Bergmann provocou nas discussões brasileiras o empenho de se
pensar o ensino de História a partir da vida prática do aluno, do seu
cotidiano e de sua realidade vivida. 36
Ele acrescenta que a preocupação dessa disciplina era

33
SADDI, Rafael. Didática da História como sub-disciplina da ciência histórica. História & Ensino,
Londrina, v. 16, n. 1, 2010, p. 61-80.
34
CERRI, Luís Fernando. O historiador na reflexão didática. História & Ensino, Londrina, v. 19, n. 1, p. 27-
47, jan./jun. 2013.
35
BERGMANN, Klaus. A história na reflexão didática. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.9, n.9,
pp. 29-42, set.89/fev.90, p. 29.
36
BERGMANN, 1990, op. cit., p. 29.
investigar o que é apreendido no ensino da História (é a
tarefa empírica da Didática da História), o que pode ser
apreendido (é a tarefa reflexiva da Didática da História) e o
que deveria ser apreendido (é a tarefa normativa da
Didática da História).37

12
Para Saddi os diferentes tipos de história, isto é, as histórias
assimiladas e experimentadas diretamente todos os dias pelo devir, ou as
que são recebidas e também assimiladas pela transmissão da Ciência
Histórica devem ser estudadas pela tarefa empírica da Didática da
História. Já a tarefa reflexiva, visa, portanto a análise do trabalho do
historiador, observando os seus métodos, seus procedimentos, a forma
como ele lida com a pesquisa, suas ideias, seus interesses, entre outros.
Por último, a tarefa normativa da Didática da História é quem vai “indicar
os caminhos para as funções de orientação da história” na vida prática
humana.38
Para o pesquisador Klaus Bergmann a Didática da História se
definia como “uma disciplina científica que, dirigida por interesses
práticos, indaga sobre o caráter efetivo, possível e necessário de processo
de ensino e aprendizagem e de processos formativos da História”. 39 Nesse
caso, as preocupações dessa disciplina seriam “com a formação, o

37
BERGMANN, 1990, op. cit., p. 29.
38
SADDI, Rafael. Reflexões sobre o campo de investigação da didática da história. In: SILVA, Maria da
Conceição; MAGALHÃES, Sônia Maria de. O ensino de História: aprendizagens, políticas públicas e
materiais didáticos. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2012, p. 92.
39
BERGMANN, Klaus. A história na reflexão didática. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.9, n.9,
pp. 29-42, set.89/fev.90, p. 29.
conteúdo e os efeitos da consciência histórica num dado contexto sócio-
histórico”.40
Segundo Cerri foi introduzido nas discussões brasileiras “a
expressão consciência histórica, que teria um papel decisivo nessa virada
paradigmática do da concepção e tratamento do ensino de história”. 41 13

Todavia, tem que levar em consideração que Bergmann não conceitua


nesse texto a consciência histórica, porém, ele acreditava que ela era
socialmente regulada, garantia ao indivíduo e a coletividade identidade ou
identificação, favorecia “uma práxis social racionalmente organizada” e
ainda compreendia a “História como um processo, cujos conteúdos e
qualidade humanos podem ser melhorados pela ação e intervenção dos
agentes históricos”. 42 Nesse sentido Saddi vai afirmar que “o objetivo da
Didática da História é analisar o modo como se dá os processos com os
quais os homens produzem uma interpretação do passado humano, que
orienta o presente e constitui projeções de futuro”. 43
O historiador alemão Klaus Bergmann avaliou a relação existente
entre a Didática da História e a pesquisa empírica, a qual para ele consistia
em investigar o “significado da História no contexto social”. 44 Isso
estabelece que “a didática se vê obrigada a incluir nos objetos de sua
pesquisa empírica também as recepções extra-escolares de História”. 45

40
BERGMANN, 1990, op. cit., p. 9-10.
41
CERRI, Luís Fernando. O historiador na reflexão didática. História & Ensino, Londrina, v. 19, n. 1, p. 27-
47, jan./jun. 2013, p. 29.
42
BERGMANN, 1990, op. cit., p. 31-32.
43
SADDI, Rafael. A Didática da História como meta-teoria. Anais Eletrônicos do IX Encontro Nacional dos
Pesquisadores de História. 18, 19 e 20 de abril de 2011 – Florianópolis/SC. p. 4. Disponível em:
<http://abeh.org/trabalhos/GT07/tcompletorafael.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2013.
44
BERGMANN, 1990, op. cit., p. 31.
45
BERGMANN, 1990, op. cit., p. 32.
Por isso poderiam ser incluídos como objetos da pesquisa da Didática da
História, além do contexto escolar, “todos os veículos e meios de
comunicação que contribuem na formação da consciência histórica”. 46
Com essa visão a Didática da História trouxe para si um problema
metodológico para qual na sua reflexão ela ainda não tinha solução. 47 14

De acordo com Bergmann há uma estreita relação da Didática da


História com a Ciência Histórica porque esta primeira não efetua sua
reflexão de forma arbitrária, mas, elas eram resultantes “do próprio
processo histórico”.48 Sendo assim, uma era indispensável à outra. A
justificativa principal da legitimidade da Didática da história para a Ciência
da História seria o fato dela não permitir que, como produção científica a
História se afaste das “intensões do mundo vivido”, 49 e perca a sua
capacidade de apresentar de maneira compreensível os “seus
conhecimentos para a sociedade”.50

Justifica-se, ao mesmo tempo, a pretensão da Didática da


História de, após o termino da pesquisa, desempenhar uma
função reflexiva-seletiva e questionar os resultados da
pesquisa por seu significado, refletindo sobre o fato de
estes resultados merecerem ser transmitidos.51

Por fim Bergmann analisa a Didática da História e o ensino de


História, e conclui que após a virada paradigmática, essa primeira deixou
46
BERGMANN, 1990, op. cit., p. 32.
47
BERGMANN, Klaus. A história na reflexão didática. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.9, n.9,
pp. 29-42, set.89/fev.90, p. 33.
48
BERGAMAN, 1990, op. cit., p. 35.
49
BERGAMAN, 1990, op. cit., p. 33.
50
BERGAMAN, 1990, op. cit., p. 34.
51
BERGMAN, 1980 apud BERGMAN, 1990, op. cit., p. 34.
de ser “apenas metodologia e prática do ensino”, e passou a “se dedicar
às questões práticas do ensino da História” e também a “preocupar-se
com as necessidades, os objetivos e as funções do ensino da História”. 52
Já o historiador Jörn Rüsen inicia seu texto apresentando a opinião
padronizada de como Didática da História é percebida e como ela é 15

situada no contexto das ciências humanas

a didática da história é uma abordagem formalizada para


ensinar história em escolas primárias e secundárias, que
representa uma parte importante da transformação de
historiadores profissionais em professores de história
nestas escolas.53

Acrescenta que ela também é pensada como “uma disciplina que


faz a mediação entre a história como disciplina acadêmica e o aprendizado
histórico e a educação escolar”. 54 Dessa forma a “didática da história serve
como uma ferramenta que transporta conhecimento histórico dos
recipientes cheios de pesquisa acadêmica para as cabeças vazias dos
alunos”.55 O historiador Rafael Saddi assegura que essa opinião está
totalmente centrada na divisão do trabalho do historiador, pois de um
lado tem-se a pesquisa acadêmica e científica que tem o status de
produzir conhecimento para o campo da ciência. Já na outra margem o

52
BERGAMAN, 1990, op. cit., p. 36.
53
RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis
Educativa: Ponta Grossa. v. 01, n. 02, jul./dez., 2006, p. 8.
54
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 8.
55
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 8.
trabalho da Didática da História possui simplesmente a função de traduzir
o conhecimento produzido cientificamente para às escolas. 56
Por isso que a Didática da História assume dois caráter, um
externo e o outro funcional.
16

Externo, porque se torna algo fora da Ciência da História,


uma disciplina afastada da produção do conhecimento
histórico. Enquanto o historiador, ao produzir pesquisa
empírica, produz o conhecimento histórico, o didático da
história cuida exclusivamente de sua transmissão. Caráter
funcional, porque se torna uma mera técnica de
transmissão de conhecimento. Ora, a Didática se reduz a
uma forma de como melhor transformar o conhecimento
complexo (científico) em conhecimento esquemático. 57

Para Rüsen essa opinião sobre a Didática da História é falha e


enganosa, para isso, ele argumenta que tal situação não é capaz de
“confrontar os problemas reais concernentes ao aprendizado e educação
histórica”, também não consegue relacionar a “didática da história e
pesquisa histórica” e ainda “limita ideologicamente a perspectiva dos
historiadores em sua prática e nos princípios de sua disciplina”. 58 Uma
Didática da História válida em sua opinião tem que considerar e perguntar

56
SADDI, Rafael. Reflexões sobre o campo de investigação da didática da história. In: SILVA, Maria da
Conceição; MAGALHÃES, Sônia Maria de. O ensino de História: aprendizagens, políticas públicas e
materiais didáticos. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2012, p. 86-87.
57
SADDI, Rafael. A Didática da História como meta-teoria. Anais Eletrônicos do IX Encontro Nacional dos
Pesquisadores de História. 18, 19 e 20 de abril de 2011 – Florianópolis/SC. Disponível em:
<http://abeh.org/trabalhos/GT07/tcompletorafael.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2013, p. 1.
58
RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis
Educativa: Ponta Grossa. v. 01, n. 02, jul./dez., 2006, p. 8.
“como se pensa a história, quais são as origens da história na natureza
humana, e quais são seus usos para a vida humana”. 59
Além do mais a Didática da História já foi um dia preocupação dos
historiadores
17

Antes que os historiadores viessem a olhar para seu


trabalho como uma simples questão de metodologia de
pesquisa e antes que se considerassem “cientistas”, eles
discutiram as regras e os princípios da composição da
história como problemas de ensino e aprendizagem. 60

Um dos melhores exemplos para indicar essa preocupação é o


ditado historia magistra vitae, que guiou a historiografia ocidental desde a
antiguidade até o século dezoito onde “a escrita da história era orientada
pela moral e pelos problemas práticos da vida, e não pelos problemas
teóricos ou empíricos da cognição metódica”. 61 No Iluminismo os
“historiadores profissionais ainda discutiam os princípios didáticos da
escrita histórica como sendo fundamentais para seu trabalho”. 62 Mas foi
no século XIX que os historiadores “começaram a perder de vista um
importante princípio, a saber, que a história é enraizada nas necessidades
sociais para orientar a vida dentro da estrutura tempo”. 63 Nesse contexto
“a didática da história não era mais o centro da reflexão dos historiadores
sobre sua própria profissão”,64 ela então “foi substituída pela metodologia

59
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 8.
60
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 8.
61
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 8.
62
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 8.
63
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 8.
64
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 8.
da pesquisa histórica”.65 Esse processo permitiu que “a cientifização da
história excluí[sse] da competência da reflexão histórica racional aquelas
dimensões do pensamento histórico inseparavelmente combinadas com a
vida prática”. 66
Para Saddi o processo de cientifização e especialização da História 18

a partir do século XIX, acarretou a Ciência História o sinônimo de método,


o qual está sujeito às regras da pesquisa científica e histórica. 67 Isso fez
com que a Ciência Histórica fosse reduzida unicamente a produção
metódica, esquecendo ou deixando de lado os fatores apresentados por
Rüsen na matriz disciplinar 68 como: as carências de orientação
(interesses); as perspectivas orientadoras da experiência do passado
(ideias); as formas de apresentação da História; suas funções orientadoras
da existência humana.
Na Alemanha como em todos os lugares essa disciplina era
percebida como “uma aplicação externa da escrita profissional da
história” e era condicionada “pelas necessidades práticas de treinamento
de professores de história”. 69 Conforme Jörn Rüsen esse treinamento
possuía dois níveis:

65
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 8-9.
66
RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis
Educativa: Ponta Grossa. v. 01, n. 02, jul./dez., 2006, p. 9.
67
SADDI, Rafael. A Didática da História como meta-teoria. Anais Eletrônicos do IX Encontro Nacional dos
Pesquisadores de História. 18, 19 e 20 de abril de 2011 – Florianópolis/SC. Disponível em:
<http://abeh.org/trabalhos/GT07/tcompletorafael.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2013, p. 2.
68
A matriz disciplina é uma expressão que Jörn Rüsen tomou emprestado de Thomas Kuhn, na qual ele
afirma não possuir “a intensão de meramente transpor as teses de Kuhn sobre a evolução histórica das
ciências naturais para a ciência da história e apenas aplicá-la a teoria da história. Meu objetivo consiste
em, com ajuda de sua concepção de paradigma ou de matriz, descrever o objeto específico da reflexão
de uma teoria da história”. Ver nota 5. In: RÜSEN, Jörn. Razão histórica - Teoria da História:
fundamentos da ciência histórica. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: UnB, 2001, p. 29-35.
69
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 9.
Um era puramente pragmático e relacionava-se com os
métodos de ensino de história em sala de aula. O segundo
era teórico: ele se concentrava nas condições e nos
propósitos básicos do ensinar e aprender história. 70
19
Por isso “na melhor das hipóteses, a didática da história provia os
estatutos fundamentais da função educacional do conhecimento histórico
e dos objetivos correspondentes para o ensino de história nas escolas”. 71
Conforme os autores Rafael Saddi 72 e Jörn Rüsen73 esse cenário
descrito mudará nos anos de 1960 e 1970, motivados por novas
demandas de carências de orientação pelas quais os alemães irão passar e
que darão lugar a “uma grande reorientação cultural”. 74 Essa reorientação
levou a “uma crise de legitimidade no ensino de história”. 75 E isso
provocou a necessidade de mudança na Didática da História, que passou a
refletir essa reorientação da cultura geral e também as mudanças no
sistema de ensino.

Essa mudança coincidiu com a necessidade urgente de


auto-representação e legitimidade dos historiadores
preocupados com o campo da educação. Juntos, ambos os
momentos contribuíram para a formação de um novo
movimento histórico comprometido com uma reflexão
70
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 9.
71
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 10.
72
SADDI, Rafael. Didática da História na Alemanha e no Brasil: considerações sobre o ambiente de
surgimento da neu geschichtsdidaktik na Alemanha e os desafios da nova didática da história no Brasil.
OPSIS, Catalão-GO, v. 14, n. 2, p. 133-147 - jul./dez. 2014.
73
RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis
Educativa: Ponta Grossa. v. 01, n. 02, jul./dez., 2006, p. 10.
74
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 10.
75
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 11.
mais profunda e ampla sobre os fundamentos dos estudos
históricos e sua inter-relação com a vida prática em geral e
com a educação em particular. 76

Sendo assim, durante os anos de 1970 na Alemanha a Didática da


História se estabeleceu como uma disciplina específica que tinha como 20

abordagem principal “o uso da história na vida prática”, constituindo a


partir de então “suas próprias questões, concepções teóricas e operações
metodológicas”. 77 Segundo Jörn Rüsen, isso permitiu a expansão das
perspectivas da Didática da História que deixou de considerar somente os
problemas do ensino e da aprendizagem escolar, e passou a analisar todas
as “formas e funções do raciocínio e conhecimento histórico na vida
cotidiana, prática”. 78
A última parte do texto de Rüsen ficou reservada para
apresentação e análise dos quatro assuntos que dominavam as discussões
da Didática da história na Alemanha nas décadas de 1970 e 1980.
Chamados por Rüsen de itens, ele enumera o primeiro como
“metodologia de instrução na sala de aula”, o segundo “a análise da
função do conhecimento e da explicação histórica na vida pública”, já o
terceiro era “estabelecer os objetivos da educação histórica e descobrir
como estes objetivos têm sido alcançados”, e por último e considerado
pelo pesquisador o mais importe é “a análise da natureza, função e
importância da consciência histórica”. 79

76
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 11.
77
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 11.
78
RÜSEN, 2006, op. cit., p. 11.
79
RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis
Educativa: Ponta Grossa. v. 01, n. 02, jul./dez., 2006, p. 13-16.
Esses são os dois principais textos que de uma maneira peculiar
contribuíram para despertar as transformações da Didática da História no
Brasil, provocando reflexões sobre as normas e funções do ensino de
história, e também permitindo aos historiadores brasileiros pensar sobre
as implicações da Ciência Histórica na vida humana prática, tanto 21

individual como coletiva.

O contexto da virada paradigmática


As mudanças ocorridas na Didática da História na Alemanha eram
“uma resposta à crise de legitimação da ciência histórica”, 80 e também por
carência de orientação temporal específicas de problemas com o passado
que o alemães precisavam resolver, todavia, nem a História e muito
menos o ensino de história tinham respostas a esses problemas da
sociedade alemã no pós-guerra.81
Durante os anos dourados havia um problema de orientação
temporal geral, isso provocava um verdadeiro conflito de gerações. 82

Aqueles que nasceram durante ou após a segunda guerra


mundial experimentaram um mundo muito distinto da
geração de seus pais. Um homem que vivenciou a
experiência da primeira guerra, a árdua crise do período
entre guerras e a segunda guerra mundial (tempos de
grande desemprego e de penúria), não poderia admitir, por
exemplo, que seu filho, criado em uma era de ouro, de

80
SADDI, Rafael. Didática da História na Alemanha e no Brasil: considerações sobre o ambiente de
surgimento da neu geschichtsdidaktik na Alemanha e os desafios da nova didática da história no Brasil.
OPSIS, Catalão-GO, v. 14, n. 2, jul./dez. 2014, p. 136.
81
SADDI, 2014, op. cit., p. 136.
82
HOBSBAWN, 2003 apud SADDI, 2014, op. cit., p. 136.
quase pleno emprego, tivesse uma atitude tão
descompromissada com o trabalho, estando disposto a
abandoná-lo para acompanhar turnês de bandas de rock ou
para fazer viagens ao universo místico do oriente.
Tampouco a juventude dos anos 1960, os chamados Sixty-
Eighters (geração de 68), poderia admitir os valores e as
condutas rígidas expressas pela geração de seus pais. 83 22

Essa demanda fez surgir uma juventude completamente diferente


da geração de seus pais, com hábitos peculiares que estão expressos em
seus cabelos grandes, no jeans, no uso da maconha, no rockn’roll, no LSD,
entre outros.84

[...] tudo isto formava parte da criação de um estilo de vida


distinto dos pais: “não confio em ninguém com mais de
30”, dizia o lema de 1968, “Eu não serei o que o meu velho
é” (Ich will nicht werden was mein Alter ist), dizia uma das
letras da banda de rock alemã Stone Steine Scherben.85

A geração nova se desenvolvia sob o peso de ser uma Alemanha


“ocupada, dividida em duas, e, ao mesmo tempo, era obrigada a carregar
o fardo de ser alemão depois de Hitler”. 86 Segundo Barbosa essa geração
de jovens não havia

presenciado Hitler no poder, buscavam, de modo distinto


que seus pais ou avós buscaram, resolver a questão

83
SADDI, Rafael. Didática da História na Alemanha e no Brasil: considerações sobre o ambiente de
surgimento da neu geschichtsdidaktik na Alemanha e os desafios da nova didática da história no Brasil.
OPSIS, Catalão-GO, v. 14, n. 2, jul./dez. 2014, p. 136.
84
SADDI, 2014, op. cit., p. 136.
85
SADDI, 2014, op. cit., p. 136.
86
SADDI, 2014, op. cit., p. 136.
refletindo sobre as origens do nazismo, de como tal
acontecimento foi possível. Queriam, portanto, resolver ou
aliviar de alguma forma o peso do passado e da memória
que o a nação alemã carregava consigo no presente. 87

No entanto, essa situação com o passado ressente era tratada pelo 23


governo alemão como algo que deveria ficar no esquecimento, pois já se
encontrava resolvida. 88 O governo não levava em consideração que “A
sociedade alemã havia mudado, a nova geração exigia um debate sobre o
passado recente, mas, a ciência histórica e o ensino da história não
haviam acompanhado esta transformação”.89 De acordo com Barbosa na
crise de reorientação que os alemães viviam a História não tinha muito
que dizer sobre seu passado e muito menos sobre o futuro. Como a
História não servia para orientar a vida prática na Alemanha nesse
período, porque suas reflexões estavam atadas e atreladas à ordem
vigente do presente, ela vai passar por uma crise de legitimação. Foi nessa
situação de incertezas que se formaram os principais autores que se
responsabilizaram em refletir sobre as novas concepções da Didática da
História e a vida prática: Karl Ernst Jeismann, Annete Kuhn, Joachim Rolfs,
Rols Schöerken, Klaus Bergmann, Hans Jürgen Pandel, Jörn Rüsen. 90

87
BARBOSA, Aline do Carmo Costa. Didática da História e EJA: investigações da consciência histórica de
alunos jovens e adultos. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Goiás, Goiânia,
2013, p. 20.
88
BORRIES, 2001; SYWOTTEK, 1974; ELIAS, 1997 apud SADDI, Rafael. Didática da História na Alemanha e
no Brasil: considerações sobre o ambiente de surgimento da neu geschichtsdidaktik na Alemanha e os
desafios da nova didática da história no Brasil. OPSIS, Catalão-GO, v. 14, n. 2, jul./dez. 2014, p.136-137.
89
SADDI, 2014, op. cit., p. 137.
90
BARBOSA, Aline do Carmo Costa. Didática da História e EJA: investigações da consciência histórica de
alunos jovens e adultos. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Goiás, Goiânia,
2013, p. 21.
O pesquisador Rafael Saddi também chega a conclusão que foi a
partir desse contexto sócio histórico de crise de legitimação da Ciência
Histórica e também do Ensino de História, que os historiadores alemães
resolveram se lançar sobre o seu déficit teórico para fazer as pazes com o
seu passado recente, em específico o nazismo e assim demonstrar a 24

relevância da História para vida humana prática, e nesse sentido foi a


Didática da História que melhor ofereceu o aporte para ligar o passado,
presente e futuro. 91

Subdisciplina da Ciência Histórica


A Didática da História já ocupou um lugar privilegiado na Ciência Histórica,
entretanto, o desenvolvimento desta última no século XIX acarretou a
expulsão desse campo relegando-o e deixando-o próximo à Pedagogia,
privilegiou-se a Metodologia da História em detrimento a Didática, mas
após a segunda metade do século XX, os alemães na tentativa de
encontrar respostas para problemas do seu passado recente, trouxe de
volta, ou melhor, atribuiu a Didática da História um lugar privilegiado e de
destaque junto a História.
O argumento que se deseja desenvolver comunga com Rafael
Saddi porque pretende apresentar a formulação estabelecida na
historiografia alemã dos anos 60 e 70 de que a Didática da História possui
um vínculo indissociável da Ciência Histórica.

91
SADDI, 2014, op. cit., p. 137.
Gostaríamos quanto a esta questão, de resgatar a tese
formulada na Alemanha em meados dos anos 70, segundo
a qual a Didática da História é uma “sub-disciplina da
Ciência Histórica” (Unterdisziplin der
Geschichtswissenchaft) ou ainda uma “disciplina-parte da
Ciência Histórica” (Teildisziplin der
92 25
Geschichtswissenschaft).

Ainda de acordo com Saddi a visão que permanece nos dias atuais
é contrária a que prevaleceu até o século XVIII,

de que a didática ocupava um papel central na formulação


de qualquer história. (...). Ensinava-se e escrevia-se a
história ‘a fim de que seus destinatários aprendessem
alguma coisa para a vida’. (...). Mesmo a noção de um
“Método” da história era tido como uma questão
didática”.93

Para fortalecer seu argumento Saddi faz menção do famoso artigo


do Koselleck “História Magistral Vitae”, no qual o historiógrafo Von
Raumer defende a impressão de papel moeda para sanar as dívidas do
governo prussiano:

Durante uma reunião, Oelsen, chefe de departamento no


Ministério das Finanças, defendia vivamente a impressão
de grande papel-moeda para pagar dívidas. Uma vez
esgotados os argumentos contrários, eu (conhecendo meu
homem) disse com demasiada ousadia. “Mas senhor
Conselheiro Privado, o senhor certamente se lembra que já

92
SADDI, Rafael. Didática da História como sub-disciplina da ciência histórica. História & Ensino,
Londrina, v. 16, n. 1, 2010, p. 66.
93
RÜSEN, 2007, p. 88 apud SADDI, 2010, op. cit., p. 67.
Tucídides falava do mal que sucedeu quando, em Atenas,
decidiu-se imprimir papel-moeda em grande quantidade”.
“Essa é uma experiência de grande importância”, ele
retrucou em tom conciliador, deixando-se assim convencer,
para manter a aparência de erudição. 94

26
De acordo com Saddi “parecia ser, segundo Koselleck, desde a
antiguidade clássica, quando servia-se da ‘história como coleção de
exemplos’ a fim de que fosse possível ‘instruir por meio dela’”. 95 Nesse
caso, essa mentira interessada deixa claro que o historiógrafo sabia os
efeitos que uma história tinha sobre o presente.
Essa situação mudou ao longo dos anos nos quais a História foi
compreendia como mestra da vida, “dotada de uma essência didática
fundamental, escrita para ensinar os homens do presente e do futuro”. 96
Foi a partir do final do século XVIII, que se esvaziou o velho topos, e
iniciava-se a ideia de que a História não ensinava mais pelos exemplos,
porque passou-se a acreditar que os modelos e padrões do passado só
serviriam para aquele período, não sendo possível ou válido para os dias
atuais.
O século XIX, considerado o período de consolidação das ciências,
processou de uma forma mais violenta “as barreiras que separavam a
História da vida prática”,97 tudo isso ocorreu por causa do processo de

94
KOSELLEK, 2006, p. 41 apud SADDI, Rafael. Didática da História como sub-disciplina da ciência
histórica. História & Ensino, Londrina, v. 16, n. 1, 2010, p. 67.
95
KOSELLEK, 2006, p. 43 apud SADDI, 2010, op. cit., p. 67. Ver também: SADDI, Rafael. Reflexões sobre o
campo de investigação da didática da história. In: SILVA, Maria da Conceição; MAGALHÃES, Sônia Maria
de. O ensino de História: aprendizagens, políticas públicas e materiais didáticos. Goiânia: Editora da PUC
Goiás, 2012, p. 84.
96
SADDI, 2010, op. cit., p. 68.
97
SADDI, 2010, op. cit., p. 69.
cientifização da História. Esse processo reduziu a Didática expulsando-a da
Ciência Histórica, no seu lugar ascendeu a metodologia da pesquisa
histórica.98 Conforme Saddi “*...+ a História deixou de responder às
necessidades práticas dos homens, perdendo a sua tarefa de ensino e
aprendizado, para se dirigir exclusivamente ao grupo de pesquisadores 27

especializados”. 99
Mas foi com a virada paradigmática dos anos de 60 e 70 que os
alemães começaram a questionar a separação entre a Didática da História
e a Ciência Histórica, tudo isso como já foi afirmado, deveu-se a crise de
legitimidade da História e do ensino de história. Nesse contexto a História
“precisava proporcionar à sociedade e aos homens que nela viviam ‘uma
identidade na mudança temporal e uma auto-compreensão orientadora
da ação dentro da sociedade’, mas estava abaixo destas tarefas”. 100
Porém, o caráter disciplinar da Didática da História não era
consensual na Alemanha. De um lado, era vista como subdisciplina da
Ciência Histórica e do outro, como subdisciplina das Ciências da
Educação.101 Foi a partir do final dos anos de 70 que essa primeira
compreensão passou a prevalecer e se tornar predominante entre os
alemães.102
De acordo com Saddi os historiadores Bergmann e Rüsen
demonstraram a fragilidade dessa concepção. Os que entendiam a

98
SADDI, 2010, op. cit., p. 69.
99
SADDI, 2010, op. cit., p. 70.
100
BERGMANN, 1998, p. 33, apud SADDI, Rafael. Didática da História como sub-disciplina da ciência
histórica. História & Ensino, Londrina, v. 16, n. 1, 2010, p. 71.
101
BERGMANN e RÜSEN, 1978, p. 07 apud SADDI, 2010, op. cit., p. 72.
102
SCHÖNEMANN, 2009; SÜSSMUTH, 1980 apud SADDI, 2010, op. cit., p. 72.
Didática como subdisciplina da Ciência Histórica eram tendenciosos “a ver
todos os problemas didáticos gerais do ensino e da aprendizagem da
História como resolvidos pela práxis da pesquisa histórica e da
especificidade científica da escrita da História”.103 Em contrapartida
também viam com desconfiança a Didática da História como subdisciplina 28

da Educação, porque os que assim procediam ignoravam completamente


a importância da Ciência Histórica nas situações que envolvem a vida
prática humana. 104
Para compreender a reinclusão da Didática da História na Ciência
Histórica Saddi afirma que é necessário considerar duas questões
fundamentais. A primeira é a Função Didática Básica da História, termo
cunhado por Jeismann em 1977, e segunda é a definição de que o objeto
central da Didática da História é a Consciência Histórica. 105
A expressão Função Didática Básica da História pode ser entendida
a partir da ideia de que “qualquer afirmação sobre o passado tem um
elemento didático inerente”. 106 Por isso,

toda História, metodicamente regulada (científica) ou não,


“nos diz alguma coisa”, ou “significa alguma coisa para
nós”, no presente. Isto porque uma afirmação sobre o
passado sempre conduz a “um processo de comunicação
atual de compreensão sobre o passado” e se submete a
uma “vontade de orientação presente”. 107

103
BERGMANN e RÜSEN 1978, p. 07 apud SADDI, 2010, op. cit., p. 72.
104
SADDI, 2010, op. cit., p. 73.
105
SADDI, 2010, op. cit., p. 74.
106
JEISMANN, 1977 apud SADDI, Rafael. Didática da História como sub-disciplina da ciência histórica.
História & Ensino, Londrina, v. 16, n. 1, 2010, p. 74.
107
SADDI, 2010, op. cit., p. 74.
Os elementos didáticos estão presente na própria composição da
produção pensamento histórico. Por isso Saddi defende que é preciso
entender a Didática da História a partir da função acima descrita, porque
“a Didática da História lida com a orientação produzida pelas histórias, e a 29

Ciência Histórica é uma forma específica de produção do pensamento


histórico, a Didática da História é uma disciplina inerente à Ciência
Histórica”.108
Portanto, de acordo com esse autor para desenvolver a Didática da
História como disciplina própria da Ciência Histórica deve-se incentivar
pesquisas que em primeiro lugar vão aprofundar e ampliar o campo do
ensino de história por meio da metodologia da Educação Histórica. Em
seguida deve-se reconhecer que o ensino escolar de história é apenas um
dos temas que fazem parte do objeto de investigação da Didática da
História. Acrescenta que por causa disso, não se deve reduzi-la ou tão
pouco desprezá-la como é habitual nas pesquisas em História. Nesse
sentido, “devemos incentivar pesquisas voltadas para uma análise das
ideias históricas produzidas por Igrejas, movimentos sociais, pelo Estado,
pela família, pelos meios de comunicação etc”. 109 Por último, ressalta que
se deve também reconhecer que as narrativas históricas realizadas de

108
SADDI, 2010, op. cit., p. 74-75.
109
SADDI, Rafael. Reflexões sobre o campo de investigação da didática da história. In: SILVA, Maria da
Conceição; MAGALHÃES, Sônia Maria de. O ensino de História: aprendizagens, políticas públicas e
materiais didáticos. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2012, p. 99.
uma forma empírica pelos indivíduos fazem parte de estudos que
pertencem ao campo da Didática da História. 110

A metateoria
Com a recolocação da Didática da História no interior da Ciência 30

Histórica a partir da virada paradigmática, ela superou o seu processo de


externalização e funcionalização. Deixando “de ser uma mera técnica de
transmissão do conhecimento e se tornava uma área da Ciência Histórica
produtora de conhecimento histórico”. 111 Nesse sentido, o professor
Rafael Saddi acredita que é necessário traçar um paralelo entre a Teoria
da História com a Didática da História para que haja um esclarecimento
dos aspectos que aproximam e que também afastam essas duas áreas
Ciência da História. 112
A Teoria da História é comumente entendida na historiografia
alemã como uma metateoria, porque representa uma reflexão teórica da
historiografia, isto é, uma análise teórica da teoria. 113 Neste sentido,

a teoria da história reflete teoricamente sobre a práxis


historiográfica, visando fundamentar racionalmente o
pensamento histórico. O objetivo da teoria da história,
enquanto meta-teoria, é prestar contas da cientificidade do
pensamento histórico.114

110
SADDI, Rafael. Didática da História como sub-disciplina da ciência histórica. História & Ensino,
Londrina, v. 16, n. 1, 2010, p. 74.
111
SADDI, Rafael. A Didática da História como meta-teoria. Anais Eletrônicos do IX Encontro Nacional
dos Pesquisadores de História. 18, 19 e 20 de abril de 2011 – Florianópolis/SC. Disponível em:
<http://abeh.org/trabalhos/GT07/tcompletorafael.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2013, p. 2.
112
SADDI, 2011, op. cit., p. 2.
113
RÜSEN, 2001 apud SADDI, 2011, op. cit., p. 3.
114
SADDI, 2011, op. cit., p. 3.
Seguindo os argumentos Saddi vai afirmar que a Didática da História
também é uma reflexão sobre a práxis historiográfica, porque ela visa
encontrar ou explicitar os pressupostos didáticos do fazer do historiador
com a intenção de que a Ciência da História torne isso aplicável ao 31

aprendizado histórico.

Sua função meta-teórica é a de encontrar, na práxis do


historiador, os elementos que tornam a Ciência Histórica
útil para o desenvolvimento de orientação temporal na
vida prática, ao mesmo tempo em que reconhece os
elementos com os quais a práxis do historiador se
especializa, se fragmenta, e desenvolve barreiras para
tornar as histórias narradas metodicamente um fator de
orientação cultural na vida prática. 115

Portanto, para esse autor Teoria e Didática da História se


aproximam enquanto autorreflexão da produção historiográfica, porém
elas se distanciam nesta mesma autorreflexão por buscarem questões
diferentes e relevantes para cada uma delas. Neste caso, “o objetivo da
Didática da História é analisar o modo como se dá os processos com os
quais os homens produzem uma interpretação do passado humano, que
orienta o presente e constitui projeções de futuro”. 116 Neste sentido é

115
SADDI, Rafael. A Didática da História como meta-teoria. Anais Eletrônicos do IX Encontro Nacional
dos Pesquisadores de História. 18, 19 e 20 de abril de 2011 – Florianópolis/SC. Disponível em:
<http://abeh.org/trabalhos/GT07/tcompletorafael.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2013, p. 4-5.
116
Esta reflexão está ancorada na teoria de Jörn Rüsen sobre o conceito de consciência histórica, no
qual os indivíduos para se situarem no tempo precisam constantemente interpretar o passado, com
intensão de compreender o presente para então projetar um futuro. Ver. RÜSEN, Jörn. Razão histórica -
Teoria da História: fundamentos da ciência histórica. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: UnB,
2001, p. 57-59.
tarefa da Didática da História a compreensão da consciência histórica em
todos os seus aspectos, porque é por meio dela que os indivíduos fazem
sua interpretação do tempo.

A Didática da História no Brasil 32

Além das reduções que foram apresentadas neste artigo, o


pesquisador Rafael Saddi garante que a influência da literatura alemã vem
contribuindo para mudar esse cenário e afirma que a partir da última
década podem ser percebidas até quatro ampliações desse campo. 117
Contudo, segundo Barbosa essa ampliações não tem implicações de uma
definição consensual de Didática da História no Brasil, e os motivos são
devidos a essa discussão ainda ser algo recente, mas que foram originadas
a partir da primeira publicação de Jörn Rüsen em 2001 do livro “Razão
histórica - Teoria da História: fundamentos da ciência histórica”.118
Em primeiro lugar a Didática da História “tem, paulatinamente,
deixado de ser compreendida como uma mera metodologia do ensino de
História”;119 gradativamente percebe-se que ela tem concentrado todas as
formas de História presente na vida humana, seja ela científica ou não.

117
SADDI, Rafael. Didática da História na Alemanha e no Brasil: considerações sobre o ambiente de
surgimento da neu geschichtsdidaktik na Alemanha e os desafios da nova didática da história no Brasil.
OPSIS, Catalão-GO, v. 14, n. 2, p. 133-147 - jul./dez., 2014, p. 141.
118
BARBOSA, Aline do Carmo Costa. Didática da História e EJA: investigações da consciência histórica de
alunos jovens e adultos. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Goiás, Goiânia,
2013, p. 34.
119
SADDI, Rafael. Didática da História na Alemanha e no Brasil: considerações sobre o ambiente de
surgimento da neu geschichtsdidaktik na Alemanha e os desafios da nova didática da história no Brasil.
OPSIS, Catalão-GO, v. 14, n. 2, p. 133-147 - jul./dez., 2014, p. 141.
Para o segundo momento, “e decorrente da primeira, ela deixa de
estar centrada exclusivamente no ensino escolar da história”; 120 aprende-
se história em todas as esferas da sociedade e não apenas na escola.
Pode-se aprender história com o cinema, com a política, com a mídia, com
a internet e todos os outros veículos do mass media. Nos últimos anos 33

tem-se feito um largo uso público da História, e essa forma não científica,
mas presente na vida humana prática também ensina.
Em terceiro lugar “ocorre um questionamento da separação entre
didática da história e ciência histórica”; 121 como já foi afirmado
anteriormente existe uma compreensão na atualidade de que a Didática
da história é uma subdisciplina da Ciência Histórica, vinculada a ela de
uma forma visceral.
Por fim, “a didática da história tem se fortalecido como uma
disciplina científica específica, com objeto e campo de investigação
próprio”;122 este último tem permitido o desenvolvimento de um campo
abrangente no Brasil, admitindo aos cursos de pós-graduação a aceitarem
trabalhos sobre o Ensino de História e também sobre a Consciência
Histórica, como é o caso da Universidade Estadual de Goiás, que em seu
mestrado e doutorado em História possui uma linha de investigação
destinada a abrigar pesquisas na área da Didática da História e também de
Educação Histórica. 123

120
SADDI, 2014, op. cit., p. 141.
121
SADDI, 2014, op. cit., p. 141.
122
SADDI, 2014, op. cit., p. 141.
123
Conforme Linha de Pesquisa 2 - Fronteiras, Interculturalidades e Ensino de História. “Seus campos:
estudos de educação histórica e ensino de história em perspectiva intercultural, produção e
aprendizado histórico, metodologias de ensino em história da arte e imagem, etnohistórias e
identidades, relações étnicorraciais e história ambiental”. In: PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
Apesar das mudanças e ampliações nesse campo no Brasil, os
principais pesquisadores dessa área ainda se deparam com algumas
indefinições. Segundo Saddi pode ser detectado três problemas com
relação às definições para a Didática da História. 124
A primeira imprecisão está relacionada ao conceito que define 34

caráter desse campo. De acordo com ele as pesquisadoras Schmidt e


Urban percebem a Didática da História “como uma disciplina escolar”, 125
já os pesquisadores Cerri, Cardoso e o próprio Saddi compreendem que
“ela vai além do espaço da escola para discutir a consciência histórica na
sociedade”.126 Na primeira definição encontra-se uma visão reduzida dos
avanços da Didática da História, pois como disciplina escolar ela não pode
ir além dos muros da escola para investigar a vida prática na sociedade. O
grupo de autores que se filiam ao segundo conceito consegue ter uma
visão mais ampla dessa área, porque ao caracterizá-la de uma forma mais
dilatada, permitem possibilidades de investigações que abrangem todas as
esferas da vida humana prática e a sua relação com a História.
A segunda indefinição se refere ao caráter disciplinar da Didática
da História. Cerri defini a Didática da História “como uma área
interdisciplinar entre a história e a educação”. 127 Porém, Cardoso e Saddi
“defendem a necessidade de pensarmos a didática da história como uma

HISTÓRIA – PPGH. Linhas de Pesquisas. Universidade Federal de Goiás. Disponível em:


<https://pos.historia.ufg.br/p/6715-linhas-de-pesquisa>. Acesso em: 05 abr. 2014.
124
SADDI, Rafael. Didática da História na Alemanha e no Brasil: considerações sobre o ambiente de
surgimento da neu geschichtsdidaktik na Alemanha e os desafios da nova didática da história no Brasil.
OPSIS, Catalão-GO, v. 14, n. 2, p. 133-147 - jul./dez., 2014, p. 141.
125
SCHMIDIDT, 2006; URBAN, 2009 apud SADDI, 2014, op. cit., p. 141.
126
CERRI, 2001; CARDOSO, 2008; SADDI, 2012 apud SADDI, 2014, op. cit., p 141.
127
CERRI, 2004 apud SADDI, 2014, op. cit., p. 141.
subdisciplina da ciência histórica, o que não implica em ignorar a
importante relação desta disciplina histórica com as outras ciências”. 128
Por fim, existe um impasse relacionado ao campo de investigação
dessa área. Para o pesquisador Oldimar Cardoso a Didática da História lida
com “todas as elaborações da história sem forma científica”. 129 Todavia, 35

Saddi não concorda com essa definição, porque a história científica ficaria
de fora desse conceito, o que para ele significa impossibilidade de
investigar também essa forma do pensamento histórico

As narrativas históricas produzidas no âmbito da ciência


histórica (história dos historiadores) também devem ser
objeto de reflexão da didática (função meta-teórica da
didática da história), pois, só assim, poderemos
compreender os pressupostos didáticos da própria ciência
histórica.130

Essa heterogeneidade na forma como se compreende a Didática da


História no Brasil, não afeta o seu desenvolvimento, pelo contrário, indica
a construção de “um caminho próprio na definição desta disciplina em
nosso país”.131 As influências sofridas pela literatura alemã nesse campo,
não significou mera transposição para a realidade brasileira, “mas deve
ser considerada como uma apropriação, que implica em uma
ressignificação a partir da inserção específica dos didáticos em nossa

128
CARDOSO, 2008; SADDI, 2010 apud SADDI, 2014, op. cit., p. 141.
129
CARDOSO, 2008, p. 158 apud SADDI, 2014, op. cit., p. 141.
130
SADDI, Rafael. Didática da História na Alemanha e no Brasil: considerações sobre o ambiente de
surgimento da neu geschichtsdidaktik na Alemanha e os desafios da nova didática da história no Brasil.
OPSIS, Catalão-GO, v. 14, n. 2, p. 133-147 - jul./dez., 2014, p. 141-142.
131
SADDI, 2014, op. cit., p. 142.
realidade”.132 A prova disso são os trabalhos desenvolvidos na
Universidade Federal do Paraná, na Universidade Estadual de Ponta
Grassa e na Universidade Estadual de Londrina onde os pensadores
alemães estão sendo dialogados com autores de outras nacionalidades,
como por exemplo, Paulo Freire, István Mészáros, e Raimundo Cuesta 36

Fernandez.
Sendo assim, a Didática da História precisa resolver os problemas de
carências de orientação temporal específicos do contexto brasileiro, da
mesma forma com que fizeram os didáticos dessa área na Alemanha com
o seu passado recente. Existem muitos problemas sociais no Brasil que são
de ordem histórica, negá-los ou evita-los não irá resolver as demandas das
novas gerações que buscam uma compreensão das realidades atuais na
perspectiva da relação existente entre passado, presente e futuro. Essa
lacuna só a Didática pode preencher.

Referências Bibliográficas

BARBOSA, Aline do Carmo Costa. Didática da História e EJA: investigações


da consciência histórica de alunos jovens e adultos. Dissertação (Mestrado
em História). Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2013.

132
SADDI, 2014, op. cit., 142-143.
BERGMANN, Klaus. A história na reflexão didática. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v.9, n.9, pp. 29-42, set.89/fev.90.

CAINELLI, Marlene Rosa; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Desafios teóricos e


epistemológicos na pesquisa em educação histórica. Antíteses, v. 5, n. 10,
p. 509-518, jul./dez. 2012.
37
CARDOSO, Oldimar. Para uma definição de Didática da História. Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 28, nº 55, p. 153-170, 2008.

CERRI, Luís Fernando. O historiador na reflexão didática. História &


Ensino, Londrina, v. 19, n. 1, p. 27-47, jan./jun. 2013.

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH. Linhas de


Pesquisas. Universidade Federal de Goiás. Disponível em:
<https://pos.historia.ufg.br/p/6715-linhas-de-pesquisa>. Acesso em: 05
abr. 2014.

RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a


partir do caso alemão. Práxis Educativa: Ponta Grossa. v. 01, n. 02, p. 07-
16, jul./dez., 2006.

SADDI, Rafael. A Didática da História como meta-teoria. Anais Eletrônicos


do IX Encontro Nacional dos Pesquisadores de História. 18, 19 e 20 de abril
de 2011 – Florianópolis/SC. Disponível em:
<http://abeh.org/trabalhos/GT07/tcompletorafael.pdf>. Acesso em: 05
abr. 2013.

SADDI, Rafael. Didática da História como sub-disciplina da ciência


histórica. História & Ensino, Londrina, v. 16, n. 1, p. 61-80, 2010.

SADDI, Rafael. Didática da História na Alemanha e no Brasil:


considerações sobre o ambiente de surgimento da neu geschichtsdidaktik
na Alemanha e os desafios da nova didática da história no Brasil. OPSIS,
Catalão-GO, v. 14, n. 2, p. 133-147 - jul./dez. 2014.
SADDI, Rafael. O parafuso da didática da história: o objeto de pesquisa e
o campo de investigação de uma didática da história ampliada. Acta
Scientiarum. Education: Maringá, v. 34, n. 2, p. 211-220, July-Dec., 2012.

SADDI, Rafael. Reflexões sobre o campo de investigação da didática da


história. In: SILVA, Maria da Conceição; MAGALHÃES, Sônia Maria de. O
ensino de História: aprendizagens, políticas públicas e materiais didáticos. 38
Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2012, p. 83-101.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos. Cultura histórica e


aprendizagem histórica. Revista NUPEM, Campo Mourão, v. 6, n. 10, p.
31-50, jan./jun. 2014.
HISTÓRIA, MEMÓRIA E ESQUECIMENTO:
A IMAGEM DO ÍNDIO NA HISTORIOGRAFIA
TRADICIONAL DO CEARÁ

Ana Alice Menescal1

Resumo: O Instituto do Ceará, fundado ao fim do século XIX, tinha o


propósito de inaugurar a História local através da investigação,
compilação, publicação e análise de documentos. A Revista do Instituto do
Ceará era a principal fonte de difusão da produção intelectual da
agremiação, entretanto, era de acesso restrito a uma pequena parcela da
população. A proposta deste artigo é discutir como a produção do
Instituto do Ceará contribuiu para a fundação da historiografia cearense
tradicional, analisando a abordagem dada aos povos indígenas do Ceará 1
nos trabalhos de autores de obras mais populares entre a sociedade do
início do século XX. Recorremos aos conceitos de história, memória e
esquecimento para analisar o que consideramos uma espécie de
esquecimento dos nativos, embora levemos em conta que não se tratou
necessariamente de um esquecimento proposital dos indígenas da região,
mas da elaboração de uma memória específica da época e da parcela da
população que a difundiu. O presente artigo é parte da tese de doutorado
intitulada “Indígenas e Intelectuais: a questão indígena no Instituto do
Ceará (1887-1938)”, desenvolvida junto ao curso de Doutoramento em
História e Cultura do Brasil da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa – Portugal.
Palavras-chave: Memória, Indígenas, Historiografia cearense.

1
Licenciada em História – UFC; Especialista em Estudos Clássicos – UFC; Mestra em Filosofia –
UECE; Doutoranda em História e Cultura do Brasil – UL
Abstract: The Institute of Ceara, founded at the end of the 19 th century,
aimed to establish the local history through the investigation, gathering,
publication and analysis of a huge collection of official documents. The
Ceara Institute Journal was the main source of dissemination of its
intellectual production; however, it was restricted to a small portion of the
local population. The purpose of this article is to discuss how this
intellectual production of the Ceara Institute contributed to the
establishment of its traditional historiography, analyzing the approach
2
given to the indigenous people presented in the most popular works
produced by the authors linked to this institute. It was used the concepts
of History, Memory and Oblivion to analyze what it is considered a kind of
native oblivion; although at the same time it was took into account that
this was not necessarily an intentional positioning but part of the
development of an specific memory of that time and of an specific portion
of the population responsible by its diffusion. The present article is part of
the doctoral thesis which title is “Indigenous and Intellectuals: the
indigenous issue in the Institute of Ceará (1887 – 1938)” held in the
History and Culture of Brazil PhD Course belonging to the Faculty Arts of
the University of Lisbon – Portugal.
Keywords: Memory, indigenous, historiography of Ceara.
Os institutos históricos brasileiros, desde a fundação, tinham o intuito
claro de edificar a identidade nacional, partindo da construção da história
oficial que levasse o indivíduo a sentir-se membro de um grupo social mais
amplo e a identificar-se com a história local. Portanto, essas academias
eram, desde sua criação, moradas não apenas da história, mas também da
memória e do esquecimento da sociedade na qual estavam inseridas.

Compreendendo conceitos
Para Halbwachs a memória do indivíduo não é apenas dele, pois não
é possível compreender o homem desvinculando-o da sociedade. Deste
modo, para ele a memória seria um fato social (HALBWACHS, 2006, p. 43).
Na sua perspectiva a memória do indivíduo corresponderia à soma 3
aleatória das diversas memórias coletivas dos grupos com os quais o
indivíduo se relaciona.
O pensamento de Halbwachs parece mesmo ganhar eco nas ideias
defendidas por Paul Ricoeur que anotou ser “a partir de uma análise sutil
da experiência individual de pertencer a um grupo, e na base do ensino
recebido dos outros, que a memória individual toma posse de si mesma”
(RICOEUR, 2007, p. 130).
Marc Bloch, por seu turno, refletindo sobre a memória coletiva
definida por Halbwachs, entende que ela corresponde aos fatos da
comunicação entre indivíduos, sendo sustentada pela transmissão de
representações. Assim, para que a memória de um grupo social exista
para além da duração da vida humana “é também necessário que os
membros mais velhos cuidem de transmitir essas representações aos mais
jovens” (BLOCH, 1998, p. 229).
Para Marc Bloch, a história não pode se sustentar na imobilidade.
Da mesma forma que a memória, ela também é fruto da intervenção do
homem e da sociedade. Deste modo, as relações entre passado e presente
são bastante sutis e a história não pode ser vista como limitada ao
passado e distanciada do presente. A história, assim como a memória, é
fruto do presente, pois o ponto de partida de ambas está no presente, no
homem presente e na sociedade presente (BLOCH, 2001).
As críticas de Bloch à noção de memória coletiva elaborada por
Maurice Halbwachs influenciou uma nova geração de pensadores da
História fermentando a massa das ideias e alimentando novas 4
perspectivas. Segundo Pollak, por exemplo, é preciso entender a
existência de tentativa de dominação e solidificação da memória coletiva,
como também há a necessidade de perceber quem intervém nesse
processo. Outro aspecto importante, para Pollak, é a percepção das
chamadas memórias subterrâneas, aquelas memórias que resistem em
paralelo à memória coletiva nacional e que promovem uma resistência
silenciosa até o momento em que afloraram, saindo do seu estado de
latência.
É preciso ainda compreender onde se encontra a fronteira entre
história e memória. Para Ulpiano T. Bezerra de Meneses

A memória, como construção social, é formação de


imagem necessária para os processos de construção e
reforço da identidade individual, coletiva e nacional.
Não se confunde com a História, que é forma
intelectual de conhecimento, operação cognitiva. A
memória, ao invés, é operação ideológica, processo
psico-social de representação de si próprio, que
reorganiza simbolicamente o universo das pessoas,
das coisas, imagens e relações, pelas legitimações que
produz. A memória fornece quadros de orientação, de
assimilação do novo, códigos para classificação e para
o intercâmbio social. (MENESES, 1992, p. 22)

Entendendo a subdivisão da memória em três categorias: individual,


coletiva e nacional. Levando-se em consideração que a individual só
interessa às ciências sociais quando há interação entre dois ou mais
indivíduos, cabem-nos aqui as outras duas.
5
A memória coletiva, sustentada pela interrelação de grupos sociais,
busca assegurar coesão e solidariedade dentro dos grupos, mas não é
espontânea e precisa ser reavivada sempre para manter-se ativa.
A memória nacional é de ordem ideológica e tem a finalidade
específica de formular, desenvolver e manter a identidade nacional por
isso não é raro estar associada à atuação das camadas dominantes e de
seus interesses para a manutenção da ordem.
É preciso, por fim, entender a memória como objeto da História,
posto que esta tem caráter crítico (História-problema) e não o caráter
narrativo de outros tempos (História-narração). Lembramos, entretanto,
que a atuação dos intelectuais do Instituto do Ceará durante o século XIX
e início do XX é caracterizado pela História-narrativa, o que justifica muito
dos critérios utilizados para fundação da historiografia cearense
decorrente dos estudos dos agremiados da referida academia.
Marc Augé, a relação entre Memória e Esquecimento é semelhante
à da vida e da morte, uma vez que o conceito de uma só se define pelo da
outra (AUGÉ, 2001). Portanto, o Esquecimento não é menor que a
Memória, aliás, para ele “fazer um elogio ao esquecimento não é
vilipendiar a memória, e ainda menos ignorar a recordação, mas
reconhecer o trabalho do esquecimento na primeira e assinalar a sua
presença na segunda” (AUGÉ, 2001, p. 19).

Instituto do Ceará, memória e esquecimento dos povos nativos


Partindo do vínculo orientador da historiografia produzida pelos 6
Institutos Históricos ― História, Memória e Esquecimento ―,
concernentes aos povos nativos do Ceará, tenhamos em conta a
construção de sua imagem pelo Instituto do Ceará e como esta
determinou o entendimento da sociedade cearense quanto aos primeiros
habitantes do território.
Quando “desapareceram” os povos indígenas do Ceará? Trataremos
da ideia de um desaparecimento ideológico, de uma historiografia que de
modo seletivo determinou a memória coletiva sobre os indígenas no
Ceará.
É possível, apesar de considerarmos improvável, que não existisse
intencionalidade na manipulação de ideias e que esta fosse simples
consequência da formação dos próprios intelectuais do Instituto, no
entanto, a conjuntura sociopolítica e econômica do Ceará apontava para
outros caminhos. A visibilidade do Ceará diante da capital do Império não
era satisfatória, por nenhum ponto de vista. Vejamos então: a província
localizada na região norte ficava muito distante dos grandes centros da
nação; suas terras não despertavam grande interesse, não havendo
nenhum aspecto físico, social ou econômico que desse relevo ao lugar;
portanto, era conveniente para a elite local encontrar meios de inserir o
Ceará na história do Brasil, abrindo brechas para destacar a província
diante do restante do império. Deste modo, acreditamos que a
intelectualidade cearense tenha encontrado os meios a partir de sua
produção, ou seja, aspectos da cultura letrada teriam o potencial
necessário para realizar os anseios de parte da sociedade cearense.
Assim, a história produzida pelo Instituto Histórico cearense criou 7
uma imagem da população do Ceará e para a população do Ceará. E o
recurso associado ao estabelecimento da memória foi o esquecimento.
O esquecimento – voluntário ou involuntário - determina os
caminhos da memória e da identidade coletiva de um grupo social e neste
sentido a produção histórica pode vir a ser compreendida como um
importante instrumento de poder, manipulando dados e fatos de tal
modo a provocar alterações muitas vezes difíceis de serem contornadas
(Cf. LE GOFF, 1996).
Sendo as agremiações de intelectuais lugares tanto de história,
quanto de memória e esquecimento, para os letrados do Instituto do
Ceará, bem como para qualquer outro grupo social detentor de algum tipo
de poder sobre a sociedade em geral, o controle da memória e do
esquecimento são de suma importância para a afirmação social-
comunitária.
Portanto, a manipulação da história, da memória e do
esquecimento possivelmente promovidos pela elite letrada do Instituto do
Ceará, demonstra o intuito de suprimir da história local aquele elemento
que acreditavam pesar negativamente sobre sua trajetória histórica
pertinente ao estado. Desse modo, teriam, os intelectuais cearenses,
promovido um retraimento da memória referente à população local,
buscando, de tal sorte, a repercussão além-fronteiras e o
engrandecimento da província do Norte? Talvez tenham apenas atuado na
edificação de um tipo específico de memória, decorrente do próprio
contexto histórico e da memória coletiva do grupo social que 8
compunham. Surge, então, a pergunta: por que a historiografia construída
pelos letrados do Instituto do Ceará atingiria tão definitivamente o
entendimento da sociedade local sobre os povos indígenas da região?
Para elucidar esta questão consideremos com Fernando Catroga o
seguinte:
O sujeito, mesmo antes de ser um eu, já está, a um
certo nível, imerso na placenta de uma memória que o
socializa e à luz da qual ele irá definir, quer a sua
estratégia de vida, quer os seus sentimentos de
pertença e adesão ao coletivo. (CATROGA, 2009, p. 13)

É, pois, a experiência em sociedade que determina a identidade, o


sentimento de pertença a um grupo, como consequência da memória
coletiva estabelecida. E foi essa a importância da atuação dos intelectuais
do Ceará, já que a identidade do homem cearense esteve, no final do
século XIX e início do século XX, intimamente ligada ao entendimento
social, político e científico difundido na produção das agremiações de
estudiosos, com especial destaque para o Instituto do Ceará. Entretanto,
mesmo compreendendo as questões relacionadas ao senso de
coletividade do homem, pensar unicamente a memória coletiva seria
extrair dele mesmo a condição que o distingue: a da subjetividade. É a
subjetividade que permite ao homem destacar-se na multidão, tornando-
o único em seu grupo social.
E, se é da junção das diversas memórias que se constrói a
identidade coletiva, bem como a ipseidade, naturalmente ambas serão
originadas também do esquecimento. Afinal, memória e esquecimento 9
estão lado a lado na conformação da história de toda a humanidade,
determinando escolhas, caminhos, ideologias, etc. Para Catroga, as duas
se exigem reciprocamente (Cf. CATROGA, 2009). O esquecimento termina
por fazer parte, de certa forma, da memória, pois, como definiu Fernando
Catroga, “ele é a presença, no espírito do homem, de uma coisa ausente,
ou melhor, é a presença da ausência” (CATROGA, 2009, p. 16). Portanto, a
toda memória atrela-se um esquecimento, pois memória e esquecimento
são escolhas, algumas vezes inconscientes, outras não.
Quando nos referimos à atuação dos Institutos no fim do século XIX
e início do XX, bem como à memória e o esquecimento vinculados a eles,
isto é, à fundação da História e de sua escrita, é porque são evidentes
alguns aspectos determinantes para a compreensão político-ideológica
dos intelectuais e da história oficial fundada em benefício de “sociedades
imaginárias” criadas a partir do desejo positivo de evolução,
desenvolvimento e destaque intelectual. Destarte, na construção da
memória e do esquecimento fundadores da identidade cearense
encontram-se mescladas história e ficção, sendo as marcas do tempo
bastante claras, pois os intelectuais buscavam fundar a história de modo a
ressaltar características positivas dos grupos sociais retratados. Esse
entendimento da construção da memória e do esquecimento é
semelhante à definição daquele paradigma a que Paolo Rossi chamou
artista da memória, sendo este “o intérprete da realidade do universo e
do seu destino, o possuidor da ‘chave universal’ que está escondida e
assim deve permanecer para os mortais comuns” (ROSSI, 2010, p. 18).
Aqui se evidencia a questão do poder de quem determina a 10
memória e o esquecimento acerca de algo, pois o artista da memória
limita ou expande o acesso ao conhecimento. É por isso que quem
primeiro domina o saber terá em suas mãos o poder de transformar,
conduzir, fundar. E esta termina por ser uma das formas de surgimento
das identidades coletivas, pois a memória e o esquecimento ganham
enorme força na dinâmica da sociedade que de conhecimento externo
torna-se inconsciente coletivo. Daí provém a imagem construída dos
povos nativos do Ceará, pela qual a população “recebe” da elite letrada
informações marcadas ideologicamente, seguindo as tendências
intelectuais da época e o desejo da sociedade provincial de aparentar
desenvolvimento e modernidade, chegando as ideias a se arraigarem de
tal forma que ganharam a condição de inconsciente coletivo. Portanto,
aquilo que foi difundido por um pequeno grupo ganhou ares de verdade
histórica.
Essa pretensa verdade teve por consequência o desaparecimento,
melhor dizendo, o apagamento ideológico de um importante elemento
cultural da sociedade cearense. As consequências da memória e do
esquecimento no caso dos nativos do território cearense se fazem sentir
na percepção/compreensão de como é o espectro da sociedade local e
não identificamos melhor forma de atingir esse entendimento que através
da historiografia cearense. Afinal, a produção historiográfica nos
possibilita observar o alcance das escolhas e construções ideológicas de
uma sociedade. Então, neste caso, por ela chegamos a um possível
diagnóstico da idealização da sociedade cearense sobre si mesma. 11

A historiografia cearense tradicional


Na historiografia cearense estabelecemos uma divisão minimalista
distinguindo o que podemos chamar de produção historiográfica
tradicional, onde encontramos os autores mais antigos a tratar de temas
cearenses. Muitos dos referidos autores eram profundamente ligados ao
Instituto do Ceará e seguidores de um modelo positivo de história, que
difere da historiografia mais recente, produto das instituições de ensino
superior instaladas no Ceará. As diferenças consistem fundamentalmente
na abordagem feita dos povos nativos, na qual temos o distanciamento, a
extinção ou assimilação dos nativos de um lado; e do outro uma
diversidade de pensamento e uma consciência mais apurada da influência
étnica e, com o passar dos anos um amadurecimento de pesquisas,
estudos, e também da resistência dos povos indígenas no Ceará.
Raimundo Batista Aragão publicou sua História do Ceará, dividida
em cinco volumes, cujo intuito parece ao mesmo tempo da singeleza de
um compêndio para o público estudantil e da profundidade de arrogar
para si a condição de quem preencheu as lacunas da História do Ceará.
Dos volumes publicados por Batista Aragão utilizaremos apenas o
primeiro.
No capítulo oitavo, cujo título é “Resistência Indígena ao
Povoamento do Ceará”, ao referir-se à opressão branca e à redução
indígena em aldeamentos, a opinião de Batista Aragão demonstra clareza
do abuso de poder do invasor branco, entretanto, tende à ideia de 12
extinção por assimilação. Portanto, mesmo reconhecendo as medidas
abusivas e o direito dos indígenas de se oporem à disciplina imposta pelo
colonizador, justificadas pelo interesse de posse territorial por parte do
invasor, o autor compreende como extintos os povos que, de uma forma
ou de outra, se relacionaram e assimilaram a lógica de trabalho e de
convívio social do homem branco (ARAGÃO, s/d, p. 134).
Deste modo, permanece o suposto de estagnação na experiência
sociocultural do indígena, sendo a outra alternativa a extinção por
assimilação com estabelecimento de contato e aceite do modo de vida do
civilizado, enquanto para o invasor há a ideia de progresso e de evolução
sociocultural (Cf. ARAGÃO, s/d, p. 186).
No capítulo XIII o autor observa quanto à miscigenação e seus
benefícios para o homem cearense, afirmando:
O elemento humano, formado no caldo étnico do
posseiro adventício e do aborígene citadino, oferece
como resultado uma autoctonia imbatível. Nasce o
mestiço e esponta o “cabra”, aquele em miscigenação
de procedências alienígenas e este gerando uma casta
que posteriormente terá desempenho rude na vida
sertaneja. (ARAGÃO, s/d, p. 253)

Portanto, Batista Aragão atribui a fortaleza do cearense à


mestiçagem, que foi igualmente, na historiografia antecedente, tanto vilã,
quanto heroína. Se teve sentido absolutamente pejorativo anteriormente,
com a manipulação de ideias necessárias à construção de uma imagem de
força e valentia para o homem local (dois atributos responsáveis pela
13
resistência às adversidades da natureza), as impressões atribuídas à
mestiçagem ganham destaque com a valorização de características
supostamente atreladas a ela, como é o caso da força e da resistência do
mestiço cearense.
Em 1931, Cruz Filho publicou Historia do Ceará - resumo didactico.
Escrevendo sobre a história local, Cruz Filho demonstra cuidado em
estabelecer uma ligação entre esta e a história do Brasil, a demonstrar sua
percepção de que o Ceará, mesmo com suas peculiaridades, faz parte de
uma nação; portanto, há em sua escrita a questão da identidade, do
sentimento de pertença ao Ceará e ao Brasil. No que respeita aos povos
nativos, encontramos algumas passagens bastante condizentes com a
postura adotada pelos autores responsáveis pela historiografia cearense
desde o princípio, no século XIX, até o terceiro quartel do século XX. Logo
no início do capítulo III, intitulado “As Tribus selvagens do Ceará”, Cruz
Filho faz referência à extinção dos índios cariri, quando afirma que estes
“parecem extinctos inteiramente no Brasil, habitavam a vasta região
localizada entre os rios Paraguassú, na Bahia, e Itapicurú, no Maranhão.
Parece que sómente os Tremembés, pertencentes á nação Cariry,
habitavam as praias cearenses. (CRUZ FILHO, 1931, p. 30)
No capítulo IV, “Ethnographia Indigena”, faz referência aos índios
atribuindo-lhes uma parte da responsabilidade pelo caldeamento da
população cearense (Cf. CRUZ FILHO, 1931). Abordando a questão da
miscigenação e associando-a também à extinção dos selvagens, Cruz Filho
perpetua o apagamento dos indígenas da historiografia cearense.
N’A Pequena História do Ceará, de Raimundo Girão, o autor 14
comenta o indispensável e, portanto, os povos nativos ficam “confinados”
nos capítulos iniciais, com pouca ou nenhuma referência direta à
miscigenação e à contribuição destes na formação do homem cearense.
Raimundo Girão parece sugerir nas entrelinhas que os povos nativos
ficaram no alvorecer da história do Ceará, daí não dispensar a esta parcela
fundadora da identidade cearense mais do que um papel de relativa
importância na fase colonial pretérita.
Carlos Studart Filho também escreveu sobre os nativos em suas
Páginas de História e Pré-História, livro este publicado pelo Instituto do
Ceará. Deste, pouco ou nada escapa a respeito dos indígenas que fizeram
parte do passado cearense. É oportuno lembrar que a obra é de Studart
Filho que defende a tese da extinção indígena decretada em 1861. É de
fato inegável a contribuição de Studart Filho para a historiografia
cearense, especialmente no respeitante aos estudos sobre os povos
nativos, entretanto, este não faz alusão à presença de índios no Ceará dos
séculos XIX e princípio do XX, período de atuação mais forte do Instituto
do Ceará. Parece mesmo reinar a ideia da extinção ou assimilação dos
nativos pelo restante da sociedade.
Carlos Studart Filho refere-se à assimilação em, pelo menos, dois
trechos da obra em questão. Num primeiro momento, tratando do fim da
guerra dos bárbaros (Cf. STUDART FILHO, 1966, p. 116) e, adiante,
referindo-se aos nativos após o término da rebelião de 1713, Dr. Studart
Filho sentencia: “estava para sempre morto o sentimento de altivez e
rebeldia do nativo cearense. Encerrara-se a fase heróica da resistência
armada dos filhos da terra aos invasores brancos” (STUDART FILHO, 1966, 15
p. 133). Portanto, o estudioso defende a assimilação dos indígenas,
primeiro com as missões e aldeamentos, depois com a aceitação, tomada
para si, da cultura da sociedade civilizada.

A herança da historiografia tradicional do Ceará


Há outros nomes dessa chamada historiografia cearense tradicional,
entretanto, acreditamos que os nomes citados já nos dão uma boa ideia
de quem é o homem cearense cuja imagem foi construída pelos
intelectuais que alicerçaram a História do Ceará. Um homem miscigenado,
porém sem traços que denigram sua imagem de civilizado. Os nativos?
Segundo a história fundada, principalmente pelos associados do Instituto
do Ceará, iniciada no século XIX e mantida pelos letrados que os
sucederam e conservaram a maior parte do pensamento oitocentista, os
indígenas do território ficaram para trás. Foram extintos por lutarem
contra a ordem imposta pelo homem civilizado, ou seja, dizimados; ou
foram assimilados pela sociedade dita civilizada, ao seguirem as regras
desta, quer dizer, tidos por extintos porque assimilados. Enfim, a
historiografia disponível, desde o século XIX até o último quartel do século
XX, confirma a extinção decretada em 1861. Assim, desde 1861 se constrói
o sentimento de pertença do homem do Ceará, mas trata-se de uma
autoidentificação desprendida de um dos elementos mais importantes do
ponto de vista cultural e étnico: o nativo.

Bibliografia
ARAGÃO, Raimundo Batista. História do Ceará. Fortaleza: Imprensa Oficial, 16
s/d.
ARARIPE, Tristão de Alencar. História da província do Ceará: desde os
tempos primitivos até 1850. Fortaleza: Edições Fundação Demócrito
Rocha, 2002. (Coleção clássicos cearenses; 5).
AUGÉ, Marc. As Formas do Esquecimento. Almada: Íman Edições, 2001.
BLOCH, Marc. Memória coletiva, tradição e costume: a propósito de um
livro recente. In: BLOCH, Marc. História e Historiadores: textos reunidos
por Étienne Bloch. Lisboa: Editorial Teorema, 1998.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças dos velhos. São Paulo: T.
A. Queiroz, 1971.
CATROGA, Fernando. Os passos do homem como restolho do tempo:
memória e fim do fim da história. Coimbra: Edições Almedina, 2009.
CRUZ FILHO. Historia do Ceará - resumo didactico. São Paulo: Comp.
Melhoramentos de S. Paulo, 1931.
GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. Fortaleza: Editora A. Batista
Fontenele, 1953.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4. ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 1996.
LE GOFF, Jacques (dir.). A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A História, cativa da Memória? Para um
mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Rev. Inst. Est.
Bras., São Paulo, nº 34,pp. 9-24.
NORA, Pierre. Mémoire Collective. In: LE GOFF, Jacques (org.). La Nouvelle
Histoire. Paris: CEPFL, 1978.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos.
Volume 2, número 3. Rio de Janeiro: CPDOC, 1989, pp. 3-15.
RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Editora
Unicamp, 2007.
RICOEUR, Paul. Interpretações e Ideologias. Rio de Janeiro: F. Alves, 1990
RICOEUR, Paul. Entre mémoire et histoire. In Projet. Paris: numéro 248,
1996.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Papirus, 1997, t. 3.
STUDART FILHO, Carlos. Páginas de História e Pré-História. Fortaleza:
17
Editora “Instituto do Ceará”, 1966.
CASAMENTO POR AMOR: UMA ANÁLISE DA OBRA
‘ORGULHO E PRECONCEITO’ DE JANE AUSTEN
Morgana Lourenço
1

Resumo: O tema casamento é um assunto de grande importância na obra de Jane Austen,


pois esse era também um assunto importante na sociedade em que ela vivia. O
casamento, o amor, e o dinheiro eram coisas que preocupavam as mulheres da sociedade
inglesa dos séculos XVIII e XIX. O amor também era algo que se apresentava em alguns
romances da época, e que faziam moças em idade de se casar sonhar com ele. O
problema é que nem sempre era possível unir essas duas coisas, amor e casamento, pois a
condição social em que as mulheres se encontravam acabavam quase por definir o seu
futuro fazendo-as se casar apenas para ter uma segurança financeira no futuro.

Palavras-chave: Amor; Casamento; Jane Austen; mulheres.

Abstract: The marriage is a subject of great importance in the Jane Austen's work,
because this was an important matter in the society at that time. The marriage, the love
and the money were things that worried the women of British society in the 18th and 19th
centuries. The love also was something presented on the novels at that time, whatever led
young womem in age enough to get married in order to dream of it. The problem is just
not always was possible to unite these things, love and marriage, because the social
condition that the women were nearly always decided their future, making them marry
only to have some financial security in the future.

Key words: Love; Marriage; Jane Austen; Women.


INTRODUÇÃO

Em sua obra ‘Orgulho e Preconceito’ (1813), Jane Austen discute a


importância que o casamento tem na vida das mulheres de sua sociedade,
2
especialmente o casamento por amor. Dessa forma teremos por objetivo
analisar através da sua obra as dificuldades que as moças encontravam para
conseguir um ‘bom casamento’, principalmente as que não eram tão
prendadas e de baixo dote, pois era lhes imposto que o casamento deveria
ser sua única opção, caso não quisessem permanecer solteiras e
dependentes de pais e irmãos. Devemos ressaltar que para a época um bom
casamento era aquele que não tinha dificuldades financeiras, dessa forma
como veremos ao longo deste trabalho, os filhos de famílias ricas é que
sofriam mais pressões para se casar com quem seus pais quisessem, mesmo
sendo na Inglaterra o casamento uma escolha livre, tanto para homens
quanto para as mulheres.
Do mesmo modo analisaremos a dificuldade da heroína Elizabeth
Bennet que esperava se casar por amor, mas sofreu preconceito por não ser
tão prendada quanto se esperava que ela fosse. Além de finalizarmos nossa
discussão sobre como Jane Austen pensava no amor e no casamento e
demonstrava isso através de suas heroínas. O período qual analisaremos será
o século XVIII e início do XIX. Sempre fazendo uma ponte entre o literário e o
real, teremos como referência a sociedade da Inglaterra para realizar essa
análise, pois é a sociedade em que Jane Austen viveu.
Casamento: uma segurança financeira e social

“Existe algum homem que não protestaria contra a


fraqueza de fazer uma segunda proposta à mesma
3
mulher?” (AUSTEN, 2010, p. 420).

Jane Austen nos apresenta uma personagem que se comportava


totalmente diferente do modo que a sociedade da época esperava, sua
heroína é Elizabeth Bennet, a segunda filha do casal Bennet. Jane Austen
criou essa personagem com uma inteligência e espiritualidade incomum em
qualquer outro de seus personagens. Decidida a se casar por amor, ela
recusa dois pedidos de casamentos, sendo o primeiro de seu primo clérigo sr.
Collins que procura uma boa esposa para lhe ajudar na paróquia. Quando
Elizabeth o recusa ele insiste de todas as maneiras para convencê-la a
aceitar, até mesmo diz que dificilmente ela receberia algum dia outro pedido
de casamento já que seu dote é muito pequeno. Elizabeth se mantém firme e
o recusa de todas as formas. Sua mãe fica desesperada com o ato da filha por
quem chama de Lizzy como podemos ver nas suas palavras: “Mas eu lhe digo,
srta. Lizzy: se você decidir recusar assim toda proposta de casamento, nunca
conseguirá arrumar marido; e não sei quem sustentará você quando seu pai
morrer.” (AUSTEN, 2012, p. 153). A preocupação da sra. Bennet com relação
a quem sustentaria a filha quando seu marido morresse é notada em sua
fala, pois a propriedade dos Bennet estava ligada ao morgadio e passaria
direto para o sr. Collins quando o sr. Bennet morresse. Jane Austen através
de Elizabeth faz uma critica a sociedade que impunha às mulheres o
casamento como finalidade única e honrável, dessa forma sua heroína está
decidida a não se casar com ninguém, a não ser que tenha amor por essa
4
pessoa. Elizabeth não é como os outros personagens que colocam toda sua
felicidade no casamento, por esse motivo ela acredita que mesmo solteira
poderá ser feliz, caso contrário ela teria aceitado o sr. Collins no primeiro
momento e deixaria que com o tempo a felicidade chegasse no seu
casamento.
Na Inglaterra, no período que Jane Austen escreveu os pais não
poderiam obrigar seus filhos a se casarem contra a sua vontade, por isso que
a sra. Bennet ficou preocupada já que não poderia forçar a filha a se casar. O
autor Macfarlane (1990) informa que apesar dos filhos serem livres na
escolha de com quem casariam, às vezes eles poderiam sofrer pressões por
parte dos pais. Um fazendeiro rico certamente gostaria que seu filho se
casasse com uma moça rica para que aumentassem a sua fortuna, pois havia
um grande interesse em uma propriedade e não necessariamente na
felicidade do filho, mas se o filho em questão não aceitasse se casar com a
moça que seu pai escolheu ele poderia ser deserdado, já uma moça que
recusasse a se casar com o homem escolhido por seu pai poderia perder o
dote. O autor nos informa ainda, que os casamentos forçados acabavam
quase sempre em conflitos e ciúmes, pois os pais juntavam duas pessoas à
força sem respeitar suas vontades apenas pensando em uma fortuna. Quanto
mais alta a classe social, mais pressão os filhos sofriam, com exceção
daqueles filhos cujos pais já haviam falecido e poderiam casar com quem
quisessem. Macfarlane (1990) mostra que as camadas mais pobres da
sociedade é que faziam casamentos felizes, pois não havia interesses
5
econômicos, só amorosos. Muitas pessoas são cativadas pelas obras de Jane
Austen pelo motivo de que os seus personagens são livres para escolher com
quem se casar assim como era na Inglaterra do seu tempo, e isso torna os
seus romances muito mais interessantes. Segundo a autora Kantor (2013):

Nos romances de Jane Austen, são as próprias heroínas


que fazem suas escolhas, não seus pais ou guardiões. Ela
nos mostra a maneira mais agradável já inventada de
arranjar casamentos: apaixonando-se pelo homem certo,
na hora certa, do jeito certo. (KANTOR, 2013, p. 21).

Ao recusar o sr. Collins, Elizabeth estava decidida a só se casar com


alguém que amasse. Diferentemente dela, sua amiga Charlotte Lucas não
pensava dessa maneira, pois já estava com vinte e sete anos e se esperasse
alguns anos a mais, dificilmente conseguiria arranjar casamento, além do
que, ela não era considerada bonita e nem possuía um dote grande, dessa
maneira como informa a autora Biguelini (2009), o medo de se tornar um
peso para os pais afastou de Charlotte qualquer pensamento romântico
sobre casamento. Enquanto Elizabeth pensava que um homem e uma mulher
devem levar muito tempo até se conhecerem para depois decidirem se casar,
Charlotte acreditava que depois de casados é que poderiam se conhecer de
verdade. Ao analisar o que Macfarlane (1990) escreve, podemos notar que
Charlotte estava indo no caminho errado, pois um manual do século XVII
como informa o autor, dizia que a escolha de um parceiro exigia uma
observação bastante cuidadosa, sendo que o seu futuro pretendente deveria
6
ser observado comendo, conversando, trabalhando, rindo e até quando se
chateasse com algo. Charlotte diz a Elizabeth que o melhor é uma mulher
prender a atenção de um homem e que só depois poderá ter tempo para se
apaixonar já que pouco importava conhecer bem os modos de ser de um ou
de outro e era preferível conhecer o menos possível dos defeitos de uma
pessoa com quem se passaria o resto da vida. Elizabeth responde que o plano
de sua amiga é bom e até o aplicaria, mas só se estivesse procurando um
marido rico, pois para ela fazer observações sobre o futuro pretendente é a
melhor forma de conhecer sobre o seu caráter. Essa visão de Charlotte vai
levá-la a aceitar o primeiro pedido de casamento que alguém lhe fizer, pois
tinha medo de se tornar uma solteirona dependente de pais e irmãos e isso
era algo ruim na sua opinião. Segundo a autora Sousa (2012) Jane Austen
tinha certa preocupação com a visão que as mulheres tinham sobre o
casamento já que para elas esse era o único caminho honrado. O medo de se
tornar uma solteirona fazia com que as mulheres se arriscassem em um
casamento sem ao menos saber se seriam felizes. Se Charlotte optasse por
permanecer solteira ela fugiria do papel que lhe havia sido imposto, o de
esposa e mãe. Segundo a autora Biguelini (2009) mesmo se uma mulher
escolhesse ficar solteira ela não seria excluída da sociedade, pois no período
de Jane Austen muitas mulheres escolheram não se casar como a própria
escritora em questão.
A felicidade matrimonial para Charlotte era algo de pura sorte e para
ela não importava conhecer bem a pessoa antes de se casar. Dessa forma ela
7
aceitou o pedido de casamento do sr. Collins um homem que era presunçoso
e idiota na visão de Elizabeth. Mas ela só o aceitou para ter um futuro
seguro, Jane Austen nos mostra a visão que Charlotte tinha sobre casamento:

Sem ter em alta conta nem os homens nem o


matrimônio, o casamento sempre fora o seu objetivo; era
o único futuro para uma moça bem-educada, de pequena
fortuna, e, ainda que não fosse certo que trouxesse a
felicidade, devia ser a mais agradável proteção contra a
necessidade. Ela conseguira essa proteção; e aos vinte e
sete anos de idade, sem nunca ter sido bonita, percebia
quanta sorte tivera. (AUSTEN, 2012, p. 165).

Quando Charlotte finalmente se casou com sr. Collins, ela escolheu


para si uma sala bem pequena no fundo de sua casa, e quando Elizabeth faz
uma visita à amiga, estranha um pouco a sua escolha, mas logo percebe o
que ela fez, pois se optasse por uma sala maior e mais agradável o sr. Collins
passaria mais tempo junto dela. A autora Kantor (2013) nos informa que o
ato de Charlotte se casar com tal homem foi algo prudente, mas que ao focar
na sua segurança financeira ela estava perdendo a felicidade no casamento.
Provavelmente Charlotte não era feliz em sua vida conjugal, pois assim como
Lydia, ela pensou que a felicidade e o amor no casamento seriam coisas que
se arranjariam sozinhas. Segundo Reef (2014), o casamento era como uma
segurança financeira e social, a mulher solteira e sem renda tinha pouca
liberdade porque ficava sempre dependente da família. Jane Austen tinha
consciência sobre essa dificuldade das mulheres, por isso certa vez escreveu:
8
“Mulheres solteiras possuem uma terrível propensão à pobreza.” (AUSTEN,
apud REFF, 2014, p. 23). Ao criar Charlotte ela só estava representando o que
muitas mulheres da sua época temiam e o que ela mesma passou, solteira,
sem dinheiro e dependente do pai e irmãos para tudo, além de se sentirem
um peso que os outros tinham de carregar.
Elizabeth estava rodeada de exemplos de casamentos que não dariam
certo e tinha a infelicidade de observar um exemplo de casamento
fracassado todos os dias, é o caso do sr. e sra. Bennet. Ela achava
repreensível o modo como o pai tratava sua esposa a expondo ao desdém
das filhas, rindo da sua ignorância e futilidade.

Seu pai, cativado pela juventude e pela beleza e por


aquela aparência de bom humor que a juventude e a
beleza geralmente provocam, casara-se com uma mulher
cuja pouca inteligência e generosidade mental haviam,
desde muito cedo no casamento, posto um ponto final
em todo real afeto por ela. Respeito, estima e confiança
tinham desaparecido para sempre, e todos os seus
projetos de felicidade doméstica foram arruinados.
(AUSTEN, 2012, p. 303).

Segundo a autora Biguelini (2009) o sr. Bennet se casou apenas pela


beleza que sua mulher possuía, e com o passar dos anos essa beleza foi
acabando, logo ele se cansou da companhia de sua mulher. Desse modo
passou a rir e caçoar dos modos da esposa na frente de suas filhas, o que não
era bom para a educação delas, como podemos imaginar. O autor
Macfarlane (1990) informa que era aconselhado às pessoas a não darem
9
mais importância à beleza e nem ao dinheiro, pois seria tolo escolher alguém
só pelo rosto bonito, da mesma forma que era perigoso casar com alguém
somente pela riqueza. Segundo a autora Kantor (2013) nos romances de Jane
Austen um casamento é infeliz quando o casal não tem afeto e confiança um
no outro, ou também quando a mulher ama ou confia mais nos seus amigos
do que no próprio marido e fala mal dele pelas costas. Pode ser que a sra.
Bennet ainda tivesse sentimentos pelo marido, mas o sr. Bennet já os tinha
perdido há muito tempo, levado pela beleza da esposa se deixou guiar por
um sentimento que se desfaz como areia no vento.

Casamento por amor

Elizabeth Bennet é a heroína de ‘Orgulho e Preconceito’, ela é


independente, inteligente, sagaz e possui forte opinião sobre o
comportamento das pessoas ao seu redor. Ao longo da obra Elizabeth vai
mudando suas opiniões a respeito de algumas coisas e o leitor também acaba
mudando junto com ela. Em um documentário da BBC sobre ‘Orgulho e
Preconceito’, é mostrado que Elizabeth pode ser uma referência a Jane
Austen, como muitos acreditam que seja, pois isso explicaria o motivo dessa
personagem ser a sua preferida. Como nos informa a própria Jane Austen:
“Devo admitir que a considero a criatura mais encantadora que já apareceu
sobre o papel, e como poderei tolerar aqueles que não gostarem dela, eu
não sei.” (AUSTEN apud AUSTEN-LEIGH, 2014, p. 108). Pode-se supor que
10
Jane Austen tenha se colocado algumas vezes em sua personagem, mas não
é algo que podemos afirmar com exatidão, pois como seu próprio sobrinho
Austen-Leigh (2014) nos informa que, algumas pessoas especulavam
querendo saber em quem Jane Austen havia se inspirado para escrever seus
personagens, pois eles eram tão reais que todos imaginavam que ela os
conhecia na realidade. Seu sobrinho acrescenta que sua tia não copiava
características de ninguém, mas sim investia em suas próprias criações
criando temperamentos e personalidades diferentes para cada um. Ela
desejava criar e não apenas reproduzir pessoas que já conhecia.
Elizabeth ao visitar a casa nova de sua amiga Charlotte, é convidada a
jantar na casa da tia de Darcy, Lady Catherine de Bourgh que deu ao sr.
Collins uma paróquia para ele realizar seus sermões. Jane Austen nos
apresenta um diálogo entre Elizabeth e Lady Catherine que nos mostra o
quanto era criticada uma moça que não recebesse uma boa educação, ela
questiona Elizabeth se elas e as irmãs sabiam tocar piano ou desenhar, ela
responde que o piano um pouco, mas desenhar nenhuma delas sabia. Lady
Catherine ficou surpresa com isso e ficou ainda mais quando descobriu que
elas nunca tiveram uma preceptora.
– Quem instruiu vocês, então? Quem acompanhou
vocês? Sem uma preceptora, a educação de vocês deve
ter sido negligenciada.
– Comparada à de certas famílias, creio que sim; mas
quando alguma de nós queria aprender, não faltavam
meios. Sempre éramos incentivadas a ler e tivemos todos 11
os professores necessários. As que preferiam ficar sem
fazer nada certamente o podiam.
– Ah, não duvido; mas é isso que uma preceptora
impediria e, se eu tivesse conhecido a sua mãe, eu a teria
energicamente aconselhado a contratar uma. (AUSTEN,
2012, p. 216 – 217).

Segundo Biguelini (2012) Lady Catherine responsabilizava a mãe pela


falta de educação das filhas, pois era seu papel arrumar uma preceptora que
cuidasse da sua educação, ou então de levar as filhas para Londres, onde
poderiam aprender pintura, dança e desenho. Segundo Hufton (1991) uma
mãe que se preocupava com o que as filhas estavam aprendendo para se
preparar para o mercado matrimonial devia dispor de uma governanta ou
uma preceptora para que lhe desse um ensino mais rigoroso. Essa falta de
cuidado da sra. Bennet com a educação das filhas prejudicou não só o
comportamento de Lydia, sua filha mais nova, mas também o modo como as
moças eram vistas pela sociedade, sendo elas de pouco dote e quase nada
prendadas, o que as prejudicaria quando alguém pensasse em pedi-las em
casamento. Lady Catherine ficou ainda mais perplexa quando descobriu que
todas as irmãs de Elizabeth já haviam sido apresentadas à sociedade, pois o
desespero da sr. Bennet em casar todas as filhas a levou a apresentar todas
as filhas de uma só vez o que era visto com maus olhos pela sociedade e era
algo que ia contra os costumes. Elizabeth argumentou que reter suas irmãs
em casa por isso não ajudaria a promover a afeição entre elas.

12
(…) Alguma de suas irmãs mais moças já foi apresentada
à sociedade, srta. Bennet?
– Sim, minha senhora, todas elas.
– Todas! Como assim, as cinco de uma vez? Que
esquisito! E você é só a segunda. Apresentar as mais
moças antes que as mais velhas estejam casadas! (…)
(…) Mas, na verdade, minha senhora, acho que seria duro
demais para as minhas irmãs mais novas não terem a sua
parte de vida social e diversão, pois talvez as mais velhas
não tenham meios ou inclinação para se casarem cedo.
(…) Acho que não é muito provável que isso promova a
afeição entre as irmãs ou a delicadeza de alma. (AUSTEN,
2012, p. 217).

Lady Catherine a partir desse momento passou a reprovar o


comportamento das irmãs Bennet, e em determinado momento disse
pessoalmente a Elizabeth o quão inferior era sua família para ela, e como era
reprovável o comportamento de suas irmãs.
Elizabeth e o sr. Darcy quando se encontraram pela primeira vez
acabaram tendo primeiras impressões erradas um sobre o outro, ela achou
Darcy orgulhoso e desagradável e estava decidida que nunca aceitaria se
casar com tal homem. Já ele achava Elizabeth uma moça apenas tolerável, e
fez seu julgamento a partir do comportamento de sua família. Darcy
surpreendeu os leitores e a própria Elizabeth ao fazer um pedido de
casamento, que foi recusado na primeira oportunidade, ela foi muito
corajosa ao dizer não para um homem que muitas mulheres ao seu redor
gostariam de ter. Elizabeth recusou o pedido, pois Darcy feriu os seus
sentimentos ao dizer que ao fazer o pedido ele estaria indo contra sua
13
própria vontade, e que não poderia se alegrar com a inferioridade dos
familiares dela. Além disso, Elizabeth não aceitou o seu pedido, pois ele havia
separado Bingley e sua irmã, além de ela não entender o que ele tinha contra
o sr. Wickham que parecia ser uma pessoa tão boa e gentil. Nessa parte da
história Wickham ainda não havia fugido com Lydia. Segundo a autora
Biguelini (2009) Darcy não estava pronto para amar Elizabeth, e para alcançar
a felicidade ele teria que aprender a gostar de tudo que fizesse parte da vida
dela, bem como superar o seu orgulho e respeitar sua família. Darcy então
escreveu uma carta para Elizabeth, na qual tentou se defender da má
impressão que ela tinha contra ele. Segundo a professora Folson no vídeo da
BBC já mencionado, ao ler a carta pela primeira vez Elizabeth estava decidida
a não acreditar em Darcy, mas depois de muita reflexão e reler a carta várias
vezes ela começou a ter uma mudança em seus sentimentos e passou a
compreender e até possivelmente amar Darcy. É nessa parte da história que
Elizabeth começa a amadurecer e os seus sentimentos mudam com relação a
muitas coisas.

– Como foi desprezível o que fiz! – exclamou ela. – Logo


eu, que sempre me orgulhei do meu discernimento! Eu,
que sempre me gabei de minhas habilidades! (…) Se
estivesse apaixonada, não poderia ter sido mais
miseravelmente cega! Mas a minha loucura foi a vaidade,
não o amor. (…) Até agora, eu não me conhecia.
(AUSTEN, 2012, p. 270).

14
Elizabeth se sentia envergonhada pela impressão que Darcy tinha de
sua família e que só agora ela conseguia ver. O comportamento de sua mãe e
irmãs e até mesmo de seu pai diante da sociedade era reprovável e esse
também foi um dos motivos pelos quais ele separou Bingley de Jane, pois
tinha a impressão que a mãe dela possuía grande interesse na fortuna do
amigo. É quando passa a se compreender que Elizabeth estava pronta para
amar Darcy, mas esse amor ainda teria muitos obstáculos pela frente, pois
quando Lydia fugiu com Wickham, todas as irmãs sabiam que estavam
perdidas e Elizabeth era a mais triste de todas, pois agora mais do que nunca
ela pensava que seria quase impossível que Darcy viesse a renovar o pedido
que lhe fizera anteriormente. “Mas agora um tal casamento feliz não mais
poderia ensinar à multidão o que realmente significa a felicidade conjugal.
Uma união de natureza diferente, que destruía a possibilidade da outra, logo
se formaria no seio da família.” (AUSTEN, 2012, p. 386). Elizabeth teve mais
certeza ainda sobre o caráter de Darcy quando descobriu que foi ele quem
pagou o dote de sua irmã Lydia e não seu tio como todos pensavam e que ele
teve de passar por cima de seu orgulho para dar a Wickham um posto melhor
na milícia mesmo depois de tudo o que ele fez para sua irmã. Elizabeth
estava com raiva de si mesma por ter recusado o pedido que Darcy lhe fizera
antes e também se achava tola por ter esperanças de que o seu amor
renascesse por ela. É atribuída a Elizabeth a frase que está em destaque no
início deste capítulo, ela acreditava que qualquer homem protestaria e
acharia indigno fazer novamente uma proposta de casamento para a mesma
mulher.
15
Quando Jane e Bingley finalmente ficaram noivos graças o auxílio de
Darcy que após descobrir por Elizabeth que Jane não era indiferente a
Bingley, tratou logo de aconselhar o amigo a pedir Jane em casamento para o
alívio da sra. Bennet que não escondeu nem um pouco a sua alegria. “– Ah!
Minha querida Jane, estou tão feliz! Tenho certeza de que não conseguirei
pregar os olhos esta noite. Mas eu sabia. Eu sempre disse que tinha de ser
assim, finalmente. Tinha certeza de que você não podia ser tão linda para
nada!” (AUSTEN, 2012, p. 428 – 429). Apesar de toda a alegria do casamento
entre Jane e Bingley alguns rumores de que Elizabeth poderia ficar noiva de
Darcy chegou aos ouvidos de Lady Catherine de Bourgh e isso fez com que
ela fosse até Elizabeth para saber a verdade. E ela insistiu de todas as formas
para saber se eles realmente estavam noivos e fez ela prometer que nunca
ficaria noiva dele, Elizabeth disse que não estavam noivos, mas que não faria
nenhuma promessa. Lady Catherine com todo seu ar insolente ficou com
mais raiva e só rebaixou Elizabeth ainda mais.

(…) Será criticada, humilhada e desprezada por todos os


conhecidos dele. Sua união será uma desgraça; seu nome
nunca mais será pronunciado por nenhum de nós. (…) As
pretensões improvisadas de uma jovem sem família, sem
ligações, sem dinheiro. Isso é intolerável! Mas isso não
deve acontecer, não vai acontecer. Se você soubesse o
que é bom para si mesma, não iria querer abandonar o
ambiente em que foi criada. (AUSTEN, 2012, p. 438 –
439).

16
Notamos que Lady Catherine falou sobre as ligações que a família de
Elizabeth não possuía, o que era algo importante naquele período, além de
lembrar que sua família não era rica. Mais a frente ela disse a Elizabeth que
não ignorava o caso de sua irmã Lydia que fugiu e que seria ruim para o seu
sobrinho ter ligações com uma família desse tipo. Essa união entre seu
sobrinho e Elizabeth contrariava Lady Catherine, mas como informou a
autora Biguelini (2009), que a união de um homem rico com uma heroína de
Jane Austen não batia de frente com os costumes da sociedade, mas que se
uma moça se casasse com um homem de classe inferior a dela, ela seria
afastada da sociedade e amigos, pois quando a mulher se casava fosse rica
ou pobre ela passava automaticamente para a classe social do marido. Ou
seja, Darcy poderia pedir Elizabeth em casamento sem ir contra a sociedade,
além disso, era ele quem administrava os seus bens e não precisaria do
consentimento de ninguém.
Quando Darcy soube que Elizabeth não prometeu a sua tia que nunca
o aceitaria, surgiu um sentimento de esperança dentro dele e dessa forma
voltou a fazer o pedido de casamento, mas dessa vez ele era outro homem,
pois havia deixado o orgulho de lado e aprendeu a amar não só a Elizabeth,
mas tudo que fazia parte da vida dela. Jane Austen não nos mostra o que
Elizabeth diz ao aceitar o pedido de Darcy, e nos deixa por nossa própria
imaginação, ela apenas nos ajuda a compreender que o pedido foi aceito.

(…) A felicidade que tal resposta provocou foi tal como


provavelmente ele nunca sentira antes; e ele se exprimiu
com todo o sentimento e toda a emoção de um homem 17
profundamente apaixonado. Se Elizabeth tivesse podido
encontrar o olhar dele, teria visto como lhe caía bem a
expressão de íntima alegria que tomou conta de seu
rosto; mas, embora não pudesse olhar, podia ouvir, e ele
lhe falou de sentimentos que, ao provar como era ela
importante para ele, tornavam seu amor cada vez mais
precioso. (AUSTEN, 2012, p. 451).

Darcy e Elizabeth formavam um casal que se complementava, suas


mentes eram parecidas e juntos construiriam um amor verdadeiro, mas o
que era o amor para Jane Austen? A autora Biguenili (2009) diz que para Jane
Austen o amor era “(…) um sentimento mútuo que nasce da igualdade de
pensamento, da companhia harmoniosa, da dependência e da confiança
entre marido e mulher.” (BIGUELINI, 2009, p. 38). Tudo isso deve estar ligado
a razão e a sensibilidade, razão para discernir o certo do errado e
sensibilidade para amar. A autora acrescenta que é através da razão que as
heroínas de Jane Austen encontram o amor, mas que um amor respaldado
somente pela razão não é uma coisa boa, deve haver um equilíbrio entre
razão e sensibilidade. Charlotte utilizou somente a razão para conseguir um
casamento, mais especificamente um casamento para ter uma segurança
financeira. Segundo Biguelini (2009) o casamento por dinheiro
necessariamente não é algo ruim, mas ele não é tão bom quanto seria um
casamento por amor. Além disso, nenhuma das heroínas se deixaria amar
por alguém mais pobre, pois elas sabiam que não seria prudente um
casamento como esse que só traria infelicidade.
A paixão para Jane Austen não é um sentimento verdadeiro, pois com
18
o tempo ele desaparece assim como aconteceu com o sr. Bennet e vai
acontecer com Lydia que se pautou somente na aparência física para
escolher um marido, com o tempo a paixão acaba e com ele também se vai o
respeito entre o homem e a mulher. Segundo Kantor (2013) Jane Austen não
media o amor pela intensidade do sofrimento, na verdade ela era contra
aquele amor romântico desesperado que faziam as mulheres sofrerem para
saber o quanto estavam amando. “Para Jane Austen, o amor é algo feliz. Se
ele lhe deixa miserável, então algo deu terrivelmente errado.” (KANTOR,
2013, p. 55). As heroínas de Jane Austen sofriam sim por amor, segundo a
autora, mas não acreditavam que quanto mais sofressem mais estavam
amando, pelo contrário, elas adquiriam mais dignidade ao se tornarem
heroínas diante da dor e não faziam disso um drama. E é justamente para
evitar esse tipo de dor que elas procuravam homens com bom caráter e não
se deixavam levar apenas por um rosto bonito.
Podemos pensar que o amor só existia nos romances e que na
Inglaterra dos séculos XVIII e XIX ele não era importante na hora de decidir se
casar. Se pensarmos assim estaremos redondamente enganados, pois o
autor Macfarlane (1990) nos apresenta inúmeros relatos de cartas e diários
dos séculos XVI a XVIII de casais apaixonados um pelo outro que lutavam
contra seus pais para poderem ficar juntos, como o exemplo de um casal que
levou sessenta anos para se casar já ambos com oitenta anos, depois que
todos os que estavam contra o casamento haviam falecido. Alguns diários
mostram a dor de perder o parceiro e o quanto tinham amor um pelo outro,
19
dessa forma vemos que o amor era algo importante alguns séculos antes de
Jane Austen.
A ideia de casamento que Jane Austen tinha era a de um casamento
por amor como vimos em alguns trechos de suas cartas, um amor construído
com respeito e afeto. E ela defendia tanto essa ideia que certa vez como nos
relata Reef (2014) aconselhou uma sobrinha a não aceitar um pedido de
casamento que lhe havia sido feito se realmente não amasse o seu
pretendente, ela acrescenta ainda que, tudo poderia ser suportável, menos
casar sem afeição. Segundo a autora Biguelini (2009) Jane Austen não cria o
casamento por amor, o que ela faz é apenas legitimar ainda mais o que já
existia na Inglaterra do seu tempo.

É preciso lembrar que para Austen o casamento por


amor é governado pela razão e não pelas paixões, pois as
uniões resultantes do desejo sexual imediato não seriam
uniões pautadas numa consideração racional, mas
momentânea e, portanto, fadada ao fracasso.
(BIGUELINI, 2009, p. 46).

Jane Austen nunca se casou, mas escreveu finais felizes para os


casamentos em suas obras, dando exemplos para as mulheres da sua época
de como amar sem perder o amor e a felicidade. O que podemos observar
também é que as mulheres em sua época encontraram dificuldades para
conseguir um casamento em que fossem felizes e ao mesmo tempo que não
precisassem se preocupar com dificuldades financeiras. Jane Austen defendia
o casamento por amor, mas era preciso ter cautela para não colocar em risco
20
toda uma felicidade conjugal por conta de uma escolha errada. Foi através de
seus romances que ela apontou os erros da sua sociedade e ao mesmo
tempo deu conselhos para as moças e mulheres de sua época de como
conseguir um ‘bom casamento’, ou seja, um casamento por amor que não
existissem dificuldades financeiras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Jane Austen representou em sua obra ‘Orgulho e Preconceito’ as


dificuldades que as mulheres de sua época tinham para conseguir um
casamento. Casar sem amor era um problema, mas ficar solteira era pior
ainda, pois as mulheres que não se casavam deviam continuar sobre a
proteção do pai e dos irmãos, ou seja, dependiam de tudo e de todos para
viajar, ter algum dinheiro, e além disso, outras pessoas controlavam suas
vidas.
Ao criar Elizabeth, que recusou dois pedidos de casamento, Jane
Austen estava apenas mostrando à sociedade que o casamento não era
necessariamente a única finalidade para as mulheres, elas poderiam
permanecer solteiras e mesmo assim ser felizes.
O casamento por amor é um assunto que aparece em todas as obras
de Jane Austen, e procuramos de certa forma mostrar como ela pensava
sobre a ideia de casamento por amor e demonstrava isso em sua obra. Jane
Austen acreditava no casamento por amor e assim como sua heroína
21
Elizabeth, ela estava decidida ao vivenciar esse sentimento. O casamento era
um passo muito importante na vida das mulheres de sua época, por isso era
preciso muito cuidado na hora de escolher o parceiro, pois uma escolha
errada poderia colocar em risco toda uma felicidade conjugal. Através de seu
romance, Jane Austen aconselhava as moças para não se casarem apenas por
dinheiro, ou então apenas para não se tornarem um peso para suas famílias.
Se elas casassem por dinheiro, certamente teriam uma vida confortável, mas
também não seriam tão felizes como se tivessem se casado por amor.
Jane Austen nunca se casou, é verdade que recebeu um pedido de
casamento, mas não o aceitou porque não amava o seu pretendente. Quem
ela possivelmente amava e de quem esperava receber um pedido de
casamento não o fez, pois foi induzido pela família a não se casar com uma
moça de baixo dote e não tão prendada quanto se esperava. Ela nunca se
casou, mas deu para suas heroínas casamentos com finais felizes. Não
devemos nos entristecer por ela nunca ter encontrado um amor, pois ela
amava sua família e os seus amigos. Dedicava horas do dia para escrever suas
obras e pequenos textos para entreter sua família e amigos quais eram os
seus mais ardentes admiradores. Ela possuía uma grande capacidade de
observar a sociedade a sua volta, pois ela realmente era uma observadora da
natureza humana que conseguia captar o comportamento e emoções dos
que estavam ao seu redor para reproduzi-los no papel.

REFERÊNCIAS:
22

AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo:
Martin Claret, 2012.

BIGUELINI, Elen. O triunfo do casamento por amor: Jane Austen e o


Matrimônio. Curitiba: 2009. (UFP) Disponível em:
http://www.generos.ufpr.br/index.php/monografias/HYPERLINK
"http://www.generos.ufpr.br/index.php/monografias/108/o-triunfo-do-casa
mento-por-amorjane-austen-e-omatrimonio"
108/o-triunfo-do-casamento-por-amorjane-austen-e-omatrimonio .
Acessado em: 22/04/2014.

______________ Uma união de mentes: casamento e educação das


mulheres na obra de Jane Austen e Elizabeth Inchbald. Portugal: 2012. (UC).
Disponível em:
https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/24312/1/Dissert%20Elen%20
Biguelini.pdf. Acessado em: 29/05/2014.

KANTOR, Elizabeth. A fórmula do amor: Segredos de Jane Austen para os


relacionamentos. Trad. Isadora Sinay. São Paulo, Realejo Edições, 2013.

LEIGH, James, Edward Austen. Uma Memória de Jane Austen. Trad. José
Loureiro; Stephanie Savalla. Editora: Pedra Azul, 2014.

MACFARLANE, Alan. História do casamento e do amor: Inglaterra: 1300 –


1840. Trad. Paulo Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Orgulho e Preconceito (Jane Austen) Documentário sobre a autora e a obra


disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=-DWuhPrsipY . Áudio em
português da série Grandes Livros. Narrado por Donald Sutherland. Acessado
em: 27/07/2014.

REEF, Catherine. Jane Austen: Uma Vida Revelada. Trad. Kátia Hanna.
Barueri, SP: Novo Século Editora, 2014.
23
SOUSA, Dignamara Pereira de Almeida. Contexto da escrita de Jane Austen.
Anais eletrônicos do IV Seminário Nacional de Literatura e Cultura São
Cristóvão/SE: GELIC/UFS, v.4,3 e 4 de maio de 2012. Disponível em:
http://200.17.141.110/senalic/IV_senalic/textosHYPERLINK
"http://200.17.141.110/senalic/IV_senalic/textos_completos_IVSENALIC/TEX
TO_IV_SENALIC_191.pdf" _completos _IVSENALIC /
TEXTO_IV_SENALIC_191.pdf. Acessado em: 14/03/2014.
A IMPORTÂNCIA DA INICIAÇÃO À DOCÊNCIA NO
COMBATE AO PRECONCEITO, RACISMO E
DISCRIMINAÇÃO

Elaine Cristine Luz Santos de Moura1


1

RESUMO
O presente trabalho é uma ação dos acadêmicos de História da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (UFMS) que compõem o Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à docência (PIBID), visando colaborar com o ensino e a aprendizagem dos
alunos da Escola Estadual Professor Emydio Campos Widal dos anos 7ºB, 8ºA e B e 9ºA
e B do ensino fundamental. Consiste na execução do projeto “Desconstruindo
paradigmas: racismo, preconceito e discriminação - uma abordagem histórica”,
visando promover a igualdade e diversidade sociocultural, demonstrando as lutas,
estratégias e resistências da população negra. Resultaram-se ações de inclusão e
reflexão por meio da confecção de cartazes elaborados pelos próprios alunos.
Palavras-chave: Racismo, preconceito, discriminação.

ABSTRACT
The present work is an action of the Academics of History of the Federal University of
Mato Grosso do Sul (UFMS) that make up the Institutional Program of Initiation to
Teaching Scholarship (PIBID), aiming to collaborate with the teaching and learning of
the students of the State School Teacher Emydio Campos Widal from 7ºB, 8ºA and B
and 9ºA and B from primary education. It consists of the implementation of the project
"Deconstructing paradigms: racism, prejudice and discrimination - a historical
approach", aiming to promote equality and socio-cultural diversity, demonstrating the
struggles, strategies and resistance of the black population. It resulted in actions of
inclusion and reflection through the production of posters prepared by the students
themselves.
Keywords: Racism, preconception, discrimination.

1
Bacharel em Ciências Contábeis pela União da Associação Educacional Sul Mato-grossense (UNAES).
Especialista em Cultura e História dos Povos Indígenas, aluna especial do Mestrado em Comunicação e
acadêmica de História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Bolsista do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Agência Financiadora: Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
INTRODUÇÃO

Partindo do pressuposto de que todos são iguais perante a lei, é


importante destacar a necessidade de regulamentos que atendam a
2
peculiaridades de cada sujeito, respeitando assim as suas diversidades. É a
partir dessa afirmativa que o presente trabalho pretende abordar os
impactos da realização do projeto “Desconstruindo paradigmas: racismo,
preconceito e discriminação - uma abordagem histórica” realizada pelo
Programa de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) do curso de Historia da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, que visou fomentar a
inclusão da cultura negra dentro e fora das escolas.
Para isso, foram realizadas quatro oficinas na Escola Estaduais
Professor Emydio Campos Widal, sob a orientação do professor Manoel
Antônio Faustino Rosa, com alunos do ensino fundamental, sendo 7°, 8° e
9° ano, sendo executados pelos acadêmicos Eduardo Augusto Bodstein,
Elaine Cristine Luz Santos de Moura, Gleidson Chilavier Gutierrez,
Matheus Ostemberg, Raphael Sanzio, Yasmin Falcão.
Esse trabalho divide-se em quatro etapas, de maneira que a
primeira aborda o referencial teórico utilizado para a elaboração e
execução do projeto, sendo a mesma realizada com base nas disciplinas
do curso de licenciatura em história, tendo como ênfase “Educação das
Relações Étnico-raciais” e “História do Brasil”.
A segunda parte refere-se à execução na primeira oficina,
demonstrando desde o planejamento da aula e os seus resultados,
destacando como ocorreu a receptividade dos alunos, a dinâmica e a
finalização da aula.
Na terceira etapa, será abordada a realização da segunda
oficina, evidenciando a importância da utilização da música como recurso
para se compreender os aspectos históricos. Além disso, será relatado 3

como os alunos prosseguiram com projeto, demonstrando aspectos


importantes realizados durante os debates.
Na quarta etapa, o leitor poderá observar como ocorreu a
terceira oficina, e nela poderá constatar como ocorreu um debate sobre
cotas raciais, verificando os prós e os contras, e quais os comentários dos
alunos, além da mudança de pensamento. Além disso, o leitor poderá
verificar como ocorreu a elaboração do produto que consiste na
confecção de cartazes feitos pelos alunos com o intuito verificar na prática
a reflexão dos alunos sob as oficinas. Poderá ser notado como os alunos
estavam empenhados em realizar a inclusão da cultura negra em seu
cotidiano, fomentando o combate à discriminação, o racismo e o
preconceito por meio da exposição do produto na escola.
Assim, entende-se que diversidade precisa ser analisada como
um fator agregador e de integração social e cultural, aonde o ser humano
pode se reconhecer como pertencente a uma identidade e assim ter sua
plena realização em vida e, concomitantemente passa a colaborar para o
desenvolvimento da sociedade a qual integra, promovendo o diálogo e
compreensão entre todos e todas.
O REFERÊNCIAL TEÓRICO
Para fomentar o combate ao preconceito, ao racismo e a
discriminação, este projeto visa a construção de saberes que busque a
valorização da cultura e história negra que constituíram uma vastidão de 4

manifestações culturais, recortes sociais, estratégias econômicas,


participação política e exemplos de resistência.
O debate sobre o preconceito étnico, racial e de se faz
importante, dado que a escola tem um papel fundamental na construção
de identidades e direitos humanos.

Em linhas gerais, além de direito social, a educação


tem sido entendida como um processo de
desenvolvimento humano. Como expresso nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a educação
escolar corresponde a um espaço sociocultural e
institucional, responsável pelo trato pedagógico do
conhecimento e da cultura. A princípio, estaríamos,
então, trabalhando em solo pacífico, porque
universalista. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2006, p.
13)

Trabalhar com o reconhecimento das raízes culturais e


historicidade da cultura negra tende a demonstrar os caminhos de vitória,
luta e resistência, e apresentar para os alunos a possibilidade de findar
preconceitos que se manifestam no ambiente escolar e em toda a
sociedade.
A abordagem metodológica que busca construir o conhecimento
histórico a partir da valorização de diversos grupos pretende driblar a
história oficial e conservadora, pautada na construção de personagens
que ressignificam as concepções colonialistas.
Observa-se que são presente nos currículos escolares, assim
como em todo o cotidiano, os conhecimentos históricos moldados por
essas concepções conservadoras. Assim, também 5

Supõe-se (...) é uma alteração e revisão das tendências


colonialistas que marcam os contextos educacionais e
os currículos escolares. Trata-se de algo mais
subterrâneo, que tem relação com a superação do
eurocentrismo e dos fundamentos da hierarquização
que durante séculos informou os currículos. Essa
superação é um dos emblemas mais caros às lutas
pela renovação necessária ao Ensino de História há
décadas. (PEREIRA e ROSA, 2012, p.101)

De acordo com Mignolo (2003), um dos primeiros passos para


um possível movimento de revisão, reversão e desconstrução do
preconceito, discriminação, racismo, representações e estereótipos, é
reconhecer que não existe a realidade, mas sim as realidades. E que tais
realidades são construídas por diversos grupos, conforme cada cultura,
sendo almejadas por meio de práticas específicas ou de formas próprias
de poder, ser e viver, e dessa forma vão construindo as suas identidades,
tendo seus direitos promovidos pela Constituição Federal.
Construir uma sociedade livre, justa e solidária;
garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais e promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
(Constituição Federal de 1988, Art. 3).
Dessa maneira, percebe-se que o estudo da diversidade cultural
torna-se uma reflexão das marcas das relações entre suas tradições e
organizações de vida e de pensamento, na luta pela igualdade a partir dos
direitos humanos e políticas públicas, tendo como ênfase nesse trabalho
os negros e negros pelo combate à discriminação, ao racismo e ao 6

preconceito.

A PRIMEIRA OFICINA
Para a execução do projeto, foram realizados planejamentos
para as quatro oficinas, que contavam com três bolsistas, visando
organizar e idealizar uma aula apropriada tanto para os acadêmicos
quantos para os estudantes. Partindo dessa perspectiva, as aulas foram
realizadas seguindo a estrutura, porém sempre intervindo conforme a
necessidade de cada aluno. Vale ressaltar que durante as três primeiras
oficinas, foi solicitado que os alunos se mantivessem em círculo,
objetivando uma aula diferenciada e mais dinâmica.
Assim, durante a primeira oficina, foi abordada análise
conjuntural do processo de escravidão no Brasil colonial ressaltando e
contextualizando os seguintes aspectos: África e o seu pluralismo cultural;
Processo de escravidão como uma forma de dominação étnica e de
contenção do dinamismo cultura; abolição dos escravos e o surgimento
das favelas.
Para isso a aula contou com os seguintes recursos: o uso de
mapa, imagens, música, datashow, bola, dicionário, giz e quadro negro.
A aula foi iniciada apresentando aos alunos as propostas do
projeto, demonstrando cronograma. Em seguida, foi realizado um debate
com os alunos com o intuito de conceituar os termos: escravo e salário.
Posteriormente, foi realizada uma dinâmica com os alunos, que
consistia em demonstrar qual é a diferença de uma mão de obra escrava e 7

da assalariada. Para esse fim, um bolsista representava a Inglaterra, que já


possuía a mão de obra assalariada, e outro simulava o Brasil, que possuía,
em sua maioria, a mão de obra escrava, e assim um terceiro bolsista
fomentava o debate apresentando como um produto era mais acessível
que o outro devido à sua despesa, sobretudo trabalhista.
Após o debate, foram utilizadas imagens, com o uso do
datashow, de alguns cartazes que exemplificavam a proposta da quarta
aula, para que assim o aluno perseguisse o projeto ciente do que seria
trabalhado na última oficina, e concomitantemente já fossem realizando
as suas pesquisas.
Sucessivamente, foi realizada uma contextualização sobre
tráfico negreiro, Lei de Terras, Lei sexagenária, as resistências e revoltas, e
abolição dos escravos, tendo como referencial teórico o texto da autora
Maria Lúcia Lamounier intitulado “Da escravidão ao trabalho livre” que
retrata a questão da escravidão negra no Brasil colônia, sendo repassado
de maneira didática para os alunos.
Para finalizar a aula, foi realizada uma reflexão a partir do
“Samba-Enredo 1988” da Escola de Samba Mangueira, sendo este
impresso e solicitado que os alunos colassem no caderno, com o intuito
dos estudantes meditarem sobre a abolição e debaterem na próxima aula.
Assim, a aula foi de grande pertinência, pois realizou uma introdução aos
alunos sobre a importância do conhecimento histórico para uma reflexão
sobre a contemporaneidade, demonstrando o passado do negro no Brasil,
a partir de sua vivência, lutas e a busca pelos direitos sejam humanas e
trabalhistas. 8

A SEGUNDA OFICINA
A seguinte aula foi realizada com base no texto de Maria Helena
Machado intitulado “O plano e o pânico: movimentos sociais na década da
abolição” e o "Espetáculo das Raças" de Lilia Schwarz, e contará com o uso
de datashow, pinturas, jornal, giz e quadro negro.
Inicialmente, foi retomado o cronograma do projeto e a leitura
da letra (juntamente com a música) do Samba-Enredo 1988 da Escola de
Samba Mangueira “Cem anos de liberdade, realidade e ilusão”. Foram
indagados aos alunos quais foram às reflexões realizadas a partir da
música.
Também foi reapresentado aos alunos como se realizar a criação
do cartaz como atividade avaliativa do último encontro.
Foi retomada a questão dos surgimentos das favelas do Rio de
Janeiro, tendo como ênfase a Belle Epóque.
Pretendeu-se assim fomentar o reconhecimento da cultura
negra no cotidiano. E posteriormente contextualizar a história dos
movimentos sociais pela luta da igualdade, tendo como ênfase o
movimento “Frente Negra Brasileira”.
Ocorreu um debate referente a uma charge que trata sobre
questões raciais.
Também houve a realização uma reflexão sobre o jornal “A voz
da Raça”, sobre os primeiros filmes e teatros com protagonistas negros, e
um diálogo sobre o quadro "Redenção de Cam". 9

Por fim, foi realizado um debate em relação às datas


comemorativas 13 de maio (dia da abolição dos escravos) e 20 de
novembro (dia da consciência negra).

A TERCEIRA OFICINA
Foi realizada uma análise conjuntural do processo de escravidão
no Brasil, colonial ressaltando e contextualizando os seguintes aspectos:
- África e o seu pluralismo cultural
- Processo de escravidão como uma forma de dominação étnica
e de contenção do dinamismo cultural
- Movimentos de resistência negra contra a escravidão
Tendo como recurso a utilização de quadro negro, giz e
datashow, e como embasamento teórico o “Os jovens das camadas
populares na universidade pública: acesso e permanência” de Jovilles
Vitório Treviso que defende as cotas raciais.
Foi realizada uma dinâmica aonde serão escritas na lousa
palavras como “social, cultural, econômico, físico, gênero, étnico” e se
solicitando que os alunos que citassem a palavra que a eles representa
todas as elencadas na lousa nela, preconceito, e assim iniciar o debate.
Após a dinâmica, iniciou-se um debate com a seguinte pergunta:
“Quantos professores negros você já teve?”
Após o diálogo, será indagado:
“O que você entende por cota?”
Assim, a partir de dados estatísticos do IBGE que apresentam a
Bahia como um dos estados com maior população negra, foi apresentado 10

uma fotografia dos alunos de medicina da Universidade Federal da Bahia,


que não consta com negros na turma. Assim como foi apresentado demais
dados estatísticos que demonstram a quantidade de negros no país e os
espaços que mais ocupam e menos ocupam.
Posteriormente foi realizada a pergunta:
“O que você entende por discriminação, racismo e
preconceito?”
Para finalizar a aula, foi exibido o documentário “O mês da
consciência negra – ser negro no Brasil” que fornece mais argumentações
para o debate, fomentando a reflexão dos alunos, visando combater o
racismo, e demonstrando a importância das políticas públicas e
institucionais, e principalmente relembrando aos alunos a cota como
“forma de reparo” às indenizações que não houve pela escravidão.
Além da educação, também foi apontado aspectos racistas no
esporte, no emprego e na aparência.
Por fim, foi relembrado aos alunos sobre a elaboração do cartaz.
Para isso, foi solicitado que os alunos levassem revistas e/ou jornais com
imagens com representações da cultura negra.
A QUARTA OFICINA

Realização da atividade avaliativa em grupo:


Criação de um cartaz com recortes da cultura e história negra 11

com um viés publicitário para ser exposto na escola promovendo o


combate ao racismo, preconceito e discriminação.
Para isso a turma foi dividida em grupos. Foram realizadas
colagens, dos recortes das revistas e/ou jornais que apresentassem a
cultura negra, em cartolinas para serem apresentadas na sala de aula.

Figura 1 – Estudantes elaborando os cartazes

Fonte: elaborada pela autora


Na imagem acima, pode ser observado os alunos trabalhando
em grupo e realizando a elaboração dos cartazes. Além de pesquisar em
revistas e utilizar tinta guache os alunos tiveram de contar com a
aprendizagem das aulas e o uso da criatividade para a criação. 12

Divididos em grupos de no máximo cinco alunos, o trabalho


contou a supervisão dos acadêmicos de iniciação à docência, colaborando
com os alunos sempre que necessário. Nota-se que na pesquisa nas
revistas houve certas dificuldades por não localizarem com facilidade
fotografias de pessoas negras, o que fomentou a reflexão dos alunos para
a carência em inclusão do negro nas mídias.
Após a elaboração dos cartazes, os alunos realização a exposição
na escola de modo que as outras turmas observaram, com o intuito que
isso combater o racismo, preconceito e discriminação, como pode ser
observado na imagem a seguir, que demonstra o produto final do
trabalho. Pode ser observada por meio dos cartazes a mudança de
pensamento e a formação reflexiva.
Figura 2 – Exposição dos cartazes
13

Fonte: elaborada pela autora

Os cartazes contaram com uma reflexão e criticidade em relação


à luta pela igualdade e ao combate ao preconceito, racismo e
discriminação, além de poderem realizar de maneira autônoma e
investindo na criatividade.
Assim, a execução do projeto foi de grande estima tanto pelos
acadêmicos que realizaram as aulas, iniciando uma docência em conjunto,
colaborando com o desenvolvimento pessoal e profissional, quanto
colaborou com a escola promovendo a igualdade social.
14

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendeu-se, pois, que as atividades são fundamentais para que
os alunos possam demonstrar como estão concebendo os saberes. Pois,
acredita-se que é de tendência individual a construção dos
conhecimentos, tendo em vista que cada aluno detém a sua própria
história, sua visão de mundo, sua ancestralidade e suas problemáticas
diárias, sendo este um complexo deve ser respeitado pelo professor.
Dessa maneira, o referente trabalho pretendeu-se estabelecer
com os alunos a valorização da diversidade, muitas vezes negadas,
estando à margem das conquistas sociais, trazendo como ênfase a história
do negro desde as suas origens ate é o cotidiano dos alunos, combatendo
a discriminação, o racismo e o preconceito.
Verificaram-se transformações de pensamento e
comportamento, por meio dos debates em sala de aula, e a promoção da
igualdade e diversidade sociocultural, demonstrando as lutas, estratégias
e resistências ao longo da história do Brasil. Com a confecção dos cartazes
os discentes também exercitaram sua criatividade e liberdade de
expressão acerca das temáticas trabalhadas, possibilitando uma nova
forma de percepção da realidade que os cerca e aguçando seu senso
crítico.
Este trabalho visou trazer aos estudantes novos prismas acerca
de questões cruciais e tão presentes em sua vivência e realidade, como
racismo, preconceito e discriminação. Buscou-se trabalhar de forma a
apresentar a fundamentação histórica dessas mazelas no Brasil e assim,
junto com os mesmos, procurar desconstruir “certezas” e “convicções” 15

imposta a sociedade durante todo o processo histórico brasileiro,


conscientizando-os de seu papel crítico e questionador. Valorizando,
assim, os direitos humanos.
Assim, por meio da execução do projeto, percebeu-se a
importância do PIBID, tanto pela sua colaboração na iniciação à docência,
quanto na sua estima na colaboração e transformação no ensino nas
escolas públicas. Fica PIBID!

REFERÊNCIAS
BASILE, Marcello Otávio N. de C. O Império Brasileiro: Panorama Político
In: LINHARES, Maria Yedda. Historia Geral do Brasil, Rio de Janeiro: Editora
Campus, 2000.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de
1988. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>
Acesso em maio de 2016.
________. Orientações e ações para a educação das relações étnico-
raciais. Ministério da Educação. Brasília: SECAD, 2006. Disponível em
<http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/orientacoes_etnicoraciais.pdf>
Acesso em maio de 2016.
_______. Parâmetros Curriculares Nacionais. Ministério da Educação.
Brasília, 1997. Disponível em
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro101.pdf> Acesso em
maio de 2016.
CARVALHO, D. J. A conquista da cidadania feminina. In: Saber Acadêmico.
Nº 11, p. 143-153, jun.2011.
FERNANDES, C. M. B. Á procura da senha da vida-de-senha a aula
pedagógica? In. Aula: Gênese, dimensões, princípios e práticas. Campinas:
Papirus, 2008
GOULART, L. B., ANTUNES, M. F. O Território e as territorialidades. In:
Curso de Aperfeiçoamento Produção de Material Didático para 16
Diversidade – Porto Alegre, 2011 p. 109-116.
LAMOUNIER, M. L. Da escravidão ao trabalho livre: a lei de locação de
serviços de 1879. Campinas: Papirus, 1988.
MIGNOLO, W. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o
significado de identidade em política. Caderno de letras da UFF – dossiê:
literatura, língua e identidade, no 34, p. 287-324, 2008. Disponível em <
http://www.uff.br/cadernosdeletrasuff/34/artigo18.pdf> Acesso em maio
de 2016
PEREIRA, J. S., ROSA, L. M. O ensino de história entre o dever de memória
e o direito à história. In: Revista história. V.1, no 1, p. 89-110, 2012.
PIOVESAN, Flávia C. Temas de direitos humanos. São Paulo, Saraiva, 2013.
Disponível em < http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/56512>
Acesso em outubro de 2016.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo. Companhia
das Letras, 1993.
TREVISOL, J. V. NIEROTKA, R. L. Os jovens das camadas populares na
universidade pública: acesso e permanência. Universidade Federal da
Fronteira Sul, Florianópolis, 2016. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
49802016000100022&lang=pt> Acesso em agosto de 2016.
O LÚDICO DIGITAL NAS AULAS DE HISTÓRIA: APLICAÇÃO
DO GAME CAESAR III COMO MATERIAL LÚDICO NAS
TURMAS DE SEXTO ANO DO CENTRO EDUCACIONAL SÃO
JOSÉ (MIRACEMA – RJ)
1
1
Ramon Mulin Lopes

RESUMO
O presente texto tem por desígnio relatar a experiência da utilização do game “Caesar
III” em turmas de ensino fundamental como parte do processo de ensino-
aprendizagem da disciplina de História. O objetivo desta aplicação propõe transformar
o game em uma ferramenta de interação entre alunos, contexto histórico e política do
antigo Império Romano em um ambiente lúdico e capaz de despertar o interesse dos
alunos, uma vez estes imersos em um cotidiano ligado às tecnologias digitais. O game
colaborou com a visualização das tecnologias do império romano e promoveu uma
profunda reflexão sobre as atitudes de cada aluno durante a construção de suas
atividades no jogo.
Palavras-chave: Ensino-aprendizagem; Games; Tecnologias Digitais.

ABSTRACT
This paper aims to report the use of the game "Caesar III" in classes of elementary
school as part of the teaching-learning process of History class. The purpose of this
application was to turn the game in an interaction tool between students, historical
context and the old political Roman Empire in a playful environment and turn it able to
arouse the interest of students, once these are immersed in a connected daily to
digital technologies. The game helped with the visualization technology of the Roman
Empire and promoted a deep reflection on the attitudes of each student during the
construction of its activities in the game.
Key words: Teaching and learning; Games; Digital Technologies.

1
Historiador regional e professor de História licenciado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Macaé (FAFIMA-RJ). Atua nas redes de educação municipal e privada do município de Miracema, estado
do Rio de Janeiro.
1. Considerações iniciais

O cenário das TIC’s (Tecnologias da Informação) faz com que seja


necessária uma adaptação ao meio, visto a impossibilidade de se evitar
tais transformações tecnológicas, e isto não é diferente no âmbito
2
educacional. A educação tem buscado se moldar a essa nova linguagem
num esforço de não se tornar obsoleta frente à ampla instigação
proporcionada pelas TIC’s.

Um grande fruto dessas mudanças é aquele que compõe a geração


dos nativos digitais (PRENSKY, 2001), que já nasceram imersos nessa
conjuntura tecnológica. Logo, torna-se um grande desafio por parte da
educação de adaptar seus métodos tradicionais de ensino em uma
linguagem apropriada ao cotidiano e às relações interpessoais desta
geração.

Vygotsky (1998) já relevava a importância das brincadeiras e dos


jogos lúdicos para a construção do saber e da visão de mundo para as
crianças e adolescentes. Esses jogos também se modificaram com o
advento dessas tecnologias. Atualmente, os jogos mais procurados por
essa geração são os jogos eletrônicos, também conhecidos como games –
sendo jogados em celulares, computadores, consoles (vídeo games),
tablets, entre outros. Por isso, “diante dessa visão sobre o surgimento de
uma nova cultura, os jogos eletrônicos não podem ser vistos apenas como
instrumentos de lazer e diversão”, mas, sobretudo, devem ser vistos como
possibilidades viáveis atuando “na produção do conhecimento e no
desenvolvimento de habilidades necessárias na sociedade atual”
(GALDINO e NOGUEIRA, 2005, p. 2).

Entretanto, grande parte das instituições escolares parece conduzir


a educação básica de forma distante dos instrumentos tecnológicos e,
consequentemente, do cotidiano desses alunos, constituindo uma
3
condição de não aproveitamento dos benefícios desses recursos. Apesar
da evolução dos métodos baseados na tecnologia, a escola ainda utiliza
formas tradicionais de ensino e, em alguns casos, o uso da tecnologia da
informação é imposto, não envolvendo os alunos e dificultando a
aproximação entre professores, alunos e TIC’s.

Nesse contexto, buscou-se em uma das aulas de História atender


essas demandas para aproximação do ambiente escolar do cotidiano dos
alunos, que se enquadram na sociedade enquanto nativos digitais: na
aplicação do conteúdo “Império Romano” foi utilizado o game “Caesar III”
como instrumento lúdico a fim de mediar o processo ensino-
aprendizagem.

2. Considerações teóricas

A insistente busca pela motivação dos alunos na sala de aula por


parte dos professores há tempos toma uma parcela importante das
relações de ensino-aprendizagem nas escolas. Pensando nisso, é possível
verificar a utilização de diversas atividades lúdicas nesse processo.

A palavra “lúdico” deriva-se do latim Ludus que significa


divertimento, escola, jogo. “A função educativa do jogo oportuniza a
aprendizagem do indivíduo: seu saber, seu conhecimento e sua
compreensão de mundo” (ROLLOF, 2010, p.1). As atividades lúdicas nas
salas de aula têm demasiada importância visto que carregam consigo uma
capacidade única de promover uma maior imersão e motivação dos
alunos no processo de aprendizagem. Percebe-se que, no âmbito
educacional, esses jogos contextualizados “tem uma maior aceitação por 4

parte dos estudantes, o que, em geral não ocorre na metodologia


tradicional de ensino” (GALDINO e NOGUEIRA, 2005, p.1). A ludicidade em
sala de aula é ingrediente importante para socialização, observação de
comportamentos e valores (ROLLOF, 2010, p.1). A relação jogo e educação
tem grande importância no sentido intelectual e didático, pois pode
auxiliar o estudante a estabelecer importantes conjecturas cognitivas.

Eleana Roloff (2010) mostra a importância de trabalhos com jogos


lúdicos com o público discente:

No segundo segmento do ensino fundamental, os


interesses destes alunos já mudaram bastante, mas a
ludicidade ainda é importante fator de construção de
conhecimento. O aluno necessita de mediação e
instrumentos. Tudo o que vem sendo construído por
este indivíduo passa por um processo quantitativo e
qualificativo. Assim, podemos buscar na infância
alguma brincadeira, ou uma queda, para explicar o
MRU (movimento retilíneo uniforme), ou quem sabe
ainda, relacionar a matéria de química com a cozinha
de casa, a comida favorita... Continua sendo de
extrema importância que a atividade lúdica seja
significativa (ROLOFF, 2010, p.6).

A comparação geracional entre “nativos digitais” e “imigrantes


digitais” elaborada por Mark Prensky nos auxilia para uma melhor
compreensão de como os alunos se comportam, brincam e aprendem
atualmente. Segundo Prensky (2001, p .1) os “estudantes de hoje são
todos ‘falantes nativos’ da linguagem digital dos computadores, vídeo
games e internet”, sendo estes pertencentes à geração dos “nativos 5

digitais”. Essa geração se diferencia dos “imigrantes digitais” que são


aqueles que não nasceram no mundo digital, mas em alguma época de
suas vidas, ficaram fascinados e adotaram muitos ou a maioria dos
aspectos da nova tecnologia (PRENSKY, 2001, p. 2).

Tomando como fato que os alunos da atualidade fazem parte dessa


geração imersa nas redes e nos ambientes digitais, afirma-se que a forma
com que eles aprendem algo também se modifica, pois sua visão de
mundo está imersa numa linguagem nativa dessas redes e ambientes. As
escolas e professores tem a necessidade de se adaptarem a essas
tecnologias da informação para que o processo ensino-aprendizagem bem
sucedido continue a se perpetuar, principalmente, no ambiente escolar e,
sobretudo, para que esse ambiente não venha a se tornar um local apático
para os alunos frente às suas relações interpessoais, seus interesses e às
TIC’s (Tecnologias da Informação).

Severino (2001, p.150) nos lembra que:

o processo de ensino/aprendizagem não é osmótico.


Entre o ensinar e o aprender há uma relação
pedagógica. Não ocorre ensino e nem aprendizagem,
se não houver entre docente e discente uma relação
de intencionalidade, mediada pelo sentido. Por isso, o
profissional não deve deixar de investir na dinâmica
didático-pedagógica, pela qual o ensino torna-se
educativo. Como nenhuma intencionalidade atua no
ar ou pela força de vontade ou desejo, é preciso
recorrer a mediações concretas, apoiadas em meios
didáticos e metodológicos. Cabe uma referência às
novas tecnologias no desempenho do trabalho
pedagógico. (SEVERINO, 2001, p. 150) 6

Mediante esse cenário, é necessário retomar a ideia de se


estabelecer um ambiente lúdico na sala de aula juntamente a essas
tecnologias, para que dessa forma, a linguagem da atividade esteja de
acordo com o cotidiano desses alunos em suas relações exteriores à
escola. Por isso é de suma importância a adaptação de todos os elementos
envolvidos no processo ensino-aprendizagem.

3. Aplicação na sala de aula

Desde o mês de agosto de 2015, dois meses após a entrada do


professor de História no Centro Educacional São José (Miracema – RJ), tem
sido estudada pelo mesmo a possibilidade de se trabalhar um game com
os alunos das turmas sexto ano. O game escolhido foi “Caesar III”, por se
tratar de um produto extremamente fiel ao contexto histórico que se
propõe e pelo fato de ser uma mídia completamente dublada em
português. Depois de muito pesquisar sobre o game, jogar e estudar suas
possibilidades enquanto complemento de uma aula sobre o Império
Romano, foi decidida sua aplicação no dia 14 de outubro de 2015 nas duas
turmas de 6º ano do colégio.
Uma breve introdução reavaliando os alunos sobre as civilizações do
mundo antigo estudadas nos conteúdos dos bimestres anteriores foi
realizada a fim de despertar debates e rever os temas, para
posteriormente utilizar-se do game.
7
“Caesar III” é um jogo de estratégia onde o jogador assume a
posição de um governador de uma colônia romana com a finalidade de
fundar ali uma cidade e estabelecer um pleno desenvolvimento cultural,
social e econômico. Além disso, deve-se suprir as necessidades do
imperador César.

Tendo isso em vista, o professor transformou as turmas em um


grande "Conselho do Império", onde os grupos eram divididos por setores
de serviços públicos da Antiga Roma. Cada decisão tomada deveria estar
sob a luz de argumentos que elucidassem seus objetivos para a sociedade
do jogo. Nenhum passo poderia ser dado na colônia romana do game sem
os argumentos e o consenso entre os alunos.

4. Resultados

Os resultados da experiência foram muito além do esperado. Muito


positivo frente aos objetivos pretendidos durante a preparação dessa aula
em especial. Todos os alunos participaram ativamente e debateram cada
passo dado pela turma. Cada detalhe da cidade era analisado pelas
turmas, desde a economia, o desenvolvimento cultural e social e até
mesmo os detalhes das construções como aquedutos, casas populares,
celeiros, mercados, templos religiosos, senado, entre outros.
Nas duas turmas trabalhadas, obtiveram-se os seguintes resultados
e conclusões:

1- A primeira turma atingiu pleno desenvolvimento econômico e


social, porém teve problemas graves com a infraestrutura urbana pois não
8
tiveram atenção com o planejamento do espaço físico da cidade,
promovendo apenas um progresso desenfreado onde a mobilidade
urbana ficou comprometida.

2- A segunda, por sua vez, não conseguiu sequer alcançar os


objetivos mais simples propostos pelo jogo, pois os choques de opiniões
entre os alunos dentro de seu "Conselho" eram demasiadamente
constantes. O estresse levou parte da turma a um total abandono do jogo,
enquanto outros vociferavam suas vontades em observável nível de
descontrole. Os alunos chegaram à conclusão de que um governo nesse
período, com disposições tão precárias, era extremamente complexo.
Posteriormente, o professor elaborou comparações entre as atitudes da
turma e a política atual de nosso país, principalmente sobre o município
onde residem.

O game colaborou com a visualização das tecnologias do império


romano, de como se dava o planejamento do comércio externo com
outras cidades romanas, do desenvolvimento da própria cidade e de uma
profunda reflexão sobre as atitudes de cada aluno no conselho.

“Caesar III” tem uma falha grave no que tange aos interesses dos
cidadãos e a divisão de classes sociais em sua população. O game não
considera essas variáveis. Porém, justamente por isso, optou-se por esse
jogo levando em conta de que as turmas não têm maturidade em certos
âmbitos dos estudos sociais. Dessa forma, a adaptação e a simplificação
do trabalho ao nível de turmas de 6º ano foi considerada, pelo professor,
um sucesso.
9

5. Registros fotográficos do uso do game em sala de aula

Informações sobre impostos e indústria da colônia – acervo do autor

Alunos durante a aula – acervo do autor


10

Debate sobre as ações que deveriam ser tomadas no game – acervo do


autor

Projeção do game em sala de aula – acervo do autor


11

Considerações Gerais do professor – acervo do autor

6. Referências Bibliográficas

BAQUERO, Ricardo. Vygotsky e a aprendizagem escolar. Artes Médicas,


Porto Alegre: 2000.

BRASIL, Ministério da Educação e Desporto. Parâmetros Curriculares


Nacionais: História / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília:
MEC/SEF, 1998.

CUNHA, Maria Isabel da. O Bom Professor e Sua Prática. 2 ed. Campinas –
SP: Papirus Editora, 1992.

FERREIRA, Carlos Augusto Lima. A Importância das Novas Tecnologias no


Ensino de História. Universa, Brasília: nº 1, p. 125-137, fevereiro de 1999.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980.

LÉVY, Pierre. O que é o virtual. Tradução de Paulo Neves. São Paulo:


Editora 34, 1996.

___________. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo:


Editora 34, 2009
MASTROCOLA, Vicente Martins. Doses Lúdicas: Breves textos sobre o
universo dos jogos e entretenimento. Ed. Independente, São Paulo: 2013.

MATTA, Alfredo Eurico R. A Informática e os Recursos de Multimídia como


Mediadores da Construção do Conhecimento em História por Alunos da
Escola Fundamental e Média. Projeto de Doutorado em Educação da 12
Universidade Federal da Bahia. Salvador: maio de 1996.

MATTAR, João. Games em educação: como os nativos digitais aprendem.


São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2010.

MICELI, Paulo. In MORAIS, Regis de (org.). Sala de Aula: que espaço é esse?
7 ed. Campinas – SP: Papirus, 1994.

PRENSKY, Marc. Não me atrapalhe mãe - Eu estou aprendendo!. São


Paulo: Phorte, 2010.

ROCHA, Ubiratan. Reconstruindo a História a partir do imaginário do aluno


In: NIKITIUK, S.L (org.). Repensando o Ensino de História. São Paulo:
Cortez, 1996.

ROLLOF, Eleana Margarete. A Importância do Lúdico na Sala de Aula. Anais


da X Semana de Letras 70 Anos: A FALE FALA. PUC – RS: 2010.

SILVA, Edna Marta Oliveira da. Como aprende o nativo digital: reflexões
sob a luz do conectivismo. Revista Intersaberes, vol. 9, n.17, p.70-82.
UNINTER: jan. – jun. 2014.

RUDIO, Franz Victor. Introdução ao projeto de pesquisa científica. 34ª Ed.


Petrópolis, Editora Vozes, 2007.

SAVIANI, Demerval. Educação e Questões da Atualidade. São Paulo:


Cortez, 1991.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Educação, Sujeito e História. São Paulo: Olho


d’Água, 2001.
SOUZA, Robson P. de; MOITA, Filomena M. C. da S. C.; CARVALHO, Ana
beatriz Gomes. Tecnologias Digitais na Educação. Campina Grande:
EDUEPB, 2011.

TORI, Romero. Educação sem distância: as tecnologias interativas na


redução de distâncias em ensino e aprendizagem. São Paulo: Editora 13
Senac São Paulo, 2010.

VASCONCELOS, Celso dos Santos. Construção do conhecimento em sala de


aula. São Paulo: Libertad, 2002.

VIGOTSKY, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich; LEONTIEV,


Alexis N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Tradução de
Maria da Penha Villalobos. 2. ed. São Paulo: Ícone, 1988.

VIGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo:


Martins Fontes, 1998.

Sites Utilizados Para a Pesquisa:

CARNIELLO, Luciana B. C.; RODRIGUES, Bárbara M. A. G.; MORAES, Moema


Gomes. A relação entre os nativos digitais, jogos eletrônicos e
aprendizagem. III Simpósio Hipertexto e Tecnologias na Educação: Redes
Sociais e Aprendizagem. UFPE: 2010. Disponível em:
https://www.ufpe.br/nehte/simposio/anais/Anais-Hipertexto-
2010/Luciana-Barbosa-Carniello&Barbara-Alcantara-Gratao&Moema-
Gomes-Moraes.pdf. Acesso em: 29/12/2014.

GALDINO, Anderson L.; NOGUEIRA, Adriana S. Games como agentes


motivadores na educação. I Seminário Jogos Eletrônicos, Educação e
Comunicação. UNEB: 2005. Disponível em:
http://www.comunidadesvirtuais.pro.br/seminario-
jogos/files/mod_seminary_submission/trabalho_12/trabalho.pdf. Acesso
em: 28/12/2014.
KAUFMANN-SACCHETTO, Karen; MADASCHI, Vanessa; BARBOSA, Geraldo
Henrique Lemos; SILVA, Priscilla Ludovico da; SILVA, Raquel Caetano
Teixeira da; FILIPE, Beatriz Tomás da Cruz; SOUZA-SILVA, João Roberto de.
O Ambiente Lúdico com Fator Motivacional na Aprendizagem Escolar.
Cadernos de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, São
Paulo, v.11, n.1, p. 28-36. MACKENZIE: 2011. Disponível em:
http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCBS/Pos- 14
Graduacao/Docs/Cadernos/Volume_11/Kaufmann-
Sacchetto_et_al_v_11_n_1_2011artigo_2.pdf. Acesso em: 26/12/2014.

LEFFA, Vilson J.; PINTO, Cândida M. Aprendizagem como Vício: O Uso de


Games na Sala de Aula. Revista (Con)Textos Linguísticos, Vitória, v.8, n.
10.1, p. 358-378. UFES: 2014. Disponível em:
http://www.periodicos.ufes.br/contextoslinguisticos/article/download/83
68/5941. Acesso em: 29/12/2014.

PRENSKY, Marc. Nativos Digitais, Imigrantes Digitais. De On the Horizon


(NCB University Press, Vol. 9 No. 5, Outubro 2001). Texto traduzido por
Roberta de Moraes Jesus de Souza. Disponível em:
http://crisgorete.pbworks.com/w/file/fetch/58325978/Nativos.pdf.
Acesso em: 26/12/2014.
RELAÇÕES DE GÊNERO: REFLEXÕES ACERCA DA OBRA DE
MALLANAGA VATSYAYANA, O KAMA SUTRA

Nadine Nogara1
1

Resumo: Temos como objetivo analisar o documento Kama sutra, escrito pelo poeta
indiano Mallanaga Vatsyayana, discutindo sobre as concepções que podem ser vistas
como idealizações de masculinidade e feminilidade para os homens e mulheres
indianos na visão do poeta, justificando que cada cultura tem seus diferentes padrões
de comportamentos, tanto individuais como em meio a sociedade. Utilizaremos para
isto dos estudos de gênero para evidenciar o ideal do “ser masculino” e do “ser
feminina”, descaracterizando o documento de sua ideia ocidental de um manual visual
de posições eróticas, expondo o modo comportamental idealizado por Vatsyayana.

Palavras-chave: Relações de gênero; Kama Sutra; Índia; Masculinidades;


Feminilidades.

Abstract: Our objective is to analyze the document “Kama Sutra”, written by the Indian
poet Mallanaga Vatsyayana, discussing about the conceptions that can be seen as
ideals of masculinity and femininity for Indian men and women in the poet’s vision.
While justifying that every culture has its different behavior standards, individually and
in society. For that we utilize gender studies to discriminate the ideals of “be
masculine” and “be feminine” to de-characterize the document of its occidental idea
of a visual manual of erotic sex positions, showing the behavioral way idealized by
Vatsyayana.

Key words: Gender relations; Kama Sutra; India; Masculinities; Feminities.

1
Acadêmica do curso de História da UNESPAR, campus de União da Vitória.
INTRODUÇÃO

Compreender aspectos da cultura indiana remonta a um trabalho


complicado, pois é necessário fazer uma “aproximação”, isenta de
preconceitos. Pretendemos com o presente trabalho, fazer uma análise do 2

Kama Sutra, percebendo as interações apresentadas como ideais para


homens e mulheres.
A data envolta na produção desta obra não é certa. O poeta
provavelmente viveu entre os séculos I a VI d.C. período de regência do
Império Gupta, segundo Auboyer (1979) foi neste período que a Índia
desfrutou de uma das mais gloriosas épocas de sua história, cultura e
civilização. A música e a literatura eram praticadas pela elite indiana e até
mesmo pelo rei. Remonta-se ao período entre I a VI d.C. porque em sua
obra Vatsyayana menciona Satkarni Srtvahan, rei de Kuntal, este rei teria
vivido e reinado durante o primeiro século a.C. Também encontra-se,
posteriormente a Vatsyayana, a escrita de Virahamihira, que ao retratar
em sua obra aspectos amorosos apresenta várias ideias retiradas do texto
de Vatsyayana. Virahamihira que viveu durante o século VI d.C.
O Kama Sutra foi originalmente escrito na língua sânscrita pelo
poeta Mallanaga Vatsyayana. A obra contém cerca de mil duzentos e
cinquenta versos, divididos em sete partes. De acordo com Silva (2011), o
Kama sutra é, quase todo feito de regras, e a parte da dinâmica do
intercurso sexual é a menos importante de todas.
A tradicional escrita em forma de sutras remete ao
estudo erudito indiano, em que estudantes, brâmanes
em maioria, decoravam os textos de antigos
estudiosos e discutiam, ou simplesmente ouviam
explicações sobre eles de seus gurus, aqui
compreendido como um professor, um estudioso das
obras hindus, cujo amplo conhecimento permite que 3
seja reconhecido como alguém com capacidade de
conduzir outras pessoas ao conhecimento. (SILVA,
2011, p. 224)

Ou seja, os ensinamentos apresentados por Vatsyayana, embora


conduzam ao prazer, visam, prioritariamente, à elevação espiritual dos
homens e mulheres em sua trajetória religiosa. O hinduísmo ou Sanatana
Dharma é um conjunto de especulações filosóficas da vida social. Nesta
doutrina não é realizada a distinção entre a religião, a filosofia e o social
tornando-se diferenciada da maioria das religiões ocidentais que
conhecemos devido a este aspecto. Os hindus veem a vida como um ciclo
auto repetitivo, existindo quatro ideais a serem seguidos por todos os
Hinduístas: o Artha, riqueza, o Kama, desejo por desfrutar as coisas do
mundo, estes devem ser equilibrados com o Dharma, que é a noção
fundamental do hinduísmo, definido por S. Lemaitre (1958, p.76) como o
“suporte” dos seres e das coisas, a lei da ordem em sua maior extensão, a
ordem cósmica”; o último ideal é o anseio pela libertação do ciclo auto
repetitivo ou o Moksha. Vatsyayana apresenta em seu documento que os
homens deveriam praticar Dharma, Artha e Kama em momentos
diferentes de sua vida, e em tal modo de que eles podem se harmonizar
em conjunto, não colidindo de forma alguma. Quando todos os três,
Dharma, Artha e Kama vem em conjunto, o primeiro é melhor do que o
que se lhe segue, ou seja, Dharma é melhor do que Artha, e Artha é
melhor do que Kama. Mas o Kama, para o poeta, deveria ser aprendido
com o Kama Sutra. Nele há as mais diversas “instruções” para a conduta
de homens e mulheres em seus relacionamentos pessoais e com a 4

sociedade em geral.
Percebemos que o Kama Sutra não é apenas um manual erótico
como tido ocidentalmente, mas um guia “comportamental” e sexual para
os homens e as mulheres indianos. Pretendemos focalizar neste trabalho
como as mulheres são vistas e quais são os comportamentos femininos e
masculinos compreendidos como ideais no Kama Sutra. Pois estes
aspectos comportamentais apresentam as concepções de representações
sociais, como nos apresenta Margaret Mead, “a natureza humana é quase
incrivelmente maleável, respondendo acurada e diferentemente a
condições culturais contrastantes” (MEAD, 1969, p. 268), ou seja, os
aspectos de feminino e masculino apresentam-se ligados ao sexo, mas
também as construções de comportamentos, as vestimentas e dentre
outros aspectos atribuídos aos diferentes sexos, variando com as distintas
formas culturais.
Na Índia os casamentos eram arranjados com o cuidado de
assegurar os objetivos maiores da família, e as mulheres deviam servir
fielmente ao pai e depois a seu marido. Como apresentado por Paulson
(2002) os homens indianos com maior poder socioeconômico têm o
“acesso” a muitas mulheres, com haréns de 3, 4 esposas ou com até mais
de 50 mulheres.
A compreensão dos papéis sociais, definidos como ideais, mas não
necessariamente desempenhados, no cotidiano dos homens e mulheres
na sociedade indiana, uma sociedade tradicional e religiosa, nos leva a
pensar na pluralidade e diversidade cultural no que diz respeito aos
valores tradicionais. Essa reflexão objetiva a promoção, a partir de 5

observações integrais, do atual ideal de igualdade de gênero.


Esta pesquisa adquire sua relevância ao passo que pretende
apresentar as concepções dos comportamentos femininos e masculinos
compreendidos no Kama sutra de Vatsyayana, justificando que cada
cultura tem seus diferentes padrões de comportamentos, tanto
individuais como em meio a sociedade.
Descaracterizando o documento de sua ideia ocidental de um
manual visual de posições eróticas, que trata “apenas” de posições
sexuais, pois o mais importante para se perceber no livro vai adiante
destas posições descritas, além dele nos revelar possibilidades de
repensar a erótica oriental, expondo o modo comportamental escrito por
Vatsyayana, o documento também relaciona-se com os fatores religiosos,
incrustados nesta cultura, uma vez que o objetivo central da obra de
Vatsyayana era apresentar as maneiras de conciliar o Kama (Prazer), com
os demais deveres da religião hindu. Como aponta Archer (2012) o Kama
Sutra, na concepção indiana, tem um caráter religioso por tratar de um
dos aspectos necessários para uma vida plena. Este que também pode ser
traduzido como “a vida dos sentidos” (ARCHER, 2012, p. 32), tem um lugar
legítimo no cotidiano indiano, considerado por eles um objeto de estudo
religioso.
As culturas interpretam e traduzem as diferenças biológicas
inerentes ao sexo num conjunto de expectativas sociais diferenciadas
sobre os comportamentos e os papéis sociais esperados, assim como os
direitos, recursos e poderes. Por conseguinte, as assimetrias de gênero
têm sido transversais a diferentes contextos e sociedades, embora com 6

intensidades diferentes, ou seja, para a análise dos fatores de feminilidade


e masculinidade presentes no Kama sutra, percebemos que são ideias
compostas em uma época e sociedade distinta, e específica, os
comportamentos e as relações a serem seguidas com o Kama Sutra são
para que se alcance o Kama religioso, o prazer.
Para a sociedade da época em que o Kama Sutra foi composto, a
ideia de sexo e da união sexual era bastante diferente da visão da
sociedade ocidental contemporânea. No seu texto, não vemos
praticamente qualquer ideia de culpa ou de “tabu”. Além das posições
sexuais, o livro se ocupa de odores, palavras, vestuário, ambiente, pois seu
autor vê a experiência sexual como um estímulo para todos os sentidos do
ser humano.
Em nosso primeiro capítulo pretendemos esclarecer sobre os
conceitos de gênero, feminilidades e masculinidades, explicando o porquê
de trabalhar com o Kama Sutra através das relações de gênero e não pela
sexualidade, no segundo capítulo dissertaremos sobre as masculinidades e
suas concepções, analisando passagens do documento, o Kama Sutra, que
tratam sobre o assunto, o terceiro capítulo será dedicado aos “padrões”
de feminilidades idealizados no Kama Sutra e para concluir relacionaremos
os apontamentos feitos até então, analisando as questões dos padrões de
feminilidades e masculinidades idealizados na visão de Vatsyayana, o
autor do Kama Sutra.

1 RELAÇÕES DE GÊNERO: PENSANDO OS CONCEITOS


7

Segundo Stearns (2010) falar em gênero é uma forma de enfatizar


o caráter social e, portanto, histórico, das concepções baseadas nas
percepções das diferenças sexuais. Esta concepção de gênero explora uma
ampla variedade de sociedades. Cada civilização uniu as questões de
gênero com aspectos de sua estrutura cultural e institucional, ou seja,
conforme as civilizações se desenvolveram, partindo dos contatos e das
trocas, os sistemas de gênero foram tomando formas. Mead corrobora
com tal pensamento:

[...] cada cultura cria de modo distinto a tessitura


social em que o espírito humano pode enredar-se com
segurança e compreensão, classificando, recompondo
e rejeitando fios na tradição histórica que ele
compartilha com vários povos vizinhos, pode inclinar
cada indivíduo nascido dentro dela a um tipo de
comportamento, que não reconhece idade, nem sexo,
nem tendências especiais como motivo para
elaboração diferencial. Ou então uma cultura
apodera-se dos fatos realmente óbvios de diferenças
de idade, sexo, força, beleza, ou de variações inusuais,
tais como o pendor nato a visões ou sonhos, e
converte-os em temas culturais dominantes. (MEAD,
1969, p.20)
Diferentes papéis e funções sociais são delimitados para homens e
mulheres, distinção esta que coloca tais sujeitos, conforme sua identidade
de gênero, em processos desiguais nas suas condições de vida, no
trabalho e nas relações afetivas e sexuais, distinguindo, desta forma, cada
um dos sexos com personalidades distintas, e até mesmo limitadas, 8

diferenciando as pessoas conforme suas condições culturais e físicas.


As relações de poder são expressas através das relações de
gênero, interpondo as relações sociais, esse campo cultural embasa a
construção do ser homem e do ser mulher, bem como as trajetórias
culturais dos sujeitos fazendo deste um “campo de confrontos
atravessados por fluxos multidirecionais” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003,
p. 26), ou seja, o conceito “gênero” constituído de relações sociais, funda-
se nas diferenças entre os sexos, e “é um primeiro modo de significar as
relações de poder” (SCOTT, 1990, p. 14), fazendo destas relações de
poder, parte das relações de gênero.
Dizer o que é ser homem, o que é ser mulher, atribuir significados,
papéis e funções diferenciadas a partir dessa identidade estabelece
relações de poder que por vezes irá colocar os sujeitos em polos opostos e
desiguais. Para Lima e Mello (2012), o gênero não está simplesmente
ligado a uma noção de poder atribuída fixamente às pessoas, ele funda-se
em uma relação, pois ser homem ou ser mulher não são idealizações
universais, tendo para todas um único exemplo, mas são distintas umas
das outras. É através do gênero que podemos identificar e entender
relações de poder que integram a construção social do masculino e do
feminino, mas isto não quer dizer que a categoria de gênero é o único
campo a proporcionar a existência e o entendimento de uma relação de
poder, entretanto é uma grande possibilidade para o entendimento da
organização da vida social, dessa maneira, Cristina Scheib Wolff e Rafael
Araújo Saldanha apresentam que:
9

Gênero é poder, é hierarquia. As sociedades


estabelecem lugares sociais que são demarcados em
termos de gênero, classe, raça, geração, religião, entre
outros. Mas o gênero tem sido, nas sociedades que
conhecemos, o primeiro desses critérios, aquele que
estabelece, desde que a pessoa nasce e é identificada
a partir de características sexuais com papeis
esperados de gênero, que atividades ela poderá
exercer em sua vida, e quanto poder terá em suas
relações. Nas sociedades que conhecemos, essa
hierarquia é tipo “patriarcal”, ou seja, são as pessoas
identificadas com o gênero masculino que detém
maior parte do poder. (WOLFF, SALDANHA, 2015, p.
36)

Esta hierarquia, designada de uma relação de poder, nem sempre,


explicita a uma desigualdade entre homens e mulheres, porém, nas
sociedades patriarcais indianas constituídas no período da produção do
documento utilizado, os homens são considerados criaturas superiores.
Tinham direitos legais que as mulheres não possuíam, mas essa
desigualdade tendeu a aumentar com o passar do tempo, as razões desta
tendência entre as sociedades se estabeleceu, como apresenta-nos
Stearns (2010), devido ao crescimento do poder governamental dominado
pelo sexo masculino, as mulheres são levadas ao papel político informal
dentro das famílias, pois o patriarcalismo, além de atingir a sociedade em
geral, privando-os, de certa forma, de suas liberdades, afeta também ao
governo. Quando falamos sobre patriarcado, devemos compreender que
seu campo e suas relações não são tão amplas como quando tratamos
sobre gênero, pois como dito por Saffioti (2004), em sua obra “gênero, 10

patriarcado e violência”, a hierarquização patriarcal é desigual, enquanto


as relações de gênero compreendem, também, igualitariamente os
indivíduos, sendo, então, o patriarcado uma especificidade das relações
de gênero, porém devemos perceber que cada sociedade em que o
patriarcalismo prevalece, as concepções de suas correlações em meio a
sociedade, e a maneira da qual afeta as pessoas se dá de formas
diferentes, ou seja, da maneira que nos foi apresentado este dentro da
sociedade indiana pode não se fazer igualmente em outras culturas.
É importante destacarmos que “embora o sexo biológico atinja os
corpos sexuados, o sexo social, o que chamamos de “gênero”, atinge
tudo” (PAULSON In. ADELMAN, SILVESTRIN, 2002, p.25), isto é, como
apontado por Tilly (1994), a palavra “sexo” referência as distinções
biológicas (entre machos e fêmeas), e a palavra “gênero” remete a
aspectos culturais (as classificações sociais entre masculino e feminino),
apresentando questões de comportamento, dessa forma, as idealizações
do que seria um homem ou uma mulher perfeita para diferentes culturas
podem ser questionados e estudados dentre da perspectiva de gênero, no
entanto, conforme enfatiza Louro (2011) nos estudos de gênero as
questões biológicas sexuais não são negadas, mas ocorre o ressaltar da
construção social e histórica produzida sobre essas características
biológicas, sendo que a reflexão sobre gênero em uma sociedade
diferente do nosso comum, coloca em questão preconceitos habituais da
nossa sociedade.

Não se deve falar “os gêneros”, como se fosse 11


equivalente a “os sexos”, pois não há “um gênero
masculino” por si só, ou um “feminino”, mas um
sistema relacional de classificação social e cultural no
qual certos comportamentos e características, roupas,
maneiras, atividades, são consideradas femininas,
masculinas ou neutras [...] (WOLFF, SALDANHA, 2015,
p. 36)

Percebemos, portanto, que essas relações de masculinidades e


feminilidades são também uma construção de sociedades, entendendo
que as crenças a respeito dos papéis masculinos e femininos idealizados
são redigidas pelos padrões e regras que determinada sociedade
estabelece para seus membros, definindo seus comportamentos e os
modos de relacionamentos. Quando discutimos sobre esta aprendizagem
dos papéis ideais masculinos e femininos, remetemos, ocasionalmente, a
seus comportamentos e suas relações com as pessoas à sua volta, como
enunciado por Louro, quando aponta que voltando-se a uma desigualdade
entre os sujeitos, que “tenderiam a ser consideradas no âmbito face a
face. Ficariam sem exame não apenas as múltiplas formas que podem
assumir as masculinidades e as feminilidades, como também as complexas
redes de poder. (LOURO, 2011, p. 28) ”.
Estas questões dos deveres e padrões masculinos e femininos se
dão de diferentes formas, existindo distintas concepções em todas as
sociedades, como podemos ver em Mead (1968), os comportamentos,
vestimentas e todos os traços que designam o que é feminino e o que é
masculino seriam construções culturais, estas que variam muito, tendo, de 12

certa forma, “personalidades padronizadas”, modificando-se conforme


suas categorizações sociais, o que pode ser percebido muito fortemente
dentro dos “padrões” indianos encontrados a partir do Kama sutra.
Mas por que relacionar a perspectiva de gênero com nossa análise
do Kama Sutra? O Kama Sutra ainda é visto com muitos estereótipos, é
“*...+ tido em outros contextos culturais como pornográfico e obsceno, por
descrever minuciosamente as diferentes práticas sexuais e os meios a
serem empregados para se obter o máximo de gozo possível” (LOBATO,
1997, p. 104), assim como Silva (2011) nos explica:

Se, para Vatsyayana, a escrita significou um estudo


religioso, uma contemplação à divindade, na qual
descreveu possibilidades de explorar a “vida dos
sentidos”, de modo que o ser humano alcance
equilíbrio em seu viver, para o Ocidente, vulgarmente
constitui-se numa forma ordenada, receitada,
mecânica, disciplinada de alcançar o prazer do sexo,
por vezes relacionada mais à pornografia, ao proibido,
ao perverso, sem uma compreensão a partir da
sociedade indiana, mas sim pautada na cultura
ocidental. (SILVA, 2011, p.122)
Por mais que se tenham ainda concepções preconceituosas quanto
ao Kama Sutra, existem muitos trabalhos que vão além dos estereótipos
estipulados sobre a obra, mesmo estes discutindo sobre os aspectos das
práticas sexuais, pois a sexualidade está, de certa forma, “posta”
culturalmente aos indivíduos e a sociedade em geral, possuindo 13

modificações na visão que se tem da sexualidade em diferentes locais e


sociedades, como melhor apresenta Toneli (2012) quando alude ao tema
em “Gênero e sexualidade: história, condições e lugares”:

A sexualidade é da ordem do indivíduo. Diz respeito


aos prazeres e às fantasias ocultos, aos excessos
perigosos para o corpo e passou a ser considerada
como a essência do ser humano individual e núcleo da
identidade pessoal” Para Foucault (1984, 1994, 1997),
as formas de dominação ligadas à identidade sexual
são características de nossas sociedades ocidentais e,
por isso mesmo mais difíceis de serem identificadas
por nós que preferimos acreditar que os movimentos
de autoexpressão sexual são resistências às formas de
poder em vigor. Foucault (1984, 1994, 1997) não os vê
como inerentemente livres ou opostos à dominação. A
reformulação do discurso sobre a sexualidade em
termos médicos demonstra bem sua articulação com
uma forma poderosa de saber que conecta indivíduo,
grupo, sentido e controle. (TONELI, 2012, p.153)

Mas quando falamos sobre gênero, precisamos ter, segundo


Gama, o “Reconhecimento de que as identidades de gênero não são fixas;
elas movem-se no sentido de preencher as necessidades individuais dos
atores sociais que as desempenham” (GAMA, 2012, p. 56). Portanto,
“Gênero” e o próprio “sexo” não são, obrigatoriamente, categorias
opostas, em razão de que ambas são culturalmente construídas, sendo
reafirmado de maneira frequente.
Em nosso trabalho não nos apropriamos do sexo como provedor
do discurso, por mais que ele esteja indiretamente inserido, e mesmo que 14

dentre as diferentes possibilidades de analisarmos o Kama sutra, a


categoria da sexualidade está fortemente presente, foi nos preferível
abordá-lo pensando mais diretamente na categoria gênero, refletindo
sobre as masculinidades e feminilidades, pois, como nos apresenta Wolff e
Saldanha (2015) o gênero está fortemente incrustado dentre as
configurações das sociedades atuais e antigas, como no caso, da
civilização indiana, relacionado a cultura e a própria história, e como em
nossa análise pretendemos trabalhar com o documento enfatizando as
idealizações do poeta Vatsyayana para o ser masculino e o ser feminino, a
questão de gênero nos cabe bem, pois como já citado aqui, através das
relações de gênero podemos perceber as construções dos ideais de
masculinidades e feminilidades de umas ou mais culturas específicas, e
assim como nos diz Lobato (1997), quando trabalhamos com aspectos do
material que aborda sobre a cultura indiana que é “referente as relações
de gênero mediadas pelo casamento e pela sexualidade, as categorias que
emergem não são de amor (romântico) [...] mas de amor-desejo-prazer
(Kama), dever e moralidade (Dharma) e prosperidade (Artha) que se
correlacionam.” (LOBATO, 1997, p. 96), por isso devemos ter muito
cuidado em nossa análise, pois se trata de uma cultura diferenciada da
que presenciamos, e que o Kama, ou o prazer, está correlacionado,
diretamente, com aspectos religiosos.
Como vimos, este capítulo foi uma breve discussão sobre o que
entendemos por gênero, e sobre o porquê nos foi preferível abordar o
documento, o Kama Sutra, por esta perspectiva das relações de gênero e 15

não enfatizando diretamente a sexualidade ou até mesmo a religiosidade,


que poderia ser, também, outra maneira de trabalharmos com esta fonte
histórica, pois esta, está amplamente conectada com aspectos do dia-a-
dia da religiosidade indiana. Este capítulo também nos permitiu refletir
sobre as masculinidades e feminilidades que são idealizadas de diversas
maneiras em diferentes culturas, pois todos os aspectos do que é ser
homem e o que é ser mulher, as vestimentas, os modos de agir, os
ensinamentos para os diferentes sexos são transformados de cultura para
cultura, pois assim como veremos no capítulo seguinte, o que pode ser
considerado uma característica ideal para os homens ou mulheres de
determinada sociedade pode não ser para outras, isto que será
aprofundado nos capítulos seguintes, discorrendo primeiramente sobre as
masculinidades, os padrões idealizados para o masculino,
correlacionando-os com o Kama Sutra.

2 O KAMA SUTRA E OS IDEAIS RELATIVOS AOS HOMENS

Como já nos foi dito, o Kama Sutra não é apenas um manual de


posições sexuais. A obra descreve, detalhadamente, 64 formas de amar,
consideradas “essenciais”, pretendendo também ser um guia para
desenvolver o erotismo e sensualidade de ambientes, situações e pessoas.
Mas, além disso, nos revela características, do ponto de vista do poeta
Vatsyayana, sobre a sociedade indiana do período em que foi escrito,
tanto quanto aos homens e as mulheres, uma vez que cada sociedade
contém um determinado modelo do ideal feminino e masculino, por isso 16

devemos reconhecer que as feminilidades e masculinidades podem ser


ditas no plural, pois elas são múltiplas e variáveis, e estas são
características aprendidas juntamente ao processo de sociabilização, não
são atributos que já nascem com as pessoas, e assim como explica-nos
Lima e Mello (2012), o considerado “ser homem” ou “ser mulher” foi e é
compreendido baseando-se nas definições destas características
associadas ao feminino e ao masculino, que se caracterizam devido,
propriamente, a inserção destas pessoas na sociedade e a cultura
específica a qual elas pertencem, pois como apresentado no livro de
Durval Muniz Albuquerque Júnior (2003), o próprio gênero não é algo
natural, mas sim, é uma construção histórico cultural, que modifica-se,
dependentemente da cultura na qual se encontra e ao período em que se
condiz.
Connel (1997), explica que “Las definiciones essencialistas
usualmente recogen un rasgo que define el núcleo de lo masculino, y le
agregan a ello una serie de rasgos de las vidas de los hombres” (CONNEL,
1997, p. 02)2, estas características dos ideais de padrões masculinos e
também femininos podem ser percebidos mesmo em nossa própria

2
Tradução livre: As definições essencialistas costumam recolher uma característica definidora do núcleo
do masculino, e adicionar-lhe uma série de características de vida dos homens.
sociedade, com diferentes argumentos do que as mulheres e os homens
devem ou podem fazer. Estas concepções continuam em outras
sociedades e culturas, porém de maneira modificada, por isso, devemos
ao longo desta obra, reparar nas diferenças das características idealizadas
para os homens que se tem na visão do poeta indiano com as de nossa 17

própria sociedade com seus padrões específicos.


Conforme noz diz Lobato (1997) as concepções que temos de
feminilidades e masculinidades são completamente diferentes quando
tratamos da Índia, ela também explica que por isso pode se tornar algo
incerto tentar enquadra-las ao contexto Oriental, pois neste as
“particularidades” do masculino e do feminino podem se associar, sendo
semelhantes ou alteradas, pois o que para nós pode ser uma característica
idealizada diretamente para o ser masculino, no contexto indiano pode
ser o contrário, ou até mesmo servir para ambos os sexos.

Homens e mulheres podem possuir atributos


femininos e masculinos sem que isso afete sua
feminilidade ou masculinidade, no sentido dado a
esses termos no Ocidente. Isso porque, “na Índia
competição, agressão, poder, ativismo e intrusão não
são tão claramente associados com a masculinidade”,
da mesma forma, a aceitação da intuição e da ternura
como valores, assim como “a capacidade de usar
meios de auto expressão que mobilizam sentimentos,
imagens e fantasias” (Nandy, 1988:76-9), não
ameaçam a masculinidade. ” (LOBATO,1997 p.123)
Quando nós falamos sobre a sociedade indiana destacado do
ponto de vista do poeta, os homens também possuem seus “padrões”
idealizados, assim como as mulheres, pois dentro de uma sociedade
cultural homens e mulheres possuem estes determinados “padrões” de
comportamentos que são idealizados e construídos, os indivíduos são 18

educados desde pequenos a aprenderem e agirem conforme estes


“padrões”, partindo desde aspectos da beleza adequada às mulheres e
aos homens a suas ações tanto na vida privada quanto a vida social.
Estas construções do “ser masculino” podem ser relacionadas com
o universo de símbolos, códigos e imagens que definem as próprias
masculinidades em uma devida sociedade. E embora as “identidades de
gênero” encontradas no documento de Vatsyayana “não sejam fixas,
houve um esforço significativo em delinear suas fronteiras, mesmo que as
performances sexuais de homens e mulheres pudessem “destoar” dos
padrões estabelecidos” (WEISSHEIMER, 2015, p. 04), ou seja, por mais que
as características das masculinidades e feminilidades tidas ocidentalmente
não sejam enquadradas para as definições de Vatsyayana, o poeta deixa,
de certa maneira, claro o que os homens e as mulheres deveriam fazer e
como deveriam agir para agradar o sexo oposto e a comunidade em geral,
seguindo um padrão idealizado quanto ao próprio sexo, no sentido de
homens e mulheres.
Vatsyayana deixa, de certa forma, claro que destinou seu discurso
diretamente aos homens, estes como os agentes ativos e responsáveis por
serem os produtores dos prazeres sexuais. O livro, de maneira geral,
apresenta maneiras para os homens conquistarem as mulheres,
mostrando os modos que deveriam agir com elas, e os estudos que
deveriam possuir. Vatsyayana apresenta as 64 práticas a serem estudadas
juntas ao Kama Sutra, como o canto, culinária, carpintaria, composição de
poemas e outros, e estes deveriam, segundo o poeta, serem estudados
por homens e mulheres, os homens que dominam estas 64 artes e seus 19

complementos, conquistariam facilmente o “coração das mulheres, sem


precisar conhece-las por muito tempo” (VATSYAYANA, 2012, p.47).
Percebemos que, como diz Conell, “Las definiciones de masculinidad han
aceptado en su mayoría como verdadeiro nuestro punto de vista cultural,
pero han adoptado estrategias diferentes para caracterizar el tipo de
persona que se considera masculina” (CONNEL, 1997, p.02)3, ou mesmo,
como já dissemos aqui, os padrões constituídos na própria obra, possuem
características próprias e diferenciadas.
Vatsyayana (2012) mostra que para obter sucesso em suas
conquistas os homens deveriam ser confiantes de suas qualidades,
inteligentes, e observarem as ideias e os pensamentos das mulheres,
suprimindo as razões que poderiam faze-los serem rejeitados. Vatsyayana
caracteriza os tipos de homens que teriam “sucesso” com as mulheres,
dentre estas características se encontram: os homens que falam bem, que
satisfazem as vontades das mulheres, que dão presentes a elas, os
homens que vivem de luxo e se vestem bem, entre outros “atributos”.

3
Tradução livre: As definições de masculinidade, na sua maioria aceitam como verdadeiro o nosso
ponto de vista cultural, mas também adotaram estratégias diferentes para caracterizar o tipo de pessoa
que é considerado masculino.
No livro dedica-se um capítulo aos deveres dos homens (a vida do
citadino) neste ele nos apresenta como “deveria” ser um “citadino”, que
seria um homem social e culto, dentre outras definições que aparecem
durante a obra, os “citadinos”, eram os homens que estavam seguindo
todos os comportamentos de maneira ideal, tanto de maneira religiosa, 20

social e também sexual, por sua vez, Vatsyayana escreve para a leitura
destes homens, que estavam em contato com diversos lugares e que
frequentavam festas e haréns reais. E este “citadino” possui deveres
diferentes, que são especificados na obra:

O homem que tenha, desse modo, adquirido


conhecimentos, que tenha conseguido a sua fortuna
através de doação, conquista, aquisição, depósito ou
herança de seus antepassados, deverá converter-se
em dono de casa e levar a vida de um citadino. Deve
ter uma casa na cidade, ou numa grande aldeia, ou
nas vizinhanças de outros homens de posição, ou num
lugar que seja frequentado por muita gente. Sua
morada deve estar situada perto de um curso d’água e
dividida em diferentes aposentos, destinados a fins
diversos. Deve ser cercada de um jardim e dispor de
dois aposentos, um interno e outro externo. [...] o
dono da casa, depois de ter levantado pela manhã e
cumprido os deveres necessários, deve lavar os
dentes, aplicar uma quantidade moderada de
unguentos e perfumes ao corpo[...] deve banhar-se
diariamente, passar óleo no corpo em dias alternados
[...]
Eis o que ele pode fazer ocasionalmente, como
diversão ou distração:
 Promover festas sem honra das diferentes
Divindades
 Reuniões sociais com pessoas de ambos os sexos
 Reuniões para beber
 Piqueniques
 Outras diversões sociais (VATSYAYANA, 2012, p.
49)
21
Logo, “Reconocer más de un tipo de masculinidad es sólo un
primer paso. Tenemos que examinar las relaciones entre ellas. Más aún,
tenemos que separar el contexto de la clase y la raza y escrutar las
relaciones de género que operan dentro de ellas. ” (CONNEL, 1997, p.11)4,
o poeta identifica, ao decorrer do livro, diferentes “classes” de homens e
de mulheres pertencentes a cultura indiana, e também que o próprio
autor exemplifica, até mesmo quando trata sobre aspectos sexuais,
separando homens e mulheres em padrões diferentes, ou quando discorre
sobre o casamento.

O homem pobre dotado de boas qualidades, o homem


de família humilde dotado de qualidades medíocres, o
vizinho rico e o homem controlado pelo pai ou pela
mãe ou pelos irmãos não se deve casar sem tentar,
desde a infância, conquistar a jovem para que o ame e
o estime. Assim, o rapaz que se separou de seus pais e
vive na casa de um tio deve tentar conquistar a prima,
ou qualquer outra moça, embora ela seja noiva de
outro. E essa maneira de conquistar a moça, não é
excepcional, pois Dharma pode realizar-se através
dela, bem como através de qualquer outra forma de
casamento. (VATSYAYANA, 2012, p.165)

4
Tradução livre: Reconhecer mais de um tipo de masculinidade é apenas um primeiro passo. Temos
para examinar as relações entre eles. Além disso, precisamos separar o contexto da classe e raça e
analisar as relações de gênero que operam dentro destes.
Vatsyayana descreve muitos detalhes sobre a conquista, “o
homem que viu e compreendeu os sentimentos de uma moça para com
ele, e que percebeu os sinais e movimentos exteriores pelos quais esses
sentimentos se expressam, deve fazer todo o possível para efetuar uma 22

união com ela” (VATSYAYANA, 2012, p.170), vê-se na obra que o homem
deve agir segundo as inclinações da mulher que quer conquistar, para
ganhar seu amor e confiança, mas, também deve adotar um
comportamento intermediário, pois não conseguiria um êxito completo
seguindo apenas as inclinações dela.

Aquele que sabe fazer-se amar pelas mulheres,


respeita-lhes a dignidade e conquista-lhes a confiança,
pode tornar-se o objeto de seu amor. Mas aquele que
trata a moça com indiferença, considera-a demasiado
tímida, é por ela desprezado como um animal
ignorante da sensibilidade feminina. Além disso, a
jovem possuída à força por alguém que não
compreende o coração da mulher torna-se nervosa,
instável e deprimida, e passa a odiar o homem que
dela se aproveitou. E, quando seu amor não é
correspondido, mergulha no desespero, e passa a
odiar toda a humanidade, ou a odiar seu próprio
homem, o que acaba por leva-la a procurar outros
homens. (VATSYAYANA, 2012, p.163)

O homem deve, de acordo com Vatsyayana (2012), fazer tudo o


que seja agradável à moça, para que ele consiga o que deseja, o poeta
também mostra como os homens deveriam se comportar quanto aos
parentes e amigos da mulher desejada, mostrando, sempre, amizade e
simpatia, para que assim possa, até mesmo, conseguir ajuda com a
conquista da moça.

O homem deve também mostrar delicadeza para 23


qualquer mulher em que a moça tenha confiança,
bem como travar novos conhecimentos, mas acima de
tudo deve fazer-lhe simpático á filha da ama da moça,
prestando-lhe pequenos serviços, pois, se ela for
conquistada, mesmo que saiba de suas intenções, não
provocará dificuldades, podendo até mesmo, em
certas ocasiões, promover uma união entre ele e a
moça. (VATSYAYANA, 2012, p. 166)

O Kama Sutra contém um capítulo dedicado ao casamento, neste


explica-se que há divisões dentro da sociedade indiana abordada pelo
poeta, e que se deveria casar com pessoas do mesmo nível, nem
“superiores” nem “inferiores”, para que o homem e a mulher
desfrutassem de um mesmo prazer e os parentes do casal se aceitassem
mutuamente, “conseguida a mão da moça, seja de acordo com o costume
da terra ou de acordo com o desejo do homem, este deve desposá-la
dentro dos preceitos da Sagrada Escritura *...+” (VATSYAYANA, 2012, p.
156). Após o casamento há várias indicações de como o casal deve se
comportar, e o que os homens deveriam fazer para conquistar sua jovem
esposa, utilizando-se de artifícios, e abstendo-se inicialmente dos
prazeres, pois as mulheres desejariam que tudo fosse feito com ternura, e
somente após vencer a timidez da jovem é quando deve começar a
“desfruta-la” de maneira que não a amedronte.
O poeta relata detalhadamente as instruções que entendia como
corretas para a excitação das mulheres pelo parceiro, incluindo a
importância dos homens fazerem as mulheres atingirem o orgasmo, seja
pelo ato sexual em si, ou através de carícias. Pois quando o poeta se refere
ao prazer e ao sexo, os homens deveriam ser os responsáveis por 24

proporcionar prazeres sexuais a suas esposas, uma vez que através deste
prazer sexual conseguiria manter um estado de “dominação” sobre elas, e
também adquiriria o Kama religioso.
Contanto, “Nas questões de amor, os homens devem fazer aquilo
que for agradável às mulheres dos diferentes países” (VATSYAYANA, 2012,
p. 107), o poeta dedica-se a descrever como cada uma dessas mulheres
deveriam ser conquistadas:

as mulheres dos países centrais (entre Ganges e


Jumma) tem um caráter nobre e não são habituadas
ás práticas indignas[...] as mulheres de Balhika são
conquistadas com pancadas[...] as mulheres de Avanti
não gostam de beijos, de arranhões e mordidas, mas
são inclinadas às várias formas de união sexual
(VATSYAYANA, 2012, p. 107)

Na citação acima estão presentes somente alguns dos exemplos


encontrados no livro, percebemos que o autor fala de forma generalizada,
encontra-se uma passagem na obra em que “a natureza de uma pessoa é
mais importante do que as coisas do agrado de toda uma nação”
(VATSYAYANA, 2012, p. 110), ou seja, as características de uma nação não
deveriam ser observadas quanto a isto.
O poeta nos diz que os homens deveriam retribuir igualmente o
que as mulheres lhe fazem, e vice e versa, para que assim o amor
perdurasse, e, “em suma, o homem sagaz e prudente, praticando Dharma,
Artha e também Kama, sem se tornar escravo de suas paixões, consegue
êxito em todos os seus empreendimentos” (VATSYAYANA, 2012, p. 335). 25

Percebemos que para o poeta os deveres e comportamentos dos


homens estão muito associados a sociedade e a religião, e o sexo não é
somente considerado algo normal ou necessário, mas sim, sacramental,
ligado diretamente com a religião, influenciado pela cultura envolta a
sociedade. Os homens deveriam agir, segundo Vatsyayana da maneira
correta proposta por ele, pois dessa forma conquistariam as mulheres que
seriam as “ideais” para estes homens, e estariam de acordo com aspectos
religiosos, o poeta também explica detalhadamente como deveriam agir
na vida íntima e em meio a sociedade.
Em seguida veremos, desta mesma maneira, os comportamentos
indicados por Vatsyayna para as mulheres, pois assim como o poeta nos
indica as ações ideais para o masculino, o faz de uma mesma forma para o
feminino.

3 “DO MODO DE VIDA DA MULHER VIRTUOSA E DO SEU


COMPORTAMENTO”

Kama Sutra não é um livro sagrado, segundo a religião hinduísta.


Na literatura hindu, os Sutras, diferentemente dos Vedas, que são os
textos sagrados propriamente ditos, são considerados como “tratados
educacionais”. Existem deles sobre guerra, arquitetura, gramática e
outros. O Kama Sutra também apresenta o “tântrico”, mas este de
maneira referente à magia, às poções de amor e a afrodisíacos. Expondo
deveres, obrigações e compromissos inquebrantáveis ligados ao
casamento tradicional, o Kama Sutra surgiu como um texto para encerrar 26

as questões sobre o problema do desejo, tendo em vista que o desejo


(Kama) é uma parte integrante da vida social e religiosa indiana.
Percebe-se que o propósito primário deste documento não é
discutir sobre os direitos das mulheres, pois grande parte dele é voltado
para os homens, com conselhos para eles sobre formas de “manipular” as
mulheres, de “conquista-las”, mas o texto do Kama-sutra foi também
destinado a mulheres, para as mulheres como leitoras da obra.
Vatsyayana argumenta, com alguma extensão, que as mulheres, ou
algumas mulheres, devem ler seu texto ou devem aprender o seu
conteúdo de outras maneiras, sem realmente lê-los. Mas devem ter, de
alguma forma, o conhecimento de seus escritos.

O Kama sutra, e as artes e ciências a ele subordinadas,


bem como as artes e ciências contidas em Dharma e
Artha, devem ser estudadas. Até mesmo as moças
devem estudar o Kama sutra, juntamente com suas
artes e ciências antes do casamento e depois, e depois
dele devem continuar a estudá-lo se assim permitirem
seus maridos. (VATSYAYANA, 2012, p. 41)

Assim como aos homens, o poeta indica muitas maneiras de


comportamento tanto para a vida privada e pública às mulheres.
Vatsyayana apresenta-nos alguns “tipos” específicos de mulheres, que
veremos em sequência neste capítulo, e como estas deveriam se portar,
tanto para com o marido, amigos de seu marido, com as outras esposas de
seu marido e em meio à sociedade. Esses aspectos que são apontados
durante a obra são muito interessantes para compreendermos alguns 27

elementos do cotidiano de mulheres indianas, mesmo que a partir do


ponto de vista de Vatsyayana.
Por sua vez, devemos perceber que existem diferenças de cunho
biológico entre os sexos, mas o que devemos identificar, mais
repetidamente, são as diferenças que cada uma das mais variadas culturas
“impõe” para estes sexos. As mulheres, assim como os homens, possuem
padrões idealizados dentro de devida sociedade que modelam seus
modos de agir, de se vestir, de viver em meio a sociedade e em sua vida
pessoal, modelos idealizados que podem ou não privar homens e
mulheres de seus direitos, impondo-lhes ou não deveres, pois, cada
sociedade age de maneira diferenciada quanto a estes aspectos.

En todas las culturas un amplio conjunto de ideas,


representaciones, prácticas y prescripciones sociales,
relativas a nuestra condición, sexuada, conforman los
papeles de género que simbolizan y construyen
socialmente lo que ‘es propio’ de los hombres (lo
masculino) y lo que ‘es propio’ de las mujeres (lo
femenino). El género – como categoría de relación -
actúa a modo de “deber sersocial” que es generado y,
a su vez, genera discursos que constriñen acciones y
estrategias personales. Esta ordenación social no sólo
es una astucia de la cultura que opera en la dirección
de la reproducción de la especie, sino que,
fundamentalmente, es un mecanismo que instaura
relaciones asimétricas de poder que, en cada
momento histórico, delimitan y definen las posiciones
de los sujetos en función de su sexo. (BENLLOCH,
2005, p. 105)5
28

Quando Michelle Perrot aborda sobre o silêncio das mulheres, no


livro “o corpo feminino em debate” ela critica que “A vida sexual feminina,
cuidadosamente diferenciada da procriação, também permanece oculta.
O prazer feminino é negado, até mesmo reprovado” (PERROT, 2003, p.
16), a autora continua sua escrita falando sobre as mulheres sem o direito
ao prazer sexual, tidas como um objeto dos homens, pois o princípio da
vida é o masculino, o falo, o esperma que gera, as mulheres são tidas
então como inferiores, “assim se opera uma construção sociocultural da
feminilidade, que Simone de Beauvoir analisou (O segundo sexo, 1949),
feita de contenção, discrição, doçura, passividade, submissão (sempre
dizer sim, jamais não), pudor, silêncio. Eis as virtudes cardeais da mulher
(PERROT, 2003, p. 21)”, Perrot analisa que estas virtudes consideradas
aspectos de uma feminilidade ideal, são ensinadas as meninas desde que
nascem, são estas as virtudes de submissão e silêncio, nos
comportamentos e gestos cotidianos, e, acima de tudo, o pudor, a honra

5
Tradução livre: Em todas as culturas de um conjunto amplo de ideias, representações, práticas e
prescrições sociais sobre nossa condição sexual, nos jornais género e socialmente construído simbolizam
o que é próprio dos “homens” (Masculino) e o que é próprio das "mulheres” (feminino). Sexo – como
categoria relacionamento - age como um "dever ser social" que é gerado e, por sua vez, ele gera
discursos que contraem ações e estratégias pessoais. Este arranjo social não é apenas um artifício de
cultura que opera no sentido de reprodução das espécies, mas, basicamente, é um mecanismo que
estabelece as relações potência assimétrica em cada momento histórico, delimitar e definir posições de
temas de acordo com seu sexo. (BENLLOCH, 2005, p.105)
feminina do fechamento e do silêncio do corpo. Logo estes padrões tidos
ocidentalmente não fogem completamente de padrões idealizados
também no contexto oriental, veremos que Vatsyayana apresenta-nos em
seu manual, características de uma visão mais ampla quanto aos direitos
das mulheres, ao menos em relação ao ato sexual, quanto ao direito das 29

mulheres em amplos sentidos, mas que ainda assim apresenta coisas


questionáveis, que merecem ser analisadas mais cuidadosamente pois,
mesmo que alguns dos comportamentos idealizados são tidos também
orientalmente igual ao nosso contexto, muitas coisas são completamente
diferentes, lembrando ainda que além deste contexto amplamente
diferente do nosso tido pelo poeta o seu período de escrita do documento
é completamente diferente do atual.

Quando uma moça da mesma casta, virgem, é


desposada de acordo com com os preceitos da
Sagrada Escritura, os resultados dessa união são a
aquisição de Dharma e de Artha, de descendentes,
afinidades, aumento do número de amigos e um amor
imaculado. Por isso, o homem deve fazer com que se
sua afeição recaia numa moça de boa família, cujos
pais estejam vivos, que seja mais jovem do que ele
três anos ou mais. Ela deve vir de uma família muito
respeitável e ter muitos amigos. Deve também ser
bonita, de boa disposição, ter sinais de boa sorte no
corpo, bons cabelos, unhas, dentes, orelhas, olhos e
seios, exatamente como devem ser, proporcionais ao
seu talhe, e gozar de boa saúde. Também o homem
deve, é claro, ter as mesmas qualidades. Mas em
nenhuma hipótese [...] a moça que já se uniu á outros
(isto é, que já não virgem) deve ser amada, pois isso
seria censurável. (VATSYAYNA, 2012, p. 151)

As mulheres, portanto, dentro do contexto do documento,


possuem seus determinados padrões para serem esposas ideais.
30
Vatsyayana quando apresenta as 64 artes que devem ser estudadas junto
ao Kama Sutra, e que foram apresentadas no capítulo anterior, designa
estas tanto para os homens aprenderem quando para as mulheres, estas
que estando versadas nas 64 artes, que são o canto, a escrita, o desenho,
a arte culinária e outros, se tornam as chamadas “mulheres públicas”, ou
“Ganika”, que segundo Vatsyayana (2012) podem vir a ocupar lugar de
honra em uma reunião de homens, obtendo respeito, até mesmo do rei. O
poeta continua dizendo que mulheres que sabem as 64 artes podem, caso
elas venham a se separar de seus maridos, manter-se facilmente, mesmo
em um país que lhes seja estranho. Para que elas estudem estas 64 artes
devem requerer a ajuda de uma amiga intima e de confiança e que já
esteja casada, ou a filha de uma de suas amas, que tenha sido criada junto
dela e que também esteja casada.

A mulher também deve ter as seguintes


características:
Ela deve ser dotada de beleza e amabilidade, com
marcas auspiciosas no corpo. Ela deve ter bom gosto
para se relacionar com as pessoas, como também o
gosto pela riqueza. Ela deve ter prazer em uniões
sexuais, decorrentes de amor, e deve ser de uma
mente firme, com o mesmo gosto pelo gozo sexual
que os homens apreciam.
Ela deve ser sempre ansiosa para adquirir experiência
e conhecimento, estar livre de avareza, e gostar de
reuniões sociais e das artes.
A seguir, são as qualidades de todas as mulheres
cortesãs:
Ser dotada de boas maneiras, inteligência, boa
disposição, ser simples de comportamento, ser grata; 31
ser previdente; ter ou realizar algum tipo de afazer ou
trabalho, e ter um conhecimento dos tempos e
lugares adequados para fazer as coisas; falar sempre
sem maldade, sem gargalhadas, raiva, avareza,
estupidez, ter conhecimento do Kama Sutra, ser
qualificada em todas as artes ligadas a ela.
As faltas das mulheres são notadas pela ausência de
qualquer das boas qualidades acima mencionadas.
(VATSYAYANA, 2012, p. 267-268)

Além de mostrar quais mulheres seriam ideais para casar-se, o


poeta explica que há um momento ideal para o casamento, não podendo
ocorrer em um momento qualquer, e que as mulheres devem estar
presentes na hora do pedido, também não podem ser já noivas de outro
homem, o poeta enumera outras características de mulheres que
deveriam ser evitadas, como as que se mantém escondidas, as que tem
pernas tortas, a mulher que é irmã mais nova, e assim por diante, também
apresentando as mulheres que são facilmente conquistadas, estas são as
seguintes:

Mulheres que estão às portas de suas casas


Mulheres que estão sempre olhando para fora na rua
Mulheres que se sentam para conversar na casa de
seu vizinho
Uma mulher que está sempre olhando para você
Um mensageiro do sexo feminino
Uma mulher que olha de soslaio para você
Uma mulher cujo marido tenha tomado outra mulher
sem justa causa
Uma mulher que odeia o marido, ou que é odiada por
ele 32
Uma mulher que não tem ninguém para cuidar dela,
ou mantê-la sob controle
Uma mulher que não teve nenhum filho
Uma mulher cuja família ou casta não é bem
conhecida
Uma mulher cujos filhos estão mortos
Uma mulher que gosta muito da sociedade
Uma mulher que aparentemente é muito carinhosa
com o marido
A esposa de um ator
Uma viúva
A pobre mulher
Uma mulher de prazeres
A esposa de um homem com muitos irmãos mais
novos
Uma mulher vaidosa
Uma mulher cujo marido é inferior a ela em posição
ou habilidades
Uma mulher que se orgulha de sua habilidade nas
artes
Uma mulher com a mente perturbada pela loucura de
seu marido
Uma mulher que foi casada em sua infância com um
homem rico, e não gosta dele
Uma mulher que é desprezada pelo marido sem causa
Uma mulher que não é respeitado por outras
mulheres da mesma categoria ou beleza como a dela
mesma
Uma mulher cujo marido viaja muito
A esposa de um joalheiro
A mulher ciumenta
Uma mulher cobiçosa
Uma mulher imoral
A mulher estéril
Uma mulher preguiçosa
Uma mulher covarde
Uma mulher corcunda 33
Uma mulher anã
Uma mulher deformada
Uma mulher vulgar
Uma mulher mal-cheirosa
Uma mulher doente
Uma velha
(VATSYAYANA, 212, p. 216)

As mulheres e os homens são caracterizados de maneira diferente


quando o poeta trata sobre as formas de união sexual, estas diferenças
caracterizadas pelos seus órgãos genitais, cada um dos sexos possui,
portanto, um parceiro adequado, acontecendo o que se chama de uniões
desiguais, existindo nove possibilidades diferentes de uniões. Classificando
três tipos de mulheres, baseado nos “graus de sua paixão”, neste as
mulheres possuem uma significativa diferença se comparado aos homens.

A emissão de esperma pelo homem só ocorre no final


do coito, ao passo que o sêmen da mulher flui
continuadamente; quando o sêmen de ambos tiver
fluído totalmente, sentem ambos o desejo de
suspender as relações [...] Pela união com os homens
as mulheres satisfazem sua luxúria, desejo ou paixão,
e o prazer obtido da consciência do desejo é que
chama sua atenção. (VATSYAYANA, 2012, p. 76-77)
Por sua vez, Richard Burton (2012), tradutor e comentador inglês
do Kama Sutra, levanta a seguinte questão ao decorrer da obra, de que
“Se o homem e a mulher são seres da mesma espécie e se estão
empenhados em conseguir os mesmos resultados, por que devem ter
funções diferentes a cumprir? (VATSYAYNA, 2012, p. 77), argumenta-se 34

que tanto o comportamento quanto as sensações de prazer são diferentes


no homem e na mulher, as mulheres como seres passivos e os homens
como seres ativos, possibilitando diferenças nas sensações de prazer, mas
estas diferenças de comportamento deveriam ser negadas, pois ambos
experimentam o mesmo prazer, e tem as mesmas finalidades e
propósitos. Na obra possui um capítulo dedicado as “mulheres que
desempenham o papel do homem e da atuação do homem”, neste
apresenta-se como “as mulheres poderiam “desempenhar papéis
masculinos”, simulando seus genitais, seu “sexo”. Da mesma maneira que
os homens poderiam simular performances sexuais “femininas”
(WEISSHEIMER, 2015, p. 03), referindo-se também a que existem algumas
circunstâncias que não permitem que as mulheres atuem com o “papel do
homem” durante a união sexual.

Embora a mulher seja modesta e disfarce suas


emoções, quando ela sobe sobre o homem mostra
todo seu amor e desejo. O homem deve perceber pelo
comportamento da mulher as suas inclinações e
maneiras pelas quais ela gosta de ser possuída. A
mulher menstruada, a que deu à luz recentemente e a
gorda não devem desempenhar o papel do homem.
(VATSYAYANA, 2012, p. 132)
As mulheres, segundo o Kama Sutra, possuem algumas
“restrições” de como devem agir em meio a relações sexuais, mas
também se apresenta as maneiras de como elas deveriam se comportar
quando o marido está ausente, e como levar a vida de uma “mulher 35

virtuosa”. “A mulher virtuosa, que tem afeição pelo marido, deve agir de
acordo com seus desejos, como se ele fosse um ser divino, e com seu
consentimento deve assumir o cuidado da família” (VATSYAYANA, 2012, p.
189), no manual continua-se explicando que esta mulher deve manter
sempre a casa bem limpa e organizada, deve cercar a casa com um jardim
e deve venerar o santuário dos deuses domésticos, pois nada atrai tanto o
coração do dono da casa para sua esposa quanto a observação cuidadosa
das coisas acima mencionadas. Estas mulheres também devem evitar a
companhia de mulheres que não lhe estão de acordo, como mulheres
devassas e grosseiras e mulheres que leem a sorte ou feiticeiras. E em
casos de ausência do marido deve seguir uma série de comportamentos
recomendados por Vatsysyana, como dormir perto de mulheres mais
velhas.

A esposa, quer seja mulher de família nobre ou uma


viúva virgem que se casou novamente, ou uma
concubina, deve levar vida de castidade, dedicada ao
marido, e tudo fazendo para o seu bem-estar. As
mulheres que assim procederem adquirem Dharma,
Artha e Kama, conseguem alta posição e em geral
preservam a dedicação dos maridos. (VATSYAYANA,
2012, p. 197)
Quando refere-se na obra a “viúvas virgens” diz-se para as
meninas que se casam ainda na infância, pois se trata de um costume
hinduísta, e que perderam seus maridos antes de atingirem a puberdade.
O poeta também menciona como as viúvas não virgens devem se portar 36

em cada caso diferente, assim como caso elas se casem novamente. São
diferenciadas as maneiras de comportamento dentro de um novo
casamento, chamando a viúva de “viúva casada em segunda núpcias”
(VATSYAYANA, 2012, p. 202). O poeta também menciona como as
mulheres mais jovens devem se comportar perante as mais velhas, caso o
marido possua várias esposas, e o que pode causar insatisfação dentro do
casamento que o leva a procurar outras mulheres para casar-se.

A mulher deve, desde os primeiros dias do casamento,


procurar atrair o coração do marido, mostrando-lhe
continuadamente a sua dedicação, seu bom gênio e
sua prudência. Se não lhe der filhos, ela mesma deve
aconselhar o marido a desposar outra mulher. Se isso
acontecer, quando a segunda esposa chegar a cassa, a
primeira deve conceder-lhe uma posição superior à
sua e considerá-la como irmã [...] Deve tratar os filhos
da outra como se fossem seus; tratará os criados dela
com atenção ainda maior do que com os seus próprios
criados; dedicará aos amigos da outra amor e
bondade e tratará os parentes dela com grande
respeito [...] Quando houver muitas outras esposas
além dela, a mais velha deve ligar-se a que está mais
próxima em posição e idade, e instigará a esposa que
tenha recentemente gozado da preferência do marido
a brigar com a atual favorita. (VATSYAYANA, 2012, p.
200)

A esposa que é mais jovem deve considerar a esposa mais velha


como uma mãe, e não deve procurar o marido sem a permissão dela,
37
comportando-se de acordo com esta esposa mais velha. O poeta diz ainda
que uma esposa que é jovem e que possui um “bom gênio” e que se
comporte de acordo com os preceitos da Sagrada Escritura conquistará o
afeto de seu marido e a superioridade sobre as suas rivais.
Podemos perceber, a partir do documento analisado, ao decorrer
deste capítulo que assim como os homens, as mulheres também possuem
igualmente ou mais, deveres e comportamentos a serem seguidos, para
que estas mulheres ajam de acordo com os preceitos religiosos, e
conquistem seus maridos, como é apresentado por Weissheimer (2015), a
ética que é voltada para uma satisfação dos prazeres femininos não
representa para Vatsyayana diretamente uma forma de “benevolência”
para com as mulheres, “As relações de gênero na antiguidade indiana
eram extremamente díspares para acreditarmos na bondade do autor em
relação às mulheres” (WEISSHEIMER, 2015 p. 06). Vatsyayana mesmo
apresentando significações que permitem às mulheres o prazer sexual, ou
uma posição perante a sexualidade, é evidente a preocupação em manter
alguns aspectos que caracterizam uma “dominação masculina”, e a
primazia de uma sociedade patriarcal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Kama Sutra é um livro milenar, escrito por Mallanaga
Vatsyayana originalmente em sânscrito, hoje o manual é mundialmente
conhecido. Mas ocidentalmente ele é tido, basicamente como um manual
erótico, enquanto isto não o define, pois a partir deste manual podemos
analisar comportamentos idealizados quanto aos homens e mulheres 38

perante a sociedade indiana do período de sua escrita.


É evidente que os aspectos sobre masculinidades e feminilidades
apresentam dimensões independentes, que incluem aparência,
comportamento, personalidade e interesses, pode-se, portanto,
argumentar desde aos aspectos de gênero aos traços de personalidade,
conferindo uma instrumentalidade e uma divisão dos papéis entre os
sexos, atribuindo a cada qual “qualidades” distintas, isso se torna
aparente não apenas na sociedade indiana percebida através do
documento Kama Sutra, mas em todas as sociedades e de maneiras
desiguais.
“Na literatura de todos os países existem algumas obras que
versam especialmente sobre o amor. Em todas elas este tema é tratado de
maneira diferente e de diversos pontos de vista” (VATSYAYANA, 2012, p.
09). Louro (2000) expõe que as muitas formas de se fazer mulher ou
homem, e as várias possibilidades de se viver prazeres e desejos corporais
são sempre sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente. Elas são
também, renovadamente, reguladas, condenadas ou negadas. Portanto,
em muitas sociedades as ideologias predominantes partem segundo as
condições sociais, fugindo das perspectivas biológicas, porém isso nos
permite uma perspectiva baseada nas interações da “natureza humana” e
da cultura de uma sociedade, se tornando algo simbólico e material.
Em linhas gerais, o Kama sutra dá conta de nos apresentar uma
sociedade patriarcal e heteronormativa, conforme apresentado por
Connel, em que “Las definiciones de masculinidad han aceptado en su 39

mayoría como verdadero nuestro punto de vista cultural, pero han


adoptado estrategias diferentes para caracterizar el tipo de persona que
se considera masculina” (CONNEL, 1997, p. 02)6, mesmo que estimulem os
homens a desenvolverem potenciais para conquistar as mulheres, essa
conquista não é essencialmente para uma relação romantizada aos
moldes do que entendemos em nossa cultura ocidental, é uma conquista
para a dominação.
Mas será que todos os homens e as mulheres se adéquam a estes
padrões idealizados? Na realidade social não se atingem esses padrões,
pois existem inúmeras outras manifestações de masculinidades e de
feminilidades. O documento analisado nos leva a entender um modelo
padrão de homens e mulheres idealizados, e que mesmo que sejam
apresentados pequenos trechos sobre homossexualidade, isto aparece
como algo fora do padrão heteronormativo, em que as mulheres são
apenas propriedade de seus maridos, devendo assim cuidar da casa e do
comportamento para agradá-los. Os homens podem ter várias mulheres,
mas as mulheres não podem ter vários homens, as mulheres podem ter
prazer, mas esse prazer está confinado às normas do casamento, como

6
Tradução livre: As definições de masculinidade, na sua maioria aceitam como verdadeiro o nosso
ponto de vista cultural, mas também adotaram estratégias diferentes para caracterizar o tipo de pessoa
que é considerado masculino.
uma maneira de impedir que suas esposas os deixem. E mesmo este
padrão do ideal masculino e feminino sendo consideravelmente diferente
do que temos ocidentalmente, muitas vezes confundindo ideais femininos
com os ideais masculinos, ele ainda confina homens e mulheres a agirem
de maneira determinada e limitadora. 40

REFERÊNCIAS

ARCHER, W.G. Prefácio. In. VATSYAYANA, Mallanaga. Kama Sutra.


Traduzido da versão clássica de Richard Burton. RJ: Jorge Zahar, 1986

AUBOYER, Jeannine. O mundo da arte: Mundo oriental. Rio de Janeiro:


Expressão e cultura, 2012.

BENLLOCH, Isabel Martinez. Construcción psicosocial de los modelos de


gênero: subjetividad y nuevas formas de sexismo. In: CASTILLO-MARTÍN,
Márica; OLIVEIRA, Sueli (orsg.). Marcadas a ferro: violência contra a
mulher, uma visão interdisciplinas. Brasília: Secretaria Especial de Políticas
para as mulheres, 2005.

BUENO, André da Silva. Cem textos de história indiana. União da vitória.


2011.

CONNELL, R.W. La organización social de la masculinidad. In. VALDÉS,


Teresa y OLAVAVARRÍA, José. Masculinidad/es: poder y crisis. Chile: Isis
internacional, 1997.

GAMA, Gloria Maria Oliveira. Escrita masculina/personagens femininas:


os contos de Rinaldo de Fernandes. João Pessoa: UFPB, 2012.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo


– uma história de gênero masculino. Maceió: Catavento, 2003.

LEMAITRE, Solange. Hinduísmo ou Sanátana Dharma. São Paulo:


Flanboyant, 1958.
LIMA, Maria Lúcia Chaves; MÉLLO, Ricardo Pimentel. As Vicissitudes da
Noção de Gênero: por uma concepção estética e antiessencialista. Gênero
na Amazônia, Belém, n. 1, jan./jun., 2012.

LOBATO, Josefina Pimenta. Amor, desejo e escolha. Rio de Janeiro.


Editora Rosa dos Tempos, 1997.
41
LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Rio de Janeiro:


Vozes, 2011.

MEAD, Margaret. Sexo e temperamento. São Paulo: Perspectiva, 1969.

PAULSON, Susan. Sexo e gênero através das culturas. In. ADELMAN,


Miriam, SILVESTRIN, Celsi Brönstrup. Coletânea gênero plural. Curitiba:
UFPR, 2002.

PERROT, Michelle. Os silêncios do corpo da mulher. In. MATOS, Maria


Izilda Santos de, SOIHETI, Rachel. O corpo feminino em debate. São Paulo,
Editora UNESP, 2003.

SAFFIOTI, Heleieth J.B. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Editora


Fundação Perseu Abramo, 2004.

RENOU, Louis. Antologia de textos Hindus. Rio de janeiro: Ed. Jorge Zahar,
1969.

RENOU, Louis. O Hinduísmo. Lisboa: Arcádia, 1971.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação
e Realidade. Porto Alegre, v.16, n.2, p. 5-22, jul/dez., 1990.

SILVA, Carla Fernanda da. O Kama Sutra e o cuidado de si. Linguagens -


Revista de Letras, Artes e Comunicação. Blumenau, vol. 5, n° 3, p. 220-237,
set. /dez. 2011.

STEARNS, Peter N. História das relações de gênero. São Paulo: Contexto,


2010.
TILLY, Louise A. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos
Pagu. São Paulo: UNICAMP. 1994.

TONELI, M.J.F. Sexualidade, gênero e gerações: continuando o debate. In


JACÓ-VILELA, AM., and SATO, L., orgs. Diálogos em psicologia social
[online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2012. p.
147-167. 42

VATSYAYANA, Mallanaga. Kama Sutra (Segundo a Versão Clássica de


Richard Burton e F. F. Arbuthnot). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

WEISSHEIMER, Felipe Salvador. O Kama sutra para além de Vatsyayana:


relações de gênero nas leituras do antigo livro indiano. Anpuh, 2015.
Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História. Lugares dos Historiadores:
velhos e novos desafios. Florianópolis/SC. 27 a 31 de Julho de 2015.
Disponível em:
http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1434566173_ARQUI
VO_ArtigoAnpuh2015.pdf. Acessado em: 12\07\2016.

WOLFF, Cristina Scheib; SALDANHA, Rafael Araújo. Gênero, sexo e


sexualidades: categorias do debate contemporâneo. Retratos da escola,
Brasília, vol. 09, n. 16, jan. / Jun. 2015.
CONCEPÇÕES DE FORMA DE GOVERNO DE ATENAS EM
LIVROS DIDÁTICOS CONTEMPORÂNEOS

Elvis Rogerio Paes


Luís Ernesto Barnabé 1

Resumo
O presente texto possui o objetivo de analisar, como os livros didáticos referentes ao
PNLD (Plano Nacional do Livro Didático) de 2014, apresentaram as formas de governo
e suas concepções desenvolvidas em Atenas. Tendo ciência, que a História Antiga e seu
recorte espacial e temporal não pode ser visto como algo naturalizado, o livro didático
também reflete a interesses que são apontados no texto, discutidos em conjunto com
os dados obtidos que envolvem os conceitos de formas de governos; ostracismo;
definição do termo democracia; que são apresentados nos referentes livros. Todos
esses fatores implicam compreender a dimensão complexa do livro didático para o seu
principal utilizador: o estudante.
Palavras Chaves: História Antiga; Atenas; Formas de Governo; Ostracismo; Democracia.

Abstract
This text has to analyze, as the textbooks for the PNLD (National Plan Textbook) 2014,
presented the forms of government and their ideas developed in Athens.
Being aware that the ancient history and its spatial area and temporal cannot be seen
as naturalized, the textbook also reflects the interests that are mentioned in the text,
discussed together with the data obtained involving the concepts of forms of
government; ostracism; definition of democracy; which are presented in the related
books. All these factors imply understanding the complex dimension of the textbook
for your main user: the student.
Key Words: Ancient History; Athens; Forms of Government; Ostracism; Democracy.

O que tradicionalmente se conhece por História Antiga


enquanto código disciplinar – o seu recorte espacial e temporal adotado –
não pode ser visto como algo naturalizado, mas ao contrário, uma
construção ocorrida na Europa por séculos e consequentemente como um
processo que implicou para a sociedade brasileira, em meados do século
XIX, em escolhas de filiação ocidental, o que resultaria na construção de
uma memória social que predomina até os dias atuais (GUARINELLO, 2

2013). Tratava-se também de se fabricar uma antiguidade “sem conflitos,


como uma idade de ouro perdida, servia a interesses não declarados”
(FUNARI; SILVA; MARTINS, 2008.p.8).
Por isso, é importante compreender como se deu a “invenção”
do antigo. O Renascimento Cultural na Europa do século XIV trouxe
consigo a redescoberta e uma “glorificação” do patrimônio do mundo
greco-romano. Obras e autores até então esquecidos, a partir do
Renascimento terão uma maior abrangência e na Itália do século XVII
passam a serem vistos como: “a herança escrita dos antigos”
(GUARINELLO, 2013.p.18). Isso evidencia que o surgimento da História
Antiga “foi, no princípio, um movimento cultural e literário a partir de
textos e objetos” (GUARINELLO, 2013.p.17) e o Renascimento “não foi um
renascer passivo, mas uma construção profunda da memória”
(GUARINNELO, 2013.p.19). Esses instrumentos foram suportes,
“testemunhos dessa visão do passado” (GUARINELLO, 2013.p.18),
responsáveis pela herança de uma memória social “tributária de dois
grandes eixos culturais antigos: o mundo greco-romano e o mundo
bíblico”, que constituíram o Ocidente.
Se levarmos em conta a importância dada nos textos oficiais e
nas reformas educacionais propostas após o fim da ditadura militar a
temas como cidadania e democracia e ter em conta que “o livro didático
faz parte intrínseca do processo educativo” (BRASIL, 1999. p.461), e que
por conta do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) alcança
praticamente todos os bancos escolares do país, acreditamos ser válido
analisar como tais temas são apresentados no contexto do mundo grego 3

(e relacionados, ou não, ao nosso mundo). Com efeito, este trabalho


pretende mapear as abordagens nas edições aprovadas pelo PNLD 2014
das formas de governo ateniense em livros didáticos atuais.
Isso implica compreender a dimensão complexa do livro
didático. Estes “são instrumentos de trabalho do professor e do aluno,
suportes fundamentais na mediação do ensino e aprendizagem”.
(BITTENCOURT, 2011.p.295), mas também podem revelar as práticas
sociais que incidem sobre seu feitio, isto é, as visões de mundo e
concepções de história que foram, e são mobilizadas, e resultam em
narrativas dos capítulos; e fica mais evidente quando se concebe o livro
didático, “antes de tudo como uma mercadoria” (BITTENCOURT,
2002.p.71) e que, também, possui o “papel de instrumento de controle
por parte dos diversos agentes do poder” (BITTENCOURT, 2011.p.298),
portanto “a escolha do material didático é assim uma questão política”
(BITTENCOURT, 2011.p.298).
Identificaremos a construção narrativa das formas de governo e
os conceitos de democracia, ostracismo, buscando compreender
permanências ou rupturas de uma tradição na escrita acerca de Atenas.
Os livros são utilizados no 6° ano do Ensino Fundamental II, e
trabalhados na grade curricular de História Antiga, selecionamos 12 livros
do referido PLND, que serão descritos no quadro abaixo.
Livros Título Autor (es) Editora
1 Vontade de Saber História Marco Pellegrini; Adriana Dias; Keila FTD S.A 4
Grinberg.
2 Projeto Teláris Gislane Azevedo; Reinaldo Ática
Da Pré-História à Seriacopi.
Antiguidade
3 Leituras da História Oldimar Cardoso Escala
Educacional
4 Por Dentro da História Pedro Santiago; Célia Serqueira; Escala
Maria Aparecida Pontes. Educacional
5 Estudar História Patrícia Ramos Braick Moderna
Das origens do homem à
era digital
6 História Sociedade & Alfredo Boulos Júnior FTD
Cidadania ed.
Reformulada
7 Encontros com a História Vanise Ribeiro; Positivo
Carla Anastasia.
8 Saber e Fazer História Gilberto Cotrim; Saraiva
Jaime Rodrigues.
9 Jornadas.hist Maria Luísa Vaz; Saraiva
Silvia Panazzo.
10 Perspectiva História Renato Mocellin; Brasil
Rosiane de Camargo.
11 História Débora Yumi Motooka; SM Ltda.
Para Viver Juntos Muryatan Santana Barbosa.
12 Projeto Araribá Maria Raquel Apolinário Moderna
História

O quadro abaixo apresenta estruturação das formas de governo em


Atenas apresentada por cada obra analisada:
Livro Formas de Governo
1 Rei; Aristocracia; Democracia.
2 Basileu: rei escolhido entre grandes proprietários de terra e governava
com o apoio destes;
Aristocracia: “autoridade dos melhores”, do grego áristos, “os
melhores”; kratos, “autoridade”;
Democracia: do grego, 'demo', “povo” e 'cracia', “governo”.
3 Rei: Menciona a figura do polemarca e a do arconte, estes eram 5
auxiliares do rei escolhidos da nobreza, esse poder real enfraquece
devido a aristocracia;
Aristocracia: Nesse período não existe mais a figura do monarca, o
governo fica na mão do arconte e do polemarca, ou seja, da aristocracia;
Democracia: É a fase de Atenas, onde, o governo está nas mãos do
cidadão.
4 Monarquia; Arcontado; Aristocracia: Governo dos melhores (aristoi);
Legisladores; Tiranos; Democracia.
5 Monarquia; Aristocracia; Democracia.
6 Rei;
Aristocracia: Governo dos melhores. A aristocracia é um grupo formado
por pessoas ou famílias que, por herança ou concessão, possuem poder
ou uma série de privilégios sobre os demais.
Democracia: Democracia é a junção de demos (povo) e kratos (poder).
7 Monarquia: Governo de um rei. Formado pelo basileu.
Oligarquia: Governo de poucos.
Tirania: Aquele que governa pela força, despoticamente, sem obedecer
às leis existentes.
Democracia: do grego demo = povo e cracia = governo.
8 Rei: Meados do séc. VIII, possuía a função de juiz, sacerdote e chefe
militar.
Arcontes: Séc. VII, aristocracia, composta pelos eupátridas “bem-
nascido”, famílias consideradas nobres.
Democracia.
9 Monarquia: Séc. VIII a.C., na época de sua fundação, o governo era
exercido por um rei, chamado basileu.
Oligarquia: Os eupátridas formavam essa oligarquia, palavra grega que
significa governo exercido por um só grupo social ou de poucos grupos
sociais,
Democracia: Séc. VI, palavra grega que significa 'governo do povo'.
10 Monarquia: Constituída de forma hereditária. O rei era denominado de
basileu.
Oligarquia: Somente os eupátridas governavam.
Legislador; Tirano; Democrático.
11 Eupátridas: Aristocratas.
Democracia: Governo do povo.
12 Aristocracia: Atenas no início do século VII a.C estava nas mãos dos
aristocratas.
Democracia: Governo do demos (povo).

Foi possível identificar semelhanças e algumas variações entre os


livros didáticos, e disto destacamos cinco padrões. O primeiro padrão 6

forma uma sequência de: Rei, Aristocracia e Democracia, que pode ser
observada nos livros 1, 2, 3, 5, 6, 9. Já o segundo estabelece uma
sequência mais detalhada: Monarquia, Arcontado, Aristocracia,
Legisladores, Tiranos, Democracia, e ocorre nos livros 4 e 8. O livro 10 é o
único que apresenta sequência: Monarquia, Oligarquia, Legislador, Tirano
e Democracia, enquanto que o livro 11: Aristocracia e Democracia.
Finalmente, o livro 7 expõe: Monarquia, Oligarquia, Tirania e Democracia.
Em relação a democracia este conceito está presente em todas as 12
obras analisadas, mas somente os livros 2, 3, 6, 7, 9, 11, 12, se preocupam
em apresentar uma definição a respeito do conceito.
Desta forma temos:
N° Livro Dados Obtidos
2 Democracia: (do grego, demo que quer dizer ‘povo’ e cracia, ‘governo’.
(p.172)
3 Democracia: tem origem na palavra grega demos, nome dado pelos
atenienses tanto à população em geral quanto as divisões administrativas
de sua cidade. (p.104)
6 Democracia: A palavra democracia é a junção de demos (povo) e kratos
(poder), isto é poder do povo. (p.209)
7 Democracia: do grego demo = povo e cracia = governo, governo do povo.
(p.130)
9 Democracia: palavra de origem grega que significa “governo do povo”.
(p.199)
11 Democracia: Era a democracia, o governo do povo. (p. 110)
12 Democracia: democracia, isto é, o governo do demos, palavra grega que
significa tanto “povo”, quanto uma divisão territorial de Atenas. (p.168)
Assim, é possível perceber que os livros 9, 11, possuem grande
similitude na explicação dos conceitos. Os livros 2 e 7 também expressam
semelhanças. Temos por destaque os livros 3 e 12, que atrelam ao
conceito “demos” não apenas o sentido de povo, mas também uma
“divisão territorial de Atenas”. 7

A definição etimológica para o termo democracia, somente é


encontrada no livro 6, o qual ao contrário dos demais (2,7,9,11), utiliza a
palavra grega kratos para indicar poder e não governo.
Em relação ao Ostracismo, uma lei implantada na Atenas
democrática por Clístenes, que consistia em expulsar da cidade por um
período de dez anos quem ameaçasse a democracia, não é mencionado
nos livros 2,3,5,8,12. Quando mencionado nos livros 1,7,9, e 10 os autores
ilustram o termo a partir das imagens de cacos de cerâmica.
Considerando os fatos elencados notamos, que os livro 7,9,11,
expressam como explicação de democracia “Governo do Povo” e o livro 6,
que busca uma etimologia mais precisa, traduz kratos como “poder”,
portanto a democracia seria “Poder do Povo”. Noutras palavras, a
Democracia de Atenas não poderia ser definida como um Governo do
Povo, pois o povo ateniense tinha o poder de fazer leis, destituir leis, fazer
melhoramentos na cidade e isso não condiz com o modo de governo
atual, que é uma democracia representativa, e que de fato o povo não
exerce governo algum.
Portanto, o termo kratos é melhor traduzido no contexto ateniense
como “poder” do que como “governo”, pois o cidadão ateniense de fato
exercia o poder sem passar por intermediadores.
Enfim, foi possível perceber até aqui que há grande semelhança
entre as obras na organização das abordagens acerca de Atenas e sua
evolução política. Boa parte delas opta por três estágios – monarquia-
aristocracia-democracia – numa possível alusão às próprias classificações
feitas na antiguidade por Aristóteles e Políbio. Há ainda outras que 8

escapam à tríade e incluem outras etapas: arcontado, legisladores,


tiranos(ia), e outras que ficam na dualidade aristocracia-democracia.
Outro ponto que chamou atenção foi a predominância em torno da
definição do termo democracia como “governo do povo”, quando
somente uma obra enfatizou kratos.

Livros didáticos

PELLEGRINI, Marco; DIAS, Adriana; GRIMBERG, Keila. Vontade de Saber


História, 6° Ano. 2. ed. São Paulo: FTD, 2012.
AZEVEDO, Gislane; SERIACOP, Reinaldo. História Da Pré-História à
Antiguidade, 6° Ano. 1° ed. São Paulo: Ática, 2012 (Projeto Teláris:
História).
CARDOSO, Odimar. Leituras da HISTÓRIA, 6° Ano. 1° ed. São Paulo: Escala
Educacional, 2012.
SANTIAGO, Pedro; CERQUEIRA, Célia; PONTES, MARIA Aparecida. Por
Dentro da História, 6° Ano. 3ª ed. São Paulo: Escala Educacional, 21012.
BRAICK, Patrícia Ramos. Estudar História: Das origens do homem à era
digital, 6° Ano. 1ª ed. São Paulo: Editora Moderna, 2011.
BOULOS, Alfredo Jr. História sociedade & cidadania, 6° Ano. 2ª ed. São
Paulo: FTD, 2012.
RIBEIRO, Vanise; ANASTASIA, Carla. Encontro com a História, 6° Ano. 3ª
ed. Curitiba, Editora Positivo, 2012.
COTRIM, Gilberto; RODRIGUES, Jaime. Saber e Fazer História, 6° Ano. 7ª
ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
VAZ, Maria Luísa; PANAZZO, Silvia. Jornadas.hist, 6° Ano. 2ª ed. São Paulo:
9
Editora Saraiva, 2012.
MOCELLIN, Renato; CAMARGO, Rosiane de. Perspectiva História, 6° Ano.
2ª ed. São Paulo: Editora do Brasil, 2012.
MOTOOKA, Débora Yumi; BARBOSA, Muryatan Santana. Para viver juntos:
história, 6° ano. 3ª ed. São Paulo: Edições SM, 2012.
APOLINÁRIO, Maria Raquel. Projeto Araribá: história, 6° Ano. 3ª ed. São
Paulo: Editora Moderna, 2010.

Referências
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e
métodos. São Paulo: Cortez, 2011
BRASIL. Ministério da Educação. Plano Nacional do Livro Didático – Guia
de Livro Didático. Brasília, 1999.p.461.
FUNARI, P.P.A.; SILVA, G.J. & MARTINS, A. L. (org.) História Antiga:
contribuições Brasileiras. São Paulo: Annablume Fapesp, 2008
GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013.
REFLEXÕES EM TORNO DO ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA
NA GRADUAÇÃO: RELATO DE EXPERIÊNCIA A PARTIR DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

José Petrúcio de Farias Júnior1


1

Resumo
Refletir sobre o ensino de História Antiga tanto na Educação Básica, quanto no Ensino
Superior, em tempos de reelaboração da Base Curricular Comum, assume, para muitos
historiadores, caráter de militância. Ainda que saibamos que esta designação seja
exagerada, ela sinaliza uma postura bastante comum no meio acadêmico, defendida
por muitos historiadores. Diante disso, este artigo pretende pensar a relevância dos
conteúdos de História Antiga na formação de professores a partir de um relato de
experiência. Objetiva-se, com isso, problematizar o lugar dos estudos sobre a
Antiguidade nos currículos de licenciatura em História, tendo em vista um cenário de
intensos debates acerca da renovação do ensino de História na Educação Básica.
Palavras-chave: Ensino de História – História Antiga – formação de professor

Abstract
Reflect on teaching of Ancient History in basic education or in higher education, in
times of Common Curricular Base reworking, assumes, for many historians, militant
character. Although we know that this designation is exaggerated, it signals a fairly
common attitude in academic community, defended by many historians. So this article
aims to think about the relevance of Ancient History contents in teacher training from
an experience account. The purpose is, therefore, question the place of Antiquity
studies in undergraduate curricula in history, considering a scenario of intense debate
about the renewal of history teaching in basic education.
Keywords: Teaching of History - Ancient History - Teacher training

Não é difícil perceber que muitos historiadores se questionam se


não seria de fato mais produtivo suprimir das propostas curriculares do
ensino superior estudos dedicados à Antiguidade Oriental e Ocidental em
detrimento da história pátria ou se não seria mais adequado investir na

1
Universidade Federal do Piauí/campus de Picos
compreensão do aluno sobre a história regional ou nacional em lugar de
períodos históricos mais recuados.
Estes posicionamentos, mais presentes nos últimos dias, por ocasião
das reflexões em torno da consolidação da Base Nacional Comum
Curricular, mobilizaram os historiadores de História Antiga, de todas as 2

regiões do Brasil, a apresentar seus argumentos acerca da relevância dos


estudos da Antiguidade e do Medievo para compreensão do mundo
contemporâneo.
Entre eles, dois são os mais evidenciados: em primeiro lugar,
considera-se tendenciosa qualquer proposta que limite as experiências
cognitivas dos alunos, porquanto se subestima a capacidade dos
estudantes em compreender processos históricos, suas apropriações e
ressignificações na contemporaneidade.
Destaca-se que a Antiguidade e o Medievo, ainda que tenham sido
momentos históricos constituídos por sociedades plurais, cujas categorias
de pensamento, modos de agir, crenças, convicções, princípios e valores
político-culturais sejam muito diferentes da sociedade na qual estamos
inseridos, ajuda-nos a pensar sobre como determinadas experiências
humanas foram (re)semantizadas ou sobre como atribuímos novos
sentidos a nós mesmos, como cidadãos, e ao mundo em que vivemos.
Afinal, como entender nosso mundo contemporâneo sem que
observemos como ele começou a ser construído? Mais precisamente:
como entender o socialismo sem estudar o surgimento da propriedade
privada? Como entender a expansão do cristianismo no Ocidente sem
conhecer o processo de afirmação do discurso cristão no Império
Romano? Ou como entender a concepção moderna de democracia sem
que reflitamos sobre a emergência dessa prática política na Antiguidade e
suas apropriações pelo Ocidente?
Estes questionamentos, entre muitos outros possíveis, levam-nos a
reconhecer o motivo pelo qual não se deve negligenciar a Antiguidade e o 3

Medievo na Educação Básica, menos ainda no Ensino Superior. Estes


componentes curriculares, no Ensino Superior, tornam-se indispensáveis
para o desenvolvimento da capacidade reflexiva dos graduandos para lidar
com elementos que compõem as nossas experiências cotidianas, como a
concepção de democracia, a ideia de república, os movimentos cristãos, as
circunstâncias históricas que viabilizaram a emergência de discursos
religiosos, que movimentam hoje milhões de seguidores ou que
possibilitaram a emergência do próprio gênero histórico, entre outros.
Compreender a sobrevivência destas práticas político-culturais no
mundo contemporâneo torna-se indispensável para pensar as
particularidades acerca das circunstâncias históricas nas quais estamos
inseridos. Trata-se, em outras palavras, de uma maneira de
desnaturalizarmos o modo como nossa sociedade está organizada, isto é,
entendê-la como uma invenção humana que não prescinde do acúmulo
de experiências, as quais são, em certa medida, repensadas,
ressignificadas ou tornam-se obsoletas, tendo em vista as demandas
sociais que se apresentam em cada momento histórico.
Além disso, a tentativa de compreensão de sociedades antigas
torna-se uma atividade indispensável à formação do historiador,
porquanto contribui para exercitar o olhar sobre o ‘outro’, seus modos de
agir e pensar, crenças e percepções de si. Olhar o ’outro’, a partir de suas
experiências, seu universo simbólico ou a partir da forma como confere
inteligibilidade a si e ao mundo em que vive, permite-nos aprimorar a
reflexão sobre o nosso lugar no presente.
Assim, ao contrário de estudar a Antiguidade como um período 4

produtor de experiências culturais a serem emuladas por nós, convém


pensar os antigos a partir de sua ‘diferença’ em relação a nós.
Sob esta ótica, o desenvolvimento de situações de aprendizagem
por meio do uso de fontes históricas antigas deve contribuir para que
nossos jovens manifestem um posicionamento crítico acerca das práticas
culturais e políticas que emergiram na Antiguidade sob circunstâncias
históricas específicas e se apresentam na contemporaneidade de uma
maneira bastante particular. Queremos dizer, com isso, que é
aconselhável estudar uma História Antiga que faça sentido às nossas
indagações ou inquietações sociais.
No que diz respeito aos currículos de graduação em História das
regiões norte e nordeste, ainda que se percebam muitas diferenças
quanto à disposição da carga horária das disciplinas que constam na
matriz curricular, nota-se que o espaço dedicado ao estudo da
Antiguidade tem se limitado a uma única disciplina semestral de
aproximadamente 60 horas.
Algumas universidades oferecem-na em 90 horas, mas são raros os
casos em que elas são ministradas em dois semestres. E esta redução da
carga horária tem se tornado comum, em parte, por causa das orientações
provenientes das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Superior,
as quais têm requisitado a inserção de novos conteúdos, tais como
História e Culturas africanas e afro-brasileiras e História indígena. Não
questionamos a relevância de tais estudos, muito pelo contrário, mas sim
a interpretação que muitos historiadores atribuíram a estas reformas
curriculares. 5

Dessa forma, as propostas de reformulação dos projetos político-


pedagógicos dos cursos de Licenciatura em História, associada à desculpa
de que não há historiadores de história antiga e medieval suficientes no
país para atender às demandas das regiões norte e nordeste bem como a
predisposição de muitos historiadores pelo estudo do tempo presente ou
estudos voltados à História do Brasil ou da América Latina – perfil, diga-se
de passagem, dos cursos de pós-graduação das regiões norte e nordeste –
contribuíram para reforçar e até mesmo justificar o movimento de
desvalorização da História Antiga e Medieval nos currículos de
Licenciatura em História.
Enfim, para muitos historiadores lotados em institutos de ensino
superior do norte e nordeste, as reformas curriculares estariam ancoradas
na valorização da história do tempo presente ou da história do Brasil em
oposição ao estudo das sociedades antigas orientais e ocidentais,
incluindo a História Antiga da América.
A redução da carga horária em História Antiga produz significativos
impactos no ensino. Em virtude desta redução, muitos docentes se
limitam ao estudo de alguns aspectos político-culturais da Grécia e de
Roma, prática de ensino que, a meu ver, reforça dicotomias entre
ocidente e oriente, isto é, este recorte em geral desvaloriza a importância
dos contatos culturais no Mediterrâneo como elemento fundamental para
o desenvolvimento das sociedades antigas.
Em outras palavras, o estudo da Grécia e de Roma são, em geral,
apresentados de maneira dissociada dos diálogos que tais sociedades
estabeleceram com os fenícios, sobretudo do norte da África, com os 6

egípcios e demais sociedades nilóticas bem como com os impérios


mesopotâmicos, grupos étnicos do Levante e com os monarcas chineses.
O foco em determinadas experiências político-culturais da Grécia e
Roma produz a falsa percepção de que tais sociedades produziram
experiências político-culturais originais, isto é, desprovidas de quaisquer
influências e relações com as sociedades antigas orientais.
Os docentes que, a despeito da redução da carga horária, procuram
desenvolver situações de aprendizagem que contemplam a Antiguidade
Oriental e a Antiguidade Ocidental apresentam muitas vezes as
sociedades antigas como uma espécie de catálogo ou quadros muitos
genéricos e superficiais de tais grupos humanos por causa da falta de
tempo em abordá-las de maneira mais apropriada, isto é, por meio de
reflexões em torno de fontes históricas escritas, iconográficas,
cartográficas bem como da cultura material.
Este aspecto é um pouco minimizado na Universidade Federal do
Piauí, campus de Picos, porque a disciplina de história antiga, ainda que
seja concentrada no primeiro semestre e tenha carga horária equivalente
a 60 horas, é ministrada duas vezes por semana com duração de, no
máximo, duas horas. Então, em vez de 15 encontros semanais por
semestre, nós temos 30 encontros semanais. No interior destas 30 aulas,
03 são dedicadas a uma espécie de introdução aos estudos da Antiguidade
em que mostramos aos alunos com que fontes históricas e quadros
teórico-metodológicos pretendemos trabalhar, a natureza interdisciplinar
da História Antiga e, por fim, alguns aspectos indispensáveis à análise
documental, conteúdos importantes para ingressantes do curso de 7

História, já que a disciplina pertence ao primeiro semestre do curso de


Licenciatura.
Após este estudo introdutório, parte-se para a Mesopotâmia (04
aulas), com ênfase no processo de urbanização e consolidação das
instituições político-administrativas e suas relações com as práticas
religiosas; depois para o Egito (04 aulas), em que mais uma vez, confere-se
destaque à relação mútua de solidariedade entre política e religião, em
seguida, migramos para o estudo da História Antiga de Israel (04 aulas), no
interior da qual salientamos as relações entre Arqueologia e História bem
como elementos que nos ajudam a pensar a intencionalidade por trás da
escrita do que comumente chamamos de ‘Antigo Testamento’.
Para evitar que tais sociedades antigas sejam estudadas às pressas,
o que contribuiria para que os alunos tivessem apenas notícias sobre tais
civilizações, cada módulo é iniciado por meio de uma situação de
aprendizagem que intitulamos de Laboratório de História Antiga. A
proposta desta aula consiste em analisar uma fonte histórica e utilizá-la
como ponto de partida para refletir sobre determinada civilização.
Dessa forma, antes de iniciar as reflexões sobre os principais
impérios na Mesopotâmia, o Egito e sua relação com as sociedades
nilóticas ou Israel e os povos do Levante, os alunos entram em contato
com as fontes a fim de perceber diferentes categorias de pensamento,
particularidades quanto a valores e princípios político-culturais bem como
especificidades no âmbito da organização administrativa.
Iniciar um módulo pela fonte histórica permite, a nosso ver,
instrumentalizar os graduandos quanto ao uso de diferentes tipos de 8

fonte, suas marcas de autoria, destinatário, formas de circulação, entre


outros aspectos, mas principalmente evita abordagens conteudistas ou
práticas de ensino meramente instrucionais. Então, ao final do estudo de
determinada civilização antiga, é possível que o discente reconheça as
circunstâncias históricas e condições de produção da fonte em análise
bem como se posicione diante da historiografia que versa sobre as fontes
analisadas.
A proposta é que as aulas amadureçam o ‘olhar’ do discente sobre a
fonte. Esta estratégia de ensino evita, a nosso ver, o estudo da
Antiguidade como uma espécie de catálogo de civilizações das quais
temos apenas notícias. Quero dizer, mais precisamente, que o contato
com os diferentes tipos de fonte possibilita experimentar a alteridade
histórica e, adicionado a isso, dirimir perspectivas reducionistas ou
simplificadoras sobre tais sociedades.
O fato de os cursos de História Antiga estar, em geral, alocados nos
primeiros anos da graduação, torna-se uma excelente oportunidade não
só para treinar o graduando, historiador em formação, quanto ao uso de
diferentes tipos de fonte, mas também para sensibilizá-los quanto às
diferentes metodologias de análise documental de que o historiador faz
uso.
Após ter assistido às aulas sobre Mesopotâmia, Egito e Israel, por
exemplo, a ideia é que os alunos já tenham entrado em contato com
diferentes tipos de fonte. Neste ponto, os discentes já passaram por
situações de aprendizagem centradas no gênero épico, como ‘Epopeia de 9

Gilgamesh’, em fontes epigráficas, como a ‘Estela de Hammurabi’,


fragmentos de fontes escritas de natureza biográfica, como ‘o nascimento
de Sargão’, escrito provavelmente pelo escriba Anet, 119, e
administrativa, como os documentos produzidos pelos templos e palácios,
os quais indicam a movimentação de bens e a dinâmica de concessão de
propriedades privadas, como nos explica Emanuel Bouzon (2000).
Além disso, nas aulas sobre o Egito Antigo, os graduandos tem a
oportunidade de conhecer outros tipos de fontes históricas como os
hinos, dedicados a divindades do panteão egípcio, fontes iconográficas
que remontam a atividades econômicas e práticas político-religiosas a fim
de que compreendam a relação mútua de solidariedade entre política e
religião na Antiguidade.
E, nas aulas sobre a história antiga de Israel, mais um desafio: o uso
de textos sagrados como fonte histórica; isto implica compreender o
chamado ‘Antigo Testamento’ sob a ótica do processo de fortalecimento
das monarquias israelitas no Levante, a partir do século VII a.C bem como
sua natureza instrutiva ou pedagógica, sobretudo no âmbito da
construção de identidades.
Como se observa, estas situações de aprendizagem consomem
quinze aulas das trinta dedicadas ao estudo da Antiguidade. Ainda no
âmbito dos estudos da Antiguidade Oriental, uma aula é dedicada ao
estudo dos persas com ênfase na concepção de império e nas estratégias
adotadas pelos monarcas persas para assegurar a unidade político- 10

administrativa. Aproveita-se esta oportunidade para relacionar os


impérios persa, egípcio (reino novo) e mesopotâmicos (babilônio, assírio e
neobabilônio) a fim de que se compreenda os dispositivos políticos que
contribuíram para constituição de núcleos de poder e suas áreas de
influência. Por fim, dedica-se mais uma aula ao estudo dos fenícios
principalmente sob a ótica de seus contatos culturais no Mediterrâneo.
Nota-se que este percurso é exaustivo e não prevê, por exemplo,
eventualidades, como feriados, afastamentos para congressos, bancas ou
até mesmo casualidades quaisquer que impeçam o graduando de assistir
uma parcela das aulas.
Para que esta proposta de ensino funcione, é necessário que as 17
aulas sejam ministradas impreterivelmente, ainda assim, o estudo sobre
os persas e sobre os fenícios ficam achatados em apenas uma aula (de
duas horas) cada uma. Outro agravante versa sobre o volume de leituras
para cada módulo. Em geral, os graduandos têm dificuldade em ler e
refletir sobre todos os textos e fontes históricas solicitados. Também não
é difícil perceber que as interações em sala de aula ficam prejudicadas em
virtude da escassez de tempo.
As aulas são apresentadas no formato expositivo-dialogado, as
intervenções ocorrem de maneira propositiva, mas as explicações
fundamentais para o amadurecimento do ‘olhar’ sobre as fontes são
ministrados sempre às pressas, o que se torna um agravante quando se
pretende lecionar a Antiguidade sob a ótica dos contatos culturais e a 11

partir de inquietações contemporâneas sem que recorramos a


comparações entre presente e passado de maneira anacrônica ou
inadequada, tendo em vista as especificidades destas sociedades.
Quanto às situações de aprendizagem que versam sobre a
Antiguidade Ocidental, são reservadas apenas 13 aulas: aproximadamente
seis para Grécia e seis para Roma. Tal como mencionamos anteriormente,
a introdução de cada civilização ocorre por meio da leitura de fontes
históricas em aulas intituladas por nós de ‘Laboratório de História Antiga’.
Para introduzir os estudos sobre Grécia Antiga, são recomendadas leituras
de alguns capítulos da Ilíada, de Homero; Os trabalhos e os dias, de
Hesíodo e apenas trechos da Constituição de Atenas, de Aristóteles.
A fim de viabilizar tais investigações nosso recorte permanece
voltado às relações mútuas de solidariedade entre política e religião.
Como os estudos sobre as fontes históricas gregas e a democracia
ateniense, em particular, demandam certo tempo de amadurecimento das
ideias, o que nos leva a extrapolar o limite de seis aulas, as leituras sobre
Roma Antiga, localizadas no final do semestre, ficam extremamente
prejudicadas.
A pretensão de um curso tão audacioso se justifica pela ambição de
mostrar o diálogo profícuo e propositivo entre estas sociedades antigas, o
que se desvencilha de uma perspectiva que as vê de maneira isolada ou
que não reconhece compartilhamentos de ideias, valores e princípios
político-culturais, assumidos de maneira singular por cada grupo étnico, 12

em um contexto de contatos permanentes.


Penso que, mais do que fazer ainda mais recortes espaço-temporais
ou temáticos para tratar de experiências humanas em um arco
cronológico tão extenso, devemos repensar sobre a importância de
ampliar os estudos de História Antiga na universidade, haja vista a
possibilidade de articulação com uma série de outras disciplinas:
Introdução aos Estudos Históricos, Teoria da História, História da África,
História da Ásia, História da Educação, História Antiga da América, entre
outras possibilidades a depender da abertura e integração das ementas.
Adicionado a isso, o estudo da História Antiga, no âmbito da
graduação em História, instrumentaliza os graduandos, futuros
pesquisadores e professores de História, a analisar diferentes tipos de
fontes históricas; a reconhecer as limitações do conhecimento histórico,
tendo em vista a natureza lacunar das fontes da Antiguidade; a
compreender o ofício do historiador e suas responsabilidades no campo
da História, a exercitar a compreensão do ‘outro’ a partir de categorias de
pensamento que se diferem substancialmente da nossa. Enfim, trata-se de
um desafio por um currículo mais integrado que ofereça, especialmente
aos graduandos, do norte e nordeste um amplo leque de possibilidades de
pesquisa, ensino e extensão.
Referências bibliográficas
BOUZON, E. Contratos pré-hammurabianos do Reino Larsa. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2000.
CANDIDO, Maria Regina. Pesquisas de Antiguidade Clássica no Brasil.
ZIERER, A; XIMENDES, C. A. (Org.). História Antiga e Medieval: cultura e 13
ensino. São Luís: Editora UEMA, 2009.
CARDOSO, Oldimar. Para uma definição de Didática da História. Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 28, nº 55, 2008, p. 153-170.
CHEVITARESE, André L.; CORNELLI, Gabrielle; SILVA, Maria Aparecida
Oliveira. (Org.). A tradição clássica e o Brasil. Brasília: Fortium, 2008.
FUNARI, P. P. A. A importância de uma abordagem crítica da História
Antiga nos livros escolares. Revista História Hoje, São Paulo, n.4, 2004.
______. Poder, posição, imposição no ensino de História Antiga: da
passividade forçada à produção de conhecimento. Revista Brasileira de
História, SP, v. 18, n. 15, fev.1988, p. 257-264.
GUARINELLO, N. L. Uma morfologia da História: as formas da História
Antiga. Politeia: História e Sociedade, v.3, n.1, p.41-61, 2003.
GOODY, J. O roubo da História: como os europeus se apropriaram das
ideias e invenções do Oriente. SP: Contexto, 2008.
A IMPOSIÇÃO DO PODER CAPITALISTA NAS GUERRAS

Rafael Luiz Correia da Silva

RESUMO
A guerra é um tema muito discutido desde os primórdios da humanidade até os dias
atuais, isto por que ela está presente em todos os séculos, podemos ver como grandes
estrategistas de guerra ou mesmo historiadores veem este fenômeno que é extremista
por natureza, como afirma Clausewitz “a guerra é um ato de violência destinado a
obrigar o inimigo a fazer a nossa vontade”1. Podemos notar isto em todas as guerras
registradas, desde as do Peloponeso (431 a 404 a.C.) aos conflitos civis que estão
acontecendo no Oriente Médio (Guerra Civil na atualidade). Isto com grande influência
das multinacionais e Estados ricos que financiam as guerras com o interesse no lucro
posterior.
PALAVRAS CHAVES: Guerras, Política, Corrupção, Economia.

ABSTRACT
The war is a much discussed topic since the begin of humanity until the present day,
because it is present in every age, we can see how great strategists of war or even
historians see this phenomenon that is extremist in nature, as stated Clausewitz, "war
is an act of violence intended to compel the enemy to do our will." We may note that
in all recorded wars, from the Peloponnese (431-404 BC) to the civil conflicts that are
happening in the Middle East (Civil War today). This with great influence of
multinationals and rich states who finance the wars with interest in further profit.
KEYWORDS: War, Politics, Corruption, Economic.


Graduando 7° Período do Curso de Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco Campus
Mata Norte, integrante do Grupo História do Tempo Presente.
1
CLAUSEWITZ, Carl Von. Da Guerra; Tradução para o inglês Michael Howard e Peter Paret e tradução do
inglês para o português CMG (RRm) Luiz Carlos Nascimento e Silva do Valle, pág.94.
Conflitos, guerras, destruição em massa, política, crescimento
tecnológico são grandes temas para serem discutidos a partir do olhar de
grandes estrategistas e historiadores que tiveram a sensibilidade de
estudar este tema. Sob um olhar crítico, é possível notar como homens
que escreveram sobre o que é a guerra e qual o objetivo dela, mesmo em 2

séculos passados, trazem grandes influências na sociedade atual, assim


como, muitas estratégias usadas por estes estrategistas são ainda
aplicadas na atualidade, também podemos observar o que historiadores
contemporâneos têm a contribuir para nosso conhecimento sobre as
guerras e como eles veem esse fenômeno.
Sobre a perspectiva histórica e militar podemos ver a opinião de
Carl Von Clausewitz, Luigi Bonanate, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Luiz
Carlos Soares, Ignacio Ramonet, Sun Tzu, entre outros, que têm obras
escritas com o intuito de trazer uma reflexão sobre as guerras. Podemos
ter acesso a um fenômeno tão presente na nossa vida atual, assim como o
legado deixado por esses conflitos, afinal como afirma Bonanate à guerra
também nos deixam boas heranças, embora muitas desgraças.

Guerras
Este fenômeno tão discutido pela humanidade traz alguns fatores
em comum: conflitos de religiões, tentativa de controle do poder, guerra
política, econômica e social. Duas grandes potências do mundo antigo,
Atenas e Esparta, disputavam por território e poder econômico, assim
como, o Império Romano, o Império Frances, Russo, E.U.A., entre outros.
Estas grandes potências lutavam pela conquista de território e
busca pelo poder, ou simplesmente para defender seu território já que
novas potências iam surgindo. Nas conquistas Mongóis o imperador
Gêngis Khan quando notava a existência de um Estado crescendo ou se
destacando perante os demais ele mostrava seu poder militar e agia 3

usando a força, a mesma estratégia foi usada nas guerras bárbaras, que
tiveram a violência como destaque principal dos exércitos.
Dentre as estratégias de guerra uma que ganhou destaque na
historiografia foi a que utilizou a religião para expansão de poder,
movimento muito forte nas cruzadas, este movimento foi uma forma da
igreja católica ganhar mais autonomia e poder, se expandindo ao mais
longínquo território suas crenças e domínios, entretanto houve uma
oscilação contrária dentro da própria igreja. O principal motivo para estas
cruzadas era a luta territorial, principalmente na Península Ibérica e a
imposição do cristianismo pela igreja católica. A “Guerra Santa” era a luta
contra o povo dito “infiel” (muçulmanos), mas ambos os lados a
chamavam desta forma, os líderes católicos pregavam que as pessoas que
fossem para as cruzadas seriam perdoados dos seus pecados. O maior
objetivo desta guerra foi à imposição da igreja para ganhar território,
poder e riqueza, isso ainda é utilizado por países contemporâneos, sob a
prerrogativa da imposição de uma religião para adquirir poder econômico
e militar, usando estratégias militares e política para poder atacar os
Estados que se apresentavam como uma “ameaça”, assim como a
desculpa da busca pela paz mundial, paz essa que os norte-americanos
pregam nos dias atuais e continuam invadindo países e matando pessoas.
Outra guerra que também ganhou destaque foi à guerra de secessão, este
conflito teve grande importância, pois a partir dele os E.U.A. se
consolidaram como grande potência mundial, esta guerra foi considerada
a primeira grande guerra de um povo comum, uma guerra civil. Foi nela
que começaram a aparecer as novas tecnologias que seriam testadas com 4

mais vigor na primeira e segunda guerra mundial.


A Grande Guerra (Primeira Guerra Mundial) ficou conhecida com o
maior número de mortos até então, pelo fato dela ter sido composta por
duas modalidades de guerra, uma voltada para os modelos ultrapassados
com usos de cavalaria e armas brancas e outra, com uso de novas
tecnologias, avião de guerra, pólvora, balas, etc. Mas o maior marco desta
guerra foi o uso de trincheiras, por isso ficou conhecida como “a guerra de
trincheira”, onde os combatentes passaram a maior parte do tempo
dentro de buracos esperando a hora do ataque.
A segunda guerra mundial seria, segundo Francisco Carlos Teixeira,
uma continuação da primeira, esta girava novamente em torno da
Alemanha e a tentativa de Hitler de unificação dos germânicos, para ele
esse povo era superior às demais nações do mundo. A Alemanha teve a
colaboração da França e Grã-Bretanha que não impediu a sua fortificação
militar, já que a Alemanha foi proibida de construir aviões e armas de
guerra ou até mesmo de formar exército após derrota na primeira guerra
mundial. Segundo Pedro Tota o auge da guerra seria a entrada dos
americanos no conflito e isso teria se dado com o ataque do Japão a uma
base norte americana. Os Estados Unidos responderam à “altura” e
explodiram o Japão com duas grandes bombas nucleares, tentado
justificar os ataques das bombas atômicas os americanos falaram que isto
foi necessário para não terem uma guerra longa, desgastante e
desnecessária contra o Japão considerado como um império forte.
Durante esta guerra foi usado todo tipo de armas e tecnologias. Isso teria
como resultado a Guerra Fria 2. 5

Enfim, nota-se que por mais que cada guerra apresentada tenha seu
contexto individual, por mais diversificado que seja cada conflito, elas têm
algumas coisas em comum, por exemplo: o pensamento de uma guerra
rápida com vitória para as grandes potências. Aconteceu com o exército
de Atenas, tendo sua superioridade militar, achava que iria vencer
facilmente os espartanos; com os E.U.A., quando guerrearam contra os
vietnamitas, achavam que seria uma guerra curta e fácil, porém saíram
derrotados, ou ainda quando invadiram o Talibã na busca do líder (Osama
Bin Laden) dos ataques terroristas do 11 de setembro, sua busca durou
muito mais tempo o que ocasionou mais despesa para os E.U.A. e ainda
acarretou uma futura crise econômica neste país.

A Guerra, um resultado enganador?


No livro “A Guerra” Luigi Bonanate tem como objetivo esclarecer o
que é a guerra, como se faz, por que se faz e o que ela significa, para isso
ele usa exemplos, modos estratégicos usados durante guerras e justifica a
importância delas. Bonanate é um autor que tem bastante influência do

2
História das Guerras. Demétrio Magnoli, organizador. 4. Ed., 1ª reimpressão. - São Paulo: Contexto,
2009. Págs. 355-388.
renomado general Carl Von Clausewitz escritor de um dos mais
importantes livros sobre história das guerras, “Da Guerra”.
Para Bonanate as guerras têm uma grande importância para o
equilíbrio da humanidade, ele comenta que a ameaça atômica fez com
que a população ficasse concentrada nas grandes guerras e que deixassem 6

as menores irem acontecendo, neste meio termo surgiu o terrorismo e


com ele uma nova forma de guerra, mas será que isso seria realmente
uma forma de guerra? Bonanate mostra o terrorismo como uma forma de
divulgação de um ideal e não como forma de guerra, pois o terrorismo
sempre existiu. Como dito anteriormente o terrorismo seria uma nova
forma de guerra se esta nunca tivesse sido usada, mas pode-se notar que
em guerras anteriores houve massacres em massa como forma de
intimidar o opressor ou até mesmo para mostrar ao inimigo que não havia
receio de matar pessoas inocentes. O grande diferencial entre guerra e
terrorismo é que na guerra matam-se apenas militares ou civis em que
estão nos locais de combate e no terrorismo matam-se todos, pois todos
são inimigos, ou simplesmente símbolos do que se quer atingir, como
aconteceu no ataque ao Word Trade Center em 11 de setembro de 2001,
as pessoas que morreram durante aquele ataque não eram militares em
combate, mas pessoas que estavam em seu ambiente de trabalho ou
apenas como turistas.
O terrorismo é mostrado como produto da globalização e com esta
globalização a tentativa de uma ordem internacional que segundo
Bonanate terá grandes efeitos nas guerras, ele afirma que boa parte da
humanidade (população de países pobres) não tem interesse em uma
ordem mundial por elas não serem beneficiadas pelas mesmas. Esse
terrorismo apresentado seria uma forma de guerra do fraco contra o
forte, pois o autor comenta que essa estratégia é uma forma de se
guerrear sem se identificar, pois se um país pequeno se identificasse que
tinha interesse em destruir ou mesmo guerrear contra uma grande 7

potência mundial com certeza esse país seria esmagado, mas se ele invade
e consegue tocar no coração daquela potência, este pequeno Estado
conseguirá alcançar seu objetivo.
Bonanate fala o que é a guerra mostrando como ela era na
antiguidade e como são os novos modelos usados no mundo
contemporâneo, ele mostra um fator que elas têm em comum: o uso da
força, para alcançar um objetivo, como afirma Clausewitz “A guerra é
meramente a continuação da política por outros meios” 3. Outro
pensamento muito relevante de Clausewitz faz referência à utilização da
força para se alcançar objetivo, “o corpo da guerra é derrubar o
adversário, seja ao destruí-lo politicamente, seja ao impossibilitá-lo
simplesmente de se defender”4, mostrando assim que o principal objetivo
da guerra é impor poder ao inimigo.
Bonanate também expõe por que se faz a guerra, ele explana com
um exemplo prático, o comércio, pois nele a busca incessante pelo lucro
leva alguns a atacar seu adversário através de propagandas ou mesmo de
promoções que levem os clientes a aderirem ao seu produto, esta mesma

3
CLAUSEWITZ, Carl Von. Da Guerra; Tradução para o inglês Michael Howard e Peter Paret e tradução do
inglês para o português CMG (RRm) Luiz Carlos Nascimento e Silva do Valle, pág. 91.
4
BONANATE, Luigi. A Guerra; tradução de Maria Tereza Buonafina e Afonso Texeira Filho. – São Paulo:
Estação Liberdade, 2001, pág. 32.
estratégia é usada na guerra, pois os Estados utilizam de todos os meios
possíveis para alcançar a vitória que sempre está ligada ao aumento de
poder. Para alcançar esses objetivos os Estados utilizam o terrorismo, a
democracia, o comércio, a religião, etc. Esse último foi defendido por
Bonanate como um dos principais motivos das guerras durante séculos. 8

Por muito tempo foi usado às religiões como pretexto de defender


as guerras, as chamadas “Guerras Santas” ou mesmo “Guerra Justa” e
como dizer que estas guerras são realmente justas se eram e ainda são em
nome de uma propagação religiosa obrigatória e com o objetivo de
aquisição de mais poder? Este questionamento nos leva a pensar que o
que as guerras têm de mais comum é a busca pelo poder para utilizá-lo
para realizar outra guerra e ter ainda mais poder.
Bonanate explica o que significa a guerra e para isso ele expõe
primeiramente que ela é um resultado enganador e aí pode surgir a
pergunta, mas por que enganador? Muitas vezes os países que vencem as
guerras saem tão destruídos como os derrotados, um grande exemplo
disso foi a Guerra no Paraguai, onde Brasil teve tantas perdas quanto o
Paraguai, mesmo a tríplice aliança tendo saído vitoriosa o Brasil saiu
devastado. Outro fator importante é quando são mostrados os benefícios
que as guerras trazem, muitos ainda tem a impressão que as guerras só
trazem coisas ruins, mas foi durante a Segunda Guerra Mundial que a
tecnologia mundial passou a crescer rapidamente, foi neste período que
inventaram o computador e a internet, os enlatados, etc.
São nas guerras que começam os acordos diplomáticos, como
Clausewitz afirmou e Bonanate defende como melhor resposta para o que
é a guerra é que ela é um meio de fazer política de outra forma. Foi
durante as guerras que também apareceram diversas obras de arte.
Bonanate afirma: “Qual Estado nasceu pacificamente? E se são várias
concessões exigidas pela paz, o resultado então será a guerra” 5 Bonanate
ainda diz que Hegel julga a guerra na necessidade histórica e La Bruyère 9

limita-se a admitir que ela seja inevitável. 6

Novos temores e novas ameaças


A obra de Ignacio Ramonet, “Guerras no Século XXI”, é um trabalho
bem elaborado sobre os conflitos da atualidade, ele mostra diversos
fatores que levaram a ruptura de países/sociedades assim como fatos que
poderão ocasionar grandes guerras, como a escassez da água, a busca
pelo poder entre os países e etc. Ele apresenta diversos episódios que vem
acontecendo no nosso cotidiano, fazendo uma introdução sobre os
principais temas, trazendo à tona fatos como: a dinâmica da globalização,
a sistemática de poder político, social e econômico, a tríade formada por
Estados Unidos, União Europeia e Japão, porém comandada pelos E.U.A.
que vem dominando o mundo, a grande diferença de renda entre países e
cidadãos, nesta parte há um dado muito importante; as quinze pessoas
mais ricas do mundo são possuidoras de uma riqueza maior que o PIB
total do conjunto de países da África Subsaariana, ou grandes empresas
como a General Motors que é possuidora de uma receita superior ao PIB
da Dinamarca e a Exxon Mobil superior ao PIB da Austrália.

5
Idem, pág. 167.
6
Idem, pág. 141.
Ignacio Ramonet também faz um levantamento sobre como o ser
humano vem destruindo seu habitat através de grandes queimadas,
exploração do solo de forma desordenada o que leva a graves problemas
ambientais como: escassez de água, poluição do ar, destruição da flora
etc. Mas, sobretudo a demonstração de poder através das guerras e 10

destruições em massa de países com o intuito egoísta de mostrar


soberania sobre os demais. Ele faz um levantamento do que foi está no 11
de setembro de 2001 e o que representou para os Estados Unidos e para o
mundo. Mostra a cara deste país de forma objetiva, pois faz um
levantamento de antes do 11 de setembro, mostrando a influência dos
Estados Unidos. Embora o ataque tenha comovido muitos países, muitos
deles acharam “bom” para mostrar que mesmo os E.U.A., como uma
grande potência mundial, era vulnerável a ataques.
Ramonet diz que Ossama Bin Laden foi um dos recrutados pela CIA 7
em 1970, mas depois chegou a entrar na história contra o E.U.A., os
Estados Unidos nesta época estava a se consolidar como uma grande
nação mundial, impondo respeito através do seu sistema autoritário, “é
comigo ou contra mim”, quando Bin Laden organiza sua estratégia de
ataque e resolve finalmente atacar, consegue o feito histórico que
Ramonet compara com história do Dr. Frankenstein, a criação contra o seu
criador.
Bin Laden pode ser mostrado de duas formas: O antes 11 de
setembro e depois dele, antes um anônimo e depois uma figura ilustre

7
CIA. Central Intelligence Agency. (Uma unidade de inteligência militar dos Estados Unidos que na época
recrutava homens na área do Afeganistão para transformá-los em grandes combatentes).
que conseguiu entrar para a história mundial e usou isto de forma
estratégica; isto quer dizer que ele atacou os E.U.A. para conseguir três
coisas primordiais: atacar a hegemonia econômica, militar e política do
país e ainda usando a mídia para mostrar ao mundo esse acontecimento
“apocalíptico”. 11

Ao contrário do que se pode pensar, após este ataque os Estados


Unidos não ficaram enfraquecidos, mas passaram a mostrar para o mundo
sua grande força política/militar, pois as grandes potências mundiais
passaram a demonstrar apoio, o então presidente George W. Bush falou
que quem não estivesse com os E.U.A. estaria contra eles; diversos países,
que embora estivesse gostado de tal acontecimento, passaram a estar do
seu lado. A partir daí começou o que Ramonet chama de um império
contra um indivíduo, na busca por Bin Laden. Mas seria esse realmente o
único objetivo dos Estados Unidos? Ou existiam interesses econômicos já
que o Iraque é um grande produtor de petróleo? Isto será discutido mais
adiante.
Globalização/antiglobalização Guerra social planetária, este tema
está totalmente relacionado à era da tecnologia, como falou Karl Marx
“Deem-me um moinho de ventos e lhe darei a Idade Média” e Ramonet
parafraseou “Deem-me um computador, e eu vos darei a Globalização.” 8 A
partir de 1999 e 2000 a internet passou a ser a nova economia mundial e
as grandes empresas Americanas, europeias e japonesas seriam as
grandes adversárias por este mercado.

8
RAMONET, Ignacio. Guerras no século XXI: novos temores e novas ameaças; tradução de Lucy
Magalhães. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, pág. 97.
Neste estopim da nova economia mundial muitos empreendedores
e países investiram pesado em bolsas de valores das principais empresas
(AOL, Yahoo!, Amazon AtHome, eBay) voltadas para a tecnologia, todavia
estes investimentos de forma desordenada geraram prejuízos enormes
para muitos Estados. A Argentina merece ênfase por ter entrado em uma 12

grande crise no fim de 2001 por ter investido nesta nova tecnologia e
seguindo à risca as normas do FMI, privatizando muitos órgãos públicos.
Isto beneficiou as grandes empresas internacionais que passaram a
comprar empresas públicas com preços abaixo do mercado e com
produtos que davam para continuar um bom tempo produzindo, muitas
estatais ainda receberam injeções financeiras para atrair compradores.
Assim como na Argentina, pode-se dar o exemplo do Sistema Telebrás no
Brasil que obteve R$ 23,5 bilhões em investimentos governamentais,
sendo vendido em seguida por um valor inferior (R$ 22,2 bilhões).
Outro tema muito relevante foi a Guerra de Kosovo, que Ramonet
Chama de Nova Ordem Mundial, esta guerra foi nada mais nada menos
que o início de um desmantelamento estrutural no que se refere à
soberania de um país; a OTAN em 1999 atacou a República Federativa da
Iugoslávia, mesmo sem a Iugoslávia ter cometido nenhum crime fora da
sua fronteira. Esse foi o pontapé para o começo de uma invasão de
território e desrespeito a supremacia de alguns países, os Estados Unidos
foram e continuam a ser um dos Estados que mais interferem na
soberania em nome de uma paz mundial. Durante a guerra de Kosovo a
mídia televisiva foi usada para inflamar a população e colocar um Estado
contra outro. A população de Kosovo era muito grande e pobre, tinha um
índice muito alto de pessoas jovens (cerca de 50% da população tinha até
20 anos), o que a tornava menos estruturada e despreparada para uma
guerra.
A OTAN, apoiada pelos Estados Unidos, atacou a Iugoslávia sem a
devida autorização da ONU, aí poderíamos nos perguntar, por que os 13

E.U.A. se interessaram por esta guerra? Simplesmente para mostrar


poder. Os Estados Unidos viram nisto uma oportunidade de não deixar
acabar com a OTAN que deveria ter sumido junto com a URSS em 1989,
então passaram a utilizar a OTAN como seu braço direito armado, porém
muitos oficiais americanos estimulavam o seu governo para atacar sem a
OTAN para mostrar ainda mais o poder militar, todavia os Estados Unidos
eram considerados como o “único” com interesse de paz global e líder da
comunidade internacional, isto o impossibilitava de um ataque direto.
A OTAN não hesitou em transgredir o estatuto da ONU, assim como,
a soberania dos Estados em nome de uma ingerência moral e humanitária.
Os E.U.A. usaram a OTAN para mostrar que resolviam as coisas sem a
ONU, bombardeando países, intimidando outros, destruindo de forma
desordenada e sempre em “defesas humanitárias”, poderíamos nos
questionar, como esse uso da força desordenada e arbitrária poderia estar
defendendo razões humanitárias se tantos inocentes morrem durante os
ataques?
Um fator de extrema importância a ser discutido também é o
ecossistema e a degradação que ele vem sofrendo, mostrando que o
medo da população sempre existirá, ele pode mudar de lugar ou situação,
mas sempre existirá. Até o século XX o maior temor eram as catástrofes
naturais, a partir deste novo século o temor passou a ser as grandes
guerras e com elas o temor nuclear, a população mundial passou a se
preocupar com os ataques de bombas nucleares e o que elas poderiam
deixar de herança para a terra.
Estes temores foram diminuindo a partir de 1995 com um tratado 14

assinado de não proliferação nuclear que reconhece como membro do


conselho permanente da ONU e dar direito a cinco potências (China,
E.U.A., França, Reino Unido e Rússia) a serem as únicas potências
nucleares do planeta. Apenas Cuba, Paquistão, Israel e Índia não
assinaram este tratado. A população mundial passou a ficar mais
despreocupada com uma possível destruição em massa do planeta através
de uma bomba nuclear, todavia estes países que não assinaram não
estavam satisfeitos e eram considerados países com influência terrorista
pelos E.U.A.
Mas segundo informações da rede portuguesa SIC, os Estados
Unidos retiraram formalmente Cuba da lista de países ligados ao
terrorismo, no dia 29 de maio de 2015. Entretanto desde dezembro de
2014, o presidente da Casa Branca, Barack Obama, anunciou a
reaproximação entre Cuba e os Estados Unidos, após 30 anos que Cuba
esteve na “lista negra”. Depois de algumas conversas com o líder cubano,
Raúl Castro, Obama endereçou uma carta ao Congresso, onde mostrou
que tinha intenções de retirar o país da lista de aliados ao terrorismo
internacional9. Isso mostra mais uma vez a supremacia dos E.U.A. diante
de toda população mundial.
Mas como já foi mencionado o medo vai mudando de lugar, quando
a população “perdeu o medo dos ataques nucleares”, passaram a ter
medo da destruição do meio ambiente causada por ela mesma através de 15

guerras e uso inapropriado em benefício de poucos, a grande destruição


do meio ambiente, falta de alimentação e a desordenada distribuição de
renda faz com que muitos morram de fome mesmo sendo provado que a
população mundial produz muito mais do que podemos consumir. Ainda
seguindo este contexto do medo podemos trazer à tona as doenças que
são um grande problema mundial, estes surtos de doenças que matam
mais que todas as guerras, doenças causadas pela falta de alimentação
(desnutrição, anemia, etc.) ou excesso da mesma (diabetes, obesidade,
etc.), assim como vírus que se propagam e matam muito mais que guerras
como o HIV que vem matando muitos, exclusivamente em países pobres
(principalmente da África).

Reflexões sobre guerras


O “livro reflexões sobre a guerra” de Francisco Carlos Teixeira da
Silva e Luiz Carlos Soares é de extrema importância para os leitores de
guerras contemporâneas, pois eles trazem à tona diversas guerras (desde
a guerra dos trinta anos até as guerras atuais) e seus efeitos para
humanidade. Os autores fazem uma reflexão sobre os ataques do 11

9
Jornal BBC, link:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2015/05/150529_cuba_saida_oficial_lista_eua_fn
29/05/2015.
setembro de 2001 aos Estados Unidos e o posteriormente a resposta dos
americanos no Iraque, vivendo este clima de guerra entre os Estados
Unidos e Iraque. Soares faz uma análise sobre as guerras e o mercado
capitalista nos séculos XVI e XIX, nesta ocasião ele traz à tona um contexto
ainda ignorado ou não tão trabalhado por diversos estudiosos, as guerras 16

mundiais não como sendo apenas duas, mas sim diversas, desde a guerra
dos trinta anos até o Pós-Guerra Fria. Aí poderíamos nos perguntar por
que todas estas seriam guerras mundiais?
Partindo da ideia apresentada por Soares, estas guerras seriam
mundiais por elas afetarem diretamente a economia mundial, conflitos
que foram mesclados com um único objetivo, poder, seja ele obtido
através das religiões na “Guerra dos Trinta Anos” ou pelo uso da força e
destruição em massa (bombas atômicas que explodiram as cidades
japonesas, Hiroshima e Nagasaki) na “Segunda Guerra Mundial” ou ainda
pelo uso da tensão de destruição nuclear usado na “Guerra Fria” onde as
grandes potências mundiais E.U.A. e U.S. (Estados Unidos da América e
União Soviética, respectivamente) fizeram o mundo ficar tenso, a espera
de uma grande guerra e desta vez de maior proporção que a última
(Segunda Guerra Mundial), pois iria ser usado mais bombas atômicas e
armas químicas que deixariam uma destruição sem limites ao planeta.
Esta última guerra citada por Soares expõe o interesse político e
econômico destas duas potências de impor sua hegemonia mundial
através do poder militar, que estavam cada vez mais expandindo, mas
principalmente na África e Ásia que estavam passando por um processo
de descolonização, ampliar sua influência naquela região iria lhes
proporcionar vantagens econômicas, políticas e militar junto aos novos
Estados formados.
Durante a Segunda Guerra Mundial o Japão teve duas cidades
totalmente destruídas (Hiroshima e Nagasaki) por bombas atômicas e um
dos motivos apresentados por Soares é o expansionismo econômico e 17

disputa pelo mercado da Ásia com os Estados Unidos. A ascensão do Japão


naquela área se deu após sua vitória na Guerra Russo-Japonesa, após esta
guerra o Japão passou a buscar conquistar território naquela região com o
interesse na matéria prima local, isso batia de frente com o expansionismo
dos norte-americanos. Em 1941 o Japão atacou uma base americana em
Pearl Harbour, no Havaí, isso foi o motivo para os Estados Unidos juntar o
útil ao agradável e entrar na guerra contra o Japão e os seus aliados
(Potências do Eixo).
Durante este processo ficou claro que estas guerras seriam uma
forma de expansionismo do capitalismo, visto que, cada guerra trazia
consigo o interesse econômico dos Estados e das grandes multinacionais
que financiavam as guerras para depois reconstruírem os países
novamente sobre a administração do país vencedor. A hegemonia dos
Estados Unidos foi inquestionável em virtude de sua força econômica e
auxílio na construção da Europa Ocidental.
Com o Pós-Guerra Fria e a hegemonia plena, os Estados Unidos
criaram uma nova forma de economia e política internacional voltada para
uma doutrina neoliberal, preconizando o fim das intervenções reguladoras
do Estado na economia, ou seja, privatizações em massa das estatais e
empresas públicas, assim como reformas no sistema previdenciário, saúde
e educação; impôs-se a tese do “Estado mínimo”, menos poder do Estado
e mais poder das grandes multinacionais que comprariam as empresas
públicas e estatais, que neste caso seriam majoritariamente americanas,
centralizando a economia mundial. Soares fez um questionamento que ele
mesmo respondeu de forma clara e concisa: 18

Um mundo sem guerra é possível? [...] As guerras são


o showroom da indústria armamentista e uma enorme
fonte de lucros e acumulação capitalista [...] A
impossibilidade de um mundo sem guerras se verifica
porque a guerra está entronizada na própria estrutura
e na dinâmica do capitalismo 10.

Foi com a imposição de poder econômico (ajuda financeira a países


envolvidos em guerras civis ou guerras internacionais, assim como
destruídos em catástrofes) e militar (intervenção militar, terrorismo ou
ajuda a países aliados em guerras) que os Estados Unidos foram
conquistando território, partindo desta perspectiva pode-se observar os
interesses deste país no Oriente Médio, maior produtor de petróleo do
mundo. Francisco Carlos Teixeira tem como um dos objetivos expor a
guerra que envolve os Estados Unidos e Iraque, dando ênfase na
corrupção e o uso da força dos E.U.A. para impor poder e barganhar estas
riquezas, majoritariamente ligadas ao petróleo.
A guerra no Iraque seria um novo modelo, consistia em uma guerra
majoritariamente privatizada com o objetivo de fugir da síndrome do

10
SOARES, Luiz Carlos; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Reflexões sobre a guerra. Rio de Janeiro:
Letras: Faperj, 2010, pág. 63.
Vietnã, que trouxe resultados muito negativos para os norte-americanos,
ainda colocaria os Estados Unidos em uma posição mais forte no Oriente
Médio. “O sonho neoconservador, já anunciado desde 1998, implicava
numa reconstrução total do Oriente Médio, abrindo caminho para o
abastecimento barato do Ocidente e para um papel hegemônico de Israel 19

na região”11. Este novo modelo de guerra iria usar as novas tecnologias


com um único objetivo, destruir o inimigo sem que fosse tocado, era o
que o general Colin Power falou “[...] nós atiramos, eles morrem” 12. Este
novo modelo de guerra já teria sido usado na Guerra da Bósnia com
ataques aéreos e com pouco contato dos soldados norte-americanos, a
intenção da guerra no Iraque seria uma guerra rápida, mas a guerra
tomou outra proporção maior em maio de 2003 quando foi decretada
vitória dos americanos, o povo Iraquiano começou a atacar os
estrangeiros em defesa da sua pátria o que foi um choque para os norte-
americanos que não contavam com essa atitude, como dizia Ennio “aquele
que conquista não vence, a menos que o perdedor se considere
derrotado”13.
A guerra assimétrica14 travada entre estes dois Estados provaria que
mesmo uma grande potência como Estados Unidos poderia ser desafiada,
como diz Francisco Carlos Teixeira: “A tecnologia superior americana, o
excelente treinamento dos soldados e a grande disponibilidade financeira

11
Idem, pág. 78.
12
Idem, pág. 81.
13
História das Guerras. Demétrio Magnoli, organizador. 4. Ed., 1ª reimpressão. - São Paulo: Contexto,
2009. Pág. 47.
14
Guerra Assimétrica é uma guerra em que os oponentes apresentam diversas diferenças, tais como:
nível de organização, objetivos, recursos financeiros, recursos militares. Em geral são guerras irregulares
(guerrilhas).
não bastavam para assegurar a vitória do poder superior num cenário
adverso”15. Ele faz menção também da forte resistência dos palestinos,
mesmo a população israelense sendo superior militarmente, tendo um
dos melhores serviços secretos do mundo não conseguem vencer os
palestinos. Os Estados Unidos saíram perdedores assim como no Vietnã, 20

pois não conseguiram executar sua missão que era a implantação de um


“Iraque pró-ocidental”.
O uso de mercenários na guerra contra o Iraque era uma forma
inovadora para os norte-americanos, eles conseguiam vantagens tanto
econômica (cada soldado americano custava certa de US$ 4 milhões,
enquanto os mercenários entre RS$ 100 e RS$ 300 mil, é bom frisar que
esses mercenários, majoritariamente de países pobres, foram recrutados
tanto pelo Estado norte-americano quanto por empresas que trabalhavam
na reconstrução do Iraque) quanto midiática (as mortes destes soldados
estrangeiros não causariam nenhum efeito entre o povo norte-americano.
Com a destruição do Iraque as grandes empresas, principalmente norte-
americanas passaram a ver o Iraque como o “El Dourado dos negócios
fáceis”. Foi nesta perspectiva que empresas negociaram diretamente (sem
licitação) com o Pentágono e passaram a atuar na reconstrução, foram
beneficiadas companhias ligadas ao vice-presidente Dick Cheney e Richard
Perle. Esses dois homens de confiança Bush mobilizaram uma grande rede
de empresas para atuar nas obras, todavia o negócio ficou tão
escandaloso que foram tirados do cargo. “Ante o grande número de

15
SOARES, Luiz Carlos; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Reflexões sobre a guerra. Rio de Janeiro:
Letras: Faperj, 2010, pág. 86.
escândalos e manipulações financeiras, o Congresso americano nomeou
Stuart Bowen como inspetor especial para investigar os casos de
corrupção com fundos americanos aplicados no Iraque” 16.
Os iraquianos descobriram uma “nova” forma de combater os
Estados Unidos, mexer no bolso deles. “Este é um dos objetivos da 21

resistência: a guerra deve custar caro aos contribuintes americanos” 17.


Isto acontecia dentro do próprio Iraque, pois os grupos terroristas
começaram a atacar os próprios Iraquianos e estrangeiros no país,
vendendo crianças para conseguir comprar armamentos, destruindo
petrolíferas, atacando construtoras estrangeiras que estavam trabalhando
na reconstrução do país, etc. O objetivo seria causar um pânico tão grande
que os estrangeiros não quisessem ir para o Iraque; entretanto teve uma
coisa que surpreendeu ainda mais os norte-americanos, Francisco Carlos
Teixeira chama de “estratégia anti-Vietnã”, pois no Vietnã foi feito acordo
para os norte-americanos deixarem o país, no Iraque o ataque era tão
cruel que isso se tornaria inviável para os E.U.A., os iraquianos tinham o
objetivo de fazer os norte-americanos expor as perdas constantes e
pesadas.
Foi nesse momento que surgiu a indústria do sequestro no Iraque,
visando o desmantelamento econômico dos Estados Unidos, os grupos
terroristas passaram a sequestrar os funcionários estrangeiros e pedir
dinheiro em troca, com isso se conseguia dinheiro para o financiamento
da guerra e ainda expor ao mundo através da TV a situação que os

16
Idem, pág. 108.
17
Idem, pág. 91.
americanos estavam expondo os trabalhadores contratados para a
reconstrução do país, assim como, os soldados mercenários contratados
para guerrear em nome do povo norte-americano. Para expor o pânico
muitas vezes os reféns foram executados em frente às câmeras de TV, a
ideia seria que “o Iraque não vale à pena o risco”, isso levou muitas 22

empresas deixarem o país porque elas precisariam de um forte sistema de


segurança além de mão de obra muito cara.
Os norte-americanos entraram com tudo para enfraquecer o Iraque
com uma desculpa de tentativa civilizacional e destruição do terrorismo.
Sob a administração de Bush foi criado a “Ordem Executiva 13.303” que
dava direito de imunidade às empresas exploradoras de petróleo norte-
americanas para não se submeterem a processos jurídicos de origem
iraquiana e de instâncias internacionais por atos praticados em sua
defesa. Enfim essa foi mais uma derrota imposta aos Estados Unidos em
uma guerra assimétrica, mesmo com o uso da força bruta, tentativa de
destruição de boa parte da população Iraquiana, uso de poder econômico,
corrupção e tantos outros adjetivos os norte-americanos não conseguiram
seu objetivo principal e saíram perdedores.
Entre diversos temas abordados ficou claro que as guerras fazem
parte da humanidade e sem elas não teríamos avançado
tecnologicamente, nem tampouco conquistado tantos continentes, pois
“nada envolve tanto os seres humanos, de maneira tão íntima e completa,
quanto a guerra e seus acontecimentos”18. A partir desta união e

18
BONANATE, Luigi. A Guerra; tradução de Maria Tereza Buonafina e Afonso Teixeira Filho. – São Paulo:
Estação Liberdade, 2001. Pág. 21.
formação de conhecimento adquiridos durante as guerras podemos
chegar a um patamar mais evoluído da nossa espécie, todavia vale a pena
frisar o quanto perdemos e o quanto podemos perder nestas batalhas,
desde familiares e amigos ao meio ambiente e o “futuro” da humanidade
(fato vivido durante a Guerra Fria com o suposto ataque nuclear). 23

A guerra se mostrou como um tema discutível, mas inexplicável


pelo simples fato de que não conseguimos chegar a uma resposta
concreta sobre o que ela é ou o que ela propõe, Clausewitz afirma que ela
é uma política aplicada por outros meios, Bonanate defende que ela é um
mal necessário, Soares pergunta se existiria um mundo sem guerras? Ou
melhor, qual Estado foi formado pacificamente? Ramonet traz à tona os
diversos fatores negativos que a guerra deixa para humanidade, entre eles
a destruição no nosso maior bem: o meio ambiente; Teixeira mostra a
corrupção através da guerra e assim como Ramonet exibe a corrupção e o
crescimento econômico das multinacionais através de financiamentos de
guerras. Sun Tzu expõe estratégias de guerras e seus resultados.

Referências bibliográficas
A Arte da Guerra. Sun Tzun; tradução de SUELI BARROS CASSAL.
BONANATE, Luigi. A Guerra; tradução de Maria Tereza Buonafina e Afonso
Texeira Filho. – São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
CLAUSEWITZ, Carl Von. Da Guerra; Tradução para o inglês Michael Howard
e Peter Paret e tradução do inglês para o português CMG (RRm) Luiz
Carlos Nascimento e Silva do Valle.
História das Guerras. Demétrio Magnoli, organizador. 4. Ed., 1ª
reimpressão. - São Paulo: Contexto, 2009.
RAMONET, Ignacio. Guerras no século XXI: novos temores e novas
ameaças; tradução de Lucy Magalhães. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
SOARES, Luiz Carlos; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Reflexões sobre a 24

guerra. Rio de Janeiro: Letras: Faperj, 2010.


<http://veja.abril.com.br/noticia/economia/os-10-paises-que-mais-
produzem-petroleo-no-mundo> Acessado em: 09 de março de 2016.
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2015/05/150529_cuba_said
a_oficial_lista_eua_fn> Acessado em: 29 de maio 2015.
APONTAMENTOS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE CINEMA E
ENSINO DE HISTÓRIA

Rebecca Carolline Moraes da Silva 1

Resumo: Com a abertura da História para novos olhares por meio da revolução 1
documental, os filmes puderam entrar no arsenal de fontes históricas dos
historiadores. Os filmes históricos representam o passado, havendo, no entanto, uma
tensão entre evidência e representação, tendo em vista que os espectadores podem
considerar o que eles dizem sobre o passado como verdade histórica. A necessidade
humana de se orientar no tempo está ligada ao conceito de consciência histórica, de
maneira que, pelo conhecimento do passado, o ser humano se orienta no tempo e se
identifica com seus pares em seu espaço-tempo, podendo assim projetar suas ações
futuras de maneira crítica e autônoma. Na Educação Histórica os alunos podem
trabalhar como formadores do próprio conhecimento, valorizando sua bagagem
cultural. Tendo isto em vista, o cinema pode se agregar aos conhecimentos prévios dos
alunos. Nesse sentido, ao utilizar o cinema em sala de aula, o papel do professor é o de
problematizador. Para isso, deve realizar observações que os levem a pensar de forma
crítica em relação ao filme.

Palavras-chave: Cinema; História; Educação Histórica.

Abstract: With the opening of History to new looks through the documental revolution,
films were able to be a part of the arsenal of historians’ historical sources. Historical
films represent the past, though there is a tension between evidence and
representation, since the viewers might consider what the historical films say about
the past as historical evidence. The human need to orient itself in time is linked to the
concept of historical consciousness, in a way that by having knowledge of the past,
human beings are oriented in time, identified among their peers in their space-time
and can design their future actions critically and autonomously. In History Education,
students can work as makers of their own knowledge, valuing their cultural baggage.
With that in mind, the movies can be added to students' prior knowledge. In this
sense, by using films in the classroom, the teacher's role is to problematize. To do so,
he must make observations that lead them to think critically about the film.

Keywords: Movies; History; Historical Education.

1
Graduada em História pela Universidade Estadual de Londrina. Mestranda em Educação pela
Universidade Estadual de Londrina.
Por muito tempo os filmes ficaram à margem da pesquisa histórica
porque os historiadores não os consideravam fontes verídicas. Apesar de
por muito tempo ter sido renegado pelos historiadores, o filme, enquanto
produção humana, pode ser tratado como documento histórico. Kornis
(1992) lembra que foi na abertura da História para novos olhares que o 2

filme entrou como “fonte preciosa para a compreensão dos


comportamentos, das visões de mundo, dos valores, das identidades e das
ideologias de uma sociedade ou de um momento histórico” (KORNIS,
1992, p. 239).
A monumentalização dos documentos, como propõe Le Goff
(1996), que também pode ser aplicada aos filmes, aponta que os
monumentos têm uma característica intrínseca de se perpetuarem no
tempo voluntária ou involuntariamente, elaborando inconscientemente
uma roupagem de sua sociedade em determinado tempo. Nos filmes
históricos essa essência de documento/monumento se amplifica pelo
grande número de pessoas que assistem a eles; assim, o que um filme diz
de um determinado momento histórico pode muitas vezes se tonar a
verdade histórica. Estas interpretações podem ser agravadas nos casos em
que há distorção proposital dos fatos, na má intenção de se passar como
verdade. Nesses casos, cabe ao historiador analisar e, se for o caso,
desmistificar.

"O cinema é um dos mais poderosos instrumentos


contemporâneos de monumentalização do passado,
na medida em que pode fazer dele um espetáculo em
si mesmo, com eventos, personagens, processos
encenados de maneira valorativa, laudatória e
melodramática" (NAPOLITANO, 2011, p. 276).

Ferro (1975) considera que a imagem sonora teve dificuldades em


ser aceita como documento por sua complexidade, por ter vários
3
elementos de composição que dizem muito sobre o que o produtor e o
diretor quiseram transmitir, como em gestos ou olhares prolongados.
Segundo Ferro (1975), podemos extrair o que o filme testemunha, que
realidade ele representa – concordância ou não com a ideologia
representada, propaganda, denúncia, comoção pública, entretenimento –
e a função do historiador é a de encontrar “o não-visível através do
visível” (FERRO, 1975, p. 6).
Os filmes que tratam a respeito de um tema do passado são
chamados por Rosenstone (2010) de “filmes históricos”. O autor defende
que a historiografia deve estar com os olhos voltados a esse cinema
histórico, pois este chega a muitas casas pela televisão. Atualmente, o
audiovisual é muito valorizado e os filmes estão em todas as
programações das redes televisivas e também acessíveis por meio da
internet. Além disso, o autor lembra que “os filmes históricos, mesmo
quando sabemos que são representações fantasiosas ou ideológicas,
afetam a maneira como vemos o passado” (ROSENSTONE, 2010, p. 18).
Cláudio Aguiar Almeida (apud NAPOLITANO, 2011) também dá suporte a
esse discurso, dizendo que, independentemente da qualidade estética de
um filme, o público pode identificá-lo como uma ‘verdade histórica’.
A partir disso, pode-se aliar essa inserção do cinema como fonte
histórica também no contexto escolar. Na perspectiva da Educação
Histórica privilegiam-se as concepções dos alunos como agentes diretos
da aprendizagem, de modo que eles devem trabalhar como formadores
do próprio conhecimento (cf. BARCA, 2011). Essa perspectiva parte da 4

ideia da “busca por um ensino de História que tenha mais significado para
crianças e jovens alunos” (CAINELLI, SCHMIDT, 2011, p. 11).
A necessidade de orientação do tempo está ligada ao conceito de
consciência histórica que, conforme Rüsen (2007), é a “constituição de
sentido sobre a experiência do tempo, no modo de uma memória que vai
além dos limites de sua própria vida prática” (RÜSEN, 2007, p. 104). Desse
modo, a consciência histórica dá suporte à consciência social e, assim,
contém um sentido de identidade, ou seja, pelo conhecimento do passado
o ser humano se orienta no tempo e se identifica com seus pares em seu
espaço-tempo, podendo assim projetar suas ações futuras de maneira
crítica e autônoma.
Neste sentido, a Educação Histórica possibilita a formação dos
indivíduos para lidar com as mudanças da sociedade a partir do que Rüsen
(apud BARCA, 2011) denomina como consciência histórica genética, o que
quer dizer: as informações são gradativamente interiorizadas pelos
sujeitos, tornando-se parte de sua ferramenta mental para ser usada no
dia-a-dia como forma de orientação. Tendo isso em vista, conforme Barca
(2011), fornecer aos alunos uma narrativa singular da História ou uma
sequência cronológica seguindo o senso comum não supre as demandas
da Educação Histórica, pois esse tipo de conhecimento não é útil na lida
com a sociedade atual. É necessário exigir leituras críticas porém sempre
provisórias.
Ana Maria Monteiro (2013) ressalta a importância de se trabalhar
com a memória dos alunos através de uma exposição didática, esta que
envolve quem conhece, quem aprende e quem ensina. Para isso é 5

essencial a mediação do professor na produção de novos significados e até


na ressignificação dos saberes dos estudantes, que sintetizam
dialeticamente as novas informações com seus conhecimentos prévios.
Abud (2005), neste âmbito, diferencia informação e formação, pois a
informação é tudo o que o aluno recebe a partir das diferentes linguagens
(objetos, textos, imagens, músicas, cinema, entre outros), é o que forma
sua bagagem de conceitos espontâneos que serão trabalhados dentro da
sala de aula, a partir da mediação do professor, atingindo a formação, que
é o objetivo do ensino. O professor deve se atentar para estas questões no
ensino de História e não ignorar o fato de que os alunos possuem
conhecimentos prévios, e que esses devem ser considerados para que a
aprendizagem seja prazerosa e a disciplina não se torne uma “decoreba” e
não seja “chata” – estereótipos que a História já possui muitas vezes, em
se tratando da educação básica.
Cainelli e Schmidt (2004) afirmam que o conhecimento do aluno
deve ser respeitado, o conjunto de representações que ele já construiu
sobre o mundo em que vive e que vão com ele para a sala de aula – por
isso é importante ter como ponto inicial dos trabalhos as representações
dos alunos, mas não fixar o ensino nestes conhecimentos, já que algumas
compreensões podem se apresentar como insuficientes para explicar a
realidade. Tais conhecimentos prévios devem dar significado aos
conteúdos históricos trabalhados. Além disso, devemos ter em mente que
o aluno tem a possibilidade de efetivar suas próprias ideias sobre o mundo
social, sem a necessidade de se tornar simplesmente um receptor passivo
das informações trazidas pelo professor (cf. CAINELLI; SCHMIDT, 2004, p. 6

61-62).
Segundo Flávia Caimi (2008), o campo do Ensino de História
acompanhou as mudanças historiográficas da segunda metade do século
XX. Conforme esta autora, foi a partir daí que novas linguagens foram
incorporadas ao ensino e que houve a tentativa de substituição da
memorização pela reflexão histórica, além da ênfase na produção de
conhecimento através da apropriação dos procedimentos metodológicos
da pesquisa histórica (cf. CAIMI, 2008, p. 132).
Desta maneira, conforme Pereira e Seffner (2008), ao trabalhar
com fontes é preciso deixar claro que o que está sendo trabalhado são
representações do passado, sem compromisso com a realidade,
competindo com outras representações, como pode ser percebido na
literatura, filmes ou rede televisiva. É necessário que se tenha em mente
que todas essas maneiras de representar a História podem ser
encontradas dentro de casa, o que faz com que, por exemplo, um filme
histórico produza uma memória de um passado tanto quanto ou mais que
o aprendido na aula de História (cf. PEREIRA; SEFFNER, 2008, p. 117).
Lana Mara Siman (2004) defende o uso de mediadores culturais no
ensino de História, focalizando a ação mediadora do professor e a ação
mediada da linguagem para relacionar sujeito e objeto. Ou seja, a autora
argumenta que o professor de História deve buscar a historicidade da
fonte para mediar a construção do conhecimento, de modo que se aliem
intelecto, imaginação, intuição e sensibilidade, evidenciando que não é
possível recriar o real vivido, apenas reimaginá-lo, ou representá-lo. Siman
(2004) afirma que o trabalho com os mediadores culturais é considerado a 7

dialogia da sala de aula, em outras palavras, considera as múltiplas vozes,


as vozes dos alunos, o que eles pensam a respeito, colocando-os como
agentes do conhecimento. Isso possibilita novos conhecimentos, pois cada
aluno traz consigo sua bagagem cultural e, no diálogo com os colegas e
com o professor, pode sintetizar um conhecimento mais crítico e mais
complexo do que poderia se o trabalho com a fonte fosse unívoco.
O cinema, visto como um mediador cultural, pode se agregar aos
conhecimentos prévios dos alunos, desenvolvendo imagens que permitem
uma ideia de reconstrução no sentido de levar o aluno a imaginar o não
vivido diretamente. Mas, não no sentido de ressurreição histórica como
acreditavam alguns dos primeiros teóricos sobre o uso do cinema no
ensino. Nesse sentido, o papel do professor é de ser um “orientador de
um processo em que o filme se torna objeto de reflexão e estudos”
(SOUZA, 2012, p. 81).
Assim, o professor mediador trabalharia com os alunos o filme
como um documento histórico. Para isso, deve realizar observações que
os levem a pensar de forma crítica em relação ao filme. Primeiramente
poderia ser observado como se dá a representação, pensar nos cenários,
caracterização dos personagens, os objetos, entre outras coisas. E para
essa análise pode-se utilizar de comparações e analogias para que os
alunos partam de uma situação mais próxima, do conhecido, para
aprender o não conhecido.
Conforme Magalhães e Alface (2011), os alunos precisam ser
educados a ver o filme, é necessário ler e refletir sobre os elementos que
são apresentados, adotando uma atitude crítica, combatendo o 8

analfabetismo visual, ou seja, agregando ferramentas para orientar e


estimular a capacidade dos alunos de realizar análises críticas. O professor
deve propor leituras sobre o filme apresentado, ampliando o leque de
possibilidades dos alunos, com uma ponte entre emoção e razão,
formando espectadores mais exigentes e críticos.
Bittencourt (2008) aponta que não há um modelo simplificado
para o uso de filmes em sala de aula que introduza os alunos na análise
crítica. Deste modo, levando em consideração o filme como fonte
histórica, osconhecimentos prévios dos alunos e os filmes como parte da
bagagem cultural dos sujeitos envolvidos, filmes históricos podem ser
bons mediadores culturais em sala de aula, devendo o professor fazer a
mediação para levar os alunos a uma leitura crítica e responsável.

Referências

ABUD, Kátia. Registro e representação do cotidiano: a música popular na


aula de História. In: Cadernos Cedes. Campinas, v. 25, n. 67. pp. 309-317,
set/dez. 2005. Disponível em

http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v25n67/a04v2567.pdf.
BARCA, Isabel. O papel da Educação Histórica no desenvolvimento social
In: CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria Auxiliadora (orgs).Educação
Histórica: teoria e pesquisa. Ijuí: Ed. Unijuí, 2011.

BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. São


Paulo: Editora Cortez, 2008.
9
CAIMI, Flávia Eloísa. Fontes históricas na sala de aula: uma possibilidade
de produção de conhecimento histórico escolar?. In:Anos 90, Porto
Alegre, v.15, n.28, pp.129-150, dez. 2008.

CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Ensinar História. São


Paulo, Scipione, 2004.

____________. Percursos das Pesquisas em Educação Histórica: Brasil e


Portugal. In: _________ (orgs). Educação Histórica: teoria e pesquisa. Ijuí:
Ed. Unijuí, 2011.

FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: NORA, Pierre


(org.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

KORNIS, Mônica Almeida. História e Cinema: um debate metodológico.


In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, pp. 237-250.

LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In:_______. História e


Memória. 4. ed. Campinas: Unicamp, 1996.

MAGALHÃES, Olga; ALFACE, Henriqueta. O cinema como recurso


pedagógico na aula de História. In: CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria
Auxiliadora (orgs). Educação Histórica: teoria e pesquisa. Ijuí: Ed. Unijuí,
2011.

MONTEIRO, Ana Maria. Ensino de História: entre História e memória.


2013. Disponível em: <www.ufrrj.br/graduacao/prodocencia >. Acesso
em: 15 de maio de 2014.

NAPOLITANO, Marcos. Fontes Audiovisuais: a História depois do papel. In:


PINSKY, Carla (org.); et al. Fontes Históricas. 3. ed. São Paulo: Contexto,
2011, pp. 235-289.
PEREIRA, Nilton Mullet; SEFFNER, Fernando. O que pode o ensino de
História? Sobre o uso de fontes na sala de aula. In: Anos 90, Porto Alegre,
v.15, n.28, pp.113-128, dez. 2008.

ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história.


Tradução de Marcello Lino. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
10
RÜSEN, Jörn. História Viva: teoria da história III: formas e funções do
conhecimento histórico. Tradução de Estevão de Rezende Martins.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007.

SIMAN, Lana Mara de Castro. O papel dos mediadores culturais e da ação


mediadora do professor no processo de construção do conhecimento
histórico pelos alunos. In: ZARTH, Paulo A. e outros (orgs.). Ensino de
História e Educação. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2004.

SOUZA, Éder Cristiano. O uso do cinema do ensino de história: propostas


recorrentes, dimensões teóricas e perspectivas da educação histórica.
In: Revista Escritas, v. 4, 2002, p. 70-93. Disponível em
<http://revistahistoriauft.files.wordpress.com/2013/02/artigo25.pdf>
PELOS TRILHOS DO PROGRESSO: O TREM DE FERRO NA
MEMÓRIA DE VELHOS EM SOUSA-PB (1925-1965)

Rivaldo Amador de Sousa 1

RESUMO
O presente artigo propõe-se a discutir o advento, a presença e a forte influência do
transporte ferroviário na cidade de Sousa, localizada no Alto Sertão Paraibano, num
período que compreende o intervalo de quatro décadas (1925-1965). Sua influência
direta no escoamento de mercadorias e no transporte de pessoas permitiu um
conjunto de mudanças materiais e imateriais na região. Para desvelar esse passado
que trata das experiências com a denominada Maria Fumaça recorremos,
especialmente, a oralidade, o que nos permitiu percorrer por uma memória do
cotidiano. Contudo, outros documentos nos serviram também para a “invenção desse
passado”, como periódicos e memórias escritas.
PALAVRAS-CHAVE: Trem de Ferro; Memórias; Cotidiano.

RÉSUMÉ
Cet article a le but de contribuer avec la discution de l´événement, la présence et la
forte influence du transport ferroviaire dans la ville de Sousa, situé dans Alto Sertão
Paraibano, dans une période qui comprend la période de quatre décennies (1925-
1965). Sa influence est directe sur le flux de marchandises et du transport de gens a
permis une série de changements tangibles et intangibles dans cette région. Pour
dévoiler ce passé qui s´agit des expériences avec l´appelée Maria Fumaça , qui est
connue aussi comme « train de fer », nos recherchons en particulier l´ oralité, que
nous a permis d'aller pour une mémoire quotidienne. Cependant, aussi d'autres
documents que nous ont bien servi pour l' “invention ce passé" comme les revues et
mémoires.

MOTS-CLÉS: Train de fer; Mémoires; Quotidienne.

1
Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba, especialista em Teoria e
Metodologia do Ensino de História pela Universidade Federal de Campina Grande e
Mestre em História por essa mesma instituição. Professor de história de educação
básica da rede pública de ensino do município de João Pessoa – PB.
Introdução
Este texto é resultado de uma pesquisa realizada durante o
mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Campina Grande, fazendo parte, parcialmente, do trabalho
final de dissertação. A intenção é discutir a importância do transporte 2

ferroviário na região do Vale do Rio do Peixe, especialmente no município


de Sousa, no Alto Sertão Paraibano, compreendendo a época do seu
advento, associado a outros elementos do dito moderno, e o processo de
desativação dos ramais ferroviários como o da cidade de Cajazeiras,
naquela região, no início do governo militar.
Embora muitas fontes históricas deem conta de eventos em torno
do trem de ferro naquela região, a oralidade nos permitiu pensar melhor
as experiências com esse decantado “progresso”. As falas dos nossos
entrevistados nos revelam a constituição de um espaço que vivia em
função das viagens cotidianas desse moderno meio de transporte. Com
isso, pensamos como a cidade foi ressignificada em sua imaterialidade
como espaço produtor e reprodutor de praticas culturais e até onde o
encurtamento da distância e a aproximação dos espaços permitiram a
troca de valores e a produção de novas sociabilidades e sensibilidades.

Vivas, discursos e foguetões: o advento da ferrovia no sertão paraibano

Na Inglaterra, durante a primeira metade do século XIX, o


transporte ferroviário marca o início de uma “nova era” dos meios de
transporte, promovendo uma efetiva transformação nos conceitos de
espaço e tempo. No Brasil, em 1854, é inaugurada a primeira ferrovia, a
decantada “estrada de ferro de Petrópolis”, embora o governo brasileiro
tenha apresentado, desde 1835, um projeto de concessão para quem
desejasse investir na implantação de uma ferrovia no país. No entanto,
diferentemente de outros países, o governo federal não investiu muito na 3

via férrea.
Na década de 1920 a RVC (Rede Ferroviária Cearense) estendeu
seus trilhos até a sede do município de Sousa, no Alto Sertão Paraibano.
Os trabalhos das construções dos açudes de Pilões, São Gonçalo e
Boqueirão de Piranhas (Engenheiro Ávidos) aceleraram o advento da
ferrovia no interior da Paraíba. A substituição dos velhos trilhos e o
enriquecimento do material rodante da Central Cearense, além da criação
dos ramais até as cidades de São João do Rio do Peixe, Cajazeiras e Sousa,
foram as primeiras medidas tomadas para a execução de tais obras
(MARIZ, 1978; pp. 51-52). A Maria Fumaça foi responsável pelo transporte
das usinas de força termoelétricas e outros maquinários pesados e
subsídios que seriam utilizados na construção das ditas barragens. Para o
acesso a estes, foram feitos ramais que posteriormente foram desativados
(SOUSA, 2005).
É precisamente no dia 22 de agosto de 1922 que a locomotiva
respira com seus “pulmões de aço” na cidade de Sousa. A imprensa oficial
declara e assegura como sendo o responsável desse “grande e louvável
empreendimento” o presidente da República: “folgamos de registrar mais
esse impulso à nossa organização econômica, exclusivamente devido a
iniciativa e descortino do Sr. Dr. Epitácio Pessoa, Presidente da República,
já com justíssima razão cognominado o Salvador do Nordeste” (A UNIÃO,
25.ago.1922, p. 1) (grifo nosso). Segundo o Jornal, “efetivamente, trata-se
de um inestimável melhoramento que rasga novos horizontes aos
destinos da Parahyba” (A UNIÃO, 24.ago.192, p. 2). O discurso, carregado
de certa eloqüência, acaba por preservar o mito do herói político na 4

memória do Estado. A notícia, publicada no jornal, nos fala da chegada de


um trem especial trazendo o Senhor Arrojado Lisboa, engenheiro
responsável pelo traçado ferroviário que ligava o Ceará a essa cidade. Esse
momento foi de festa para aquela comunidade (A UNIÃO, 05.set.1922, p.
3)
Quatro anos depois é concluída a construção da estação
ferroviária2. Mais um motivo de festa para sociedade sousense com a
efetivação da estrada de ferro e a inauguração da estação ferroviária,
ocorrida no dia 13 de maio de 1926. A solenidade transcorreu durante
todo o dia, atravessando noite adentro. (A UNIÃO, 22.mai.1922, p. 2)
Mais de três mil pessoas se fizeram presentes nesse dia de festa em
Sousa. A reportagem narra o episódio detalhadamente, dando ênfase aos
passos das autoridades, “os pioneiros do progresso”, que oficializaram
aquele momento:

Eram 12 horas approximadamente, quando


silhuetava-se o perfil do comboio que vinha trazer a
Souza uma nova era de prosperidade. Havia em cada
coração o desejo intenso da effetivação de uma
2
A estação no mapa da cidade. Ver:
http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?codmun=251620. Acesso em: 27 Fev.
2016.
esperança secular. E o trem se aproximava
lentamente.
Foi quando a locomotiva, varando a multidão e com
um apito estridente parou, resfolegando os seus
pulmões de aço, enquanto o povo saudava os
pioneiros do progresso em hurrahs frenéticos e lá
fora, ao ar, estruglam (sic) repetidas salvas de 5
foguetes.
A machina era a de n. 111. O comboio compunha-se
de 2 carros da administração, 1 restaurante, 1
dormitório, 1 cozinha e 1 de bagagem (A UNIÃO,
26.mai.1922, p. 2)

Tão grande foi o regozijo que veio um trem especialmente de


Fortaleza para tal fim. As festividades decorreram durante todo o dia sob
o “desconforto” causado pelo excessivo calor, até o fim da madrugada
com constantes ameaças de chuvas. Não temos dúvida de que toda essa
formalidade de entrega, as comemorações oficiais e as manifestações de
populares significam uma forte declaração do quanto esse novo
transporte passou a representar para aquela cidade e o vale do Rio do
Peixe. Vejamos como o discurso do “orador oficial do povo de Souza na
solenidade”, o juiz de direito dr. José Severino, se aproxima dessa
representação:
melhor data não se deparava para a Inauguração
daquelle empreendimento, visto ser o 13 de maio a
data redenptora duma raça e era, como viamos, o
melhoramento a emancipação economica de Souza (A
UNIÃO, 26.mai.1922, p. 2).
É perceptível no enunciado o desejo de melhoras, de mudança, por
conta do moderno meio de transporte que, esperava-se que viesse
promover especialmente o desenvolvimento econômico na região.

Entre encantos e sobressaltos: a presença do trem no cotidiano 6

Em seu advento o trem foi recepcionado por um olhar assustador,


de medo. O senhor Francisco Alves, que nasceu nos idos de 1926, habitava
às margens da linha férrea e vivenciou cotidianamente a passagem da
locomotiva. Ele nos revela esse imaginário fantasmagórico: “mais disse
que era o cavalo do cão, não era? Gente que não conhece nada, não é?
Que era! Só tinha um olho só” (ALEXANDRE, 2004). Uma visão apocalíptica
é recomposta para definir a imagem coletiva que se tinha do trem de
ferro. Semelhante definição é feita por um escritor da região que
conseguiu captar essas sensibilidades constituídas no imaginário coletivo
durante os primeiros momentos da presença do transporte ferroviário na
região:
Os caminhos foram se chegando e o povo, de boca
aberta, assombrado. (...) ‘Isso é coisa do cão!’ A RVC
com seus trilhos de ferro e as locomotivas correndo e
apitando nos sovacos de serra, assombrando os
vaqueiros, cangaceiros, homens e bichos ––‘Valha-me
Deus! Que bicho é aquele?... (CARTAXO, 1964; p. 85)

Essa experiência com a mecânica moderna se evidenciou em


diferentes lugares do mundo, manifestando as reações de espanto e
maravilha. A literatura ficcional também compartilha essas sensibilidades.
A título de exemplo, na imaginária Macondo, de Gabriel Garcia Márquez, o
dia de chegada do trem de ferro foi um verdadeiro espetáculo que
“sacudiu a cidade”:

...uma mulher que lavava roupa no rio na hora de


mais calor atravessou a rua principal fazendo alarido, 7
num alarmante estado de comoção.
-Vem aí – conseguiu explicar – um negócio horrível
como uma cozinha arrastando uma aldeia.
Nesse momento a população foi sacudida por um
apito de ressonâncias pavorosas e uma descomunal
respiração ofegante. (...) Mas quando se recuperaram
do espanto dos assovios e bufos, todos os habitantes
correram para a rua e viram Aureliano Triste
acenando, com a mão, da locomotiva, e viram
assombrados o trem enfeitado de flores que, já pela
primeira vez, chegava com oito meses de atraso
(2008, pp. 214-215).

É natural que numa “cidade pacata” a primeira sensação dos


habitantes para com esse elemento do moderno fosse de extranhamento.
Evidentemente que a personagem, buscando explicar o que tinha acabado
de ver, procurou associar às representações imagéticas do mundo
macondiano. Portanto, seria, no mínimo, espantoso “uma cozinha
arrastando uma aldeia”.
Certo escritor paraibano também recupera esse imaginário sobre o
trem de ferro sob a perspectiva do encanto que a máquina causou ao
personagem que protagonisa Menino de engenho, nos primórdios do
século XX. Ambientado numa fazenda próximo a Pilar, município situado
no agreste paraibano, o romance denuncia a presença do transporte
ferroviário nessa região: “costumávamos ir para a beira da linha ver de
perto os trens de passageiros. (...). Mas nos proibiam esse espetáculo com
medo das nossas traquinagens pelo leito da estrada” (RÊGO, 2002; p. 74).
E bem que a curiosidade de conhecer de pertinho aquele transporte
levava-o a fazer travessuras junto aos seus amigos: 8

Um dos lances mais agoniados da minha infância eu


passei numa dessas esperas de trem. O meu primo
Silvino combinara em fazer virar a máquina na rampa
do Caboclo. Já outra vez, com um pano vermelho que
um moleque pregara num pau, um maquinista parara
antes do horário das dez. Agora queria era um
desastre. E botou uma pedra bem na curva da rampa.
Nós ficamos de espreita, esperando a hora. Quando vi
o trem se aproximando como um bicho comprido que
viesse para uma armadilha, deu-me uma agonia
dentro de mim que eu não soube explicar (2002, p.
75).

Esse “bicho comprido” parece ter marcado fortemente a vida do


escritor. O que nos faz imaginar que essas experiências vividas em
diferentes lugares comungam com as vividas na região de Sousa. Apoiado
nas idéias de críticos literários no porte de Luiz Costa Lima e Antônio
Cândido, Aranha nos confirma a importância da literatura para a história.
De acordo com esse historiador, ela não pode ser explorada simplesmente
como uma obra de arte como sustentam os desconstrucionistas,
transformando “a leitura em ‘morada de fantasmas’”, mas como uma
representação do real uma vez que não podemos negar que “a arte
exprime a sociedade” (2000, pp. 145-146).
O trem no cotidiano da cidade
A presença do trem no cotidiano da cidade de Sousa e em suas
viagens são lembradas por nossos entrevistados não apenas porque fez
parte de suas vidas. O fato é que eles também precisam preservar a 9

memória porque necessitam de uma identidade (POLLACK, 1989; p. 07).


O senhor Jeander Batista nasceu no ano de 1942 e viveu a sua
infância entre o distrito de Aparecida e a cidade de Sousa 3. Para ele o trem
de ferro marcou a sua vida porque se fazia presente no cotidiano da
cidade, onde ele estudava e depois passou a trabalhar. De acordo com a
sua fala, esse transporte tornou-se significativo para o crescimento
econômico local e regional:

O trem era quem transportava o caroço do algodão


para Campina Grande, para a fábrica da SANBRA. Meu
pai, Teodoro e outros e outros, transportavam o
caroço em caminhões sem grade para facilitar mais.
Tanto facilitar a carga como a descarga nos vagões.
(...) Então, o trem tinha essa finalidade além de
outras. Ele levava o caroço para Campina Grande. A
SANBRA tinha um ramal para dentro da própria
indústria. Quando chegava lá em Campina o vagão ia
deixar dentro da indústria. Sousa naquela época era
um dos maiores produtores de banana do Nordeste.
Carreguei muita banana com papai, eu adolescente,

3
O distrito de Aparecida, elevado à categoria de município pela Lei Estadual Nº 5896
de 29 de abril de 1994, dista oito quilômetros a leste da cidade de Sousa. Disponível
em:
http://cidades.ibge.gov.br/painel/historico.php?lang=&codmun=250077&search=||inf
ogr%E1ficos:-hist%F3rico. Acesso em: 27 Fev. 2016.
nesses sítios daqui da vizinhança, para ser embarcada
no trem para Mossoró, João Pessoa e Fortaleza
(LUCENA, 2011).

O trabalho de transporte de frutas produzidas nas várzeas de Sousa,


através da irrigação das águas do açude de São Gonçalo, tornara-se um 10

marco na vida de Jeander Baptista no que concerne a importância da


presença do transporte ferroviário para o processo econômico da região
e, especialmente, em sua terra. Mais adiante ele reforça o significado do
trem para o mercado sousense:

Trazia sal de Mossoró para aqui para a cidade. Aqui


tinha Gregório Duarte, eu ainda me lembro do nome.
Um dos maiores exportadores de sal para aqui. Ele
começou ali onde é a delagacia da polícia civil, ali na
estação. Depois, o movimento cresceu tanto que ele
foi [para] onde hoje é a Saboaria Novo Reino, no
Jardim Brasília4,... já saída para São Gonçalo. Então,
esse sal era vendido para toda a região. A farinha de
trigo daqui vinha dos moinhos lá de Fortaleza, ... os
moinhos Teones. Vinha também através do trem,
vinha através do trem. O açúcar que vinha de Campina
Grande, a maioria vinha através do trem (LUCENA,
2010).

A fala acima nos traz informações sobre a intensa relação que o


transporte ferroviário tinha com a vida econômica da cidade. Isso porque
Sousa se tornara um polo regional para onde convergiam populações dos

4
O bairro Jardim Brasília é localizado na área sudoeste da cidade. Ver: SOUSA – PB. Lei
nº2.080/2005. Estabelece as denominações e localizações de todos os bairros da
cidade de Sousa – PB. Prefeitura Municipal de Sousa.
municípios circunvizinhos que não eram favorecidos pelo traçado da
ferrovia. Na sua estação o fluxo de embarque e desembarque de
mercadorias e pessoas intensificou-se consideravelmente na década de
1950. O fato é que em final de dezembro de 1951 houve a inauguração da
rede ferroviária que ligava o sertão paraibano ao litoral potiguar (PASSOS, 11

1982)5. A cidade tornou-se palco de mais uma festa com essa novidade.
Exatamente, no dia 29 do mesmo mês, foi inaugurada a ferrovia que
interligava as cidades de Mossoró via Mombaco até Sousa (A UNIÃO, 10
jan.1952, p. 5).
Com a ligação desses dois trechos a possibilidade de transportes de
mercadorias e pessoas para a cidade de Campina Grande, João Pessoa e a
capital pernambucana aumentou para os sousenses que sofriam com os
empecilhos – poeira, durante o período de estiagem; e os lamaçais,
buracos e atoleiros na estação chuvosa - na única rodovia que ligava Sousa
a João Pessoa. Agora, com a rede feroviária cortando todo o Estado, Sousa
estaria mais comunicativa. Se em 1958 já se fazia mais de três décadas
que se chegava a Fortaleza em pouco tempo, nesse mesmo ano a capital
paraibana e a cidade do Recife também se aproxima muito mais do sertão.
Outro sinal de mudança promovida pela presença do trem de ferro
na cidade de Sousa foram os periódicos que muito influenciaram os
costumes da gente da urbe. No Sertão paraibano o jornal demorava mais

5
O traçado ferroviário ligando Mossoró, no Rio Grande do Norte, ao Estado da Paraíba
fora resultado do projeto de engenharia que estudou as possibilidades, inicialmente,
de dois traçados. O primeiro, ligando aquela cidade potiguar diretamente à cidade
paraibana de Pombal. O segundo traçado ligaria Mossoró à cidade de Sousa. Vigorando
este último por apresentar melhores condições estruturais.
de dez dias para chegar da capital cearense ou de Campina Grande, na
Paraíba. Antes da presença do transporte motorizado nas terras
interioranas, o trajeto entre as pequenas urbes e a grande cidade era feito
exclusivamente no lombo de burros. Os tropeiros eram, praticamente, os
únicos responsáveis pela comunicação das cidades com os centros de 12

efervescência comercial como Campina Grande, Mossoró e cidades


cearenses ligadas à capital por vias férreas (ARANHA, 2001). Isso começou
a mudar a partir de 1922 com o advento do transporte ferroviário na
região que interligava essa área à Capital cearense. Com isso, os jornais de
Fortaleza chegavam com o máximo de um dia de atraso. Com a
inauguração do trecho que ligava Sousa à Campina Grande a influência
torna-se muito maior6.
Um exemplo do consumo dessa literatura jornalística está expresso
na fala do senhor Albino Cordeiro. Ele chegou à cidade de Sousa
acompanhando a sua família, no ano de 1926, contando apenas três anos
de idade. O que se lembra de sua terra natal, Barbalha-CE, são as histórias
narradas pelos seus pais que as contavam “quando sentiam saudades”.
Viveu a sua infância ajudando ao seu pai no pequeno estabelecimento
comercial. “Adorava leituras” quando não estava trabalhando.
Eu gostava de comprar revista Tico-Tico. O Tico-Tico
era uma revista muito instrutiva: tinha história para
6
A estrada de ferro que liga o município de Sousa ao de Campina Grande, ponta dos
trilhos da antiga Great Western desde 1907 e com viagens diretas para o Recife, é
construída paulatinamente, arrastando-se por, aproximadamente, 36 anos. O fato é
que a sua construção e, consequentemente, a inauguração se dar por trechos. Sendo
assim, o trecho Sousa-Pombal é inaugurado em 1932; o seguinte, Pombal-Patos, fora
concluído em 1944 (SILVA, 2011); o último, Patos-Juazeirinho, inaugurado em 1958,
também é motivo de comemoração (DIÁRIO DA BORBOREMA, 16 Fev. 1955).
crianças e história da civilização etc, história do
império romano, dessas coisas. Tudo isso eu li. Por
exemplo, eu li Vinte mil léguas submarinas. Um
romance daquele francês,... Júlio Verne. Tudo no Tico-
tico7. Toda semana vinha uma página que eu
comprava,... eu comprava o Tico-tico toda semana. Foi
aí onde eu me dediquei mais..., me despertou mais à 13
literatura (2009).

O que o entrevistado acima nos informa é a maneira como


aprendeu a gostar de literatura, através das páginas de determinada
revista que costumava comprar. Ele deixa claro como tais meios podem
influenciar facilmente o leitor ao declarar que manteve contato com a
literatura a partir de periódicos. A sociedade letrada da cidade de Sousa
tinha contato com jornais de outros centros urbanos, principalmente das
grandes capitais como o Rio de Janeiro, Recife, Fortaleza etc. Segundo o
senhor Evilásio Marques, o seu pai tinha uma gráfica onde foram
confeccionadas inúmeras edições de periódicos locais e da vizinha cidade
de Cajazeiras, além de todo um material tipográfico que atendia a toda
região circunvizinha. As assinaturas de revistas e periódicos chegavam em
Sousa através do transporte ferroviário.
O senhor Albino Cordeiro foi agente representante dos Diários
Associados na década de 1950. “Eu passei uns cinco anos vendendo as
revistas O Cruzeiro, Manchete, essas coisas”. De acordo com a sua fala
essas revistas chegavam a Sousa por meio do comboio ferroviário. É isso o
7
Segundo Tânia Regina de Luca (2005), a revista O Tico-Tico era destinada ao público
infantil que divertia os leitores com as aventuras de seus personagens e até agindo
pedagogicamente no cotidiano das crianças leitoras. A sua circulação ocorreu
ininterruptamente entre 1905 a 1962.
que o entrevistado acima afirma: “Vinham tudo no trem”, permitindo a
difusão de informações e ideias com maior rapidez.

Dias de festas, tempos de glórias: as viagens de trem


A presença do trem de ferro como transporte coletivo, acessível a 14

todos que pretendessem empreender pequenas ou longas viagens,


favoreceu a um expressivo número de habitantes de Sousa. As viagens de
trem a diferentes lugares que estavam ligados àquela cidade através dos
trilhos ferroviários ofereciam preços acessíveis também à população
pobre do sertão. Fossem às cidades vizinhas ou até mesmo à Fortaleza,
Patos, Campina Grande, João Pessoa e/ou Recife, os empecilhos
enfrentados por outro meio de transporte não se faziam presente nas
viagens de trem. De acordo com as falas dos nossos entrevistados, a
maioria da população que habitava a região viveu essa experiência
moderna, marcada pelo impacto resultante do tempo produtivo do trem.
O senhor Aniobel Vicente viveu toda a sua infância e adolescência
na cidade. Nasceu em 1940 e teve que experimentar as condições difíceis
que a realidade lhe oferecia. Desde criança trabalhou para ajudar aos pais
a “manter a casa”. Mas as experiências prazerosas lhe deixaram muito
mais marcas na sua memória, principalmente as viagens de trem durante
as décadas de 1950 e 1960. Ele lembra algumas passagens desse
transporte em sua juventude:

Eu viagei de trem, é [um transporte de] banco duro. É


feito aqueles bancos de colégio, de igreja. Você tirar
(viajar) daqui para Fortaleza. Entrar num trem aqui
quatro e meia (04:30 h) da madrugada e chegar em
Fortaleza nove e meia (21:00 h) da noite num banco
daquele , meu amigo! Não é mole! Agora, o
restauranete era lá no trem mesmo, entendeu? Aí
depois que veio o Asa Branca já foi mais confortável.
Cadeiras reclináveis. Os camelôs andando pelos 15
vagões oferecendo chocolate, cigarro, tudo,
bomboniere, tudo, tudo! Música ambiente. Que, de
Fortaleza para Sousa, tem uma música que tocou
muito que quando eu escuto a música de Raul Seixas,
eu retroajo o tempo e vejo eu viajando de trem, trem
Azul, não é? É aquela: ói, ói o trem! Entendeu? O Trem
das sete. Isso me traz uma recordação forte. Aí é
quando eu volto o tape. Entendeu? 8 (2010).

O senhor Robson Marques também viveu a sua juventude e


experimentou viagens semelhantes àquelas vivenciadas por Aniobel
Vicente. Embora ele tenha estranhado o transporte, o primeiro embarque
fora significativo para que ele passase a gostar das viagens de trem.

8
A partir de 1952 os trens de ferro que circulavam na região do litoral da região
Nordeste, a R. F. N. (Rede Ferroviária do Nordeste) que interligava as regiões do estado
de Alagoas à Paraíba ganharam um carro restaurante, arrendados por particulares, que
oferecia todas as refeições do dia e alguns petiscos, além de bebidas diversas. Esses
serviços foram estendidos à grande parte da ferrovia do Nordeste por conta da
cobrança constante da imprensa, principalmente (A UNIÃO, 05 ago. 1952, p. 9).
Contudo, nos parece que o senhor Aniobel lembra dos anos de 1959-1960 em que fora
inaugurado uma linha de trem Recife-Fortaleza.
Tinha um trem que ia para o Ceará, passava no Cedro,
no Ceará. Uma vez eu fui e achei gostoso. Nunca quis
andar de trem, mais um dia eu fui e achei bom. (...)
Nesse tempo eu já era grandinho, não é? Já bebia um
negocinho. Aí tinha um conhaque. Só vendia
conhaque nesse tempo. (...). Tinha uns buracos nas
mesas para botar os copos. E eu fui essa viagem mais 16
um amigo meu, tomando um cunhaque... Só via a
zuada, ruuuu! Quando passava uma serra, um túnel.
Faz uma zuada danada. Aí, eu me espantava um
pouco, mas o resto fui e voltei e achei bom (2010)

De acordo com o autor da fala acima, as viagens de trem lhe metiam


medo. No entanto, bastou-lhe a primeira viagem para descobrir o prazer
de viajar, embora o ruído e a velocidade tenham lhe causado, de princípio,
certo espanto. É no bar, que funciona em um dos vagões, que seu Robson
encontra conforto e prazer.
Segundo o historiador inglês Paul Thompson (1998, p. 27), “a
realidade é complexa e multifacetada, e um mérito principal da história
oral é que, em muito maior amplitude do que a maioria das fontes
permite que se recrie a multiplicidade original de pontos de vista”. A
história oral passa a ser também uma via onde se ouve o eco daquele
personagem que antes era, através do silêncio, esquecido e ocultado pela
história oficial. A narrativa de um grupo social está estruturada em uma
vida própria, construída a partir de um conjunto de vivências e
experiências particulares baseadas num conjunto de valores culturais. “A
história oral (...) traz a história para dentro da comunidade e extrai a
história de dentro da comunidade” (THOMPSON, 1998; p. 44).
É fácil de perceber que em cada fala há algo de singular que é
próprio da vida do entrevistado. Para o senhor Aniobel o trem tinha um
papel importante na cidade de Sousa, porque favorecia a muitas pessoas
que ali habitavam viagens para diferentes lugares. Isso significaria o
contato com outros valores e a disseminação de costumes da grande 17

cidade que se pensava recepcionadora da vida moderna.

Você fazer um percurso de Recife para Sousa de trem


e pegar um de Sousa para Mossoró, trem, ou então
Sousa para Fortaleza, trem; é uma viagem que
realmente não é muito confortável, mas que é
prazerosa. Porque você vai comtemplando a beleza da
natureza, a criação divina, não é? Você vai vendo
coisas... até enriquece o seu conhecimento na história
do Brasil. Rapaz, na região tal, na região de Sousa,
região do Ceará, região de Pernambuco, Campina
Grande. Tudo isso você sabia dizer porque tinha
contemplado através de uma viagem.

Quando pergunto sobre os momentos de chegada e partida do


trem, os entrevistados evocam esses instantes com muitos detalhes,
fazendo “reviver” as alegrias e até instantes que foram, para alguns,
desagradáveis. Para o senhor Aniobel Vicente foi um tempo festivo:

Olha! Era uma noite de festa. Era uma noite de festa.


As pessoas faziam questão de ir para a estação.
Aquele momento prazeroso de ver o desembarque. As
pessoas, até mesmo esperar fulano que vem,
entendeu? Muitos namorando. Namorados iam,
outros vinham e tal... E quando o trem parava, alguns
jovens faziam questão de entrar no vagão para saber
como era. Mas tinha que ser rápido porque ele ia sair
para fazer a manobra. Agora, só tinha uma coisa que
incomodava e muito!. Era no momento da manobra
do trem: interditava, interrompia a passagem que via
que dava acessso a Sousa. Muitas das vezes até
ambulâncias conduzindo doentes, prejudicava. Era 18
preciso até parar e desatrelar o trem [dos vagões]
para a ambulância passar e depois atrelar novamente.
Porque se fosse esperar as monobras todas desses
trens para se posicionar na posição de partida, passa
muitas horas. Isso inquietou muita gente (SOUSA,
2010).

O senhor Eilzo Matos experienciou essa vivência com o moderno


meio de transporte que a fala acima manifesta. Nascido em 1934, o nosso
entrevistado teve uma infância alegre e de muitas oportunidades,
principalmente quanto à escola. Ele, que viajou muito de trem, evidencia a
importância do cotidiano na estação durante as chegadas e partidas de
diferentes comboios.

Na hora do trem a gente ía assistir a chegada (...)


pessoas que chegavam, pessoas que viajavam. Rapaz
e moça gostam disso, não é? Era um movimento
danado na estação. Eu me lembro de uma vez aqui
que nós reunimos a rapaziada de Sousa, todas as
famílias para receber duas pessoas formadas que
chegaram aqui, três pessoas: Romeu Gonçalves que
formou-se em 30 [1930] e foi deputado; Didi Gadelha,
dr. Abílio Queiroga, que era dentista; e dr. Antonio
Silveira que era dentista. Então, eles vieram. Todas as
famílias combinaram, marcaram para quando eles
virem as famílias irem receber. Foi toda a cidade
receber esse trem, a formatura deles três. E depois
que chegava em Sousa, então a gente não ia mais para
o trem, ficava na rua olhando os ônibus chegar e
passar, chegar e sair, chegar e sair . Era um
movimento danado. Era uma animação danada na
cidade (MATOS, 2011).
Olha, a chegada do trem, evidentemente que não para 19
todas as classes, não é? Mas a chegada do trem era
uma festa. Esse trem ía até Mossoró, no Rio Grande
do Norte. E, em geral, as pessoas íam todas para lá, ou
para tomar um cafezinho, bater um papo ali na
estação, ver quem chegou quem não chegou para
receber encomendas que vinham muitas e para
receber os familiares. Então, tinha os carros de aluguel
que não eram táxi. Os carros de aluguel iam muitos
para lá para levar gente, para guardar bagagem e tal. E
era uma coisa muito movimentada. Era uma turma
que ía toda para lá: reunir, receber os parentes,
receber encomendas. Era um acontecimento
realmente, a chegada do trem. Tinha muita
importância (NÓBREGA, 2010).

Essas sensibilidades captadas pelos entrevistados acima revelam o


quanto foi importante a presença cotidiana do trem na cidade de Sousa. A
estação era um espaço de sociabilidade para onde convergia diariamente
uma pequena multidão. Tratava-se de vendedores ambulantes,
trabalhadores, autoridades, pessoas que aguardavam o embarque de
familiares e/ou amigos, pedintes, curiosos e todos que viviam aquele
momento como uma espécie de distração e lazer. O que chamava a
atenção de tanta gente não era apenas o movimento de pessoas, mas o
próprio espetáculo promovido pela mecânica da locomotiva e o “balé” dos
vagões. O ruido provocado pelo atrito das rodas nos trilhos e o barulho da
locomotiva, acompanhados do apito ensurdecedor, anunciavam a sua
presença na cidade. A sua aproximação da estação produzia um
movimento cadente que completava o “espetáculo”, o que, para alguns,
era comparado a uma “serpente de aço”. Tudo isso paralizava os olhos de
quem assistia a sua passagem e após algumas décadas continuou 20

encantando muitos habitantes das regiões interioranas. Isso fica claro na


fala do senhor Aniobel quando lembra: “E quando o trem parava, alguns
jovens faziam questão de entrar no vagão para saber como era”. O desejo
de entrar no trem, de conhecê-lo, de experimentar aquela invenção, se
não era tomado por todos, mas por muitos que ali conviviam
cotidianamente com esse signo do moderno. O que nos faz pensar o
encanto da passagem que aquele transporte gerava não somente em
Sousa mas também em toda a região que ele atravessava. E como o
senhor Eilzo Nogueira afirma, “eram os jovens que mais frequentavam a
estação”. A estação era uma porta de entrada para a cidade.
Com a presença do trem o mercado da região respirava aliviado. O
fluxo de mercadorias que se intensificava continuadamente permitiu
também a introdução de determinados valores e costumes ditos
civilizados, mas que, muitas vezes, não correpondiam com a moral cristã
dos habitantes dessa pequena urbe. Apesar de ser apontado como o
principal ícone do progresso, o trem também era visto como pomotor de
certas práticas desordeiras e pecaminosas. Certo entrevistado nos afirma
que,
Sousa recebia trens de Mossoró, Fortaleza e Recife,
diretos. Sem contar que passava em Campina Grande,
passava em Patos, passava em São João do Rio do
Peixe e saía por aí a fora. Aí tinha o trem da segunda-
feira, que chegava aqui, saía da segunda para a terça,
da quarta para a quinta e da sexta para o sábado para
Recife, Fortaleza e Mossoró. Esses trens chegavam a 21
noite, pernoitavam aqui e de madrugada estavam
voltando. Era um movimento intenso a noite na
estação. Era chamada a feira do capim. Motivo é um
pouco... Mulheres que vinham e faziam sexo no chão
mesmo. E por isso ficou denominada a feira do capim,
não é?... Quem vinha ali, não tinha motel, não tinha
essas coisas. Tinham só umas casinhas com uns
quartinhos por ali. ...Então, vamos para a feira do
capim! Agora, nessa feira do capim tinha tudo que
você quisesse: venda de bicicleta, venda de relógios
usados. Era uma verdadeira feira mesmo noturna,
feira noturna. E na pedra [calçada] da estação tinha
tudo que você quisesse: sanduíche, cocada. Era o que
você quisesse lá tinha. E tinham muitos bares. Um
desses, passava a noite aberta. Por isso chamava o Bar
Sem Porta. (LUCENA, 2010).
Não só havia lojinhas, lojas de quinquilharias e tal,
como havia barzinhos, não é? Restaurantes para você
comer um sanduíche, tomar um café, comer alguma
coisa e tal; até o pessoal que descia do trem fazia uma
refeição, tomava o trem. Era muito movimentada a
estação. Evidente que mais frequentadas pelas
classes... o que? Classe média... C ou E, não é? Por aí.
Porque o trem, por ser muito mais barato, ele servia
de transporte para as classes menos favorecidas,
digamos assim (NÓBREGA, 2010).

A promoção de novos costumes e hábitos tornava-se mais intensa,


graças ao fluxo de trens na cidade. A feira noturna ocorrida à margem da
estação se dava por conta do movimento gerado não apenas pelos que
embarcavam ou desembarcavam ali, mas também por um número
considerável de mulheres, homens, jovens e crianças que convergiam para
aquele local afim de lucrar bons trocados ou participar daqueles
momentos como instantes de alegria e prazer. Como afirmam os 22

entrevistados: “era um momento de diversão”. A estação era, para alguns,


um espaço de trabalho, para outros um lugar de lazer.
O que o pernoite dos trens causava era não só um motivo para um
relativo comércio, mas também a constituição de um novo território, o
território dos prazeres proibidos. Se essas práticas consideradas
indesejáveis para parte da população eram para muitos tratadas como um
sinal de promiscuidade é de se pensar que esse espaço ao mesmo tempo
que era de encanto também trazia seus desencantos que acabavam
afastando certa parcela de visitantes à estação ferroviária. Que códigos
regiam a sociedade quanto ao sexo e à prostituição? Não cabe aqui
responder a essa indagação pelo fato dela apresentar uma outra
problemática, a qual não se encontra dentro do nosso trabalho.
As lembranças desses entrevistados se fazem por diferentes
maneiras. Um desses apresenta um relato interessante sobre as suas
memórias que acaba por nos remeter à madeleine explorada pelo escritor
francês Marcel Proust e tomada por alguns historiadores para
fundamentar a discussão em torno da memória e das sensibilidades.
Quando criança Jeander Batista passava parte de seu dia na vila de
Aparecida distante poucos quilômetros de Sousa. Dessa época muita ficou
em sua memória:
uma das diverções para nós em Aparecida era assistir
o trem passar dia de domingo, a Maria Fumaça. Eu
não esqueço os bolinhos de pão de ló que eram
vendidos por uma preta da família Neves na calçada
da estação lá em Aparecida. Nunca esqueci o sabor
desses bolinhos. Eu ainda estou com o sabor deles na
boca. 23

Com isso, não teria como negar que o trem permitiu a muitos dos
que ali moravam a instituição de um cotidiano em torno da sua presença
na região como momentos de festa. O apito, a fumaça e a imagem do
trem de ferro em movimento marcou a vida de muitos que ali
experienciaram esses momentos, tornando-se lembranças inesquecíveis.

Considerações finais
Desde as espectativas de seu advento, perpassando pela
implantação dos trilhos ferroviários e confluindo nas suas permanentes
viagens, os discursos das autoridades políticas assinalam para o trem de
ferro como um projeto redentor que iria salvar uma população sertaneja
da miséria e das constantes secas, alavancando a economia dessa região.
Na verdade, a Maria Fumaça adentra as terras interioranas sob o
interesse das elites dominantes e é decantada por essa classe como sendo
um “instrumento civilizador”.
Na memória de alguns dos que vivenciaram as experiências com
esse considerado signo do moderno, não aparece aquele “instrumento
redentor” e/ou “civilizatório”, mas um espetáculo que fazia parte do
cotidiano da cidade e que a tornava moderna, ligada com todo o mundo.
Entre chegadas e partidas o trem atravessou a vida de muitos
daqueles que experimentaram a era do transporte ferroviário na região do
município de Sousa e adjacências. As viagens de trem ao Recife, à capital
cearense ou a qualquer outro centro urbano cortado por esse traçado
ferroviário vivenciadas por aquela gente sousense, tem muito a contar 24

sobre as histórias do trem de ferro no Alto Sertão da Paraíba.

Referências
Fontes:
A UNIÃO. João Pessoa, 1922, 1926 e 1952.
ALEXANDRE, Francisco Alves. Entrevista concedida ao autor. São João do
Rio do Peixe, 8 set. 2004
DIÁRIO DA BORBOREMA, Campina Grande, 1955
LEITÃO, Deusdedit. Inventário do tempo: memórias. João Pessoa:
Empório dos livros, 2000.
LUCENA, Jeander Batista de. Entrevista concedida ao autor. Sousa, 25 de
setembro de 2010.
MARQUES, Robson Araújo. Entrevista concedida ao autor. Sousa, 26 de
setembro de 2010.
MATOS, Eilzo Nogueira. Entrevista concedida ao autor. Sousa, 17 de
janeiro de 2011.
NÓBREGA, Maria Bernadete Mariz Melo. Entrevista concedida ao autor.
João Pessoa, 03 de novembro de 2010.
SOUSA – PB. Lei nº2.080/2005. Estabelece as denominações e localizações
de todos os bairros da cidade de Sousa – PB. Prefeitura Municipal de
Sousa.
SOUSA, Aniobel Vicente de. Entrevista concedida ao autor. Sousa, 25 de
setembro de 2010. 25

http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?codmun=251620. Acesso
em: 27 Fev. 2016.
http://cidades.ibge.gov.br/painel/historico.php?lang=&codmun=250077&
search=||infogr%E1ficos:-hist%F3rico. Acesso em: 27 Fev. 2016.

Bibliográficas
ARANHA, Gervácio Batista. Trem, modernidade e imaginário na Paraíba e
região: tramas político-econômicas e práticas culturais (1880-1925). Tese
(doutorado em história). Universidade Estadual de Capinas, Campinas –
SP, 2001.
ARANHA, Gervácio Batista. O trem de ferro em imagens literárias: advento
triunfal da mecânica moderna no Brasil na transição do século 19 para o
20? In: CITTADINO, Monique; GONÇALVES, Regina Célia (orgs.).
Historiografia em diversidade: ensaios de história e ensino de história.
Campina Grande-PB: EDUFCG, 2000. p. 145-146
CARTAXO, Otacílio. Os caminhos Geopolíticos da Ribeira do Rio do Peixe.
João Pessoa: A UNIÃO, 1964.
LUCA, Tânia Regina de. Fontes impressas: história dos, nos e por meio dos
periódicos. In: PINSKY, Carla Bacellar (org.). Fontes históricas. São Paulo:
Contexto, 2005. pp. 111-153.
MARIZ, Celso. Evolução econômica da Paraíba. 2 ed. João Pessoa: União,
1978. 26

MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane


Zagury. 67 ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
PASSSOS, Edson Junqueira. Reconhecimentos gerais para o
prolongamento da estrada de Mossoró, de São Sebastião a Souza e
Pombal. Coleção mossoroense. Vol. CCXXXIX.; Ano XV da ESAM, 1982.
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos históricos
3, memória. Rio de Janeiro, 1989.
REGO, José Lins. Menino de engenho. 84 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
2002.
ROSA, Zita de Paula. O Tico-Tico: meio século de ação recreativa e
pedagógica. Bragança Paulista: EDUSF, 2002.
SILVA, Josinaldo Gomes da. Imagens do moderno em Patos-PB (1934-
1958). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de
Campina Grande, Campina Grande-PB, 2011. 162 p.
SOUSA, Rivaldo Amador de. Vertigens do Progresso: o trem e outros
signos do moderno em São João do Rio do Peixe (1918-1964). Monografia
(Especialização em História). Universidade Federal de Campina Grande,
Cajazeiras-PB, 2005. 132 p.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Tradução de Lólio L. de
Oliveira. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
DISCUTINDO ALGUMAS QUESTÕES HISTORIOGRÁFICAS
A PARTIR DO ROMANCE HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA
DE JOSÉ SARAMAGO

Rodrigo Conçole Lage1


1

Resumo: O objetivo desse trabalho é discutir como a literatura pode ser utilizada para
a discussão da ideia de verdade histórica, utilizando como fonte o romance História do
cerco de Lisboa de José Saramago. Na primeira parte, examinamos a ideia de verdade
histórica. Na sequência, apresentamos o romance, abordando a questão da falsificação
da história e de como ela pode ser utilizada por professores para se trabalhar a
questão da verdade. Por fim, tratamos dos excluídos da história oficial.
Palavras-chave: José Saramago, História do cerco de Lisboa, Verdade Histórica.
Excluídos da História

Resumen: El objetivo de nuestro trabajo es discutir como la literatura puede ser


utilizada para debatir la idea de verdad histórica, utilizando como fuente la novela
História do cerco de Lisboa de José Sartamago. En la primera parte examinamos La
Idea de verdad histórica. En la secuencia, presentamos la novela, abordando la
cuestión de la falsificación de la historia y como ella puede ser utillizada por
professores para trabajar la cuestión de la verdad. Por último, tratamos de los
excluidos de la historia oficial.
Palabras clave: José Saramago. História do cerco de Lisboa. Verdad Histórica. Excluídos
de la Historia.

1
Graduado em História (UNIFSJ). Especialista em História Militar (UNISUL).
Introdução
O que é a verdade dentro da História? Como lidar com as diferentes
versões de um determinado fato histórico em sala de aula? Como
trabalhar com o aluno essa questão. Com o surgimento da internet e a
facilidade de acesso a informação que ela nos dá o professor que se 2

limitar a ser um mero reprodutor de fatos corre o risco de não despertar o


interesse dos alunos e se tornar irrelevante. Diante desse fato o professor
deveria buscar alternativas, repensando sua atuação, não se vendo mais
como um mero reprodutor de uma determinada visão da História, mas
como alguém que pode realmente contribuir para a formação dos alunos
como cidadãos verdadeiramente críticos e reflexivos. Com esse objetivo,
entendemos que questionar a noção de verdade deve ser o primeiro
passo para aqueles que desejam seguir por esse caminho.

1- Discutindo a noção de verdade histórica


A noção de verdade é um dos pilares do ofício do historiador. Toda
a pesquisa histórica está, de um modo ou de outro, pautado na ideia de
que é possível descobrir a verdade e/ou identificar os erros e as
falsificações cometidas por outros historiadores. Além disso, desde a
antiguidade, a produção historiográfica está fundamentada na escrita de
fatos reais, daquilo que teria realmente acontecido e não naquilo que
poder ter acontecido. Esse fato é o que, comumente, distingue a história
da literatura. Em sua Poética Aristóteles (1966, p. 50) afirma:
Pelas precedentes considerações se manifesta que não é
ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de
representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é
possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com
efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem
verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em
verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de 3
ser histórias, se fossem em verso o que eram em prosa), -
diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e
outro as que poderiam suceder.

Contudo, essa ideia de verdade tem sido contestada na


contemporaneidade. Esse questionamento está baseado na convicção de
que o fato histórico não existe em si mesmo, ele é "uma construção, um
discurso elaborado por quem escreve os textos" (ROIZ; SANTOS, 2012, p.
281). Partindo desse fato, o professor que deseja contribuir de forma
eficaz para a formação dos alunos não pode se limitar a ser o mero
reprodutor de uma determinada visão dos acontecimentos.
Ele deve procurar levar o aluno a perceber como a História é
construída e assim ser capaz de refletir a respeito desse processo de
construção, da ideologia que está por trás desse processo. Ao mesmo
tempo, acreditamos que o diálogo interdisciplinar com a literatura pode
ser uma forma eficaz de trabalhar a questão e, juntamente, procurar
despertar o interesse pela literatura, contribuindo assim para a formação
de novos leitores. Para isso, escolhemos trabalhar com o romance História
do cerco de Lisboa de José Saramago.
2- História do certo de Lisboa e a falsificação da História
Uma das mudanças promovidas pela historiografia do século XX e a
difusão da utilização da literatura como uma fonte histórica. Partindo do
princípio que ela tem o mesmo valor que as fontes comumente utilizadas
pelos historiadores (documentos oficiais, cartas, etc.) decidimos trabalhar 4

com a obra de Saramago, que no âmbito da crítica literária tem sido


amplamente discutida no que diz respeito a questões referentes à escrita
da história. Como muitos alunos, e mesmo professores, podem não
conhecer o escritor apresentaremos um breve resumo. O romance,
publicado em 1989, narra a história do revisor Raimundo Benvindo Silva
que, um dia, ao revisar o tratado histórico intitulado História do Cerco de
Lisboa introduz um "não", alterando assim a versão oficial da história:

É evidente que acabou de tomar uma decisão, e que má ela


foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta
uma palavra à página, uma palavra que o historiador não
escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia
ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou
a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a
conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a
ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos falso
prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro, tomou o
seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e
como (Saramago, 1989, p. 50).

Esse ato introduziu alterações em sua vida sendo que a mais


importante foi o fato da editora contratar Maria Sara como diretora dos
revisores. Ela vai incentivar Raimundo a escrever uma nova versão da
história a partir dessa ideia de que os cruzados não ajudaram a
reconquistar Lisboa. Com o passar do tempo os dois vão se apaixonar e
essa paixão vai ser representada na história que Raimundo está
escrevendo por meio do romance entre o protagonista, Mogueime, e
Ouroana. Em linhas gerais, essa é a história do livro. Na seqüência iremos
discutir dois pontos a serem trabalhados no que diz respeito a questão da 5

falsificação da história.
Em primeiro lugar, é preciso destacar o fato de o "não" introduzido
pelo revisor não foi algo inventado, mas feito baseado em fontes
históricas como, por exemplo, a carta Conquista de Lisboa aos Mouros
(1147) de Osberno: "a informação é de boa origem, diz-se diretamente do
célebre Osberno" (Saramago, 1989, p. 124).Assim, o que temos são
diferentes versões do fato e essa divergência deve ser utilizada pelo
professor para se discutir a ideia de verdade. Incluímos nas referência uma
edição da carta que pode ser acessada na internet e trabalhada pelo
professor que pode propor aos alunos uma pesquisa para verificar até que
ponto a história oficial e o relato da carta são divergentes.

3- Um olhar sobre os excluídos da História


Outra opção, para um trabalho interdisciplinar com a literatura,
seria uma comparação do relato da carta com a nova versão da história
escrita pelo protagonista de Saramago. Esse tipo de trabalho poderia ser
realizado pelo professor de literatura em um trabalho conjunto com o de
história. Outro fato que pode ser discutido é a questão dos excluídos da
História. Se durante muito tempo a História estava voltada para os
grandes homens e grandes feitos, deixando de lado grande parte da
humanidade, na contemporaneidade a produção historiografia tem
procurado resgatar os que foram dela excluídos, apresentando assim
outra visão dos fatos, procedimento também utilizado pelo escritor:

Um outro momento da obra, em que Saramago também 6


utiliza uma fonte histórica, desse vez a chamada A
conquista de Santarém, é no trecho no qual é mencionada
a personagem histórica Mogueime. Ele depois se tornará
um dos protagonistas do livro que Raimundo Silva escreve
como versão alternativa ao cerco de Lisboa. Mogueime foi
um soldado lusitano que participou da batalha em
Santarém e que, por ser mencionado na crônica de D.
Afonso Henriques, possui uma notoriedade histórica
mínima (...) (MATIAS; ROANI, p. 6-7).

Segundo Felipe dos Santos (2008, p. 6), “trata-se de uma fonte


histórica muito fecunda e importante, resgatada e divulgada por Frei
António Brandão, na qual o rei narra alguns pormenores da conquista de
Santarém”. Saramago utilizou uma pessoa que realmente existiu e que foi
citada em um texto histórico, mas que não recebeu nenhum destaque.
Apesar de não ter maior importância dentro da história Saramago fez dele
um dos personagens centrais de seu livro. Os alunos devem tomar
consciência de que determinados grupos e pessoas não foram(estão)
inseridos na História. Negros, mulheres, por exemplo, estão entre os
grupos sociais que passaram por esse processo de exclusão e que tem
trabalhado para promover esse resgate. Por se tratar de um romance
metahistórico, escrito por um militante político, é natural que o
romancista lide com a questão:
O curioso é notar que Saramago utilizou o personagem
histórico Mogueime para inserir esse texto histórico na sua
narrativa. Ao optar por fazer com que o soldado narrasse o
que ocorreu em Santarém, Saramago dá voz àqueles que a
história silenciou e esqueceu. Talvez seja a forma que o
7
escritor português encontrou para narrar esse
acontecimento por uma outra ótica, pela visão de um
simples subalterno, aquele que conseguiu amarrar a escada
ao muro para que os portugueses pudessem invadir e
conquistar Santarém, e que depois o crédito da façanha
ficou quase todo para o seu superior, o senhor Mem
Ramires, o qual é exaltado pela historiografia lusitana por
ser o bravo e corajoso homem que conseguiu invadir
Santarém.

Do ponto de vista de uma prático pedagógica, esse tema pode ser


desdobrado pelo professor em muitas questões, tais como: Por que isso
acontece (u)? Até que ponto essa exclusão falsifica ou distorce a História?
Qual o caráter ideológico dessa exclusão? O que pode ser feito para
mudar essa situação? Tais questionamentos podem servir de ponto de
partida para a discussão da confiabilidade dos fatos históricos. Podemos
dizer que esses são os dois principais pontos para os que desejarem
trabalhar com esse tema. A discussão desses fatos não pode se restringir
ao meio acadêmico, ao debate historiográfico, mas deveria ser levado ao
ambiente escolar de modo a contribuir para a formação de alunos críticos.

Conclusão
Como vimos, a questão da verdade na história, e dos excluídos, tem
sofrido importantes transformações ao longo do tempo. Acreditamos que
tais questionamentos não devem ficar restritos ao âmbito historiográfico,
mas devem ser levados para as salas de aula porque podem contribuir
para a formação de alunos críticos. A partir dos questionamentos
desenvolvidos ao longo do texto o professor tem uma base a partir da
qual possa trabalhar com os alunos e desenvolver novas problemáticas. 8

Ao mesmo tempo, propomos um enriquecimento do ensino da História a


partir do diálogo com a literatura.
Nossa intenção, ao discutir a questão da verdade e dos excluídos,
não é esgotar o assunto, mas apresentar algumas propostas de trabalho
que podem levar a outros assuntos como, por exemplo, a questão da
construção do conhecimento ou dos usos da história. Com isso o ensino
da História poderá ser relevante não só para a formação dos alunos, mas
também dos próprios professores. A crítica literária já tem estudado as
características metahistóricas do romance e os historiadores e professores
de história também podem, a partir dessas pesquisas, utilizá-lo para
refletir sobre essas questões e seus ofícios.

Referências
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo,
1966.
BRAWDSEY, Osberto de. A Conquista de Lisboa aos Mouros, 1147.
Disponível em:
<http://www.arqnet.pt/portal/pessoais/cruzado_lisboa.html>.
Acesso em: 13 dez. 2015.
GUTERRES, Tiago da costa. ‘Heródoto e a noção de verdade na
historiografia grega: um breve comentário’. Revista Historiador, Porto
Alegre, ano 04, n. 04, p. 15-22, 2011. Disponível em:
<http://www.historialivre.com/revistahistoriador/quatro/tiagog.pdf>.
MATIAS, Felipe dos Santos; ROANI, Gerson Luiz. ‘História do cerco de
Lisboa: as fontes medievais de José Saramago e a transfiguração literária
da história’. Revista Vertentes, São João Del-Rei, v. 32, p. 1-12, 2008.
Disponível em:
<http://intranet.ufsj.edu.br/rep_sysweb/File/vertentes/Vertentes_32/feli
pe_e_gerson.pdf>.
ROANI, Gerson Luiz. No limiar do texto: literatura e história em José 9
Saramago. São. Paulo: Annablume, 2002.
ROIZ, Diogo da Silva; SANTOS, Jonas Rafael. As transferências culturais na
historiografia brasileira: leituras e apropriações do movimento dos
Annales no Brasil. Jundiaí: Paco Editorial, 2012, 296 p.
A ATUAÇÃO DA COMUNIDADE EPISTÊMICA NA
FORMULAÇÃO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS:
PROCESSOS DE SELEÇÃO DO LIVRO DIDÁTICO DE
HISTÓRIA NO PNLD
1
Roper Pires de Carvalho Filho 1

Resumo
Esse trabalho objetiva refletir sobre o processo de circulação do livro didático de
História, e neste, o papel desempenhado por um ator – a comunidade epistêmica,
comunidade científica formada pelos historiadores – na avaliação e triagem dos livros
didáticos, via participação no PNLD, o Plano Nacional do Livro Didático. Para isso,
referenciado nas pesquisas desenvolvidas por Stephen Ball e Alice Casimiro Lopes,
estabeleço como itinerário apresentar o conceito de comunidade epistêmica, para
em seguida buscar estabelecer os nexos entre a produção acadêmica sobre o ensino
de História e os critérios adotados pelos historiadores para avaliar os livros didáticos
que compõem o catálogo do referido PNLD.

Palavras-Chave: Comunidade Epistêmica. Livro Didático. PNLD. História escolar.

Abstract
The purpose of this paper is to think over the process of circulation of the History
textbooks, and in it, the role played by an actor – the epistemic community,
consisting of historians – in the assessment and screening of textbooks, through their
engagement in PNLD, the National Textbook Plan. For such, based on the studies
conducted by Stephen Ball and Alice Casimiro Lopes, my itinerary is to present the
concept of epistemic community and then I seek to establish the links between the
academic production about the teaching of History and the criteria adopted by
historians in order to assess the textbooks included in the catalogue by the PNLD
mentioned above.

Key words: Epistemic community. Textbook. PNLD. School history.

1
Doutor em História pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo;
Camarada457@gmail.com
Introdução

Em retrospectiva sobre o processo de constituição do tema “livro


didático de História” como campo de pesquisas no Brasil, Munakata
(2000) afirmou que nas décadas de 1970/80, foram publicadas diversas 2

pesquisas acadêmicas dedicadas a “flagrar nos livros didáticos e


paradidáticos brasileiros a presença insidiosa da mentira, da manipulação
do preconceito, da mistificação, da legitimação da dominação e da
exploração burguesas – em suma, da ideologia” (p. 271).
Para o autor, em específico em relação ao livro didático de História, a
conjuntura política, refletida no esforço dos historiadores contra o
expurgo da História como disciplina do currículo escolar, em oposição a
Estudos Sociais, Organização Social e Política Brasileira e Educação Moral e
Cívica, impostas pelo regime autoritário, tornava objeto de suspeição todo
o aparato institucional que dissesse respeito à estruturação da
organização escolar – incluído aí o livro didático.
A superação das análises que tinham como peça de resistência fazer a
denúncia das “belas mentiras” (op. cit.) contidas nos livros didáticos,
especialmente nos de História, ocorreu somente no decorrer da década de
1990. Contribuiu para essa mudança, o empenho dos pesquisadores
brasileiros em investigar novos temas, focalizar um mesmo tema sob
outras perspectivas, e ainda experimentar novas abordagens.
Inspirados especialmente pelas pesquisas desenvolvidas na França
pelos historiadores Roger Chartier (1990) e Alain Chopin (2002, 2004),
cujas obras repercutiram favoravelmente entre os pesquisadores
brasileiros, o livro didático passou a ser investigado enquanto artefato
cultural pensado e materializado para atender às finalidades precípuas da
educação escolar.
Na perspectiva de análise proposta por Chopin, para atender às
expectativas dos principais consumidores desse material – professores e 3

alunos – o livro didático precisa possuir características únicas que o


diferencie das obras não didáticas, como ter linguagem (textual e gráfica)
compreensível, de maneira a atender simultaneamente a ambos. Para
isso, os textos, ilustrações, atividades e exercícios passam por um
processo de “escolarização”, mediante um arranjo que os torne
adequados às exigências dos primeiros e com um conteúdo acessível aos
segundos (op. cit.).
Gimeno Sacristán (2000) observa que o livro didático desempenha
um papel fundamental no processo de produção do currículo escolar. Para
o autor, os “livros-texto são os verdadeiros agentes de elaboração e
concretização do currículo” (p. 24), sendo determinante nas práticas
desenvolvidas por professores e alunos.
Com bem observou Cassiano (2004), as marcas da presença do livro
didático na História da educação brasileira se estendem além do aspecto
meramente escolar, envolvendo “a área comercial das grandes editoras; o
Estado, especificadamente as políticas públicas para o livro didático e a
escola” (p. 35). Nesse sentido, ele é, simultaneamente, um objeto inserido
no processo de produção capitalista, que tem na indústria cultural uma
importante fonte de recursos econômicos; um elemento de difusão de
certa noção de cultura entre os diversos segmentos sociais que o
consomem; um instrumento fundamental de afirmação das políticas
públicas implementadas pelo Estado 2.
Apesar de reconhecer ser o livro didático um objeto multifacetado
quanto aos seus usos, bem como em relação às interfaces que estabelece
com a esfera da produção, nesse estudo, proponho abordá-lo enquanto 4

um artefato que ao circular por diversas instâncias sociais, sofre a


intervenção de sujeitos posicionados nessas instâncias.
Em específico, proponho abordar o seu processo de circulação, e
neste, a atuação dos avaliadores das coleções didáticas produzidas pelo
mercado editorial, cujo destino final é as escolas de educação básica
brasileiras.
O avaliador da obra didática é um ator situado entre a fase de
produção da coleção didática e a sua comercialização pelas editoras, isto
é, na interface entre o Estado, que o contrata via PNLD (Programa
Nacional do Livro Didático), do qual falaremos adiante, e o professor da
escola básica, encarregado de selecioná-lo, e, posteriormente, utilizá-lo
nas atividades desenvolvidas com os seus alunos. Logo, por sua posição
estratégica nos processos de seleção das coleções didáticas, torna-se
importante lançar luz sobre o papel desempenhado por esse ator,
doravante denominado de comunidade epistêmica.

2
No Brasil, a escolha do livro didático é uma atribuição do professor, com base em uma relação
fornecida pelo Programa Nacional do Livro Didático, um programa do Ministério da Educação. Portanto,
para conquistar a sua confiança quanto à utilidade desse material pedagógico para o processo ensino-
aprendizagem, as editoras lançam mão de estratégias agressivas: visitas dos representantes comerciais
às escolas e convite aos professores para participarem de palestras e workshops com os autores das
obras didáticas (Cassiano: 2004).
Quem são os avaliadores e como intervém nos processos de seleção das
coleções didáticas de História pelo PNLD? Tais processos repercutem as
pesquisas relacionadas à comunidade epistêmica em que esses avaliadores
estão inseridos? A intervenção da comunidade epistêmica se reflete na
produção de propostas curriculares da disciplina e nas práticas do 5

professor, para a educação básica, visto o peso que o livro didático assume
nas práticas escolares?

Em busca de responder a essas questões, o itinerário traçado nesse


texto aponta para uma discussão inicial a respeito da definição do
conceito de comunidade epistêmica, de maneira a situar o leitor em
relação a esse conceito. Para isso, recorremos a autores localizados em
diferentes campos do conhecimento, que utilizam esse conceito em suas
pesquisas. Em seguida, passo a analisar a maneira pela qual a comunidade
epistêmica atua em dois momentos chave das políticas públicas para o
livro didático no Brasil – na avaliação das coleções didáticas, mediante a
adoção de alguns parâmetros a fim de evitar erros factuais, por exemplo;
e, na formulação dos critérios de seleção das coleções didáticas pelo
professor da educação básica3.

3
Os critérios acima mencionados estão disponibilizados nos “Guia do Livro Didático do PNLD/2011 e
2013”, publicados e mantidos em um sítio do Ministério da Educação ao fim de cada ciclo de avaliação
das coleções didáticas.
Conceito de comunidade epistêmica

O termo comunidade epistêmica deriva da palavra grega epistemè,


que em sua origem, na Grécia antiga, significava conhecimento justificado
e verdadeiro, de caráter científico em oposição à doxa, opinião emitida 6

sem qualquer fundamento. Na contemporaneidade, o termo episteme, do


qual deriva o conceito de comunidade epistêmica, foi apropriado e
resignificado por pesquisadores vinculados a diferentes campos do
conhecimento, como a filosofia, a biologia, a ciência política e a educação,
entre outros.
Oliveira (2012) localiza o termo comunidade epistêmica no contexto
da implementação das políticas públicas em nível internacional, nacional
ou local, cujo marco é o estudo desenvolvido por Haas (1990, 1992), que
caracteriza a comunidade epistêmica como um grupo de profissionais que
desempenham um papel relevante na sua área de atuação, e possuem
características em relação a outros grupos. Ainda citando Haas, Oliveira
(op. cit.) afirma que esse grupo partilha crenças e normas; crenças causais;
noções de validade, e ainda “têm em comum uma idéia sobre o
empreendimento de políticas” (p. 4).
Maffra (2013) define a comunidade epistêmica

como um conjunto de especialistas que demonstram


discurso comum, conhecimento compartilhado e
diagnóstico comum sobre determinada área-problema por
meio de artigos publicados, conferências e outros tipos de
comunicações orais proferidas, formais ou não, relatórios
para agências de governo e possui capacidade de, através
desse tipo de comunicações citados, influenciar uma
agenda de políticas públicas (p. 82).

Outras características atribuídas à comunidade epistêmica pela


autora, diz respeito aos diferentes níveis de decisão em que ela atua e aos
7
graus de complexidade das políticas (públicas) em que são chamados a
intervir. Há casos em que sua atuação se restringe a questões locais; em
outros ela atua em nível nacional, internacional, ou de forma combinada
em mais de um nível de decisão. Quanto maior for o nível de
complexidade do problema a ser enfrentado, maior será a necessidade de
recorrer a esses profissionais, “tanto no momento de definir os temas a
integrar a agenda, quanto no momento de decidir que tipo de política será
adotado e qual será seu desenho” (Oliveira, p. 5).
No campo da educação, o termo comunidade epistêmica aparece
vinculado a estudos sobre a atuação de atores internos e externos no
processo de reconfiguração das políticas públicas para esse setor,
especialmente no que se refere às políticas curriculares ocorridas em
diferentes países nos anos 1990.
Na contramão dos autores que criticavam um suposto processo de
homogeneização das políticas públicas para a educação, resultante da
hegemonia dos grupos políticos conservadores, representados pelos seus
burocratas e intelectuais, Ball (2001a, 2001b), formulou o conceito de
“Ciclo de Políticas”.
De acordo com a abordagem proposta por Ball, o ciclo de políticas
seria um ciclo contínuo composto por cinco contextos inter-relacionados:
contexto de influência; contexto da produção de texto; contexto da
prática; contexto dos resultados (efeitos) e contexto da estratégia política.
Cada um desses contextos é considerado uma instância de poder em que
ocorrem complexos processos de negociação entre grupos de interesses
que buscam estabelecer a hegemonia no seu interior, de maneira a
influenciar as políticas a serem implementadas pelo Estado. 8

Nos limites da análise proposta nesse texto, tratarei dos dois


primeiros contextos, o contexto de influência e o da produção de texto,
em que, segundo o autor são formulados os discursos da política
(educacional), que servirá de referência para os profissionais que atuam
no contexto da prática, em especial os professores4.
Essa opção decorre da compreensão de ao investigar a atuação da
comunidade epistêmica formada pelos historiadores e pesquisadores do
ensino de História nesses dois contextos, será possível identificar as
estratégias que eles lançam mão para intervir nas políticas de Estado
referentes ao livro didático de História que chega às mãos dos professores
e alunos das escolas brasileiras.

O PNLD: Finalidades e critérios de seleção das coleções didáticas de


História

A importância atribuída ao livro didático para o desenvolvimento das


práticas educativas pode ser medida pelo alcance do Plano Nacional do
Livro Didático, o PNLD, programa criado e mantido pelo Ministério da
Educação. Esse programa tem por objetivo prover as escolas públicas de

4
Segundo Ball, os profissionais que atuam no contexto da prática desempenham um papel ativo no
processo de “tradução” desses discursos para as situações que se apresentam no cotidiano escolar.
ensino fundamental e médio com livros didáticos e acervos de obras
literárias, obras complementares e dicionários, sendo executado em ciclos
trienais alternados. Assim, a cada ano o FNDE adquire e distribui livros
para todos os alunos de determinada etapa de ensino e repõe e
complementa os livros reutilizáveis para outras etapas. Para evitar algum 9

imprevisto, a escola deve selecionar duas coleções. Assim, se a primeira


opção selecionada não puder ser adquirida pelo PNLD, a escola receberá a
segunda5.
Outro objetivo do PNLD é orientar a seleção das coleções didáticas
pelos professores, sua aquisição nas editoras e a distribuição dessas
coleções para as escolas brasileiras. Essas orientações estão em
concordância com as recomendações do Parecer CNE/CEB 11/2010, ao
definir os processos de seleção e a forma de organização dos conteúdos
no planejamento curricular:

No primeiro caso, é preciso considerar a relevância dos


conteúdos selecionados para a vida dos alunos e para a
continuidade de sua trajetória escolar. É também de
fundamental importância que os conteúdos abordados
respondam às demandas de um coletivo discente cada vez
mais diverso, assegurando a igualdade de acesso ao
conhecimento socialmente produzido. Em relação à
organização dos conteúdos, é necessário superar o caráter
fragmentário das áreas do conhecimento, integrando-as
em currículo que possibilite tornar os conhecimentos
abordados mais significativos para os educandos e
favorecer a participação ativa de alunos com habilidades,

5
Fonte: http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-apresentacao.
experiências de vida e interesses muito diferentes (Portal
do FNDE: Guia do Livro Didático 2013, p. 8).

Na seleção do livro didático, a presença de um ator: a comunidade


epistêmica
10

Antes de chegar à escola, as coleções didáticas são submetidas à


seleção prévia de avaliadores contratados pelo Ministério da Educação -
MEC, a fim de garantir que essas coleções atendam aos parâmetros
mínimos estabelecidos pelo PNLD. Somente depois de passar por esse
processo e receber parecer favorável, as coleções didáticas podem ser
adquiridas pelo MEC e enviadas às escolas.
A avaliação dos livros didáticos atende a princípios e critérios
conformes à legislação vigente: assim, as coleções didáticas de História
precisam, por exemplo, contemplar aspectos relacionados à diversidade
étnico-cultural, à questão da cidadania, “à coerência e adequação da
abordagem teórico-metodológica assumida pela coleção, no que diz
respeito à proposta didático-pedagógica explicitada e aos objetivos
visados, bem como à correção e atualização de conceitos, informações e
procedimentos” (Guia do livro didático 2013, p. 12).
Em especial, os avaliadores manifestam preocupação com as obras
didáticas que apresentam erros factuais e cronológicos ou que tratam de
modo anacrônico e voluntarista, conceitos e fontes específicos à produção
histórica. Em relação a esses dois últimos aspectos, considera-se:
O anacronismo consiste em atribuir razões ou sentimentos
gerados no presente aos agentes históricos do passado,
interpretando-se, assim, a História em função de critérios
inadequados, como se os atuais fossem válidos para todas
as épocas. Trata-se, com efeito, de distorção grave, que
compromete totalmente a compreensão do processo
histórico. O voluntarismo, por sua vez, consiste em aplicar 11
a documentos e textos uma teoria a priori, em função do
que se quer demonstrar. Dessa forma, a escrita da História
é utilizada apenas para confirmar as explicações já
existentes na mente da autoria, que parte de convicções
estabelecidas por motivos ideológicos, religiosos ou
pseudocientíficos. Pode, ainda, originar-se da tentativa da
aplicação de teorias explicativas, tomadas acriticamente
(PNLD 2013).

Se o trabalho dos avaliadores é a condição prévia evidente para que


coleção didática chegue às escolas, outro aspecto desse trabalho
permanece invisível: os avaliadores das coleções didáticas de História têm
como principal campo de atuação o ensino superior como professores dos
cursos de História. Eles fazem parte da comunidade de historiadores, que
tem na Associação Nacional de História – a ANPUH – principal veículo de
divulgação da produção científica do campo e espaço de atuação política,
que repercute as posições dos historiadores em relação às questões
acadêmicas e à História escolar.
Como foi possível observar em estudo sobre a produção das
propostas curriculares de História na rede municipal de São Paulo
(Carvalho Filho, 2015), a participação hegemônica desse grupo na
avaliação no PNLD, busca garantir que os conceitos, princípios e maneiras
de operar a reconstrução histórica pela ciência de referência sejam
observados nas coleções didáticas, e ajude a nortear, via manual do
professor, as práticas docentes na escola básica.
A análise dos critérios que nortearam a escolha da comissão de
avaliadores das obras de História no PNLD permite apontar duas
importantes características: a primeira é a ênfase nos vínculos desses 12

profissionais com pesquisas ligadas ao livro didático e ao ensino de


História; a segunda se refere à importância atribuída aos professores
especialistas em histórias regionais e locais, o que se reflete na
composição da comissão, formada por professores vinculados a
instituições de ensino de todas as regiões do país. O perfil dos professores
convidados para compor a equipe de avaliadores, informada no guia do
PNLD, possibilita inferir que ela é formada por historiadores com
destacada atuação acadêmica. O critério de escolha da equipe também
evidencia o crescente interesse despertado pelo tema “ensino de História”
na comunidade acadêmica, refletido na ampliação das linhas de pesquisas
sobre o tema nos programas de pós-graduação por todo o país, no
aumento da quantidade de trabalhos e na diversidade de temas propostos
nos encontros específicos da área, além de denotar a forte presença
desses profissionais nas questões educacionais.
A atuação dos historiadores-avaliadores pode ser caracterizada como
típica de uma comunidade epistêmica (BALL, 2001a, 2001b; LOPES, 2006),
em que profissionais de um determinado campo do conhecimento,
mediante diversas estratégias procuram manter ou ampliar a hegemonia
desse campo. No caso em questão, está em jogo a preservação dos
saberes canônicos da ciência de referência – a História acadêmica – nos
manuais didáticos, por meio da inclusão ou exclusão das obras que não se
conformem aos critérios definidos no guia do PNLD.
A formulação dos critérios utilizados pelo PNLD para a seleção das
coleções didáticas, além dos aspectos abarcados pela legislação, também
tem a ver com as disputas travadas pelos historiadores em torno do 13

espaço da História no currículo escolar, bem como o espaço de


determinada concepção de História nesse currículo e nas coleções
didáticas.
Tais disputas envolvem processos de negociações em que está em
jogo é o status de determinados saberes e disciplinas no arranjo
curricular. Nesse contexto,

Os textos oficiais são espaços privilegiados de manifestação


desses embates, dentro das comunidades disciplinares,
pois atuam como legitimadores do conhecimento a ser
ensinado, contando tanto com seus significados simbólicos
quanto práticos. Essas disputas podem se estabelecer em
torno da seleção de conteúdos, da abordagem filosófica e
de outros aspectos de ordem prática como carga horária e
distribuição de recursos (ALVES, 2011, p. 29).

As marcas dessas disputas também podem ser localizadas nos


documentos curriculares e demais documentos oficiais, evidenciando a
presença de sujeitos e grupos que, em diferentes momentos, atuaram
com o objetivo de influenciar as disputas em torno das políticas
curriculares para a História ensinada nas escolas. Nesse sentido, a
presença de um grupo de historiadores vinculados a determinada
abordagem histórica, nas esferas de decisão relacionadas às políticas
curriculares, e que se estende aos processos de avaliação das obras
didáticas, expressa a hegemonia desses sujeitos e grupos nas discussões
do campo.
O emprego da metáfora “territórios em disputa” se presta para situar
o currículo e o livro didático como espaços sociais onde se trava o jogo de 14

forças em torno dos sentidos e significados pelo qual determinada


abordagem se torna hegemônica na área de conhecimento, e de como
isso se reflete no contexto de produção de textos e orientações
curriculares pelo poder central. Nesse sentido, dada a dimensão dos
interesses econômicos e disputas por prestígio no âmbito acadêmico que
envolve, o PNLD é um componente fundamental dessas disputas.
Alves (op. cit.) informa que os últimos ciclos de avaliação promovidos
pelo PNLD têm se caracterizado pelo rigor dos avaliadores em relação aos
aspectos teórico-metodológicos e conceituais das obras didáticas. A
“transposição” desses aspectos para o livro didático implica, por parte dos
editores e autores, referenciar-se nas orientações dos avaliadores, e por
extensão, na política curricular oficial, da qual o PNLD é um dos principais
instrumentos.
Nesse contexto, programas de aquisição de material didático como o
PNLD, “desempenhariam simultaneamente funções relacionadas: à
formação profissional dos professores e à configuração de matrizes
curriculares” (idem, p. 31), alem da evidenciar a relação assimétrica entre
o conhecimento acadêmico e o saber docente, com o predomínio do
primeiro.
No âmbito escolar, pela importância atribuída ao livro didático no
cotidiano de trabalho dos professores, a obra selecionada influencia, em
maior ou menor grau, o contexto das práticas, em que “as definições
curriculares são incorporadas e reinterpretadas para constituir-se tanto na
materialidade da obra produzida com a finalidade de atender ao PNLD, 15

quanto no uso efetivo que o professor pode fazer destes livros, em suas
salas de aula” (idem, p. 29).

Política do livro didático e comunidade epistêmica: algumas


considerações

Em relação à política educacional em nível nacional, em específico à


que se relaciona aos processos de seleção do livro didático de História
destinado às escolas públicas brasileiras, materializada no PNLD – Plano
Nacional do Livro Didático – foi possível verificar a presença marcante de
uma comunidade epistêmica específica, a formada por historiadores e
pesquisadores do ensino de História nesse processo.
Sem desconsiderar o fato de que a seleção das obras didáticas
movimenta enormes recursos econômicos e envolve na mesma teia as
editoras e o governo federal – as primeiras, disputando a hegemonia do
mercado, e o segundo, atuando como principal comprador das obras
didáticas, vale afirmar que para além da esfera propriamente econômica,
nos deparamos com disputas em torno de abordagens teóricas e questões
historiográficas, que comparecem de maneira explícita ou difusa no
discurso veiculado no “Guia do PNLD”.
Considerando que é na escola básica que o processo de circulação do
livro didático se configura como elemento fundamental das práticas
escolares, mediante sua utilização no processo ensino-aprendizagem,
torna-se imprescindível verificar até que ponto o professor desse nível de
ensino adere aos critérios de seleção propostos no Guia do PNLD. 16

Cabe então questionar se os critérios de seleção das obras didáticas


adotado pelo PNLD, que, conforme observado ao longo desse texto sofre
a influência da comunidade epistêmica formada pelos pesquisadores do
livro didático de História e historiadores se articulam às práticas e aos
processos de reconstrução histórica realizados pelos professores e alunos
no cotidiano escolar?
A resposta a essa questão – considerando-se a perspectiva de análise
baseada na concepção de ciclo de políticas e na atuação das comunidades
epistêmicas nos contextos políticos em que ocorrem esses ciclos - implica
investigar para além da atuação da comunidade epistêmica dos
historiadores, os demais espaços de circulação d saber histórico escolar,
em específico no que diz respeito ao livro didático.
Dessa maneira será possível verificar quais mediações comparecem
no processo de escolha das coleções didáticas pelos professores da escola
básica, bem como os usos que eles fazem dessas coleções junto aos seus
alunos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Irene de Barcelos. Entre regulação e persuasão: a política


curricular para o livro didático de Geografia dos anos iniciais do Ensino
Fundamental no PNLD 2010. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro:
2011. 17

BALL, Stephen J. Cidadania global, consumo e política educacional. In:


SILVA, Luiz Heron. A escola cidadã no contexto da globalização, p. 121-
137. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2001a. pp. 121-137.

___________ Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em


educação. Currículo sem fronteiras, jul./dez.2001b; v. 1, n. 2, pp. 99-116.

CARVALHO FILHO, Roper Pires de. Currículo e ensino de História em uma


escola da rede municipal de São Paulo: entre prescrições e práticas. Tese
de doutorado. São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo, 2015.

CASSIANO, Célia Cristina de Figueiredo. Aspectos políticos e econômicos


da circulação do livro didático de História e suas implicações curriculares.
Revista História, São Paulo, v. 23, p. 33-48: 2004. In:
http://www.scielo.br/pdf/his/v23n1-2/a03v2312.pdf Acesso em
11/08/2012.

CHARTIER, Roger. Introdução. Por uma sociologia histórica das práticas


culturais. In: _____. A História Cultural entre práticas e representações.
Col. Memória e sociedade. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1990, p. 13-28.

CHOPIN, Alain. O historiador e o livro escolar. Revista História da


educação. ASPHE/FAE/UFPel, Pelotas (11): 5-24, Abr/02.

_____________ História dos livros e das edições didáticas: sobre o


estado da arte. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 30, n. 3, p. 549-566,
set/dez. 2004.
GIMENO SACRISTÁN, J. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3ª Ed. –
Porto Alegre: Artmed, 2000.

_____ (1990). Saving the Mediterranean: The Politics of International


Enviromental Cooperation. New York.

_____ (1992). "Introduction: epistemic communities and international 18


policy coordination". International Organization, Vol. 46, No. 1,
Knowledge, Power, and International Policy Coordination. (Winter), pp.
1-35.

HAAS, Peter (2002). "Epistemic Communities and the Dynamics of


International Enviromental Co-operation". In: Rittberger, Volker. (Editor).
Regime Theory and International Relations. Oxford: Oxford University
Press.

LOPES, Alice Casimiro. Discursos nas políticas de currículo. Currículo sem


Fronteiras, v.6, n.2, pp.33-52, Jul/Dez 2006. Universidade do Estado do Rio
de Janeiro: Rio de Janeiro, Brasil.

MAFFRA, Lourrene de C. Alexandre. Comunidades epistêmicas: estudos


sobre a regulação de células-tronco no Brasil. In: Journal of International
Relations. Vol. 4, nº 1. Maio-outubro, 2013.

MUNAKATA, Kazumi. Histórias que os livros didáticos contam, depois que


acabou a ditadura no Brasil. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.).
Historiografia brasileira em perspectiva, p. 271-296. São Paulo: contexto,
2000.

OLIVEIRA, Maria Clara de. Comunidades epistêmicas e transferências


condicionadas de renda. Texto preparado para o II Seminário Discente de
Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo. Abril,
2012.
DOCUMENTOS

Programa Nacional do Livro Didático 2011. Guia do Livro Didático. In:


http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-
apresentacao. Acesso em 13/04/2015.

Programa Nacional do Livro Didático 2013. Guia do Livro Didático. In: 19


http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-
apresentacao. Acesso em 13/04/2015.

PARECER CNE/CEB Nº: 11/2010. Diretrizes Curriculares Nacionais para o


Ensino Fundamental de 9 (nove) anos In:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=downloa
d&alias=6324-pceb011-10&category_slug=agosto-2010pdf&Itemid=30192
“HISTORIADORES DE SI”:
MEMÓRIA E NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA
Rycardo Wylles Pinheiro Nogueira1

1
Resumo: Nosso interesse se desenvolve em torno da escrita autobiográfica. Este
trabalho levanta questões teóricas necessárias ao campo historiográfico acerca do
“historiador de si mesmo”, termo cunhado por Pierre Nora quando fala de um
processo “psicologização da memória”. Levamos em consideração em como o sujeito
autobiógrafo articula enquanto elemento essencial á sua narrativa autobiográfica uma
relação com a memória. Quando faz usos do passado, quando “escreve” a si mesmo do
passado por sua narrativa, não deixa de manter uma relação com uma noção temporal
ficcional na qual articula temporalmente suas experiências narrativas a ponto de se
fazer compreensível diante de outros. A escrita autobiográfica está ponderada na
relação como passado na experiência de narrar a própria experiência pela relação
entre memória, um “si mesmo” e narrativa.
Palavras-chave: autobiografia; memória; narrativa.

Abstract: Our interest is developed around the autobiographical writing. This work
raises theoretical questions necessary to historiography about the "historian of
himself," a term coined by Pierre Nora when he speaks of a process "memory
psychologizing." We take into account how the subject autobiographer articulated as
an essential element to his autobiographical narrative a relationship with the memory.
When you use the past, when "write" yourself from the past by his narrative, does not
cease to maintain a relationship with a fictional temporal notion in which temporally
articulates his narrative experiences about to make understandable before others.
Autobiographical writing is weighted in relation to past experience to narrate their
experience in the relationship between memory, one "himself" and narrative.
Keywords: autobiography; memory; narrative.

1
Mestrando em História pelo Mestrado Acadêmico em História e Culturas (MAHIS) da Universidade
Estadual do Ceará (UECE), graduado em História pela Faculdade de Educação,Ciências e Letras do Sertão
Central (FECLESC) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Bolsista CAPES. E-mail:
rycardo@bol.com.br
Debate preliminar

Como falar de si, como falar de si de modo verdadeiro,


como, ao falar, ater-se ao imediato, fazer da literatura o
lugar da experiência original? O malogro é inevitável, mas
os meandros do malogro são reveladores, pois essas 2
contradições são a realidade do esforço literário.
(BLANCHOT, 2005: 64).

É fazendo menção a Jean Jacques Rousseau que Maurice Blanchot


(2005) caminha para a interrogação da citação acima. Trata-se da intenção
de Rousseau em “inventar uma nova linguagem” intencionando a dizer a
verdade, trata-se de “descobrir a insuficiência da literatura tradicional e a
necessidade de inventar uma outra, tão nova quanto seu projeto”. É neste
momento que muitos dizem nascer o primeiro escrito autobiográfico. Ora,
que pretensão de Rousseau! Mas na verdade “ele não pretende fazer a
narrativa ou o retrato de sua vida”.
Rousseau busca uma singularidade original, inigualável e total de
cada instante em que escreve sua vida. É isso “que o obrigará a nunca
parar de escrever, a fim de tornar impossível “a menor lacuna”, “o menor
vazio”, no anseio de atingir a imaculada totalidade que tanto busca. E
assim, “entrando em contato imediato consigo mesmo, ele quer, por meio
de uma narração (...) revelar esse imediato de que tem o incomparável
sentimento, trazer-se inteiramente à luz, passar para o dia e para a
transparência do dia que é sua íntima origem”.
No entanto, sempre encerrando, e retomando, convence a si mesmo
a recomeçar e chegar à verdade perguntando: “Quem sou eu?” (2005: 63-
64). E então, acerca da verdade de Rousseau, Blanchot enfatiza no seu
elegantíssimo diálogo:

Nunca teremos a certeza de ter dito essa espécie de


verdade e, pelo contrário, estaremos sempre certos de 3
precisar dizê-la novamente, mas de modo algum
convencidos da falsidade, se por acaso a exprimimos
alterando-a e inventando-a, pois ela é mais real no irreal do
que na aparência de exatidão em que se imobiliza,
perdendo sua claridade própria. (BLANCHOT, 2005: 64).

Certamente a posição de Blanchot justifica grande parte da problemática


das narrativas de ficção. Mas em outro aspecto, o que nos interessa é que
nas diversas intenções internas do sujeito autobiógrafo, em suas
inquietações mais profundas, o levam a agir pela “mão que escreve”, ela é
o ponto de cruzamento entre “pensar” e “agir” daquele que projeta-se no
papel.
A “ação” do autobiógrafo pode ser estabelecida enquanto uma
operação com passado. Retomando a expressão de Michael Certeau,
acerca da “operação historiográfica”, podemos ousadamente transferi-la
para uma atitude do autobiógrafo que é enquadrada enquanto “operação
autobiográfica”. Esta “operação” trabalha para que os “historiadores de si
mesmo” de algum modo organizem as noções do “si mesmo do passado”
por meio de uma narrativa articulada temporalmente.
Autobiografia
A reflexão em torno da análise histórica da escritura autobiográfica leva
como ponto crucial de consideração “um processo de mudança social pela
qual uma lógica coletiva, regida pela tradição, deixa de se sobrepor ao
indivíduo, que se torna ‘moderno’ justamente quando postula uma 4

identidade singular para si no interior do todo social” (GOMES, 2004, p.


11-12). É nesse sentido que cartas, diários íntimos, memórias e o que mais
nos interessa, as autobiografias, compõem o que podemos classificar hoje,
nos estudos literários e na História, enquanto conhecimento, como tipos
específicos de “escrita de si” 2. Tais escritos têm seus aspectos, motivações
e intenções que funcionam pelas seleções da memória, pelos
esquecimentos possíveis e pela criação de sentidos considerados
singulares à medida que “em todos esses exemplos do que se podem
considerar atos [auto]biográficos, os indivíduos e os grupos evidenciam a
relevância de dotar o mundo que os rodeia de significados especiais
relacionados com sua própria vida” (GOMES, 2004, p. 11-12).
A escrita autobiográfica se resume a um tipo de escrita muito
peculiar, isso se levarmos em conta que para sua tessitura é
imprescindível realçar os sombreados das memórias pelas experiências de
cada “eu”, de cada vida, de cada indivíduo que lembra e esquece a seu
modo, e que se torna senhor de si por suas narrativas, seja pelas
lembranças contadas, pelos projetos imaginados, pela ficçionalização das
intrigas inventadas, pelos “esquecimentos silenciados, não ditos ou

2
“A escrita de si, écriture de soi, termo cunhado por Michael Foucault e que se liga as suas pesquisas
sobre a “cultura de si”, compreende uma forma de manifestação discursiva na qual o sujeito se coloca
em relação consigo mesmo”. (SILVA, 2012, p. 42-43).
manipulados” (RICOEUR, 2007). A autobiografia também torna possível
uma história. Sua história não está desvinculada daquele que a projetou,
pois é possível entendê-la, também, enquanto uma maneira de refletir
como aquele sujeito compreende a si mesmo e os outros no tempo pela
memória por sua tessitura narrativa, entendidas aqui, enquanto ações 5

conscientes e enquanto experiência de narrar experiências vividas no


passado e projetadas no presente.
A autobiografia é um caminho para a conversão do “eu” em um
“eu – reflexivo”. Assim como nos propôs Paul Ricoeur, quando o “eu”
encontra-se por um possível “si – mesmo” 3 que narra a própria história
para si, mas também para outros. Ele narra da maneira que considera
melhor, enquadrada e singular, mas isso na busca por uma identidade
digna de ser narrada, tornando-se pela narrativa um indivíduo digno de
ser lembrado por uma história a ser contada.
A autobiografia passa a ter também seus aspectos mais complexos
quando a imaginamos em relação à vida daquele que a escreveu, por seus
motivos e por seus interesses. Desenvolver uma análise histórica acerca
de tal escrito se torna grande desafio para nós historiadores quando
passamos a entender que:

3
O debate em torno do “Si” e do “Mesmo” é proposto por Paul Ricoeur em sua obra O Si mesmo como
um outro. (1991). Paul Ricoeur estabelece a relação dialética entre a identidade idem e a identidade
ipse. Se a primeira constitui um si de relação, que é vinculado no/ao tempo pela ideia de mesmidade na
relação com o outro (Ex: “veja, aconteceu do mesmo modo ontem!”); a segunda diz de uma ipseidade,
entendida pelo seu caráter de unicidade e individualidade no tempo, caráter de permanência. Por essa
relação dialética implícita constitui-se a “identidade narrativa”. Nessa construção identitária de um
grupo ou de um eu que se interpreta por “si mesmo” no tempo, entendemos que a autobiografia se
coloca enquanto resultado da constituição de uma “identidade reflexiva” para a construção de um eu
narrado que muda, mas também permanece o mesmo ao longo de uma vida inteira. (RICOEUR, 1991.
p.167-198).
As variações são muitas e indefiníveis, de forma que se
torna impossível descrever o que de fato é tal escrita em
sua totalidade, pois ela é escrita da forma que cada vida
vive na ação de escrever e da maneira como a própria vida
se observa e busca se reproduzir e autoindentificar-se pela
escrita. Isso nos leva a creditar que, não há em sentido
mais amplo como definir a escrita de si, no caso específico 6
das autobiografias apenas como modelos subjetivos e
únicos de escrita, mas que estão em relação com as
vivências sociais de sua época, assim como frente a espaços
de conflitos que as tornam peculiares (NOGUEIRA, 2014 p.
165).

Por outro lado, a escrita autobiográfica, além da consideração de


que em cada autobiografia há uma intenção de que um rosto particular
único (o do autor) seja traçado pelas linhas escritas, esta também se deixa
compreender de uma maneira menos específica, ou seja, há também uma
maneira mais genérica e mais comum entre aqueles que decidem trilhar a
aventura de escrever autobiografias. Desse modo, há uma explicação mais
estrutural acerca da autobiografia como um todo, mas isso se pensarmos
em termos de instrumentos e organização literária. Torna-se então
imaginável vincularmos enquanto semelhanças as parafernálias e estilos
literários indispensáveis àqueles que se utilizam comumente para sua
composição. Com isso não queremos dizer que exista uma fórmula
implacável, imaleável, utilizada pelos autobiógrafos para compor seus
escritos, mas que existem traços comuns que os caracterizam de modo
mais estruturado possível no mundo dos autobiógrafos.
Philippe Lejeune, especialista em autobiografias na França nos
enfatizou de modo breve e esclarecedor, que a definição de autobiografia
seria uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de
sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em
particular a história de sua personalidade” (2008. p. 14). Podemos então
entender inicialmente nessa definição, a partir dos elementos
constituintes da autobiografia, categorias indispensáveis para considerar e 7

categorizar as escrita do eu enquanto “gênero autobiográfico”.


Um dos primeiros motivos levado em consideração por Lejeune é a
“forma de linguagem”. Nessa perspectiva levanta a ideia que
autobiografia, para que seja entendida enquanto tal, em sua forma, deve
ser “principalmente”: “a) narrativa” e “b) em prosa”. Evita então a
possibilidade de que o poema autobiográfico, o autoretrato ou ensaio
sejam compreendidos enquanto autobiografia no sentido estrito do
termo. No entanto, na definição do autor, a autobiografia também não se
sustenta enquanto um gênero fixo que se isola dos demais; existem
variações, deslocamentos, pois acaba por abrir espaços para outros tipos
de discursos ou gêneros, entretanto, o contrário parece não ser tão
simples de ser resolvido. De outro modo, seria então possível ao autor, ao
longo de uma narrativa autobiográfica em prosa, referenciar ou até
mesmo desenvolver outro gênero dentro de seu texto; seja a poesia em
sua forma plena, metrificada ou não, autoreferencial ou não, porém, o
contrário não categorizaria necessariamente o “gênero autobiografia”.
Um segundo aspecto considerado, para que haja autobiografia, é o
“assunto tratado”. O autor diz ainda que deve ser a “vida individual, a
história de uma personalidade”, entretanto, “a crônica e a história social
ou política podem também ocupar um certo espaço” (LEJEUNE, 2008. p.
15). A autobiografia não pode ser confinada à intimidade, ao eu em si,
somente e apenas, mas também, embora não o tenha como central, o
social é um pano de fundo inerente aos sujeitos autobiógrafos, que
sombreia as relações daquele que se olha no espelho e projeta-se no
papel. Podemos tomar emprestada a referência que Gabriele Rosenthal 8

faz a Husserl acerca da autobiografia.

A ordem que se pode descobrir numa história de vida não é


uma construção subjetiva do indivíduo, nem um simples
produto de modelos sociais prefigurados objetivos, nem
decorre de idéias ou fatos, mas é ocasionada pela “vida de
experiência do mundo” (welterfahrendes Leben), para
empregar a expressão de Husserl. É a ordem da inter-
relação primordial do “mundo” e do “eu”. (ROSENTHAL,
2006, p. 194).

Desse modo o social (mundo) também é um possível de se


imaginar por sua relação com o sujeito (eu) que narra a si mesmo,
também quando deseja ser melhor digerido pelos leitores, isso por situar
a si em um espaço social comum ou estranho para aqueles a quem projeta
enquanto futuros leitores, para assim poder projetar-se enquanto
personagem principal situado social e textualmente. Não devemos
esquecer que aí há também um interesse deste de ser identificado, de ser
identificável no seu lugar social, ou, para além deste, deseja-se uma
identidade que seja reconhecida, pois “a narrativa das experiências
vividas, mais do que um simples devir de relatos, é constituinte da
identidade de quem narra” (VIEGAS, 2012, p. 364).
Por ultimo, e para que se entenda melhor, segundo Lejeune
existem ainda dois aspectos cruciais para a explicação da autobiografia.
Ambas partem da “posição do narrador”: “a) identidade do narrador e do
personagem principal” e “b) perspectiva retrospectiva da narrativa”. O
narrador se encontra em relação de identidade com o personagem 9

principal, tendo em vista que o narrador narra a si mesmo, sendo que o


personagem principal é o próprio narrador. Entendemos então, de modo
geral que, o “eu” narrador constrói pela narrativa o “eu” personagem
principal. Os dois se encontram e se confundem na primeira pessoa (eu),
no entanto, “existem autobiografias nas quais parte de texto designa o
personagem principal através de terceira pessoa, ao passo que no resto do
texto, o narrador e o personagem principal se confundem na primeira
pessoa” (LEJEUNE, 2008. p. 17).
A “perspectiva retrospectiva da narrativa” comporta maior
complexidade quando estabelece um jogo entre a posição do “narrador” e
do “personagem principal” no tempo. O narrador conta um passado que
ele mesmo experimentou enquanto autor. O “personagem principal” é o
resultado de um trabalho do narrador, ou seja, ele só é configurado
textualmente após a articulação da memória em narrativa pelo narrador;
é preciso ter em mente que sem o narrador a figura do personagem
principal não ficaria clara, ou sequer existiria, pois para existir enquanto
personagem é preciso que o “quem” da ação exista e seja contado, isso
cabe ao narrador. O narrador, mesmo se manifestando por um olhar do
presente a que está condicionado, quando rememora os atos e idéias de
um eu do passado, não deixa de reinventar seu “personagem principal” à
medida de suas inquietações no presente, não excluindo um para além da
memória enquanto possível dimensão ficcional da narrativa.
Tais perspectivas demonstram ainda maior especificidade da
autobiografia se observarmos que o diário íntimo, entre outros “gêneros
vizinhos” da autobiografia, sejam considerados gênero autobiográfico por 10

não ter caráter retrospectivo da narrativa e não atender os demais


quesitos. O diário íntimo responde a pergunta: “Como tem sido meus
dias?”, “o que tenho feito ultimamente?”, “como me sinto agora?”. Não
que a autobiografia não comporte algumas dessas expectativas; ela pode
também tentar responder algumas inquietações mais profundas acerca da
vida, de sua beleza ou mazelas do passado e do presente, no entanto,
nunca se desviará de seu caminho central, nunca deixará o passado em
segundo plano, ao passo que também não abdicará de uma vida ser
articulada de modo narrativo (especificamente em prosa).
Alguns “gêneros vizinhos” da autobiografia são: Memórias,
biografia, romance pessoal, poema autobiográfico, diário, auto-retrato ou
ensaio. O fato de terem aspectos comuns não os classifica
necessariamente enquanto autobiografia no sentido próprio do termo. O
gênero memórias se confunde no aspecto de “perspectiva retrospectiva
da narrativa”, por outro lado, o assunto tratado não será necessariamente
“uma vida individual, história de uma personalidade”. A biografia, por sua
vez, pode até tratar de uma vida individual, porém, a identidade do autor
e narrador não se confundem na mesma pessoa, pois o biógrafo trata de
outra vida que não a sua. O romance pessoal pode tratar especificamente
de uma vida, no entanto, a situação do autor e do narrador não
necessariamente remete a uma pessoa real. O poema autobiográfico pode
narrar, dizer de uma vida individual e até ser uma narrativa retrospectiva,
mas o fato de não ser em prosa retira o caráter de ser compreendido por
sua articulação temporal própria da prosa enquanto narrativa
autobiográfica. Sendo assim podemos dizer que o empreendimento 11

autobiográfico, como supracitado, tem suas especificidades e seus


aspectos comuns a outros gêneros literários, no entanto, de maneira mais
vertical e simplificada há também pontos reveladores e relevantes para
que compreendamos de modo mais seguro a escrita autobiográfica em
seus limites e possibilidades.
A identidade do autobiógrafo é uma identidade que não está em
evidência por se confundir nas três pessoas: autor, narrador e
personagem principal. Mas não ser evidenciada enquanto um “eu” único é
o que também lhe dá força de verdade em seu discurso. É uma identidade
que se diz no plano lógico: “Se eu vivi, eu senti, logo eu posso contar”. No
entanto é uma identidade em que o eu não se manifesta no mundo de
modo solitário, mas por várias pessoas a interesse de uma, ou seja, são
três pessoas que representam e reivindicam as inquietações de uma pelo
plano narrativo. Certamente essa relação de identidade entre três pessoas
classifica a autobiografia como tal; como disse Lejeune: “Para que haja
autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso
que haja relação de identidade entre o autor, narrador e personagem”
(LEJEUNE, 2008. p. 15). Há então, se é que podemos dizer, uma espécie
de “santíssima trindade” por trás (autor, narrador e personagem) que
ganha força ao produzir, narrar e atuar enquanto uma e por mais de uma
pessoa, para que assim se constitua uma “identidade narrativa” para seu
lugar social no tempo. (RICOEUR, 2010, p. 418). Essa “identidade” não
necessariamente permanece a mesma, pois não é uma

identidade estável e sem falhas; assim como é possível 12


compor várias intrigas a respeito dos mesmos incidentes
(que desse modo não merecem ser chamados dos mesmos
acontecimentos), também é sempre possível tramar sobre
a vida intrigas diferentes, opostas até. (RICOEUR, 2010, p.
222).

Isso permite a possibilidade da autobiografia fazer a identidade de


alguém/alguns permanecer no tempo (que é a “identidade narrativa”), e
outra que, a qual sempre mantém um laço estreito com a autobiografia
(“identidade pessoal” do autor) que tem sua mutabilidade ao longo da
história do autor, da obra e dos leitores. Os “eus” da autobiografia (autor,
narrador e personagem principal) fazem um trabalho de “reorganização”
do passado pelos usos da memória. O passado é, em primeiro lugar, sua
matéria essencial justamente pelo caráter retrospectivo. As três pessoas
(“santíssima trindade”) da autobiografia podem ser entendidas como tais
por também carregarem ao longo do trajeto narrativo funções que cabem
especificamente a cada uma. Um exemplo claro seria que é sempre o “eu -
narrador” que fala do “eu - personagem” ao mesmo tempo em que o “eu
– personagem” atua para ser um “eu - extratextual”, isto é, o autor. Isso
não quer dizer que não se confundam ou não troquem suas funções ou
papéis ao longo da empreitada. Outro aspecto a se considerar é que autor
também é aquele que tem um nome social. É aquele que assina a capa da
obra, e que também se coloca no texto enquanto narrador para contar
seu passado; este também é um ponto de partida considerável para
compreender autobiografia. É essencial ao historiador pensá-lo enquanto
personagem extratextual possível; é indispensável alinhá-lo ao seu espaço
de atuação social, para posteriormente entendê-lo enquanto narrador que 13

articula o tempo autobiográfico pela relação “narrador” e “personagem


principal” na construção de uma “identidade narrativa” por seus escritos.
Para isso Phillip Lejeune nos sugere ainda a noção de autor enquanto
referência extratextual.

É, portanto, em relação ao nome próprio que devem ser


situados os problemas da autobiografia. Nos textos
impressos, a enunciação fica inteiramente a cargo de uma
pessoa que costuma colocar seu nome na capa do livro e na
folha de rosto, acima ou embaixo do título. É nesse nome
que se resume toda existência do que chamamos de autor:
única marca do texto de uma realidade extratextual
indubitável, remetendo a uma pessoa real, que solicita,
dessa forma, que lhe seja a ultima instância, atribuída a
responsabilidade da enunciação de todo o texto escrito. Em
muitos casos, a presença do autor no texto se reduz
unicamente a esse nome. Mas o lugar concedido a esse
nome é capital: ele está ligado, por uma convenção social,
ao compromisso e responsabilidade de uma pessoa real, ou
seja, de uma pessoa cuja existência é atestada pelo registro
em cartório e verificável. É certo que o leitor não irá
verificar e é possível que não saiba quem é aquela pessoa.
Mas sua existência não será posta em dúvida: exceções e
abusos de confiança não fazem senão confirmar a
credibilidade atribuída a esse tipo de contrato social
(LEJEUNE, 2008, p. 23).
É preciso ter consciência que existe um “eu extratextual” da autobiografia,
sendo assim este não pode ser outro senão o “autor” responsável pela
obra. Este é aquele que não é posto em dúvida pelos leitores em relação à
sua existência, afinal, alguém teve que escrever a obra. Logo, o produto
final, a obra autobiográfica propriamente dita, pode ser posta em 14

julgamento de diversas maneiras pelos leitores, sua narrativa pode ser


contestada em relação à sua veracidade, no entanto, a existência de seu
autor enquanto “pessoa real” não será posta em dúvida. O fato de o autor
ser uma “pessoa real” não quer dizer necessariamente que este não possa
ser convertido em uma “pessoa gramatical”, no entanto, é também
necessária uma coexistência, pois um sempre dependerá do outro para
que configuração seja possível. Acerca do autor Lejeune nos diz ainda:

Um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e


publica. Inscrito a um só tempo, no texto e no extratexto,
ele é a linha de contato entre eles. O autor se define como
sendo simultaneamente uma pessoa real socialmente
responsável e o produtor de um discurso. Para o leitor, que
não conhece a pessoa real, embora creia em sua existência,
o autor se define como a pessoa capaz de produzir aquele
discurso e vai imaginá-lo a partir do que ele produz
(LEJEUNE, 2008. p. 23).

Essa noção proposta por Philippe Lejeune resolve em parte certa


problemática acerca do autor. Ele está em transito entre “pessoa real” e
“pessoa gramatical”, isto é, ele está “inscrito a um só tempo, no texto e no
extratexto, ele é a linha de contato entre eles”, mas é o narrador quem
fala por ambos. Seria difícil existirem pessoas gramaticais da autobiografia
se uma decisão extratextual (a iniciativa de escrever, publicar e
apresentar) não se empenhasse em falar da própria vida por linhas
escritas. O autor é aquele que será responsabilizado pelo produto, ele é
quem será o alvo das críticas ou dos benefícios após a configuração da
narrativa autobiográfica. 15

É preciso ainda perceber que na narrativa autobiográfica o autor


será atuante no texto não somente enquanto autor, mas também em sua
dimensão textual, enquanto narrador. O autor é a “pessoa real” à medida
que escreve e publica a obra. Feito o trabalho, escrita a obra, dentro do
texto o autor se encontra convertido em narrador, pessoa gramatical
responsável a partir do que decide dizer naquele instante. O narrador diz,
mas ele não será responsabilizado pelo leitor, e sim o autor da obra,
aquele que tem o nome na capa da obra.
Essa conversão (autor – narrador) acontece na transição “presente
– passado”, pois há aí uma articulação temporal interessante. À medida
que o autor põe o punho a trabalhar (escrever), logo a escrita se tornou
passado, pois ela não tem o poder de ser o que o autor quer que ela seja a
todo instante, eternamente. Após a publicação o autor poderá falar da sua
obra, dizer o que quiser, estará livre para isso, poderá também falar em
uma conferência, palestra, seja lá onde for. O que importa é que o autor
só poderá falar da obra como um todo, de fora para dentro, uma voz não-
textual, uma voz autoral. Se o autor, após escrever, retornar e ler o que
escreveu já não será mais ele mesmo quem fala do eu para si, pois ele é
outro que não o mesmo. Será ele o narrador em que ele mesmo se
transformou e confiou suas memórias durante a escrita, mantendo apenas
o passado manifesto em texto.
A voz do texto autobiográfico é mais uma voz do narrador do que
do autor, é uma voz textual, de dentro para fora. Na autobiografia só o
narrador pode falar do passado, só ele sabe permanecer no texto após seu 16

término, só ele conquista isso ao fim do trabalho do autor, ele fica


“contido” e ganha uma força discursiva imensa diante dos leitores; para o
bem ou para o mal ele toma para si e perpetua o trabalho do autor de
maneira emblemática e atemporal.

Memória
Deixando de lado o debate acerca do autor, narrador e personagem; em
torno da organização e dos aspectos internos e externos da autobiografia
pelos sujeitos narrativos atuantes possíveis; atentaremos para um
interesse que não pode ser negado por nós na relação do autobiógrafo e
sua escrita; sua inerente busca pela verdade. Esse é o chamariz para que o
papel da memória seja elucidado e justificado no seu interesse essencial
ao longo da tessitura autobiográfica. Acerca da verdade, Elizabeth Duque-
Estrada nos propõe uma questão essencial. É a partir dessa noção que
provocaremos o debate em torno da memória na escrita autobiográfica.

Talvez a maneira mais apropriada de abordar o tema da


autobiografia seja afirmando positivamente aquilo que ela
não é e não pode ser, afirmando a sua impossibilidade de
cumprir a sua mais profunda promessa: apresentar a
verdade de uma vida reunida numa trama narrativa
(DUQUE-ESTRADA, 2009, p. 17).

A memória é caminho comum, freqüentado e transitado de modo


subjetivo, mas também social, que os autobiógrafos acreditam enquanto
17
possível para encontrar ou para dizer a verdade de suas vidas. O
autobiógrafo mantém sua memória sempre à espreita, ela é um
instrumento de reflexo para que a “profunda promessa” seja cumprida.
Podemos levantar ainda, brevemente, outra possibilidade
plausível, mas que muitas vezes acaba por fechar outros debates possíveis
a história. Dizer que no final das contas a verdade acaba por ser uma
verdade daquele que escreve, daquele que busca a si mesmo pela
memória articulada em narrativa, que busca algo crível, possível de ser
acreditado. No entanto, quando passamos a compreender, ilusoriamente,
que o autobiógrafo encontra para si o valor da incógnita assumimos de
forma determinante que “todo texto autobiográfico é verdadeiro naquilo
a que ele se propõe: narrar determinados acontecimentos ou
fenômenos a partir de uma ótica muito particular. [Acabamos de
assumir que] não existe uma verdade essencial, existem verdades do
autor” (CALADO, 2009, p. 108). Para nós historiadores, não seria justo
encerrar no fechamento do mundo pelo olhar daquele que produz, pois
existe sempre um além necessário de ser explorado. Negar que “um” algo
mais seja possível de ser compreendido, de cunho individual ou coletivo, é
desconsiderar os vieses que a memória e o esquecimento tornam
possíveis ao longo de uma vida pelas relações íntimas e coletivas.
A memória parece ser um ponto chave essencial para a “verdade
do autor”, para afirmação do conhecimento do passado e de si na certeza
que o outro compreenderá e se convencerá de que a verdade foi
apresentada. Isso faz sentido se levarmos em conta que, algumas vezes
acabamos por esquecer que “vivemos em uma cultura onde a marca da 18

subjetividade de quem fala ou escreve constitui um argumento e uma


autoridade tão fortes quanto, se não mais fortes que, o apelo à tradição,
ou a prova dos fatos” (CALLIGARIS, 1992, p. 44). A constituição da
“subjetividade” não necessariamente é iluminada de forma materializada,
pois essa verdade, ou “prova dos fatos” que se busca, pode ser
compreendida enquanto tal pela narrativa do autobiógrafo esboçada a
partir de sua memória. Existe então a possibilidade de que essa
“subjetividade” convincente, crível, estabelecida justamente por laços de
confiança entre quem escreve e quem lê. Quanto a isso há de considerar
que ao momento em que o autobiógrafo narra suas lembranças
individuais, deve também levar em conta acontecimentos rememorados
conjuntamente, que foram enquadrados e têm também sua marca na
memória coletiva do seu grupo, do seu espaço social; sendo assim não lhe
faltarão testemunhas contra ou a favor. Nesse sentido a memória relatada
também ganha força ou fragilidade pelas testemunhas, tornando-se o
meio; e a verdade4 acaba por ser um fim necessário que se busca alcançar,
encontrar ou apresentar para que a “profunda promessa” seja de um
modo ou de outro, cumprida.

4
“Em latim, verdade se diz veritas, que se refere à precisão, ou seja, relaciona-se ao rigor e à exatidão
de um relato, no qual se diz, com detalhes, com pormenores e com fidelidade, o ocorrido” (GARCIA &
GOMES, 2001, p. 252).
Para além das peças, dos objetos, fotografias de família, cartas,
está também a memória, nos referimos aquela memória eidética, que
parte de uma imagem-significado do eu, e que nela compreende o que há
de confiável para que se trame uma narrativa bem articulada. A ela é
confiada organizar o que “restou” no presente em relação ao que se busca 19

enquanto imagem ou discurso sobre o passado. Ela luta por reorganizar o


vivido pelo esforço retrospectivo do sujeito, ela tece fios entre as lacunas,
ela abotoa fotos às cartas, ela se manifesta de modo narrativo para que se
torne compreensível, mas um de seus interesses acaba por ser, de um
modo ou de outro, também, cumprir a “profunda promessa” do
autobiógrafo de dizer a verdade.
Há também um interesse por parte do autobiógrafo em resolver
questões do passado ainda não resolvidas, ou impossíveis de serem
resolvidas em um futuro muito curto ou incerto. O autobiógrafo, em
alguns aspectos, assim como o historiador, reluta por constituir uma
narrativa para resolver problemas, entraves, ou como diria Marc Bloch: “É
que os exploradores do passado não são homens completamente livres. O
Passado é seu tirano” (BLOCH, 2001, p. 75). O passado do autobiógrafo é
um caminho necessário enquanto fuga, pois o futuro não é promissor em
relação à sua continuidade existencial. Esse também é um dos aspectos
dramáticos da vida do autobiógrafo, o encontro com esse fim próximo,
mas isso se levarmos em conta que aqueles que escrevem autobiografias
já se encontram em uma idade avançada; já cansados pela a idade, por
isso já se vêem no limite da vida, pois já estão “quase lá”, e é por isso
mesmo que consideram confortável olhar para o longo passado vivido em
vez de um breve futuro incerto e implacável que logo o conduzirá ao
ultimo fim. É como Noberto Bobbio, aos 87 anos de idade, nos falou em
seus escritos autobiográficos:

A descida é continua e, o que é pior, irreversível: você 20


desce um pequeno degrau de cada vez, mais ao colocar o
pé no degrau mais baixo, sabe que nunca mais vai retornar
ao degrau mais alto. Quantos ainda existem, eu não sei.
Mas de uma coisa não tenho dúvida: restam cada vez
menos (BOBBIO, 1997, p. 34).

Os passos abaixo que Bobbio dá em seus “pequenos degraus” parecem ser


cuidadosos, ele não deixa claro, mas é possível perceber. É no sentido
proposto por Bobbio que o autobiógrafo pensa o futuro, com cuidado. Um
cuidado com o futuro manifesto pelo autobiógrafo não é só o cuidado
com um futuro em que ainda se existe, é um cuidado com um futuro em
que não se existirá mais. A autobiografia é uma maneira de existir para
além da morte, é uma pós-existência formulada ainda em vida pela escrita
cuidadosa. Essa escrita cuidadosa também supera degraus. O autobiógrafo
desce a escada da vida de costas olhando para seu passado
transcrevendo-o em narrativa para sua futura não existência, sua única
certeza, nem sempre assumida pela escrita.
Ele acumula papéis e por isso deixará sua vida por um recado em
forma de livro para aqueles a que sempre quis dizer algo. Sua forma física,
substancial, não existirá mais, existirá apenas em forma narrativa. Por não
querer ser contestado, tido como mentiroso, ele também se esforçará
pela fidelidade dos fatos vividos coletivamente, afinal, precisa de
testemunhas para que o ajudem a cumprir a “profunda promessa”, mas
nem por isso deixará de dizer o que acredita e o que imagina de
determinados pensamentos ou situações que vivenciou, pois também já
começa a se sentir livre da vida material, por isso fica à vontade para dizer
seus julgamentos sobre determinadas pessoas ou situações passadas. É 21

nesse sentido que o autobiógrafo também busca a verdade, é nesse


sentido que se esforça para construir uma verdade para si e para outros
no mundo que viveu e resta a viver, com cuidado, pelo caminho da
memória narrada com cuidado, para que continue existindo, pois para ele,
dizer a verdade implica, antes de tudo, ir ao encontro do passado por uma
memória coerente para que uma futura não existência torne possível uma
nova existência narrada.
Acreditar, de certa forma, é crer. Alguém iria querer acreditar,
voluntariamente, em uma mentira? Não há ceticismo algum ao dizer que
se acredita em quem é crível, em quem tem o caráter de confiável, em
quem é digno de fé. Mas em outra perspectiva, no que deveriam acreditar
os autobiógrafos quando “escrevem” suas próprias vidas? Em si mesmos?
Esse problema da confiança estabelecida também cabe muito bem a
memória, isso porque ela é uma das poucas mestras que converte o
passado em presente para que uma história seja possivelmente contada.
Ou como nos disse Paul Ricoeur: “Se podemos acusar a memória de se
mostrar pouco confiável, é precisamente porque ela é nosso único meio
para significar o caráter passado daquilo que declaramos nos lembrar”
(RICOEUR, 2007, p.40). Quando alguém conta seu passado,
especificamente sobre sua vida, suas vivências pessoais, esse alguém
espera ser compreendido enquanto verdadeiro, ele se esforça para isso e
espera que creiam em suas palavras justamente por também acreditar no
que conta. Poderíamos retroceder essa afirmação e transferir a ideia de
“atuação” para “memória-narrada”, isso no que confere Erving Goffman,
quando nos sugeriu a noção de indivíduo “cínico”, ou seja, aquele que 22

atua, mas não acredita em sua própria atuação. “Quando o indivíduo não
crê em sua própria atuação e não se interessa em ultima análise pelo que
seu publico acredita, podemos chamá-lo de cínico” (GOFFMAN, 2009, p.
25). Algum autobiógrafo não acreditaria em suas próprias memórias
narradas? Algum deixaria de se importar com que os outros pensam
acerca de suas memórias narradas e se sentiriam à vontade mesmo diante
de um violento júri de leitores? Aí existe uma singularidade que não cabe
á teoria, mas sim como cada vida escreve a si mesma, no entanto, para
além de seus esforços em dizer o que os leitores desejam ou odeiam, algo
mais importante é configurado quando compreendemos que o
autobiógrafo também faz do seu espaço autobiográfico um lugar de
relações pela memória.
Em outra perspectiva, em termos de ilustração, ainda em relação à
verdade e memória, capitais ao historiador de si; entendemos que o caso
do autobiógrafo não seria o mesmo caso do profeta, daquele amante do
futuro, que prega incessantemente pelo caminho. O profeta conta o
futuro, antecipa o futuro por suas previsões. Nesse sentido, para elucidar
melhor, “em hebraico, verdade se diz emunah, e significa confiança, a
verdade é uma crença com raiz na esperança e na confiança, relacionadas
ao futuro, ao que será ou ao que virá.” (GARCIA, 2001, p. 252). A distinção
entre o profeta e autobiógrafo se aperfeiçoa quando o profeta poderá ser
refutado pela espera, refutação sua ou de outros que o sucederão,
enquanto o autobiógrafo poderá se sobressair sem necessariamente ter
por obrigação presenciar a materialização da prova, ele poderá refutar e
convocar testemunhas para que sua verdade se torne uma memória 23

aceitável, até mesmo viável, pois deixará testemunhas. De modo claro, se


o profeta é o homem do futuro, o autobiógrafo fincou seu interesse e
agregou suas semelhanças ao passado, pois sua narrativa é do passado.
Não queremos dizer que não exista interesse algum do autobiógrafo pelo
futuro, mas que este não recorre ao futuro enquanto matéria-prima para
sua narrativa. A verdade do autobiógrafo é uma verdade Ocidental, ela diz
de uma verdade mais em latim (Veritas), pois faz menção um relato do
“ocorrido”, do vivido (a memória propriamente dita). Já a verdade do
profeta (Emunah) encontra seu desfecho por uma existência imaginável
no por vir, por um futuro possível.
A memória para os autobiógrafos não é apenas um conjunto de
lembranças. “As lembranças podem ser tratadas como formas discretas
com margens mais ou menos precisas, que se destacam contra aquilo que
poderíamos chamar de um fundo memorial, com o qual podemos nos
deleitar em estados de devaneio vago” (RICOEUR, 2007, p.41). Por outro
lado, recordar pela memória implica num trabalho mais amplo, que
consiste desde o mais simples a um mais árduo esforço. Compreendemos
que, enquanto tarefa,
a recordação de eventos pessoais vividos no passado
constitui a memória autobiográfica, a síntese e a referência
de nossas histórias de vida. O ato de recordar envolve
várias habilidades cognitivas, desde aquelas que permitem
lembrar um fato pessoal, como o caminho de casa ao
trabalho, até aquelas necessárias para escrever um livro
contando a história de uma vida (GAUER & GOMES, 2008, 24
p.508).

A memória autobiográfica é também uma que trabalha para si mesma, ela


trabalha pela grafia no esforço de autoconstituir-se temporalmente. Não
é qualquer lembrança que está em ação, mas uma que age pela memória
de um “eu - reflexivo” que deseja narrar-se, contar-se por um relato
individual encarregado da missão de refazer o percurso do “si mesmo”. Há
então o esforço da “anamnese, que vem a ser o trabalho de busca, de
intenção deliberada na recuperação das lembranças”. Há “empenho em
recuperar pelo espírito, alguma coisa que tenha ocorrido no passado”
(PESAVENTO, 2005, p. 95), que venha ser elemento constituinte de uma
singularidade. Isso não se configura apenas em autobiografias comuns de
“vultos” políticos, ou de indivíduos que se destacam pelo sucesso ou pela
personalidade que contrasta com sua época, pois há também em
autobiografias de pessoas comuns, até mesmo em memórias ou diários,
no entanto, os eventos demarcados por sujeitos que conquistaram
reconhecimento coletivo acabam por ser reconhecidos pelas memórias de
outros sujeitos, isso referente ao passo adiante que é dado em termos de
publicação, apresentação e divulgação.
Finalmente há de se considerar, e para que fique claro, acerca da
plenitude da memória para o autobiógrafo, ou seja, quando ela alcança,
pelas lembranças, seu interesse “pleno”; quando ela conquista seu ponto-
chave de atestação pelo reconhecimento. Paul Ricoeur nos sugeriu que
“certamente, o reconhecimento de uma coisa rememorada é percebido 25

como uma vitória sobre o esquecimento” (2007, p. 110). Lembrar, pelo


esforço evocativo (anamnese), no interior dimensional da memória de
uma vida “inteira”, só acaba por fazer sentido quando há uma atestação
do lembrado pelo reconhecimento de quem lembra. Há aí o que também
é considerado enquanto “o pequeno milagre do reconhecimento”, que
atesta o passado, que julga e aprova este passado para ser remanejado no
presente enquanto história efetiva A memória atinge então sua máxima
provisória, isso por não estar isenta de um possível esquecimento. Ou, de
outro modo, como nos falou Sabina Loriga,

Na memória, a experiência-chave é a do reconhecimento,


graças ao qual a imagem presente é tida por fiel à afeição
primeira. Em outras palavras, é possível apreciar – até tocar
– a conformidade da imagem da memória com a
experiência primeira, originária: podemos reconhecer, nos
reconhecer naquilo que já vivemos. A relação com o
passado é íntima, viva, por vezes total (LORIGA, 2009, p.
20).

Nesse sentido o reconhecimento é o que torna possível dizer “eu me


lembro”, constituindo sentidos necessários à lembrança e àquele que
lembra. O vivido no passado é atestado e julgado por um reconhecimento
próprio que é inerente ao sujeito que lembra. Após diversos caminhos
percorridos ao longo da vida, o autobiógrafo, pela lembrança, acaba por
reconhecer diversos aspectos, no entanto, apenas alguns serão
selecionados para sua narrativa do eu, estes constituirão o “pequeno
milagre da memória”. Por outro lado, algumas das lembranças evocadas e 26

reconhecidas não terão lugar algum na narrativa autobiográfica, sendo


para seu autor, silenciadas, e para seus leitores, esquecidas.

Referências
BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e
abordagens. Petrópolis, Rio de Janeiro; Vozes, 2008.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BOBBIO, Noberto. O tempo da memória: de Senecture e outros escritos
autobiográficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
CALADO, Eliana Alda de Freitas. Da história ou da literatura? O limbo das
autobiografias. In: Seculum, nº 20, Revista de História: João Pessoa, 2009.
CALLIGARIS, Contardo. Verdades de Autobiografias e Diários íntimos. In.
Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas. nº.
10, 1992.
CASTRO, Lorena Amaro e PINO, Claudia Amigo. Eu, nós e os outros. In:
CASTRO, Lorena Amaro e PINO, Claudia Amigo.(Org.) Auto(bio)grafias
Latinoamericanas. São Paulo: Annablume; Santiago Editorial Cuarto
Próprio, 2012.
DUQUE-ESTRADA, Elizabeth M. Devires Autobiográficos: a atualidade da
escrita de si. Rio de Janeiro: Nau/Editora PUC-Rio. 2009.
GARCIA, Francisco Antonio. Filosofia e Verdade. Acta Scientiarum,
Maringá, 23(1): 251-255, 2001.
GAUER, Gustavo & GOMES, William Barbosa. Recordação de Eventos
Pessoais: Memória Autobiográfica, Consciência e Julgamento. In:
Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília: Vol. 28. n. 4, 2008.
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Trad.
RAPOSO, Maria Célia Santos. Petrópolis, Vozes, 2009.
GOMES, Ângela Castro. Escrita de si, escrita da História: a título de
prólogo. In: GOMES. Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História
(Org.). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo
Horizonte: UFMG, 2008.
MOTA, Márcia. M. M. História, memória e tempo presente. In: CARDOSO,
Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. Novos domínios da história. (Org.). 27
Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
NOGUEIRA, R.W.P. Escrita de Si, Memória dos Outros: Narrativa
autobiográfica em Salomão Alves de Moura Brasil. Fortaleza: Embornal,
Vol. V, Nº 9. Jan/Jun 2014.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain
François [et. al.]. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.
--------------. O Si-mesmo como um outro. São Paulo: Papirus, 1991.
--------------. Tempo e narrativa. Volume III. Tradução de Claudia Berliner.
Editora WMF Martins Fontes, 2010.
ROSENTHAL, Gabriele. A estrutura e a Gestalt das autobiografias e
suas consequências metodológicas. In: AMADO, J. & FERREIRA, M. M.
(org.). Usos & Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2006.
SILVA, Wilton C. L. Espelho de palavras: Escrita de si, autoetnograia e ego-
história. In: AVELAR, Alexandre de Sá e SCHMIDT, Benito Bisso (Org.).
Grafia da vida: Reflexões e experiências com a escrita biográfica. São
Paulo: Letra e Voz, 2012.
VIEGAS, Ana Cláudia. Eu me transformo em outros – notas sobre a
autoficção na literatura brasileira contemporânea. In. CASTRO, Lorena
Amaro e PINO, Claudia Amigo.(Org.) Auto(bio)grafias Latinoamericanas.
São Paulo: Annablume; Santiago Editorial Cuarto Próprio, 2012.
DIVERSIDADE CULTURAL NO ESPAÇO ESCOLAR
Bruno Sergio Scarpa Monteiro Guedes 1

Resumo
1
Este artigo visa analisar as relações que são estabelecidas nas esferas política,
econômica e social com o propósito de se discutir ações que possam privilegiar a
construção de um currículo multicultural nos espaços escolares. Neste sentido são
realizados apontamentos ao longo de nossa pesquisa sobre ações que possam
possibilitar uma educação voltada para a diversidade cultural abalizados na revisão
bibliográfica de educadores que se propuseram a discutir o tema e questão.
Palavras-chave: diversidade cultural; currículo; formação docente; contexto escolar.

Abstract

This article aims to analyze the relationships that are established in the political,
economic and social spheres in order to discuss actions that could favor the
construction of a multicultural curriculum in school spaces . In this regard notes are
held throughout our research on actions that may enable an education for cultural
diversity in the authoritative literature review of educators who proposed to discuss
the topic and question .
Keywords: cultural diversity; curriculum; teacher training ; school context.

1
Mestre em relações Étnico-raciais pelo Cefet/Rj. Pós-graduado em Educação pela
Universidade Federal Fluminense e graduado em História pelo Centro Universitário Abeu
(Uniabeu).
E-mail:bscarpaguedes@yahoo.com.br
Considerações iniciais

Atualmente nas sociedades contemporâneas, a promoção e a oferta de


educação para as comunidades, não demonstra ser justa e democrática ao
que se remete a qualidade e principalmente ao seu acesso. Ainda que os
2
recursos tecnológicos possam ter minimizado esta carência, com os meios
de comunicação em massa e pela introdução da educação a distância
(EaD) cada vez mais presente como uma alternativa de popularização de
acesso as informações e a produção do conhecimento pelas instituições
de ensino. Mesmo assim é preciso ressaltar que o acesso a informática
ainda não está ao alcance de todos, mesmo considerando que a
aprendizagem pelas plataformas virtuais possa estar agregada ao
cotidiano das sociedades atuais. Portanto, necessariamente quando se
fala em informação e conhecimento, remete-se ao conceito de cultura
que consta intimamente atrelada as práticas educativas produzidas no
contexto escolar.

Reflexões e discussões sobre cultura e educação

Buscando compreender as nuances entre educação e cultura, propusemos


definí-la na perspectiva do antropólogo Geertz (1989) que considera a
cultura como uma ciência interpretativa, em busca de um sentido. Na
procura de sua definição, Geertz (1989) se orienta pelas concepções de
Kluckhohn (1963, p.14) que considera a definição de cultura como “um
conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em
relação aos outros homens”. Nas diretrizes de Candau (1997):
A cultura é percebida como “um núcleo radical da
identidade de diferentes grupos sociais e povos e não
pode ser ignorada nem reprimida sem que
consequenciais, algumas vezes de ampla repercussão,
se manifestem a curto e ou longo prazo, de modo
imprevisível e, muitas vezes, dramático. (CANDAU, 3
1997, p.239)

Observando uma sociedade aclamada como democrática – como a


sociedade brasileira é intitulada – abalizada por inúmeros contrastes e
disparidades sociais, o convívio entre os indivíduos e distintos grupos a
qual pertencem, é constantemente ameaçada e abalada por intermédio
das disputas estabelecidas entre as “culturas particulares” existentes no
seio desta mesma sociedade.
Neste sentido a educação tem a função para com a sociedade de
formadora e construtora de uma cultura nacional, através do
estabelecimento de um sistema de educação com abrangência nacional,
e/ou no atendimento as diferenças culturais desta sociedade. Para Stuart
Hall (1997):

A formação de uma cultura nacional contribuiu para


criar padrões de alfabetização universais, generalizou
uma única língua vernacular como o meio dominante
de comunicação em toda a nação, criou uma cultura
homogênea e manteve instituições culturais nacionais,
como, por exemplo, um sistema educacional nacional.
(STUART HALL, 1997, p. 54).
Aos olhares de Forquin (1993) há uma relação próxima entre educação e
cultura, pois num sentido mais geral a educação atua e anseia no processo
de formação e socialização das pessoas e esta relação inevitavelmente é
realizada de um individuo para outro(os), perfazendo desta maneira a
comunicabilidade e o processo interativo de disseminação de 4

informações, valores, crenças, enfim, a explanação dos elementos que


definem o sentido de cultura.
No contexto escolar, percebe-se que a educação necessita de uma melhor
triagem dos elementos que compõem a sua cultura e uma redefinição dos
conteúdos abordados no espaço escolar, com o intuito que os mesmos
possam ser apresentados aos educandos. Tratando-se assim de um ciclo
de dependência da cultura para com a educação no sentido que a primeira
possa estabelecer-se. Deste modo é indispensável averiguar a relação
entre educação e cultura no contexto escolar, justamente por possuírem
características peculiares e que se inter-relacionam.
Por todas essas observações, os fenômenos que compõem a cultura são
de complexas definições, devido a sua historicidade e heterogeneidade.
Percebe-se assim a variedade de enfoques e perspectivas que permeiam o
conceito de cultura. Entretanto verifica-se a necessidade de se explicitar
outros termos surgidos em relação ao conceito de cultura, devido a
polissemia associada as suas definições, como é o caso do
“multiculturalismo”, “pluriculturalismo” e “interculturalismo”, bastante
utilizado pelos educadores em suas práticas cotidianas. No entanto
buscou-se em Sedano (1997) a compreensão dos referidos termos e da
sua respectiva relação entre as distintas culturas numa mesma sociedade.
Para Sedano (1997) o interculturalismo seria a inter-relação das distintas
culturas existente numa determinada sociedade, enquanto
multiculturalismo e pluriculturalismo, seria de fato a existência de muitas
culturas numa mesma sociedade.
5
Cultura e ensino

Na concepção de Forquin (1993) o ato de ensinar implica necessariamente


em promover o desenvolvimento intelectual e/ou pessoal ao individuo
que possa estar disposto a aprender. Vale ressaltar que apesar de
atualmente os professores das instituições de ensino brasileiras busquem
esta concepção para desenvolverem o processo de ensino-aprendizagem
– pelo menos é o que acredita-se -, ainda assim, conforme ressaltado por
Candau (1995), que a postura assumida em relação diversidade cultural é
etnocêntrica, ou seja, a cultura de cada indivíduo estará sempre no centro
de suas intenções, mesmo que estas ações sejam praticadas de maneira
inconsciente.
No campo educacional as tensões que abrangem a cultura podem
proporcionar articulações nos sujeitos envolvidos com estas práticas, em
vista de um maior engajamento nos assuntos referente à cidadania e
busca pelos direitos civis e culturais, permitindo desta forma que o acesso
às informações possa ser assegurado a todos. O contexto sócio - cultural
nos espaços escolares, a partir dos posicionamentos assumidos pelos
atores sociais nestes ambientes, como é o caso de professores e alunos,
procuram se identificar e consolidar as suas próprias identidades culturais.
Sacristán (1995) salienta que os alunos nativos das classes e das realidades
sociais menos favorecidas possam ter dificuldade na compreensão do que
pode ser denominada de cultura dominante e principalmente da
disseminação da sua própria cultura nas escolas.
As disparidades sociais ao que se remete ao acesso a educação, a escassez
em relação ao capital cultural e as distintas perspectivas das famílias 6

perante o ensino e das expectativas em relação as instituições de ensino,


são apontados por boa parte dos educadores como percalços para a
discussão e propagação da diversidade cultural na escola. Desse modo as
ações que possam buscar um enfrentamento a cultura predominante nos
currículos e nos projetos políticos pedagógicos (PPP), tende a ficar
comprometida.
Desta maneira pode-se enfatizar que o aluno ou grupo social é impactado
de múltiplas formas ao que se remete a postura cultural do educador e de
sua performance em sala de aula, perfazendo assim que os docentes
percebam que a diversidade cultural, das quais os alunos estão inseridos,
necessitam de uma maior valorização, desfazendo o privilegio “desta” ou
“daquela” cultura nos espaços escolares.
Cannen (1997) almeja para educação o que pode ser caracterizado de
enfoque cultural, na qual se configura no despertar da conscientização
cultural dos educadores proporcionando desta forma uma maior reflexão
do contexto sócio-histórico que o rodeia, como é o caso da globalização e
de suas influências devastadoras às identidades culturais dos grupos não
possuidores de poder econômico – social. Nesse sentido na busca por uma
gestão de ensino que possa proporcionar um currículo multicultural,
verifica-se a necessidade em desenvolver decisões de natureza política e
social e conforme preconizado por Banks (1991) e revisado por Sacristán
(1995).

a) Os programas e práticas dirigidos a melhorar o


rendimento escolar de grupos étnicos ou de 7
imigrantes; b) as atividades e formulações dirigidas a
proporcionar um conhecimento, a todos os
estudantes, das culturas de grupos étnicos
minoritários, com o objetivo de estimular a
compreensão e a tolerância entre grupos culturais,
estimulando uma visão não etnocêntrica do mundo.
(SACRISTÁN,1995, p.92)

Ambos autores Banks (1991) e Sacristán (1995) apontam que na utilização


do currículo multicultural torna-se imprescindível transformar as
intenções dos docentes e do saber envolvido diretamente no processo de
ensino-aprendizagem, mas também nas mudanças dos processos internos
próprios da escola. Esse posicionamento infere diretamente em realizar
modificações nas metodologias pedagógicas escolares e oportunizar uma
formação docente calcada na diversidade cultural.

Escola, cultura e formação dos educadores

Nas instituições de ensino, distintos grupos sociais se inter-relacionam,


mas o que pode ser enfatizado é que nesta convivência possa haver
conflitos culturais que são transparecidas nas atividades cotidianas deste
espaço social. Comumente estes conflitos culturais são principiados por
ações dos grupos que são considerados como os mais influentes ou que
possuam suas perspectivas priorizadas, fazendo com que haja a
resistência dos grupos menos favorecidos do outro lado. Essas resistências
podem ser desestruturadas ou até mesmo não intencionais, porém o que
não pode ser negado são as influências causadas pelas mesmas sobre no
espaço escolar, constituindo-se desta forma como um conjunto de ações 8

que passam assumir um caráter de oposição e de repulsa por parte dos


“dominados” em busca da manutenção de sua identidade cultural.
Na escola esses conflitos tornam-se mais frequentes a partir do momento
em que não há uma negociação estabelecida entre os atores sociais deste
espaço social – professores, alunos e gestores -, ocasionando o
desrespeito e a não valorização da multiplicidade de identidades culturais
assumidas por cada um neste espaço, geralmente esses embates ocorrem
em torno das questões de gênero, religião, raça e classe social.
Especificamente no Brasil na década de 90 do século XX, é que se passou a
discutir a diversidade cultural presente na sociedade, muito influenciada
pelo mito da democracia racial descrita por Gilberto Freire na década de
1940 e que passou a ser amplamente problematizada pelos pesquisadores
da escola sociológica da universidade de São Paulo, liderados por
Florestan Fernandes (1968) em meados do século XX, assim como no
campo estritamente da educação mais recentemente por Candau (1997) e
Anhorn (2002). Candau (1997) aponta que os debates envolvendo as
questões sobre multiculturalismo no campo educacional passaram a
ganhar maiores repercussões a partir de 1995, em função da reunião
promovida pela Anped (Associação de Pesquisa e Pós Graduação) que
colocou em evidência numa de suas sessões o tópico Multiculturalismo e
Universidade.
Entende-se que a pluralidade cultural existente no Brasil é fruto do seu
processo histórico que integram as esferas político, econômico e social. As
mobilizações em torno da pluralidade cultural e de sua aplicabilidade nas 9

escolas passaram a ser refletidas e priorizadas pelos documentos oficiais


da educação, como é o caso dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais)
do ano de 1996. Neste documento especificamente nos tópicos de
“Convívio Social e Ética” e “Pluralidade Cultural”, já se admitia a existência
de trabalhos voltados para as questões da afro - descendência, das escolas
indígenas e de movimentos de caráter étnico. Porém conforme aponta o
documento não houve o aprofundamento de assuntos condizentes a
complexidade cultural e muito menos das relações que foram
estabelecidas entre as distintas culturas nestes locais.
Garcia Canclini (1990) já apontava para a dificuldade em termos de
convívio entre as culturas existentes na América Latina, devido a sua
heterogeneidade e entendendo-as como culturas híbridas principalmente
pelas migrações necessárias que as populações rurais tiveram que realizar
para os centros urbanos, assim como pelas relações proporcionadas pela
dinâmica do sistema capitalista. Na concepção de Garcia Canclini (1990) a
educação das sociedades contemporâneas precisa promover a construção
do que foi intitulado pelo autor de “ciências nômades”, ou seja,
possibilitar que o conhecimento disseminado na escola possa ser realizado
de maneira transdisciplinar promovendo o contato com o conhecimento
de outras culturas.
Ressalta-se que os apontamentos realizados por Canclini (1990) ainda não
constam inseridos nas pautas das discussões da grande parte das escolas
brasileiras. O que se percebe é que as escolas ainda são concebidas como
espaço de normalização dos valores culturais das classes dominantes,
refletidas na construção de seus respectivos currículos escolares. 10

Canen (1997) vislumbra a perspectiva de uma educação multicultural que


precisa ser vista como prioridade nas escolas brasileiras, não somente
para garantir os direitos dos grupos sociais menos privilegiados, mas num
panorama de reconhecimento da pluralidade étnico-cultural como
enriquecedora para toda a sociedade, na tentativa de contribuir para a
minimização de preconceitos e estereótipos para as futuras gerações.
Porém o que se verifica é que a construção de um currículo multicultural é
uma tarefa complexa que exige, conforme Sacristán (1995), perceber
como o currículo escolar possa abranger a diversidade étnico-cultural da
comunidade ou nação onde ele encontra-se inserido. Compreende- se que
a diversidade da população brasileira nas suas mais variadas esferas,
político, econômico, cultural e social demanda um maior esforço por parte
dos professores em abordá-las de maneira contextualizada e respeitosa,
buscando integrar a realidade social dos educandos ao contexto do
processo de ensino - aprendizagem nas escolas.
Murrel (1990) ao avaliar os currículos de formação dos docentes dos EUA,
aponta para a questão que é bastante preconizada na educação brasileira,
a má formação do profissional da educação para lidar no cotidiano escolar
com a diversidade cultural. Murrel (1990) deixa claro sua posição quando
afirma que os currículos na qual desenvolveu suas pesquisas eram
indiferentes com a questão cultural. Esses olhares para o processo de
educação-formação em que estão envolvidos os docentes, elucidam para
uma nova postura do professor que precisa atuar criticamente indo além
dos saberes formais aprendidos durante os seus respectivos cursos de
formação, na tentativa de abordar com propriedade as questões referente 11

à diversidade cultural em suas aulas.


Nesse sentido entende-se que no processo de formação dos professores,
a inserção de debates e reflexões sobre assuntos diretamente ligados a
cultura ainda encontram muitas barreiras. Esta ausência tem provocado
empecilhos ao que se remete ao posicionamento crítico dos educadores
diante das situações desafiadoras que estão compreendidas no espaço
escolar, aqui nesta análise especificamente a diversidade cultural no
contexto escolar. Torna-se primordial que o educador amplie seus olhares
na tentativa de compreender a importância das questões culturais no
processo de formação não só do aluno, mas também do individuo que se
encontra cercado de realidades distintas e precisa que estes assuntos
possam estar integrado as suas rotinas escolares, proporcionando-lhes
sentido, entendimento e reconhecimento.

Considerações finais

Com os apontamentos realizados em torno da questão multicultural no


campo da educação percebe-se que esta é uma tarefa árdua e
desafiadora, em virtude do envolvimento de situações que abrangem
reformulações de propostas e finalidades para a educação, além de
perspectivas ideológicas que inevitavelmente constam impregnadas na
construção dos projetos políticos pedagógicos e que se estendem para o
campo do conhecimento e nos materiais escolares utilizados em sala de
aula.
Apesar de todas as dificuldades que se encontram para a edificação de
uma educação multicultural comprometida com a diversidade no âmbito 12

escolar, vislumbro a possibilidade do educador atuar de forma


democrática e integradora. Neste caminho, a meu ver, seria necessário
revisar os conteúdos tidos como segregadores que são abordados em sala
e aula e possibilitar que novas vozes possam também fazer parte das
rotinas escolares e consequentemente dos discursos produzidos nas áreas
de conhecimento. Estes posicionamentos apontariam para promover a
reflexão e a integração das culturas não-dominantes ao processo de
construção do conhecimento produzido na escola, estabelecendo o
diálogo entre as mesmas e tornado-as alvo de problematização e
conhecimento aos demais alunos não conhecedores de suas
peculiaridades.
Num sentido mais amplo uma escola que busca integrar uma visão
multicultural de currículo e conhecimento necessita incentivar o corpo
docente e os outros funcionários da escola a respeitarem a diversidade
cultural dos alunos. Por parte dos educadores precisa-se superar qualquer
defasagem decorrente dos seus respectivos cursos de formação, em
relação a questão da diversidade cultural e proporcionar um ensino fora
do eixo etnocêntrico, abrangendo as realidades sociais e culturais dos
alunos no contexto escolar, integrando-os ao processo de ensino –
aprendizagem.
Referências bibliográficas

CANDAU, V. M. Formação continuada: tendências atuais. In: CANDAU, V.


M. (org.) Magistério: construção cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1998.
____________. Pluralismo cultural, cotidiano escolar e formação de 13
professores In: CANDAU, V. M. (org.) Magistério: construção cotidiana.
Petrópolis: Vozes, 1997.

____________. (org.) Sociedade, educação e cultura(s) : questões


propostas. Petrópolis: Vozes, 2002.

CANEN, A. Formação de professores e diversidade cultural. In: Vera Maria


Candau (org.) Magistério: construção cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1997.

FORQUIN, J.C. Escola e cultura: as bases epistemológicas do


conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

GARCIA CANCLINI, N. Culturas híbridas. México: Grijalbo, 1990.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e


Científicos, 1989.

GRUMBACH,G.M. A supervisão e a integração vertical do currículo, em


escolas de 1º grau, da rede oficial do município do Rio de Janeiro.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1982. Rio
de Janeiro: UFRJ, 1982.

HALL, S. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,


1997.
MEC. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares
nacionais: convívio social e ética: pluralidade cultural – Versão preliminar
– julho 1996.

SACRISTÁN GIMENO, J. Currículo e diversidade cultural. In: SILVA, Tomaz


14
Tadeu da; MOREIRA, Antonio Flávio. (org.) Territórios contestados.
Petrópolis: Vozes, 1995.

SEDANO, A. Educación intercultural: teoria e práctica. Madri: Escuela


Española, 1997.
A POLÍTICA EDUCACIONAL DOS GOVERNOS DO PT:
A predominância do interesse privado/mercantil

Alisson Slider do Nascimento de Paula


Kátia Regina Rodrigues Lima
1
Emmanoel Lima Ferreira

RESUMO
Buscou-se analisar as condicionalidades empreendidas pelas medidas econômicas e
sociais dos governos Petistas no cenário da educação superior brasileira,
caracterizando as políticas e ações instituídas no interior do ensino superior. Para trato
metodológico, utilizou-se o materialismo histórico e dialético desenvolvido por Marx
(2008), buscando, dessa maneira, apreender a realidade em sua totalidade. Assim, no
cenário dos condicionantes atribuídos pelos organismos multilaterais a educação deixa
de ser um direito passando à ser um serviço comercializável. Os governos do PT
compreenderam, a partir das orientações do Banco Mundial, a educação como
promissor nicho mercadológico, o que levou a cabo um vasto processo de expansão e
privatização do ensino superior no Brasil.
Palavras-chave: Educação Superior. Capital. Governos Petistas. Mercantilização.

ABSTRACT
It sought to analyze conditionalities undertaken by economic and social measures of
PT governments in the Brazilian higher education scenario, characterizing the policies
and actions established within higher education. For methodological treatment, we
used the dialectical and historical materialism developed by Marx (2008), seeking in
this way to apprehend reality in its entirety. Thus, in setting the conditions given by
multilateral organizations education ceases to be a right going to be a marketable
service. Governments PT understood, from the World Bank guidelines, education as a
promising niche marketing, which has undertaken a broad process of expansion and
privatization of higher education in Brazil.
Keywords: Higher Education. Capital. PT governments. Commodification.

Introdução
O referido trabalho busca empreender uma análise acerca das
condicionalidades empreendidas pelas medidas sociais e econômicas dos
governos do PT no âmbito da educação superior brasileira. Para isto,
levamos em conta que os governos petistas trazem consigo uma
roupagem histórica distinta das precedentes, pois, pela primeira vez na
história do país se trata de um governo de frente popular, e que, por sua
vez, se comprometeu com as lutas da classe trabalhadora, como também
a realização da ruptura com o modelo neoliberal que estava sendo
instituído no Brasil desde o governo Collor de Mello. 2

Nessa acepção, usamos como método de análise o materialismo


histórico-dialético, pois se tratar do método que melhor consegue
expressar o movimento da realidade social e complexa. Tal método
científico se propõe a analisar criticamente o regime social capitalista
visando transformá-lo. Em acréscimo, a apreensão do conhecimento se dá
por sucessivas aproximações, portanto, enfrentaremos o desafio aqui
colocado. Assim, o método materialista histórico-dialético desenvolvido
por Marx (2008), busca apreender a realidade em sua totalidade, que se
constitui a partir de síntese de múltiplas determinações (PAULO NETTO,
2011).
Portanto, o trabalho está organizado em três seções que
aparentemente crise capitalista, governabilidade e política de educação
superior não apresentam, num primeiro momento conexão, todavia, ao
investigar as mediações que os compõe concebemos suas intrínsecas
inter-relações. A atual crise estrutural do capital, aciona os limites
civilizatórios do sistema sociometabólico do capital, reforçando, assim,
seu caráter regressivo-destrutivo, o que inclui todas as dimensões da vida
social, incluindo a educação (MÉSZÁROS, 2002). Exposto isso, na primeira
seção expomos uma análise histórica do Partido dos Trabalhadores (PT) e
sua dinâmica, pondo em evidencia seus giros à direita, levantando
questionamentos e problematizações que tendem pôr em evidência que o
partido que se mostrava de oposição passa a ser um sustentador da
ordem burguesa; por conseguinte, nos empenhamos a analisar as linhas
de continuidade do governo PT com a agenda neoliberal, bem como suas
investidas direcionadas à educação brasileira compreendendo-a como 3

promissor nicho de mercado; por fim, empreendemos uma análise das


políticas voltadas para a educação superior nacional, instituídas e
regulamentadas ainda no governo Lula da Silva, bem como o
aprofundamento de algumas políticas operacionais ainda do governo
Fernando Henrique Cardoso, que beneficiam somente o setor privado,
ainda, procuramos mostrar o caminho que o governo Dilma Rousseff (em
curso) pretende para o ensino superior com a aprovação do Plano
Nacional de Educação (2014-2024).

De partido de oposição à sustentação da ordem


O contexto histórico recente do PT nos possibilita a apreender que
desde a década de 1990, diversas foram as ocasiões nas quais apontam a
prática do Petista na contramão de seu discurso propagado, bem como às
indicações programáticas de sua gênese.
A partir do predomínio do setor sindical, as falas e as proposições
do partido no início possuíam uma evidente característica classista, isto é,
inquietavam-se com o perfil do empenho e organização da classe
trabalhadora no confronto com os segmentos hegemônicos. Contudo,
doravante década de 1970, os países centrais e uma parte dos países
periféricos do capitalismo foram arrasados pela investida burguesa, da
qual o objetivo era combater a queda da taxa de lucro inserida a um
contexto de crise estrutural do sistema de capital. As ações pensadas para
superar a crise1 engendraram implicações avassaladoras à classe
trabalhadora, usando como exemplo o trabalho em condições precárias e
o desemprego. Desdobrava também o desmantelamento do dito 4

“socialismo real”, que teve seu clímax no ano 1989, quando foi por baixo o
Muro de Berlim. Acrescentou-se a esse cenário a adesão das concepções
pós-modernas por expressiva fração dos intelectuais do campo da
esquerda. Esse conjunto determinador implicou à crise do movimento
sindical, além da flexibilização e giro à direita dos partidos de esquerda.
Este quadro atingiu o Brasil na década de 1990. No entanto, os
efeitos nocivos obtiveram uma extensão mais ampla, em decorrência da
condição sócio-histórica do país, isto é, as condições periféricas do
capitalismo dependente brasileiro. A Central Única dos Trabalhadores
(CUT) adotou o “sindicalismo de resultado” em contraposição ao
“sindicalismo de confronto”, dessa forma, alinhando-se ao que se
desdobrava em outras regiões do globo (ALVES, 2000). Isso se deu em
virtude da corrente majoritária da CUT priorizar um escopo sindical mais
participativo, como também cooperativo. Tal decisão diz respeito à tática
da burguesia internacional de adaptar o sindicalismo às suas premências
de produtividade e criação de consenso, buscando solapar os setores
sindicais mais combativos.

1
Referimo-nos, mais especificamente, à reestruturação produtiva (ver HARVEY, 1992) e ao neoli-
beralismo (ver ANDERSON, 1995).
O PT, assim como vários partidos de esquerda no globo, tolerou um
crescente processo de flexibilização, além da conformação à ordem,
“tanto no plano das formulações político-programáticas quanto na sua
relação com os movimentos sociais” (VIEIRA, 2012, p. 49). Na prática, isso
foi comprovado através das incessantes reformulações do programa 5

político e do afastamento dos embates de classe.


Iasi (2006) alega que, o projeto para elidir o modo de produção
capitalismo foi abandonado pelas resoluções do partido, o que ratifica que
na nova visão dos dirigentes petistas, que o capitalismo é algo
indestrutível, portanto, necessitando se adaptar a essa ordem societal.
Deste modo, novos olhares foram direcionados para a crítica ao
neoliberalismo. De acordo com Coelho (2005), o debate não aborda mais
a transcendência positiva do sistema de produção capitalista, todavia
sobre “qual” sistema capitalista mais adequado.
Conforme Pinheiro (2011, p. 105), tal tendência de perca de
características dos partidos de esquerda é fruto da preeminência
neoliberal materializada nos anos 1990, especialmente em função ao fim
da União Soviética e à decorrente concentração política e econômica nos
Estados Unidos, engendrando um tipo de “mundo unipolar”. Lançando
olhos para o PT, este saboreou também um processo de burocratização
que, segundo Garcia (2008), iniciou-se findando a década de 1980, quando
nesse determinando período histórico o PT passa a governar uma
quantidade significativa de prefeituras, tirando usufruto do grande
incremento de seu aspecto eleitoral nos anos 1990, isso acarretou ao
partido a se atentar, especificamente, em auferir eleições, abandonando o
projeto que buscava uma transformação na sociedade. A articulação com
os movimentos sociais foram mantidos, porém, foram se tornando
gradualmente mais circunscritos ao plano formal e institucional.
Quando, enfim, Lula da Silva logrou-se presidente da república em
2003, após uma campanha que esteva calcada em uma crítica ferrenha ao 6

neoliberalismo, seu governo se quer alterou a política econômica do


governo Fernando Henrique Cardoso – seu antecessor –. Todavia, mostrou
disposição em dar seguimento às mesmas medidas que beneficiam a
concentração de renda e, não obstante alegar a soberania nacional
sustentou a dependência do Brasil aos organismos internacionais, como o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), que
reivindicam as aspirações da burguesia internacional. Portanto, Lula da
Silva surgia como o nome certo para dar continuidade com as reformas
necessárias que tinham sido deixadas incompletas após os mandatos de
Cardoso, já que, se existia algum risco para o capital em amparar uma
liderança com carisma como era o caso de Lula da Silva, este,
precisamente com os dirigentes fundamentais do Partido dos
Trabalhadores já tinham dado provas satisfatórias em função de sua
atuação no âmbito do poder legislativo, bem como em executivos
estaduais e municipais da sua vasta envergadura de manejar as bases que
dirigiam e de negociar largamente e sem julgamento ou qualquer
antipatia classista com o setor empresarial nacional ou internacional.
Dando continuidade ao giro à direita do PT, na carta do governo
brasileiro ao FMI, de maio de 2003, já era explicito a escolha que o
governo fez de dar seguimento à concepção de incorporação inerte à
economia internacional. Se ainda existia qualquer imprecisão sobre isso,
seguramente a Carta se trata de uma evidente expressão do entusiasmo
do governo em efetivar a agenda “reformista” dos organismos
internacionais e de decepcionar a perspectiva dos setores do trabalho que
acreditavam em uma política diferente da política do governo Cardoso 7

que, por seu turno, deu prioridade ao ajuste fiscal, pagamento da dívida
pública, estabilidade monetária, controle da inflação na contramão dos
investimentos para as áreas de saúde, educação, habitação e a
dependência mais ampla do Brasil aos imperativos do FMI e do BM.

Governos petistas e o seguimento da agenda neoliberal com a Educação


Superior
A partir da crise da dívida de 1982, a apreciação dos organismos
internacionais não era somente mais uma opinião acerca da natureza da
crise. A renegociação da dívida foi transformada em um intricado processo
que redecidiu a força alusiva das frações de classes pertencentes ao bloco
dominante dos países latino-americano, em prol das frações locais mais
internacionalizadas, revigorando os espaços pró-imperialistas (financeiro,
agronegócio, commodities) (LEHER, 2007). Dessa forma, as influências
desses organismos não somente foram uma injunção de cima para baixo,
no entanto, medidas que, para certas frações, seriam seriamente
lucrativas e benéficas.
Nessa acepção, as mudanças etruturais esboçadas pelo FMI e pelo
BM e, em seguida, pelo Plano Brady estabeleceu, concomitantemente:
[...] a) uma busca incessante de divisas provenienes de
exportações – conforme o Banco Mundial, os nichos
de mercado mais promissores são o agronegócio e a
manufatura de produtos extraídos da natureza
(commodities); b) acentuados cortes nos gastos
públicos por meio de privatizações e da redução dos
gastos sociais, almejando elevados superávits 8
primários; c) reformas do Estado; d) liberalização do
gluxo de mercadoria e capitais; e) controle
inflacionário por meio de juros elevados; f)
desregulamentação dos direitos trabalhistas (LEHER,
2007, p. 10).

Estes elementos expressam, sinteticamente, a agenda que, em


1989, tornou-seconhecida como Consenso de Washington. Tais medidas
ecoaram acentuadamente na univerdade pública, engendrando
implicações estrondosas nos espaços públicos de produção do
conhecimento.
As ingerências dos organismos internacionais na constituição da
política educacional brasileira remonta ao início do nacional-
desenvolvimentismo e até então tais influências prosseguem se expondo
no aglomerado de políticas sociais nacionais. Deste modo, este
procedimento torna-se explícito nas orientações do FMI e do BM para a
reforma da educação, em especial da educação superior latino-americana,
na década de 1990, ao passo em que seus documentos destacam que a
este nível de ensino é direcionado uma soma de recursos publicos mais
significativo do que o montante que é canalizanado para a educaçao
básica. Nesta perspectiva, esta política precisaria ser convertida com a
segurança de fluxos de verbas públicas voltadas para a educação básica,
notadamente para o ensino fundamental, como também, por intermédio
da diversificação das fontes de financiamento do ensino superior (BANCO
MUNDIAL, 1995; 1999).
Com isso, o processo de privatização está articulado a dois
movimentos: i) a ampliação dos estabelecimentos privados por meio da 9

abertura para os setores educacionais; ii) os estabelecimentos públicos


estão voltados para a iniciativa privada por intermédio das fundações de
direito privado, da contenção de vagas para admissão dos trabalhadores
do setor da educação, da contenção de investimentos para a infra-
estrutura dos estabelecimentos, dentre outros. Destarte, o crescente
processo de privatização da educação superior é compreendido nas
fronteiras do neoliberalismo em seu projeto de sociedade e de educação
enquanto um processo de “democratização” do ensino superior, logo, sua
expansão engendra as bases de sustentação deste argumento.
O setor educacional se tornando setor no qual são canalizados
investimentos de grupos privados caracteriza o processo de
empresariamento da educação, seguido de três elementos fundamentais:
a) com a mundialização, em desenvolvimento, dos sistemas de educação
no contexto latino-americano, sendo cada vez mais crucial estímulos para
que Instituições Públicas de Ensino Superior (IPES), assim como as
privadas vinculem-se as universidade globais através da definição de
programas com diplomação partilhada; b) à organização das universidades
corporativas nas ou pelas empresas; c) o estímulo ao investimento sistema
de EaD, impelida pelos avanços das inovações tecnológicas (LIMA, 2002).
Este enfoque é reforçado pela entrada no debate
educacional da Organização Mundial do
Comércio/OMC, em parceria com o BM e o FMI, sob a
hegemonia do Estado Unidos da América. Esta política
de mercantilização se insere num movimento mais
amplo do capital em busca de novos mercados de
exploração lucrativa que se expressa em acordos 10
comerciais como o Acordo de Livre Comécio da
América do Norte (NAFTA) e a Área de Livre Comércio
das Américas (ALCA) (Idem, 2004, p. ???).

Nesse sentido, O neoliberalismo gerido pelos organismos


internacionais por meio de ajustes comerciais é assinalado, assim, pela
expansão da privatização dos setores estratégicos dos países da periferia
do capitalismo, privatizando a educação, a ciência e a tecnologia (C&T).
Este processo de desnacionalização se expõe na influência que estas
agências internancionais implementam na função de estabelecer a
liberalização para que empresas internacionais rejam empresas do país,
escolas e centros de pesquisa dos países periféricos.
Todavia, o neoliberalismo não é capaz de estabelecer mudanças no
contexto de empobrecimento e de estagflação econômica que estigmatiza
o cenário global contemporâneo. Não obstante, o discurso dominante
ressalta a procura do desenvolvimento econômico com justiça social e o
combate por um mundo sem miséria, a contexto de vida e de trabalho da
vasta parte da população dos países da periferia capitalista e mesmo de
diversas camadas populares dos países centrais é formada pela pobreza,
pondo em evidencia a frustração das políticas efetivadas pelo sistema
produtor de mercadorias.
Neste contexto político em que se engrandrace uma terceira via
doravante a resistência ao projeto neoliberal e em procura de um tipo de
capitalismo de caráter mais humanizado que a Coligação Lula presidente
organiza seu projeto de governo para o país. A Carta ao Povo Brasileiro,
Lula da Silva aponta a premência de rompimento com o parâmetro 11

político e econômico neolibral em vigor durante o governo Cardoso. Este


rompimento estaria constituído a partir de um grande pacto entre as
classes sociais, vinculando desenvolvimento econômico com justiça social.
Não obstante ressaltar a premência de romper com o modelo neoliberal,
o documento insiste que a “premissa dessa transição será naturalmente o
respeito aos contratos e obrigações do país [...] As recentes turbulências
do mercado financeiro devem ser compreendidas nesse contexto de
fragilidade do atual modelo e de clamor popular pela sua superação”
(SILVA, 2002, p. 102). Assim sendo, os contratos assegurados no governo
Cardoso precisarão ser executados para confirmar a convicção dos
mercados do exterior no governo do PT: “Vamos preservar o superavit
primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna
aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os
seus compromissos” (Idem).
Dessa forma, consoante Lima,

Em 28/02/2003, o [...] Ministro da fazenda Antonio


Palloci e o presidente do Banco Central Henrique
Meirelles enviam novo documento ao FMI, renovando
os compromissos firmados de manutenção do ajuste
fiscal e das reformas struturais propostas pelo FMI:
Reforma da previdência, Reforma Tributária, Reforma
Trabalhista, regulação do sistema financeiro e
implementação de políticas sociais focalizadas no
combate à pobreza extrema (2004, p.62).

A compreensão de que a educação se trata de um serviço à ser 12


comercializável no Brasil, foi proferido no Plano Diretor da Reforma do
Estado (PDRE), provindo do governo Cardoso que tinha como diretrizes
essenciais: a privatização, a terceirização e a publicização, e dando
seguimento na lei de parcerias público-privadas, que proclama mais
competência do setor privado do que o público, no fornecimento de
subsídio educacional aos setores populares.
Para Leher (2007), as Instituições de Educação Superior (IES) do
Brasil e da América latina foram alteradas em todas as suas vertentes:

Da docência à pesquisa, do financiamento à avaliação,


dos currículos à carreira acadêmica, movendo as
fronteiras entre o público e o privado, no que se
refere tanto à oferta da educação quanto ao cotidiano
mesmo das instituições: espaço público em que os
problemas nacionais podem ser discutidos foi invadido
pela esfera privada, restringindo o público aos poucos
nichos, muitos deles de elevada qualidade acadêmica
e articulados regionalmente por meio do Conselho
Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e outras
iniciativas afins. (p. 10).

Sinteticamente, já havia diversas dessas peculiaridades privatizantes


e mercantis da Crise da Dívida no chamado período desenvolvimentista.
Identificar a dimensão das transformações sugere admitir que as
mudanças implementadas nas universidades não somente
compreenderam todos os setores, como foram também ações com um
vetor diferencial:

[...] o abandono da preocupação com os problemas 13


nacionais, redefinindo a pesquisa, o ensino e as
próprias formas de investigação por meio da difusão
do “mito do método”, tão caro à tradição
neopositivista. Inevitavelmente, essa nova dinâmica
imprimiu marcas nas relações de prestígio e de poder
e, por conseguinte, na relação de forças no interior
das instituições. (Idem).

Essas transformações identificam também modos de associação da


IPES com o Estado, com o mercado no qual a avaliação científica
desempenha uma atuação crucial. Isto tem sido visível por meio da
articulação das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) com as
disposições do Ministério do Planejamento, e quando se tratar das
estaduais e municipais, compete aos órgãos correspondentes a essa pasta
governamental, o que torna a educação superior uma: “*...+ espécie de
‘variável flutuante’ do modelo econômico, que ora é estimulada com
investimentos ora é desativada por cortes de verbas, segundo critérios
totalmente alheios à educação e à pesquisa, pois determinados
exclusivamente pelo desempenho do capital *...+” (CHAUÍ, 2001, p. 52).
É possível perceber uma alteração na direção das políticas que
promovem o acesso ao ensino superior no Brasil a partir do governo Lula
da Silva, no que tange programas como o Programa Universidade para
Todos (PROUNI), a Universidade Aberta do Brasil (UAB) e o Programa de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) buscam
configurar o real sentido de democratização do acesso ao ensino superior.

A política de Educação Superior nos governos PT


No contexto latino-americano, as políticas de ingresso à educação 14

superior emergiram enquanto uma das alternativas de solucionar a


desigualdade social que historicamente assola o continente. No que
concerne à realidade de cada país, essas políticas apresentam
características diversas, conforme a natureza dos pactos adotados pelo
poder público.
Seguindo o raciocínio de Trópia (2012), as relações sociais são, de
fato, relações entre classes, precisamente em disputa, também, toda
política estatal resulta de disputas de interesses entre classes.

[...] a política educacional do governo Lula expressa,


predominantemente os interesses das classes
dominantes, em particular do capital financeiro, que
contou, para conquistar esta hegemonia, com o apoio
da burocracia estatal, vis-a-vis do Ministério da
Educação, da burguesia nacional industrial, da nova
burguesia de serviços, de alguns setores das classes
médias, bem como de setores populares. Por sua vez,
encontrou a resistência de alguns setores organizados
e de uma camada das classes médias: o funcionalismo
público federal, especialmente. Por conta das
resistências e críticas recebidas durante o primeiro
mandato, a partir de 2007 algumas políticas voltadas
ao ensino superior público, em particular para as
universidades Federais, foram tomadas. (Idem, p.
360).
O debate voltado à política de educação superior no governo Lula
da Silva teve inicio com a organização de um Grupo de Trabalho
Interministerial (GTI), incumbido de examinar o estado da educação
superior no país e expor um plano de ação (OTRANTO, 2002). A análise
efetivada pelo Grupo acerca do cenário da educação superior, no que 15

tange às IFES, era de pura calamidade, em função da crise fiscal e a


aparente inabilidade do Estado em concretizar novos investimentos. Este
cenário precário não se limitava somente às IFES, porém também às IES
privadas - em virtude da ampliação colossal durante o governo Cardoso -
encontravam-se “ameaçadas pelo risco de uma inadimplência
generalizada” (CARVALHO, 2006, p. 05) e pela grande desconfiança em
relação à qualidade da formação e aos diplomas.
Nessa acepção, a expansão de ofertas de vagas foi mais apressada
que o avanço na busca pelas IES privadas, contendo a relação
candidato/vaga de 2,2 em 1998 para 1,6 em 2002. A exaustão da
ampliação por meio do setor privado fica mais notória quando se atenta à
quantidade de vagas não ocupadas pelo processo seletivo nestes
estabelecimentos. Ao passo que em 1998, a dimensão já era de 20%, em
2002, as vagas não ocupadas passam para 37% (TRÓPIA, 2012).
A premência da admissão de medidas se dá em função do escopo
de expansão de vagas no cenário do ensino superior – expansão pactuada
entre Brasil e os organismos internacionais que prognosticava que, até o
final dos anos 1990, ao menos 30% dos jovens entre 18 a 24 anos
deveriam estar matriculados na educação superior. Fazendo uso do
semblante “justiça social” e da “democratização” do ensino superior, o
GTI exibiria imediatas resoluções para combater a crise: constituição de
um programa urgente de subsídio ao ensino superior, em particular às
IFES, e implementação de uma profunda reforma do nível de ensino em
tela. De acordo com Otranto (2004), tal reforma terá uma expansão do
quadro docente e das vagas para discentes alocados na educação à 16

distância, autonomia universitária e alteração na política de financiamento


(moderação de gastos com folha de pagamento e a inserção de verbas dos
setores privados na IES).
Consoante Otranto (2006), a ênfase na reforma da educação
superior seria voltada para: concretizar o setor privado como local
privilegiado da oferta do ensino superior; restringir a atuação do Estado à
qualidade de regulador da educação superior; tornar natural a distinção
entre os sistemas de ensino, designando aos jovens das camadas
populares um ensino de baixa qualidade; metamorfosear a universidade
em organização de serviços solicitados pelo capital, transformados em
inovação tecnológica; expandir a autoridade governamental (eficiência,
produtividade, ajustadas através da avaliação) e do mercado (utilitarismo
e financiamento) sobre a universidade pública, impossibilitando a total
autonomia e, sobretudo, a liberdade acadêmica.
As ações do Estado para a educação superior, no primeiro mandato
de Lula da Silva, foram: a inauguração do ProUni, a Lei de Inovação
Tecnológica, a educação à distância (EaD), Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Superior (SINAES) e as Parcerias Público-Privadas (PPP’s).
Empreenderemos uma breve análise de tais políticas.
O Programa Universidade para Todos (ProUni),
O ProUni – Programa Universidade para Todos – tem
como finalidade a concessão de bolsas de estudo
integrais e parciais em cursos de graduação e
sequenciais de formação específica, em instituições
privadas de educação superior. Criado pelo Governo
Federal em 2004 e institucionalizado pela Lei nº
11.096, em 13 de janeiro de 2005, oferece, em 17
contrapartida, isenção de alguns tributos àquelas
instituições de ensino que aderem ao Programa
(PROUNI, 2010) 2.

Advogado por seus proponentes enquanto a mais democrática das


medidas do governo Lula da Silva, o ProUni tem implementado dois papéis
ideológicos cruciais: referir à democratização da educação superior e
dissimular os benefícios dos estabelecimentos privados à que ele
aderirem, bem como de seus interesses, ao passo em que elas podem
ficar liberadas de tais impostos: Contribuição Social sobre o Lucro Líquido
(Lei 7.689/88), Contribuição Social para Financiamento da Seguridade (Lei
Complementar 7/70), Imposto de Renda de Pessoa Jurídica.
Consoante Trópia (2012, p. 364),

[...] o ProUni é um programa que promete


“universidade para todos”, mas que tem como
contrapartida a renúncia fiscal, que interessa a todas
as IES privadas, especialmente às com fins lucrativos,
pois são estas as que mais se beneficiam com a
totalidade das isenções[...] Segundo dados do
MEC/ProUni, do total de bolsas ProUni distribuídas no
período 2005-2010, 49% foram destinadas a IES com

2
Disponível em: <http://prouniportal.mec.gov.br>. Acesso em: 19 dez. 2015. As informações
apresentadas sobre o ProUni provêm dessa fonte.
fins lucrativos, 28% para comunitárias filantrópicas e
23% para entidades comunitárias sem fins lucrativos.

Tal lei assegura o aproveitamento de bolsas parciais ou integrais, de


uma parte das ofertas de vagas das instituições privadas de ensino
18
superior e tem enquanto proposição aumentar expressivamente a
quantidade de vagas no ensino superior, interiorizar a educação pública
não-estatal e pugnar as desigualdades sociais. É direcionado aos egressos
de escolas públicas na qualidade de bolsistas integrais, além dos docentes
da rede pública da educação básica.
Os dados referente ao ProUni nos governos petistas, identificamos a
partir da Tabela 1 os dados referentes aos gastos tributários da União com
o ProUni.

Tabela 6 – Gastos tributários da União com o ProUni (2005-2014) – Valores (R$ 1,00) a
preço de janeiro de 2015 (IPCA).
Ano ProUni
2005 177.086.854
2006 343.789.715
2007 535.882.639
2008 631.266.786
2009 735.511.137
2010 762.939.552
2011 698.659.132
2012 890.479.903
2013 830.190.930.
2014 625.001.269
Total 5.400.616.987
Fonte: Secretaria da Receita Federal. Demonstrativo dos Gastos Governamentais
Indiretos de Natureza Tributária (Gastos Tributários) – PLOA 2014.

Observa-se na Tabela 1 que desde sua implementação o ProUni já


gerou um gasto tributário da ordem dos R$ 5 bilhões, havendo, desta
forma, um aumento relativa à 352,93% dos recursos destinados ao
programa. Um valor alto que poderia ser arrecadado e direcionado para o
financiamento das IFES, contudo, o processo de diluição das fronteiras
entre o público e o privado está na ordem do dia para os governos
petistas. 19

Vale destacar, que este programa se trata de mais uma das


expressões do “concubinato público-privado” (PINTO, 2004, p. 751). Um
desígnio não esclarecido é o de acatar à sugestão do BM de que o Estado
deve proporcionar estímulos financeiros a esses estabelecimentos, pois
isso representa “*...+ condições de igualdade para todas as instituições de
ensino superior, sejam elas públicas ou privadas”. E constituir um
“ambiente positivo” para os estabelecimentos privados de educação
superior (BANCO MUNDIAL, 1999, p. 44).
Fundado pela Lei nº 10.861/2004, com ênfase de orientar o
processo de avaliação do ensino superior e estabelecer as normas para
autorização de instituições de educação superior e de cursos, o SINAES
corroborar o papel do Estado enquanto regulador do sistema. Conquanto
seu escopo afirmado seja a regulamentação do âmbito educacional, seu
alvo ocultado é ajustar o ensino superior brasileiro aos imperativos das
avaliações introduzidas nos documentos originados dos organismos
internacionais, de forte caráter quantitativo, competitivo e mercantil.
Possivelmente um indutor da ampliação da qualidade de cursos e
fiscalizador de estabelecimentos privados, o SINAES serviria, de fato, para
obstar as IPES a se adaptarem aos paradigmas de formação que estão
sendo inseridos.
Exposta enquanto uma fonte de recebimento de recursos
diferenciados, a Lei nº 10.973/2004 de Inovação Tecnológica (LIT) acarreta
um incentivo à constituição de nichos beneficiados que ganham
investimentos para seus grupos, porém não para a instituição de ensino
superior, que 20

[...] cede espaço, laboratórios, equipamentos (o


investimento mais oneroso). Em uma conjuntura de
desregulamentação dos direitos trabalhistas e de
contenção salarial, para cientistas das áreas
tecnológicas, sobretudo, a Lei atrai pelo seu apelo
financeiro (renda extra) e ideológico, na medida em
que converte o docente em “empreendedor” e
“empresário” cujo capital é, diga-se de passagem, o
patrimônio público. Além disso, são previsíveis as
consequências para as áreas de pesquisa básica e das
ciências sociais e humanas – que são atrativas apenas
quando rebaixadas ao patamar da produção
meramente ideológica. Trata-se, portanto, de mais
uma medida que institucionaliza o controle do
mercado sobre a pesquisa científica, isto é, privatiza a
pesquisa universitária. (TRÓPIA, 2009, p. 5).

As Parcerias Público-Privadas (PPP’s) foram instituídas pela Lei nº


11.079/2004, que “institui normas gerais para licitação e contratação de
parceria público-privada no âmbito da administração pública” (BRASIL,
2004).
As IES privadas que possuem fins mercantis e as IPES passam a
integrar apenas um sistema e precisarão possuir o mesmo direito de
auferir os investimentos do Estado, desde que acatem as condições do
sistema de avaliação e que possuam compromisso social.

O “Pacto da educação para o desenvolvimento


inclusivo” (Relatório do GTI), ao prever editais para
aquisição de vagas indistintamente para as 21
universidades públicas e privadas, operacionaliza esse
propósito. Mais amplamente, a encomenda de vagas
“públicas” nas instituições privadas, já efetivada pela
MP 213, é um passo incomensurável no apagamento
da fronteira entre o público e o privado. Com as PPPs,
existirá um único sistema indiferenciado e, “dada a
maior eficiência do setor privado”, conforme
reconhece a Exposição de Motivos do mencionado PL,
logo o fornecimento “público”, por meio das privadas,
alcançará uma proporção tal que tornará as matrículas
das universidades públicas minoritárias também
dentro do que seria, outrora, a esfera pública, agora
redimensionada como pública não-estatal. O
secretário Haddad é direto quanto ao lugar secundário
das públicas: “Da mesma forma que, se houver espaço
orçamentário, nós temos que ampliar as vagas das
universidades públicas” (HASHIZUME apud LEHER
2004).

Na gestão de Fernando Haddad no MEC, em 2005 o governo Lula da Silva


assinou o decreto nº 5.622/2005, regulamentando o oferecimento da
educação à distância no país. Tal decreto, em parceria com a Lei das PPP,
concretiza a liberalização do mercado educacional do Brasil ao capital
internacional. Desse modo, o governo mais uma vez se adiantou à
“Reforma da Educação Superior”, sem a apreciação minuciosa
parlamentar e sem discutir com a comunidade acadêmica.
Com isso, as politicas mencionadas neste trabalho possuem um
caráter privatista, ao passo em que sistematizou-se ações direcionadas à
transmissão de recursos públicos para as IES privadas. No limite, podemos
evidenciar que as políticas de educação superior apregoadas no primeiro
mandato do governo Lula da Silva foram direcionadas para a consolidação 22

do processo de expansão privado-mercantil do ensino superior.


Com as manifestações das camadas populares tendo como pauta a
reivindicação por educação de qualidade, por conta das resistências e
críticas recebidas no decorrer do primeiro mandato de Lula da Silva,
doravante 2007 algumas políticas direcionadas à educação superior
pública, em especial no que diz respeito às universidades federais foram
implementadas (TRÓPIA, 2012).
O Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais (Reuni) foi fundado pelo Decreto n. 6.096/2007, e
se trata de uma das medidas que constituem o Plano de Desenvolvimento
da Educação (PDE) (BRASIL, 2007). De acordo com o sítio3 oficial do Reuni,
“As ações do programa contemplam o aumento de vagas nos cursos de
graduação, a ampliação da oferta de cursos noturnos, a promoção de
inovações pedagógicas e o combate à evasão, entre outras metas que têm
o propósito de diminuir as desigualdades sociais no país”. Uma das
determinações mais nítido desta política é a constituição de novas
universidades, bem como de novos campi. Em sua totalidade criou-se, no

3
Disponível em: <http://reuni.mec.gov.br>. Acesso em: 19 fev. 2016.
período de 2003-2006, oito IFES – que resultou em um total de 53 em
2006, ao passo que em 2003 se tratavam de 45 unidades.
De acordo com Trópia, no segundo mandato, o governo Lula

[...] intensificou o processo de mudança no ensino 23


superior, consagrando a visão mercantil, utilitarista e
regressiva. Mercantil, porque consagrava a concepção
segundo a qual educação seria um serviço; utilitarista,
pois significava um retrocesso, em termos científicos e
culturais, para a educação e a cultura brasileira –
aumentando a dependência cultural e científica do
país, relativamente aos países centrais. (2012, p. 369).

Com o lançamento do PDE, a constituição do Reuni, os projetos da


Universidade Nova, da Universidade Aberta e, por conseguinte, a
realização do Banco de Professores-equivalente, consolidam um
aglomerado de ações, às quais seus objetivos, se tratam de ampliar a
oferta da educação pública – potencializando a infraestrutura existente –
e ajustar o modelo de IPES e de formação universitária às condições do
mercado (otimização de recursos e eficiência) e um novo entendimento
de acordo com o parâmetro de universidade, calcado na indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão, seria caro, estaria na falência e
necessitava ser diversificado 4.

4
O Banco Mundial desde 1994 incentivava a diversificação da educação superior, pois criticava o
modelo de universidade de pesquisa que era considerada inadequada às necessidades e recursos dos
países mais pobres. Incentivava instituições de ensino e cursos superiores de curta duração. O
documento do Banco Mundial de 1999, por sua vez, além de também destacar a necessidade de
diversificação das instituições, defende que o sistema de educação superior dos países periféricos deve
contar com poucas universidades de pesquisa, seguidas por universidades de formação profissional de
quatro anos, institutos isolados e centros vocacionais e/ou de formação técnica com duração de dois
anos.
No que concerne o governo da presidenta Dilma Rousseff, este
instituiu o Plano Nacional de Educação (2011-2020), constituído por metas
e estratégias que levam as políticas de privatização e ampliação de
estabelecimentos de educação superior publicas, é simbólico a
centralidade da EaD no contexto da política educacional contemporânea e 24

de sua aparência como disposição do ensino superior do Brasil. Essa


disposição possui enquanto sustentáculo a concepção de educação
enquanto bem público, o que não representa ser estatal; a transmissão de
investimentos públicos para o setor privado; e a massificação em alta
escala do ensino no grau superior.
Em seu artigo 2º, Inciso VIII; Art 5º, Parágrafo 1º, Inciso III; e Art 5º,
Parágrafo 3º é citado o direcionamento de recursos públicos para a
educação, o que é diverso de direcionamento de recursos públicos para a
educação pública, estatal. Ainda, o parágrafo 4º do art 5º é o decorrente
dessa compreensão, ao alegar que a aplicação de recursos públicos em
educação envolve os recursos públicos investidos

[...] nos programas de expansão da educação


profissional e superior, inclusive na forma de incentivo
e isenção fiscal, as bolsas de estudos concedidas no
Brasil e no exterior, os subsídios concedidos
em programas de financiamento estudantil e o
financiamento de creches, pré-escolas e de educação
especial na forma do art. 213 da Constituição Federal.
(BRASIL, 2014, grifos nossos).

Isso confirma a política de privatização da educação materializando


a prática de transmissão de verbas públicas ao setor privado através do
ProUni e do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), representando
uma percussão de morte ao combate dos educadores, bem como das
entidades empenhados com a educação pública que requerem que os
recursos públicos sejam direcionados apenas para o ensino público e
dissolvendo de forma ardilosa a fronteira entre público e privado. 25

A transmissão de investimento público para os empresários da


educação também será ensejado através da estratégia 14.3 que procura
“expandir o financiamento estudantil por meio do Fies à pós-
graduação stricto sensu” (BRASIL, 2014). A estratégia 14.4 está em sintonia
buscando a ampliação do oferecimento de cursos de pós-
graduação stricto sensu por meio da utilização de “metodologias, recursos
e tecnologias de educação à distância” (BRASIL, 2014). A meta 12 está
calcada com a política do Reuni que teve seu encerramento em 2012,
todavia, no PNE é incorporado à meta 12, que diz respeito ao crescimento
da taxa de matrícula na educação superior. A estratégia 12.2 concerne ao
crescimento do oferecimento de vagas por intermédio da ampliação e
interiorização “da rede federal de educação superior, da Rede Federal de
Educação Profissional, Científica e Tecnológica e do sistema Universidade
Aberta do Brasil” (BRASIL, 2014, grifos nossos).
Consoante Lima (2014),

A expansão e interiorização da educação superior são


uma necessidade urgente num país como o Brasil,
com baixa taxa de jovens no ensino superior.
Entretanto, conseguir esse feito com recursos da EaD,
que já é responsável por 992.927 (14,7%) das
matrículas de graduação (sendo 177.924 públicas e
815.003 privadas), cujo número de polos no país é de
7.511 (sendo 1701 públicos e 5.810 privados), aponta
para a perspectiva da massificação educacional e não
para sua democratização. Conjugada a essa expansão,
está a ampliação do financiamento, no âmbito do FIES
e PROUNI, aos matriculados em cursos superiores
presenciais e a distância. No tocante ao PROUNI, 14% 26
dos bolsistas do Programa já são alunos de cursos a
distância, conforme dados do SISPROUNI, de 06 de
novembro de 2013. (p. 1 grifos da autora).

Considerações Finais
Consideramos que é possível denotar os nexos causais intrínsecos
envolvendo os caminhos dos governos PT com a economia, bem como a
educação superior. No cenário dos condicionantes atribuídos pelos
organismos multilaterais a educação deixa de ser um direito para ser um
serviço, isto é, uma mercadoria. O governo Lula da Silva deu continuidades
nas políticas econômicas do governo Cardoso, e por conseguinte
compreendeu a educação como possível setor no mercado, o que
acarretou em um grande processo de expansão e privatização do ensino
superior no cenário da reforma universitária.
A ampliação acelerada da educação superior privada brasileira se
realiza doravante o discurso despótico de que o mercado se trata de um
excelente empreendedor e que a privatização deve adotada em sua
totalidade. A expansão em alta escala do ensino superior nos governos PT
possui enquanto um de seus aparatos cruciais para os próximos anos as
metas e estratégias que compõem o PNE (2011-2020). Tal desempenho é
resultado de um aglomerado de elementos, como: nova estrutura legal
que regulamenta e fomenta os estímulos financeiros transferidos para as
empresas educacionais.
Sendo assim, parece-nos que a educação passa por um processo de
devir, transformando-se em um grande “negócio” a ser comercializado no
interior da lógica do mercado capitalista e os estudantes se tornam em 27

clientes-consumidores, pleiteados por estabelecimentos privados de


educação superior que reproduzem relações intrínsecas ao metabolismo
social do capital, por intermédio de práticas instrumentais e utilitaristas,
afastando-se cada vez mais da reflexão crítica e da educação como
instrumento que possibilite ações emancipatórias.

Referências
ALVES, G. Do “novo sindicalismo” à “concertação social”: ascensão (e
crise) do sindicalismo no Brasil (1978-1998). Revista de Sociologia Política,
nº 15. Curitiba, 2000.
ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In. SADER, E; GENTILI, P. (org).
Pós-neoliberalismo. As políticas sociais e o Estado democrático. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1995.
BANCO MUNDIAL. La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la
experiencia. Washington, 1995.
____________. Documento estratégico do Banco Mundial: a educação
superior na América Latina e no Caribe. 1999.
BRASIL, Presidência da República. Decreto nº 11.079, de 30 de dezembro
de 2004. Disponível em:
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2004/lei/l11079.htm>. Acessado em 27 de dez. 2014.
________. Decreto n° 6.096, de 24 de abril de 2007. Institui o Programa de
Apoio a Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI.
Disponível em: 28

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2007/decreto/d6096.htm> Acesso em: 4 de nov. 2014.
CHAUÍ, M. Escritos sobre a Universidade. São Paulo: UNESP, 2001.
COELHO, E. Uma esquerda para o capital: crise do marxismo e mudanças
nos projetos políticos dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). Tese de
doutorado. Niterói: PPGH/UFF, 2005.
GARCIA, C. Partido dos Trabalhadores: da ruptura com a lógica da
diferença à sustentação da ordem. Tese de doutorado. Niterói:
PPGH/UFF, 2008.
HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
IASI, M. L. As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a
negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
LEHER, R. A problemática da universidade 25 anos após a crise da dívida.
Universidade e Sociedade (Brasília), v. 39, p. 9-15, 2007.
_________. Para silenciar os campi. Educação & Sociedade, São Paulo,
Campinas, v. 25, n.88, p. 867-892, 2004.
LIMA, K. R. R. A educação a distância no Brasil em tempos de
contrarreformas: expansão, lógica discursiva e centralidade no Plano
Nacional de Educação (2011-2020). Lecturas Educación Física y Deportes
(Buenos Aires), v. 199, p. 1, 2014.
LIMA, K. R. S. Organismos internacionais: o capital em busca de novos
campos de exploração. In: NEVES, M. L. W. O empresariamento da
educação. Novos contornos do ensino superior no Brasil dos anos 1990.
SP: Xamã, 2002.
______________. Governo Lula - neoliberalismo requentado e 29

requintado. Elementos políticos da reforma da educação superior


brasileira. Universidade e Sociedade (Brasília), Brasília, v. 32, p. 59-68,
2004.
MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. 2ª ed. São Paulo,
Expressão Popular, 2008.
OTRANTO, C. R. Os desafios da autonomia universitária. In: SOUZA, D. B.;
GAMA, Z. J. (Org.). Pesquisador ou Professor? O processo de
reestruturação dos cursos de pós-graduação em educação no Rio de
Janeiro. 1ed.Rio de Janeiro: Quartet, 2002, v. , p. 49-64.
____________. Autonomia Universitária: dádiva legal ou construção
coletiva? Advir (ASDUERJ), v. 20, p. 31-35, 2006.
____________. O ensino superior agronômico brasileiro no início do
século XX e a importância da Escola Superior de Agricultura e Medicina
Veterinária. Agronomia (UFRRJ), Seropédica - RJ, v. 38, n.01, p. 05-10,
2004.
PAULO NETTO, J. Introdução do estudo do método em Marx. 1ª Ed. São
Paulo: Expressão Popular, 2011.
PINHEIRO, L. F. et al. A democracia na América Latina. Uma análise sobre
as conquistas e os desafios às lutas sociais. In. PINHEIRO, L. F. (org).
Movimentos sociais, políticas sociais e questão social. Elementos para
uma análise da realidade no Brasil e América Latina. Rio de Janeiro:
Gramma, 2011.
PINTO, J. M. R. O acesso à educação superior no Brasil. Educação e
Sociedade, Campinas, v. 25, n.88, p. 727-756, 2004.
SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL. Demonstrativo dos gastos 30

governamentais indiretos de natureza tributária – 2014 (Gastos


Tributários). Disponível em:

<https://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/gastos-
tributarios/previsoes-ploa/arquivo s-e-imagens/dgt-2014>. Acesso em: 10
de jun. 2015.

TRÓPIA, P. V. O ensino superior em disputa: apoio e alianças de classe à


política para o ensino superior no governo Lula. Revista Iberoamericana
de Educación, v. 49, p. 1, 2009.
____________. A natureza de classe da política educacional para o ensino
superior nos governos Lula (2003-2010). In: GALVÃO, A.; GALASTRI, L.;
SOUZA, J.; AMORIN, E. (Org.). Capitalismo: crises e resistências. São
Paulo: Outras Expressão, 2012, v. 1, 508p.
VIEIRA, R. As transformações do Partido dos Trabalhadores e o governo
Lula como elementos de manutenção da hegemonia burguesa. Textos e
Debates (UFRR), v. 19, p. 47-61, 2012.
GUERRA DO CONTESTADO: UMA ANÁLISE DA VILA DE
CANOINHAS (1914-1917)1
Soeli Regina Lima 2
Eloy Tonon 3
1
Resumo:
Este trabalho teve como foco de estudo a vila de Canoinhas-SC (1912-1917), buscando
compreender a influência dos ataques sofridos, da proximidade dos redutos e do
processo de rendição, ocorridos durante a Guerra do Contestado, no desenvolvimento
local. O trabalho teve como fontes primárias: Livro de Tombo da Paróquia Santa Cruz
de Canoinhas, relatórios militares, correspondências do governo. Constatou-se que as
estratégias de luta e resistência vividas por sertanejos rebelados e por moradores
locais, somadas às medidas governamentais e militares, adotadas no processo de
rendição, deixaram suas marcas nos aspectos de desenvolvimento econômico e
relações socioculturais locais.
Palavras-chave: ataque sertanejo; vila de Canoinhas; rendição.

ABSTRACT
The aim of this work was the village of Canoinhas-SC (1912-1917), trying to understand
the influence from the suffered attacks within the proximities of stronghold and the
surrender process, occurred during the Contestado War, over the local development.
As primary sources, the work had: Book of Tombo from Santa Cruz de Canoinhas
Parish, military reports, government correspondences. It was found the fight and
resistance strategies experienced by the rebel countrymen and local dwellers, added
to the governmental and military measurements adopted in the surrender process, left
their stain on aspects of economical development and the local socio-cultural
relations.
Key-words: countrymen attack; Canoinhas village; surrender.

1
Projeto de pesquisa financiado pela FAPESC.
2
Mestre em Geografia (UFPR); Especialista em História (FAFIUV). Docente da UnC – Universidade do
Contestado, Campus Porto União, SC. soelihistoria@gmail.com
3
Doutor em Historia Social -UFF; Mestre em História-UNESP; Docente da UNESPAR- Campus União da
Vitória-PR. eloy_tonon@yahoo.com.br
1. A modernidade na região de Contestado.

A modernidade se fez presente na região do Contestado via capital


transnacional, com a Brazil Rawail Company4, assumindo a construção da
estrada de ferro São Paulo-Rio Grande e suas subsidiárias a Brazil 2

Development and Colonization Company,5 povoando as terras devolutas


recebidas na construção da estrada de ferro e a Southem Brazil Lumber
and Colonization Company 6, instalando serrarias.
Entre tantas transformações a sociedade se divide entre aqueles
que detêm o poder e estão inseridos no processo de desenvolvimento
amparados ora pela lei, ora pela força paramilitar7, que imperava, no
início do século XX, e aqueles que lutam por manter sua tradição de
economia de subsistência, tentando sobreviver diante do avanço
capitalista.
Aos poucos o jogo de interesses assume maiores proporções e o
que eram apenas ideais passaram a ser objetivos de luta armada. Para o
grande proprietário, imigrantes e forças do governo trazer o sertanejo
rebelado à nova ordem estabelecida de modernidade era uma forma de
garantir o desenvolvimento da região. Já para os espoliados do sistema,
4
Fundada pelo empreendedor norte-americano Percival, em 12/11/1906, nos Estados Unidos. Sobre os
investimentos ver: GAULD, Charles. FARQUHAR – o último titã - um empreendedor americano na
América Latina. São Paulo: Editora de Cultura, 2006.
5
Ver: VALENTINI, Delmir José em Atividades da Brazil Railway Company no Sul do Brasil: a instalação
da Lumber e a guerra na região do Contestado (1906-1916). Tese (Doutorado em História) – PUC do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
6
Ver: LIMA, Soeli Regina. Southem Brazil Lumber and Colonization Company: da produção do espaço
urbano às relações de trabalho. IN: TONON, Eloy (Org.) Palmas; Kaigangue, 2012.
7
De acordo com informações do relatório de Setembrino de Carvalho (1916), cerca de mil vaqueanos
atuaram no conflito nos anos de 1914 e 1915. O Capitão Potiguara, em seu relatório, registra no ataque
ao reduto de Santa Maria, a presença de 100 vaqueanos comandados por Leocádio Pacheco, Pedro
Ruivo, Pedro Pacheco e Bonifácio Massanera.
aqueles que perderam seu espaço, sua terras a alternativa estava em lutar
por seus direitos.
Neste cenário inicia-se a Guerra do Contestado. Diante de quatro
longos anos o movimento sertanejo passou por fases distintas de
organização o que garantiu diferentes frentes de atuação. A princípio, o 3

movimento tinha cunho místico-religioso com José Maria e na figura dos


videntes. As notícias do sistema em que viviam de vida coletiva, comunal,
com divisão de bens e sem grandes necessidades atraiam inúmeros
sertanejos para os redutos. Eram compadres, vizinhos, parentes que se
juntavam em prol dos seus ideais de vida.
Com o crescimento do movimento e dos ataques militares os
sertanejos rebelados atuam no sentido de defesa dos redutos e, ao
mesmo tempo, de organização para sobrevivência coletiva, onde foram se
elegendo novos líderes com características mais aguerridas. Os objetivos
iniciais estavam desvirtuados. Os sertanejos passaram para a fase do
banditismo social compreendido como “*...+ protesto camponês contra a
opressão e a pobreza: um grito de vingança contra os ricos e opressores,
um vago sonho de conseguir impor-lhes alguma forma de controle, uma
reparação de injustiças sociais”. (HOBSBAWM, 2010, p.13).

Os alvos dos ataques eram os principais núcleos


‘peludos’ do planalto: as vilas de Canoinhas, Itaiópolis,
Papanduva, Vila Nova do Timbó e Curitibanos; as
estações da Estrada de Ferro São Paulo- Rio Grande,
as serrarias da Brazil Lumber and Colonization e, no
ápice do processo, a cidade de Lages, em que houve
uma tentativa de tomada, por ser o principal reduto
do poder dos coronéis em Santa Catarina. (MACHADO,
2004, p. 261).

Nos redutos muitos sertanejos se mantêm fiéis ao movimento


acreditando estar próximo o final das agruras da vida. Os boatos correm 4

na região, tanto nomes de sertanejos rebelados como de vaqueanos


cruzam distancias criando um clima de insatisfação e desejo de vingança.
O terror estava instaurado nos sertões do Contestado em plena fase de
implantação da modernidade.
Podemos distinguir de acordo com Giddens (1991) três fontes
dominantes do dinamismo da modernidade, vinculadas entre si:
separação entre tempo e espaço; desenvolvimento de mecanismos de
desencaixe e apropriação reflexiva do conhecimento. Situemos estas
fontes na região do Contestado.
A primeira, no que diz respeito à separação entre tempo e espaço,
esteve representada no rompimento de laços com a terra, com a migração
local, ora do sertanejo menos favorecido para a formação dos redutos, ora
da elite local em busca de segurança. Eles se veem obrigados a abandonar
o local dos seus entes queridos, vivos e mesmos mortos, rompendo com
uma tradição de garantir a continuidade para seus herdeiros. Na questão
temporal, para aqueles que viviam embrenhados na mata das araucárias
era inconcebível realizar, em tão pouco tempo, distâncias até então
percorridas no lombo de mulas e cavalos. Quanto ao desenvolvimento de
mecanismos de desencaixe, poderíamos nos reportar às alterações de
atividades sociais retiradas do contexto em que estavam inseridos. Como
exemplo, podemos citar os novos padrões sociais adotados pela elite
coronelista, alterando o padrão de consumo, inserindo novos objetos e
modismos na região, criando, assim, certo distanciamento entre
categorias sociais num curto espaço de tempo. Dito de outra forma, as
desigualdades sociais e econômicas tornaram-se mais visíveis aos olhos do 5

sertanejo. Já no terceiro item que aponta a apropriação reflexiva do


conhecimento, constatamos que ela fez emergir a produção sistemática
de novos modos de relacionamentos sociais e de trabalho, deslocando
padrões até então definidos como modelo de referência cultural. É a
modernidade excluindo de forma rápida a força da tradição, dos costumes
cotidianos do sertanejo.
O sertanejo se vê discriminado, desapontado comportamento
daqueles que aderem à modernidade e passam a ser sinônimo de risco e
perigo. Procuram, então, nos redutos, no movimento do Contestado,
novos modelos, com padrões de vida que lhes dê sustentabilidade nas
relações sociais.

2 A vila de Canoinhas como epicentro na Guerra do Contestado

Canoinhas é um município do planalto norte Catarinense. De acordo


com o IBGE (2014) possui uma área de 1.140,394 km 2 e população de
54.079 habitantes. Terra habitada por índios xokleng em seus primórdios,
teve a incursão do tropeirismo e iniciou sua colonização quando em 1888,
Francisco de Paula Pereira, vindo de São Bento do Sul, instalou-se à beira
do rio Canoinhas.
Em 1902, foi desmembrado do município de Curitibanos o Distrito
de Santa Cruz de Canoinhas, sendo elevado em 1911, pela Lei n.º 907, à
categoria de município, com a denominação de Santa Cruz de Canoinhas. 8
A Comarca foi desmembrada de Curitibanos em 1913, pertencendo à 3.ª
Divisão Judiciária do Estado de Santa Catarina. 6

A Guerra do Contestado (1912-1916) teve como marco inicial a


batalha do Irani e abrangeu cerca de 25.000 Km² a 48.000 Km²,
envolvendo um efetivo militar de 8.000 homens, somados à participação
de 1.000 vaqueanos. Os sertanejos envolvidos no conflito chegaram a
somar em torno de 10.000 sertanejos, distribuídos em redutos, durante os
quatro anos de guerra.
Notícias do ajuntamento dos sertanejos em redutos, como
Caraguatá, Taquaruçu, Santa Maria, circulavam pelo interior canoinhense,
que na época abrangia os atuais municípios de Major Vieira (Colônia
Vieira), Irineópolis (Valões), Bela Vista do Toldo.
A partir de 1914, o movimento do Contestado, estende sua área de
atuação, elegendo-se novos líderes com intuito de expandir o movimento,
agregando novos membros, promovendo “tocaias” nas estradas, ataques
relâmpagos aos vilarejos e fazendas. Neste cenário a vila de Canoinhas
passou a ser o epicentro do conflito armado, com a presença militar, dos
piquetes de vaqueanos, dos ataques de sertanejos rebelados e a
proximidade dos redutos.

8
Em 1923, pela Lei n.º 1.424, a vila de Santa Cruz de Canoinhas passou à categoria de cidade, sob a
denominação de Ouro Verde. O Decreto n.º 1, de 27 de outubro de 1930, devolveu ao município o seu
primeiro topônimo de Canoinhas.
Mapa -01- Localização dos principais redutos

Fonte: Redação infográfica, Gazeta do Povo.

Sobre os novos redutos, Machado (2004: 256), “Chama a atenção o


fato de as lideranças do norte não terem passado pelo processo de
reelaboração mística do grupo original de Taquaruçu- Perdizes”. Os líderes
tiveram motivos diferenciados, para aderir ao movimento.
Antonio Tavares de Souza Junior tinha como justificativa para o
ingresso no movimento à questão de limites entre o estado de SC e PR.
Defendia o cumprimento da sentença de limites exarada através do
Supremo Tribunal Federal favorável à Santa Catarina. “Era membro do
Partido Republicano, tinha participação na fundação do município de
Canoinhas, onde era rábula, professor e suplente de promotor público.
“Poeta, beletrista, aventureiro, boêmio e jogador”. (DERENGOSKI, 1986,
p.72). Em 1913, ele era chefe escolar em Canoinhas. Na época o cargo era
de nomeação do governo do estado. De acordo com Machado (2004),
Major Vieira, superintendente municipal, pressionava o governador para
demiti-lo. O que aconteceu em 2 de julho de 1914, ou seja, dias antes do
primeiro ataque à vila de Canoinhas. 8

Em 15/09/1914,
O comerciante Antônio Tavares de Souza Junior, de
Canoinhas, por telegrama informou ao governador
Vidal José de Oliveira Ramos Junior, que em
companhia dos fazendeiros Aleixo Gonçalves de Lima
e Bonifácio José dos Santos, o ´Bonifácio Papudo´,
havia destruído postos fiscais instalados pelo Paraná
na região do Contestado. Essa data efetivamente
marcou a adesão de Tavares e seus companheiros ao
conflito, lutando ao lado dos revoltosos. (TOKARSKI,
s.d., p.169)

Sob sua ordem formou-se um novo reduto. “Tavares fixou seu


reduto entre Itaiópolis e Papanduva, na nascente do rio Itajaí do Norte, no
meio da saliência sob jurisdição provisória paranaense em que se iniciava
em Rio Negro e Três Barras e seguia em direção ao sul”. (MACHADO, 2004,
p.254).
Outro líder que atuou nas proximidades de Canoinhas foi Aleixo
Gonçalves de Lima. Veterano da campanha federalista era conhecido e
respeitado pela população do Norte catarinense por lutar contra as
barreiras fiscais do Paraná. Seu maior feito foi registrado numa
manifestação no ano de 1909, no trajeto entre Canoinhas e São Bento.
Inimigo ferrenho da família Pacheco e da Southem Brazil Lumber and
Colonization Company, devido à questão de posse de terras 9 Chegou a
liderar em torno de 300 homens nas proximidades de Canoinhas. “Porém
o reduto mais forte de Aleixo era a antiga colônia Vieira, onde a maior
parte das famílias de seus combatentes se abrigava”. (MACHADO, 2004, p.
253). Não era um homem ligado à questão religiosa o que diferia dos 9

principais lideres do movimento, como Elias de Moraes e Adeodato.


“Aleixo sempre discordou dos dois por não aceitar a fixação dos jagunços
em redutos. Era um partidário da movimentação constantes, da
camuflagem e da surpresa.” (DERENGOSKI, 1986, p.72-73). Acabou sendo
assassinado por Adeodato.10
Bonifácio José dos Santos, outro líder, era conhecido como
Bonifácio Papudo. O apelido advém de seu mal de bócio, popularmente
denominado como “papo”. Usava barba longa e um pequeno poncho para
cobrir o pescoço. No inicio da Guerra do Contestado, era suplente de
delegado de policia de Canoinhas. “Era homem de confiança de Vieira e
reunia mais de 200 homens armados, na região do rio Paciência, para
defender o município de incursões rebeldes e das constantes investidas
paranaenses” (MACHADO, 2004, p. 253). Passou para o lado rebelde
9
No Livro nº 1, de Registro de Títulos do Paraná, de 26/11/1924, é registrada uma área da Lumber de
21.045.800m², denominada de “Invernada do Fundo ou Poço Grande”, de título expedido pelo governo
do Paraná de 26/07/1900, pertencente a Aleixo Gonçalves de Lima. O registro da área denomina
“Canoinhas Pardos”, de 20/12/1924 de Fermino Pacheco dos Santos apresenta nas suas delimitações a
Oeste, a propriedade de terras de Aleixo Gonçalves de Lima. O registro da área denominada “Arroio
Fundo” de 19/01/1925 de José Guebert, de concessão de Joaquim Gonçalves de Lima, cita em suas
delimitações a Leste terras de Aleixo Gonçalves de Lima, o que comprova propriedades ainda existentes
no pós-guerra do Contestado.
10
“Segundo o testemunho de Alfredo de Lemos (in Memoriam) Adeodato utilizou como pretexto o fato
de Aleixo ter se afastado por uns dias do reduto de Santa Maria, doente que estava para executá-lo. Na
volta, mandou o velho capitão sair de forma, dar dois passos à frente e descarregou nele o seu revólver.
Alguns homens de Aleixo tentaram reagir, mas já acostumados à violência, se resignaram, comentando:
- Que há de se fazer? Hoje chegou a vez do nosso capitão [...]”. (DERENGOSKI, 1986, p.110)
levando consigo grande número de seguidores, peões, compadres, amigos
e afilhados. “Consta que Aleixo e Tavares convenceram Papudo a aderir ao
movimento rebelde, que, em Canoinhas, significava pugnar pela queda do
Major Vieira e pela defesa da aplicação da sentença de limites em favor do
estado de Santa Catarina”. (MACHADO, 2004. p. 253) “Bonifácio Papudo 10

foi nomeado suplente de delegado de polícia de Canoinhas em 23 de


janeiro de 1914 e exonerado deste posto pelo governador somente em 27
de julho de 1914, 13 dias depois de realizar o primeiro ataque à vila,
acompanhado dos demais rebeldes”. (MACHADO, 2004, p.252).
A realidade presente dos moradores locais esteve marcada pelos
acontecimentos nos anos de 1914 a 1917, ou seja, dos constantes ataques
a vila, das atrocidades cometidas tanto por sertanejos rebelados, como
pelos vaqueanos contratados dos grandes coronéis, como pelo dramático
processo de rendição ocorrido na região, como veremos a seguir.

2.1 O drama dos ataques sertanejos na região de Canoinhas

O primeiro ataque a vila aconteceu na noite de 14 para 15 de julho


de 1914. Nos seus ataques os sertanejos tinham por hábito marcar a
presença com gritos de vivas a São Sebastião, a São João Maria e morte
aos “peludos”. Nos registros do Livro de Tombo da Paróquia Santa Cruz de
Canoinhas o ataque é assim relatado:
Estavam elles assim comandados ao norte por
Bonifacio dos Santos, vulgo Papudo e Ignacio de Lima,
do sul por Tobias Lourenço de Souza e Antonio
Tavares Junior, vulgo D. Juan da mão queimada, do
oeste por Joaquim Gonçalves de Lima, vulgo
Joaquinzinho. Calcula-se que o número de fanáticos
comandados pelos bandidos acima citados era de 500. 11
Estavam elles assim commandados: ao Norte por
Bonifacio dos Santos, vulgo Papudo, e Ignacio de Lima.
Ao Sul por Tobias Lourenço de Souza e Antonio
tavarez Junior, vulgo D. Juan da Mão Queimada; ao
Oeste por Joaquim Gonçalves de Lima, vulgo
Joaquinzinho. Calcula-se que o numero de fanáticos,
commandados pelos bandidos acima citados era de
500. Usavam facões e armas diversas. O tiroteio
cerrado durou três horas, sendo que as demais
descargas eram feitas com pequeno espaço de tempo.
As trincheiras mais perseguidas foram as que ficam
perto da Pharmacia do Sr Hasse (pois os fanáticos
estavam em redor da residência do Vigário),
guarnecida pelo Exército, e a da “Água Verde”,
guarnecida pela Polícia. As demais trincheiras também
pretendiam os fanáticos tomar, o que não
conseguiram. As forças quer do Exército, quer da
Polícia, bem como os civis estavam dispostos à lucta
de qualquer forma e com prazer podemos dizer, não
registramos uma só morte, nem ferimento da parte de
nossos defensores.
Os fanáticos tiveram algumas baixas e muitos
feridos. Duas carretas de propriedade do capitão
Bonifácio vieram para carregarem a munição do
Exército e da Polícia, que elles estavam convencidos
que tomariam. Entretanto foram encontradas as
mesmas próximo ao casebre do Papudo, varada por
balas e completamente ensanguentadas, concluindo-
se que em lugar de munição conduziram mortos e
feridos.
Após o combate também foram encontradas no
alto da igreja uma carabina comblain, manchada de
sangue, munição e muitas balas e capas deixadas
pelos terríveis bandidos, quando em debandada
completa.
Na noite de dezessete e manhã do dezoito
vieram novamente experimentar as trincheiras do 12
exercito e da Polícia, sendo novamente repelidos, com
fortes descargas de “Mauser” e “Comblain”. Os
fanáticos, segundo informações e rastros verificados
tem seus espiões nos arredores da Villa.
Na noite de dezenove, do alto do morro da igreja
foram feitos alguns disparos contra o Exercito, que
imediatamente respondeu com uma descarga.
O mesmo deu-se com a trincheira da “Água
Verde”, guarnecida pela polícia, que por sua vez se
manteve como devia. (LIVRO DE TOMBO, 1914, p.15)

Sobre a ação das autoridades locais, “O Major Vieira,


superintendente municipal, serviu-se de pequeno contingente do
Regimento de Segurança de Santa Catarina, uma unidade de soldados do
16º Batalhão de Infantaria do Exército, e de grande número de vaqueanos
civis para resistir à investida, que prosseguiu até o sol raiar”. (MACHADO,
2004, p. 252). Fernando Tokarski (sd, p.144) registra “... um dia após o
primeiro ataque efetivo à vila de Canoinhas, o juiz Mileto Tavares da
Cunha Barreto fugiu da vila. No dia seguinte, o promotor público Augusto
Lustosa Ferreira de Freitas, que assumira há 30 dias, também abandonou
o seu cargo”. No dia 17, “o prefeito de Canoinhas, Manoel Tomás Vieira,
fugiu após os dois primeiros ataques à vila” (TOKARSKI, s.d., p.145)
Diante dos acontecimentos a vila transforma-se numa praça de
guerra. Cresce o número de efetivo militar presente e a população civil
começa a abandonar as residências.
Além dos ataques a vila os sertanejos investiram na região próxima
a Canoinhas: 13

Revoltosos sob ordem do fazendeiro Aleixo Gonçalves


de Lima, realizaram um novo ataque a Três Barras. O
principal alvo dos atacantes foi a empresa norte-
americana ´Southern Brazil Lumber & Colonization
Company´. O ataque foi repelido e não teve maiores
consequências. Antes, os revoltosos saquearam na
localidade dos Pardos, a fazenda do coronel Benvindo
Pacheco dos Santos Lima. No mesmo dia, a vila de
Santa Cecília também foi atacada pelos revoltosos.
(TOKARSKI, s.d., p.192).

O comandante das forças estacionadas as margens do rio


Canoinhas, informou que no dia 21 de outubro foram atacados por frente
e retaguarda, calculados em torno de 300 homens, dois mortos e de oito a
dez que foram conduzidos por eles. Nenhum soldado foi ferido. Foram
recolhidas duas bandeiras e duas armas de fogo e dois facões.
(RELATÓRIO, 05/11/1914)
No mês de outubro de 1914, a fazenda Santa Leocádia, localizada
próximo da Lagoa, na margem esquerda do rio Iguaçu, de propriedade do
coronel Arthur de Paula e Souza, foi atacada pelos sertanejos.
Sobre o episódio:
Por várias vezes ela foi atacada por pequenos piquetes
durante o ano de 1914, que levaram muito gado dali.
Em um dos ataques, no mês de junho, conduzido por
Gregório de Lima, o filho do fazendeiro foi morto. A
fazenda passou a ser guarnecida, durante alguns
meses, por contingentes do Exército, mas acabou
abandonada pelo dono ante a crescente ação da
Irmandade. O coronel retirou-se para outra fazenda,
na margem norte do rio (ao todo, possuía mais de10
mil alqueires na região), mas no final de setembro a 14
Irmandade de São Sebastião lhe prepara uma espreita.
Em uma de suas passagens pela Santa Leocádia, para
visitar suas terras, foi executado. Seu corpo foi levado
para dentro da suntuosa casa da fazenda e queimado
junto com ela. (D´ANGELIS, 2011, p. 78-79).

O Alferes chefe de Policia Militar, interino, Antonio Marques de


Souza, comunicou que no dia 05/11/1914, Frei Rogério, em companhia de
um jovem, tentou apaziguar os fanáticos, sendo recebidos com tiros,
fazendo retirada. O episódio se deu nas proximidades da vila, a uns 2,5
Km. (RELATÓRIO, 05/01/1914)
No mês de novembro, os ataques se estendem pelo interior do
município, o combate acontece contra as forças militares presentes na
região. Pelas 02h30min, do dia 08/11/1914, foi o acampamento de
Salseiro atacado, do lado da estrada que vai aos Freitas, por grande
número de jagunços que se abrigavam nos matos. Foram rechaçados, pelo
12º Batalhão de Infantaria, sendo obrigados a bater em retirada.
Contaram com apoio dos vaqueanos do Pacheco, nas proximidades do rio
Canoinhas. (RELATÓRIO, 08/11/1914).
Em 08 de novembro foram incendiadas varias casas na Colônia
Polaca e também cortada a linha telegráfica que fazia ligações com
Salseiro, impossibilitando a comunicação. Neste mesmo dia a vila de
Canoinhas foi atacada. Haviam sido distribuídos 211 homens para
protegê-la. Ás 22h30min iniciou o tiroteio com morte de soldados e do
civil João Xavier. É registrada a dificuldade de identificar o número de
sertanejos envolvidos pela forma que estavam distribuídos nas colinas,
redutos. Pelo fogo usado acreditava-se que estivessem em torno de 300 15

homens e atacando por três posições diferentes. A cavalaria militar na vila


se estendia do bairro da Água Verde as ribanceiras do rio Canoinhas.
(RELATÓRIO, 08/11/1914).
Em 09/11/1914,
Sob o comando do tenente-coronel Manoel Onofre
Muniz Ribeiro, força militar de repressão composta
por 1.663 homens, acampada na localidade de
Salseiro, no interior de Canoinhas, foi atacada às
02h30min por revoltosos chefiados pelo fazendeiro
Aleixo Gonçalves de Lima. O combate durou 50
minutos. O pároco de União da Vitória, padre
franciscano Rogério Neuhaus, estava no
acampamento. Morreu o soldado Augusto Pereira do
Nascimento. Saíram feridos o tenente Artur da
Fonseca Araújo e os soldados Antônio Caetano José de
Santana, José Antônio dos Santos, José Isaías
Monteiro e Teodorico dos Santos, todos transportados
por barco até o distrito de Marcílio Dias e daí por trem
a Curitiba. Ainda em Salseiro, oficiais redigiram um
manifesto, sugerindo a volta da tropa a Canoinhas, ao
mesmo tempo em que desaconselhavam a
continuidade da expedição a Major Vieira e às
serrarias de Irineópolis e Timbó Grande. No mesmo
dia, sem maiores consequencias, a vila de Canoinhas
voltou a ser atacada. (TOKARSKI, s.d., p.227).
O terror estava espalhado entre os moradores locais. A expectativa
de novos ataques era visível pela presença militar, policial e civil armada.
No dia 10 de novembro são encaminhados 36 homens para a estação de
trem de Canoinhas e reforçada a proteção da estação de trem de Três
Barras, com 40 praças de policia. (RELATÓRIO, 10/11/1914). 16

Em 15/11/1914, acontece uma manifestação religiosa na praça


Lauro Muller, “o pároco de União da Vitória, Rogério Neuhaus, rezou
missa na praça Lauro Muller, em Canoinhas, sob acordes da banda de
música do 56º Batalhão de Caçadores. O ato foi assistido pelo tenente-
coronel Manoel Onofre Muniz Ribeiro, comandante da Coluna norte,
oficiais e soldados envolvidos no conflito”. (TOKARSKI, s.d., p. 231).
O perigo se fazia presente no caminho dos transeuntes para o
interior da vila. Na manhã do dia 17 de novembro foi encaminhada para a
estrada da Paciência 10 praças da cavalaria, 12 civis a cavalo e um pelotão
de engenharia a fim de desalojar os rebeldes da referida estrada. No
caminho foram avisados por Pedro Ruivo da presença inimiga que haviam
fugido, deixando abandonadas cuias cheias de farinha, torresmo.
Percorrido alguns quilômetros Pedro Ruivo avisa das proximidades do
reduto, do número elevadíssimo de “fanáticos”, que pressentindo a
presença deles, estavam preparando-se para combater. Os militares
assumem a posição de combate e inicia o tiroteio. “A princípio as
descargas foram sendo respondidas por fraca fuzilaria das nossas
avançadas e logo aguentava a proporção que outros escalões caiu se
empenhando no combate.[...] Já haviam decorridos quase duas horas de
cerrado e nutrido fogo quando o ataque assumiu o seu máximo de
intensidade generalizando-se as demais forças. Como aumentavam as
baixas, e pela posição dos “bandoleiros” 11 e numero superior de homens e
a pedido do 25º Batalhão que só dispunha de uma ambulância para
atender aos feridos, foi decidido fazer uma retirada, trazendo os 15
militares feridos para a vila de Canoinhas. Neste combate houve o registro 17

de seis militares mortos. (RELATÓRIO, 18/11/1914)


Entre tantos atos de violência, um chama a atenção pela sua
crueldade. No início de dezembro, mais especificamente no dia
02/12/1914,
Na localidade de Bugres, nas cercanias da vila de
Felipe Schimidt, no interior de Canoinhas, 17 homens
foram degolados , acusados de contrabandear armas
aos revoltosos. Atacados por 45 homens do fazendeiro
Manoel Fabríico Vieira, eles foram degolados à beira
do rio Iguaçu. O capitão-do-mato Domingos Correia e
Silva comandou a chacina. Entre os mortos, estavam o
comerciante Jose Lirio Santi, conhecido por “Beppi
Liro”, e os lavradores Rufino Teixeira e José Lira.
Apenas André da Silva conseguiu fugir a nado.
(TOKARSKI, s.d., p.248).

Em 18 de dezembro de 1914, foi instalado posto telefônico militar


na localidade de Paciência sob ordem do José Willian de Azevedo Falcão,
2º sargento telegrafista.
Nas vésperas do natal de 1914, Canoinhas ainda sofre a ofensiva
rebelde. No dia 23,

11
Expressão usada para referir-se aos sertanejos rebelados. (RELATÓRIO, 18/11/1914).
Revoltosos comandados pelo fazendeiro, Bonifácio
José dos Santos, o `Bonifácio Papudo´, e Inácio José de
Passos Lima, realizaram o penúltimo ataque efetivo à
cidade de Canoinhas. Foram rechaçados por soldados
do 16º Batalhão de Infantaria. O combate, que durou
40 minutos, foi desferido a partir da localidade de Boa
Vista, onde estava localizada a igreja matriz católica da 18
cidade. Os comandantes do ataque saíram feridos do
combate. (TOKARSKI, s.d., p. 263).

Passado o natal, no dia 26, foi instalado um acampamento na


Fazenda dos Pardos, com um efetivo de 29 homens do 2º Batalhão de
Engenharia e 2ª Companhia. Foi ainda construída uma balsa para
atravessar, animais, homens, comboio da coluna no rio Canoinhas. O rio,
estava com 33 metros de largura por 5 de profundidade. Este mesmo
grupo seguiu para Salseiro, no dia 27/12, onde assistiram o assalto que
ocorreu nas casas que ficavam próximas ao rio dos alemães. No dia 28/12
foi construído um entrincheiramento nos lugares atacados. Foi melhorada
a estrada que ligava Salseiro a Canoinhas. (RELATÓRIO, 31/11/1914).
Conhecedores da paisagem local, os vaqueanos participavam, ainda,
em apoio ao efetivo militar. No acampamento do rio dos Pardos, 13
homens, os melhores de Pedro Ruivo, auxiliaram na proteção deste ponto
importante onde se bifurcam as estradas de Timbozinho, Tamanduá, Serra
dos Vieiras, Vila Nova do Timbó e Poço Preto, ficando ainda este ponto
como base de estabelecimento de viveres e de munição de guerra. Ocorre
o embate do piquete de vaqueanos com os sertanejos rebelados, na raiz
da Serra da Casimira, a três quilômetros do acampamento. Ficando alguns
feridos, três animais e um praça. Os soldados saem em perseguição,
ficando Carneirinho e mais oito mortos na estrada que vai ao reduto de
Santo Antonio. O destacamento ficou acampado, em seguida, na Vila Nova
do Timbó, a margem esquerda do rio Bonito, por três dias para poder
atacar o reduto de Santo Antonio. Pelas 4 horas do dia 1º, seguiu uma
grande força de vaqueanos da gente do Cel. Fabrício, Pedro Ruivo e 19

Leocádia Pacheco, a fim de fazer o reconhecimento das guardas


avançadas do reduto de Santo Antonio. Retornaram às 17h após tiroteios
com os sertanejos rebelados, matando seis jagunços e trazendo um
vaqueano ferido do Cel. Fabrício. Em 02 de fevereiro seque uma coluna de
321 praças, mais 125 vaqueanos para as proximidades do reduto, com
noticias de terem ouvido grande número de jagunços cantando hinos
religiosos na proximidade de uma casa. No próximo dia partiram às 5h e
foram atacados pelos jagunços, ficando na retaguarda. Na entrada do
reduto, no vale do Timbozinho, ficaram seis jagunços mortos. Foi
necessário o uso de metralhadora militar no combate pela grande
ofensiva jagunça. Depois de 11 horas de contínuo combate, conseguiu-se
alcançar o faxinal do Timbozinho. No dia 04 adentram no reduto do
Tomazinho, que era constituído por três grandes praças situadas em três
belas colinas e defendidas por extraordinário número de trincheiras
constituídas de imbuias, pinheiros, etc. Ficando no meio da praça central
uma igreja com um grau de cruzeiro. (RELATÓRIO, 15/02/1915).
Depois de perto de 2 horas de trabalho de
arrasamento, em que tomou parte toda a columma,
inclusive officiaes deixamos o [...] completamente
queimados, o que foi calculado em perto de 500 casas
e 98 trincheiras, arrecadando-se ainda dentro das
casas 1520 cartuchos de guerra para fuzil “Mauser”,
821 para clavina Winchester, algumas pistolas de fogo
central, muitos facões, bandeiras por eles usadas,
instrumentos musicaes, viveres, machados, foices e
muitos outros artigos sem importância, alem de
grande quantidade de roupas de homens, mulheres e
crianças, tendo a soldadesca soldados e civis se 20
regalado com o grande numero de galinhas, patos,
marrecos, perus, gansos etc., que levaram para o
primeiro acampamento para la se banquetearem.
(RELATÓRIO, 15/02/1915).

No dia seguinte seguiram pela estrada do Tamanduá, seguindo pela


margem esquerda do rio Timbozinho até alcançarem a serra do Pinheiro,
onde encontraram forte resistência dos jagunços do reduto de Pinheiros.
Após trinta minutos de combate conseguiram entrar no reduto. Foram
incendiadas 97 casas, 01 igreja com um grande cruzeiro e 55 trincheiras.
Neste local foram mortos 15 jagunços; foram recolhidas 18 armas de
diversos tipos e grande número de facões e bandeiras. Depois de uma
hora de trabalho continuaram em direção ao Reichardt onde foram
encontradas mais 40 casas que foram também incendiadas. O trajeto foi
acompanhado por homens feridos. (RELATÓRIO, 15/02/1915).
A partir de 25/07/1915, evacuar a vila de Canoinhas parecia uma
alternativa para os moradores locais.
Durante cinco dias a população de Canoinhas voltou a
abandonar à vila, temerosa pelo recrudescimento dos
combates, depois da tentativa do ataque à área
urbana, realizada dias antes, através de um piquete
comandado por Inácio José dos Passos Lima.
Combates e mortes ocorridos no interior do município
também contribuíram para intranqüilizar os
moradores. A situação motivou uma conferência do
pároco Menandro Kamps com o governador Felipe
Schmidt. (TOKARSKI, s.d., p 151).

Em 15/07/1915, “Após um ano de paralisação dos serviços da


21
comarca de Canoinhas, foi realizada a primeira audiência, presidida pelo
Juiz Antônio Selistre de Campos. Pelo Ministério Público atuou o promotor
Mário Teixeira Carrilo”. (TOKARSKI, s.d.,143).
Em 17 de outubro foi arrasado o reduto de Pedra Branca. Assim foi
registrado o momento no Jornal o “Imparcial”:
No dia 18 de outubro corrente finalmente recebemos
a desejada notícia de que o reduto de Pedra Branca
havia sido ocupado por nossas forças com a derrota
dos “fanáticos”.
O reduto de Pedra Branca era o terror dos sertanejos
que só em ouvir falá-lo não se animavam a ir para as
suas roças, mas hoje felizmente esse perigoso antro
cahiu em poder de nossas forças.
No dia 17 deste mez, às 6 horas mais ou menos, o
commandante dos civis, Sr. Nicolau Fernandes, o
conhecido Lau, sahia do acampamento do Regimento
de Segurança deste Estado em direção a Pedra Branca
levando consigo 100 civis e 3 praças do mesmo
regimento. Ao chegarem próximo ao reducto
espalharam-se pelas imediações afim de elevarem a
effeito o assalto ao mesmo, verificando o Sr. Nicolau e
seus commandados existirem alli cerca de 600 pessoas
inclusive mulheres e crianças e uns 400 ranchos de
madeira, na maioria de pinheiro verde.
Avistados pelos fanáticos estabeleceu-se cerrado
tiroteio ou por intenderem abandonar o reducto ou
por não terem munição sahiram em debandada, numa
confusão extrordinária deixando 40 mortos.
Todos os ranchos foram revistados, encontrando-se
algum mantimento isto é, carne sem sal, restos de
fazendas, chumbos, balas, armas, grande quantidade
de arreios, algum dinheiro e duzentos e poucos
animaisrevista formam os ranchos incendiados
recolhendo-se a força à Reichardt onde tem o seu
acampamento do contingente do regimento de 22
Segurança, que ali se achava.
Existem muitos fanáticos feridos, tendo as nossas
forças feridos em combate 4 civis, inclusive o
comandante Sr. Nicolau Fernandes.
Todos os civis e praças do nosso regimento portaram-
se com calma e bravura durante o combate. [...]
Cahiram prisioneiros das forças muitos jagunços na
maioria mulheres e crianças que estão nesta Villa [...]
São essas as noticias que colhemos sobre a tomada do
célebre reducto de Pedra Branca. (JORNAL, O
IMPARCIAL, 2015)

Com a tomada dos redutos inicia-se a rendição sertaneja. O medo


da represália, a fome, a miséria, somado ao recomeçar de uma nova vida
acompanharam este processo.

2.3Do processo de rendição em Canoinhas

O processo de rendição foi sendo articulado nos momentos finais da


Guerra. A capitulação foi ocorrendo de forma gradativa, como resultado
da estratégia militar adotada para vencer o inimigo lentamente pela
inanição, impossibilitando o acesso dos víveres necessários.
O General Setembrino de Carvalho publica em jornais e distribui
pelo interior, em cartões impressos, um enérgico apelo, que era ao
mesmo tempo um convite à rendição e ameaça aos sertanejos envolvidos
na guerra.

Fazendo um appello aos habitantes da zona


conflagrada, que se acham em companhia dos 23
fanáticos, eu os convido a que se retirem, mesmo
armados, para os pontos onde houver forças, a cujos
commandantes devem apresentar-se. Ah! Lhes são
garantidos meios de subsistência até que o Governo
lhes de terras, das quaes se passarão títulos de
propriedade. A contar, porém, desta data em diante,
os que não o fizerem espontaneamente e forem
encontrados nos limites da acção da tropa, serão
considerados inimigos e assim tratados com todos os
rigores das leis da guerra. Quartel General das Forças
em Operações. 26 de setembro de1914- General
Setembrino de Carvalho. (CARVALHO, 1916, p.47).

Em janeiro de 1915, quando o governo iniciou forte ofensiva no


planalto Norte, várias lideranças renderam-se ao exército. Bonifácio
Papudo, Carneirinho, Alemãozinho e Inácio Lima apresentaram-se ao
tenente-coronel Onofre, comandante da coluna Norte, e ao general
Setembrino de Carvalho. (MACHADO, 2004, p.260).
Foram assinaram duas cartas conciliatórias, a pedido de Setembrino de
Carvalho, que as encaminhou para a liderança do movimento. Vejamos o
teor das respostas do líder Aleixo Gonçalves de Lima, do reduto de São
Sebastião, em 16 de janeiro de 1915, para Joaquim Gonçalves:

[...] mosca cassa-se com assucar e não com vinagre,


eu meos companheiro só podemos arrear as almas se
Deos e São Sebastião e São João Maria nos abandonar,
mais até agora está com nós, só os peludos que São de
satanaz e que jogão com pau de duas pontas mais
com nos não seda [...] (LIMA, 1915).

Para Henrique Wolland:


24
[...] Eu acredito muito no que o Sr. diz mais porco
para se matar primeiro trata-se bem para de pois se
matar dace milho e lavage e de pois de gordo mata-se
e conheço tudo isso e graças a Deus por cá tem muito
o que comer. Sou seo a deverçario em todo o
território. [...] (LIMA, 1915).

Como observamos na correspondência, Aleixo Gonçalves é tácito na


recusa à rendição, vai além, mostra o risco da oferta do governo. Para o
Alemãozinho, é contundente, usa o porco (come e vira o cocho),
reportando-se à traição do antigo companheiro de luta. Mostra o risco da
rendição e se declara adversário em qualquer espaço.
Quanto ao número de sertanejos capitulados, podemos ter uma noção,
conferindo registros militares:

Aos 383 prisioneiros do reducto Itajahy, sommavam-


se mais de mil e trezentas pessoas apresentadas em
Papanduva, S. João e Canoinhas, sem contar a gente
de Henrique Wolland (Allemãosinho), de Bonifacio
José dos Santos (Bonifacio Papudo), Estanislau
Schumann, Guilherme Helmich e Francisco José
Carneiro (Carneirinho), que chefiavam bandos
numerosos e se apresentavam com pequenos
intervallos, na Linha Norte, ao tenente-coronel
Onofre. (CARVALHO, 1916, p.89).
Queiroz (1966) registra sobre a rendição no mês de janeiro de 1915:

Neste mês processaram-se as rendições em massa em


várias localidades, particularmente na frente Norte.
Em Papanduva entregaram-se 300 revoltosos que não
suportavam mais as condições de guerra sertaneja. 25
Em Rio Negro apresentaram-se 65 pessoas que se
haviam internado no mato desde o início do
movimento. Só em Canoinhas sujeitaram-se nada
menos que 243 famílias. No município de Lages
depuseram armas 528 indivíduos, provenientes da
área do Serrito e de Campo Belo. Dentro de Campos
Novos, 40 jagunços puseram-se à mercê dos
vaqueanos. Ao todo, calculou-se que no decorrer do
mês, 3.000 antigos jagunços rojaram a fronte no pó.
(QUEIROZ, 1966, p.217).

Auras (1997) relata que Setembrino de Carvalho e seus soldados no


assalto ao reduto de Antônio Tavares, foram acompanhados de mais de
uma centena de vaqueanos, quando se aproximam do reduto sem serem
vistos, na véspera do dia marcado. Cerca de 400 caboclos de todas as
idades, conduzidos por Pedro Nepomuceno, apresentaram-se aos
comandantes do efetivo policial que atacaria o reduto.
Rodrigues (2008) sobre a rendição na Coluna Norte de Canoinhas,
em 1915, afirma que havia 275 homens listados, 638 crianças e apenas
175 mulheres, citando que entre os adultos uma grande parcela seria de
idosos para cuidar das crianças, não comprometendo os que
permaneciam em batalha nos redutos. No término da Guerra do
Contestado os vínculos familiares foram rompendo-se, ora com a morte,
ora com a transferência dos sertanejos para outras regiões.
A realidade dos sertanejos é assim descrita no Livro de Tombo da
Paróquia Santa Cruz de Canoinhas,p.24: “Homens, mulheres, crianças e
famílias em completos estágios de mendicidade, entravam nesta Villa
como uma tropa dispersa implorando perdão. Compaixão para esses
infelizes a quem a fatal destruição contagiou.” 26

A definição de Canoinhas e Rio Negro como local para remessa dos


sertanejos em rendição ou mesmo presos se deu pela dificuldade de
encaminhar para Lages ou Rio do Sul, como se observa no telegrama de
Felipe Schmidt para Setembrino de Carvalho, em 27 de março de 1915:
:
Agradeço comunicação Vossa Excia. ter representado
a essa cidade, grande assumpto seu telegrama acaba
estendendo-me inspetor povoamento acha
conveniente indivíduos fugitivos redutos sejam
enviados de [... ] pra Canoinhas ou Rio Negro visto
como vinda para Lages sou Rio do Sul compreende
longo trajeto exigindo numerosa escolta durante
muitos dias marcha. Todo caso V. Ex providenciará
como melhor achar comunicando sua resolução para
inspector mandar receber referidos indivíduos via
férrea que V E designar. Cord. Sauda. (SCHIMITD,
1915)

Queiroz (1966) trata da ação dos vaqueanos:

Na vila de Canoinhas, as prisões estavam superlotadas


e as circunstâncias eram diferentes: ‘Da cadeia de
Canoinhas eram retirados diariamente levas de
desgraçados que se tinham apresentado
voluntariamente, e entregues a Pedro Ruivo, um
celerado vaqueano promovido a herói. Pedro Ruivo
conduzia as vítimas para fora da vila e, na primeira
curva do caminho degolava-as. Os cadáveres ficavam
insepultos. Os porcos e os corvos tinham fome.
Afirma-se que somente Pedro Ruivo praticou nesses
dias mais de 100 assassínios. (QUEIROZ, 1966, p. 218).

27
Ainda sobre o tratamento dados aos sertanejos, Queiroz (1966,
p.218) afirma que os prisioneiros “que pareciam mais inofensivos e por
isso escapavam à degola eram enviados a Rio Negro, onde permaneciam
em improvisados campos de concentração, sob a vigilância do coronel
Bley Neto, antes de serem distribuídos como trabalhadores pelas colônias
agrícolas do governo do Paraná”.
Os sertanejos foram rendendo-se e o governo precisou definir uma
forma de controle social entre os estabelecidos na região e o novo grupo
que ora havia se formado. Nas justificativas do governo o processo de
transferências dos sertanejos que se renderam se deu como garantia de
término do conflito armado, desestruturando os últimos integrantes da
guerra com a separação dos mesmos.
A decisão da capital brasileira foi de inserir os “fanáticos” presos nas
colônias de povoamento, em muitos casos isolando-os dos seus pares. O
telegrama de José Caetano de Faria a Setembrino de Carvalho confirma as
medidas adotadas.

Senhor Presidente Republica a quem falei sobre


vossas reclamações com relação a fanáticos presos,
resolveu que apuradas responsabilidades em um
inquérito rápidos dos que tenham grandes
responsabilidades devem os outros serem internados
em colônias para que podeis vos entender
diretamente com o diretor povoamento do todo que
receberá instruções do ministro da Agricultura. Sauds.
General Faria Rio de Janeiro, 11.03.1915. (FARIA,
1915).

28

Quanto à transferência houve denúncias de que os sertanejos foram


encaminhados em práticas abusivas para o Paraná, como se observa no
telegrama de Felipe Schmidt para Setembrino de Carvalho de 17.02.1915.

Exmo. Sr. Dr. Felippe Schmidt, governador de Santa


Catarina- Florianópolis- Respondo ao segundo
telegramma de V. Exa. concernente ao
despovoamento do solo catharinenese, e respondo
com a maior solicitude, embora julgando a reclamação
tão infundada quanto a que se tornou objectivo do
primeiro. Como em tudo, procurei seguir, na
localização dos fanáticos o criterio que me pareceu
mais justo. E o mais justo critério me parecem, no
caso actual, ser afasta-los de accordo com as suas
preferências. Compreende-se perfeitamente que uma
família custaria mais, quando lhe apertasse a saudade
dos mattos, a voltar de um lugar por ella mesmo
escolhido, do que de um outro para onde ella fosse
deportada. Assim, dentro de semelhante norma,
entreguei o Paraná a gente do reduto Tavares, a gente
que se apresentou em Papanduva, a gente de
Marcello e Joséphino, gente na sua maior parte
habitante das cercanias de Rio Negro, Itayópolis e
Papanduva. Mas entreguei também ao governo de
Santa Catharina o povo que se apresentou em
Canoinhas e mostrou desejo de habitar em território
de Santa Catarina. E isto é tanto mais sincero quanto é
certo que hontem antes de chegarem os telegrammas
de V. Exa. eu havia escripto neste mesmo sentido,
uma carta, incumbindo ao tenente Guilhon de leva-la
a V. Exa. Nella, como verá, trato dos habitantes do
reducto de Santa Maria. Demais, procedendo assim,
tenho até libertado o thesouro de Santa Catharina de
uma considerável despeza com enterros de 29
habitantes, por bem dizer, improductivos e
perfeitamente exercitados no assassinato e no roubo.
Quanto aos clamores dos imigrantes posso assevera a
V. Exa. que não passa de uma suspeita destituída de
fundamentos, pois elles, uma vez no seio da tropa,
não soffrem a mais leve coacção. Cordeaes saudações-
General Setembrino, 18 de fevereiro de 1915.
(CARVALHO, 1916, p. 240).

O fluxo de transferências das famílias ocasionou preocupação por


parte dos governos estaduais. A transferência das famílias, em processo
de rendição de Rio Negro aparece nos registros de Setembrino de
Carvalho:

Era necessário, portanto, consoante a promessa dos


Estados litispendentes, collocalos em colônias onde
pudessem ressarcir os prejuízos soffridos. Mas como o
coronel Felippe Schmidt já viera em meu auxílio,
situando bem as 243 famílias que primeiro se
apresentaram em Canoinhas, entendi que o Paraná
também cabia esse pesado encargo e neste sentido
telegraphei ao seu digno presidente. A resposta foi
prompta, como promptas as providencias. De sorte
que numerosíssimos fanáticos que atulhavam Rio
Negro, sob a fiscalização do coronel Bley Netto, foram,
em menos de uma semana e em successivas levas,
distribuídos pelas várias colônias existentes no Estado.
(CARVALHO 1916, p. 90)

Outro destino dado aos sertanejos foi descrito por Auras (1997,
p.149) “Grande parte do pessoal que se apresentou em Canoinhas, dias
30
depois foi deslocado para o litoral, a fim de trabalhar em colônias e, assim,
repor parcela dos prejuízos provocados (como dissera o General
Setembrino)”.
Com término da guerra iniciou o processo de inserção dos
sertanejos que ali permaneceram na sociedade local que estava do lado
oposto do movimento. Para os sobreviventes o calvário iniciara. Em
muitos casos o sentimento de vingança da parentela de muitos que foram
mortos em conflitos, saques, usurpações, estava presente. O
derramamento de sangue nos sertões foi intenso. As notícias circulavam
na região com informações das mais variadas. A relação entre os
estabelecidos com aqueles que retornavam da guerra produziam conflito
social.

Considerações finais

Toda essa situação criou o silêncio dos vencidos. Muitos dos


descendentes dos sertanejos rebelados, vaqueanos, preferem omitir as
lembranças do passado como forma de preservar a imagem de seus
familiares. Aos poucos o silêncio vem sendo rompido e as memórias
revelam o passado de luta contra o sistema de modernidade implantado
na região no início do século XX.
Diante do exposto, fica evidente que o impacto da modernidade
gerou a “luta pela existência” de certos grupos sociais, na região do
Contestado, tornou-se acentuada, com demonstrações de “sobrevivência 31

do mais capaz”, marcando profundamente a vida dos demais e mesmo de


seus descendentes.

Referências :

AURAS, Marli. Guerra do Contestado: a organização da irmandade


cabocla. 3 ed. Florianópolis: UFSC, 1997
D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. A República dos coronéis contra a
irmandade de São Sebastião. Campinas-SP: Editora: Curt Nimuendaju,
2011.
DERENGOSKI, Paulo Ramos. O desmoronamento do mundo jagunço.
Florianópolis: Fundo Catarinense de Cultura, 1986.
FARIA, José Caetano. Telegrama para Setembrino de Carvalho, 1915. FGV,
Cont 1915.03.11/1
GAULD, Charles A. Farquhar o último Titã: um empreendedor americano
na América Latina. Trad. Eliana Nogueira do Vale. São Paulo: Editora de
Cultura, 2006.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. 2 ed.São Paulo:
Ed Unesp, 1991.
HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. Trad. Donaldson M. Garschagen. 4 ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2010
JORNAL. O “Imparcial”, 1915, nº 1. 32

LIMA, Aleixo Gonçalves de. Correspondência para Henrique Wolland,


1915. IN: CARVALHO, General Setembrino de. Relatório da Campanha do
Contestado, 1915. Rio de Janeiro: Imprensa Militar, 1916.
_____________________. Correspondência para Joaquim Gonçalves,
1915. IN: CARVALHO, General Setembrino de. Relatório da Campanha do
Contestado, 1915. Rio de Janeiro: Imprensa Militar, 1916.
LIVRO DE TOMBO. Paróquia Santa Cruz- Canoinhas- SC.
MACHADO, Paulo Pinheiro Machado. Lideranças do Contestado: a
formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas-SP:
UNICAMP, 2004.
QUEIROZ, Maurício Vinhas de Queiroz. Messianismo e conflito social: a
guerra sertaneja do Contestado-1912-1916. São Paulo: Ática, 1966.
REGISTROS de Títulos do Paraná. Fermino Pacheco dos Santos registra a
área denominada “Canoinhas Pardos”. Livro 01, 20/12/1924
REGISTROS de Títulos do Paraná. José Guebert registra a área
denominada “Arroio Fundo” de concessão de Joaquim Gonçalves de
Lima. Livro 01,19/01/1925.
REGISTROS de Títulos do Paraná. Southem Brazil Lumber and Colonization
Company registra a área de 21.045.800 m², denominada de “Invernada
do Fundo ou Poço Grande”. Título expedido pelo governo do Paraná, em
26/07/1900, pertencente a Aleixo Gonçalves de Lima. Livro 01,
26/11/1924.
RELATÓRIO. Chefe de Policia Militar Interino de Canoinhas Antonio
Marques de Souza para o Comandante da Coluna Móvel da Praça de
Guerra. 05/11/1914.Arquivo Exército. 33

RELATÓRIO. Do Comandante do 16º batalhão de Infantaria e da Praça


Militar de Canoinhas ao Tenente Coronel Manoel Onofre Muniz de
Ribeiro, da Coluna Norte. 10/11/1914. Arquivo do Exército.
RELATÓRIO. Do acantonamento das Forças da coluna Móvel da Linha
Norte ao Coronel Manoel Onofre Muniz de Ribeiro, da Coluna Móvel.
18/11/1914. Arquivo Exército.
RELATÓRIO MILITAR. 57º Batalhão de Caçadores -1ª Companhia ao
Senhor Capitão Fiscal. 21/11/1914. Arquivo Exército.
RELATÓRIO MILITAR. Capitão Tertuliano Albuquerque Potiguara ao
Coronel Manoel Onofre Muniz de Ribeiro, da Coluna Norte. 15/02/1915.
Arquivo Exército.
RELATÓRIO MILITAR. Comandante do 2º Batalhão de Engenharia, 2ª
Companhia ao Coronel Manoel Onofre Muniz de Ribeiro, da Coluna
Móvel. 31/11/1914. Arquivo Exército.
RELATÓRIO MILITAR. Leopoldo Itacoatira de Lima, do Acampamento
Militar de Salseiros, ao Tenente Coronel Manoel Onofre Muniz de
Ribeiro, da Coluna Norte. 08/11/1914. Arquivo Exército.
RELATÓRIO MILITAR. Major Comandante da Praça de Canoinhas Pedro
Ildefonso Fracie Gameira ao Major Comandante do 16º Batalhão de
Infantaria. 18/11/1914. Arquivo Exército.
RODRIGUES, Rogério Rosa. Veredas de um grande sertão: a guerra do
Contestado e a modernização do exército. Tese em História Social. UFRJ,
2008.
SCHIMIDT, Felipe. Telegrama para Setembrino de Carvalho, 1915. FGV,
FSC Cont 1915. 34

TOKARSKI, Fernando. Cronografia do Contestado: apontamentos


históricos da região do Contestado e do Sul do Paraná. Florianópolis:
IOESC, s.d.
AUDIOVISUAL, REPRESENTAÇÃO E SOCIEDADE:
O CINEMA COMO FONTE PARA A HISTÓRIA

Nicolle Taner de Lima 1


1

RESUMO: Neste artigo apresentar-se-á uma breve revisão bibliográfica sobre as


possibilidades de abordagem pela História do cinema como fonte. Discutindo a
inserção de novas fontes para a historiografia, pretendi relacionar algumas das
principais causas que suscitaram durante algum tempo a desconfiança do uso desse
tipo de fonte, alguns apontamentos sobre o conceito de representação e como é útil
para a análise de audiovisuais e acerca de possibilidades para se compreender a
narrativa fílmica como documento.
Palavras-Chave: História, Fontes Históricas, Representação, Cinema

ABSTRACT: This article will revisit briefly the literature regarding the possibilities of
using cinema as historical source. While discussing the inclusion of new sources for
historiography, I intended to include some of the main causes that led to a general
view of distrust towards using this type of source. Also, I included some notes on the
concept of representation and how useful it can be for audiovisual analysis and about
future possibilities of comprehending the filmic narrative as a document.

Keywords: History, Historical Sources, Representation, Cinema.

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Estado de Santa Catarina,
na linha de pesquisa intitulada Culturas Políticas e Sociabilidades. Bolsista CAPES. email para contato:
nicolletaner@gmail.com
“A história se faz com documentos escritos,
sem dúvida. Quando eles existem. Mas ela
pode fazer-se, ela deve fazer-se sem
documentos escritos, se os não houver. Com
tudo o que o engenho do historiador pode
permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel,
à falta das flores habituais. Portanto, com 2
palavras. Com signos, com paisagens e
telhas. Com formas de cultivo e ervas
daninhas. Com eclipses da lua e cangas de
bois. Com exames de pedras por geólogos e
análises de espadas de metal por químicos.
Numa palavra, com tudo aquilo que,
pertencendo ao homem, depende do
homem, serve o homem, exprime o homem,
significa a presença, a atividade, os gostos e
as maneiras de ser do homem.” (...) “Se não
houver estatística, nem demografia, nem
nada: iremos responder com a resignação a
essa carência? Ser historiador é, pelo
contrário, nunca se resignar. É tentar tudo,
experimentar tudo para preencher as
lacunas da informação. É explorarmos todo
o nosso engenho, eis a verdadeira
expressão.” (FEBVRE, 1977, p. 213)

Um Novo Objeto: Legítimo?


As discussões sobre o cinema como fonte para a História são
acirradas no momento em que percebemos as diferenças entre a
linguagem escrita e o audiovisual. Este é um debate bastante recente,
visto que o audiovisual somente há pouco é visto por grande parte dos
historiadores como uma fonte legítima – esta legitimidade é questionada
principalmente quando deparamos com as diferenças de linguagem entre
a narrativa escrita e a fílmica. Neste artigo, nos propomos a contextualizar
e explicitar os principais autores que contribuíram para o debate
historiográfico acerca as relações entre História e Cinema, sobre o uso do
Cinema como fonte pelos/as historiadores/as.
Segundo Cristiane Nova, (1996, p. 217) somente a partir de 1970 3

os filmes passaram a ser considerados como fonte de investigação


possível para a História. Para esta autora, isso se deve principalmente a
reformulações sobre os conceitos e métodos historiográficos, que foram
iniciadas com a Escola dos Annales.
José Carlos Reis (2000, p. 73) considera que a principal
contribuição desta corrente historiográfica, que se constituiu em torno do
periódico francês Annales d'histoire, économique et sociale, foi repensar o
2
tempo – entendê-lo como uma construção histórica e redimensioná-lo
para a pesquisa histórica. Entretanto, os Annales trouxeram à tona outros
questionamentos e propostas metodológicas, não só acerca da duração
dos acontecimentos, mas na definição deste e do fato histórico, no fazer
historiográfico rumo à interdisciplinaridade, 3 no repensar o que seria uma

2
Para Reis, a principal renovação proposta pelos Annales foi a representação do tempo histórico.
Anterior a essa renovação, a história conhecia as mudanças humanas no tempo. A partir dessa revisão,
que se fez necessária quando ocorre a aproximação da história e das ciências sociais, o tempo é
encarado como uma abstração, uma construção necessária – é desconsiderada a sucessão de eventos e
assimilada a ideia de simultaneidade, que é a dominação da assimetria entre passado e futuro. É diante
desses debates que os Annales, e Braudel em particular, construíram o conceito de “longa duração”, a
superação do evento.
3
Reis afirma que é a partir da aproximação entre a História e as Ciências Sociais – e depois, Geografia,
Antropologia, Psicologia, etc - que se constitui o debate acerca da renovação do conceito do tempo.
Houve, também, uma revisão e reconstrução do conceito de homem, de humanidade. Para os Annales,
o homem não é só sujeito, potente criador da história, ele é também objeto, feito pela história. A partir
dessas renovações teórico-metodológicas, ocorre uma modificação no campo de análise da história: a
história tradicional privilegiava a “história acontecimental”, o homem aparecia na política, nos grandes
líderes; a nouvelle histoire enfatizará o “não acontecimental”, o campo econômico-social-mental.
fonte histórica, na definição de uma história-problema, em oposição à
narrativa.
Na História-problema, proposta por este movimento, é o problema
e não a documentação a origem da pesquisa. O fato histórico não é
“dado”, é o/a historiador/a que o constrói, a partir de seu presente, 4

interrogando o passado. Esta nova História reconhece a impossibilidade


de se narrar os fatos “tal como se passaram”, o/a historiador/a formula
hipóteses, escolhe as fontes, interroga, conceitua, questiona e deixa
evidente de onde fala... Uma “(...) história conduzida por problemas e
hipóteses, por construções teóricas elaboradas e explícitas, é, sem dúvida,
uma ‘nova história’”. (REIS, 2000, p. 74)
Neste sentido, ocorre uma renovação também do conceito de
fonte histórica: a documentação será agora, massiva, serial, referente à
vida cotidiana das massas anônimas e marginalizadas. Os Annales
propõem a utilização de todo tipo de fonte: às cartas, aos ofícios e
documentos oficiais são agregadas certidões de batismo, óbito,
casamento, contratos... e adiante, com a ajuda da arqueologia, se utilizará
a cultura material como fonte documental.
Segundo Reis (2000, p. 78):

Essa abertura e ampliação do campo das fontes


históricas estão inteiramente associadas, por um lado,
ao projeto da ‘história problema’, pois não há mais a
‘tirania’ da heurística, mas a construção de problemas
e hipóteses, no início da pesquisa. É o problema posto
que dará a direção para o acesso e construção dos
corpus necessários à verificação das hipóteses que ele
terá suscitado, o que devolve ao historiador a
liberdade na exploração do material empírico.

Se o/a historiador/a, ao questionar e investigar um documento


escrito, uma carta, um testemunho, uma obra de arte, que produz a fonte,
5
por que não poderia questionar um produto audiovisual? Por que este
tipo de documento não é legitimado ou ainda enfrenta dificuldades em
ser reconhecido pela historiografia se, como apontou Mônica Kornis
(1992, p. 241), já havia indícios desses debates desde 1920, por que os
historiadores atentaram a tal inquietação em maior número, somente nas
décadas de 1960 e 1970?
Segundo a autora, um dos problemas no reconhecimento do valor
documental do cinema durante estas décadas esteve atrelado à
identificação da imagem por ele produzida com a verdade obtida pelo
registro da câmera. Já em 1920, Siegfried Kracauer, jornalista, foi um dos
primeiros a escrever sobre o assunto, e entendia que o cinema era uma
das únicas formas a se registrar a realidade sem deformá-la.
Com a negação de que a imagem do filme seria o reflexo do real,
principalmente a partir da década de 1960, os historiadores e cineastas
começam a debater uma metodologia de análise do filme como
documento, com foco especialmente na natureza da imagem. Devido a
expansão das salas de exibição e da televisão, Kornis (1992, p. 242) afirma,
a partir das considerações de Pierre Sorlin, que

(...) o impacto produzido pela criação e difusão da


televisão, que colocou as imagens no espaço
doméstico, fez com que os cientistas sociais não mais
pudessem ignorar o mundo da câmera. (KORNIS,
1992, p. 242)

Marc Ferro escreve, em 1968, Société du XX siêcle et histoire


cinématographique, artigo no qual critica o culto excessivo ao documento 6

escrito, ressaltando a demanda de se pensar a análise de uma fonte não-


tradicional e que muito poderia acrescentar no conhecimento do passado.
Ferro também é o primeiro escritor a tratar a relação Cinema-História a
ser publicado no Brasil – seu artigo “O filme, uma contra-análise da
sociedade?” foi publicado na coletânea História: novos objetos em 1976.
Neste artigo, explicita que a recusa inicial dos historiadores em
analisar o cinema se dá por uma hierarquização das fontes: o cinema não
seria merecedor de ser analisado, uma atração banal não merecia habitar
o campo historiográfico:

Sem vez nem lei, órfã, prostituindo-se para o povo, a


imagem não poderia ser uma companhia para esses
grandes personagens que constituem a Sociedade do
historiador: artigos de leis, tratados de comércio,
declarações ministeriais, ordens operacionais,
discursos. (FERRO, 1975, p. 4)

Depois do triunfo da imagem, esta entrou na era da suspeita – ao


querer se impor como um discurso verdadeiro foi imediatamente
contestada, principalmente por ter tentado substituir o texto escrito, que
para o autor de Cinema e História, é superestimado pelos historiadores,
que o vem como única forma possível de narrar a história. (FERRO, 2010,
p. 10)
Outra questão sobre a qual Ferro disserta é a argumentação dos
historiadores em não estudar os filmes, já que as imagens sofrem
distorções, manipulações, e não estariam inclusas no projeto de busca da 7

verdade que a História se propõe a realizar:

Além do mais, como se fiar nos jornais


cinematográficos quando todos sabem que essas
imagens, essa pretensa representação da realidade,
são selecionáveis, modificáveis, transformáveis, por
que se reúnem por uma montagem não controlável,
um truque, uma falsificação? O historiador não
poderia apoiar-se em documentos desse tipo. Todos
sabem que ele trabalha numa caixa de vidro. Eiss
minhas referências, minhas hipóteses, minhas provas..
Não viria ao pensamento de ninguém que a escolha de
seus documentos, sua reunião, a ordenação de seus
argumentos têm igualmente uma montagem, um
truque, uma falsificação. (FERRO, 1975, p. 4)

A questão da subjetividade parece ser levantada por Ferro antes


mesmo de se tornar recorrente na historiografia; outra questão seria a da
verdade. Para Paul Ricoeur, (2007) a História organiza os fatos a partir de
fragmentos, e a partir desses fragmentos, não se pode reconstituir o que
aconteceu como este aconteceu. Deve-se recorrer à imaginação, para
preencher estas lacunas, e para dar forma a este passado. Mas dar forma,
afirma, não é reconstituir ou reconstruir.
Segundo Michel de Certeau, (2000) a história não diz a verdade,
ela constrói legitimidade. Sobre a oposição ficção-história, afirma que essa
dicotomia é construída pois a narrativa institui algo de real – afirmar que a
ficção remete ao imaginário, ao imaginado, e a história ao verdadeiro,
seria falso, pois construído assim como o discurso historiográfico – não 8

nega, portanto, a pretensão de se chegar ao real, mas para ele, a História


é incapaz de fazê-lo. Para Kant, para saber se há verdade é preciso saber
se o conhecimento é possível; para ele, o conhecimento é resultado de
uma relação cognitiva que inclui sujeito e objeto e a verdade seria aquilo
que um sujeito humano, em linguagem humana, pode formular com
alguma segurança sobre objetos bem delimitados. Se há discurso, há
sujeito; se há sujeito, há construção. (REIS, 2010, p. 154)
Estes argumentos respondem à questão da dicotomia entre
história e cinema, na medida em que a deslegitimação da fonte
audiovisual se dava a partir da ideia de que esta não correspondia ao real,
à verdade que a história busca, recorrendo à imaginação para preencher
suas lacunas. Para Ricoeur, a História e a Ficção emprestam uma à outra
vários elementos que se confluem – a história se serve da ficção para
refigurar o tempo e também ao contrário, e usa de elementos ficcionais e
literários para se tornar mais inteligível e palatável. O argumento da ficção
para não se estudar os filmes é refutado, portanto, quando percebemos o
papel da imaginação na narrativa histórica: podemos pensar que o nosso
‘preencher de lacunas’, como afirma Ricouer, nada mais é do que
organizar esses fatos em uma narrativa, que não pode deixar de recorrer à
imaginação.
Para Robert Rosenstone, (2010, p. 14) a aversão dos historiadores
pelos filmes históricos pode estar contida no fato de que, por muito
tempo, o trabalho do/a historiador/a foi considerado um empreitada
empírica, que fazia certas afirmações - e verdadeiras! - sobre o passado.
Para o autor, o preconceito com o uso dos filmes também está 9

relacionado à ideia de que a História mostra o real. Mas afinal, questiona,


o que é a realidade? Os/as historiadores/as esperam que o filme histórico
conte a verdade:

Mas que verdade? A verdade factual, a verdade


narrativa, a verdade emotiva, a verdade psicológica, a
verdade simbólica? Pois não há apenas uma única
verdade histórica - na página impressa nem
certamente na tela. (ROSENSTONE, 2010, p. 14)

Qual a diferença entre a escrita da história, os livros didáticos,


aulas expositivas e os filmes? Para ele, o que está nos livros também não é
o real. As semelhanças entre as páginas impressas e os filmes

(...) referem-se a acontecimentos, momentos e


movimentos reais do passado e, ao mesmo tempo,
compartilham do irreal e do ficcional, pois ambos são
compostos por conjuntos de convenções que
desenvolvemos para falar de onde viemos.
(ROSENSTONE, 2010, p 14)

O fato de que o cinema é enxergado por muitos/as


historiadores/as e espectadores também como entretenimento, não
diminui a validade da fonte: o cinema também é sinônimo de história
séria. A televisão e o cinema transmitem histórias, e afetam o modo como
enxergamos o passado. (ROSENSTONE, 2010, p 14, 18) É o que afirma
Hobsbawn ao apontar que o cinema iria influir “(...) na maneira como as
.
pessoas percebem e estruturam o mundo”. (KORNIS, 1992, p 241)
Rosenstone (2010, p. 16) afirma que as mídias visuais são o principal 10

transmissor de história pública na nossa cultura e que ao invés de excluí-


las, tratando como entretenimento, seria mais sensato admitir o fato que

vivemos em um mundo moldado, mesmo em sua


consciência histórica, pelas mídias visuais e investigar
exatamente como os filmes trabalham para criar um
mundo histórico.

Partindo da ideia de que o filme não é o reflexo imediato do real,


seria então uma fonte legítima, que traria não só o visível, mas o não-
visível, (FERRO, 2010, p. 14) permitindo que se entendesse a sociedade
que o produziu e recepcionou – o filme seria então uma representação do
real?
Se afirmamos que o filme adquiriu status de fonte historiográfica,
que “qualquer reflexão sobre a relação cinema-história toma como
verdadeira a premissa de que todo filme é um documento, desde que
corresponde a um vestígio de um acontecimento que teve existência no
passado”, (NOVA, 1996, p. 222, grifo da autora) como então um
audiovisual pode ser analisado pela História?

O conceito de Representação.
Segundo Dominique dos Santos, (2011, p. 27) em seu artigo
“Acerca do conceito de representação”, o termo tem sido de uso
recorrente na historiografia brasileira e nos trabalhos acadêmicos em
geral. Sua crítica ocorre no sentido de que, para o autor, este conceito
tem sido usado discriminadamente e não tem sido debatido, sendo 11

usualmente associados a Roger Chartier e Carlo Ginzburg.


Não é nossa intenção neste artigo discutir exaustivamente o
conceito, principalmente por concordar com Santos no que diz respeito à
complexidade do termo:

(...) se por um lado, há quem sugira que os


historiadores não devem deixar de lado as
problemáticas oriundas das dimensões filosóficas do
conceito de representação, pois se trata de um
conceito fundamental para a teoria da história (...),
por outro, há quem defenda que o termo seja
simplesmente abandonado, que devemos parar de
mencioná-lo devido à sua complexidade (SANTOS,
2011, p 28)

no entanto, buscaremos em poucas linhas delinear os principais


pesquisadores que difundiram o uso da representação e definir qual o
propósito de se utilizar do conceito para investigar os produtos
audiovisuais como fonte para a História.
Um dos autores mais utilizados para se tratar da representação é
Roger Chartier. Em seu livro A história cultural entre práticas e
representações, publicado em 1990, e no artigo “O mundo como
representação”, em 1991, o historiador francês procura defender que,
com a crise nas ciências sociais, é necessário se pensar outras abordagens
para a História, que ajudassem a “reformular a maneira de ajustar a
compreensão das obras, das representações e das práticas às divisões do
mundo social que, conjuntamente, significam e constroem”. (CHARTIER,
1989) 12

O conceito de representação rejeita o que Carvalho denomina


“tirania do símbolo”:

Chartier renuncia ao que chamarei aqui de tirania do


símbolo. A tradição idealista neokantiana, nomeada
por Chartier em Cassirer e Panofsky e na antropologia
simbólica norte-americana – isto é, Clifford Geertz e,
por extensão, Robert Darnton –, considera todos os
signos, atos e objetos como “formas simbólicas”. O
“mundo como representação” construído nessa
vertente tenderia a tornar-se unitário, sistêmico.
(CARVALHO, 2005, p. 147)

Com isso, “as representações são entendidas como as


classificações e divisões que organizam a apreensão do mundo social como
categorias de percepção do real;” seriam variáveis dependendo da classe
social que a representa e da que a apreende, mas sempre são forjadas
pela classe dominante. Portanto, “As representações não são discursos
neutros: produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma
autoridade, uma deferência, e mesmo a legitimar escolhas.”4 (CARVALHO,
2005, p. 149)

4
Idem, 149.
Segundo Santos, (2011, p. 35) Denise Jodelet é a maior divulgadora
da obra de Serge Moscovici, um dois principais expoentes sobre este
conceito. Ela propõe que o conceito de representações sociais de
Moscovici seja utilizado como alternativa de análise dos fatos sociais.
Santos então, afirma que: 13

A teoria das representações sociais se interessaria,


dessa forma, por compreender como os indivíduos,
inseridos em seus respectivos grupos sociais,
constroem, interpretam, configuram e representam o
mundo em que vivem. Assim entendidas, as
representações sociais são sintetizadores das
referências que os diversos grupos fazem acerca do
que conseguem apreender de suas vivências sociais
inseridos no tempo e espaço. (SANTOS, 2011, p 35)

Ciro Flamarion Cardoso foi um dos críticos brasileiros ao uso do


conceito de representação. Para o autor, o conceito é muito reducionista
e tende à simplificação, pois reduzem o pensamento “científico” a “meras
representações”. (SANTOS, 2011, p 36)
Gustavo Blázquez escreve que nos dicionários de língua
portuguesa o significado de representação é construído em torno de
quatro eixos. Seriam o do “ato ou efeito de tornar presente”, “patentear”,
“significar algo ou alguém ausente”; o da “imagem ou o desenho que
representa um objeto ou um fato”; o de “interpretação, ou a
performance, através da qual a coisa ausente se apresenta como coisa
presente”; e do “aparato inerente a um cargo, ao status social”, “a
qualidade indispensável ou recomendável que alguém deve ter para
exercer esse cargo”. (BLÁZQUEZ Apud SANTOS, 2011, p. 36). Para análise
do discurso fílmico, considero o segundo e terceiro eixos, ou seja, por
representação entendemos a interpretação e performance, seja pela
imagem esboçada no filme, seja pela interpretação dos atores e condução
dos roteiristas e diretores, que tentam tornar presente o ausente, que 14

tentam trazer significado a um fato.

O Filme Como Narrativa Histórica: Análises Possíveis


Como vimos, Siegfried Kracauer, jornalista, foi quem trouxe os
primeiros elementos para se pensar o cinema, já em 1920. Entretanto,
Kracauer pensava a imagem do cinema como um reflexo do real, que
superava a fotografia, pois não sofria manipulações e seria a melhor forma
de registrar a história, pois não a deformaria (KORNIS, 1992, p. 242)
Para Ferro, (1975, p. 10) é a partir Nouvelle Vague que é difundida
a ideia de que uma arte estaria no mesmo patamar com as outras e que
também seria produtora de um discurso sobre a História. O autor
considera que o filme ajuda na constituição de uma contrahistória – uma
história não-oficial, que poderia expressar a memória dos vencidos, dos
dominados, e criaria o acontecimento:

Um outro aspecto importante em seus trabalhos é a


afirmação de que o filme é um agente da história, e
não só um produto. Ferro demonstra como os filmes,
através de uma representação, podem servir à
doutrinação e ou à glorificação. (KORNIS, 1992, p. 243)
O filme não seria só um produto, mas um agente da história e da
consciência social, no que diz respeito à essa doutrinação e glorificação,
ou à crítica destas, e ao fomentar os debates sobre certos acontecimentos
e afirmações. Para ele, a análise de cinema se dividiria em se compreender
o visível e o não-visível – este sendo a maior contribuição dos filmes para a 15

história, visto que o filme excede seu conteúdo. (KORNIS, 1992, p 243)
O autor defendeu então a ideia de que para se analisar o um filme
se deveria entender o elementos do filme (planos, temas, enredo)
juntamente do que não é o filme (autoria, produção, público, regime
político). Ferro estaria menos próximo então da semiologia, da história do
cinema, da estética: na busca do não-visível, ele quer compreender a
inserção do filme em uma determinada sociedade:

Seu objetivo é examinar a relação do filme com a


sociedade que o produz/consome, articulando entre si
realização, audiência, financiamento e ação do Estado,
isto é, variáveis não-cinematográficas (condições de
produção, formas de comercialização, censura etc.), e
a própria especificidade da expressão cinematográfica.
(KORNIS, 1992, p. 244)

O estudo do documentário, para o autor, se daria inicialmente pela


crítica aos documentos utilizados na produção, e na análise das imagens,
procurando compreender se houve modificação ou alteração nestas, a
partir do estudo das tomadas, ângulos, número de câmeras, quantidade
da ação... Na análise do filme de ficção, Ferro
(...) confere importância às características da
sociedade que o produziu e o consome e da própria
obra, além da relação entre os autores do filme, a
sociedade e o próprio filme. (KORNIS, 1992, p. 246)

Para Kornis, Sorlin procura definir os parâmetros para a análise 16


fílmica, recusando o filme como reflexo da realidade. Defendendo o uso
da semiótica – entendendo cada imagem e cada aspecto como um signo, e
procurando compreender sua significação, o autor alega que cada
historiador deve ter seus critérios próprios de análise, entretanto, o
audiovisual deve ser examinado como um artefato acabado, na
combinação de elementos visuais, sonoros e os efeitos produzidos por
estes aspectos. (KORNIS, 1992, p. 248)
Para se analisar um filme, segundo Sorlin, é necessário então
justapor os códigos do filme e os códigos da sociedade – e assim este seria
uma fonte. Suas análises também buscam nas fontes tradicionais a
comparação com o que se passa no filme: sua afirmativa é então que as
imagens não são a realidade, mas expressam uma visão do mundo que as
cerca. (KORNIS, 1992, p. 247)
A historiadora Natalie Zamon Davis propõe que a análise do filme
seja realizada a partir de três elementos: a Gênese do filme, a Sinopse e o
Julgamento. A Gênese consistiria em pensar quem teve a ideia para o
filme, quais as fontes utilizadas, como os produtores o levaram para a tela
e quais as intenções; a Sinopse destacaria os personagens e
acontecimentos, e desvios do registro histórico; por fim, o Julgamento
seria a análise de porquê dar importância ao filme e o que poderia ser
modificado para se tornar mais valioso como obra histórica.
(ROSENSTONE, 2010, p. 48)
Davis questiona em seus trabalhos qual seria o potencial dos filmes
para falar do passado de maneira significativa. A crítica de Rosenstone à
Davis, vai no sentido de que para o autor, ela cobra dos/as cineastas 17

serem historiadores/as, mas esquece-se que ser historiador/a é uma


atividade apreendida e que esses/as cineastas, em boa medida, já podem
ser considerados historiadores/as, ao passo que já confrontam
documentos e arquivos. (2010, p. 48, p. 54)
É neste sentido que se encaminham as exposições de Robert
Rosenstone. Afirma que o historiador tem procurado o cinema não só
para transmitir o passado aos/às estudantes, mas para a cultura como um
todo; entretanto tentam encaixar os filmes históricos às convenções da
história tradicional: as críticas aos filmes geralmente são feitas sobre a
exatidão de detalhes, adesão aos fatos históricos, adequação da música,
atores e figurino, à época retratada, e a visão acadêmica ambiciona a
adesão aos fatos, sendo que um filme necessita de enredo,
interpretações, muito mais do que um amontoado de fatos, precisa de um
narrar histórico de que seja realizado de "maneira poética e metafórica".
(ROSENSTONE, 2010, p. 56)
Rosenstone (2010, p. 60) utiliza-se dos trabalhos de Hayden White e
Ankersmit para tratar do poder da metáfora, que para eles é muito mais
interessante do que a dimensão literal ou factual; para o autor, nós
historiadores/as, devemos aprender a interpretar novas linguagens, novas
práticas; deveríamos entender o que é possível na tela, vistos as restrições
midiáticas, econômicas, políticas e não esperar que os filmes façam o que
os livros fazem, ou que achamos que eles fazem - mostrar fatos com
exatidão, que apresentem vários lados de uma questão, que sejam um
espelho da realidade extinta:
18

Como as narrativas históricas escritas, os filmes não


são espelhos que mostram uma realidade extinta, mas
construções, obras cujas regras de interação com os
vestígios do passado são necessariamente diferentes
das obedecidas pela história escrita (ROSENSTONE,
2010, p. 62)

Para ele, todos/as nós estamos condicionados/as a ver a história


como uma coisa sólida, mas a história é um gênero de escrita, uma série
de gêneros, cada um com convenções e práticas que servem para definir o
tipo de passado colocado nas páginas impressas. A Micro-história, a
biografia, os estudos de casos, grande ou pequena narrativa, história
quantitativa... todos esses gêneros, para o autor, incluindo o filme têm por
objetivo a tentativa de tornar o passado significativo para nós no
presente.
A comparação entre filmes e a história escrita iria além, pois
trabalhar com a história é selecionar vestígios, dar a eles o status de fatos,
e uni-los na descrição de eventos - uma narrativa ou argumento histórico
seleciona apenas certos vestígios - para um diretor de um filme, às vezes é
necessário enfatizar fatos também, e para satisfazer as demandas, às
vezes é necessário ir além da constituição dos fatos, e começar a inventar
alguns desses fatos. Para o autor, a invenção dos fatos não é o ponto fraco
dos filmes, mas uma importante parte de sua força, pois sem elas o filme
teria uma forma solta e muito menos capaz de tornar o passado
interessante. (2010, p. 64)
Os processos de invenção para Rosenstone consistiriam em
Encenação; Compreensão ou condensação de personagens ou momentos 19

históricos; Deslocamentos, que seriam as mudanças de um acontecimento


de um período para o outro; Alterações, onde personagens realizam ações
ou expressam sentimentos que fossem de uma figura diferente ou de
ninguém; Diálogo, e personagens baseados em figuras históricas reais que
se tornam uma invenção na tela, por causa do ator. Para ele, o drama por
si só comprime os eventos que aconteceram ao longo do tempo em um
estreito intervalo.
Somente o filme tem essa habilidade em justapor imagens e sons
com seus cortes rápidos de novas seqüências, dissoluções, desaparições,
acelerações e câmara lenta da qual se pode esperar se aproximar da vida
real, da experiência cotidiana de idéias, palavras, imagens, preocupações,
distrações, decepções sensoriais, motivações conscientes e inconscientes
e emoções. Somente o filme pode prover uma adequada reconstrução
empática para nos transportar a como historicamente as pessoas
testemunharam, entenderam e viveram suas vidas. Somente o filme pode
recobrir todo passado vivido. (ROSENSTONE, 2006, p 26)
Este autor propõe então, que o filme como uma forma legítima de
representação da História, seja julgado e avaliado em seus próprios
termos, visto que a escrita fílmica da História em muito se difere da escrita
da História, pois apresenta diferentes limites e especificidades: cada mídia
possuiria sua linguagem intrínseca e condicionantes inerentes ao seu
gênero. O autor se propõe a pensar um método de como interpretar e
entender esse mundo visual do passado.
Primeiramente, o filme deve ser pensado como, seguindo os
preceitos de Ferro, uma testemunha de seu tempo, ou seja, as imagens, a 20

temática, trejeitos de personagens e escolha de atores, estão relacionados


ao contexto de produção de filme - o que significa não só a necessidade de
contextualizar o produto audiovisual historicamente, mas entender de
que forma o filme foi feito, por quem foi patrocinado, se é independente
ou não, como foi a escolha dos atores (pesquisa que geralmente se pode
realizar através da ficha documental do filme e entrevistas posteriores).
Compreender seu contexto de produção também nos permite questionar
se havia ou não demanda por aquela temática específica, e através de
críticas e dados de visualização de filmes, número de cópias e
espectadores nos cinemas, se obteve ou não sucesso nas salas de exibição
e pela crítica, etc.
Compreender seu contexto de produção e também por quem o
filme foi patrocinado permite analisar por que, apesar da liberdade
criativa dos diretores e roteiristas, alguns temas e cenas foram deixados
de lado em detrimentos de outras temáticas e abordagens – o filme deve
se relacionar - ou, pelo menos, não afrontar – com os valores e interesses
dos seus financiadores. Os custos de produção também permitem avaliar
qual o lucro que a produção obteve.
Os estudos de recepção, para o historiador Dennison de Oliveira,
(2010, p. 21) são indispensáveis para entender a relação entre os autores,
o filme e a sociedade na qual foi produzido. Para isso, é de extrema
importância procurar pela crítica do filme, expressas em sites, colunas e
artigos em jornais e revistas, especializados ou não, cartas dirigidas à esse
tipo de imprensa, tanto quanto pesquisar a frequência nas salas de
cinema, distribuição por estas salas, número de cópias vendidas e também 21

de reedições e remasterizações.
A linguagem cinematográfica – edição, montagem, fotografia,
sonoplastia, efeitos especiais – é o que, na narrativa fílmica, impacta,
contribui ou delimita a importância de um dado acontecimento ou fato.
Compreender quais temas e imagens estão sendo privilegiadas em
detrimentos de outras, através da análise destes recursos
cinematográficos, pode nos ajudar a entender o posicionamento de seus
autores, e da sociedade em que vivem e onde foi produzido o filme, visto
que
as imagens ali retratadas – e isso também é válido
tanto nos filmes de ficção quanto documentários –
foram construídas e, nesse sentido, serão sempre
parciais, direcionadas e interpretativas dos eventos e
épocas que descrevem (OLIVEIRA, 2010, p. 20)

Considerações Finais
A desconfiança dos filmes históricos por parte dos/as
historiadores/as por muito tempo se referiram ao fato de que os
audiovisuais romanceariam a História e não seriam tão contundentes e
verdadeiras como a história escrita nos livros. Realizei aqui uma breve
discussão sobre verdade, justamente para contrapor essas críticas e
problematizá-las. Apesar de algumas ponderações acerca dessa questão já
estarem se direcionando para a superação e da historiografia brasileira ter
debatido acerca do uso de fontes audiovisuais nos últimos anos com
bastante afinco, a discussão da legitimidade e de metodologias certas
fontes ainda são muito debatidas. 22

Para Rosenstone (1998) e Guynn (2006), dois importantes teóricos


sobre o Cinema como fonte para a História, mais importante do que
história que o filme narra, é a forma como narra – o que privilegia exibir
em detrimento de outros aspectos ou cenas; como foi produzido, por
quem, como, se foi ou não patrocinado; quem é o diretor, quais suas
intenções, como tematiza, descreve e delimita os eventos - e em que
momento histórico foi produzido, como se deu sua recepção e crítica.
Pensar por que tal tema tem sido abordado nos audiovisuais, de que
forma esta história está sendo contada, a partir de que fontes, como a
crítica e o grande público o recepcionaram, contextualizá-lo temporal e
espacialmente – questões metodológicas de fundamental importância.
Devemos, portanto, entender o audiovisual como uma forma
legítima de representação da História, e que este seja julgado e avaliado
em seus próprios termos, visto que a escrita fílmica da História em muito
se difere da escrita da História, pois apresenta diferentes limites e
especificidades. Cada mídia possui sua linguagem intrínseca e
condicionantes inerentes ao seu gênero.
Só se acessa o passado – este lugar estrangeiro, distante, do qual
se tem apenas impressões – pelo que sobrou dele; Lowenthal (1998,
p.149) denomina estes vestígios de relíquias. Sobrevivem na forma de
características naturais ou artefatos, mas não são guias, não nos levam
instantaneamente ao passado, as relíquias só fazem sentido enquanto tal
quando já sabemos a que passado pertencem.
A definição de relíquia é fluida, já que sucumbem ao desgaste do
significado e da importância, ou seja, pode ter sido uma relíquia, mas 23

deixou de ser. Assim como um documento, objeto, carta, retrato, podem


ou não ser fontes; isso depende da questão elaborada: “(...) tudo que é
perceptível pode ser utilizado como fonte se o historiador formular a
questão adequada”. (PROST, 2008, p 76 )
Nossas questões definem nosso problema, nosso problema, a
fonte. Quais questões tentamos responder ao indagar os audiovisuais? As
formulamos de maneira adequada? São reflexões que precisam perpassar
toda relação com um novo campo de investigação.

Referências Bibliográficas

CARVALHO, A Representação segundo Roger Chartier. Diálogos,


DHI/PPH/UEM, v. 9, n. 1, p. 143-165, 2005.
CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: A escrita da História.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 65-119.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. p 17. Texto publicado
com permissão da revista Annales (NOV-DEZ. 1989, Nº 6, pp. 1505- 1520).
FÈBVRE, Lucien. Combates pela História II. Lisboa: Editorial Presença,
1977
FERRO, Marc. O Filme, uma contra análise da sociedade? in: NORA, Pierre
(org.). História: novos objetos. Rio de Janeiro. Francisco Alves, 1975.
____________ Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010. Tradução
de Flávia Nascimento.
GUYNN, Willian. Writing History in Film. New York, Routledge, 2006. Pp.
1-80.
KORNIS, Mônica Almeida. História e Cinema: um debate metodológico.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992.
LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. In: The past is a
foreign country. Cambridge, Mass.: University Press, 1985 – tradução de
Lucia Haddad, disponibilizado na Revista Projeto História, São Paulo, (17), 24
nov. 1998.
NOVA, Cristiane. O Cinema e o Conhecimento da História. O Olho da
História, Salvador, v. 2, n.3, p. 217-234, 1996.
PROST, A. As questões do historiador. In: PROST, A. Doze lições sobre a
História. [Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira] – Belo
Horizonte: Autentica Editora, 2008
REIS, José Carlos. Escola dos Annales – A inovação em História. São Paulo.
Paz e Terra, 2000. 2ª edição
______________. História e verdade: posições. Síntese – Revista de
Filosofia, Belo Horizonte, v. 27, p. 321-348, 2001.
RICOEUR, Paul. Fase documental: a memória arquivada. In: A memória, a
história, o esquecimento. Campinas/SP: Unicamp, 2007. p. 155-192.
ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na História/
Robert A Rosenstone; tradução de Marcello Lino - São Paulo: Paz e Terra
2010, p 14 ______________ History on Film/Film on History. Harlow,
California Institute of Technology, 2006. Tradução de Dennison de
Oliveira.
_______________ Visions of the Past: The Challenge of Film to Our Idea
of History. Harvard University Press, 1998.
SANTOS, Dominique. Acerca Do Conceito De Representação. Revista de
Teoria da História. Universidade Federal de Goiás. Ano 3, Número 6,
dez/2011.
OS DIFERENTES SUJEITOS HISTÓRICOS NA PÓS-MODERNIDADE.
EXPERIÊNCIAS NO TEMPO ATRAVÉS DAS PERSPECTIVAS DA
HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE
1
Thalyta Zuchinalli 1

Resumo:
O presente trabalho reflete sobre a trajetória da escrita da história sob a perspectiva
de alguns conceitos e métodos que mudaram ao longo do tempo e, sobretudo, na
contemporaneidade, refletindo sobre a influência do modo de produzir determinadas
escritas históricas. A maneira de historicizar e de analisar as experiências do sujeito ao
longo do tempo foi se modificando e a história pode pensar em ressignificar algumas
experiências do passado deslocando-se do presente. Pensando através dessa
perspectiva de se fazer história no tempo presente, as experiências das populações de
origem africana foram ponto de partida para ressignificados que ainda precisam ser
repensados, ou seja o presente apontou para o passado para reconstrução e
ressignificação histórica dessa experiências para o presente e futuro.
Palavras- chave: História do Tempo Presente- Experiências- Populações de origem
africana.

Abstract:
This work reflects on the writing of the history of history from the perspective of some
concepts and methods that have changed over time and especially in contemporary
thinking about the influence of the way of producing certain historical writings . The
way to historicize and analyze the experiences of the subject over time has been
changing and history can think of reframing some past experiences moving from the
present. Thinking from this perspective to make history in this time the experiences of
people of African origin were the starting point for new meanings that still need to be
rethought or is this pointed to the past historical reconstruction and reinterpretation
of that experience for the present and future.
Key words: History of the Present Time – Experiences- African origin populations.

1
Graduada em História pela UNESC (Universidade do extremo Sul Catarine). Mestranda do Programa de
Pós Graduação em História pela UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina).
Introdução

Pensar e escrever a história no presente não é tarefa fácil, mas é uma


perspectiva importante na contemporaneidade, como pontua Hobsbawn,
2
a história pensada pelos vencidos pode ser inovadora e de qualidade.
Contudo, há discussões acerca da confiabilidade da história do tempo
presente, como elencam Eric Hobsbawm e Pieter Lagrou, sobre os perigos
de escrever uma história desconexa das gerações ou de o historiador
exercer o papel de juiz nessa análise historiográfica. Mas a maneira de
como apreender o tempo e compreender as mudanças do mundo pós-
moderno, e das próprias mudanças de se pensar e escrever a História, são
muito importantes para perceber quais as propostas da História do Tempo
Presente.
Pensando que a História pode ter um sentido de ressignificar
experiências vividas e de pensar o passado, que tem ligação com o
presente, mas de outra maneira, não mais como uma repetição linear ou
que possa servir de exemplo de um tempo ao outro, são as experiências
que refletem o tempo,

“ A experiência é o passado atual, aquele no qual


acontecimentos foram incorporados e podem ser
lembrados. Na experiência se fundem tanto a
elaboração racional quanto as formas inconscientes
de comportamento, que não estão mais, que não
precisam estar mais presentes no conhecimento. Além
disso, na experiência de cada um, transmitida por
gerações e instituições, sempre está contida e é
preservada uma experiência alheia. Neste sentido,
também a história é desde sempre concebida como
conhecimento o de experiências alheias ”. (
KOSELLECK, 2006, p. 309-310).
3

A ressignificação que Koselleck atribui ao passado e ao presente, são


embasamentos importantes para se pensar o papel da História no tempo
presente e poder pensar o passado no presente, sua presença no
presente, mas não mais como antes, onde os tempos se refletiam um no
outro, como efeito dominó. Para pensar o tempo histórico e apreendê-lo,
Koselleck cria dois conceitos, os espaços de experiência e o horizonte de
expectativas, são as formas de autor entender outras possibilidades de
pensar o tempo histórico.
Nesse mesma linha de pensamento, mas com algumas importantes
mudanças, Hartog pensa a temporalidade e sugere o Regime de
Historicidade para pensar o tempo. Esse pensamento contemporâneo
possibilita o questionamento do historiador e suas relações com o tempo.
Mas para Hartog o tempo presente é constante e não passa, o que ele
designa como “ Presentismo ”, nesse sentido fica mais difícil
imaginar a relação dos tempos, não tendo mais o passado como
referência, mas o futuro-presente. O Regime de Historicidade proposto
por Hartog, é apenas uma maneira de articular os tempos, passado,
presente e futuro, dando sentido aos mesmos através das, experiências.
(HARTOG, 2013).
Pensando nessas análises sobre como pensar o tempo, como
apreendê-lo, e o que faz sentido nessa apreensão é o que motiva as novas
pesquisas no tempo presente. Os sujeitos passados são outros, as
maneiras de pensá-los são outras e as expectativas sobre sujeito são
4
outras. A maneira de historicizar mudou, acompanhando as necessidades
do seu tempo.
A reconfiguração do pós-guerra trouxe o sujeito pós-moderno, novas
maneiras de se pensar o sujeito foram crescendo e até as correntes mais
ortodoxas perceberam que outras questões deveriam ser pensadas para
analisar a sociedade. A esperança de um mundo melhor havia sido
marcada por experiências traumáticas, o modo cartesiano de pensar o
mundo não servia mais. O marxismo se rendeu aos fenômenos desse
mundo, percebeu que era preciso pensar o mundo através de um novo
componente, a cultura, por hora o suficiente era compreender o mundo e
não buscar respostas a ele. Para alguns pensadores como E. P. Thompson,
a história precisava ser vista de baixo, e as experiências dos grupos sociais
era uma importante maneira de tentar compreender a sociedade.
(CEVASCO, 2003)
Nesse contexto de mudanças, não se pode esquecer que
historiadores também são sujeitos e também sofrem as transformações
do seu tempo, mesmo que a percebam de forma mais crítica. Nesse
sentido algumas ideias são importantes para pensar o sujeito historiador
no tempo presente e também como o mesmo percebe se percebe no seu
próprio tempo.
A relação do indivíduo com o seu tempo é uma relação anacrônica
como sugeria Georgio Agamben, citando Nietzsche, que analisa que o
próprio anacronismo e deslocamento é que permite apreender seu
próprio tempo. Seguindo essa ideia é importante que o indivíduo perceba
5
a distância e a proximidade com a contemporaneidade, essa percepção é
muito importante para o devir histórico. Nesse sentido, a história do
tempo presente tem quase que uma missão, que busca nas fissuras do
tempo uma resposta,

“ o contemporâneo não é apenas aquele que,


percebendo o escuro do presente, nele apreende a
resoluta lua; é também aquele que, dividindo e
interpolando o tempo, está á altura de transformá-lo
em relação com os outros tempos, de nele ler de
modo inédito a história (...) É como se aquela luz, que
é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre
o passado, e este, tocado por esse facho de sombra
adquirisse a capacidade de responder ás trevas do
agora”. (AGAMBEN, 2009 p. 72)

Mas essa é apenas uma das diferentes visões que a história do tempo
presente pode suscitar, seguindo a lógica de Walter Benjamin, que
acredita que repensar questões do passado são uma possibilidade de
poder reparar ou não repetir, de alguma maneira no presente, quase
como uma redenção. Diante de tantas considerações sobre como pensar a
História no Tempo Presente, é possível perceber que a maneira e as
possibilidades de pensar a história mudaram, se ampliaram. Um das
grandes considerações e inspirações para pensar na Historia do Tempo
Presente é pensar também que o futuro pode iluminar o passado e não
apenas isso, mas que a História tem urgência e pode agir, manifestar-se
em uma dimensão política mostrando sua importância. Eis um dos papeis
da História, segundo Benjamin: “ Articular o passado não significa aceitá-lo
6
‘do jeito que ele era.” Significa apropriar-se de uma memória que eclode
em um momento de perigo.” (p. 223).
Pensando na História Cultural é imprescindível não se utilizar dos
conceitos de autores que participaram da construção de uma nova
mentalidade para pensar a cultura, expondo uma concepção materialista
da mesma, Raymond Williams, Perry Anderson, E P Thompson, Eric
Hobsbawm, Stuart Hall fundadores da Nova Esquerda (New Left), um dos
mais importantes movimentos intelectuais e políticos do século passado,
são alguns dos autores de referência. Essas perspectiva de se pensar a
história em uma concepção materialista pode contribuir muito, desde a
construção do sujeito pós-moderno até o lugar dos grupos subalternos
nessa sociedade.
Uma concepção interessante para pensar a pesquisa historiográfica é
a micro- análise, rompendo em partes com a corrente dos Annales que se
fundamenta em uma macro-análise. Escolher a micro- análise é uma
questão de posicionamento, ou seja, que tipo de pesquisa o historiador se
propõe a fazer, um ponto de vista de conhecimento. Se um historiador
escolher esse método deve dar conta de fundamentar sua pesquisa. Pode-
se dizer que é uma escolha e uma forma de desconstruir os objetos e
revisar o papel das fontes. É uma escolha corajosa e arrojada.
É com base nesses referenciais, que se desenvolverá a pesquisa sobre
as experiências das populações de origem africana em Santa Catarina,
permeando os campos sobre cultura, sobre o papel da História na pós-
modernidade e sobre a relevância de se desenvolver pesquisa sobre essas
7
populações na pós-modernidade.

Historicizando as experiências e iluminando o passado.

O Historiador Reinhart Koselleck, em seu livro, Futuro passado:


contribuição à semântica dos tempos históricos, atenta para a construção
de uma ressignificação no presente também como uma forma de estudar
o presente e o passado. Para ele as experiências são grande fonte para
ressignificar o presente, gerando expectativas ao futuro. É através desses
conceitos, que se entende que estudar as experiências vividas, nesse caso
por africanos e afrodescendentes se torna tão importante quando
pensadas em um pressente e futuro diferente.
Pesquisar as diferentes experiências das populações de origem
africana no Estado Catarinense por si só, já gera uma historicidade de
conceitos que permite escrever e reescrever a história vislumbrando
aspectos que se não fosse através do cotidiano, talvez não fizessem a
diferença na (re) construção da História. Nesse sentido essa pesquisa é
baseada, também nos conceitos da historiadora Maria Odília Silva Dias,
quando aponta que,
A interpretação do cotidiano tornou-se um exercício
de perspectiva renovador da história ao se propor a
perseguir as vicissitudes de conceitos ou temas da
vida de todo dia, de um prisma relativista e
indiferente a parâmetros prefixados. Constituiu
principalmente em elaborar o relativismo, o que levou 8
a historicidade aos conceitos. (DIAS, 1998, p. 232).

Analisar a história através de experiências cotidianas se torna pertinente


porque assim se desvenda não só o imaginário social da época, os relatos
e experiências se tornam fontes de reconhecer tais acontecimentos,
gerando um novo método de historicizar.
Outra consideração importante quando se escreve sobre as
populações de origem africana, e não somente africana e sim sobre
qualquer presença de diferença num mesmo contexto vivido, sobretudo,
quando se trata de aspectos culturais, é a visão proposta pelo sociólogo
Stuart Hall, sobre a análise dos hibridismos que acontecem por meio das
diferenças, e das identidades que se reconfiguram. Através dessa visão é
possível reconhecer o processo de hibridismo enquanto um
desdobramento da diáspora que resultou na formação de uma identidade
plural, construída na modernidade, e isenta de características puras,

Estritamente falando, em termos etnográficos, não


existem formas puras. Todas essas formas são sempre
o produto de sincronizações parciais, de
engajamentos que atravessam fronteiras culturais, de
confluência de mais de uma tradição cultural, de
negociações entre posições dominantes subalternas
[...]. Essas formas são sempre impuras (HALL, 2003, p.
325).
Hall entende que, essa junção é imersa de elementos identificatórios de
múltiplas influências. Essa visão se torna ampla e repleta de exemplos e
especificações em seu livro Identidade Cultural na Pós-modernidade. Hall 9

define que,

Em vez de pensar as culturas nacionais como


unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo
um dispositivo que representa a diferença como
unidade ou identidade. A diferença entre as culturas
nacionais é que irão formar esta unidade e identidade
unificada. Elas são atravessadas por profundas
divisões e diferenças internas, sendo unificadas
apenas através do exercício de diferentes formas de
poder cultural. No entanto são representadas como
unificadas (HALL, 2001, p. 62).

Stuart Hall, também é embasamento para essa pesquisa quando


analisa a diáspora africana, sobretudo, quando se registra na
contemporaneidade significados relativos a essa diáspora sofrida, no livro
Da Diáspora: identidades e mediações culturais é possível compreender
diferentes maneiras de se estabelecer, se reconhecer e se reorganizar em
uma sociedade tão diferente. Segundo Hall,

[...] uma vez que fomos excluídos da corrente


dominante – eram frequentes os únicos espaços
performáticos que nos restavam e que foram sobre
determinados de duas formas: parcialmente por suas
heranças, e também, determinados criticamente pelas
condições diaspóricas nas quais as conexões foram
forjadas. A apropriação, coptação e rearticulação
seletivas de ideologias, culturas e instituições
européias, junto a um patrimônio africano. (HALL,
2003, p. 324).

10
Utilizar Stuart Hall e suas considerações sobre as diferentes identificações
possibilita o reconhecimento das várias construções existentes num
contexto comum e dá oportunidade as diferenças, de reestabelecer o
sentido de pertença 2, mesmo que ele esteja em crise, a crise gera a
reflexão e a desestruturação de conceitos que até então eram intocáveis.
O processo de integração dos afrodescendentes na sociedade
dominadora e opressora branca foi muito difícil, mas suas intermináveis
formas de resistir a essa opressão sempre aconteceram, só que são pouco
evidenciadas colocando os afrodescendentes sempre como figurantes, em
quase todos os aspectos sociais. Antes de qualquer coisa, é preciso
compreender que a cultura racista quase sempre julga suas manifestações
como superficiais.
Essas referências citadas dão sustentação a essa pesquisa, quando
defendem a ressignificação da História e da historiografia, tanto na
importância de reconhecer as experiências cotidianas e interpretá-las
gerando novos conceitos históricos, quanto na defesa da construção de
uma identidade plural, e mais ainda quando desconstroem os

2
“ No contemporâneo é o pertencimento e não a autenticidade que constrói territórios.” CAMPOS,
Emerson César de. Territórios Deslizantes: recortes, miscelâneas e exibições na cidade
contemporânea – Criciúma (SC) (1980-2002). Florianópolis, 2003. 214 f. Tese (Doutorado em
História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis. p.159
pressupostos eurocêntricos e acreditam na possibilidade de dar outros
rumos às experiências e construções futuras. Diante dessa gama de novos
conceitos é imprescindível não discutir o conceito e a importância da
cultura e suas diferentes interpretações na modernidade.
11
Utilizando-se da ideia de que a cultura pode ser analisada, também,
através do enfrentamento da diferença - como a cultura do “branco” e a
do “negro”- essa análise é importante para compreender os espaços
reconfigurados, ou de contracultura como define o sociólogo Paul Gilroy
(2001). Quando se propõe um estudo sobre cultura é muito importante
abordar também o conceito de Multiculturalismo, pois ele propõe que
olhemos o “outro” como iguais e ao mesmo tempo como diferentes,
sendo o mais importante ver o “outro” a partir dos termos do “outro”,
não julgar a diferença, mas compreendê-la e respeitá-la. O conceito de
multiculturalismo deve ser emancipatório na compreensão de significados
e sentidos que são associados no cotidiano,

A cultura tornou-se, assim um conceito estratégico


central para a definição de identidade e de alteridade
no mundo contemporâneo, um recurso para a
afirmação da diferença e da exigência de
reconhecimento (SPIVAK, Apud Santos, Ano) e um
campo de lutas e de contradições. (SANTOS, 2003,
p.06)

O multiculturalismo emancipatório é traduzido pelas diferenças


geralmente ligadas às dinâmicas imperialistas, coloniais e pós-coloniais ou
de condições diaspóricas.
Tendo contato com as produções do sociólogo, Boaventura de Sousa
Santos, os conceitos de Multiculturalismo defendidos por ele são muito
importantes para compreensão das diferenças e das desigualdades na
sociedade atual, essas diferenças e desigualdade se refletem no dia-a-dia
12
e são fáceis de serem percebidas nos menores espaços. O artigo de
Boaventura de Sousa Santos Para ampliar o cânone do reconhecimento,
da diferença e da igualdade, aborda uma questão que pode resumir os
esforços dessas novas pesquisas sobre as diferenças culturais, sobretudo
das populações de origem africana. As discussões sobre o tema da
desigualdade, de Movimentos Negros e núcleos dedicados a pesquisas
sobre afrodescendentes, resultantes de um pensar Multicultural,
ganharam novas conquistas- como Ações Afirmativas e Políticas de Cotas
no Brasil- Assim se configura a colocação de Sousa no sentido real de um
multiculturalismo emancipatório,

Essa é a condição para uma utilização estratégica e


emancipatória desses conceitos tanto nas arenas
nacionais como transnacionais enquanto parte de
discursos que articulam as exigências do
reconhecimento e da distribuição, de uma igualdade
que reconheça as diferenças e de uma diferença que
não produza, alimente ou reproduza desigualdades.
(SANTOS, 2003, p. 10)

As contribuições de Homi K. Bhabha, no livro, O local da cultura,


serão utilizados como consideráveis reflexões para compreender os
lugares de trânsito, entre tempo e espaço, que “ se cruzam para produzir
figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior
e exterior, inclusão e exclusão” 3. Os questionamentos e pontuações de
Bhabha permeiam sobre o local da cultura no mundo contemporâneo,
colocando a cultura na esfera do além esse além seria um lugar
13
desorientado ainda. De acordo com o autor,

(...) residir no além é ainda, como demonstrei, ser


parte de um tempo visionário, um retorno ao
presente para redescrever nossa contemporaneidade
cultural; reinscrever nossa comunalidade humana,
histórica; tocar o futuro em seu lado de cá. Nesse
sentido, então, o espaço intermédio além torna-se um
espaço no aqui e no agora. (BHABHA, 1998, p. 27).

O autor define um lugar para essa dimensão de cruzamentos tão


diferentes e de diferentes identificações denominando-o de entre lugar. O
entre lugar segundo Bhabha, são processos que são produzidos na
articulação das diferenças culturais, que só são compreendidas no
momento em que formam identidades, fornecendo terreno para
estratégias de subjetivação, singular ou coletiva, que dão início a novos
signos de identidade e de contestação para definir a própria ideia de
sociedade. E nesse entre lugar, indefinido, que as possibilidades da
articulação da diferença sobrevive sendo marcado pela autoridade, pela
luta e pelos hibridismos produzidos. O autor pontua que no mundo pós-
moderno as culturas nacionais homogêneas estão em profunda
transformação, a possibilidade de se pensar em hibridismos culturais é um

3
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis,
Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.p. 19.
sinal dessas diferentes representações. “ Cada vez mais, as culturas
“nacionais” estão sendo produzidas a partir da perspectiva de minorias
destituídas.”(p. 25).
Para perceber-se no além, na busca por identificações a negação é
14
importante, estar estranho ao lar, mas não sem casa, seja na divisão
familiar, social, em esfera pública ou privada. (BHABHA, 2008). Analisando
as estruturas culturais formadas no mundo pós-moderno Bhabha analisa
que se vive vidas duplas no mundo pós-colonial, que ele define como
“dois eus ”. Bhabha entra no conceito de raça, e de como sua presença é
vigiada no sentido de controle social. Os negros estão constantemente
sendo avaliados pelo olhar do branco e não a partir do seu próprio olhar
ficando a margem de ser objeto de análise e não protagonista de sua
própria história.
O autor utiliza de alguns pensamentos de Frantz Fanon para pensar
de onde se desloca e porque se desloca a ideia de negrura, analisando que
a própria negritude é plural e não pode colocar todos os negros num
mesmo lugar, pois partem de experiência e especificidades por vezes
comuns, mas não iguais. Bhabha pensa a modernidade como um espaço
para essa minorias sujeitadas, “ A modernidade que proponho , tem a ver
com a construção histórica de uma posição específica de enunciação e
interpelação histórica. Ela privilegia o que são sujeitados, historicamente
deslocados.”
Para compreender a diferença cultural e sua dinâmica, é preciso
reconhecê-la num primeiro momento, essa diferença cultural, pontuada
por Bhabha, é conflituosa e se entrelaça sempre, contudo jamais deve ser
negada socialmente, o próprio reconhecimento da diferença afirma o
reconhecimento dos novos signos.
O historiador Roger Chartier, também é relevante para pensar as
15
experiências das populações de origem africana em Santa Catarina através
dos conceitos que utiliza para analisar as representações de diferentes
culturas, de como são reproduzidas e representadas. O estudo das
experiências das populações de origem africana em Santa Catarina
permeia esses conceitos de Chartier, analisando os contextos de
representações culturais e das relações estabelecidas entre “branco” e
“negro”.
As contribuições de Lilia Moritz Schwarcz, sobre as teorias raciais são
importantes para a compreensão da formação e construção de uma
mentalidade racista no Brasil, de como o discurso difundido como
Darwinismo Social, implicou em naturalizar uma raça superior e outra raça
inferior. Segundo a autora,

“É possível dizer, no entanto, que os modelos


deterministas raciais foram bastante populares, em
especial no Brasil. Aqui se fez um uso inusitado da
teoria original, na medida em que a interpretação
darwinista social se combinou com a perspectiva
evolucionista e monogenista. O modelo racial servia
para explicar as diferenças e hierarquias, mas, feitos
certos rearranjos teóricos, não impedia pensar na
viabilidade ele uma nação mestiça. Este já é, porém,
um debate que pressupõe a reflexão sobre a
excelência da cópia e a especificidade desta no
pensamento nacional - o que será feito mais adiante.”
(p. 28)

Outra referência importante é a autora Gayatri Chakravorty Spivak,


16
em sua obra, Pode o Subalterno falar, a intenção da autora é chamar os
intelectuais pós- coloniais a discutir os grupos subalternos e combater
essa condição, criando meios de articulação nesse combate. Para Spivak o
subalterno é aquele sujeito que pertence “ às camadas mais baixas da
sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos
mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se
tornarem membros plenos no estrato social dominante.” (p.12). Nesse
sentido essa pesquisa se engloba também nessa chamada de pensar esses
grupos sociais, que no Brasil podem ser considerados em maioria os de
origem africana. Outro autor importante para pensar os grupos
subalternos é Partha Chatterjee, buscando identificar as relações da
politica com esses grupos subalternos e de como esses grupos se
organizam na heterogeneidade do tempo, e da construção ambivalente da
nação. Para o autor somente a identidade como categoria pode
estabelecer a formação de um grupo e a partir daí a possível negociação
sobre direitos políticos. Esses aspectos podem ser pensados também no
Brasil, quando pensado sobre o aspecto de identidades nacionais
homogeneizadoras.
Dentre tantos autores citados, Frantz Fanon é um dos mais
importantes, pois rompe com o tradicional pensamento e método de
produção histórica difundido nas academias, um método que rompe os
parâmetros brancos e universalistas de pensar o mundo. Fanon
problematiza o próprio negro, para ele é preciso que o negro pense em si
nos seus próprios termos e não pelos termos dos brancos. O autor aborda
o racismo de maneira muito clara apontando os dramas que o
17
colonialismo gerou sobre os negros, citando,

“ Que quer o homem? Que quer o homem negro?


Mesmo expondo-me ao ressentimento de meus
irmãos de cor, direi que o negro não é um homem, (...)
O negro é um homem negro; isto quer dizer que,
devido a uma série de aberrações afetivas, ele se
estabeleceu no seio de um universo de onde será
preciso retirá-lo. O problema é muito importante.
Pretendemos, nada mais nada menos, liberar o
homem de cor de si próprio. Avançaremos
lentamente, pois existem dois campos: o branco e o
negro”. (p.26)

Nesse sentido essa obra é um dos pontos de partida para pensar questões
raciais no mundo pós-moderno é mais que isso, Fanon inspira a pensar na
desconstrução e descolonização das mentalidades tanto de negros quanto
de brancos, mas para isso é preciso perceber-se como um resultado de
meios de produzir pensamentos a partir do sistema colonial, caraterizado
pelo opressor e pelo oprimido.
Na intenção de contribuir com a produção historiográfica sobre as
populações de origem africana, essa pesquisa traz possibilidades de
relatar as diferenças culturais existentes no Estado Catarinense, dando
oportunidade a essas diferenças, através das inúmeras experiências que
se estabeleceram no estado em diferentes regiões. Sendo assim pesquisar
sobre as populações de origem africana é também uma maneira de
problematizar as maneiras de historicizar, é dar visibilidade aqueles que
sempre sofreram a invisibilidade, mais que isso, é atentar para o fato de
que a historiografia Catarinense foi construída, e se perpetua ainda, tendo
18
como plano de fundo uma visão singular de cultura, de identidade, e
predominada por uma escrita de visão eurocêntrica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? Chapecó, SC: Argos, 2009.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ___. Magia e técnica,


arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 222-232.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila,


Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1998.

CHATTERJEE, Partha. Colonialismo, Modernismo e Política. Salvador:


EDUFBA-CEAO, 2004.

CHARTIER, Roger. A historia cultural entre práticas e representações. Rio


de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa [Portugal]: Difel, 1990.

CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo:
Boitempo, 2003. 188 p.

DIAS. Maria Odila Leite da Silva. Hermenêutica do quotidiano na


historiografia contemporânea. Projeto História – trabalhos da memória.
São Paulo, no 17, Nov. 1998.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1983.
194 p.
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência / Paul
Gilroy; tradução de Cid Knipel Moreira.- São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro:
Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
HALL, Suart. A identidade cultural na pós- modernidade / Stuart Hall;
tradução de Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. -Rio de Janeiro: 19
Ed. 5ª; DP&A, 2001.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais / Stuart


Hall; Organização Liv Sovik; tradução de Adelaine La Guardia Resende...[et
all].- Belo Horizonte: UFMG, 2003.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências
do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. 267 p.

HOBSBAWM, Eric. O presente como história. In___: Sobre história:


ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.243-255.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos


tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto 2006. 366 p

LAGROU, Pieter. A História do Tempo Presente na Europa depois de 1945 -


Como se constituiu e se desenvolveu um novo campo disciplinar Rio de
Janeiro: Revista Eletrônica Boletim do Tempo, Ano 4, n.15, Rio de Janeiro,
2009.

REVEL, Jaques. Microanálise e Construção do social. In: REVEL, Jaques


(org.). Jogos de Escalas. A experiência da micro-análise. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do


cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

SCHWARCZ, Lila Mortiz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno falar ? Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010. 133 p.

THOMPSON, Edward Palmer. Estrutura e processo. O termo ausente:


experiência. In: ___. Miséria da teoria (ou um planetário de erros). Rio de
Janeiro: Zahar, 1981, 82-97 e 180- 201. 20
A COMPANHIA MATE LARANJEIRA NO SUL DE MATO
GROSSO: UM “OBSTÁCULO” PARA A COLONIZAÇÃO
Vinícius Rajão da Fonseca1

1
Resumo: Este artigo tem como foco central historicizar o processo de formação da
Companhia Mate Laranjeira no final do século XIX e analisar a sua relação com o
processo de ocupação e colonização das terras no sul de Mato Grosso. Buscamos
compreender se a Mate Laranjeira realmente atrasou o processo de colonização da
região como é apontado por alguns estudos nas últimas décadas. Pensar que as
dificuldades de colonizar o território mato-grossense foi resultado exclusivo da
presença e força da CML é uma forma de isentar o Estado de sua responsabilidade,
pois percebemos que existiu uma rede de relações de poder para favorecer ambas as
partes.

Palavras-Chave: Sul de Mato Grosso; relações de poder; erva-mate.

Abstract: This article has as its central focus historicizing the process of formation of
the Company Mate Laranjeira in the late nineteenth century and analyze its
relationship with the process of occupation and colonization of the lands in the south
of Mato Grosso. We seek to understand the Mate Laranjeira actually delayed the
process of colonization of the region as pointed out by some studies in recent decades.
To think that the difficulties of colonizing the territory of Mato Grosso was the
exclusive result of the presence and strength CML is a way to exempt the state from its
responsibility because we realized that there was a network of power relations to favor
both parties.

Keywords: South of Mato Grosso; Power relations; mate herb.

1
Licenciado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e Mestre em História,
Poder e Práticas Sociais pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). E-mail:
viniciusrajao@gmail.com
A história da Companhia Mate Laranjeira (CML) tem início nos anos finais
do século XIX. Com o fim da Guerra da Tríplice Aliança e a assinatura do
tratado de paz, foi organizada uma comissão de limites, que ficou
responsável pela demarcação das fronteiras entre os países envolvidos no
conflito. 2

A comissão brasileira foi chefiada pelo coronel Rufino Enéas Gustavo


Galvão, além de soldados de infantaria e cavalaria liderados pelo major
Antônio Maria Coelho (ALMEIDA, 2010, p. 102). Existiam outros
integrantes também, como os auxiliares técnicos major Francisco Xavier
Lopes de Araújo, pelos capitães Guilherme Carlos Lassance e Joaquim de
Oliveira Pimentel e pelo médico Augusto da Silva Lisboa. Já a comissão
paraguaia foi chefiada pelo capitão de fragata D. Domingos Antonio de
Ortiz e pelo capitão D. José Dolores Espinosa (ALMEIDA, 2010, p. 102).
O responsável pelo abastecimento foi Tomás Laranjeira, natural de
Santa Maria, Rio Grande do Sul. Laranjeira atuou como voluntário no
conflito platino, permanecendo no Paraguai após o fim da Guerra. No
tempo em que permaneceu no Paraguai, Laranjeira conheceu os processos
de colheita e industrialização da erva mate, produto consumido no país
guarani, na Argentina e no Brasil. Acompanhando a comissão de limites,
Laranjeira identificou inúmeros ervais ao longo do caminho no território
brasileiro, percebendo essa região como uma fonte de riqueza pouco
aproveitada (ALMEIDA, 2010. p. 95-113).
Com o fim das atividades da comissão de limites, Laranjeira passou a
explorar a produção de erva mate em Concepcion, no Paraguai. Em 1879,
assumiu como presidente da província de Mato Grosso, Rufino Enéas
Gustavo Galvão, o mesmo que comandou a comissão de demarcação de
limites. Laranjeira aproveitou a amizade que dispôs com Galvão no
período em que foi fornecedor e secretário da comissão para solicitar seu
apoio junto ao governo imperial no arrendamento dos ervais nativos no
SMT (ALMEIDA, 2010. p. 95-113). 3

Em 1882, foi assinado o decreto nº 8.799, em que o governo


imperial “lhe concedeu permissão para colher erva mate nos terrenos
devolutos que demoravam nos limites da província de Mato Grosso com a
República do Paraguai, entre os rios Verde e Amambaí” (ALMEIDA, 2010,
p.108). Além dos ervais, Laranjeira investiu na compra de propriedades
rurais para desenvolver atividades pastoris.
Em 1890, Laranjeira consegue ampliar o espaço de arrendamento
dos ervais, obtendo “direitos exclusivos sobre a exploração de uma
vastíssima área, que abrangia quase toda a região ervateira do estado”
(QUEIROZ, 2010, p. 77). Por coincidência ou não, Laranjeira aproveitou-se
novamente da amizade de um membro da comissão – Antônio Maria
Coelho – primeiro governador de Mato Grosso após a Proclamação da
República para que intercedesse a seu favor na expansão de seus
arrendamentos na zona ervateira (ALMEIDA, 2010. p. 109).
No ano de 1891, Antônio Maria Coelho, presidente de Mato Grosso
é deposto do cargo pela aliança entre Generoso Ponce e Manoel
Murtinho. Este último assume como novo administrador do estado e

usando do dispositivo constitucional, o qual estabelece que


a concessão de terras devolutas passa para a
responsabilidade do Estado, e do poder político que detém,
quebram o monopólio de Laranjeira. Isto é, Manoel
Murtinho, Presidente do Estado, através da Lei nº 26, abre
concorrência pública para arrendamento da área
compreendida entre os rios Iguatemi e Paraná. O vencedor
dessa concorrência é o Banco Rio e Mato Grosso, cujo
Presidente é Joaquim Murtinho. Assim sendo, Laranjeira, a 4
partir de 1892, passa a dividir seu monopólio da exploração
ervateira e o seu direito de guardião dos ervais com a
empresa dos irmãos Murtinho (WEINGARTNER, 1995. p.
71).

Sem proteção política, Laranjeira associa-se aos irmãos Murtinho e


sua empresa é reconfigurada, passando a se chamar Companhia Mate
Laranjeira (CML). “Essa companhia foi efetivamente constituída em
setembro de 1891, sendo que, das 15.000 ações em que se distribuía seu
capital (3 mil contos de réis), nada menos que 14.500 foram subscritas por
uma outra empresa, denominada Banco Rio e Mato Grosso” (QUEIROZ,
2010. p. 77).
A composição acionária da Companhia Mate Laranjeira era
composta da seguinte forma: Banco Rio e Mato Grosso – 14.540 ações; Dr.
Joaquim Murtinho, 100; Tomás Laranjeira, 110; Dr. Casimiro Menezes, 10;
Francisco Murtinho, 50; Dr. Francisco Marques Pinheiro, 10; João Nunes de
Carvalho, 10; Lucídio Martins, 50; Dr. Manoel Martins Torres, 20; Manoel
Moreira da Fonseca, 100; totalizando 15.000 ações (WEINGARTNER, 1995.
p. 71).
O Banco Rio e Mato Grosso (BRMT) foi o primeiro estabelecimento
de crédito a operar no antigo Mato Grosso. Foi fundado em 1890 e
funcionou até 1902, quando entrou em processo de liquidação. Além de
operar no Rio de Janeiro, possuía uma agência em Cuiabá e um caixa em
Corumbá. O banco investiu principalmente em operações industriais no
comércio mato-grossense, extração da borracha e exploração da erva
mate, no qual obteve mais êxito (QUEIROZ, 2010 -b, p. 125). 5

Com essa união, a CML torna-se a única concessionária dos ervais,


ampliando o “prazo de arrendamento para dezesseis anos”, o que “reforça
e garante à concessionária o monopólio da exploração ervateira e amplia
seu direito de guardiã dos ervais” além de suprimir a “cláusula que
reconhece o direito dos moradores da região em explorar a erva mate”. A
CML podia “autorizar ou não a entrada de estranhos no ervais” e possuir
uma “guarda policial” (WEINGARTNER, 1995, p.71).
Com o crescimento da empresa, a CML constituiu grande
infraestrutura, como portos, ferrovias, estradas, embarcações fluviais,
instalações próprias e até organizou cidades como Campanário e Guaíra.
Os bens da CML por volta de 1934 estavam discriminados em 900 carretas,
180 chatas, 7 lanchas a vapor, 2 linhas ferroviárias de 80km, 30 depósitos
mestres, 70 depósitos auxiliares, 250 km de estradas vicinais de rodagem,
60 pontes construídas e distribuídas pelos ervais, 20 rebocadores e 8
vapores, 2.700 burros, 2.500 cavalos 55.000 cabeças de rebanho bovino e
possuía 28.000 empregados, sendo 18.000 fixos e 10.000 volantes
(DUARTE, 1947. p. 127). A CML contava com milhares de trabalhadores
para dar conta de todo esse aparato, em grande maioria paraguaios e
indígenas guarani.
6

FIGURA 4. Área da Companhia Mate Laranjeira no final do século XIX


(adaptado).

Com a liquidação do BRMT em 1902, a CML também desapareceu,


no entanto, Laranjeira adquiriu toda a estrutura referente a companhia e
associou-se a Francisco Mendes. Mendes era um português nascido na
ilha da Madeira. Teria conhecido Laranjeira na Guerra com o Paraguai,
quando eram ambos comerciantes e fornecedores do exército brasileiro e
já nessa ocasião eles teriam idealizado o futuro negócio da erva (QUEIROZ,
2010. p. 81). Essa associação formou a empresa Laranjeira, Mendes e Cia.
com sede na Argentina.
Embora tenha assumido ao longo do tempo, diferentes nomes e
configurações, essa empresa ficou historicamente conhecida pelo nome
adotado em 1891 (Companhia Mate Laranjeira) e manteve uma posição
predominante nos ervais sul mato-grossenses até a década de 1940
(QUEIROZ, 2010. p. 77). Laranjeira era responsável pela colheira,
industrialização e transporte da erva mate até a Argentina. No país
portenho, Mendes distribuía e comercializava o produto, fazendo chegar
até os consumidores. 7

A CML começou enfrentar resistência dentro do próprio Estado de


Mato Grosso. No início do século XX, brigas políticas entre as elites
dirigentes do Estado, fizeram com que Generoso Ponce e a família Corrêa
da Costa, outrora, aliados da família Murtinho (diretores do BRMT e
apoiadores de Laranjeira) anulassem o acordo de união entre eles. Aqueles
tornaram-se opositores aos benefícios concedidos a CML, como a
exclusividade nos arrendamentos, taxas de impostos considerados baixos
e uma ampliação do contrato de arrendamento que estava por vencer.
Laranjeira não conseguiu manter o seu monopólio da produção de
erva mate no estado mato-grossense, uma vez que, políticos da oposição
foram contrários a ceder benefícios a empresa, alegando que causaria
lesão ao estado. Pedro Celestino, um dos aliados de Ponce, escreveu um
pequeno livro, intitulado “A questão do Mate”, publicado em 1912, onde
expôs baseado em análise do contrato com a CML, seus argumentos
contrários à aprovação pela Assembleia Legislativa do Estado. De acordo
com Pedro Celestino

alguns rumos do novo contrato de arrendamento


precisavam ser arrumados e discutidos, como a evasão de
impostos na medida em que toda a erva do Estado era
consumida quase exclusivamente na República Argentina e
cujo principal mercado era o Chile e outras Repúblicas
latinas. Esse rumo político-econômico precisava ser
corrigido. Por outro lado as pretensões da empresa em
aumentar a área de exploração dos ervais, de comprar
glebas abaixo do preço e outras vantagens ia, contra o
interesse do Estado *…+ Essas terras tinham que ser
aproveitadas para aumentar o povoamento no sul do 8
Estado (COSTA apud SILVA, 1996. p. 61).

Em 1915, o governo garantiu o fim do monopólio e permitiu que


pequenos proprietários tivessem acesso à terra, conforme observa, Virgílio
Corrêa Filho:

A cada um dos ocupantes de terras de pastagens e de


lavoura situadas dentro da área compreendida no contrato
do arrendamento em vigor, será garantida dentro do prazo
de 2 anos, a partir de 27 de junho de 1916, a preferência
para aquisição de uma área nunca superior a 2 lotes de
3.600 hectares cada um (FILHO, 1969. p. 605).

A quebra do monopólio da CML causou uma nova amotinação em


Mato Grosso, posto que, os apoiadores da companhia tentaram derrubar o
presidente do Estado, Caetano de Albuquerque. Esse movimento ficou
conhecido como Caetanada. Isso Wenceslau Braz, presidente da
República, a declarar intervenção federal no Estado em 1917, ultimando o
movimento. Um acordo entre os partidos políticos do Estado levou o Bispo
de Cuiabá, Dom Aquino Corrêa a formar um governo de coalizão, visando
a manutenção da paz em Mato Grosso (SILVA, 1996. p. 64).
Desde os finais do século XIX, houve um fluxo migratório de
paraguaios para o SMT, devido a Guerra da Tríplice Aliança, que quase
provocou a “completa desarticulação da economia” do Paraguai, sendo
assim, foram em “busca de trabalho e sustento para as suas vidas”
(ARRUDA, 1993. p. 44-47). Ademais, gaúchos, mineiros e goianos também
migraram para essa região em busca de terras, conforme apontam vários 9

estudos (ARRUDA. 1986,1993; BIANCHINI. 2000; BITTAR. 1999,2009 ;


GUILLEN. 1991; QUEIROZ. 1997,2004; SILVA. 1996; SODRÉ. 2000;
WEINGARTNER. 1995).
Existia uma imagem propagandeada pelo governo federal e
estadual, que Mato Grosso possuía enormes vazios demográficos
(GUILLEN, 1999. p. 148). A CML procurou implantar uma “uma política de
espaços vazios”, que visava impedir a qualquer custo, a ocupação das
terras nas imediações ou na localidade de seus arrendamentos, além de
dificultar o trabalho dos pequenos produtores da erva mate (GUILLEN,
1999. p. 150). Podemos considerar que a manutenção dessa política
destinava-se ao controle dos ervais e formas de trabalho empregadas pela
CML.
Tabela 1. Número de títulos de terras expedidos pelo Estado de Mato
Grosso entre os anos 1902-1929.

Nº de títulos de terras expedidos no Estado de Mato Grosso


Período Terras Públicas Terras Particulares Quantidad 10
e final
Ano Tít. Tít. def. Área ha. Tít. def. Área ha. Total
prov.
1902 32 21 116.638 86 1.115.528 139
1903 41 19 103.323 67 1.231.935 127
1904 52 34 257.274 72 2.049.340 158
1905 53 31 108.045 747 240.716 831
1908 41 26 173.113 20 107.450 87
1909 49 25 222.975 15 111.529 89
1910 54 23 84.828 28 258.296 105
1911 - 13 253.626 - - 13
1916 41 87 - - - 128
1917 75 187 - - - 262
1918 137 107 236.010 - - 244
1919 177 71 977.737 - - 248
1920 219 46 671.614 - - 265
1921 183 35 1.684.445 - - 218
1922 49 62 537.510 - - 111
1923 168 147 1.091.446 - - 315
1924 157 110 765.010 267
1925 90 101 554.517 - - 191
1926 89 76 540.222 - - 165
1927 61 97 476.716 - - 158
1929 107 61 650.574 - - 168
Fonte: Organizado pelo autor, com o auxílio dos relatórios de presidentes
de estado, disponíveis no sítio
<http://www.crl.edu/brazil/provincial/mato_grosso>.
A escolha desse período de datas está relacionado ao fato de ter
encontrado somente a partir de 1902, dados que pudessem fornecer
informações claras a respeito da emissão de títulos de terras. E o ano de
1929 é o período final, devido a facilidade de acesso aos documentos dos
presidentes de província e estado, que estão disponíveis de forma 11

digitalizada no sítio <http://www.crl.edu/brazil/provincial/mato_grosso>


desde 1835 até 1930. Algumas datas não possuem informações na tabela,
pois em alguns relatórios não encontramos dados ou referências
correspondentes a emissão de títulos nos documentos.
A chegada de migrantes representava um perigo para a CML, pois
estes “desejavam, acima de tudo, a propriedade da terra”, ou seja, os
migrantes ao se estabelecerem nas áreas de arrendamento, começaram a
confrontar o monopólio de Laranjeira (GUILLEN, 1999. p. 148). Vários
pequenos produtores de mate, passaram a produzir de forma clandestina
e contrabandear a erva para o Paraguai. Em 1915, o presidente do Estado,
Costa Marques, estimou uma quantidade de “1.400.000 kg de erva mate
contrabandeada” (COSTA MARQUES, 1915. p. 70). Podemos conjecturar
essa situação como uma forma de resistência ao monopólio da CML pelos
pequenos produtores.
O presidente do Estado, Mario Corrêa da Costa, expôs em seu
relatório em 1926, de acordo com as informações cedidas pela Diretoria
de Terras, Minas e Colonização, que

a venda de terras, como já se vem dando desde alguns


anos, avultou mais nos municípios do sul do Estado,
especialmente Ponta Porã, cujas terras, em sua maior parte
de ervais, cada vez mas valorizadas, são objeto de intensa
procura. Só no primeiro trimestre do ano corrente, contam-
se por dezenas os requerimentos de compra de terras,
todos de Ponta Porã (COSTA, 1926. p. 77).

12
Isso nos permite considerar, associado aos dados que obtivemos das
emissões de títulos de terra, que essa localidade não era tão desocupada
quanto afirmavam os discursos, bem como notou Guillen. Havia um fluxo
migratório e de procura por compra de terras, o que não agradava a CML,
pois representavam uma ameaça aos seus negócios da região.
Bertoldo Klinger, comandante da circunscrição militar de Mato
Grosso, ao narrar suas memórias, destaca as práticas aplicadas pelas CML
com relação aos pequenos produtores e posseiros,

Não só de rigores que, segundo a voz pública, a poderosa


empresa exercia para com seus trabalhadores, mantidos
afinal de contas, apesar de disfarces, em escravidão
econômica sem escapatória, mas também da sua férrea
vontade de posse exclusiva dos mínimos tratos de terra,
confinantes ao seu latifúndio, de qualquer forma preciosos
para sua exploração, resulta grande massa de descontentes,
humanamentes revoltados contra a desumanidade. E que
por todos os meios, a empresa inquietava, enleava e
acabava expulsando os pequenos proprietários encravados
em seu domínio, ou próximos, ou que tentassem ali
estabelecer-se (KLINGER apud GUILLEN, 1999. p. 157).

A CML, com sua fiscalização, procurou expulsar os novos moradores da


região através da perseguição e violência contra os que se colocavam em
seu caminho. Como vários políticos mato-grossenses apoiavam Laranjeira,
quando os pequenos produtores requeriam títulos de terra, enfrentavam a
lentidão do departamento de terras, minas e colonização. Enquanto
esperavam, sofriam pressão política da CML para abandonar os lotes. 13

Tabela 2. Relação de proprietários de estabelecimentos rurais de 1920.


Proprietários Estabelecimento/local Proprietários Estabelecimento/local
1 Maria J. Pereira São Máximo 2 Marcelino Netto São Máximo
dos Santos
3 Feliciano Trintade Cabeceira do Cervo 4 Manoel Moreira Estrella
5 Antonio Romero Cabeceira do Onça 6 Carlota Gomes Colonia Resignação
Franco
7 Alipio Nunes da Cabeceira Dourado 8 Cicero Mangine São João
Silva
9 Procopio dos Serrito 10 Francisco Rosa da Bálsamo
Santos Conceição
11 Verdelino Badeja Invernada 12 Naurelino Cidade Bom Retiro
13 Alzira Saldanha Invernadinha 14 Pedro Manivalet Carambola
15 Gregorio do Amaral Sanga Puytan 16 Governo do Estado -
17 Geraldo Marques Fazenda Sant'Anna 18 Antonio José Pacury
da Silva Pereira
19 João Maria da Silva Horizonte 20 Antonio Velloso de Fazenda da Fortuna
Moraes
21 Macario Subtil de Fazenda Paraizo 22 Nascimento de M Borevy
Oliveira Sobrinho Jesus Mesa
23 Virgilio A Vieira Vista Alegre 24 Alvim R Pithon Lagôa Borevy
25 Governo do Estado M Borevy 26 Martin Greaff M Borevy
27 Angelino José M Bovery 28 Militão Joaquim de M Borevy
Machado Mello
29 Sergio Martins Fazenda do Herval 30 Manoel Rodrigues Santa Izabel
Vieira
31 Euzebio Rodrigues Santa Izabel 32 Francisco Rodrigues Santa Izabel
Vieira Vieira
33 Martim Marçal Santa Izabel 34 Felicio Rodrigues Santa Izabel
Pereira Vieira
35 Vicente Rodrigues Santa Izabel 36 João Ignacio Ribeiro Lagunita
Vieira
37 Alfredo A Marques Lagunita 38 João Lima Rincão da Lagôa
39 Antonio R. Oliveira Santa Ottilia 40 Governo do Estado Rincão do Inferno
41 Manoel Espindola Fazenda Alegre 42 Alziro Machado Fazenda Bomfim
43 Delfino Vieira Fazenda das Palmeiras 44 Manoel Corrêa da Blanco Cuê
Silva
45 Alberto Ratier Rincão Bomfim 46 Zeferino Rolim Ouro Preto
47 Governo do Estado - 48 Randolpho R da Fazenda do Tatarem
Rocha
49 Governo do Estado Fazenda Três Capões 50 Governo do Estado Santo Antonio do
Tatarem
14
51 Laurindo M dos Rincão das Lagôas 52 Maciel de Oliveira Graça de Deus
Santos
53 Isidoro M dos São Felippe 54 Governo do Estado Recreio
Santos
55 Isidoro M dos São Felippe 56 Governo do Estado Costa do Guaymbé Pyri
Santos
57 José Leão São Crescencio 58 Prudencio Andrade São Crescencio
& Comp
59 Florencio Soares de São Crescencio 60 Sabino de Mattos Cacopamy
Andrade
61 Adão Faustino de Inhaguassú 62 João Lemes -
Barros
63 Pedro Belmiro Pacury 64 Guilhermino Destino Cuê
Fernandes Tavares
65 Fructuoso Silveira Espadim 66 Miguel Escobar São Randolpho
da Cunha
67 João Lemes Ipohy 68 Januario Carneiro Celestino Cuê
69 Alfredo Cariaga Tacuapiry 70 Elvidio M dos Patinho Cuê
Santos
71 Romulo Morel Tacuapiry 72 Manoel Bernardo -
Vieira
73 Alfredo Holsbach Patinho Cuê 74 Antonio Soares da Sanga Puytan
Silveira
75 Manoel José Lopes Porto 76 Valencio R de Sanga Puytan
Mattos
77 Epiphanio dos - 78 João Pereira Sanga Puytan
Santos
79 Severo Leite dos Capão Bonito 80 Mario Couto -
Santos
81 Matheus Douzaker Rincão de Julio 82 Nicolau Araujo Sanga Puytan
83 Apparicio Mereiros Fazenda Pacury 84 Alberto Alves Rincão Julio
de Barros Ratier
85 Sansão Pereira Rincão Julio 86 Amancio Claro Sanga Puytan
Ratier
87 Vasco M Novaes Rincão Julio 88 Joaquim Antonio Rincão Julio
Leite
89 Elias Fernandes dos Capão Bonito 90 Martim Rios Rincão Julio
Santos
91 Quintiliano Rincão Julio 92 Adolpho Pereira da Rincão Julio
Domingos Bueno Silva
93 Antonio Fernandes Rincão Julio 94 Fructuoso Vasco Rincão Julio
95 Romão de Souza Rio Verde 96 Nicolau D de Rincão Julio
Oliveira
97 Guilherme Lesmê Rio Verde 98 Firmiano Rincão Julio
Atanagildo de
Oliveira
99 Israel Santiago Rincão Julio 100 Domingues Leite Rincão Julio
15
101 Antonio Maria da Rincão Julio 102 João André Leite Rincão Julio
Luz
103 João Maria Novaes Rincão Julio 104 José Novaes Rincão Julio
105 Manoel Teixeira de Rincão Julio 106 Antonio Gonçalves Rincão Julio
Mattos
107 Francisco Alves Jaguaretê 108 Philomeno Emboscada
Martins Rodrigues &
Irmaõs
109 Domingos Marques Rio Verde 110 Antonio Soares da Rincão Julio
Silva
111 Bento Marques Rio Verde 112 Pedro Narcizo Bello Jaguaretê
113 Homero Paulino Rio Verde 114 Claudio Dutra de Jaguaretê
Dutra Miranda
115 Rodolpho Smith Jaguaretê 116 Ramon Dutra de Rio Verde
Miranda
117 Francisco Custodio Rio Verde 118 Felippe Scheneiden Rio Verde
119 Victorino Marques Rio Verde 120 José Luiz Mattoso Cabeceira dos Porcos
121 Victor S. de Oliveira - 122 Ignacio Carlos dos -
Santos
123 Luciana de Oliveira Curralito 124 João Fernandes São Domingos
Gedra Pereira
125 Francisco Gedra Invernada 126 Gabriel José de Larangay
Oliveira
127 José Pereira dos Socego 128 Pedro Affonso Santa Luzia
Santos Rocha
129 Aurelio Campos São Francisco 130 João Pedro Soares Bocayuva
131 Martim Antunes Porto Felicidade 132 Vasco Venancio Bacajá
Soares
133 Jenasio Maciel de Monte Alegre 134 Agostinho Vieira Tabóca
Oliveira
135 Casemiro P. M. de São Sergio 136 José Rodrigues São João
Oliveira Padilha
137 Joaquim Gregorio Bonito 138 Flaubiano José Serrito
da Silva Rodrigues
139 Herminio Silveira Esperança 140 Abel Almeida Recreio
141 Joaquim Gedra Invernada Taquara 142 Abilio Pereira Taquara
143 Fortunata de São Jeronymo 144 Ildefonso Paim Santa Leocadia
Oliveira
145 Felisbino Clara São Jeronymo 146 Emerenciano Paim Estrella
147 Francisco José Cabeceira Matula 148 Manoel Maciel de Bello Horizonte
Pereira Oliveira
149 Pedro Gomes Cabeceira Bonita 150 João Laurindo São João
Moreira Bueno
151 Guilherme Baptista Potreiro do Destino 152 Affonso Cardoso Potreiro Tujuy
153 Joaquim Gomes Segredo 154 Laranjeira, Mendes Rancho Jatey
Moreira & comp
16
155 Pedro Marques de Potreirito 156 Joaquim Pinto de Potreirito
Oliveira Menezes
157 Thomaz Marques Potreirito 158 Antonio Rodrigues Potreirito
da Costa de Oliveira
159 Israel dos Santos Potreirito 160 Isidro Pedroso Lageadinho
Ferreira
161 Francisco Mattos Fazenda Azulão 162 Bento M Pereira Fazenda Café
Pereira
163 Francisco Torraca Retiro São José 164 João José Torraca São José
Filho
165 Amandio M Pereira Antolim 166 João Vicente Fazenda Curral de
Ferreira Arame
167 Jayme Diniz Dourados 168 Antonio Candido Água Bôa
Leite
169 Agostinho S Cabeceira Alta 170 Pedro Luiz Braga Dourados
Machado
171 Emilio Aquino Coqueiro 172 Francisco Torraca Fazenda São José
173 João Alves Aguirre Potreirito 174 Albano R Lopes Potreirito
175 Feliciano Castro Perdido 176 Eulalia Garcia Pires Alvorada
Pinheiro
177 Fausto Martins Balsamo 178 Capitão José Alves Fazenda Revolta
Pires Leite
179 Francisco J Vaz Laranja Doce 180 Evaristo C de Mello Novo Paraizo
181 Domingos Barrozo Fazendas Palomas e 182 Jugurta José da Fazenda União
Padilha Cauê Rocha
183 José Luiz da Silva Fazenda Guanandy 184 Francisco de Assis Capão Ralo
185 Luiz Alves Leite Fazenda Barra Bonita 186 Manoel Ignacio de Fazenda Figueira
Mattos
187 Firmino Vieira de Fazenda Taquaral 188 Maximiano P Fazenda Barreiro
Mattos Ribeiro
189 Rodpolpho S Fazenda Palmar 190 Bento da Silva Fazenda Palmeira
Fagundes Machado
191 Joaquim Pinheiro São Bento 192 Amaro de Mattos Laranja Azeda
de Almeida Pereira
193 José Rodrigues Laranja Azeda 194 Abilio de Mattos Potreiro Guassú
Carvalho
195 Joaquim Barros Guyray 196 Antonio V Marques Bôa Vista
197 Marcos Alves da Cachoeirinha 198 João A Francisco Limoeiro
Silva
199 Hygino Moralle Morrinho 200 Cyriaco J Vaz Santa Maria
201 Candido Pereira Conceição 202 Prudente Pereira Campo Alegre
203 Maria C da Cruz Ribeirão do Meio 204 Carmelina V de Bella Idéia
Almeida
205 José Annunciação Vista Alegre 206 João V Ferreira São Vicente
207 Antonio V de Ronda 208 Asturio Monteiro São Pedro
Azaumbuja de Lima
209 Abilio P de Almeida Cabeceira Limpa 210 Aly Vaz Guimarães Paraizo
17
211 Basilio Pereira São José do Desterro 212 Luiz Antonio Leão Fazenda Olhos d'Água
Brum
213 Zeferino Pires de Fazenda Saltinho 214 Valencio Mattos Palmeira
Freitas Pereira
215 Francisco Xavier Amparo 216 Lauro Santos Fazenda Boqueirão
Pedroso
217 Antonio Fazenda São Sebastião 218 Manoel Lopes Fazenda Sucury
Bittencourt Cançado
219 Alonso Pacheco Fazenda Serra Branca 220 Maria Amada de Fazenda Santa Maria
Azaumbuja
221 Constantino V de Fazenda Capão Rico 222 Heleodora José de Fazenda Morro Alto
Almeida Almeida
223 Thomaz Alves Fazenda Balsamo 224 Heliodoro Mesquita Camambaia
Pereira da Silva
225 Eugenio Alves da Vista Alegre 226 Honorival G da Fazenda Concha Brava
Silva Silva
227 Luiz Gil Corrêa da Fazenda Guanandy 228 Fructuoso Rio Feio
Costa Fernandes de Deus
229 Placido Silva Morro Assombrado 230 Justiniano Serrinha
Fernandes
231 Cypriana R de Faria Fazenda Córrego 232 Erasmo dos Santos Fazenda Formoso
Fundo
233 Juvenal P de Campo Formoso 234 Francisco Luiz da Campo Formoso
Oliveira Silva
235 Fernandes S de Formoso 236 Hermogenio Nunes Cabeceira do Mutum
Souza
237 Antonio F Pires São Domingos 238 Aguida Pires de Cabeceira do Mutum
Oliveira
239 João Nunes da Silva Cabeceira de 240 Martiniano Dias Passo das Pedras
Dourados
241 Juvenal de Almeida Buracão 242 Rita M da Costa Setenta e Nove
Mattos
243 Diogo Garcia de Concordia 244 Cezario S Machado Solidão
Souza
245 José Pereira Marçal Roncador 246 Miguel Gonçalves Mangabaí
Barbosa
247 Anselmo Martinez Corrego Fundo 248 João Chrysostomo S Fazenda Alegrete
de Oliveira
249 João Chrysostomo Serrinha 250 Florentina de Rio das Velhas
S de Oliveira SOUza
251 João Baptista Lagoinha 252 Vitalino Garcia da São Lourenço
Bazzano Silva
253 Manoel José Flôres Novo Progresso 254 Thomaz Dias Cabeceira do Apa
255 Joanna Mendonça Guariroba 256 Valencio M Brum Amambay
da Silva
257 Alonso José Despteso 258 Seraphim da Silva Guahy
Machado Machado
18
259 Roberto Nunes de Limeira 260 Horacio da Cruz Rancho Ábalos
Siqueira Fortes
261 João Marques de Três Cachoeiras 262 Antonio de Souza Itapoty
Araujo Sarmento
263 Januario Lima Três Figueiras 264 Pedro Dourisbours Amambay
265 Pedro dos Santos Capão Alto 266 Nestor de SOUza Olhos d'Água
267 Jeronymo de O Senhorinha 268 João Osterbg. São João
Belmonte
269 Vasco José Cerro Paum 270 Ottomar Pitschk Isla Caiguê
Saldanha
271 Ernesto Pereira dos Itaupá 272 Ibrahim Ferreira Paraizo Petey
Santos Gomes
273 Pedro Antonio Aurora 274 Adolphp Palerma Guahy
Moraes
275 Sociedade Rancho Paraguay 276 Empreza Mate Deposito ou Ponte
Anonyma Mate Laranjeira Amambay
Laranjeira
277 Sociedade Vacaratinguê 278 Antonio dos Santos Curussú-ambú
Anonyma Mate Queiroz
Laranjeira
279 José Francisco Irla Lopes 280 Arlindo Flôres Barranco Branco
Lopes
281 Arthur Raymundo Quinho-ne-CUê 282 Adolpho Raymundo Santo Antonio
do Amaral do Amaral
283 Joaquim Pereira Rincão Laranjeiras 284 Catulino B Romero Cabeceira Guassú
Fernandes
285 Adolpho Santo Antonio 286 Adolpho Raymundo Santo Antonio
Raymundo do do Amaral
Amaral e outros
287 José Pereira da São João 288 Empreza Mate Nhú-Verá
Silva Laranjeira ( S A)
289 Wenceslau P de Marcella Chué 290 Naziaceno Andrade Marcellina Chué
Mendonça
291 Julio Joaquim dos Marcellina Chué 292 Maria José dos Marcellina Chué
Santos Santos
293 Hilario A do Amaral Marcellina Chué 294 Belmiro Alves Marcellina Chué
295 Alfredo Recim Marcellina Chué 296 Gabino Lopes Marcellina Chué
297 João Hildebrando Bôa Vista 298 Leonel Nogueira Regis Cué
Ribeiro
299 José Henrique Maracahy 300 Paulino P Marcellina Chué
Corrêa Fernandes
301 Nicacio Pietro Espacin 302 Claro Alves Regis Cué
Nogueira
303 Isabel Ortt Maracahy 304 Silvino R de Aquino Costa Rica
305 Quintiliano C da Primeiro de Junho 306 Avelino Corrêa Maracahy
Silva
307 Lucio Pires de Itamora 308 Alcebiades Nunes Itamoró
Arruda 19
309 Atalibio V Baptista Issahú 310 José Luiz Moreira Mandahy
311 Priamo F dos Mandahy 312 Francisco F dos Siriguello
Santos Santos
313 Manoel Gomes Siriguello 314 Pedro Lederma Cabeceira Mochoy
Pereira
315 Deolindo Gonçalves Santa Clara 316 Glaciano Laguna Ita
de Oliveira Fernandes
317 Manoel J da Silveira Laguna 318 Felippe Santiago Cabeceira Crystallina
Dutra Fernandes dos
Santos
319 Servulo Marcellino Serrito e Laguna 320 Natividade Ribeiro São João
da Rosa
321 José Feliz Lopes Boça-Já 322 José Gonçalves de Socego
Oliveira Peixoto
323 Hyppolito G Mocayá 324 Segundo Ferreira Potreiro Florido
Peixoto
325 Bonifacio Bella Vista 326 Francisco M Porto Corriente
Fernandes Rodrigues
327 Miguel G do Cacarão 328 Ricardo Isnardi Mangahy
Nascimento
329 Sira Caldas Santa Clara 330 Governo do Estado Boi Japuá
331 Joaquim Silveira Cerro Peton 332 Lindolpho Amaral Curralito
Dutra
333 Bento Antonio de São João 334 Fernando São João
Souza Billerbeck
335 Carmello Cordova Porteira Ortiz 336 Marianno de Avila Potreiro de Pecury
Jacques
337 Macario Subtil de - 338 Honorio G Dias Commercial
Oliveira

Fonte: Organizado pelo autor com base no censo realizado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística em 1920.

Em estudo sobre a luta pela terra no SMT, Guillen observou que


muitos moradores procuraram enfrentar a CML para defender e solicitar a
posse da terra. Ocorreu até a organização do um movimento denominado
Liga dos Combatentes, em que vários habitantes da localidade se
organizaram e atacaram as instalações da CML (GUILLEN, 1999. p. 160-
161).
Nesse período, a companhia já não possuía uma boa imagem 20

nacionalmente, uma vez que, vários jornais, como a Folha da Manhã de


São Paulo, Diário de Notícias do Rio de Janeiro e a República de Campo
Grande, publicaram reportagens sobre as condições de vida dos
trabalhadores da CML e sobre o conflito de terras existentes na região
(GUILLEN, 1999. p. 160-161).
De certa forma, grande parte dos movimentos contra a companhia
foi classificada pelas pessoas que defendiam seus interesses políticos,
como arruaceiros, vadios, desordeiros, criminosos, que atormentavam a
fronteira, configurando-os como banditismo. Como notou Guillen, essas
revoltas eram sempre relacionadas ao banditismo, a rixas entre famílias e
a violência, desconsiderando a possibilidade de um movimento organizado
contra os arrendamentos da CML (GUILLEN, 1999. p. 163).
Podemos considerar também a criação de um discurso pela CML e
por seus apoiadores que almejava a estereotipificação desse conjunto de
pequenos produtores e posseiros como bandidos, uma vez que
representavam uma ameaça para seus interesses político-econômicos.
Esse discurso é afirmativo, pois busca “apagar as multiplicidades e as
diferenças individuais em nome das semelhanças superficiais” do grupo
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1994. p. 3) Age como um mecanismo de
dominação e sujeição, que pretende desqualificar o movimento contra o
monopólio da CML (FOUCAULT, 1996).
Discordamos da posição de Alisolete Weingartner, que em um dos
capítulos de seu livro, afirma que a CML foi um fator de integração e
manutenção da unidade estadual, impedindo a divisão do Estado de Mato
Grosso entre os anos de 1889 a 1930. (WEINGARTNER, 1995.p. 72-73). De 21

acordo com a autora, o fato de a empresa defender seus interesses e


proteger seus arrendamentos no sul do estado, além da influência que
possuía entre parte das elites dirigentes, fez com que a unidade estadual
fosse preservada. Outra ideia assinalada por Weingartner, é que o estado
mato-grossense ficou dependente da empresa, devido aos empréstimos
que o governo estadual tomou junto a CML, fazendo com que esta tivesse
controle político de todo o estado.
De acordo com Marisa Bittar, a ideia de um movimento separatista
no estado de Mato Grosso só foi concreto e organizado em meados da
década de 1930. Os fatos que ocorreram antes desse período não
passaram de disputas entre os grupos dirigentes e embates pela posse da
terra (BITTAR, 2009. p. 90-129). Podemos citar, por exemplo, as disputas
políticas que ocorreram a partir de 1898, quando

Manoel Murtinho negou-se apoiar o nome escolhido por


Generoso Ponce para a presidência do estado. Ponce,
contudo, insistiu em seu candidato e levou-o a vitória, em
março de 1899. Nos termos da política dos governadores,
arquitetada por Campos Salles, deveria ter prevalecido o
eleito de Ponce, já que este último detinha o controle da
maior parte do Partido Republicano em Mato Grosso.
Entretanto, Campos Salles preferiu, nesse caso, prestigiar o
irmão de seu ministro da Fazenda. Deste modo, as tropas
federais em Mato Grosso permaneceram impassíveis
enquanto, por meio de violenta pressão armada, os aliados
reunidos por Manuel Murtinho forçaram a Assembleia
Legislativa a convocar novas eleições – nas quais, como
seria de se esperar, foi eleito o candidato de Murtinho
(QUEIROZ, 2010-b. p. 138-139). 22

Após essa disputa, as famílias Ponce e Corrêa da Costa, antes aliada


dos Murtinho, passaram a fazer oposição e as principais críticas estavam
relacionadas aos benefícios que os Murtinho cederam a CML. Paulo
Queiroz também assinala a necessidade de evitar a ideia de que as
“alianças e rupturas” entre os políticos e a CML tiveram um “fundo
econômico”, sendo muitas vezes, disputas políticas relacionadas ao
“exercício do poder” (QUEIROZ, 2010-a. p. 13).
Por isso, não podemos concordar com a posição de que a CML
determinava as ações políticas em Mato Grosso, devido a sua influência.
Para nós, o trabalho de Weingartner contribuiu para sedimentar o discurso
do divisionismo em Mato Grosso do Sul. Após a criação do estado de Mato
Grosso do Sul em 1977, a elite política do novo estado iniciou o processo
de construção da identidade sul mato-grossense.
Um dos primeiros pilares desse movimento foi à criação de um
discurso histórico sobre o divisionismo, ressaltando seu surgimento nos
finais do século XIX, buscando construir uma “história de trás para frente,
isto é, do presente para o passado, passando a ideia da divisão como algo
inevitável, que aconteceria mais cedo ou mais tarde” (QUEIROZ, 2007. p.
27; ZILIANI, 2000).
O processo político ocorrido em Mato Grosso, na primeira República
(1889-1930), não foi diferente dos demais estados do país. Essas disputas
eram decorrentes do fenômeno do coronelismo, onde grupos constituídos
dominaram por muito tempo o poder político no Estado. “O povoamento
descentralizado, aliado à formação da grande propriedade, permitiu o 23

fortalecimento de um sistema baseado nos domínios familiares”, assim, as


oligarquias são eventos típicos desse período. (BITTAR, 2009. p. 81-82).
Como havia dirigentes políticos envolvidos com a CML, logo, estes
defendiam a companhia visando resguardar seus interesses, sejam
políticos ou econômicos. Não podemos generalizar que a CML tivesse
força política o bastante para evitar uma suposta divisão do Estado.
Pensar que as dificuldades de colonizar o território mato-grossense
foi resultado exclusivo da presença e força da CML é uma forma de isentar
o Estado de sua responsabilidade. Ambos não eram realidades opostas,
pelo contrário, existiu uma intensa rede de relações de poder, de troca de
favores e uso de capital social para atender interesses de ambas as partes.
O processo de apropriação territorial constituído pela CML foi lesivo não
ao estado, mas a sociedade em geral.
Na década de 1930, o governo federal pôs em prática uma política
de nacionalizar as fronteiras, impedindo que empresas estrangeiras
tivessem domínio sobre determinados territórios, além da criação dos
territórios e das colônias agrícolas federais (QUEIROZ, 2010-a. p. 14). Com
a aplicação de política que tinham como objetivo a nacionalização das
fronteiras e o domínio sobre o território, a CML sofreu duros golpes, uma
vez que era controlada por capital argentino, além de ter o domínio por
arrendamento de grandes extensões de terra em região fronteiriça, o que
representava para o governo brasileiro uma situação perigosa (QUEIROZ,
2010-a. p. 14).
Durante o Estado Novo, o governo federal voltou a ter
responsabilidade pelas terras devolutas em regiões de fronteira e optou 24

por não renovar as concessões da CML. O artigo nº 155 da Constituição


brasileira de 1937 afirmava que

Nenhuma concessão de terras com área superior a dez mil


hectares, poderá ser feita sem que, em cada caso, preceda
autorização do conselho federal” e o nº 165 previa que
“dentro de uma faixa de cento e cinquenta quilômetros ao
longo das fronteiras, nenhuma concessão de terras ou de
vias de comunicação poderá efetivar-se sem audiência do
Conselho Superior de Segurança Nacional, e a lei
providenciará para que nas indústrias situadas no interior
da referida faixa predominem os capitais e trabalhadores
de origem nacional.2

Somente após o fim do governo Vargas em 1945, a empresa


conseguiu novos arrendamentos, porém, curtos. Em 1949, o Estado
decidiu rescindir esses contratos, pondo fim a atividade ervateira da CML.

2
Disponível em:
<http://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Brazil/brazil37.html>. Acesso dia 20/01/2014
Fonte das imagens
Fonte: BIITAR. Marisa. Mato Grosso do Sul: a construção de um Estado.
2009. p. 63.

25
Referências Bibliográficas
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. O engenho anti-moderno: a
invenção do Nordeste e outras artes. Tese de doutorado. IFCH-UNICAMP.
Campinas, 1994.

ALMEIDA, Mario Monteiro de. Episódios da formação geográfica do Brasil.


Campo Grande: Alvorada, 2010. (coleção documentos para a História de
Mato Grosso do Sul).

ARRUDA, Gilmar. O trabalho paraguaio na Mate Laranjeira. IN: Arca:


revista de divulgação do Arquivo Histórico de Campo Grande – MS.
Campo Grande, MS: Sergraph. Dezembro de 1993, nº4, p. 44-47.

____. Frutos da terra: os trabalhadores da Matte Larangeira. 1. ed.


LONDRINA - PR: Eduel, 1997.

BIANCHINI, Odaléa da Conceição Deniz. A Companhia Matte Larangeira e


a ocupação da terra do sul de Mato Grosso: (1880-1940). Campo Grande,
MS: UFMS, 2000.

BITTAR, Marisa. Geopolítica e separatismo na elevação de Campo Grande


a capital. 1. ed. Campo Grande: Editora da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, 1999.

____. Mato Grosso do Sul: a construção de um estado, volume I:


regionalismo e divisionismo no sul de Mato Grosso. Campo Grande, MS,
Ed. UFMS, 2009.

CORRÊA FILHO, Virgílio. História de Mato Grosso. MEC/Instituto Nacional


do Livro. Rio de Janeiro, 1969.
COSTA MARQUES, Joaquim Augusto da. Mensagem dirigida à Assembleia
Legislativa ao instalar-se a 1ª sessão ordinária da 10ª legislatura em 13
de maio de 1915. Cuiabá. Tipografia oficial. 1915.

COSTA, Mario Corrêa da. Mensagem dirigida a Assembleia Legislativa em


13 de maio de 1926. Cuiabá. Tipografia oficial. 1926. 26

DUARTE, Francisco Escobar. Revista: O observador econômico e


financeiro, nº 70, janeiro de 1947.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Cidades no sertão: centros de trabalho e


resistência fabril. A História de Campanário e Guaíra. Rev. Territórios e
Fronteiras. Programa de Pós-grad. Em História – UFMT – V.4 – N.2 –
JUL/DEZ 2003.

_____. A luta pela terra nos sertões de Mato Grosso. Estudos sociedades e
agricultura, 12, abril 1999. p. 148-168.

QUEIROZ. Paulo Roberto Cimó. As curvas do trem e os meandros do


poder: o nascimento da estrada de ferro Noroeste do Brasil (1904-1908).
Campo Grande, MS: Editora UFMS, 1997.

_____. Uma ferrovia entre dois mundos: a E. F. Noroeste do Brasil na


primeira metade do século 20. Bauru, SP: Edusc; Campo Grande, MS: Ed.
UFMS, 2004.

_____. Notas sobre divisionismo e identidades em Mato Grosso/Mato


Grosso do Sul. Raído. Dourados, MS, v.1, n. 1, jan./jul. 2007.

_____. A grande empresa conhecida como Mate Laranjeira e a economia


ervateira na bacia platina (1882-1949): notas preliminares. Anais do I e II
encontro de Pós-doutores do programa de Pós-graduação em História da
UFF. [recurso eletrônico]/ Org. Abreu, Marta; Dantas, Carolina Vianna –
Niterói: PPGHISTÓRIA – UFF, 2010-a.
____. Joaquim Murtinho: Notas sobre a experiência do Banco Rio e Mato
Grosso (1891-1902). Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.23, nº45,
p.125-146, janeiro-junho de 2010.

SILVA, Jovam Vilela da. A divisão do Estado de Mato Grosso: uma visão
histórica (1892-1977). Cuiabá: EdUFMT, 1996. 27

SODRÉ, Nelson Werneck. Oeste: ensaio sobre a grande propriedade


pastoril. Campo Grande, MS. Editora Alvorada, 2009. (Coleção
Documentos para a História de Mato Grosso do Sul).

WEINGARTNER, Alisolete. Antônia dos Santos. Movimento divisionista no


Mato Grosso do Sul (1889-1930). Edições EST, Porto Alegre, 1995.

ZILIANI, José Carlos. Tentativas de Construções Identitárias em Mato


Grosso do Sul. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio
de Janeiro/RJ, p. 315-327, 2000.
HAITI: A PRIMEIRA REPÚBLICA NEGRA DO MUNDO
Leanderson Cristiano Voznei1

RESUMO: A República haitiana é fruto da união de povos escravizados que enxergaram


na junção de ideias, ideais e forças, a esperança necessária para tentar reverter um 1
destino vil de quase três séculos de domínio europeu. Liberdade, Igualdade e
Fraternidade, convicções da Revolução Francesa foram primordiais na revolta e
revolução negra haitiana, e culminaram em sangrentas batalhas envolvendo brancos,
negros e mulatos. O país conquistou sua liberdade e o título de Primeira República
Negra do Mundo, porém, mais de dois séculos depois é possível verificar que os ideais
sonhados e que sustentaram a revolta e revolução, não foram alcançados e o país
sofreu com bloqueios comerciais, violência, ascensão de gangues criminosas, períodos
ditatoriais e de intervenções militares internacionais apoiadas pela Organização das
Nações Unidas (ONU).

Palavras-chave: República Negra. Revolta. Toussaint Louverture.

Abstract: The Haitian Republic is the result of the union of enslaved people who saw
the junction of ideas, ideals and strength, hope needed to reverse a vile fate of nearly
three centuries of European rule. Liberty, Equality and Fraternity, the French
Revolution convictions were paramount in the revolt and black Haitian revolution, and
culminated in bloody battles involving whites, blacks and mulattos. The country gained
its freedom and the title of First Black Republic in the world, but more than two
centuries later we can see that the dreamed ideal and that supported the revolt and
revolution have not been achieved and the country suffered from commercials,
violence locks, rise of criminal gangs, dictatorial periods and international military
interventions supported by the United Nations (UN).

Keywords: Republic. Rebellion. Toussaint Louverture.

1
Acadêmico do 4º ano do Curso de Licenciatura em História da UNESPAR de União da Vitória-PR.
INTRODUÇÃO
O Haiti tem seus problemas de ordem social, e político-econômico
desde 1492 quando de seu descobrimento pelos espanhóis, nesse período
se iniciou a primeira fase catastrófica daquele país, com a retirada de
riquezas e exploração do ouro provenientes da utilização da mão de obra 2

indígena. Mais tarde, se deu início a segunda fase da colonização que


substituiu a mão de obra indígena, pelos negros africanos, por
entenderem que estes últimos eram mais fortes, possuidores de técnicas
de agricultura e mais receptivos para a alta jornada de trabalho imposta
nos canaviais, que foram introduzidos naquele país, quando as fontes de
riquezas primárias se extinguiram.
A partir do século XVI os espanhóis começam a perder território
para os franceses que ocupam a porção noroeste da ilha iniciando os
problemas agora de ordem políticos e estruturais que só seriam
apaziguados um século mais tarde com a assinatura do Tratado de
Ryswick2 que oficializou a França o controle sob o já dominado território
da ilha.
Com a França no comando, a ilha passou a ter um maior destaque
internacional, resultante da produção de açúcar, café e cacau em grande
escala, porém, não há como falar em um território que passou de simples
terras de piratas ao título internacional de “Pérola do Caribe” em menos
de 200 anos, sem evidenciarmos os fatos implícitos na frase: os escravos
que padeceram para que a ilha galgasse tal título e reconhecimento, já
que a vida útil dos escravos neste período era de vinte e quatro anos. Com

2
Acordo de paz celebrado entre os países europeus, após a guerra da Liga de Augsburgo, 1688-1697.
o sofrimento, altas jornadas de trabalho, higiene e alimentação precária e
a baixa expectativa de vida foram o estopim para uma organização
escrava que buscasse modificar sua realidade, a disseminação dos novos
ideais contribuiu para o aumento do já mau relacionamento entre
escravos, mulatos e brancos, já que não existia uma união entre eles. Mas, 3

em alguns momentos da 2história haitiana, percebemos que existe um


relacionamento entre eles, quando os pensamentos se encaixam, já na
maioria do tempo os três irão guerrear uns com os outros, como um jogo
de gato e rato.
Moya Pons3 resume bem essa fase, ao destacar que os espanhóis de
Santo Domingo se aliaram aos escravos na busca de apoderar-se do
território ocupado pelos franceses e da mesma maneira os brancos e
mulatos se uniram para defender a si mesmos e aos seus territórios agora
ameaçados pelos escravos e espanhóis. Fato que traria uma nova
reviravolta após o governo Francês pressionado pelos acontecimentos
tumultuados no Haiti reconhecer os direitos dos mulatos, que passariam a
ser uma espécie de “elite” assim como os brancos. Com isso os brancos ou
“Grand Blancs” tiveram de buscar apoio entre os ingleses da Jamaica, para
se manter na luta contra os escravos e agora contra a ascensão da nova
elite mulata. Com isso a partir de 1791 a revolta desta maneira ganha
padrões de guerra civil e envolve os conflitos internacionais, com a França
detentora da posse, Espanha agora aliada dos escravos e Inglaterra
apoiando a elite branca. A revolta para os haitianos teve sua sustentação e

3
MOYA PONS. Frank. La independencia de Haití y Santo Domingo. In: BETHEL, L. História de América
Latina. Independência. Barcelona: Editora Crítica, Cambridge University Press, 1991, v. 5, p. 124-153.
influência na figura do sacerdote Vudu Dutty Boukman que instigava “os
escravos se vingaram de seus senhores por meio de pilhagens, estupros,
torturas, mutilações e mortes. Esta situação levou a Assembleia Legislativa
francesa a reconhecer os direitos civis e políticos.” 4
O fato mais interessante da história do Haiti é sem dúvidas a 4

organização dos escravos e a liderança de Toussaint, que associados


culminariam em uma revolta contra os seus colonizadores, iniciado em
1791, sob forte impacto dos ideais disseminados pela Revolução Francesa
(1789-1799). Ideais estes que renderiam a ilha em 1803, o título de 2º país
independente das Américas (sendo os Estados Unidos o 1º) e 1ª República
Negra do mundo.

1 – GÊNESE HAITIANA
A República do Haiti ou Ahity na língua nativa está localizada na
América Central e faz fronteira com a República Dominicana, possui uma
população estimada em 9 milhões de habitantes espalhados em seus
76.192 km2, sua principal cidade e também capital é Porto Príncipe.

Os primeiro humanos, no Haiti (segundo denominação


indígena, “haiti” significa Terra das Altas Montanhas;
também conhecido como La Española ou Hispaniola;
pequena Espanha), chegaram à ilha há mais de 1000
anos a.C, possivelmente 7000 a.C. 5

4
Ibidem, p. 1.
5
BONA. Marco Aurélio. Presença do Brasil no Haiti: Missão de paz e cooperação técnica. UFPI.
Dissertação de mestrado.Teresina. 2011. p 19.
O atual território do Haiti “foi descoberto na primeira viagem do
navegador Cristóvão Colombo à América, em 1492” 6, uma ilha localizada
no centro do caribe ficou conhecida como Isla Hispaniola atualmente
dividida com a República Dominicana, “ocupa o lado ocidental da ilha
(27.750 km², território equivalente ao Estado de Alagoas), enquanto a 5

República Dominicana (48.442 km², território equivalente ao Espírito


Santo) está situada na porção oriental” 7. A extensão da fronteira entre
eles é de 360 quilômetros como ideia da grandeza e dimensão deste país,
no século XVIII essa região foi a mais produtiva das colônias francesas da
América em açúcar, café e cacau.
Colombo ao chegar à ilha estabeleceu fortes no litoral e
caracterizou sua busca por riquezas em toda a ilha, após sua segunda
viagem, concentrou-se na extração de ouro, utilizando para este fim a
mão de obra indígena local e tempos depois utilizou a mesma mão de
obra para a agricultura e cerâmica. Segundo Bona (2011) a extração de
ouro no Haiti foi substituída pelo cultivo de cana de açúcar no século XVI,
período este em que ocorreu a troca da mão de obra indígena pela
Africana, devido a escassez da primeira, bem como a necessidade de
escravos mais fortes para o cultivo da cana de açúcar.

2 - COLONIZAÇÃO FRANCESA
A partir de 1520 a Espanha teve sua decadência na colonização
haitiana, com isso ainda no século XVI os franceses ocupariam a porção

6
KAWAGUTI, Luis. A República Negra: Histórias de um repórter sobre as tropas brasileiras no Haiti. São
Paulo: O Globo, 2006, p.23.
7
BONA. Marco Aurélio. loc. cit.
noroeste da ilha, alcançando um terço do território, conforme nos mostra
Bona (2011):

Em meados do século XVII, a partir precisamente de


1625, a ilha passou a ter grande influência francesa. 6
Em 1697, a Espanha e a França assinaram o Tratado de
Ryswick (acordo de paz celebrado entre os países
europeus após a Guerra da Liga de Augsburgo, 1688-
1697), que determina a passagem do controle da ilha
para a França, oficializando, aos franceses a concessão
do território já ocupado. Nessa época, praticamente
toda a população nativa havia sido dizimada pela força
e pelas doenças. (MATIJASCIC, 2009).8

Sob a administração francesa e a renovação constante da mão de


obra escrava africana, o Haiti “em menos de 200 anos, converteu-se de
terras de piratas à condição de mais lucrativa colônia do novo mundo,
com suas lavouras de cana-de-açucar, cultivadas por mão de obra escrava
e administradas pela França” 9, desta maneira ficou conhecida como pérola
do Caribe.
Porém, tornar-se a mais próspera possessão francesa cobraria um
alto preço, principalmente para os nativos, uma vez que a forma cruel de
trabalho, aliado as severas situações precárias de higiene e alimentação
resultaria numa baixíssima expectativa de vida e desta maneira, eram
substituídos por negros africanos conforme a necessidade.

8
BONA. Marco Aurélio. Presença do Brasil ... op. cit. p. 20.
9
KAWAGUTI, Luis. A República Negra: Histórias de um repórter sobre as tropas brasileiras no Haiti. São
Paulo: O Globo, 2006, p.23.
A presença de grupos étnicos originários da África
prepondera no Haiti (95% de negros), onde também
existe uma chamada "elite mulata" (5% de mulatos).
Já a população dominicana, pouco maior que a do
Haiti, é de expressão predominantemente
miscigenada (74% de mulatos), muito mais do que
propriamente africana (11% de negros) ou de origem 7
europeia (15% de brancos).10

A convivência entre os dois países vizinhos (República Dominicana


e Haiti) sempre foi cercada pela violência oriunda das praticas racistas e
problemas sociais, fato este que segundo Bona (2011) intriga os visitantes
de ambos os países, uma vez que ambas as nações não possuem
predominância branca, desta maneira as questões raciais são pautadas
pelas fronteiras entre os países e não pela sua cor de predominância, ou
seja, os Dominicanos entendem que os haitianos são negros por
possuírem origens africanas da mesma forma, os dominicanos são vistos
como índios pelos haitianos.
Segundo Grondin, a agricultura estava centrada na utilização da
mão de obra escrava e os escravos que supriam essa necessidade eram
trazidos de diferentes regiões africanas e posteriormente distribuídos em
solo haitianos conforme sua procedência, de modo a evitar aglomerações
e possíveis rebeliões ou resistência.
Segundo Pereira, Essas distribuições de negros em locais isolados
formariam mais tarde uma nova divisão no povo, que persiste até os dias
atuais, sendo elas os Créoles para os descendentes e Bossales para os

10
Marco Aurélio. Presença do Brasil no Haiti: Missão de paz e cooperação técnica. UFPI. Dissertação de
mestrado.Teresina. 2011. p 19.
africanos, oriundos de várias tribos, bem “o hábito da violência para a
solução de conflitos e da “marronage”, ou seja, dissimulação usada para
enganar os senhores franceses e os estrangeiros que se sucedem na
exploração do país”.11
Além de café, anil, cacau e algodão, o Haiti também produzia o 8

açúcar em melhores condições ou mais competitivas do que outras


colônias do século XIX, conforme destaca Gorender “Nessa produção,
empenhavam-se meio milhão de escravos, a maioria africanos, na
proporção de dois terços”12.
Os ideais de Igualdade, Liberdade e Fraternidade disseminados na
Revolução Francesa se espalhariam rapidamente pelo mundo chegando às
Américas e desta maneira servindo como escudo e objeto norteador para
os acontecimentos que culminariam na revolta escrava e posterior
independência haitiana.
Havia mulatos livres “mas submetidos a extorsões e agressões”
que se infiltravam no tráfico de escravos e se aliavam aos escravocratas
brancos para tentar enriquecer, pois mesmo em desvantagem entendiam
que essa era uma saída eficaz para os seus problemas, sejam sociais ou
político-econômicos.
A revolta era quase eminente se for pensar em números, uma vez
que “o meio milhão de escravos negros, que labutavam nas plantações e
nos engenhos, era dominado por trinta mil brancos, incluindo os

11
PEREIRA.A. H. R.O componente militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do
Haiti.Military Review. Jan/Fev 2007. P. 3.
12
GORENDER. Jacob. O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos Avançados 18. USP. São Paulo.
2004. p 295.
proprietários e seus auxiliares (feitores, técnicos, vigilantes etc.) 13, porém,
a forma cruel de tratamento dispensada aos escravos, aliado à má
alimentação, escassez médica e as torturas criavam um certo medo de
revoltar-se e sofrer as graves punições a que estavam impostos.
A vida desgastante de um escravo haitiano durava em média 24 9

anos e “a labuta diária se processava durante longas jornadas, sob


acionamento frequente do açoite dos feitores. Qualquer expressão
recalcitrante era logo duramente castigada”14 e os castigos tendiam a ser
os mais severos possíveis, uma vez que o foco da época era ensinar ou
educar os escravos através dos castigos empregados em outros, uma vez
que estes geralmente eram feitos em locais abertos e de acesso de todos.

Os mais indisciplinados sofriam o castigo de serem


enterrados de pé, apenas com a cabeça de fora. Assim
imobilizados, acabavam mortos depois de sofrer a
horrível tortura de ter o rosto lentamente devorado
pelos insetos e abutres. 15

3 - TOUSSAINT LOUVERTURE
Segundo Sodré16, Toussaint Louverture foi filho de um chefe tribal
africano que foi trazido para São Domingos como escravo, nasceu entre
1743 e 1746, “foi comprado por colonialista que dispunha de uma certa

13
Ibidem, p. 296.
14
Ibidem, p. 297.
15
GORENDER. Jacob. O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos Avançados 18. USP. São Paulo.
2004. p 297.
16
SODRÉ. C. A. Marcos. Luta em fogo e sangue a revolução haitiana e suas ligações com os ideias
jacobinos da Revolução Francesa (1791-1804). Universidade Veiga de Almeida. Cabo Frio. 2007. p. 25.
sensibilidade e que reconhecendo sua inteligência, permitiu-lhe uma
situação incomum, cedendo-lhe até cinco escravos para o cultivo de uma
horta própria” e lhe deu a condição de capataz, mais tarde ele se casou e
teve oito filhos, dos quais Toussaint foi o primogênito.
Da mesma maneira, o senhor de escravos percebeu que o filho 10

possuía a mesma capacidade intelectual que o pai e lhe conferiu certos


privilégios, desta maneira,

Pierre Baptiste, um velho negro instruído que morava


na fazenda, alfabetizou o jovem e lhe ensinou a ler e a
falar o francês culto (em vez do degradado francês
crioulo coloquial). Transmitiu-lhe princípios de
geometria e desenho e ensinou-lhe rudimentos de
latim.17

Para Gorender os privilégios que o senhor de escravos empenhou


a Toussaint fizeram com que ele tivesse a chance de ler duas grandes
obras da época que o influenciariam e aumentariam a sua sede de
liberdade e igualdade. O primeiro livro do “Abade Raynal História
filosófica e política do estabelecimento e comércio dos europeus nas duas
Índias” cita:

Abade Raynal fez uma descrição realista da situação


nas colônias europeias do Caribe, mostrando que a
massa de escravos submetidos ao regime mais
desumano de exploração se encontrava num ponto
crítico, próximo de explosiva rebelião. A par com a

17
Idem.
condenação moral do regime escravista, afirmava que,
para a rebelião ter início, faltava apenas uma
liderança, o surgimento de um homem capaz de
chefiar os escravos no caminho da revolta. “Onde está
este homem?” – perguntava o Abade. E respondia
confiante: “ele, com certeza, surgirá”.18
11

O segundo livro lido por Toussaint e serviria como influência em


sua vida foi:
O livro de Júlio César acerca da guerra contra os
gauleses. Os comentários sobre as operações
militares, na Roma da Antigüidade, forneceram ao
futuro líder de tropas negras a concepção do que
significavam as manobras militares em um confronto
armado.19

A baixa expectativa de vida, as doenças, a fome, a crueldade dos


senhores de escravos, aliados aos ideais da Revolução Francesa que
inflamariam o mundo, fizeram com que iniciasse na massa haitiana
pedidos de abolição e luta armadas contra os senhores escravistas. Em
torno deste ideal, o vodu religião africana parecida com o candomblé (no
Brasil), foi o objeto de ligação entre as massas, uma vez que este era a
religião oficial das diversas tribos haitianas, nesse sentido começou-se a
difundir as técnicas e a organização do processo de independência. Outro
fato que norteou tais acontecimentos foi a brutalidade e violência para
resolver conflitos, fato este que se perpetua até os dias atuais.

18
GORENDER. Jacob. O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos Avançados 18. USP. São Paulo.
2004. p 298.
19
Idem.
[...] algumas coisas que a gente encontrava ou que os
militares comentavam na base era encontrar alguns
corpos sem cabeça na beira da rodovia, mais comum,
isso aconteceu umas três ou quatro vezes no período
de seis meses, mas isso era o que eles falavam que era
briga entre pessoas mesmo dentro do Haiti [...].20
12

Nesse sentido, antes de Toussaint aparecer como líder da massa


escrava revoltosa “um escravo chamado Mackandal tentara acabar com o
domínio dos brancos envenenando a água utilizada nas suas casas. Mas,
ao embriagar-se, falou demais e o denunciaram. Prenderam-no e o
queimaram vivo”21, desta maneira é possível verificar que quaisquer
formas de ameaças ao regime escravocratas eram rapidamente
eliminadas e desta maneira a situação se propagaria.

4 – A REVOLTA
Segundo Gorender o estopim veio com a “Convenção, constituída
em Paris logo após a Revolução de 1789, proclamou a libertação dos
escravos nas colônias francesas. A notícia da proclamação se propagou
rapidamente em São Domingos” e em 1791 iniciou-se a rebelião dos
escravos no Haiti, onde os mesmos abandonaram as plantações,
destruíram engenhos e mataram vários brancos proprietários de terras.

20
GROSSKLAUS. Silvio Sidilei. Silvio Sidilei Grossklaus: depoimento [Jan. 2016]. Entrevistador:
Leanderson Cristiano Voznei. União da Vitória-PR: UNESPAR, 2015. 1 CD. Entrevista concedida para
monografia sobre a Participação dos Militares do 5º BE Cmb Bld de Porto União-SC na missão de
Estabilização do Haiti. p. 3.
21
CARPENTIER. Alejo, 2004 Apud GORENDER. Jacob. O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos
Avançados 18. USP. São Paulo. 2004. p 297.
Porém, a rebelião dos escravos tomou direções individualizadas
sem uma liderança forte que estabeleceu na ilha uma situação
devastadora e caótica, que só cessaria três anos mais tarde em 1794,
quando “entra no processo rebelde um personagem com características
privilegiadas para o papel histórico que desempenhou: Toussaint Bréda 13

(nome depois cambiado para Toussaint L’Ouverture). 22


Dotado de instrução bem acima dos ex-escravos, Toussaint não
encontrou grandes obstáculos para ganhar ascendência entre eles e
aglutinar um exército de combatentes sob o seu comando. Com uma
tropa disciplinada e organizada, derrotou os exércitos dos franceses, dos
espanhóis, que pretendiam apossar-se da parte francesa da ilha, e dos
ingleses, preocupados com a contaminação que o exemplo da possessão
francesa poderia produzir nas suas próprias possessões antilhanas. 23
Com a vitória sobre os franceses, Toussaint seguiria duas linhas de
ação que teriam consequências letais e nocivas a sua liderança e vida
pessoal, sendo elas:

Em primeiro lugar, preocupou-se insistentemente em


ganhar a confiança de Bonaparte, àquela altura
primeiro cônsul do governo parisiense. Através de
franceses aliados, enviou repetidas mensagens ao
general chefe do consulado, insistindo na fidelidade à
França e na concretização de uma aliança entre a
Revolução Antilhana e a Revolução Francesa.
Bonaparte sequer tomou conhecimento desses bons
propósitos, não somente porque se achava demasiado
22
GORENDER. Jacob. O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos Avançados 18. USP. São Paulo.
2004. p 297.
23
Ibidem, p. 298.
ocupado com as conquistas na Europa, como
principalmente porque tinha planos opostos aos dos
ex-escravos no referente ao regime colonial. 24

E a segunda:
14

[...] influiu negativamente no destino de Toussaint,


consistiu na decisão de manter a colônia como grande
produtora de açúcar. O que se justificava, do ponto de
vista da prosperidade econômica. Mas, para este fim,
Toussaint não teve alternativa senão a de obrigar os
ex-escravos a retornar ao trabalho compulsório nas
fazendas. Os ex-escravos já eram homens livres do
ponto de vista formal, mas estavam forçados a
continuar a cultivar a cana e a produzir açúcar nas
mesmas condições exaustivas de antes. A par disso,
Toussaint manteve os brancos como proprietários,
encarregados da direção e orientação da produção. 25

Os problemas de Louverture só aumentariam, tanto com os


escravos que começariam a ficar irritados em voltar a trabalhar nos
canaviais, quanto os mulatos que aproveitar-se-iam da fase conturbada
que o país atravessava para tentar dominar o país e chegar ao poder.
O confinamento nas fazendas, o trabalho compulsório imposto aos
ex-escravos e a leniência para com os proprietários brancos minaram
gravemente a posição de Toussaint e causaram descontentamento na ala
esquerda dos rebeldes. Revolucionário radical, o seu sobrinho adotivo
Moïse organizou e chefiou uma revolta contra a liderança. Aprisionado,

24
Idem.
25
GORENDER. Jacob. O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos Avançados 18. USP. São Paulo.
2004. p 299.
Toussaint negou-lhe julgamento e o fuzilou sumariamente. Privado da
confiança dos trabalhadores negros, ficou debilitado para travar a batalha
decisiva, que logo se seguiria. 26
Segundo Gorender em 1801 o próprio Bonaparte iniciou uma
retomada sigilosa da Ilha Hispaniola, aproveitando-se da aproximação 15

ensejada por Toussait, desta maneira,

A intervenção se concretizou com o envio a São


Domingos de uma expedição de 25 mil soldados sob o
comando do próprio cunhado de Bonaparte, o general
Leclerc, que viajou acompanhado da esposa Pauline,
de músicos e fâmulos, como se tivesse em vista um
evento festivo. 27

Porém, a tentativa de Bonaparte teria serias consequências para


ambos os lados, vejamos:

Mas, ao contrário de suas expectativas, defrontou-se


com uma guerra sem tréguas. Toussaint reuniu as
forças disponíveis e foi à luta. Nesta se destacou
principalmente Dessalines. Ex-escravo, analfabeto,
revelou maestria de grande chefe militar. Não só
maestria, como ferocidade. Diante da decisão do
comandante francês Rochambeau de executar
quinhentos negros, mandando enterrá-los num
grande buraco, enquanto esperavam a execução,
Dessalines não vacilou e enforcou quinhentos brancos,
para que o vissem Rochambeau e os brancos de Le
Cap (hoje, Cabo Haitiano). Em conseqüência, o País

26
Idem.
27
Idem.
sofreu tremenda devastação, reduzido a cinzas pelos
incêndios ateados pelos combatentes dos dois lados. 28

Como a França era muito superior em questões militares além de


ser mais bem numerosa e equipada, obteve êxito nas primeiras batalhas e
16
Leclerc “Conseguiu aprisionar Toussaint, em agosto de 1802. Levado à
França, não submeteram o líder negro a julgamento algum. Bonaparte
decidiu livrar-se dele por meio do rigor do tratamento carcerário” 29 e
desta maneira em 7 de abril de 1803 Toussaint não resistiu à má
alimentação, aliada ao frio, dureza do cárcere e falta de cuidados médicos
e faleceu.
Porém, a prisão do líder negro e posterior falecimento não traria a
vitória à Bonaparte, uma vez que

Seu exército sofria baixas numerosas em


consequência de doenças tropicais e, principalmente,
da febre amarela. A metrópole francesa se viu
obrigada a enviar um total de 34 mil soldados e,
apesar disso, perdeu a colônia. O próprio Leclerc veio
a falecer, em 1802, vítima da febre amarela. 30

Sem Toussaint para comandar as operações, os negros se viram


obrigados a forjar novos lideres que fossem tão fieis e acalorados a causa
quanto foi Toussaint, desta forma surgem,

28
GORENDER. Jacob. O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos Avançados 18. USP. São Paulo.
2004. P.299.
29
Ibidem, p. 300.
30
Idem.
Dessalines, Christophe, Clairveaux, Maurepas, Pétion e
outros líderes negros prosseguiram o combate e
conseguiram derrotar e expulsar o exército francês.
No processo da luta, massacraram a maioria dos
brancos, que antes dominavam a colônia. Bonaparte
conseguiu restabelecer a escravidão em outras
possessões francesas, não, porém, na pátria de 17
Toussaint.31

Assim resistindo “em 29 de novembro de 1803, os revolucionários


negros divulgaram uma declaração preliminar de Independência e em 31
de dezembro, foi lida a Declaração de Independência definitiva. O novo
Estado recebeu, no batismo, a denominação indígena de Haiti” 32, que
33
segundo Bona significa Terra das Altas Montanhas; conhecida como La
Española ou Hispaniola; pequena Espanha. “A França reconheceu a
emancipação política do Haiti em 1824, mas exigiu que fosse indenizada
pela perda da colônia. Mesmo buscando ampliar parcerias comerciais,
dificilmente a elite haitiana conseguiria pagar a indenização à França.” 34

Jean Jacques Dessalines se tornou chefe do Estado


haitiano, “sendo coroado imperador em outubro de
1804. Mercadores de Filadélfia o presentearam com
uma coroa e um manto imperial trazido de Londres.

31
GORENDER. Jacob. O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos Avançados 18. USP. São Paulo.
2004. p. 300.
32
Idem
33
BONA. Marco Aurélio. Presença do Brasil no Haiti: Missão de paz e cooperação técnica. UFPI.
Dissertação de Mestrado.Teresina. 2011. p 19.
34
MATIJASCIC. Vanessa Braga. Haiti: uma história de instabilidade política. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. p. 1.
Começou a governar com as bênçãos dos capitalistas
ingleses e americanos *...+” 35.

Desta maneira, os escravos “passaram a se dedicar à tradição


herdada da África, ou seja, à agricultura de subsistência. O Haiti saiu do
18
mercado mundial do açúcar e eliminou a possibilidade de progredir em
direção a um nível econômico superior” 36, o que de certa forma levaria o
país endividado e agora sem mercado mundial ao declínio econômico.
Segundo Ferro com a independência os escravos passaram
também a rejeitar a presença estrangeira no país e este passou a ser visto
pelos outros países como uma ameaça a outras nações, principalmente
para aquelas que se utilizavam da mão de obra escrava, com medo de que
seus efeitos se espalhassem e motivassem novas revoltas.

REFERÊNCIAS BIBLÍOGRAFICAS
BONA. Marco Aurélio. Presença do Brasil no Haiti: Missão de paz e
cooperação técnica. UFPI. Dissertação de mestrado. Teresina. 2011.
CARPENTIER. Alejo, 2004 Apud GORENDER. Jacob. O épico e o trágico na
história do Haiti. Estudos Avançados 18. USP. São Paulo. 2004.
GORENDER. Jacob. O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos
Avançados 18. USP. São Paulo. 2004.
GROSSKLAUS. Silvio Sidilei. Silvio Sidilei Grossklaus: depoimento [Jan.
2016]. Entrevistador: Leanderson Cristiano Voznei. União da Vitória-PR:
UNESPAR, 2015. 1 CD. Entrevista concedida para monografia sobre a
Participação dos Militares do 5º BE Cmb Bld de Porto União-SC na missão
de Estabilização do Haiti.

35
GORENDER. Jacob. O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos Avançados 18. USP. São Paulo.
2004. P. 300.
36
Idem.
KAWAGUTI, Luis. A República Negra: Histórias de um repórter sobre as
tropas brasileiras no Haiti. São Paulo: O Globo, 2006.
MATIJASCIC. Vanessa Braga. Haiti: uma história de instabilidade política.
ANPUH/SP – UNESP-Franca. 06 a 10 de setembro de 2010.
MOYA PONS. Frank. La independencia de Haití y Santo Domingo. In:
BETHEL, L. História de América Latina. Independência. Barcelona: Editora
Crítica, Cambridge University Press, 1991, v. 5. 19
PEREIRA.A. H. R.O componente militar da Missão das Nações Unidas para
a Estabilização do Haiti.Military Review. Jan/Fev 2007.
SODRÉ. C. A. Marcos. Luta em fogo e sangue a revolução haitiana e suas
ligações com os ideias jacobinos da Revolução Francesa (1791-1804).
Universidade Veiga de Almeida. Cabo Frio. 2007.
A UTILIZAÇÃO DE QUADRINHOS NO ENSINO MÉDIO: O
APRENDIZADO DE CONCEITOS
Weber Abrahão Júnior 1

Resumo

O texto é uma sugestão de plano de aula para o Segundo Ano do Ensino Médio, como
resultado de produção de material didático para conclusão parcial de disciplina do
Mestrado Profissional em História, na Universidade Federal de Goiás, Regional Catalão.
O tema escolhido foi Introdução às Revoluções Burguesas: o que é Revolução? O
conceito de Revolução é recorrente nas Ciências em geral, e nas Ciências Humanas em
particular, e especificamente na ciência histórica e em sua expressão didática, como
disciplina escolar. É um conceito essencial para a compreensão dos processos
históricos nas diferentes condições de mudança social, principalmente a partir do
estudo da Revolução Francesa como marco da contemporaneidade. O objetivo
principal da atividade é levar os alunos a compreensão das possíveis variações em
torno da construção do conceito de revolução, compreendendo inclusive sua
elaboração no tempo histórico. Além disso, viabilizar a comparação entre os diversos
sentidos do conceito, e suas dimensões sociológica e filosófica, bem como algumas de
suas manifestações históricas. Permitir ainda aos alunos a possibilidade do diálogo
entre o texto didático tradicional e a linguagem dos quadrinhos. E, enfim, possibilitar
aos alunos o acesso à percepção e compreensão de imagens através da leitura
orientada dos quadrinhos.

Palavras-chave: conceitos históricos; quadrinhos; ensino

1
Graduado em História pela Universidade Federal de Uberlândia; pós-graduado em História do
Brasil Contemporâneo pela Universidade Federal de Uberlândia; graduado em Direito pela
Universidade Federal de Uberlândia; pós-graduado em Direito Civil pela Universidade Federal
de Uberlândia; professor do Ensino Médio na rede privada do estado de Minas Gerais;
participante do grupo de pesquisa NIESC - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos
Culturais, da Universidade Federal de Goiás como estudante; Mestrando em História na UFG,
Regional Catalão.
E-mail: advocaciaweber@gmail.com
Abstract 2

The text is a lesson plan suggestions for the second year of high school, as a result of
courseware production for partial completion of discipline Professional Masters in
History at the Federal University of Goiás, Catalan Regional. The theme was
Introduction Bourgeois Revolutions: What is Revolution? The concept of revolution
recurs in science in general and in the Humanities in particular, and specifically in
historical science and his didactic expression, as school discipline. It is an essential
concept to understand the historical processes in different conditions of social change,
especially from the French Revolution as a landmark study of contemporaneity. The
main objective of the activity is to get students to understand the possible variations
on the construction of the concept of revolution, including understanding their
development in historical time. Also, enable the comparison between the different
senses of the concept, and its sociological and philosophical dimensions, as well as
some of its historical manifestations. Allow even students the possibility of dialogue
between the traditional textbook and the language of comics. And finally, allow
students access to the perception and understanding of images through guided
reading comics.

Keywords: historical concepts; comics; teaching


O texto que se segue é uma sugestão de plano de aula a ser utilizado no
Segundo Ano do Ensino Médio, como resultado de produção de material
didático para conclusão parcial de disciplina do Mestrado Profissional em
História, que estou cursando na Universidade Federal de Goiás, Regional
Catalão.
3
O tema escolhido foi Introdução às Revoluções Burguesas: o que é
Revolução? Isso porque o conceito de Revolução é recorrente nas Ciências
em geral, e nas Ciências Humanas em particular, e especificamente na
ciência histórica e em sua expressão didática, como disciplina escolar. É
um conceito essencial para a compreensão dos processos históricos nas
diferentes condições de mudança social, principalmente a partir do estudo
da Revolução Francesa como marco da contemporaneidade.

Em Marx, nas Teses sobre Feuerbach, encontramos o enunciado


seminal para a compreensão da dinâmica social como transformação
revolucionária:

XI. Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de


diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-
lo.

A utilização de quadrinhos como recurso didático para a


compreensão de conceitos essenciais e de suas implicações para o estudo
da História é sobremaneira conhecida atualmente. Desse modo, o
aprendizado de conceitos gerais e introdutórios através dos quadrinhos,
permite ao aluno lidar de forma dinâmica com o tema, situando-se no
tempo. Para Lee e Ashby (2000), quadrinhos são relatos e evidências para
apreensão de ideias de segunda ordem: como os jovens compreendem o
passado?

Nesse sentido, a compreensão do passado presta-se para o situar-se


no presente, conforme Rüsen (2010) Se o papel da ciência histórica é
sustentar sua autoridade enquanto ciência, no debate político como saber
irrenunciável e essencial para as decisões políticas, o pensamento
histórico em dimensão didática deve ser compreendido em um triplo
sentido: a) orientação para o agir intencional; b) constituição de uma
identidade (para dentro); c) levar à uma práxis (para fora). Desse modo, a
questão central da didática (compreendida como o aprendizado do
pensamento histórico) é: como o pensamento histórico pode realizar isso
na prática? Porque o aprendizado está muito além da escola, como forma 4
elementar da vida e modo fundamental da cultura. O que a ciência
histórica possibilita é uma formação acadêmica.

No planejamento da atividade, foram produzidas por mim três


pranchas de quadrinhos (em anexo), a serem utilizadas como suporte de
leitura e compreensão do conceito de Revolução no contexto do tema
Introdução às Revoluções Burguesas. O recurso tecnológico para a
veiculação da atividade é a apresentação de slides (em anexo). Desse
modo, a tarefa inicial dos alunos será analisar detidamente os desenhos, a
partir de orientações e sugestões fornecidas pelo professor. A proposta de
desenvolvimento da atividade é de dois dias, sendo um para a exposição
orientada dos desenhos, e outra para a elaboração das atividades dos
alunos.

O objetivo principal da atividade é levar os alunos a compreensão


das possíveis variações em torno da construção do conceito de revolução,
compreendendo inclusive sua elaboração no tempo histórico. Além disso,
permitir a eles a comparação entre o conceito, suas dimensões sociológica
e filosófica, bem como algumas de suas manifestações históricas. Permitir
ainda aos alunos a possibilidade do diálogo entre o texto didático
tradicional e a linguagem dos quadrinhos. E, enfim, possibilitar aos alunos
o acesso à percepção e compreensão de imagens através da leitura
orientada dos quadrinhos.

A elaboração da atividade temática como proposta, em torno do


conceito de Revolução é recorrente no ensino de História, mormente no
Ensino Médio. Ele aparece nos diferentes processos de mudança social,
principalmente a partir da Revolução Francesa. Desse modo, o
aprendizado de conceitos gerais e introdutórios, utilizando-se os
quadrinhos, permite ao aluno lidar de forma dinâmica com o tema,
situando-o no tempo.

A primeira prancha anuncia o tema geral. Uma guilhotina se projeta


em um horizonte árido. Em seguida, a palavra “revolução” em letras
5
diferentes, com grafia distinta e uso do preto e branco. É preciso atentar
para as distintas possibilidades de interpretação. No último nível, um
diálogo entre um “Guy Fawkes” e Che Guevara: diferentes ilhas, distintas
revoluções? Qual o sentido de revolução para os dois personagens
históricos?

A segunda prancha aprofunda e localiza o tema, apresentando a


guilhotina como extensão de uma árvore frondosa e arrancada pelas
raízes, e uma síntese do sentido mais contemporâneo de revolução,
vinculado à Revolução Francesa: “Mudança intensa! Profunda e
concentrada!” o desenho conduz o olhar para uma cabeça rolando, no
contexto da “solução final” jacobina. É Robespierre, que exclama:
“Radical!”.

A terceira e última prancha traz três sequências de três tirinhas


cada, como nas pranchas da seção de quadrinhos dos jornais impressos.
Aqui, após anunciar o tema e as possibilidades de interpretação do
conceito de revolução, passamos à avaliação de três processos
revolucionários distintos, a partir de marcos cronológicos bem definidos: A
Revolução Francesa, mãe e modelo das revoluções contemporâneas, em
seus primórdios (1789), e as jornadas populares; a Revolução Russa e sua
troika original, e as disputas de poder e de sentido ao próprio processo
revolucionário e suas implicações sociais e políticas (1911; 1924; 1929); A
Revolução Cubana e o “paredão” (1959).

É de se observar ainda a cor de fundo dos slides, como elaborados:


são as cores da bandeira francesa, que reportam a uma série de outras
referências trípticas: liberdade, igualdade e fraternidade, por exemplo,
instigando os alunos a outros níveis e possibilidades de leitura e
compreensão dos textos e símbolos revolucionários.

O fecho da atividade consiste em avaliação, como sugerido a seguir:

1) Dividir os alunos em equipes e escolher com a turma os assuntos de


maior interesse em relação ao tema Revolução. Distribuir as temáticas 6
entre os alunos para pesquisa e apresentação em pequenos seminários.

2) Para finalizar o trabalho, cada grupo deverá escrever sua interpretação


a respeito das sequências desenhadas, e posteriormente apresentá-las
para a turma, em forma de seminário.

ANEXO – AS PRANCHAS
7

Prancha 1
8

Prancha 2
9

Prancha 3
Referências

MARX, Karl. Onze Teses sobre Feuerbach. In: Fundação Lauro Campos.
Disponível em http://laurocampos.org.br/2008/03/onze-teses-sobre-
feuerbach/. Acesso em 07/01/2016.

FRONZA, Marcelo. As histórias em quadrinhos e a educação histórica: uma 10


proposta de investigação sobre as ideias de objetividade histórica dos
jovens. In: Anais do 3º Seminário de Educação Histórica “Desafios da
Aprendizagem na Perspectiva da Educação Histórica. Curitiba:2012, UFPR,
p. 59-78.

IANNONE, Leila Rentroia; IANNONE, Roberto. O Mundo das Histórias em


Quadrinhos. São Paulo, Moderna:1994, 90 p.

LEE, Peter; ASHBY, Rosalyn. Progression in historical understanding among


students ages 7-14. In: STEARNS, Perter N.; SEIXAS, Peter; WINEBURG,
Sam (eds.). Knowin, teaching and learning History: national and
international perspectives. New York: New York University Press, 2000, p.
199-222.

MARX, Karl. Onze Teses sobre Feuerbach. In: Fundação Lauro Campos.
Disponível em http://laurocampos.org.br/2008/03/onze-teses-sobre-
feuerbach/. Acesso em 07/01/2016.

MENEZES NETO, Geraldo Magella. Histórias em Quadrinhos no ensino da


“Pré-História”: relato de experiência. História & Ensino, Londrina, v. 20, n.
1, p. 223-242, jan./jun. 2014.

MOYA, Álvaro de. A Reinvenção dos Quadrinhos. Quando o gibi passou de


réu a herói. São Paulo:Criativo, 2012, 98 p.
NAPOLITANO, Marcos. A História depois do Papel. In: Fontes Históricas.
São Paulo:Contexto, 2006, p. 235-290.

PINSKY, Carla Bassanesi e LUCA, Tania Regina de. O Historiador e suas


Fontes. São Paulo:Contexto, 2013, p. 309-328.
11
RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro (org.) Como usar as histórias em
quadrinhos na sala de aula. São Paulo:Contexto, 4 ed., 2014, 155 p.

RÜSEN, Jörn. História Viva. Teoria da História III: formas e funções do


conhecimento histórico. Brasília:UnB, 2010, 1 reimpressão.

SANTOS, R. E.; VERGUEIRO, W. Histórias em quadrinhos no processo de


aprendizado: da teoria à prática. EccoS, São Paulo, n. 27, p. 81-95.
jan./abr. 2012. 2004.
O OURO ENCANTADO:
IMAGINÁRIO E CULTURA POPULAR

Weverson Cardoso de Jesus1


1

RESUMO: As diversas manifestações culturais podem ser usadas como objetos de


análise da História; assim, o artigo visa compreender e registrar os mitos e lendas que
permeiam o imaginário coletivo, com foco de pesquisa no ouro encantado, bem como
traçar um paralelo entre as formas de pensar a cultura como elemento constitutivo de
um povo e a valorização da oralidade como fonte metodológica. O ouro encantado faz
parte do imaginário coletivo de diversas regiões do país e relaciona-se com o passado
colonial de extração aurífera. Desse modo, objetiva-se perceber as permanências e
ressignificações sofridas acerca do mesmo no decorrer dos tempos, do período colonial
ao contemporâneo.

Palavras – chave: mito, imaginário, encantaria.

THE GOLD CHARMED: IMAGINARY AND POPULAR CULTURE

ABSTRACT: The various cultural events can be used as objects of analysis of history;
therefore, the article aims to understand and record the myths and legends that
permeate the collective imagination, with research focus on the enchanted gold, as
well as tracing a parallel between the ways of thinking of culture as a constitutive
element of people and the appreciation of orality as a methodological source. The
enchanted gold is part of the collective imagination of many regions of the country and
relates to the colonial past of auriferous extraction. Thus, the objective is to
understand the continuities and reinterpretation suffered by it throughout the ages,
from the colonial period to the contemporary.

Key-words: myth; imaginary; enchant.

1
- Mestrando em História, pela Universidade Federal do Goiás (UFG), Pós-graduado em História e
Cultura Afro-brasileira (UCAM/Prominas). Bolsista CAPES. Email para contato:
weversonsem@hotmail.com
EXPLANANDO OS CONCEITOS: CULTURA E CULTURA POPULAR

Nas diversas comunidades humanas as manifestações culturais


estão presentes sobre as mais diversas facetas, seja pela festividade,
momentos de encontros, transmissão de conhecimentos, entre outros 2

aspectos que demonstram a ligação dos indivíduos aos instrumentos de


transmissão e perpetuação da cultura. A partir dessas observações, o
presente artigo trata da cultura, mais especificamente da cultura popular
presente nos municípios de Dianópolis e Natividade – TO, como amostra
de narrativas comuns em outras localidades do estado e até mesmo em
outras regiões, como em Pernambuco retratado por Gilberto Freyre.
O termo cultura é comumente associado aos costumes, religião,
festas, manifestações da população de uma dada comunidade. No
entanto, atenta-se para a complexidade da compreensão do termo, uma
vez que é uma categoria presente nas Ciências Humanas e que está em
contínuo processo de mutação. Os antropólogos, desde o século XIX,
procuram definir os limites de sua ciência por meio da definição de
cultura. O resultado é que os conceitos de cultura são múltiplos e, às
vezes, contraditórios, asseguram Silva & Silva (2009, p.86). Esses autores –
apoiados em Tylor – pontuam que cultura abrange todas as realizações
materiais e os aspectos espirituais de um povo, é tudo aquilo produzido
pela humanidade, seja ela material ou imaterial, incluindo ideias e crenças.
Cultura, desse modo, é todo complexo de conhecimentos e toda
habilidade humana empregada socialmente. Além disso, é também todo
comportamento aprendido, de modo independente da questão biológica,
assegura Edward Tylor (apud Silva & Silva, 2009, p. 86).
Já para Bosi (1996, p. 308) cultura é o conjunto de práticas, de
técnicas, de símbolos e de valores que devem ser transmitidos às novas
gerações para garantir a convivência social, uma herança de valores e
objetos compartilhada por um grupo humano relativamente coeso. Nesse 3

sentido, para que haja cultura é preciso antes que exista uma consciência
coletiva que, a partir da vida cotidiana, elabore os planos para o futuro da
comunidade, ressalta Silva & Silva (2009, p. 86). Todas as culturas têm uma
estrutura própria, suscetíveis a mudanças, pois são dinâmicas, trocas
culturais ocorrem por meio da interação entre uma cultura e outra; por
não existir culturas isoladas, as influências mútuas são recebidas em todas
as sociedades.
Interessa ainda a compreensão de cultura popular para
compreender as narrativas acerca do ouro encantado nas regiões
mencionadas. Para Renato Ortiz (1992, p. 66) a cultura popular é
compreendida como sinônimo de povo, por outro lado Noeci Messias
(2010, p. 33) assinala que a terminologia “popular” é, ainda, polêmica e
que normalmente costuma ser associada às classes sociais subalternas, ou
às pessoas que, na organização espacial de uma dada sociedade, ocupam
posição periférica, representando um caráter de certa forma pejorativo.
De maneira semelhante, Vovelle (2004, p. 154) analisa o “popular” como
um quadro de confronto dialético entre a cultura dominante e a cultura
dominada. A afirmação de Vovelle está em consonância com Marta Abreu
a partir da afirmação:
a cultura popular não é um conjunto fixo de práticas
ou textos, nem um conceito definido aplicável a
qualquer período histórico. Neste sentido, cultura
popular não se conceitua, enfrenta-se. É algo tecido
pelo historiador nas tramas sociais e documentais da
história; só encontra sentido, ou torna-se inteligível,
através de sua contextualização (não um conceito 4
estático e funcionalista que dá coerência a todas as
ações). O conceito emerge na própria busca do como
as pessoas comuns, as camadas pobres ou os
populares (ou pelo menos o que se considerou como
tal) criavam e viviam seus valores e, no caso, as
manifestações festivas, considerando sempre a relação
complexa, dinâmica, criativa e política mantida com os
diferentes segmentos da sociedade: seus próprios
pares, representantes do poder, setores eruditos e
reformadores. (ABREU, 1999, p. 28).

A partir dessas conceituações, propõe-se analisar as diversas


narrativas obtidas em depoimentos 2 que revelam o folclore enraizado na
cultura popular, especificamente na região sudeste do estado do Tocantins,
constituindo o que denominamos de cultura popular com todas as suas
especificidades elencadas acima. A cultura popular, por fim, é entendida
como a maneira de pensar, agir e sentir coletivizado por um povo de modo

2
Agradeço aos depoentes que sem delongas dedicaram parte de seu tempo para que esta pesquisa
fosse realizada. As referências às funções desempenhadas pelas rezadeiras relaciona-se á prática local de
rezar terços em, latim nas comunidades. Como forma de gratidão, elenco os mesmos e a sua origem:
Aristides Oliveira de Jesus – 76 anos, lavrador aposentado, morador do município de Dianópolis – TO;
Custódia Ferreira – 61 anos – lavradora aposentada, moradora do município de Dianópolis – TO; Dinah
Cardoso de Jesus – 69 anos, lavradora aposenada, moradora do município de Dianópolis – TO; Dona Lelé
(Aurelina Rodrigues) – 75 anos, rezadeira, lavradora aposentada, moradora da zona rural de Dianópolis –
TO; Felisberta Pereira da Silva (Feliz) – 62 anos, rezadeira, benzedeira, dançarina de Sussa, funcionária
pública municipal, residente em Natividade – TO; Floracy Ribeiro Cardoso (Flora) – 53 anos, rezadeira,
professora, moradora do município de Dianópolis – TO.
espontâneo, de acordo com Oliveira (2010, p. 2). O trabalho realizado no
decorrer do ano de 2014 com a coleta de testemunho e levantamento
bibliográfico insere-se no contexto de cultura popular, uma vez que
perpassa pelo imaginário 3 das pessoas que cresceram e viveram uma
grande parte da sua vida na zona rural e que tiveram experiências com a 5

encantaria do ouro em forma de sonho ou visões. Insere-se na vertente


historiográfica Nova História Cultural na medida em que busca
compreender, analisar, dar visibilidade e voz aos depoentes que residem
nos municípios de Dianópolis e Natividade – TO, conhecedoras de histórias
referentes ao objeto de estudo. A coleta e registro foram feitos com o
intuito de valorizar a diversidade cultural presente no Brasil, uma vez que
o aspecto de diversificação e até mesmo de hibridismos culturais são
frutos da colonização do país que proporcionou o caráter mantenedor da
heterogeneidade presente na nação.

O OURO ENCANTADO NAS NARRATIVAS ORAIS

O uso de narrativas orais para compreensão da transmissão de


relatos tem sido de fundamental importância para o desenrolar da
pesquisa, dado que objetivou-se compreender essas manifestações
culturais a partir da mentalidade dos depoentes, uma das diversas formas
de valorização do conhecimento que os “velhos” podem oferecer-nos.

3
Imaginário refere-se o conjunto de imagens guardadas no inconsciente coletivo de uma sociedade ou
de um grupo social; é o depósito de imagens de memória e imaginação, abarca todas as representações
de uma sociedade, toda a experiência humana, coletiva ou individual, conforme SILVA & SILVA (2009, p.
213).
Ecléa Bosi (1994, p. 60) mostra que no estudo da memória dos velhos é
possível verificar uma história social bem desenvolvida, uma vez que elas
já atravessaram um determinado tipo de sociedade, com características
bem marcadas e conhecidas, pois viveram quadros de referência familiar e
cultural igualmente reconhecíveis. Desse modo, a partir da citação da 6

autora somos impulsionados a pensar que temos muito o que aprender


com os mais velhos, eles possuem o conhecimento que, muitas vezes não
estão registrados; aprendemos a valorizar as pessoas na medida em que
valorizamos seus sentimentos, religiosidade, modo de pensar e expressar.
Ressalta-se que a História Oral é indispensável no processo de
registro de memórias, expõe Santhiago (2008, p. 43). Graças à abertura da
História para outras fontes de pesquisa, consegue-se valorizar os
silenciados, analfabetos, “minorias sociais” que ficam à margem da
sociedade por serem considerados a-históricos. 4 Desse modo, cabe a
quem constrói uma narrativa histórica “expor o que se passa na mente
destes agentes, ou pelo menos atribuir um sentido a cada um de seus atos”
na expressão de Barros (2011, p. 14). Os depoentes são compreendidos
como agentes históricos e portadores de valores; são eles que sustentam a
memória das lendas e mitos e garantem à posteridade o conhecimento
dos mesmos. É gratificante trabalhar nesse campo por contribui para que
ocorra a promoção social dos depoentes e demais sujeitos envolvidos na
pesquisa, pois “quando compreendemos cada narrativa que nos é contada,
estamos aprendendo a viver” (BARROS, 2011, p. 19). As narrativas são

4
Ao referir-se aos sujeitos a-históricos estou referindo às sociedades que são consideradas por não
possuírem escrita ou registros, e ainda à sujeitos silenciados pela tradicionalidade da historiografia;
desse modo, não refere-se aos depoentes.
utilizadas como instrumento de favorecimento do diálogo a fim de que os
depoentes possam buscar em suas memórias lembranças de
acontecimentos que expressassem o significado das lendas transmitidas
de geração a geração.
A delimitação do recorte espacial inclui as cidades de Dianópolis e 7

Natividade – Tocantins por elas terem sido originadas em meados do


século XVIII no ciclo da extração aurífera, constituindo no seu bojo as
marcas e os resquícios da escravidão, seja pela cor da pele dos membros
da população e, sobretudo, pela permanência de crenças e costumes
herdados desse período. Toma-se como referência regional o escritor
Liberato Costa Póvoa; em suas obras estão registrados indícios de que na
região ocorreram diversos encantamentos, como foi inquerido nos
testemunhos obtidos. A partir dessas confrontações o espaço de pesquisa
alarga-se para pensarmos as lendas, mitos oriundos do período colonial e
que ainda permeiam as mentalidades coletivas.
O ouro encantado foi por diversas vezes mencionado na
historiografia colonial, sobretudo nas obras de Gilberto Freyre, como Casa
– Grande e Senzala e Assombrações do Recife Velho, trabalhos que
retratam o caráter mitológico e lendário vigentes no imaginário coletivo do
período. Os objetos de ouro eram enterrados por não possuírem cofres ou
locais específicos para armazená-lo; como percebe-se na afirmativa de
Freyre (2006, p. 40) ao elucidar que o ouro era guardado nos casarões,
dentro de suas grossas paredes, debaixo dos tijolos ou mosaicos; no chão,
enterrava-se dinheiro, guardavam-se joias, ouro, valores. Em outro trecho
da obra do respectivo autor é possível perceber a preocupação dos
indivíduos do período, que por segurança e precaução contra os corsários
e outros ladrões os grandes proprietários, nos seus zelos exagerados e
receios, enterraram dentro de casa as joias e o ouro. O autor elenca que os
fortes motivos das casas-grandes acabarem sempre mal-assombradas
estavam no costume colonial de enterrar ouro nas residências. 8

Peculiarmente cadeiras balançavam-se sozinhas sobre tijolos soltos que de


manhã ninguém encontrava, barulhos de pratos e copos batendo de noite
nos aparadores, almas de senhores de engenho aparecendo aos parentes
ou mesmo a estranhos pedindo padres-nossos, ave-marias, gemendo
lamentações, indicando lugares com botijas de dinheiro eram
assombrações comuns para os habitantes dos palacetes recifenses. Às
vezes era enterrado dinheiro de outras pessoas que os senhores,
ilicitamente, se apoderavam, como constata-se:

Dinheiro que compadres, viúvas e até escravos lhes


tinham entregue para guardar. Sucedeu muita dessa
gente ficar sem os seus valores e acabar na miséria
devido à esperteza ou à morte súbita do depositário.
Houve senhores sem escrúpulos que, aceitando
valores para guardar, fingiram-se depois de estranhos
e desentendidos: "Você está maluco? Deu-me lá
alguma cousa para guardar?". Muito dinheiro
enterrado sumiu misteriosamente. (FREYRE, 2006, p.
40-41).

O folclore ou a cultura de um povo são transmitidos às gerações por


meio de ensinamentos, principalmente pela oralidade. Esse método de
passagem de conhecimento foi analisado e, a partir do mesmo,
percebemos que a cultura não permanece estática, como assegura Laraia
(2000, p. 99). A abertura da História para outras fontes de análise, como o
estudo do folclore ocorre apenas a partir da Nova História Cultural,
possibilitou que se alargassem as fontes documentais, o diálogo com 9

outras disciplinas e ainda a abertura para novos objetos de estudo, como o


imaginário coletivo, as mentalidades, a religiosidade popular, a cultura, o
folclore, entre outros campos investigativos. A História, vista como área do
conhecimento e que volta seu interesse para as atividades humanas
baseadas numa multiplicidade de documentos, que não precisam ser
apenas textos escritos ou documentos oficiais, conforme Le Goff (2001, p.
411). Este autor analisa esses aspectos culturais como constituintes das
ações humanas na sociedade. Desse modo, adentremos nessa diversidade
de fontes para compreender as narrativas acerca do ouro encantado no
sudeste do Tocantins. Os depoimentos obtidos no desenrolar na pesquisa
revelam as variedades das manifestações culturais locais, bem como uma
oportunidade de perceber os simbolismos existentes nas narrativas
referentes ao ouro encantado, permeados pelo passado da colonização e
de elementos híbridos herdados pelos europeus, africanos e indígenas.
Para Luís da Câmara Cascudo (2002, p. 348) as lendas são:

[...] episódios heroicos ou sentimentais com elemento


maravilhoso ou sobre-humano, transmitido e
conservado na tradição oral e popular, localizável no
espaço e no tempo. De origem letrada, lenda, legenda,
“legere” possui características de fixação geográfica e
pequena deformação e conserva-se as quatros
características do conto popular: antiguidade,
persistência, anonimato e oralidade. É muito
confundido com o mito, dele se distância pela função
e confronto.

10

As lendas são transmitidas pela oralidade - como constata-se acima em


Câmara Cascudo -; as narrativas relacionadas às lendas e mitos de
encantaria proporcionam amplo campo investigativo. Barros (2011, p. 19)
assegura que a narrativa permite que o tempo se mostre, pois os
depoentes mergulham nas lembranças e ficam envoltos nas memórias
vivenciadas em experiências anteriores. Enfatiza-se o terreno da oralidade
e o papel que a mesma exerce para afirmar a memória coletiva, elementos
significativos que foram perceptíveis no decorrer da coleta de
depoimentos.
Uma das características marcante das lendas é a forma de sua
narração, encantadora, fascinante e inventiva. Elas permeiam o imaginário
popular e permanecem no meio das comunidades com a transmissão oral.
A memória é um instrumento fundamental dos laços sociais posto que,
por meio dela, algumas lembranças são conservadas ao longo dos tempos.
Le Goff (2003, p. 366) afirma que a memória, enquanto propriedade de
conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um
conjunto de funções psíquicas graças às quais o homem pode atualizar
impressões ou informações passadas ou que ele representa como
passadas. Por meio da memória revelada foi possível identificar as
manifestações culturais e analisar elementos que podem revelar as
narrativas passadas de geração à geração, bem como compreender as
relações estabelecidas no tempo presente entre os narradores e seus
interlocutores. Por essas razões, depreende-se a importância do folclore
enquanto pesquisa historiográfica no intuito de manter viva a memória do 11

povo residente na região em análise.


Ao referir-se ao ouro encantado, o autor regional reitera:

Diz o povo que defunto que deixa dinheiro enterrado


não encontra sossego no outro mundo enquanto não
vem de lá oferecer a algum vivente o que deixou
oculto, às vezes em locais funestos – taperas
abandonadas, cruzes – das – almas, portas de
cemitério; às vezes dentro da própria casa (PÓVOA,
1989. p. 43).

Freyre (1970, p. 139) assinala que com as demolições de casas, de


arcos e da Igreja de Corpo Santo nos primeiros anos do século XX, foram
encontrados nos sobrados mais antigos do Recife muita moeda enterrada,
ouro do tempo colonial. O mesmo lembrava-se de ter visto quando
menino, moedas de ouro do tempo do rei D. José de Portugal, encontradas
numa das casas demolidas do bairro da referida cidade. Muitas pessoas do
período procuravam os prédios para retirar destes o dinheiro que dizem
estar enterrado nas grossas paredes das casas coloniais. Nos relatos do
sociólogo, as primeiras noites dos novos donos nessas residências eram
perturbadas por ruídos estranhos, era comum ouvir balanços de redes,
assovios, baques, móveis espatifando-se no chão, entre outras coisas
bizarras (FREYRE, 1970, p. 145).
Nos depoimentos orais obtidos foi relatado que o ouro enterrado se
encanta por ficar muito tempo no interior da terra e que são fortunas
acumuladas por famílias que ali o colocava para protegê-lo. No entanto, 12

por diferentes motivos, não é contado para os familiares onde este está
escondido; por meio de sonho é revelado o local onde está oculto para
desencantá-lo. Póvoa (1989, p. 43) expõe como as lendas transitavam no
imaginário ao assegurar que no tempo antigo, principalmente no interior,
os abastados enterravam suas fortunas – ouro, joias e patacões – para
deixá-las fora do alcance dos aventureiros, ladrões e jagunços. Inexistindo
bancos e cofres seguros, e sendo desconhecida a inflação, o seio da terra
era um esconderijo mais certo do que as burras e os baús. O sertão
tocantinense é pródigo dos casos de assombrações, pontua o referido
autor.
Sobre as diversas localidades de esconderijo do metal precioso, lê-se:

Sabe o local exato em que se acha enterrado esse


dinheiro? — Os antigos moradores da Imbiribeira
dizem que o dinheiro se achava enterrado em uma das
paredes da cozinha, pelo fato de várias pessoas que
residiram no prédio terem tido sonho com pessoas, já
mortas, dizendo-lhes existir dinheiro guardado
naquele recanto da casa. (FREYRE, 1970, p. 161).

As depoentes Dinah Cardoso e Floracy Ribeiro, ambas da cidade de


Dianópolis - TO, elucidam que a confirmação do local onde o ouro está
encantado ocorre a partir de sonhos, estes devem acontecer por três
noites consecutivas. A pessoa que sonha não deve contar à ninguém a
visão obtida, nem mesmo o local onde o ouro está encantado. Após
certificar o local, procedem-se os passos para o desencantamento: 13

direcionar ao local mostrado em sonho, preparar-se para as aleivosias 5 que


virão, pois, como as depoentes afirmam, para desencantá-lo advêm
assombrações, terrores, figuras monstruosas, cães a ladrar, galinhas que
atacam o indivíduo, entre outros meios de impedir o desencantamento.
Uma vez passada as assombrações e terrores, quem desenterra o ouro
deve tirar sua camisa e jogá-la às avessas sobre o local indicado ou cortar o
dedo e pingar gotas de sangue sobre o local visto em sonho.
Posteriormente, acontece um estrondo enorme que faz com que o ouro
retorne à superfície. Contam ainda que a fumaça da explosão, uma vez
inalada, causa loucura à quem não toma o cuidado de manter uma certa
distância. As testemunhas salientam que o ouro desencantado por meio
de sangue, com o dedo cortado, deve ser evitado, pois dizem que quando
os familiares daqueles que o desenterraram forem dividir a fortuna gerada
pelo ouro, ocorrerão brigas, desentendimentos, culminando em
derramamento de sangue. A mesma narrativa é presente no município de
Natividade – TO, como consta na entrevista com Felisberta Pereira, ao
afirmar que o ouro encantava-se por ficar muito tempo dentro da terra,
sem ninguém para apanhá-lo. Também em Natividade ocorre o mesmo
procedimento para desencantar o ouro. Póvoa (1989, p. 43) registra essas

5
Assombração, fantasma, coisa de outro mundo.
narrativas e demonstra o processo:

Adianta a tradição que no momento do desenterro


sobrevêm gemidos, me – acodes, “ai meu Deus do
céu!” e outras aleivosias que seriam artifícios do
capeta para desencorajar o ganhador, uma vez que a 14
alma doadora dele se libertaria no momento em que o
ouro deixasse a terra.

Da mesma forma, Gilberto Freyre reitera que só desacompanhada a


pessoa podia tirar a sorte. O mesmo que acontece com botija de dinheiro
enterrado: só desacompanhada a pessoa a quem foi revelado
misticamente o esconderijo pode desenterrar o tesouro (FREYRE, 1970, p.
6). Essa insistência do defunto para que a pessoa vá desacompanhada é
explicada pela depoente Felisberta Pereira ao expor que esse seria um
presente para aquela pessoa, daí a necessidade de guardar segredo e ir ao
local sozinho para desencantar o ouro.
As manifestações encantadas ocorridas no casarão dos Barbosa -
sobrenome de uma família pernambucana- são relatadas por Freyre (1970,
p. 149). O edifício, aparentemente era como uma casa qualquer; no
entanto, ao anoitecer começava o horror: as portas batiam, ouviam-se
assovios, quedas de louça. Os moradores não conseguiam dormir com as
assombrações advindas do ouro encantado. Nesse relato consta que numa
determinada noite, uma prima de Barbosa viu em sonho, um homem
vestido todo de preto, muito pálido, pedindo-lhe para desenterrar uma
quantia de ouro que dizia estar no sótão do sobrado. Com esse sonho a
família, que não queria meter as mãos em tesouro de morto, apressou a
mudança que estava marcada para o dia seguinte à tarde; porém, às
primeiras horas da manhã o sobrado estava vazio. Para o sociólogo:

[...] os Barbosas pertencem ao número de pessoas que 15


temem dinheiro das almas. Nem toda a gente pensa
assim: há quem dê um quarto ao diabo para ter o
gosto de desencantar casa encantada, desenterrando
o tesouro que cause as assombrações (FREYRE, 1970,
p. 149).

Gilberto Freyre (1970, p. 155) relembra que na sua infância


comentava-se muito o aparecimento de visagens no jardim de sua
residência; seu avô dizia sempre que via vultos junto à uma mangueira
velha, ora era um homem, ora era uma mulher. E apareciam — conforme
relato do referido autor — apontando para o chão, como quem queria
dizer que naquele lugar havia tesouro enterrado. Seu avô desencorajado
de se aproximar da mangueira, quando avistava qualquer vulto junto à
árvore, corria espavorido e toda a família ficava alarmada, receosa de ter a
visão. Essas visagens apareciam entre cinco e seis horas da tarde, ao
anoitecer ou, como geralmente se diz, “à boca da noite”. Essas narrativas
são presentes ainda nos depoimentos colhidos relacionados ao horário
mais comum de manifestações de aleivosias e visagens, no entanto os
depoentes não souberam expor o motivo do horário ser “à boca do noite”.
Na crença popular é nesse horário que os demônios e almas saem para
“infernizar” os populares. Em uma conversa informal com Dona Lelé, a
mesma dizia que sempre reza às seis da tarde um Pai-Nosso e três Ave-
Marias para livrar sua casa do Mal. Talvez essa seja uma explicação para a
constância do horário das visagens. Algumas pessoas mais velhas da zona
rural nativitana não tiram o chapéu e evitam sair nas ruas nesse horário,
principalmente às sextas-feiras, dia em que – na crença popular – o corpo 16

está “aberto” para receber as influências maléficas.


Para entendimento das questões referentes às manifestações
folclóricas deve-se considerar os diversos fatores da constituição regional
das localidades analisadas. No caso específico da região tocantinense
vivenciou um passado escravista que resultou na instalação de diversas
minas e fontes de extração aurífera, população miscigenada, com diversas
crenças e manifestações culturais. A fundamentação religiosa regulada
pelo Cristianismo Católico condenava a usura, por isso era comum a
prática de enterrar as fortunas ou as quantias recebidas em dívidas; e
ainda a presença de elementos africanos que permaneceram no
imaginário, como a crença nos espíritos, em encarnações ou aleivosias que
habitam locais como cemitérios, matas. Por outro lado, a cultura popular é
pautada no imaginário e neste é possível encontrar uma riqueza
imprescindível para estudo das relações humanas com o sobrenatural,
com a natureza, com o mundo dos mortos. No campo do imaginário
popular desenvolveram e disseminaram crendices, lendas, superstições,
mitos e contos, para explicar fenômenos ou reafirmar histórias
transmitidas pela oralidade e que são estudados pela História Cultural.
Nas lendas é comum a presença de narrativas permeadas pelos
“enfeites” na transmissão; entretanto, ocorre a preocupação em legitimar
a história contada evocando a memória do transmissor da narrativa, ao
mostrar que a história escutada foi transmitida pela avó, mãe, pai ou até
mesmo o próprio narrador presenciou o fato. Essas observações estão em
consonância com Bosi (1994, p. 55) ao apontar que as lembranças são
imagens organizadas a partir de elementos e circunstâncias do tempo 17

presente; lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com


imagens e ideias de hoje as experiências do passado. A memória não é
sonho, é trabalho, pontua a referida autora. Essas observações não
invalidam o caráter mitológico presente nas narrativas colhidas, mas
reforça a ideia de uma perpetuação da memória por meio de narrativas
fabulosas, o que gera interesse naqueles que escutam os causos e
arrepiam ao imaginar a experiência de entrar em contato com aleivosias
ou criaturas assombrosas. Interessante ressaltar que a depoente Custódia
Ferreira, ao contar que um dia estava na Fazenda Genipapo, município de
Dianópolis, escutou um barulho no pé de manga que tinha próximo ao
curral. Ao olhar para o pé de manga visualizou as galhas balançando com
força, apesar de não ter vento no momento. De acordo com a depoente
caiu aos seus pés uma cobra que estava incandescente na cor amarela. Um
caso de assombração que a Dona Custódia contava e arrepiava ao
recordar, dizendo que nunca havia visto nada parecido. Esse depoimento
reforça a ligação intrínseca entre as experiências passadas e as narrativas
atuais; ao evocar a memória, a depoente retornava às sensações
vivenciadas quando jovem e não se sentia mais à vontade para continuar a
entrevista.
Por fim, a rememoração de histórias relacionadas ao ouro
encantado nas regiões de Natividade e Dianópolis reiteram o desejo dos
depoentes em serem valorizados. A escolha dos depoentes deu-se a partir
de uma aleatoriedade, mas tem diversos outros que vivenciaram ou
escutaram dos antepassados causos referentes ao tema e que não foram
inseridos na pesquisa, mas que podem ser entrevistados posteriormente 18

por demais pesquisadores da cultura popular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As narrativas acerca do ouro encantado e suas assombrações e


aleivosias são comuns nas localidades e fazem parte do imaginário
coletivo. Por diversas vezes escutei dos habitantes mais velhos as histórias
relacionadas ao tema e as inquietações surgiram como propulsoras da
pesquisa, uma vez que foi possível perceber que as mesmas histórias se
repetem em outros municípios e até mesmo em outros estados, como no
Pernambuco retratado por Gilberto Freyre. A coleta e registro das
lembranças dos depoentes possibilitaram entender os significados das
manifestações culturais como forma de sociabilidade e autoafirmação da
identidade local. O contato com os depoentes e as leituras realizadas
contribuíram para perceber que a cultura de um povo não se limita às
festas, folguedos, mas inclui seus saberes e fazeres. Por meio da coleta e
análise dos testemunhos podemos perceber o desejo que os depoentes
tem de que as histórias, lendas, causos, não se percam. Há uma
preocupação com a perpetuação da memória, como ressaltou a depoente
Felisberta Pereira “não devemos deixar que a nossa cultura se perca”.
Nesse sentido, foi possível ainda compreender o caráter dinâmico da
cultura e dar visibilidade para que demais pesquisadores e indivíduos
interessados na temática saibam que o imaginário permanece e é
repassado pelos mais velhos nas rodas de conversas, nas casas, nos
diálogos e que não podemos desprezar o valor do conhecimento popular 19

como norteador das relações pessoais e interpessoais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Martha. O império do Divino: festas religiosas e cultura popular


no Rio de Janeiro, 1830-1900. São Paulo: Fapesp, 1999.

ARANTES, Antônio Augusto. O que é Cultura Popular. São Paulo: Editora


Brasiliense, 1998.

BARROS, José D’Assunção. Paul Ricoeur e a Narrativa Histórica. Revista


História, imagem e narrativas. Rio de Janeiro, 2011, n.12, p.1-26.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia


da Letras, 1994.

CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo:


Global, 2002.

FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. Rio de Janeiro: Editora


Livraria José Olimpyo, 1970.

FREYRE, Gilberto. Casa – Grande e Senzala: formação da família brasileira


sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. UNICAMP, 2003.

MESSIAS, Noeci. Carvalho. Religiosidade e devoção: As festas do Divino e


do Rosário em Monte do Carmo e em Natividade – TO. Tese (Doutorado
em História) - Universidade Federal do Goiás, Goiânia, 2010, p. 33.
20
OLIVEIRA, Vilma da Silva Mesquita. Manifestações folclóricas no Piauí:
âmbito social e educacional. 2010. Disponível em:
<http://www.ufpi.br/subsiteFiles/ppged/arquivos/files/VI.encontro.2010/
GT.16/GT_16_04_2010.pdf>. Acesso em 13 fev. 2015.

ORTIZ, Renato. Cultura Popular: Românticos e folcloristas. São Paulo: Olho


d’Água, 1992.

PÓVOA, José Liberato Costa. De Zé Goela a Pé-de-Janta, Os causos que o


Duro conta. Goiânia-GO: Livraria Três Poderes, 1989.

PÓVOA, José Liberato Costa. História Didática do Tocantins. Goiânia: Kelps,


2004.

PÓVOA, Osvaldo Rodrigues. Quinta-feira sangrenta. Goiânia: Gráfica


Editora Líder, 1980.

____________. Crônicas de outros tempos. Goiânia: Gráfica Editora Líder,


1983.

SANTHIAGO, Ricardo. Da fonte oral à História Oral: debates sobre


legitimidade. Saeculum - Revista de História. João Pessoa, 2008, n.18, p.
33-46.

SILVA, Kalina Vanderlei & SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos


históricos. São Paulo: Contexto, 2009.

VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 2004.


O ENSINO DE HISTÓRIA DA AMAZÔNIA: ALGUMAS
REFLEXÕES SOBRE ENSINO DE ESTUDOS AMAZÔNICOS E
DA PRODUÇÃO E USO DOS LIVROS DIDÁTICOS EM SALA
DE AULA
1

Wilverson Rodrigo Silva de Melo 1

RESUMO: Este artigo tem a tenra pretensão de analisar as perspectivas de produção e


uso do livro didático que contemplem discussões acerca da história regional da
Amazônia e, sua inter-relação com a formação sócio histórica do Brasil, no âmbito da
sala de aula nas escolas básicas da cidade de Santarém-Pará. Dito isto, convém
entendermos que existe uma lacuna entre o "querer" e "fazer história", pois “o fazer
história e o ensinar história” não são campos distintos do saber histórico, ambos
encontram-se imbricados e não devem se dissociar. Nesse sentido, longe de ser uma
receita ou normas de como se trabalhar com a temática do Ensino de História da
Amazônia e, quais referências apontar reporto-me justamente a esta dificuldade
inerente ao cotidiano escolar do professor, em ter que realizar a transposição didática
e posteriormente a mediação didática dos conteúdos de Estudos Amazônicos - em
virtude da dificuldade de acesso a materiais didáticos voltados a esta temática, seja
pela carência, desatualização e até mesmo inexistência de materiais, que contemplem
novas abordagens sobre História da Amazônia, sobretudo na perspectiva da
"Interdisciplinaridade" como defendem Japiassu (1976) e Barros (2011).

Palavras-chave: Ensino de História da Amazônia, livro didático, mediação didática.

1
Prof.º Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Co-coordenador
dos Encontros Abertos da Cabanagem organizados em parceria com o Programa de
Antropologia/Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).
ABSTRACT: This article has the simple assumption analyze the prospects for 2
production and use of textbooks didactic that include discussions about the regional
history of the Amazon and its interrelation with the formation social historical of Brazil,
in the context of the classroom in basic schools of city Santarém, Pará. That said, we
should understand that there is a hiatus between "want" and "make history", because
"making history and teach history" are not fields distinct of historical knowledge, both
are intertwined and should not be dissociated. In this sense, far from being a recipe or
rules of how to work with the theme of the Amazonia History teaching, and which
references to point, I refer precisely to this inherent difficulty to the school every day
of teacher, in having to perform the transposition didactic and then the didactic
mediation of content of Studies of the Amazonian - due to the difficulty of access to
didactic materials aimed at this theme, either by lack, did not updated and even not
existence of materials that address new approaches on history Amazonia, especially in
the perspective of the "Interdisciplinary" approach defended for Japiassu (1976) and
Barros (2011).

Keywords: teaching of Amazonia history, book didactic, didactic mediation


Adentrando a discussão...
Este presente trabalho tem como objetivo analisar no contexto do
ensino de História da Amazônia, a abordagem de grandes temas da
literatura historiográfica brasileira oriundas da região Norte do Brasil – tais
como: a Guerra da Cabanagem, o período da borracha, políticas 3

indigenistas, governos ilustrados e populistas, etc. –, a partir da produção


e do uso de livros didáticos nas salas de aula das Escolas Básica de
Santarém-Pará.

Tal ponto é fulcral para a concepção de memória e história, onde um


povo que não tem memória e a não conserva acaba ficando sem sua
própria história ou pelo menos alimentando uma prolixidade em relação a
sua etnogênese (MELO 2015a, p.234).

Partindo desta premissa é que ao longo da pesquisa e análise do


fazer pedagógico, verificou-se as dificuldades dos docentes em seu
cotidiano escolar em ministrar com clareza e domínio de conteúdo temas
de grande relevância na história e formação da sociedade amazônida
moderna, bem como na construção da identidade do Nortista, em especial
do paraense e amazonense.
Apesar de sua significância histórica e cultural, notou-se quão
diminuído e lacônico são os temas do período da borracha, indigenismo,
escravidão e da Guerra da Cabanagem no contexto do ensino de história
da Amazônia em Santarém, seja devido a forma simplória e resumida em
que estes temas estão presentes nos livros didáticos, seja pela ignorância
dos professores ou falta de sistematização/interpretação dos conteúdos
amazônicos, no sentido de relacioná-los com a formação da sociedade e
da historiografia brasileira.

No entanto, a partir desta conjuntura, faz-se necessário analisar a


prática docente em sala de aula, bem como o uso do livro didático pelos
4
professores como aporte teórico e fonte de conhecimento histórico em
sala de aula.

Tardif; Lessard e Lahaye (1991, p. 227) afirmam que “para os


professores, os saberes adquiridos através da experiência profissional
constituem os fundamentos de sua competência, (pois) é através deles
que os professores julgam sua formação anterior ou sua formação ao
longo da carreira”, ou seja, estes profissionais construirão seus aportes
teóricos através da sua prática docente, pois é no cotidiano que eles darão
conta das temáticas educacionais que lhe são cobradas.

Dito isto, convém entendermos que “o fazer história e o ensinar


história” não são campos distintos do saber histórico, ambos encontram-
se imbricados e não devem se dissociar, antes devem ser semelhantes a
ação de “ historiadores e poetas que têm como ofício alguma coisa que é
parte da vida de todos: destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso
e fictício que é a trama do nosso estar no mundo” (GINZBURG, 2007,
p.14).

Isto implica dizer, que os professores devem instigar os seus alunos a


mergulharem no mundo da leitura historiográfica dos temas amazônicos,
associando-os a história e formação político-cultural brasileira, pois antes
de ser uma história específica e regional da Amazônia, os principais temas
da historiografia social da Amazônia pertencem a noção de unidade e
nacionalidade da história brasileira primeiramente.

O Ensino de História da Amazônia a partir da análise de imagens: uma ou


5
duas coisas que sei

Para além das discussões e construções das percepções do ensino de


história da Amazônia a partir da verbalização, uma sugestão teórico-
prático para os docentes trabalharem com os alunos em sala de aula, é a
análise iconográfica dos temas de história da Amazônia presentes nos
livros didáticos.

Nesse sentido, o pontapé inicial deve partir do professor que deve se


apropriar e passar a utilizar fontes imagéticas aprimorando o ensino de
história e o aproximando da teoria, possibilitando aos alunos reflexões
que desenvolvam seu poder cognitivo de investigação e formulação de
teorias.

De igual modo os docentes, devem contribuir para a formação dos


discentes como cidadãos críticos e conscientes, instigando-os a saírem da
posição de admiradores de uma imagem, passando a lerem imagens
criticamente. Pois, o impacto da imagem na imaginação histórica, segundo
Haskell citado em Burke (2004, p. 16), nos leva a pensar como pinturas,
estátuas, publicações e assim por diante, nos permitem compartilhar as
experiências não verbais ou o conhecimento de culturas passadas e, a
maneira como estas experiências foram apropriadas.
Neste universo imagético em constante transformação a questão de
como estabelecer elementos de leituras das imagens apresentadas pelos
diferentes suportes e meios de comunicação, se torna premente como
afirma Molina (2011, p.2082). As significações e repertórios
interpretativos são utilizados na leitura da imagem de formas muito 6

variadas, entremeando e sobrepondo as linguagens visuais e verbais.

Para Baxandall (2006, p. 01) “*...+ nós não explicamos um quadro,


explicamos observações sobre um quadro” e, assim, a transposição em
linguagem textual auxilia a decifração visual, intercalando as linguagens
visual e verbal, pois a descrição não deixa de ser a mediadora da
explicação. Nesse aspecto, Melo (2013, p. 143) afirma que “as imagens
comunicam mensagens, narram histórias a partir de um lugar, provocando
reações diversas e impactando emoções, promovendo sentidos e
organizando significados em resposta ao olhar devolvido por aquelas
imagens”.

Lembremos, também, que a linguagem visual não é universal. Seus


significados obedecem a um sistema de representações que se orientam
por convenções educacionais, sociais, culturais, políticas, econômicas, ou
seja, históricas, que implicam no exercício estruturado de interpretação e
(re)significação, pois “entre a imagem e o que se representa, existe uma
série de mediações, que não restituem o real, mas, reconstroem,
voluntária ou involuntariamente a apreensão do real”, como diz Leite
(1998, p. 41).
Segundo Turazzi (2011, p.14), “a prática cotidiana da leitura,
interpretação, a análise e utilização de imagens fotográficas no
ensino/aprendizagem da História, devem ser entendidas como parte
fundamental e inseparável do processo global de desenvolvimento da
capacidade física e intelectual do estudante” com vistas à melhoria de seu 7

rendimento escolar e á sua plena integração social.

Nesse sentido, longe de ser um receituário em como utilizar tais


imagens no ensino de História, apontamos como possibilidade de análise,
interpretação e formas de uso de imagens - nos livros didáticos em sala de
aula - a perspectiva foucaultiana de desconstrucionismo, deslocamento
analítico e perceptivo, na maturação do processo de produção de tal
imagem. A partir daí, o professor deve e pode instigar seu alunado a
estabelecer um nível de relações das imagens com outras variáveis
epistêmicas, pertencentes ou não ao sistema escriturístico.

Visto que para Melo (2013, p. 142):

Uma imagem sozinha não fala nada, faz-se necessário


construir um contexto, um problema, as referências,
para posteriormente fazer perguntas e deste modo
aprender a lê-las, pois estas imagens são indícios
doutos de significados e que arremetem para
estruturas de ‘micro poderes’.

Entretanto existe uma lacuna entre o “querer” e o “fazer história”,


entre adentrar os meandros dos temas amazônicos - em especial a
Cabanagem - e encontrar subsídios didáticos para tal feito. Infelizmente os
livros didáticos que são utilizados em sala de aula, em sua maioria são
provenientes de autores e escritores de regiões alheias a região Norte.
Desse modo acabam por contemplar uma “História Geral do Brasil”
caracterizada por resumos históricos regionais e, até mesmo quando os
livros são temáticos e divididos por séries, acabam por generalizar e 8

arregimentar um discurso lacônico sobre os principais temas de história


regionais.

As dificuldades em se trabalhar os temas de História da Amazônia


nas escolas básicas de Santarém como já foi mencionado, advém muito da
questão dos livros didáticos que ainda hoje são elaborados de uma forma
generalizada para o país, não levando em consideração as especificidades
e/ou regionalismos. “Sobretudo, marginalizam alguns temas em
detrimento de outros, devido seu caráter popular-revolucionário,
estabelecendo uma discussão generosa para alguns temas e preconizando
o laconismo literário sobre outros” (MELO 2015a, p. 237) - neste caso em
especial destacamos a Guerra da Cabanagem.

A Revolta-Revolução da Cabanagem foi mais uma


culminância do que um ponto de partida. No
emaranhado de tensões sociais desde o período
colonial, a eclosão da Cabanagem significou o estopim
de um processo de tensão sócio-político e econômico
fruto da administração Lusa e posteriormente
brasileira nata e adotiva, que impôs a população
marginal paraense uma condição de subalternidade. A
Cabanagem foi uma guerra proveniente da luta de
classes, da condição sócio-econômica em que se
achava a Província. Foi uma luta do oprimido contra o
opressor, da aristocracia luso-paraense contra os
marginais paraenses natos (MELO 2015b, p. 241).

Mesmo sendo concebida como a maior revolução popular do Brasil


e, responsável pelo alvorecer da História Moderna Amazônica 9
contribuindo na formação da dinâmica sociocultural da região e, no
processo de construção de identidade do amazônida, nota-se quão difícil é
para o professor da escola básica trabalhar com temas como este, de
grande relevância histórica e social, sobretudo para o nortista.

As discussões sobre Cabanagem, Borracha, Guerrilha do Araguaia,


entre outros são sempre lacônicas, simplistas e pouco historicizadas nos
livros didáticos. Estes temas de história da Amazônia são na maioria das
vezes encapsulados nos livros didáticos enquanto História Regional, pois
em geral o máximo que se encontra sobre a cabanagem, o período da
borracha e a escravidão na Amazônia nos livros didáticos de Santarém
(estando quase certo de que esta também é a realidade na maioria dos
municípios da Região Norte) são duas laudas.

Nesta conjuntura boa parte dos professores são levados a


reproduzirem uma história resumida dos livros didáticos em sala de aula,
quase não dão margem a historiografar os temas de forma mais profunda.
Porém, há exceções de alguns professores que no invólucro desta carência
bibliográfica, produzem materiais didáticos que contemplam uma
discussão substancial dos temas históricos amazônicos.

Em se tratando de livros didáticos voltados a uma ampla abordagem


sobre os temas amazônicos, temos poucas obras, entre as já publicadas
(década de 90) e trabalhadas por docentes na escola básica, destaco os de
maior reincidência na disciplina de Estudos Amazônicos em Santarém:

1. Uma coletânea de textos sobre História da Amazônia publicado


pela SEDUC em parceria com o IDESP (Instituto de
Desenvolvimento Econômico-social do Pará); 10

2. O livro Projeto Estante da Amazônia

Bem mais recente temos outras duas coleções, que embora sejam
paradidáticas, tem sido apropriadas pelos professores das redes públicas e
particulares como didáticos em virtude da carência de livros para esta
finalidade, destaco:

1. Pontos de História da Amazônia de José Alves Souza Jr. et. al.

2. Coleção Estudos Amazônicos. Uma coleção inédita com


conteúdo inteiramente voltado à realidade amazônica. A
proposta dos professores Mauro Cezar Coelho, Amélia
Bemerguy, Luana Guedes e Márcia Pimentel é oferecer aos
estudantes e professores um material de qualidade para
atender as disciplinas de Geografia, História e Estudos
Amazônicos. A coleção é dividida em quatro volumes voltados
para o 6º, 7º, 8º e 9º ano do Ensino Fundamental, e abordam
desde o início da colonização até o século XXI, tratando sobre os
diversos aspectos históricos, geográficos, sociais e culturais da
Amazônia.
Além destes, tem-se uma proposta de livro didático elaborado sobre
História da Amazônia, mas não em sua totalidade, apenas uma História
parcial, contemplando a relação do Marajó com o resto da Amazônia:

1. Remando por campos e florestas: memórias e paisagens dos


Marajós - livro organizado pelos Profs. Agenor Sarraf, Denise 11

Schaan e Jane Felipe Beltrão.

Todos estes livros trazem na perspectiva de Carlo Ginzburg,


compreender as "micro histories" na e da Amazônia relacionando-as ao
contexto da formação sócio-histórica do Brasil, além de, analisar o teor de
historicidade, a partir da compreensão do espaço geográfico amazônico e,
das relações sociais existentes entre os homens em seu tempo no âmbito
da cultura - o que implica no processo de interdisciplinaridade, concebida
por Japiassu (1976) como “uma intercomunicação entre disciplinas, que
resulte necessariamente em uma modificação entre elas, através de
diálogo compreensível”.

Considerações Finais

Mesmo diante deste cenário de carência, desatualização e por vezes


inexistência de obras didáticas, que abordem a história social da Amazônia
com ênfase relacional a História do Brasil, o professor não deve ser
dependente do livro didático, pois sua formação acadêmica lhe preparou
para todas as inconstâncias que iriam surgir em sua prática docente - na
medida em que ele foi formado para “aprender a apreender” sobre os
arcabouços presentes no processo histórico e historiográfico.
Partindo desta premissa, importa que o professor trabalhe como uma
variedade de fontes (livros, jornais, imagens, revistas, memórias, história
oral etc.), não importando a veracidade delas, mas sim, que abordem de
forma clara e processual os Estudos Amazônicos. Em outras palavras, “o
problema mais importante relacionado a uma fonte não é saber se ela é 12

verdadeira ou falsa, mas descobrir o que ela significa” 2.

Rastros, documentos, perguntas formam assim o tripé


de base do conhecimento histórico. Para o historiador,
o documento não está simplesmente dado, como a
ideia de rastro deixado poderia sugerir. Ele é
procurado e encontrado. Bem mais que isso, ele é
circunscrito, e nesse sentido constituído, instituído
documento, pelo questionamento. Torna-se assim
documento tudo o que pode ser interrogado por um
historiador com a ideia de nele encontrar uma
informação sobre o passado. (RICOEUR, 2007, p.188-
189).

Nesse sentido é que o professor ao instituir e legitimar fontes como


documentos, passa a ser um construtor de conhecimento e produtor de
seu material didático, realizando primeiramente a transposição e
posteriormente a mediação didática, abrindo diálogo com outras ciências
humanas e sociais e, contrariando o caráter lacônico e simpliciter de
grande parte dos livros didáticos produzidos de forma generalizada no
Brasil.

2
ARRAIS, Cristiano Alencar. A filosofia da História de R. G. Collingwood: duas contribuições.
Vitória: Dimensões, vol. 24, 2010, p.44.
A interdisciplinaridade é uma prática que pode se
estabelecer no interior de certo campo do saber – no
nosso caso a História – com vistas às possibilidades de
incorporar metodologias ou aportes teóricos oriundos
de outras disciplinas, estabelecendo diálogos com 13
outros campos do saber (BARROS 2011, p. 394).

Diante deste contexto, inferimos que ninguém nasce professor ou


sai da universidade professor, é no cotidiano escolar, na prática docente
que nos fazemos professor. Esta ação mediante a autonomia docente
instiga-os a produzirem materiais didáticos interdisciplinares, que
facilitem ao aluno compreender em sala de aula, o ensino de história da
Amazônia associado ao entendimento de outras ciências (sociologia,
antropologia, geografia etc.) e contextualizado a formação da História do
Brasil.

Dessa forma, importa saber que os saberes necessários ao ensino


são reelaborados e construídos pelos professores “em confronto com suas
experiências práticas, cotidianamente vivenciadas nos contextos
escolares” (PIMENTA, 1999, p. 29). E nesse confronto, há um processo
coletivo de troca de experiências entre seus pares, o que permite que os
professores a partir de uma reflexão na prática e sobre a prática,
constituam seus saberes necessários ao ensino.
REFERÊNCIAS

ARRAIS, Cristiano Alencar. A filosofia da História de R. G. Collingwood:


duas contribuições. Vitória: Dimensões, vol. 24, 2010.

BARROS, José D’Asunção. História: Ciência Humana e Social: questões


14
interdisciplinares. Revista Cesumar Ciências Humanas e Sociais Aplicadas,
v.16, n.2, p.389-422, set/dez 2011.

BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção. São Paulo: Companhia das


Letras, 2006.

BURKE, Peter. Testemunha ocular. História e Imagem. Bauru: Edusc,


2004.

GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. [tradução


de Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão+. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007, 454 p.
JAPIASSU, H. Interdisciplinariedade e patologia do saber. Rio de Janeiro,
RJ: Imago, 1976.

LEITE, Miriam M. Texto visual e texto verbal. In: BIANCO, Bela; LEITE,
Miriam M. (Orgs.). Desafios da Imagem. Campinas: Papirus, 1998.

MELO, Wilverson Rodrigo Silva de. Tempos de Revoltas no Brasil


Oitocentista: Ressignificação da Cabanagem no Baixo tapajós (1831-
1840), 2015b, 271f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2015.

_______. O Ensino da Disciplina Estudos Amazônicos nas escolas de


Santarém-Pará: um estudo de caso sobre a temática da Guerra da
Cabanagem. In: IX Congresso de Ciência e Tecnologia da Amazônia, XV
Salão de Pesquisa e Iniciação Científica e II Salão de Extensão do
CEULS/ULBRA, 2015, Santarém - PA. O Saber pensar pela Pesquisa.
Santarém - PA: Ed. da ULBRA, 2015. p. 234-238. Disponível em:
http://www.ulbra.br/upload/f762bd90d9031e6ced2dae43e7e30816.pdf

_____. Como Operar com as imagens e representações: uma análise 15

foucaultiana. In: VIII Congresso de Ciência e Tecnologia da Amazônia e


XIII Salão de Pesquisa e Iniciação Científica do CEULS/ULBRA, 2013,
Pesquisa, Educação e Tecnologia (Anais) ... Santarém: CEULS/ULBRA, 6-8
de Novembro de 2013. p. 142-145. Disponível em:
http://www.ulbra.br/upload/3f03051288ce51aef5cfad370c2352ba.pdf

MOLINA, Ana Heloisa. Imagens como Fonte de Pesquisa sobre a Educação


e o Ensino. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA. V, 2011,
Maringá. Democracia e Autoritarismo no Mundo Contemporâneo...
Universidade Estadual de Maringá: Ed. UEM. Bianual, 2011. p. 2081-2089.
ISSN: 2175-4446 (ON-LINE).

PIMENTA, Selma Garrido. Formação de professores: identidade e saberes


da docência. In: _____ . (Org.). Saberes pedagógicos e atividade docente.
São Paulo: Cortez, 1999.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain


François [et. Al.]. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 2007.

TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude; LAHAYE, Louise. Os professores face


ao saber – esboço de uma problemática do saber docente. Teoria &
Educação, Porto Alegre, n. 4, 1991.
TURAZZI, Maria Inês. Apud. SCHNEL, Rogério. O uso da fotografia em sala
de aula. Palmeira: espaço urbano, econômico e sociabilidades – a
fotografia como fonte para a história – 1905 a 1970. 2013, p.14.
Disponível em:

<http: //www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/5-4.pdf>. 16
OLHARES PARA A HISTÓRIA:
ENTRE A FICÇÃO, TESTEMUNHO, HISTÓRIA E MEMÓRIA

Jorge Luiz Zaluski1


1

Resumo: A história enquanto disciplina passa constantemente por várias


interpretações e questionamentos. No século XX, em diferentes momentos foi
colocado em questões seu reconhecimento enquanto ciência sejam por seus
métodos, objetivos, fontes e escrita. São pela escrita que se desdobram outras
inquietações, como a busca em afirmar se a história é ou não uma ficção.
Partindo dessa problemática, este texto tem como objetivo fazer um breve
apontamento sobre a narrativa histórica e a utilização da memória para a
pesquisa historiográfica. Assim, diante da reflexão junto a alguns dos autores
que trabalham sobre o tema, como Hayden White e Paul Ricoeur, destacam
tais questões.
Palavras chave: ficção; história; memória; testemunho.

Abstract: The history as a discipline constantly undergoes various


interpretations and questions. In the twentieth century , at different times was
put in issues its recognition as a science are by their methods , objectives,
sources and writing. They are in writing that unfold other concerns, such as
search in state whether history is or is not a fiction. Starting from this issue,
this paper aims to make a brief note about the historical narrative and memory
usage for historical research. So, on reflection next to some of the authors who
work on the subject, as Hayden White and Paul Ricoeur, highlight such issues.
Keywords: fiction; history; memory; a testimony.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Estadual do
Centro Oeste – Unicentro. jorgezaluski@hotmail.com
Ao meu ver, a história enquanto disciplina vai mal
atualmente porque perdeu de vista as suas origens na
imaginação literária. No empenho de parecer
científica e objetiva, ela reprimiu e negou a si própria
sua maior fonte de vigor e renovação. (WHITE, 2001,
p. 116)
2
Com observações sobre um período em que o campo da história passou
por novas reformulações. A epígrafe acima faz referencia as conclusões de
Hayden White, em Trópicos do Discurso, em especial, as problemáticas
levantadas em, “O texto histórico como artefato literário”. Obra escrita entre
os anos de 1966 a 1976. Entre as provocações, o autor busca atender aos
questionamentos da história enquanto ciência. Uma ciência que conforme
White apresentava-se em crise, seja por seus métodos, objeto, formas de
escrita, dentre outros. Para o autor, um dos motivos é por a história ser vista
como uma “disciplina”, e, de que seus rigores acadêmicos estariam limitando a
produção científica. Seja em relação com a narrativa, ou, de como a história
vinha sendo produzida e conduzia suas relações com a literatura.
Por mais que a história e a ficção seja um tema que vem sido debatido
constantemente, as observações de White parecem ter influenciado
rapidamente as pesquisas. Não como uma história já superada e resolvida
sobre “suas crises”, mas devido a mudanças significativas que a produção
historiográfica passou a utilizar em fins do século XX. Conforme Georg
Iggers,“[...]as discussões dos anos setenta e oitenta chegaram à conclusão de
que não seria possível um entendimento dos desenvolvimentos político e
econômico sem que se considerassem fatores culturais, aí incluído o papel da
linguagem, desprezado pelas ciências sociais e pelo marxismo.” (IGGERS, 2010,
p, 109)
Assim como nas percepções de Iggers, de que a história estaria um tanto
limitada a determinadas padronizações. White faz críticas à produção histórica
que segue modelos ou sistemas dos quais acredita estarem fechados em suas
próprias reflexões. Ao estabelecer um diálogo com o literário Northrop Frye,
3
White corrobora com o pensamento do autor e afirma que muitas pesquisas
históricas acabaram se tornando e/ou criando um mito, algo que seria possível
de explicar diferentes fatos e períodos históricos. Para White a história não
deveria ser produzida de maneira unificadora, pois conforme a compreensão
dos autores, “em certo sentido, o histórico é o oposto do mítico, e dizer ao
historiador que aquilo que da forma ao seu livro é um mito lhe pareceria
vagamente acintoso”. (FRYE, apud WHITE, 2001, p, 98).
Com base nesta reflexão, a produção histórica não deve fomentar a
produção de mitos, mas sim, de instigar a diferentes observações sobre o
passado. Passado que é percebido de diferentes maneiras por corresponder
aos problemas do seu presente. Ou seja, o mesmo fato pode ser interpretado
de outras formas, com problemas, questionamentos e interesses da realidade
que busca aquela investigação. Diante disso, reiteramos as observações de
Iggers ao destacar a pesquisa, seja na análise das fontes, posicionamentos
teóricos, levantamento de problemas, dentre outros pontos que dão
sustentação ao trabalho. Para o autor, “[...] sem pesquisa não pode ser feita
nenhuma historiografia séria, e a pesquisa se baseia na pressuposição de uma
realidade histórica, mesmo quando ela leva em consideração a complexidade
do saber histórico, que permite apenas uma construção, e não uma
reprodução fiel do passado.” (IGGERS, 2010, p. 109)
Diante destes apontamentos, e a percepção sobre a necessidade de uma
história não fechada à rigidez de métodos, e como White destaca, a não
“criação de mitos”. Este texto busca fazer alguns apontamentos de como a
ficção, narrativa, memória e testemunho foram debatidos por alguns/as
autores/as que estudam sobre o tema. E, de como a memória enquanto fonte
histórica é utilizada para a produção historiográfica.
4

Narrativa: um passado pela ficção ou uma ficção do passado?


A narrativa faz parte de todas as ciências, através dela que se tornam
possíveis as interpretações e investigações de cada área de interesse.2 A
história como já apontado, teve ao longo do século XX grandes discussões que
a levaram a ser vista como uma ciência em crise. Principalmente devido aos
seus métodos utilizados para a pesquisa. Debates estes que não cessaram com
o seu reconhecimento enquanto ciência. Em vários momentos existiram
mudanças que buscavam atender novas interpretações sem perder seu
reconhecimento.
Conforme Luiz Costa Lima ao dialogar sobre problemas e objetivos da
história, entre eles os limites da disciplina e a narrativa. O autor interroga, “[...]
que caracterizaria a escrita da história?” (COSTA LIMA, 1989, p. 32) Com base
em suas observações, percebeu que ao longo do século XX grandes
questionamentos feitos à história foram fundamentais para a ampliação de
seu campo de pesquisa, proporcionando desta maneira algumas mudanças
significativas que ampliaram suas fontes e seu campo de análise. Para o autor,
vários dos debates foram atribuídos devido à ideia de “verdade” vinda da

2
Compreendo aqui estas ciências com as noções de espaço praticado de Michel de Certeau.
Assim, estas ciências são percebidas como um lugar, resultante de uma estratégia. O/a
pesquisador/a na medida que dialoga com outras áreas transforma enquanto espaço de
conhecimento. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis:
Vozes, 1998.
história objetiva, ou então dos limites da história construídos e reconstruídos
ao decorrer do tempo.
Estabelecendo diálogo com vários autores, desde a história enquanto
positivista, da Escola dos Annales e suas várias mudanças até o inicio de 1980.
5
Costa Lima acredita que a história esta associada fortemente às questões de
seu tempo. Para o autor; “[...] a história trabalha com uma semantização
advinha de sua interlocução com a sociedade e o poder. Semantização no caso
significa temas e linhas de interesse, que demarcam, de um lado o possível de
indagação, de outro, o interdito ou sequer questionável.” (COSTA LIMA, 1989,
p. 37)
De tal maneira, a história que nos é apresentada por Costa Lima não se
desenvolve apenas no seu espaço enquanto ciência, mas sim, devido às
discussões que estão envolta da sociedade. O que pode ser dito e o não dito
não implicam apenas as limitações e reconhecimento enquanto pesquisa
científica, mas de que são estabelecidos através das relações de poder
existentes na sociedade. Costa Lima destaca ainda relações com o lugar do/a
historiador/a enquanto produtor/a da historiografia. Tais apontamentos
podem ser comparados com o que Michel de Certeau chama de lugar de
produção, para ele:

Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de


produção sócio econômico, político e cultural. Implica um
meio de elaboração que circunscrito por determinações
próprias: una profissão liberal, um posto de observação ou
de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela está, pois,
submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em
uma particularidade. É em função deste lugar que se
instauram os métodos, que se delineia uma topografia de
interesses, que os documentos e as questões, que lhes
serão propostas, se organizam. (CERTEAU, 1982, p. 66)

A história desta maneira, repleta de métodos e interesses, faz suas


indagações partindo de sua realidade. Os motivos de investigar sobre esse
6
passado condiz ao lugar do/a historiador/a, seja dos motivos que o/a
incomodam e buscam ser respondidos pela pesquisa, seja pelos interesses ao
realizar tais debates, dentre outros que irão influenciar a escrita da história.
Assim, ao debruçar-se sobre o passado, a pesquisa histórica consiste em
perceber através dos documentos os fatos acontecidos. Conforme Costa Lima,
esse passado repleto de acontecimentos não pode ser concebido em sua
totalidade, pois segundo o autor, “[...] a narrativa é uma estrutura seletiva de
fatos, de sua seletividade mesma resulta o caráter de agrupamento que
conceberá aos eventos organizados.” (COSTA LIMA, 1989, p. 46)
Com esta seletividade de documentos e os fatos possíveis de serem
encontrados através da observação, ainda não resulta como produção
histórica. Seguindo as observações iniciais deste texto, a produção só se
concretiza com a escrita. É preciso escrever, e é nessa escrita enquanto
narrativa que o/a historiador irá dar sentido ao leitor/a. A história desta forma
é uma produção, uma narração dos eventos passados. É possível perceber que
Costa Lima possui influencias de Hayden White, pois percebe que a escrita
histórica é realizada através da ficção. Ou seja, as interpretações sobre este
passado, junto à análise e entendimento das fontes, são apresentadas pela
escrita literária. Conforme o autor, “[...] se a narrativa histórica não trata de
objetos ficcionais, no entanto aborda os eventos reais por meio das formas
ficcionais vigentes em uma cultura”. (COSTA LIMA, 1989, 64)
Assim, a história ao buscar compreender sobre as relações das pessoas
no passado, e apresenta-las o mais próximo da realidade, faz uso da ficção, da
construção literária para dar sentido aos leitores/as. Pois o passado, vestígios,
acontecimentos e as fontes não são ficcionais, mas sim, estão sujeitas a
7
interpretação, narração e sentido atribuído ao passado que é (re)construído
não tal como realmente foi através da ficção.
Ainda diante dos apontamentos de Costa Lima, ao se referir das formas
ficcionais de cada cultura, podemos retomar o que Certeau destacou como
lugar da escrita, este lugar não consiste apenas da posição social ou do grupo
em que vive, mas também do tempo, dos códigos e a maneira como a cultura
daquele momento escreve. Diante disso, a ficção, a maneira que as sociedades
produzem sua escrita também é histórica, pois esta relacionada pela forma
que estas culturas utilizam da narrativa para a comunicação e/ou
interpretação de seu grupo por exemplo.
Tais apontamentos vão ao encontro das afirmações de White ao tratar a
história como um artefato literário. Ou seja, da organização e escrita ficcional
dos acontecimentos do passado, é que são buscadas as formas de
compreender sobre estes fatos. Para White é na narrativa que são construídas
a percepção e entendimento sobre os fatos selecionados, estes que não
necessariamente precisam ser todos, caso contrário estariam em busca de
uma história total. Conforme o autor:

Como estrutura simbólica, a narrativa histórica reproduz os


eventos que descreve; ela nos diz a direção em que
devemos pensar acerca dos acontecimentos e carrega
nosso pensamento sobre os eventos de valências
emocionais diferentes. A narrativa histórica não imagina as
coisas que indica: ela traz à mente imagens das coisas que
indica, tal como faz uma metáfora. (cf WHITE, 2001, p.
108)

Desta maneira a historiografia não consiste apenas na seleção do tema,


8
fontes e investigação sobre os fatos possíveis de serem construídos. Conforme
White é através da escrita, da construção literária deste passado que passará a
serem registradas e direcionadas as interpretações através da ficção. Segundo
o autor, “[...] os historiadores talvez não gostem de pensar que suas obras são
traduções do fato em ficções; mas este é um dos efeitos das suas obras.”
(WHITE, 2001, p. 108) Ou seja, conforme White, a produção histórica só é
efetivada através de uma escrita ficcional, esta que busca atribuir sentido ao
texto e dar ao leitor/a capacidade de imaginar aquilo que esta sendo
representado.
Em relação à representação do texto histórico, Paul Ricoeur nos
apresenta que mesmo após a organização escrita, como uma das etapas da
produção histórica, existe a interpretação e significação do/a leitor/a. Para o
autor, é a partir desta terceira etapa que a história se efetiva enquanto ciência.
Diante disso, ao apresentar o que ele acredita serem as diferenças entre uma
obra de ficção e de histórica, nos afirma que os públicos que procuram estas
leituras são diferentes. Como na escrita por pares, os/as leitores já terão certo
conhecimento e interpretação sobre a escrita. Para tanto, o autor de uma
forma geral diferencia a história da ficção ao apresentar que:

Enquanto continuarmos assim no plano dos gêneros


literários constituídos, não se pode admitir a confusão,
pelo menos no principio, entre os dois tipos de narrativas.
Irrealidade e realidade são tidas como modalidades
referenciais heterogêneas; a intencionalidade histórica
implica que as construções do historiador tenham a
ambição de serem reconstruções mais ou menos
aproximadas daquilo que um dia foi “real”, [...] Entretanto,
a despeito da distinção de princípio entre passado “real” e
ficção “irreal”, um tratamento dialético dessa dicotomia
9
elementar impõe-se pelo fato do entrecruzamento dos
efeitos exercidos por ficções e narrativas verdadeiras ao
nível do que pode chamar de “o mundo do texto”.
(RICOEUR, 2007, p. 275)

Diante de tais observações, podemos apresentar que tanto Ricouer


quanto White problematizam a narrativa, e de como a história é concebida em
relação à escrita literária. Mas, por mais que ambos os autores percebam a
importância e relação com a literatura, os dois não as contemplam da mesma
forma. White, assim como Ricouer percebem a busca pela verdade, os
acontecimentos reais do passado que a história busca aproximar-se o mais
fielmente possível. Ricouer ao se referir sobre a historiografia assume que,
“[...] minha tese é que ela não pode ser discernida unicamente no plano do
funcionamento das figuras que o discurso histórico assume, mas deve transitar
pela prova documental, pela explicação causual/final e pela composição
literária.” (RICOUER, 2007, 263) Ou seja, para Ricouer os métodos e etapas de
investigação e produção histórica são fundamentais para diferenciar-se da
ficção e ser reconhecida enquanto história. Assim, as análises, observações,
seleção, e toda a forma de investigar sobre este passado através da
documentação, são essenciais para a sua compreensão enquanto produção
historiográfica.
Diante disso percebemos que os debates em torno da escrita da história
e suas aproximações e/ou distanciamentos com a ficção, foram e continuaram
entre os assuntos da produção e pesquisa histórica. Como apontado no inicio
destas observações, fazem parte das discussões de cada época. Seja como
Certeau e o lugar da escrita, ou como White em como cada cultura interpreta e
produz seus códigos e significados através da escrita. São várias as formas de
10
interpretação e significação deste passado, entre os motivos podemos
destacar da impossibilidade de se produzir uma história total, e ainda, de que
esta história não é acabada, sempre estará sujeita a novos questionamentos e
descobertas. Desta maneira, a narrativa histórica, seja ela uma ficção sobre o
passado ou não, continuará levantando discussões acerca da produção
historiográfica.
Tais apontamentos levam também a questionar sobre as fontes, as
diferentes formas de que elas são interpretadas e utilizadas na produção
histórica. Estas que são variáveis conforme a pesquisa que se busca fazer.
Destaco aqui a utilização da memória, uma das fontes das quais Ricouer
também nos apresenta como indispensáveis para a investigação histórica.
Desta maneira, proponho um breve debate de como a utilização das
lembranças como fonte histórica trazem contribuições para a historiografia. E
ainda, como as problematizações, investigações sobre esta memória são
apresentadas no texto, ou seja, como a narrativa, a escrita irá organizar os
fatos através dos relatos deixados por diferentes grupos de pessoas, são
apresentadas pelo/a historiador/a como uma narrativa histórica.

A memória e testemunho, implicações para a escrita da história


Conforme Márcio Seligmann-Silva, ao realizarmos uma pesquisa
histórica não “daremos conta do passado”. Por muito tempo esse não ser
objeto da história. Para tanto, a história consiste em investigar e apresentar
parte deste passado, com recortes temporais, documentais e espaciais. A
busca de uma história como realmente aconteceu torna-se impossível. Além
disso, ao utilizar a e da memória como uma das fontes disponíveis para a
produção histórica, deve-se perceber ainda que a memória só existe por conta
11
do esquecimento. Conforme Seligmann-Silva; “[...] a memória só existe ao
lado do esquecimento: um completa e alimenta o outro, um é o fundo sobre o
qual o outro se inscreve”. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 53)
Seligmann-Silva nos proporciona uma discussão sobre a utilização da(s)
memória(s) e de como ela foi utilizada pela história. Não apenas pelas
diferentes interpretações das quais se é possível durante a investigação, mas
de como a narrativa histórica enquanto texto ficcional possibilita diferentes
interpretações devido às formas que esta pode ser utilizada.
Umas das críticas que o autor faz sobre a memória esta relacionada ao
que Nietzsche se refere sobre o tempo de lembrar e o tempo de esquecer.
Com base nestas interpretações a memória seria uma espécie de arquivo, e
que segundo Seligmanna-Silva, “[...] pode levar a idéia inocente de que
podemos controlar a memória”. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 61)
Por mais que esta memória não seja possível de ser controlada, de que
se possa conseguir através de entrevistas todo o passado do/a entrevistado/a,
e estabelecer as relações e observações com os fatos. Tanto pela historiografia
como na sociedade em geral, Seligmann-Silva destaca que, “[...] o dever do
historiador nunca foi tão reclamado quanto hoje”. (SELIGMANN-SILVA, 2003,
p. 62) Mas quais os motivos? O que pretende a sociedade em buscar tanto
sobre este passado? Ou ainda, quem desta sociedade pretende saber, ou o
que saber sobre o passado? Antoine Prost em “Doze lições sobre a história”,
nos apresenta um interessantíssimo debate sobre o(s) tempo(s) na história e
escrita desta. Além disso, entre as observações do autor, ao referir-se de como
a França ao longo do século XX utilizou a “disciplina” de história ampliando
assim o pertencimento e difusão do nacionalismo e interesse pela história da
França. Será que a busca pelo/a historiador/a de hoje pode ser equiparada ao
12
que aconteceu na França no inicio do século XX? Quais os interesses atribuídos
à memória tanto para a história como para a sociedade?
Seligmann-Silva nos leva a questionar quais as relações da historiografia
com os grandes eventos em diferentes sociedades, principalmente aos
genocídios e catástrofes provocadas pelos seres humanos ao longo do século
XX. Entre os motivos, o autor acredita e percebe como uma reinvenção da
historiografia. Como exemplo, ao se referir sobre Shoah, e de como a
memória passou a ser utilizada como fonte, registro, ou até mesmo como uma
busca para impedir novos acontecimentos. Desta forma, sejam pela memória
dos/as sobreviventes, ou dos/as historiadores/as como capazes de falar sobre
esse passado através da memoria das outras pessoas, principalmente em
busca de uma problematização sobre este passado, ampliaram-se a busca
através da produção histórica, Segundo Seligmann-Silva, “[...] observou-se
mais e mais a ascensão do registro da memória – que é fragmentário, no
apego a locais simbólicos e não tem como meta a tradução integral do
passado.” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 65)
Desta maneira podemos perceber que a memória, por mais que esteja
fracionada a determinadas relações sociais, pode ser utilizada para
compreender problemas existentes na sociedade. Uma história de vida, uma
percepção sobre o passado, dentre várias outras problemáticas que podem ser
levantadas através de uma ou mais entrevistas. Mas de acordo com as
observações do autor, e com base no que já apontado anteriormente, não é a
partir destas memórias que teremos uma história total, existem suas
limitações e a compreensão da impossibilidade desta totalidade ser atingida.
Como destacado, após grandes catástrofes do século XX ampliaram-se as
pesquisas e usos da memória. Entre as calamidades, a existência de Auschwitz
13
e o massacre aos judeus na segunda guerra, por muitas vezes como uma
tentativa em não repetir o ocorrido, o extermínio provocado pela guerra, fez
que vários dos/as sobreviventes fossem buscados para a pesquisa. Entre os
interesses em compreender ou ouvir estas pessoas, Seligmann-Silva destaca
que passou a existir uma literatura, registros e estudos sobre o trauma. Ou
seja, os próprios relatos passaram a ser investigados como uma doença, uma
visão médica sobre o que os/as sobreviventes de grandes calamidades teriam
a falar.
Ainda sobre uma percepção da memória enquanto trauma, Ricoeur
utiliza a noção de patologias ao se referir sobre estas lembranças, pois percebe
ao mesmo tempo um julgamento e dificuldade ao se referir sobre essas
memórias “traumatizadas”. Para o autor, “[...] é nesse nível de ponto de vista
que se pode legitimamente falar em memória ferida, e até mesmo enferma.
Isso é atestado por expressões correntes como traumatismo, ferimento,
cicatrizes, etc.” (RICOUER, 2007, p.83)
Outros estudos que buscam perceber a relação do trauma e a memória
permitem também perceber que, através das narrativas existe uma
transferência destes traumas. De acordo com as análises de Ricardo André
Ferreira Martins, 2013, p 326, podemos perceber que:

Já em relação aos discursos produzidos sobre as ações de


violência perpetradas no passado, deve-se levar em conta
dos diversos efeitos dos chamados mecanismos de
traumatização. [...] O estigma resultante do trauma inflige
às pessoas a condição pós-traumática, em que a memória
sobrecarrega de sentido o evento de onde parte a
violência. A experiência do trauma, então, é transmitida
geração após geração, entre sujeitos, famílias e sociedades
14
inteiras, acionada através da memória que, a todo
momento, enquanto não é extravasada através de uma
narrativa que exerça o efeito catártico sobre a condição
pós-traumática.

Desta maneira, a literatura ao falar sobre estas experiências traumáticas,


sobre ações violentas a quem concebe a fala sobre o passado, neste efeito
catártico irá ampliar-se, será tomado o conhecimento sobre os fatos e assim
cada sociedade irá interpreta-los e/ou significa-los conforme sua cultura e
interesses sobre esta memória. A narrativa possibilita estas discussões das
quais o autor percebe como fundamentais para as discussões sobre estes
traumas. Ao encontro com o posicionamento de outros autores sobre a
percepção de um trauma enquanto patológico, Martins destaca que:

O trauma, assim, é uma memória patológica que provoca a


emergência de neuroses individuais e sociais, manifestadas
na cultura e na identidade cultural, de forma que a
narrativa permite a liberação do indivíduo do enorme
fardo do passado que impede a construção de um futuro,
uma vez que o peso da lembrança de uma injustiça do
passado impede a ação dos indivíduos no presente, ao
encontro do alívio e da catarse. (MARTINS, 2013, p. 328)

Diante disso, ao perceber que essa memória consiste não apenas nas
lembranças, mas do que essa pessoa vivenciou, e, devido aos fatos passados
existiu toda uma mudança no agir em sociedade, podem ser destacadas
também as relações do corpo. Seja com a violência, ou até mesmo o momento
em que é feito o relato. Segundo Stéphane Audoin-Rouzeau “[...] toda
experiência de guerra é, antes de tudo, experiência do corpo” (AUDOIN-
ROUZEAU, 2011, p. 365)
15
Assim, ao utilizar da memória, devem ser percebidas outras relações
entre a(s) memória(s) e o(s) sujeito(s). Com base nas análises de Elizabeth
Jelin, ao estabelecer algumas aproximações com Maurice Halbwachs, à
memória é social, faz parte da interação e relação das vivencias passadas com
o(s) grupo(s). Ao olhar sobre este passado o/a entrevistado/a irá através de
sua fala, gestos e demais expressões demostrar o que os fatos, as suas relações
representam no seu presente. Segundo Jelin, “[...] y también saberes, crencias,
patrones de comportamento, sentimentos y emociones que son transmitidos y
recebidos em la interacción social, em los processos de socialización, em las
prácticas culturales de um grupo” (JELIN, 2002, p. 18)
Desta maneira, investigar sobre e com a memória, além dos
apontamentos devem ser percebidas também as hierarquias sociais, geração,
etnia, gênero, dentre outros, pois estão presentes em meio a esta sociedade.
Jelin ainda aponta que; “[...]están también el como y el cuándo se recuerda y
se olvida. El passado que se rememora y se olvida es activado em um presente
y em función de expectativas futuras.” (JELIN, 2002, p. 18)
Diante disso podemos afirmar que a memória parte do presente para
olhar sobre o passado. Não simplesmente para um passado vazio, mas por um
corpo marcado por relações hierárquicas e de gênero. Um corpo traumatizado
que irá manifestar suas memórias através de gestos, expressões, sentimentos.
Ainda conforme Seligmann-Silva, nos apresenta que a historiografia
percebeu como necessário falar destes traumas, pois de alguma maneira traria
contribuições para as pessoas que vivenciaram tragédias por exemplo.
Segundo o autor:

Relacionar o nosso passado histórico como trauma implica


tratar desse passado de um modo mais complexo que o 16
tradicional: ele passa a ser visto não mais como um objeto
do qual podemos simplesmente nos apoderar e dominar,
antes essa dominação é reciproca. O trabalho da história e
da memória deve levar em conta tanto a necessidade de se
“trabalhar” o passado, pois as nossas identidades
dependem disso, como também o quanto esse confronto
com esse passado é difícil. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 77)

Diante de tais apontamentos podemos perceber que Seligmann-Silva


procura estabelecer uma espécie de cura a este trauma, de que todas as
catástrofes devem ser superadas, e o/a historiador/a é apontado/a como uma
das formas de atingir o suposto êxito. Mas diante de tantas catástrofes
ocorridas, entre elas ditaduras, em especial a do Brasil, o que levou várias
pessoas saírem às ruas durante o ano de 2015 pedirem o retorno da ditadura
militar? O que fez que várias pessoas aceitassem e apoiassem as agressões
cometidas aos/as professores/as no Estado do Paraná no dia 29 de abril de
2015? Foi à História que não foi capaz de solucionar estes problemas?
Certamente esta breve reflexão não atenderia uma resposta tão consistente
para tais questionamentos, mas conforme nos aponta Seligmann-Silva, 2005,
p.64.

Se a reação da “grande política” tem um tom infantil, se


ela só sabe jogar no âmbito do bem e do mal, é porque
estamos em uma sociedade “infantilizada”: regredida
diante da situação catastrófica. Nossa reação é de um
modo geral uma “ab-reação” abortada, um bloqueio que
só leva a um agir que encobre o evento traumático e
impede a recordação.

Seligmann-Silva apresenta tal posicionamento de maneira a criticar a


17
história, de que as preocupações em seguir determinados métodos e estilos
literários faz que as pessoas não percebam e/ou critiquem determinados atos
de maneira consistente. Para ele, a reação das pessoas tem sido formada por
diferentes canais de comunicação, entre eles a TV, que conforme aponta o
autor, [...]“reproduz as catástrofes e ela também multiplica o trauma.Ou seja,
a TV, por exemplo, nos apresenta diferentes catástrofes, por mais que de
maneira rápida e entre diferentes notícias, constroem telespectadores menos
sensíveis ao ocorrido.” (SELIGMANN-SILVA, 2005)
Diante de tais apontamentos retomamos aos questionamentos iniciais
deste texto, o da relação entre a história e a ficção. Como a história busca
organizar suas produções de maneira a criticar tais eventos? Ou, deve ainda
manter a neutralidade diante de tais acontecimentos? Entre tais
questionamentos, Renato Franco faz críticas à forma que a história interpreta
os fatos catastróficos. E ainda, de como diferentes áreas, entre elas a arte e a
literatura utilizam destas catástrofes sem despertar no leitor, por exemplo, a
capacidade de interpretação e questionamento sobre os eventos. Apoiado nas
críticas de Theodor Adorno, entre elas, a da perda da essência da arte e
algumas de suas (re)utilizações na sociedade, podemos perceber o
posicionamento de Franco, ao se referir sobre os romances que tratam sobre a
ditadura no Brasil. Conforme o autor:
[...] o romance não provoca nem espanto ante a natureza
bárbara de sua matéria, nem seu ritmo narrativo conduz o
leitor à indignação diante do horror, mas ao contrário,
parece desencadear um efeito “de desrealização” dos
acontecimentos que reconforta e tranqüiliza – já que
sempre é possível sobreviver – quem o lê. (FRANCO, 2003,
18
p. 359)

A literatura desta forma tende a contribuir para a construção do


conformismo? A partir das considerações de Franco, podemos novamente
fazer questionamentos sobre uma história e ficção. Como vimos, White
percebe a construção histórica como a interpretação e sentido dado aos fatos
do passado, a ficção seria realizada sobre um passado real. Já para Ricoeur, a
história seria todos os procedimentos enquanto construção e leitura da
historiografia, momento cumprido apenas quando o/a leitor/a interpreta a
produção do/a historiaodor/a.
Assim, diante do que Franco nos apresentou o romance, por exemplo,
seria apenas uma ficção permeada por acontecimentos históricos. Por mais
que busque uma realidade deste passado, não objetiva uma interpretação ou
preocupação com os documentos. Outro dos problemas da história, pois
quando utiliza da memória, por mais que seja individual, ao passar da
observação para a escrita, deve tomar determinadas precauções para não
apresentar os acontecimentos como se fosse uma ficção. Conforme
Seligmann-Silva, “[...] o drama da narrativa testemunhal é justamente a
dificuldade de reduzir o particular histórico ao universal da discursividade”.
(SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 93)
Com base nas reflexões apresentadas sobre alguns dos autores que
buscam debater sobre a narrativa, ficção, a memória e suas implicações, seja
por ser uma memória traumática, e/ou de como esta memória é utilizada na e
para a produção historiográfica. Utilizar esta(s) memória(s) como fonte de
pesquisa, permite perceber como foram construídas algumas relações do
passado. Destaco também, de como a impossibilidade de uma construção total
19
deste passado, a(s) memória(s) também irão nos fornecer determinados
momentos, questões estas que devem ser problematizadas e não
interpretadas como a verdade, pois é o/a historiador/a que esta investigando
este passado e através da historiografia pretende “entrega-lo” o mais próximo
da realidade possível. Diante disso, com base nos apontamentos feitos ao
decorrer do texto, a narrativa histórica deve levar em consideração e
precaução a forma que irá apresentar os traumas vivenciados. Como destaca
Franco, que não sejam romanceados e de que no fim tudo acaba bem. Mas de
que alguma maneira possam trazer contribuições para despertar nos/as
leitores/as a imaginação histórica e a reflexão sobre os acontecimentos
narrados.

REFERÊNCIAS
AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane. Massacres: o corpo e a guerra. In: CORBIN,
Alain; VIGARELLO, Georges; COURTINE, Jean-Jacques. História do corpo. As
mutações do olhar: o século XX. Vol III. 2. ed. Editora Vozes, 2008. pp. 365-416.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Arno Vogel. – Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1982.
__________________. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis:
Vozes, 1998.
FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-
SILVA, Márcio (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na Era das
catástrofes. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2003. pp. 351-369.
IGGERS, Georg. Desafios do século XXI à historiografia. In: História da
Historiografia nº4, Ouro Preto, 2010, pp. 105-124.
COSTA LIMA, Luiz. A narrativa na escrita da história e da ficção. In: A aguarrás
do tempo. Estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. pp. 15-122.
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. España: Siglo Veintiuno editores,
2002.
PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
MARTINS, Ricardo André Ferreira. Narrativas do trauma e da violência:
20
colonialismo e escravidão nas obras de Mia Couto, Lima Barreto e Maria
Firmina dos Reis. In: Ensaios (In) Conjuntos. BUTTURI JÚNIOR, Atilio; GEBRA,
Fernando de Moraes; CALEGARI, Lizandro Carlos. (Orgs) Jundiaí, Paco Editorial:
2013. pp. 321-368.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora
da UNICAMP, 2007.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Reflexões sobre a memória, a história e o
esquecimento. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória,
literatura: o testemunho na Era das catástrofes. Campinas, SP: Ed. da
UNICAMP, 2003. pp. 59-89.
___________________ . Literatura e trauma: um novo paradigma. In: O local
da diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução, São Paulo:
Editora 34, 2005. pp. 63-118
WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: Trópicos do
Discurso: Ensaios sobre a Crítica da cultura. 2° ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2001. pp. 97-116
MULHER INDEPENDENTE OU PROSTITUTA? UMA
ANÁLISE DO STATUS DE SIMAETA EM TEÓCRITO (SÉC. III
A.C.)1
Vinicius Moretti Zavalis2
1
Resumo
Sob o título Mulher independente ou prostituta? Uma análise do status de Simaeta em
Teócrito (séc. III a.C.), nosso trabalho tem por objetivo discutir o status da personagem
Simaeta (Σιμαίθα), a qual foi delineada pelo poeta Teócrito de Siracusa, no “mimo” A
feiticeira, ora como uma das prostitutas hetairai, conhecidas por sua postura
socialmente ativa, ora como uma mulher independente, característica das sociedades
cosmopolitas do período helenístico, como, por exemplo, a sociedade da ilha de Cós.
Escrito por volta dos anos de 270-260 a.C., especificamente no século III, no círculo
literário dos Ptolomeus do Egito, o poema de Teócrito combina profundidade
psicológica e um realismo credível sobre a vida cotidiana de uma jovem comum da ilha
de Cós, Simaeta, que recorre a magia, imprecações e autorreflexão para lidar com seus
sentimentos em relação ao abandono após o intercurso sexual com Delfis de Myndus.
Palavras-Chave: Simaeta; Teócrito; período helenístico.

Abstract
Under the heading Independent woman or prostitute? An analysis of Simaeta’s status
in Theocritus (third century BC), our work aims to discuss the Simaeta’s (Σιμαίθα)
status, which was outlined by Theocritus of Syracuse, in the "mime" The Sorceress, or
as one of hetairai prostitutes, known for his socially active stance, or as an
independent woman, characteristic of cosmopolitan societies of the Hellenistic period,
for example, the society of the island of Kos. Written around the years 270-260 BC,
specifically in the third century, on the literary circle of the Ptolemies of Egypt, the
Theocritus poem combines psychological depth and a credible realism about the daily
life of an ordinary young girl from the island of Kos, Simaeta, who uses magic,
imprecations and self-reflection to deal with their feelings about the abandonment
after sexual intercourse with Delphis of Myndus.
Keywords: Simaeta; Theocritus; Hellenistic period.

1
O presente trabalho constitui uma síntese da monografia de mesmo título,
desenvolvida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), como parte dos pré-
requisitos para obtenção do título de Bacharel em História, sob orientação da Prof.ª
Dr.ª Maria Regina Candido.
2
Bacharel em História pela UERJ e bolsista do Departamento de Numismática do
Museu Histórico Nacional (MHN). E-mail: viniciusmorettizavalis@gmail.com.
A questão feminina na ilha de Cós 3 durante o período helenístico
pode ser verificada no poema A Feiticeira, escrito entre 270-260 a.C. por
Teócrito de Siracusa, no auge da sua maturidade poética. Em seu poema,
o autor descreve as desventuras amorosas da jovem Simaeta, a qual
recorre às práticas mágicas dos katadesmos4 na tentativa de reaver a 2

afeição de Delfis de Myndus, um atleta vencedor dos Jogos Olímpicos,


com quem manteve um relacionamento amoroso, e que a abandonou
para retornar aos vínculos eróticos dos simpósios e das palestras. Sob essa
óptica, o enredo pode ser dividido em duas partes: em um primeiro
momento, Simaeta estabelece um katadesmos amoroso sobre seu amante
negligente, para em seguida desenvolver um monólogo com a Lua,
explicando os motivos que a levaram realizar a referida ação mágica.
Elaborado em verso hexâmetro datílico e dialeto dórico, o poema
tem sua estrutura enunciativa pautada em um monólogo de caráter
preponderantemente dramático, no qual a protagonista recorre a alusões
3
Cláudia Raquel Cravo da Silva propõe que Teócrito compôs a estética de sua
personagem sob a sombra da ilha de Cós, situada a sudeste do Mar Egeu, próxima a
Halicarnassos e Cnidos, na entrada do Golfo do Cerâmico (BURASELIS, 2000, p. 1;
SILVA, 2008, p. 87-91). Por intermédio de Alex Sakula, temos conhecimento de que, no
período helenístico, a partir de 308 a.C., a ilha estabeleceu uma aliança com os
Ptolomeus do Egito, particularmente mais forte nos reinados de Ptolomeu Filadelfo
(283-246 a.C.) e Ptolomeu IV Filopator (222-204 a.C.), que a usaram como um posto
naval avançado para supervisionar o mar Egeu e, como resultado, estabeleceram seu
Estado-Maior (SAKULA, 1984, p. 682-3). Silva localiza a ação do poema em Cós tendo
em vista uma série de indícios fornecidos pelos textos e pela historicidade do autor, a
saber: (1) o fato de o autor ter vivido na ilha, retratada em alguns de seus poemas; (2)
o nome do atleta Filino, conhecido em inscrições de Cós; (3) o fato de Delfis ser natural
de Myndus, ilha vizinha de Cós; entre outros (). Contudo, autores como Frederick T.
Griffths localizam o poema em Alexandria (GRIFFITHS, 1981, p. 247).
4 Esse tipo de magia pretendia forçar o amado a se apaixonar, garantindo a
fidelidade/volta – nos casos de separação – ou, ainda, servia de vingança nos casos de
desprezo (SANTOS, 2012, p. 172).
épicas para narrar sua relação amorosa passageira; nesse sentido, a
personagem toma para si mesma o papel do narrador homérico, pela
descrição minuciosa e exata do passado, extremosamente apegada ao
sensível (ANDREWS, 1996, p. 21). Não é despiciente observar que, em
virtude do poema estar em forma de monólogo, o autor constrói uma 3

personagem altamente individualizada, voltada para sua própria


percepção dos eventos transcorridos. O quadro sinóptico disponibilizado
por Hélio Ramos da Silva (2011, p. 2) é capaz de reafirmar nossos
apontamentos e refletir a presença dos princípios estéticos da obra de
Teócrito de Siracusa:

Personage Estrutura
Idílio Ambiente Tema
ns enunciativa
Ambiente Samantha
urbano, recorre a
II. “A
provavelment práticas
feiticeira”
e em um Simaeta Monólogo mágicas para
(séc. III a.C.)
santuário; à recuperar o
noite. amor de
Delfis.
Tabela 1 Princípios estéticos de Teócrito. Fonte: Hélio Ramos da Silva
(2011)
No âmbito dos estudos literários gregos, segundo Maria Regina
Candido (2009, p. 2), o poema A feiticeira enquadra-se no gênero de
origem dórica denominado “mimo”, que designa uma peça dramático-
cômica na qual os atores, sem o uso da máscara, encenavam, em festivais
religiosos ou banquetes aristocráticos, temáticas relacionadas com a vida
cotidiana. Com o auxílio das observações de Maria Celeste Consolin
Dezotti, podemos complementar as informações de Candido, ao entender
que o poema em questão representa, especificamente, um “mimo
feminino”, devido ao conjunto dos seus personagens ser constituído
preponderante por mulheres, com exceção de quando a protagonista faz 4

menção aos encontros furtivos com Delfis, quem, ainda assim, não
participa da narrativa (DEZOTTI, 1993, p. 40-1).
O ímpeto de Teócrito em representar apenas mulheres pode ser
explicado pelas transformações psicológicas do seu contexto social de
produção, que permitiram aos poetas helenísticos perceberem suas
personagens sob uma nova luz, dando voz aos seus sentimentos, erotismo,
aspirações e vida privada. A historiadora social Sarah B. Pomeroy (1999, p.
163) entende esse interesse como uma consequência dos seguintes
fatores, a saber: (1) a influência dos filósofos 5, a exemplo dos movimentos
denominados epicurismo e cinismo; (2) a ação das mulheres da realeza; e
(3) o aumento do poder econômico/patrocínio6 feminino. Percebemos,
então, com base nas observações de Pomeroy, que as diversas
representações femininas na literatura são um indicador das mudanças no
âmbito público e privado.
Assim como muitos outros aspectos da vida helênica, os temas,
formas e métricas da literatura são influenciados pelas condições

5
O epicurismo e o cinismo estavam orientados à valorização da felicidade individual,
mas também do bem-estar familiar e do Estado. Nada mais natural, por exemplo, do
que Epicuro abrir as portas de seu Jardim às mulheres e, em igual medida, mulheres
filósofas viveram de acordo com os princípios cínicos (POMEROY, 199, p. 157).
6
Um público feminino educado influenciou a literatura como nunca antes, às vezes
pelo patrocínio, denominado eugenismo (GRIFFITHS, 1981, p. 251).
sociopolíticas que caracterizam cada momento histórico da Antiguidade
Ocidental. Nesse contexto, novos temas parecem permear a literatura e as
artes plásticas da época helenística, dentre os quais podemos destacar:
juventude versus velhice; o cotidiano bucólico dos pastores; a oposição
entre o belo e o feio; a escravidão; a pobreza; e o universo feminino 5

(GRIFFITHS, 1981, p. 270). Nada mais salutar do que um período em que


as mulheres adquiriram papéis sociais quase paritários aos dos varões
passe a dar maior atenção às personagens femininas nos gêneros
literários, tal como podemos verificar na Nova Comédia, no Romance e
nos próprios “mimos” de Teócrito (GALVÁN, 2003, passim).
Junito de Souza Brandão considera que, durante o período
helenístico, as mulheres foram representadas através da literatura e das
artes plásticas como fonte de amor, prazer e intrigas sentimentais, que
perpassavam a vida diária dos indivíduos em cosmópolis. Para o autor, “o
gineceu, desde então, parecia um museu das velhas recordações do
passado. Agora a mulher se engalana e procura descobrir a rua, para
descobrir o amor” (BRANDÃO, 1991, p. 48). Ou seja, no período em
questão uma mulher não precisa ser monumental como Antígona,
Clitemnestra e Lisistrata, nem vinculada ao gineceu, como Penélope, ou,
ainda, incidir nos assuntos dos homens, como Alceste, para obter a
atenção do poeta na construção de seus versos; valoriza-se a vida
cotidiana das mulheres comuns (GRIFFITHS, 1981, p. 248).
Um aspecto interessante que possivelmente influenciou o olhar de
Teócrito a respeito do feminino pode ter sido o fato de suas obras serem
escritas no contexto de 270-260 a.C., no círculo literário dos Ptolomeus, e,
consequentemente, terem como propósito alcançar sua benevolência,
visando à subsistência pelo mecenato (RIBEIRO, 2010, p. 44). Segundo
Griffiths, o lugar de fala de Teócrito, a corte de Alexandria, pode ter
corroborado essa nova luz dada às representações das mulheres, devido
ao fato de o autor escrever seus poemas para um patrono do sexo 6

feminino, a rainha Arsinoe II (GRIFFITHS, 1981, p. 247). Nesse sentido, de


acordo com Michael de Certeau, a corte não apenas dá uma estabilidade
social à “doutrina”, como também a determina; em síntese, é através dos
interesses de determinada instituição que o saber produzido vai se
organizar (CERTEAU, 1982, p. 70).
De fato, na autocracia em que Teócrito vivia, homens e mulheres
das camadas abastadas estavam olhando para fora da vida política no
âmbito público e redescobrindo sua identidade social de gênero na frente
privada, sobretudo em aspectos relacionados ao erós e às relações
cognáticas. Os reinos erótico e privado, com suas práticas de dominação e
subordinação, oferecem um novo fórum para estabelecer essas
identidades pessoais perdidas como consequência das conquistas
alexandrinas e da emergência de uma nova cultura política. Não é à toa
que, como apontou Joan Burton, os “mimos”7 de Teócrito têm sua
atenção voltada para as relações interativas entre homens e mulheres
dentro de um quadro cívico marcado pela cosmópolis e pelas autocracias
helenísticas, visando, com isso, refletir o modo como as referidas

7
São considerados mimos os seguintes poemas de Teócrito: As Siracusanas, As Talisias
e A Feiticeira (REYES; ZUFIIGA, 1996, p. 24). Costuma-se agrupá-los como mimos
urbanos, pelo fato de todos se passarem em um ambiente citadino, já que as ações
decorrem em Alexandria e Cós.
mudanças podem desestabilizar as identidades sociais de gênero
(BURTON, 1995, p. 43).
Escrito em uma época com identidades sociais de gênero muito
fluidas, A feiticeira retoma8 a temática das personagens femininas que se
movem para fora do estado patriarcal e, por conseguinte, assumem o 7

papel socialmente ativo de uma feiticeira, com o intuito de amenizar


disputas entre “gênero” e “poder”, resultadas de decepções amorosas.
Por sua vez, as observações de Joan B. Burton em Theocritus’s Urban
Mimes: Mobility, Gender, and Patrona, são capazes de reafirmar nossos
apontamentos ao manifestar que, para muito mais do que um poema
sobre as práticas mágico-religiosas, o discurso de Teócrito foca

diretamente no tema central das relações de poder de


gênero no Idílio 2. A ligação metafórica entre a
dominação masculina e a colonização podem ajudar a
iluminar a dinâmica de poder do Idílio 2: Delfis, o
colonizador masculino privilegiado, um estrangeiro
grego da elite de Myndus, assume privilégio erótico
em um sistema patriarcal, e Simaeta, a fêmea
subordinada, encontra o recurso em um reino
alternativo de magia, natureza, terra. (BURTON, 1995,
p. 44, tradução nossa)

8
Maria Regina Candido informa-nos que a presença das práticas mágicas para sedução
ou vingança junto ao repertório dos helenos pode ser percebida no período arcaico e
clássico, mas é retomada por Teócrito no período helenístico. Segundo a autora, temos
como exemplo: Hera na Ilíada, Circe na Odisseia, Dejanira em Sófocles e Medeia em
Eurípedes (CANDIDO, 2009, p. 2-3). Alguns autores, como Felipe Sanchez Reys e Pedro
C. Tapia Zuniga, sugerem que Teócrito teria baseado sua temática em um poema de
seu antecessor Sofron de Siracura, intitulado As Conjuradoras da Lua (REYS; ZUNIGA,
2009, p. 25).
Seguindo essa lógica, “Teócrito faz uso do motivo da magia 9 em
função dos seus objetivos poéticos, que passam, antes de mais nada, pela
construção do retrato da sua protagonista”, uma mulher que recorre às
artes mágicas a fim de reaver o amor do homem que a abandonou após
sua primeira relação sexual. A hipótese de Burton quanto à existência de 8

uma disputa entre poder e gênero parece plausível ao observarmos o


enredo do “mimo”, no qual podemos identificar um engajamento político-
social por parte de Teócrito. O autor representa “as vicissitudes das
mulheres” que, como a protagonista Simaeta, “viviam de forma
independente e fora das restrições e proteção do 'oikos' clássico”, e, por
isso, tinham que resistir às subordinações que lhes eram impostas na
ausência de um kyrios (POMEROY, 2004, p. 6, tradução nossa).
Não perdendo de vista que estamos perante uma escrita masculina,
Simaeta e suas contemporâneas aparecem na literatura helenística com
uma liberdade que ultrapassa o espaço do gineceu, com uma consciência
de si e das suas capacidades muito afirmada. Se Simaeta é fruto da
liberdade poética de Teócrito ou não, sua experiência enumera, por sua
vez, a possibilidade de descortinar informações sobre o mundo
helenístico, ou, pelo menos, uma representação dele. Nota‐se, por parte
desse poeta cultivador do mimo, um desejo de realismo e uma maior
concentração nas pessoas comuns; ou seja, esse é um interesse que não

9
O poema é considerado, pela historiografia, um dos documentos mais importantes
para a compreensão das práticas mágico-religiosas do período helenístico, pelo fato de
Teócrito ter sido um dos primeiros autores a descrevê-las pormenorizadamente. O
ritual desenvolvido por Samaeta segue, de forma semelhante, as fórmulas mágicas
reais que circulavam comumente em meio à cosmópolis, cuja tradição chegou até nós
através dos Papiros Mágicos Gregos, PGM (SANTOS, 2012, passim).
tem nada a ver com a defesa dos valores heroicos do passado, que não
possuíam um compromisso com a “verdade”. Mediante o que foi dito e
pelo fato de Teócrito compor sua estética com aspectos cotidianos do
período helenístico, o poema pode fornecer informações importantes
sobre as mudanças e permanências nas identidades de gênero da época. 9

Apesar das referências ambíguas da personagem, Frederick T.


Griffiths afirma que, para os historiadores sociais, o poema de Teócrito
significa um documento de cunho literário que nos oferece uma vinheta
sobre o cotidiano, a qual combina profundidade psicológica com um
realismo credível sobre a vida das mulheres em Cós e Alexandria10, lugares
de fala do poeta (GRIFFITHS, 1981, passim). O autor dialoga com Maria
Regina Candido por considerar que a literatura produzida por Teócrito
pode ser de grande valia se analisada sob um caráter histórico, por
proporcionar indícios sobre o imaginário social do período helenístico.
Para a autora, toda documentação é produto de uma sociedade que
objetivava transmitir os seus valores, legitimar o seu estilo de vida e as
diversas mudanças sociais (CANDIDO, 2009, passim).
Apresentados o enredo e a historicidade do poema, cabe a nós
perguntar: em que a narrativa de Teócrito poderia contribuir para a

10
Segundo Fain, Alexandria não era apenas um importante centro econômico, mas
também um local de encontro de artistas, poetas e músicos, foco da vida cultural
durante o período helenístico. Seus imigrantes eram estudiosos e poetas, incluindo
Teócrito, Posidippus e Calli. Ademais, a ilha de Cós, a qual estava relacionada à vida
política de Alexandria, pois a ilha estabeleceu uma aliança com os Ptolomeus do Egito,
particularmente mais forte nos reinados de Ptolomeu Philadelphos (283-246 a.C.) e
Ptolomeu IV Philopator (222-204 a.C.), que a usaram como um posto naval avançado
para supervisionar o mar Egeu e, como resultado, estabeleceram seu Estado-Maior
(SAKULA, 1984, p. 682-3).
construção do saber histórico? As análises mais amplamente conhecidas
do texto evidenciam seus aspectos deterministas, já que a personagem
teria suas ações ora motivadas pela paixão efervescente, ora influenciadas
pelo ódio produzido pelo abandono. Por outro lado, um olhar mais
profundo sobre o poema permite aos historiadores analisar aspectos 10

socioculturais do seu contexto de produção. Em seus conteúdos, podemos


observar alguns temas de pesquisa: o status social de Simaeta; a magia
erótica, para o amor ou vingança; relações amorosas e cortejos no período
helenístico; o culto de Ártemis em Cós; assimilação cultural e mobilidade;
a escravidão feminina, materializada em Téstiles; vicissitudes femininas
em áreas helenizadas; entre outros.
Por sua vez, nosso objeto de estudo constitui o status de Simaeta11.
Em regra, nas análises mais conhecidas a respeito da protagonista, o
ângulo investigado refere-se a sua identidade como hetaira, pelo fato de
autores como K. J. Dover (1971) e Cristopher Faraone (1999) 12
considerarem que a postura socialmente ativa apresentada pela
personagem não condizia com uma mulher bem-nascida. Bem mais
amplas e profundas, contudo, são as considerações de Garcia Teijeiro
(1999), Frederick T. Griffiths (1981) e Charles Segal (1987) 13, que tratam de

11
Entender quem é Simaeta nos parece interessante não só pelo fato de
compreendermos as transformações no âmbito feminino em Cós, mas também para
identificar os responsáveis pelas práticas dos filtros e encantamentos para o amor no
período helenístico, tal como os motivos que os levam a empreendê-los.
12
DOVER, K.J. (1971) (ed.). Theocritus select poems, Bristol Classical Press; FARAONE,
C.A. (1999). Ancient Greek Love Magic, Harvard University Press.
13
TEJEIRO, M. Garcia. Il secondo Idilio di Teocrito. Quaderni Urbinati di Cultura Classica,
nº 61, 1999, pp. 71-86; GRIFFITHS, Frederick T.. Home before lunch: the emancipated
woman in Theocritus, in H.F. Foley (org.), Reflections of women in Antiquity. New York:
examinar a personagem sob os múltiplos aspectos do seu contexto social
de produção, sem com isso incorrer em uma análise determinista. De fato,
como propõem Teijeiro, Griffiths e Segal, se Simaeta existiu ou constitui
uma mimesis do real, Teócrito pode ter usado como recurso estilístico as
vicissitudes femininas do período helenístico, o que explicaria a liberdade 11

e a altivez da personagem em questão.


Ainda assim, os estudiosos têm estado perplexos com relação às
referências ambíguas a respeito de Simaeta, ora caracterizada como uma
virgem enganada, ora como uma cortesã hetaira, que não hesita em pedir
para sua escrava trazer um homem à sua casa, para em seguida deitar-se
com ele. Devido a sua postura social ativa, seria Simaeta uma virgem
enganada, produto das relações sociais de gênero do período helenístico,
ou uma prostituta hetaira, conhecida por sua independência e dominação
de filtros/encantamentos? Buscando responder a essa questão, os autores
por nós selecionados consideram que, apesar de Teócrito não explicitar o
status da personagem, os acontecimentos apresentados no decorrer da
narrativa revelam indícios, em seu encaminhamento, condução e
organização interna, que permitem inferir uma resposta.
Apesar de Teócrito dedicar-se, pelo menos na primeira parte da
narrativa, a descrever pormenorizadamente a magia erótica desenvolvida
por Simaeta, o poema carrega consigo uma borda de autorreflexão da
protagonista, sobretudo na segunda parte, quando ela desenvolve seu

Routledge, 1981, pp. 247-273; C. Segal. Simaetha and the Iynx (Theocritus, Idyll 2).
Quaderni Urbinati di Cultura Classica, nº 15, 1973, pp. 32-43; C. Segal. Alphesiboeus’
song and Simaetha’s magic; Virgil’s Eighth Eclogue and Theocritus’ Second Idyll. GB, nº
14, 1987, pp. 167-185.
monólogo com a Lua, representação da deusa Selene ou da própria
Ártemis. A autorreflexão da personagem fornece-nos dados importantes
sobre seu status, a saber: a personagem possui uma escrava, Testiles (v.
20); vive sozinha, sem a presença de um kyrios; tem livre acesso ao âmbito
público e aos ambientes masculinos, como as palestras (v. 8-10); Clearista 12

lhe emprestou uma peça de roupa para ir ao festival de Ártemis (v. 73); e,
ao se ver apaixonada por Delfis, cedeu aos impulsos do rapaz e perdeu sua
virgindade (v. 138-144).
De fato, não existem informações no poema sobre os meios de
subsistência da jovem, mas, levando em consideração os aspectos
apresentados acima, compreendemos que, se Simaeta era dona de
Testiles (v. 20), não poderia, por conseguinte, ser uma serva ou pertencer
às camadas de poucos recursos, devido ao alto valor de compra dos
escravos no mercado 14. Legrand considera que Simaeta seria uma mulher
livre que vivia sozinha com sua escrava e talvez trabalhasse para obter seu
sustento, como as mulheres do seu período. No entanto, Legrand observa
que o deslumbramento da personagem a respeito dos simpósios e das
palestras, sua preocupação com eventos passageiros, o empréstimo de
uma peça de roupa por parte de Clearista, entre outros aspectos,
enquadram-na entre as mulheres das classes menos abastadas ou as
estrangeiras (LEGRAND, 1972, p. 96).

14
Segundo Catherine Salles, o preço de um escravo na sociedade grega poderia variar
segundo idade, sexo, raça, qualidades físicas ou intelectuais. A autora estima que 50
dracmas era o preço de uma criança não formada e 3.000 dracmas era o preço de um
adulto, cuja capacidade justifica o investimento (SALLES, 1987, p. 52-3).
F. Graf opta por um caminho diferente ao afirmar que o fato de
Simaeta apresentar uma ligação estreita com Anaxo, a canéfora 15 que lhe
convidou para o festival de Ártemis na ocasião em que conheceu Delfis,
indica que a personagem seria uma mulher “bem-nascida”, ou, pelo
menos, uma petite-bourgeoise, pois as canéforas eram sabidamente 13

mulheres virgens membros de famílias com recursos (GRAF apud MANÃS,


2009, p. 224). A afirmação de Graf desqualifica, então, a hipótese de que o
empréstimo de roupa 16 entre Simaeta e Clerista poderia constituir um
indício dos módicos recursos da protagonista do poema. O autor dialoga
com Griffiths por considerar que o referido empréstimo não nos informa
sobre questões financeiras da personagem, mas sobre a falta de
familiaridade com o âmbito público e ritual, que tornaria necessário o uso
de uma indumentária específica.
Contudo, mediante o desempenho de Simeta ao longo da cerimonia
mágica, bem como sua postura socialmente ativa durante a narrativa,
semelhante aos papéis sexuais no círculo das cortesãs, Cristhofer Faraone
propôs a hipótese de que a protagonista seria uma hetaira. Segundo o
autor, os encantamentos eróticos e afrodisíacos de Simaeta obedeciam a
um padrão muito específico: a presença do elemento sexual
acompanhado de certa agressividade, usado pelas prostitutas para atrais

15
É o título que recebiam as jovens donzelas que tinham a missão levar à cabeça os
açafates com as oferendas destinadas aos sacrifícios dedicados à divindade em cuja
honra se celebravam as festividades. Literalmente, καναφόρος significa “que
transporta um cesto” (SILVA, 2008, p. 68)
16
Vale lembrar que o empréstimo da roupa mencionada pode aludir também a uma
questão importante: a existência de redes de sociabilidade entre as mulheres no
período helenístico.
clientes. Ademais, a essa questão podem ser somadas outras
circunstâncias: a desinibição da personagem em ambientes masculinos, o
ambiente eminentemente feminino em que ela vivia, sua independência
financeira e liberdade, e o fato de o nome Simaeta 17 ser considerado
comum entre mulheres que exerciam a prostituição (FARAONE, 1999, p. 14

154).
A hipótese de Faraone baseia-se no fato de que a protagonista do
Idílio 2 seria uma cortesã, devido às prostitutas terem experiência na
prática de encantamentos amorosos para atrair clientes (FARAONE, 1999,
p. 154). No entanto, Faraone enfrenta certa dificuldade documental para
embasar sua hipótese, já que alguns versos do poema indicam que a
personagem não estaria segura quanto à eficácia de sua amarração, o que
nos leva a concluir que Simaeta não seria uma feiticeira convincente.
Dentre os versos que enunciam essa questão, podemos selecionar o
seguinte, no qual a personagem deseja a morte do amado, caso seus
procedimentos mágicos não funcionassem:

Agora vou amarrá-lo com os meus feitiços de amor!


Mas se ele continuar a atormentar-me, pelas Moiras
que é à porta do Hades que irá bater. Tão perigosas
são as drogas que guardo para ele no meu cofre,
conhecimentos que aprendi de um estrangeiro assírio.
(TEÓCRITO, II, v. 158-160)

17
Faraone (1999, p. 154) observa que o nome de Simaeta (Σιμαίθα) é uma combinação
das palavras gregas para “macaco" e “bode”, tidos como apelidos pejorativos
atribuídos às prostitutas e também usados por Aristófanes para nomear uma cortesã
na obra Os Arcanianos.
Segundo Claudia Raquel Cravo da Silva, o verso supramencionado
enuncia que Simaeta não era uma feiticeira experiente, dado que não
conheceria as pharmakas que poderiam causar a morte de Delfis e, por
isso, teria que consultar um magoi proveniente da Assíria (SILVA, 2008, p.
59). Essa questão pode ser verificada em Heródoto (VIII, 98), que 15

considera que a palavra magoi faz referência à religião dos medas


provenientes do território oriental da Pérsia. Os medas, conhecidos como
sacerdotes persas da religião de Zoroastro, também denominados pelos
gregos e romanos de caldeus, tinham por função interpretar sonhos,
realizar presságios e fazer evocação aos mortos, consoante a peça Persas
do dramaturgo Esquilo (v. 620), a saber: “Vamos, amigos, entoai sobre
estas libações feitas aos mortos hinos propícios e evocai o divino Dario,
enquanto eu dirijo aos deuses subterrâneos estas homenagens que a terra
vai beber.”
Segundo Silva, outros fatores tornam evidente que a protagonista
não seria uma profissional das artes ocultas, a saber: no v. 8, Simaeta
profere as seguintes palavras, que indicam o fato de não acreditar em seu
poder, tendo, por isso, que repreender o amado: “Amanhã irei à palestra
de Timageto para ver Delfis e dizer-lhe como me atormenta, mas agora
quero prendê-lo com os meus feitiços”; no v. 15, a protagonista troca o
nome da feiticeira homérica Agamede por Perimede, o que indica a falta
de letramento mágico; no v. 164, a jovem volta a indiciar falta de
confiança no êxito dos seus feitiços, quando diz: “eu suportarei a minha
paixão, como a suportei até agora”; e nos v. 90-91, quando a personagem
encontra-se doente pelos efeitos da paixão e interroga-se a qual velha
entendida em encantamento deixou de se dirigir, aludindo claramente às
“diligências que teria feito junto de magas experientes, capazes de ajudá-
la naquele momento particularmente difícil de sua vida” (SILVA, 2008, p.
58).
Maria Regina Candido (2009, p. 4) corrobora as indagações que 16

consideram que a personagem em questão não parece ser especialista na


prática da magia e, por isso, supõe que a mesma seria uma iniciante usual,
isto é, alguém que usa de procedimentos mágicos em benefício próprio,
tendo possivelmente consultado o saber/fazer de um mago assírio ou de
uma feiticeira mais experiente. Insta observar que as práticas mágicas que
Simaeta emprega durante a narrativa seguem uma fórmula semelhante
aos katadesmoi que circulavam oralmente nas sociedades cosmopolitas
de Atenas e Alexandria, cuja tradição chegou até nós através dos Papiros
Mágicos Gregos (PMG)18; a circularidade desses conhecimentos indica
que, provavelmente, o saber/fazer da magia era uma técnica comum em
meio à cosmópolis do período helenístico (SANTOS, 2012, passim).
Nesse sentido, se Simaeta, para nós, não seria uma feiticeira
experiente, e, com isso, desconsideramos a hipótese de Faraone, cabe o
questionamento: mesmo não sendo conhecedora dos encantamentos
para o amor/vingança, seria Simaeta uma hetaira? Sarah B. Pomeroy

18
Documentos greco-egípcios, datados entre os séculos II a.C. e V d.C., com inúmeras
fórmulas, rituais e mágicas que dão um testemunho importante da religião mágica
helenística (CHEVITARESE; CORNELI, 2007, p. 82). O surgimento de evidências escritas
da magia constitui um processo, sem dúvida, acelerado pelo aumento da alfabetização
no período clássico (SANTOS, 2012, p. 172).
considera que Simaeta não seria uma hetaira19, mas sim uma das
mulheres independentes da poesia helenística que aparentemente viviam
sem a supervisão do sexo masculino e se envolveram em casos de amor
com homens, sem, por isso, serem prostitutas (POMEROY, 1994, p. 169).
Assim, sem um homem para zelar por sua integridade moral e física, a 17

personagem estaria sujeita a todo tipo de vicissitudes, como perder a


virgindade sem ser casada, o que podemos observar no seguinte verso de
Teócrito:

E eu, a crédula, tomei-o pela mão e fi-lo deitar-se no


meu leito macio. Depressa um corpo aquecia o outro
corpo, os nossos rostos estavam mais acesos do que
antes e trocávamos doces sussurros. Para não alongar
mais a história, querida Lua, o mais grave aconteceu e
ambos saciamos o nosso desejo. (TEÓCRITO, II, v. 138-
144).

Frederick T. Griffiths afirma que o fato de Simaeta perder a


virgindade com Delfis poderia lhe conceder as credenciais de cortesã. No
entanto, se olharmos mais longe, a ausência de interesse comercial no ato
sexual descrito acima, como também a falta de savoir faire de Simaeta em
lidar com o possível cliente, desqualificam o diagnóstico de aspirante a
cortesã. Segundo o autor, a aflição de Simaeta não resulta das
vulnerabilidades femininas, como a gravidez ou a dependência financeira,
mas sim de uma obsessão por um problema momentâneo, característica

19
Gow (1992), Burton (1995), Séchan (1965, p. 78), Aguilar (1996, p. 90) e García
Teijeiro (1999, p. 77), entre outros, também veem claramente que Simaeta não era
uma cortesã, pois era virgem antes de conhecer Delfis.
de uma órfã infantil em seu primeiro amor 20. Para o autor, Simaeta não
seria uma hetaira, mas uma mulher independente ou emancipada, sem
parentes do sexo masculino, como poderia acontecer na primeira geração
de imigrantes para as cidades cosmopolitas, a exemplo de Alexandria e,
por extensão, Cós (GRIFFITHS, 1981, p. 264). 18

Embora saibamos por intermédio de Catherine Salles (1987, p. 122-


3) que, durante o período clássico, uma mulher sozinha, na ausência de
protetores naturais, poderia recorrer à prostituição como forma de
subsistência, por outro lado, no período helenístico, mulheres solteiras
respeitáveis poderiam optar por trabalhar nas artes e profissões liberais.
Ademais, Simaeta possuiria uma escrava e, por isso, representaria uma
mulher de recursos, sem necessidade de recorrer à prostituição.
Pertinente é a colocação de Sarah B. Pomeroy, que considera que o
discurso de Teócrito sobre Simaeta, bem como o dos poetas da antologia
grega, retrata as mulheres que viviam de forma independente, fora das
restrições do período clássico, que não necessariamente eram hetairai
(POMEROY, 1994, p. 140).
Ao retratar a vida modesta e crédula de Simaeta, Teócrito denuncia
um dos possíveis destinos para uma mulher independente que vivia uma
vida desregrada: ceder aos impulsos masculinos e, com isso, perder a
virgindade. Em um momento histórico em que as mulheres foram
atingindo maiores níveis de visibilidade, liberdade e poder econômico, o
poema de Simaeta apresenta um exemplo dos problemas que podem
20
Não se pode dizer que a mulher em Teócrito é usada e abusada, pois, em outros
poemas de sua autoria, o masculino também sofre dos mesmos males; não se pode
falar, dessa forma, em misoginia ou em fragilização do feminino.
surgir para uma mulher em um mundo de mudanças de gênero, no qual o
amor, não mais a vida pública, torna-se o foco da identidade de homens e
mulheres. Joan Burton afirma que Teócrito reflete, em seu poema, tendo
em vista seu lugar de fala, as preocupações masculinas, com a mudança 21
dos papéis sociais de gênero na época helenística. Além disso, segundo 19

Burton, o poema procura pensar os saberes/poderes das mulheres, a


transgressão de regras sociais pré-estabelecidas, o problema da proteção
feminina e as diferenças de gênero, tanto no âmbito do discurso como do
comportamento (BURTON, 1995, p. 44).
Em Estudio sobre la mujer en la poesía helenística, a autora Maria
Gloria González Galván, professora de filologia grega da Universidade de la
Laguna, considera que um caso especialmente grave da contravenção das
normas sociais, até mesmo para o período helenístico, pode ser visto no
poema de Simaeta, dado que a personagem é convertida em uma mulher
desonrada, semelhante a uma hetaira, após ter se deitado com Delfis. Na
vida culturalmente aprovada das mulheres respeitadas, o sexo significa
casamento e família, mas Delfis vem do mundo dos simpósios e da
ginástica, onde o amor extraconjugal é fácil para ambos os sexos. Os
galanteios e cortejos de Delfis dentro do gineceu de Simaeta induzem a
personagem a ignorar as normas de comportamento aceitáveis e o
próprio casamento, que era uma forma de reconduzir os sentimentos sem
com isso transgredir a moral e a norma (GALVÁN, 2003, p. 59-63).

21
Das quais podemos destacar: alargamento dos direitos de cidadania,
institucionalização da educação, exercício de atividades no âmbito público, usufruto do
papel de chefe de família, realização de empréstimos/doações; e exercício da própria
liberdade, sem a presença de um homem com papel regulador (KATZ, 2013, p. 73).
Para as sociedades de matriz grega, a castidade era uma virtude
feminina (GALVÁN, 2003, p. 59). Sob essa óptica, a própria personagem
parecer ter a consciência de que teria cometido um miasma social ao se
deitar com o jovem atleta Delfis, como podemos observar no verso
número 41 da documentação, em que a personagem lamenta sua 20

desonra, durante o diálogo com a Lua: “Olha, cala-se o mar, calam-se os


ventos, mas dentro do meu peito não se cala a minha dor. Toda eu me
inflamo por aquele homem que fez de mim, desgraçada, em vez de
esposa, uma mulher infeliz e desonrada” (TEÓCRITO, II, v. 41). Esse recorte
parece ser fundamental para Gow por indicar que Simaeta não seria uma
hetaira, mas uma mulher que se entregou a Delfis por intentar casamento,
como algumas jovens da Comédia Nova Ateniense (GOW, 1992, p. 33).
Se, para Delfis, os amores são fluidos e furtivos, como ilustra sua
experiência nos simpósios e nas palestras, para Simaeta, por outro lado,
apaixonar-se é um evento monumental, capaz de causar sintomas de
doença. Posta assim a questão, é de se dizer que Teócrito cria um cenário
em que o ato de a personagem apaixonar-se significa um rito de passagem
de uma vida anterior, como mulher virgem, para o alvorecer e a
maturidade da vida adulta, após a primeira relação sexual. Joan Burton
(1995, p. 46-7) propõe que essa questão pode ser verificada no primeiro
encontro entre Simaeta e Delfis, no festival de Ártemis 22, a deusa da caça

22
A primeira documentação conhecida pela historiografia sobre a procissão em honra
de Ártemis em Cós foi o poema em questão. No entanto, muito recentemente, a
historiografia entrou em contato com uma inscrição de Cós, datável do século II a.C.,
que contém uma lei sagrada referente a uma grande festa em homenagem a Artêmis
(SILVA, 2008, p. 95-6).
e da iniciação do sexo feminino. Isso porque, em suas relações com os
seres humanos, Ártemis está envolvida principalmente com as fases de
desenvolvimento das mulheres, especialmente nos aspectos físicos de
seus ciclos de vida, inclusive para a menstruação, a virgindade, a primeira
relação sexual, a maternidade e a morte (POMEROY, 1999, p. 19-20). 21

Teócrito e outros poetas helenísticos seguiram uma tradição poética


que usava rituais religiosos para facilitar encontros fictícios entre homens
e mulheres, justamente porque cerimônias religiosas, incluindo funerais,
eram ocasiões para mulheres entrarem no domínio público. Como
mencionado acima, no poema de Teócrito, Simaeta estava acompanhando
uma amiga canéfora em um festival de Ártemis quando viu Delfis e
apaixonou-se. Entretanto, para muito mais do que uma oportunidade de
encontro entre os amantes, o fato de a personagem adentrar a vida
pública durante o festival de Ártemis atenta-nos para a existência de uma
analogia entre Simaeta e a deusa, pois ambas eram donas do seu
autocontrole, longe da companhia masculina, em um universo regulado
pelo feminino23; a falta de ligação duradoura entre Simaeta e um homem,
através do casamento, ou um kyrios é a pedra fundamental da sua
independência e identidade de gênero, da mesma maneira que o
isolamento do mundo masculino na floresta o é para Ártemis (POMEROY,
1999, p. 19-20).

23
Sem a existência de figuras masculinas, seus valores sociais derivam inteiramente de
um universo feminino, provenientes das relações com sua escrava e suas amigas; por
sua vez, seus pensamentos religiosos implicam um panteão exclusivamente feminino,
formado por Hekate, Ártemis e Selene, a Lua. As três deusas possuem arquétipos
semelhantes, relacionados aos ciclos femininos, à lua, à madrugada, aos partos, à cura
e à proteção. Vale lembrar também que Ártemis é o duplo de Hekate.
Nesse sentido, apesar das relações entre masculino e feminino
terem se tornado mais fluidas, perder a virgindade sem ser casada, em
uma sociedade eminentemente masculina, podia ser visto de forma
negativa, o que explica a opção de Simaeta em realizar os katadesmoi
amorosos para reaver ou prejudicar Délfis. Já que não possuiria um kyrios 22

disponível para tomar as medidas adequadas em seu nome, a personagem


encontra poder no reino alternativo da magia e do culto, como uma
medida de retaliação. Assim, Simaeta participa de uma forte tradição de
mulheres aparentemente sem recursos, a exemplo de Circe, Djanira e
Medea, que encontram na magia uma fonte contracultural particular de
poder psicológico contra a dominação dos homens (BURTON, 1995, p. 85).
Ao nos propormos pensar o status da personagem Simaeta,
buscamos evidenciar, por meio do não dito presente no texto, não só o
espaço que a mesma preenche no universo macrosocial, seja como
mulher “bem-nascida”, pobre ou estrangeira, mas também refletir sobre
seus comportamentos e transgressões durante o romance passageiro com
o jovem Delfis; seu comportamento, nesse sentido, carrega estigmas que
podem acarretar graves consequências sob o ângulo da vida em
sociedade, sobretudo numa esfera ainda dominada por homens.
Mediante as reflexões teóricas, percebemos que o status da personagem
não é norteado apenas por seu lugar de fala no todo social, mas também
pelos valores e diretrizes que orientam sua sociedade, ou seja, ele pode
ser atribuído ou adquirido. Nesse sentido, ao se ver desonrada após
perder a virgindade antes do casamento, Simaeta aproxima-se do status
de uma hetaira, sem propriamente sê-la.
Para Simaeta, não basta apenas possuir o status de uma mulher
“bem-nascida”, pobre ou estrangeira, mas a sociedade em que se insere
deve reconhecer nela os atributos do segmento social ao qual pertence,
pelo desempenho de um determinado papel social que corresponde à
altura da expectativa do grupo em que está incluída, com todos os seus 23

signos e significações; quanto maior o status, maior a responsabilidade do


sujeito, pelo aumento das cobranças sociais. A personagem demonstra, no
v. 41, certa preocupação com o que sua desonra poderia lhe causar, o que
ilustra a vergonha e o miasma que sua atitude significava perante o
segmento social em que estava inserida. Essa preocupação de Simaeta
com o casamento e com as regras de decoro transgredidas, entre outros
aspectos enunciados no texto, fazem-nos crer que a personagem pertence
às camadas abastadas da sociedade de Cós.
No entanto, a ausência, no transcorrer do poema, de protetores
legais masculinos, denominados kyrios, põe em dúvida seu status como
uma mulher “bem-nascida”. Mediante essa questão, pertinentes foram as
observações de Legrand e Giffiths, de que Simaeta não seria uma mulher
“bem-nascida”, mas sim uma estrangeira, sem parentes do sexo masculino
e, por isso, independente ou “emancipada”, como poderia acontecer na
primeira geração de imigrantes para as cidades cosmopolitas, devido à
mobilidade e ao rompimento de fronteiras característicos do período
helenístico. Então, supomos que Simaeta não seria nem uma hetaira, nem
uma mulher “bem-nascida”, e muito menos pobre, mas apresenta signos
de uma estrangeira órfã solteira, sem protetores legais, o que explica o
uso da magia para autoproteção.
Considerações finais
Em suma, podemos concluir que nosso trabalho se propôs a analisar
as mudanças no status das mulheres durante o período helenístico na
sociedade da ilha de Cós tendo como base o estudo de caso sobre 24

Simaeta, personagem de Teócrito de Siracusa no “mimo” A feiticeira. Em


nossa curta explanação, com base nos autores examinados e na análise
documental, chegamos à hipótese de que a personagem seria uma mulher
estrangeira, órfã, solteira e proveniente das camadas com recursos. A
construção da sua narrativa, por extensão, seria uma crítica às mudanças
políticas da experiência histórica em que Simaeta e suas contemporâneas
estavam inseridas. Na verdade, a cultura é um lugar de política, ou seja, as
transformações políticas podem incidir na forma de ver e pensar as
referências culturais e literárias, sobretudo quando um indivíduo escreve
inserido em uma instituição de poder.
Ainda que a literatura do período floresça em um círculo literário
restrito, patrocinado e controlado por diferentes monarcas da dinastia
ptolomaica, o gênero dramático-cômico conservou sua popularidade
entre as camadas sociais de poucos recursos, identificadas com as
temáticas que contemplavam pessoas comuns, sobretudo as narrativas a
respeito das mulheres, do cotidiano bucólico de pastores e dos escravos.
Nesse sentido, para que o público identifique-se com os conflitos vividos
por Simaeta e para que sua existência seja plausível para quem assiste ao
“mimo”, o autor flexiona, como recurso dramático, diversas ambiguidades
no status da personagem, ora como hetaira, ora como mulher
independente, ora como virgem enganada; as implicações dramáticas da
trama explicam, então, as ambiguidades que pretendíamos desconstruir
neste trabalho.
Então, o “mimo” tratava-se não apenas de um veículo lúdico de
transmissão de mensagens durantes festivais religiosos e banquetes 25

aristocráticos, mas também de um lugar de experimentação e construção


de formatos sociais – neste caso, relacionados a um modelo feminino.
Intentamos entender as ambiguidades e transgressões de Simaeta por
meio de uma dimensão política, ou seja, como um ensaio de críticas sobre
o perigo das mudanças sociais de gênero observadas no período
helenístico, um momento histórico em que as mulheres foram atingindo
maiores níveis de visibilidade, liberdade e poder econômico. Teócrito
reflete, em seu poema, as preocupações masculinas com a mudança dos
papéis sociais de gênero na referida época, quando uma mulher, sem um
kyrios, poderia levar uma vida desregrada e cair em desgraça perante uma
sociedade de valores masculinos.
No entanto, ao nos questionarmos a respeito da documentação e
do status da personagem, não pretendemos solucionar, em tão curta
exposição, a problemática estabelecida, mas sim fomentar os
questionamentos a respeito da natureza ambígua de Simaeta, bem como
analisar de que forma historiadores e filólogos buscaram interpretar o não
dito, ou seja, as formas de discurso no texto sobre as quais o autor não
teve controle, e nas quais o status da personagem pode ser encontrado. O
poema de Teócrito permitiu-nos analisar a sociedade que construiu tais
narrativas, assim como obter indícios de seus costumes, hábitos, religião
e, principalmente, a preocupação com a sexualidade desmedida das
mulheres, o que constitui um discurso que perpassa o repertório das
sociedades antigas e transcende o tempo, chegando até os dias de hoje.

26

Referências

A – Documentação
ÉSQUILO. Persas. Trad.: Manuel de Oliveira Pulquério. Lisboa: Edições 70,
1998.
TEÓCRITO. A Feiticeira. In : SILVA, C.R.C, Magia Erótica e Arte Poética no
Idílio 2 de Teócrito. Tese de Doutorado, Universidade de Coimbra, 2008,
pp. 109-113.

B – Historiografia
AGUILAR, R.M.. Buenas y malas mujeres de la antigua Grecia. Enrahonar
XXVI, 1996, pp. 81-94.
ANDREWS, N.E. Narrative and allusion in Theocritus, Idyll 2. In Harder,
Annette (et all). Theocritus. Hellenistica Groningana II. Groningen: Egbert
Forsten, 1996, pp. 22-53.
BRANDÃO, Junito de Souza. Helena, o eterno feminino. Rio de Janeiro:
Vozes, 1991.
BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Ed. Unesp, 2002.
BURTON, Joan B. Theocritus’s Urban Mimes: Mobility, Gender, and
Patronage. Berkeley: University of California Press, 1995.
CANDIDO, Maria Regina. Teócrito e a imprecação amorosa no período
helenístico. In: XVII Congresso Nacional de Estudos Clássicos Amizade e
prazer no Mundo Antiga, 21 a 25 de setembro de 2009, Natal, RN, 2009.
CARVALHO, Elisa Costa Brandão de ; Tradição e Inovação: A Figura da
Mulher na Literatura Helenística. In: Telófases Mediterrâneas: Os limites
do literário sob a égide do Farol, 2009, Rio de Janeiro. Telófases
Mediterrâneas: Os limites do literário sob a égide do Farol. Rio de Janeiro:
Horus Educacional, 2009. v. 1. p. 93-105.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1982.
CHEVITARESE, A.; CORNELLI, G. Judaismo, Cristianismo e Helenismo.
Ensaios acerca das integrações culurais no Mediterrâneo Antigo. São
Paulo: Annablume, 2007.
DEZOTTI, M. C. C.. O Mimo Grego: uma apresentação. Itinerários (UNESP),
Araraquara, v. 6, p. 37-46, 1993. 27
DOVER, K.J. (ed.). Theocritus select poems, London: Macmillan, 1971.

FARAONE, C.A.. Ancient Greek Love Magic. Massachusetts: Harvard


University Press, 1999.
GARCÍA TEIJEIRO, M. (1999). Il secondo Idillio di Teócrito. In: QUCC 61,
1999, pp. 71-86.
GONZÁLEZ GALVÁN, María Gloria. Estudio sobre la mujer en la poesía
helenística. Dissertação De Doutorado. Universidad: La Laguna
Departamento: Filologia Clasica Y Arabe, 2003.
GOW, A.S.F. (org.). Theocritus edited with a translation and commentary,
vols. I-II, Cambridge: Cambridge University Press, 1927
___________. Iunx, Rhombus, Turbo. JHS 54, 1934, 1-13.
___________. Notes on noses. JHS 71, 1951, 81-84.
GRIFFITHS, Frederick T.. Home before lunch: the emancipated woman in
Theocritus, In H.F. Foley (org.), Reflections of women in Antiquity. New
York: Routledge, 1981, pp. 247-273.
LEGRAND, PH. E.. Bucoliques Grecs, Pseudo Théocrite, tome II, texte établi
et traduit par. Paris: Les Belles Lettres, 1927.
MAÑAS, Mónica Durán. Mujeres y Diosas em Teócrito. Dissertação de
Doutorado em Filologia. Universidad Complutense De Madrid, Facultad De
Filología, Departamento de Filología Griega y Lingüística Indoeuropea,
Madrid, 2009
POMEROY, Sarah B. Diosas, Rameras, Esposas y Esclavas – Mulheres em La
Antiguedad Classica. Madrid: Ediciones Akal. 1999.
____________. The Hellenistic Period: Women in a Cosmopolitan World.
In: Elaine Fantham (et. al.). Women in the Classical World.New York:
Oxford University Press, 1994.
____________. Women in Hellenistic Egypt: From Alexandria to Cleopatra.
New York: Schocken Books, 1984.
REYES, Felipe Sánchez; ZÚNIGA, Pedro C. Tapia. La hechicera de Teócrito.
In: Acta poética 17, 1996, pp. 23-31.
RIBEIRO, M. L. M. A questão do mecenato na Antiguidade e no
Renascimento português. Revista Philologus, v. 48, p. 44-50, 2010.
SAKULA, Alex. In search of Hippocrates: a visit to Kos. In: Journal of the
Royal Society of Medicine, v. 77, 1984, pp. 682-688.
SALLES, Catherine. Nos Submundo da Antiguidade. SP: Editora Brasiliense, 28
1987.

SANTOS, S. F.. A Magia para o Amor e para a Fertilidade no Mundo Grego.


Nearco - Revista Eletrônica de Antiguidade, v. V, p. 170-187, 2012.
_____________. Eros e Thânatos: o casamento como violência simbólica e
estratégia de representação feminina na Atenas Clássica. In: CNPq,
UNIFEM, SPM e MEC. (Org.). 6o Prêmio Construindo a Igualdade de
Gênero. 1ed.Brasília: Presidência da República, 2010, v. 1, p. 111-130.
SECHAN, L.. Les magiciennes et l’amour chez Théocrite. In: Annales de la
Faculté des Lettres et Sciences Humaines d’Aix 39, 1965, pp. 67-100.
SEGAL, C.. Alphesiboeus’ song and Simaetha’s magic; Virgil’s Eighth
Eclogue and Theocritus’ Second Idyll. GB, nº 14, 1987, pp. 167-185.
_________. Simaetha and the Iynx (Theocritus, Idyll 2). Quaderni Urbinati
di Cultura Classica, nº 15, 1973, pp. 32-43.
SILVA, C.R.C, Magia Erótica e Arte Poética no Idílio 2 de Teócrito. Tese de
doutorado, Universidade de Coimbra, 2008.
SILVA, Hélio Ramos da. O Idílio XV de Teócrito: As Siracusanas ou As
Mulheres que celebram Adónis. Mestrado em Estudos Clássicos,
Faculdade De Letras Departamento De Estudos Clássicos, Universidade de
Lisboa, 2011.
TEJEIRO, M. Garcia. Il secondo Idilio di Teocrito. Quaderni Urbinati di
Cultura Classica, nº 61, 1999, pp. 71-86.
POSTAIS DE FAMÍLIA DO FOTO BIANCHI: ANÁLISE DOS
USOS DAS FOTOGRAFIAS DO ACERVO CASA DO DIVINO
(1920-1930)
Luciana do Rocio Ramos1
Jessica Caroline de Oliveira 2 1
Zuleide Maria Matulle3

RESUMO: O diálogo entre história e fotografia tem ampliado os campos de pesquisas,


possibilitando assim, investigar temas que, em virtude de uma historiografia
tradicional, foram ignorados ou pouco abordados pelas ciências sociais e humanas.
Nesta acepção, este trabalho objetiva discutir a relação entre história e fotografia a
partir dos postais realizados pelo Estúdio Foto Bianchi, os quais, hoje fazem parte do
Acervo Casa do Divino, localizado na Casa de Memória, em Ponta Grossa. Através da
seleção dos materiais a serem analisados, temos a possibilidade de problematizar e
contextualizar os elementos que compõe visualmente suas representações de arranjos
familiares, considerando diferentes questões relacionadas à produção fotográfica.
Além disso, outro aspecto que está intimamente ligado a estas fotografias é o sentido
religioso atribuído à elas. Isso se dá pelo fato de se tratarem de ex-votos, objetos de
oferecimento, promessas ou agradecimento por graças concedidas pelo Divino Espírito
Santo, conforme podemos observar nos versos das fotografias, onde há registros
escritos deixados pelas pessoas como um ato de fé e esperança. Neste sentido, família
e religiosidade serão os eixos centrais para pensar as representações presentes nos
postais do Foto Bianchi, tendo como recorte temporal o período de 1920 e 1930.
Palavras-chave: Foto Bianchi; Postais de Família; Religiosidade; Casa do Divino.

ABSTRACT: The dialogue between history e photography has expanded the search
fields, thus enabling to investigate themes that, due to a traditional historiography,
had been ignored or little considered by the Social Sciences and Humanities. In this

1
Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
2
Mestranda em História, Cultura e Identidades pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
Bolsista CAPES/Fundação Araucária.
3
Licenciada em História e Especialista em História, Cultura e Patrimônio pela UNESPAR, campus de
União da Vitória - PR. Mestranda em História, Cultura e Identidades pela Universidade Estadual de Ponta
Grossa (UEPG). Bolsista CAPES/Fundação Araucária.
context, this paper has the objective of discussing the relation between history and
photography based on the postcards made by Foto Bianchi Studio, which, today belong
to Casa do Divino Archive, located in Casa da Memória, in Ponta Grossa. Through
selection of materials that shall be analyzed, we have the possibility of discussing and
contextualizing the elements that visually compose the representation of family
arrangements, considering different aspects related to the photographic production.
Furthermore, another aspect that is closely related to these photos is the religion
sense assigned to them. This happens due the fact they are ex-votes, offers, promises 2
or thanks for blessings given by the Holy Spirit, as we can observe on the back of
photographs, where there are written registers left by the people as an act of faith and
hope. In this sense, family and religiosity shall be the central pillars to think the
representations present on the postcards from Foto Bianchi, having as temporal cut
the period of 1920 and 1930.

Key words: Foto Bianchi; Family Postcards; Religiousness; Casa do Divino.

INTRODUÇÃO

O presente artigo é fruto das discussões realizadas na disciplina


Tópicos Especiais em História e Imagens Fotográficas, vinculada ao
Programa de Pós-Graduação em História, nível de mestrado, da
Universidade Estadual de Ponta Grossa. A referida disciplina pautou-se em
aulas teóricas e práticas sobre as percepções e contribuições da fotografia
enquanto material de análise e de pesquisa. Sendo assim, foram
colocados em discussão os problemas teórico-metodológicos relativos aos
diferentes usos da fotografia, por vezes, erroneamente utilizada como
mera ilustração.
Nesta acepção, buscamos como aporte teórico trabalhos que
apresentam considerações sobre a fotografia, suas funções e
possibilidades metodológicas, podendo-se destacar as discussões
produzidas por Ana Maria Mauad (1996), Annateresa Fabris (1992),
Walter Benjamin (1955) e Boris Kossoy (2001). Utilizamos também as 3

considerações de Roger Chartier (1991) sobre representação, conceito


chave da Nova História Cultural. Em “O mundo como representação”, o
autor destaca que se trata de como os sujeitos dão sentido ao mundo, ou
seja, através das fotografias representa-se algo. As representações estão
associadas a uma produção de discursos e situadas à distância do real.
Estes dois elementos orquestram sistemas de classificação e percepção
que são entendidas enquanto “instituições sociais”, utilizando de divisões
da organização social.
Munidas dos debates teóricos exploramos o Acervo Fotográfico
Casa do Divino, que se encontra sob os cuidados da Casa da Memória, em
Ponta Grossa. Cabe ressaltar ainda, que a Casa do Divino trata-se de um
espaço de religiosidade popular, sendo, inclusive, transformada em
patrimônio cultural, no ano de 2006. Na exploração inicial, tivemos
contato com fotografias que possuíam temas, formatos e temporalidades
diversas. A partir desse primeiro contato, realizamos a seleção de quatro
fotografias para a presente análise. Essa escolha do material fotográfico
deu-se em virtude dos elementos visuais existente nas fotografias
produzidas pelo Estúdio Foto Bianchi 4, com ênfase na representação

4
A Casa da Memória Paraná possui o Acervo de Negativos do Foto Bianchi, com aproximadamente
45.000 negativos em chapa de vidro e celulose rígida, dentre os quais 2.300 já foram higienizados e
catalogados.
familiar e nas informações textuais do verso. Isso permitiu compreender
como elas adquiriram o caráter de agradecimentos ou pagamentos de
promessas por devotos ao Divino Espírito Santo, nas décadas de 1920 e
1930.
Partindo destas perspectivas, estruturamos o texto com o intuito 4

de refletir e entender as fotografias enquanto objetos de sentidos,


significados e contextos. Para isso, iremos discutir a relação entre o
material selecionado e seu circuito social. Em seguida, faremos a análise e
contextualização dos seus elementos visuais e, por fim,
problematizaremos seu uso religioso pelas pessoas devotas do Divino
Espírito Santo.

PRODUÇÃO, CONSUMO E CIRCULAÇÃO: AS FOTOGRAFIAS DO ACERVO


CASA DO DIVINO

Para melhor compreensão acerca das informações que serão


delineadas ao longo do texto, faremos algumas breves exposições a
respeito das concepções em relação aos usos da fotografia considerando
diferentes vertentes teóricas. Esse debate é pertinente porque esclarece
sobre as abordagens que já foram realizadas no processo de análise
fotográfica. Não houve e não há um modelo homogêneo de pensar e
utilizar a fotografia, não há uma “receita pronta” para problematizar e
desenvolver pesquisas que tomam a fotografia como objeto de estudo.
Todavia, existem concepções que já foram superadas pela historiografia.
Por isso, ao conhecer estas diferentes abordagens, podemos olhar para as
fotografias que compõe este trabalho e desenvolver uma metodologia de
análise fundamentada nos referenciais teóricos citados. Desta forma,
podemos justificar escolhas e delimitar problemas em prol de análises
coerentes, sem cair em equívocos como o entendimento da fotografia
como mera ilustração. 5

O conteúdo abordado por Mauad (1996) é pertinente para


esclarecer essas questões. A pesquisadora comunica que, no século XX, a
fotografia foi entendida como transformação do real (discurso do código e
da desconstrução). Essa tendência de análise pode ser subdividida em
momentos: o primeiro esteve associado à teoria da percepção, o qual
limitava a fotografia a idéia de algo plano, bidimensional, com cores e
características que em nada reproduzem a realidade; o segundo eixo
esteve vinculado à discussão estruturalista dos anos de 1960, em que a
fotografia era caracterizada a partir dos efeitos ideológicos
convencionalmente construídos, constituindo-se assim, como um
instrumento de análise do real; e, por fim, o terceiro esteve ligado à
concepção antropológica, que possuía como objetivo desvendar o
significado da mensagem fotográfica.
Outra abordagem destacada pela autora se dá pela ideia de que a
fotografia é um vestígio do real (discurso do índice e da referência), sendo
este, o ponto de partida para compreender a natureza técnica da
fotografia, como também, a relação entre objeto e a representação
fotográfica (o fator do conjunto de imagens e a razão para a escolha das
mesmas). Por meio deste viés, discutem-se as fotografias enquanto
fragmentos de narrativas que engendram memórias. Portanto, a
fotografia, segundo Mauad (1996), registra a história a partir de uma
linguagem de imagens, sendo esta história, constituída de pequenos e
grandes eventos, personalidades mundiais e gentes anônimas, lugares
distantes, exóticos ou domésticos, enfim, uma história composta de
sensibilidades coletivas e ideologias oficiais. Partindo destes pressupostos, 6

serão evidenciados os pontos que orientam esta última concepção,


apontada por Mauad (1996), a partir da qual, podemos dialogar com a
ideia da imagem fotográfica enquanto objeto construtor de uma
iconosfera5.
A fotografia é um objeto que possuiu o seu próprio circuito social,
como salienta Fabris (1992). Para que esse circuito ocorra, faz-se preciso a
integração dos seguintes meios: produção, circulação e consumo. Assim,
as condições de emissão e recepção da mensagem, provenientes do texto
e contexto, contemplam o circuito da imagem fotográfica (MAUAD, 1996).
Em outras palavras, a imagem fotográfica se torna mais que apenas uma
produção propriamente dita, cabendo a alguns fatores e sujeitos a
construção imagética e social, cultural e/ou artística da mesma.

A aceitação de que toda imagem é, antes de mais


nada, um objeto tridimensional (e não somente uma
abstrata projeção de três dimensões num plano)
introduz, automaticamente, dois outros problemas: as
coisas, imersas na vida social e suas contingências,
também podem contar com uma biografia. A segunda
questão é a participação da imagem na “instituição”

5
Segundo Meneses (2005), iconosfera é o conjunto de imagens, guia de um grupo social ou de uma
sociedade num dado momento e com o qual ela interage.
das pessoas sociais. Estes dois problemas incluem
integralmente as imagens (MENESES, 2005, p.7).

Assim como um texto, a imagem fotográfica, e as demais


produções visuais, são resultados de uma produção intencional e, neste
7
sentido, devem passar por uma leitura. Esse processo, parte inicialmente
do autor (fotógrafo) que constrói o texto (a imagem fotográfica) e
posteriormente o leitor (observador-receptor) que interpreta a imagem.
Partindo dessas observações, entendemos a imagem como o próprio
circuito social da fotografia, isto é, a fotografia está inevitavelmente
integrada as ações de sociabilidades em diferentes processos que se
relacionam: produção, circulação e consumo6. Em alguns casos, como o
estudo para a realização deste artigo, vemos que a proposta da ordem
produção → circulação → consumo, pode apresentar-se de forma linear e
se repete no segmento da circulação. Assim, a análise passa pela
compreensão de sua produção, circulação e consumo das fotografias
selecionados relacionando-as ao seu contexto de produção e, por fim, o
destino dado a elas pelas pessoas que possuíam tais fotografias. Neste
caso, elas foram entregues a Casa do Divino como imagens de
agradecimento e ofertas de devoção.
Para compreender essas relações, retomamos o texto de Mauad
(1996). Segundo ela, a responsabilidade da produção da imagem
fotográfica cabe ao fotógrafo, não sendo de primeira instância distingui-lo
6
Segundo Mauad, a produção é o ato do fotógrafo, não apenas técnico,mas cultural e social,a circulação
são os meios e caminhos que a foto irá permear e o consumo é o direcionamento para um dado
destinatário, seja ele um apaixonado que guarda o retrato de sua amada como uma relíquia, seja um
banco de memória que armazenará a imagem fotográfica, até que alguém acesse a informação e
assuma o papel de leitor/destinatário
de profissional ou amador. Esse fato não infere no resultado da sua
produção, mas sim, para qual público a foto será produzida, sendo que
esse público é o responsável pelo consumo.
7
Para o caso estudado, temos que o Foto Bianchi é responsável
pela produção das imagens, mais especificadamente a autoria é de Luíz 8

Bianchi, pois podemos observar nas fotografias selecionadas, que havia o


carimbo em baixo relevo do fotógrafo. Segundo Santos (2012), assim que
começou a adquirir uma grande clientela, graças ao fato do estúdio
fotográfico perdurar na cidade, ficou cada vez mais conhecido. Partindo
do momento de consumo, podemos observar que os destinatários da
produção fotográfica eram famílias que queriam ser retratadas, quase que
na sua totalidade, pois vemos a falta da figura paterna, nas fotos
selecionadas. Também leva-se em conta o fator de que estas mesmas
fotos poderiam ter sido entregues a parentes, antes mesmo de chegar na
Casa do Divino, tendo como fim uma representatividade religiosa.
Com essas observações percebemos uma distinção da linha do
circuito social da fotografia, proposta por Fabris (1992) e reforçada por
Mauad (1996). Segundo essas autoras a fotografia não possuirá apenas
um sujeito para o consumo e circulação.

7
Segundo Santos (2012, p.58), o Foto Bianchi foi um dos estabelecimentos fotográficos tido como
referência durante o século XX em Ponta Grossa – Pr. O estabelecimento foi bastante requisitado por
ampla clientela. Durante mais de meio século ficou instalado na área central da cidade e permaneceu
boa parte desse tempo no mesmo endereço. O estabelecimento se tornou conhecido da população
citadina e ao longo do tempo adquiriu prestígio e a confiança de clientes provenientes até de outras
localidades. A família Bianchi, tornou-se sinônimo de propagadora da arte e técnica de fotografar, em
ambientes externos, mas principalmente no espaço do estúdio, fazendo dessa prática sua principal
fonte de renda.
[...] a fotografia é interpretada como resultado de um
trabalho social de produção de sentido, pautado sobre
códigos convencionalizados culturalmente. É uma
mensagem, que se processa através do tempo, cujas
unidades constituintes são culturais, mas assumem
funções sígnicas diferenciadas, de acordo tanto com o
contexto no qual a mensagem é veiculada, quanto 9
com o local que ocupam no interior da própria
mensagem (MAUAD, 1996).

As fotografias produzidas por Bianchi tiveram destinos a mais, isto


é, como dito anteriormente, não existe a necessidade do circuito social da
fotografia ser linear ou possuir apenas um consumidor, pois assim como
foi analisado, percebemos que as fotos pertenceram às famílias ou à
parentes e por fim foram destinadas a serem utilizadas como
agradecimentos religiosos. É importante citar que as quatro fotografias
selecionadas, foram produzidas no formato de postal. Isso nos leva a um
possível entendimento: as fotografias, neste formato, tinham a intenção
de não estar apenas em um álbum da família, mas de circular e ser
destinada a demais sujeitos ou, como o caso estudado, ser entregues na
Casa do Divino. Assim podemos entender este local como um espaço de
consumo destas fotos, mesmo que não seja de forma intencional do
mesmo de consumir estas determinadas produções fotográficas, e não
será o último a consumir tais fotografias, que podem ser expostas, e assim
fazer parte de um novo momento de circuito social.

A fotografia deve ser considerada como produto


cultural, fruto de trabalho social de produção
significativa. Neste sentido, toda a produção da
mensagem fotográfica está associada aos meios
técnicos de produção cultural. Dentro desta
perspectiva, a fotografia pode, por um lado, contribuir
para a veiculação de novos comportamentos e
representações da classe que possui o controle de tais
meios, e por outro, atuar como eficiente meio de
controle social, através da educação do olhar 10
(MAUAD, 1996, p.11).

A circulação, neste âmbito, procede desde a produção feita pelo


Foto Bianchi. Há o consumo da imagem fotográfica feita pela família, o
espaço de circulação e produção de sentido quando falamos sobre o papel
da Casa do Divino neste circuito social, observamos de imediato a
intenção de circulação especialmente na entrega da foto pela família para
outro local. Ela descaracteriza-se da individualidade enquanto construção
de seu significado e compreende uma nova iconosfera fotográfica (para
este fim, ela obteve uma iconosfera religiosa, que transcende o que é
apenas visual), pois o significado da fotografia transcende o visual. Ela
torna-se também espiritual e abstrato, onde se observa a representação
das mulheres, suas filhas e seus filhos como figuras que receberam as
bênçãos e graças provenientes da crença no Divino.
Além da produção (Foto Bianchi), do consumo (pela família e pela
Casa do Divino) e a circulação como um todo (a relação direta e indireta
dos fatores e indivíduos envolvidos no processo das imagens fotográficas),
temos como resultado final a elaboração deste acervo pela Casa da
Memória. Na pesquisa observamos que a compreensão da natureza
histórica do consumo e produção de imagens implica o escopo dos
sistemas de documentação, para além de descrições genéricas.
Instituições como os museus, que gerenciam acervos iconográficos, é o
lugar privilegiado para a implantação de sistemas documentais que
contemplem a especificidade da imagem, pois uma História da
Visualidade8 se faz através da pesquisa que analisa a imagem como parte 11

da prática social.

LEITURA DE IMAGENS: FOTO BIANCHI E OS POSTAIS DE FAMÍLIA

Sabemos que o uso da fotografia não pode servir como suporte


decorativo, ou como ferramenta de reconstrução do passado, muito
menos como objeto do que “realmente aconteceu”. É preciso refletir
sobre o seu contexto de produção, consumo e circulação, tal como
outrora apontado no texto, bem como, é necessário problematizar os
elementos que compõe a fotografia, que neste caso são as representações
de família nos postais do Foto Bianchi. Arriada e Valle (2015) explicam que
o uso do postal no Brasil se inicia entre o fim do século XIX e as primeiras
décadas do XX, e ressaltam que estes materiais cristalizaram cenas de um
tempo perdido, em que cada gesto que a fotografia petrificou, tem os
cheiros, sons, palavras, sonhos, frustrações, enfim, é parte de um
cotidiano imbricado à múltiplos elementos.

8
Segundo De Pellegrin (2011, p.20) o que identificamos atualmente como a visualidade é muito mais a
trama de múltiplas aparências, de que a simples intersecção de aspectos de um ou outro meio. É esse
universo de hibridização - derivado dos diferentes meios de produção de imagem - que caracteriza a
pintura e a fotografia, configurando um panorama ainda em expansão, sem contornos definidos.
Para pensar estes “elementos”, temos primeiramente que estar
cientes que, tanto eles quanto a própria fotografia, não estão descolados
do seu contexto, tal como nos fala Kossoy (2001). Afinal, quando a
fotografia é composta, há todo um momento próprio da práxis do retrato
em que se integram pessoas, tema fotografado, cenário e representação. 12

Ao olharmos para o material de análise, não podemos nos limitar a uma


observação superficial, focando somente nas famílias ali dispostas, mas
sim, refletir sobre aquilo que a compõe através de um olhar educado,
conforme nos indica Mauad (1996). Esse ‘olhar’ deve pautar-se em críticas
internas (seu conteúdo) e externas (referente às condições de produção),
evitando assim, o risco de solapar da fotografia os seus contextos,
sentidos e significados. Deste modo, para dar um tratamento adequado às
fotografias, utilizaremos de alguns pressupostos metodológicos
estruturados por Mauad (1996) para organizar e orientar quais elementos
serão analisados. Entre eles, podemos citar o signo (simbólico) e a imagem
(natural); plano de conteúdo (recorte temático e temporal) e plano da
expressão (compreensão das opções técnicas e estéticas). As fotografias a
seguir, foram selecionadas no acervo da Casa de Memória, como já
informado.
13

Imagem 01. Mãe e seu filho. Foto Bianchi. (s/d)


Acervo: Casa da Memória – Ponta Grossa - PR.
14

Imagem 02: Mãe, filhas e filho, 1929. Foto


Bianchi.
Acervo: Casa da Memória – Ponta Grossa - PR
15

Imagem 03: Mãe, filha e filho. Foto Bianchi.


Acervo: Casa da Memória – Ponta Grossa – PR
16

Imagem 04. Mãe, filhas e filho, 1928. Foto


Bianchi
Acervo: Casa da Memória – Ponta Grossa - PR

A partir das representações acima, podemos pensar inicialmente


que o perfil fotográfico de famílias (1920-1930) é fruto de mudanças,
tanto na técnica quanto na organização das mesmas em seu bojo de
representação. Isso se deve, segundo Moura (1983), pelo fato de que a
fotografia só adquire prestígio no final do século XIX, anteriormente, as
famílias eram representadas através de pinturas. A busca por eternizar a si
e a instituição familiar é de longa data, todavia, observando os séculos XVI
e XVII, é possível verificar que as imagens de famílias eram carregadas, por
vezes secas, em suas formas e expressões, onde as pessoas posavam
como uma atitude solene, e não simbolizando o laço familiar.
Embora algumas fotografias mantenham estes traços, no século
XX, notamos que as famílias se integravam mais aos estúdios, mostrando-
se menos estáticas e mais doces. Podemos observar isso nas fotografias 17

selecionadas, principalmente nas fotos 2 e 3, em que há maior suavidade


nas expressões. Na foto 2, a mãe e uma das filhas sorriem, enquanto na
fotografia 3, ambos estão sorrindo, deixando uma representação mais
leve dos retratados. Além disso, os próprios fotógrafos passam a adotar
medidas para assegurar a satisfação dos retratados, deixando os ateliês ou
estúdios mais atraentes, com uma aparência de requinte. Em relação aos
estúdios, Santos (2009) destaca que passaram a ser abertos em diferentes
lugares do Brasil, fomentando uma disputa entre pintores e fotógrafos, a
qual vem desde os anos de 1840-42. A tensão entre estas técnicas de
representação visual contribuiu para o desenvolvimento de
procedimentos e tecnologias de retrato, propiciando a democratização
dos preços e acesso ao material fotográfico, inclusive, aos grupos menos
favorecidos, social e economicamente. Desse modo, as fotografias em
estúdios se ampliaram, o que explica o porquê da popularização do Foto
Bianchi, e, por assim dizer, do material selecionado. Outro elemento que
pode ser acrescentado a popularização diz respeito a qualidade técnica de
seus trabalhos, segundo Santos (2009), a técnica era uma arte dificílima e
que exigia habilidade. Afinal, “a prática da fotografia na época pode ser
entendida hoje não apenas como um meio de sobrevivência; mas também
como um processo de criação que envolvia a expressão de sensações e
sentimentos que culminavam na revelação” (SANTOS, 2009, p. 73).
O desejo pelas imagens fotográficas torna-se recorrentes pelas
famílias, pois, conforme expõe Barros (1989), a família era a referência
fundamental de reconstrução do passado, era o objeto fotografado e 18

recordado pelos indivíduos. Noutras palavras, não se tratavam de meras


fotografias, mas de formas de lembrança, recordação e história dos
sujeitos nelas envolvidos. Nesta acepção, Leite (2000) nos elucida sobre
essa mudança no ‘perfil’ da família diante o ato e registro fotográfico,
indicando que a fotografia passa a assumir o caráter de reforçar a
integração do grupo familiar, reafirmando o sentimento de unidade entre
os sujeitos que a compõe e aqueles que a vêem, tanto no que diz respeito
a conversação ou a contemplação do material.
Aponta Santos (2009), que para dar a impressão de harmonia, ou
sentimento familiar, os personagens eram ‘organizados’, ou seja, eram
colocados próximos uns aos outros, numa disposição centralizada a partir
da figura da mulher ou do homem, ou então, do filho ou filha mais
novo(a). Buscava-se destacar a hierarquia e estabilidade do grupo; o que é
possível notar nas fotografias 2 e 3, onde a mãe é colocada na posição
central, com seus filhos e filhas ao redor. Por outro lado, temos a
fotografia 4 que traz o contrário, a menina mais nova está no centro e as
demais irmãs, o irmão e sua mãe estão ao entorno da sua figura, passando
a ideia de continuidade da família. Segundo expõe Santos (2009) esse
estilo de arranjo familiar presente nas fotografias era comum do Foto
Bianchi, pois realçava a hierarquia e estabilidade do grupo.
Nessa ordem de ideias um aspecto que chama atenção, isto é, a
ausência da figura masculina nessas fotografias. Nos exemplares, acima
expostos, nota-se a predominância de mulheres com seus filhos. Não há,
no momento, condições de explicar essa questão, pois trabalhamos com
um pequeno recorte do acervo. Entretanto, podemos abrir espaço para 19

apontar a existência, nesse período, de diferentes padrões de família em


Ponta Grossa, bem como formas de representá-las. O estúdio Foto Biachi
certamente foi visitado por diferentes tipos de família, compostas: por pai,
mãe e filhos, sendo todos retratados; por pai, mãe e filhos, sendo o
membro masculino presente no estúdio, porém, ausente na fotografia por
algum motivo; por viúvas com seus filhos; etc. Independente do tipo de
família representado pelo Foto Biachi vê-se, nos quatro exemplares,
elementos de hierarquização, ambientes e sujeitos preparados.
Outro elemento associado a esse ‘preparo’ está vinculado à
estética dos sujeitos fotografados, em que arrumam os cabelos, utilizavam
as ‘melhores’ roupas e sapatos. Tanto as mulheres quanto as meninas
faziam uso de diversos adereços, como: relógios, colares, anéis, lenços,
chapéus, laços no cabelo e pulseiras; algumas carregavam flores ou suas
bonecas. Estas características são perceptíveis nos materiais selecionados,
pois em todas elas as mulheres e meninas estão utilizando jóias. É
interessante perceber que, em todas as fotografias, as mulheres mais
velhas usam seus vestidos com mangas longas, ao passo que as mais
jovens fazem uso de roupas mais curtas. Inclusive, na fotografia 4, a filha
mais velha está usando um vestido sem mangas. Santos (2009) esclarece
que se trata de um panorama já modificado em relação a moda de uma
geração à outra. De forma geral, é possível verificar pelas roupas a
proximidade entre os períodos em que foram realizadas, como também,
as disparidades sociais. A autora ainda faz um importante apontamento
em relação ao uso de vestidos ou roupas escuras pelas mulheres. Segundo
ela, dava-se quando as mulheres eram idosas ou viúvas, cujo objetivo era 20

demonstrar atitudes consideradas masculinas, tanto nas roupas quanto


nas expressões, como ausência de decotes, feições mais sérias ou severas,
com o corpo levemente voltado para frente, numa postura mais solene,
tal como observamos nas fotografias 1 e 2.
Para pensar um pouco mais sobre o papel feminino na fotografia,
Lima (2013) nos indica que tanto as fotos como os álbuns de família
costumam ser demandas femininas. Isto se deve ao fato de que,
incumbidas de cuidar da casa, das crianças, da limpeza e tudo o que se
encontra para dentro da casa, à elas cabe também, contar a história da
família. Por isso, são responsáveis por escolher os materiais fotográficos,
que serão narrados a cada convidado ou parentes acerca dos significados
e acontecimentos ali representados. Descreve ainda a autora que, não
eram todo ou qualquer momento fotografado, mas sim, aquele específico
e escolhido (em geral, pela mulher), em que a família era retratada de
forma solene. Deste modo, Oliveira (2013) destaca que poderiam ser
casamentos, reuniões familiares, lembranças dos mortos, ou mesmo, para
acompanhar o crescimento dos filhos, onde os papéis sociais são
demarcados e representados: mãe, filhas, filho – no caso das fotografias
selecionadas. Nesta acepção, Leite (2000, p. 95) nos comunica que:
A fotografia é resultante de uma escolha, de uma
ocasião ou de um aspecto das relações da família que,
habitualmente, vem afirmar a continuidade e a
integração do grupo doméstico. A maioria delas
representa grupos de pessoas e muitas incluem
crianças, ou diversas gerações, captando a imagem da
linhagem, às vezes, com grande solenidade. 21

Apontadas estas questões em relação à figura feminina, pretende-


se, a seguir, delinear algumas considerações sobre a presença dos
meninos nestas fotografias. Sendo assim, é possível observar certos
padrões em relação à fotografia. Por exemplo, é comum vermos que as
meninas estão trajando o branco ou roupas com tonalidades claras (cor
que representava a pureza e assumia um aspecto angelical), ao passo que
os meninos, por sua vez, fazem uso do azul, com roupas a estilo
marinheiro ou militar, tal como podemos notar entre as fotografias 1 e 2.
É evidente que estas fotografias são em preto e branco, todavia, o estilo
(cortes, costuras e cor) das roupas mencionadas fazia parte de um padrão,
permitindo deduzir que eram azuis, ou como notamos nas imagens, em
tons escuros.
Outro elemento que pode ser apontado é uso de calças curtas até
os 12 anos, conforme observamos em todas as fotos. Isso se deve ao fato
de que somente após essa idade poderiam vestir calças compridas, explica
Nascimento (2012). Ainda, é importante esclarecer que, entre o fim do
século XIX e início do XX, tanto no Brasil quanto na Europa, era comum
vestir os meninos como as meninas, fazendo uso de vestidos brancos com
gola. O hábito de efeminar os meninos desaparece somente após a
Primeira Guerra Mundial. Isso até os quatro ou cinco anos, passada essa
idade, começavam a utilizar roupas muito próximas à uniformes, trajes de
gala, ou roupas mais simples, como é o caso da fotografia 3, em que o
menino usa uma jardineira. Na foto 4, é possível ver que o menino está
vestindo uma roupa menor do que o tamanho que lhe serviria, talvez pelo 22

fato de ser uma família menos abastada. Assim, supomos que ele
emprestou do estúdio algo que lhe pudesse servir, ou ainda, devido a sua
condição, era comum que ele usasse aquela roupa até sua mãe ter
dinheiro para comprar outras novas e adequadas ao seu tamanho.
Vale frisar que, no que tange as crianças retratadas nas fotografias,
se olharmos para o processo histórico, notamos que nem sempre houve
essa preocupação em representá-las. Conforme nos esclarece Ariès
(1981), os séculos XIX e XX, inauguram uma nova perspectiva em relação
às crianças, em que a família passa a se organizar, se preocupar e dar
importância à elas. Dessa forma, as crianças deixam de lado o antigo
anonimato (fruto dos séculos XVI e XVII), passando a ser reconhecidas e
notadas pela sociedade. Até porque, se trata de um momento de
reconfiguração, onde os pais passam a limitar o número de filhos,
tornando doloroso qualquer perda, modificando, assim, as formas de
tratamento. As crianças não são mais vistas como “mini adultos”, são
vistas enquanto sujeitos que precisam de cuidados.
Refletir sobre essa informação nos leva a duas percepções em
relação às fotografias selecionadas. Uma delas é esse novo olhar sobre as
crianças que interfere nos cuidados em arrumá-las e bem representá-las
esteticamente para o ato fotográfico. A segunda nos direciona para a
circulação e consumo das fotografias, onde as mães utilizam esse material
para oferecer e agradecer as bênçãos adquiridas através do Divino Espírito
Santo.
Mais do que meramente se ‘arrumar’ para a fotografia, os sujeitos
representados se preparavam para eternizar a condição de suas famílias, 23

bem como, os seus papéis sociais dentro daquela instituição. Partindo


deste viés, Leite (2000, p.178) nos fala que:

Podemos observar também que outros fatores levam


a percepção de que os retratados se preparavam para
uma pose da qual gostariam que fossem lembrados e
a memória fosse preservada, quando “(...) Este
transparece pela indumentária, pelos arranjos de
cabelo, bigodes e barbas, pelos objetos, pelos lugares
escolhidos e até pelas expressões faciais e corporais
mais freqüentes”.

Neste sentido, os estúdios eram de suma importância para


fotografar as famílias. Devemos lembrar que poucos possuíam câmera
fotográfica. Além disso, ser fotografado em estúdio era compreendido
como um evento, onde o cenário’ se caracteriza como um espaço de
“fábrica de ilusão”, conforme expõe Nascimento (2002), pois continha
diversos apetrechos para serem emprestados aos clientes. Para tanto,
Borges (2008) descreve que a montagem desse cenário variava conforme
o desejo de auto representação do seu público, onde poderia ter:
réplicas de tapetes persas, cortinas de veludo e
brocado, almofadas decoradas, panos de fundo
pintados com cenas rurais e/ou urbanas, roupas de
gala, instrumentos musicais, bengalas, sombrinhas de
seda etc., eram disponibilizados aos clientes
interessados em atribuir realidade a seus sonhos e
desejos. Transvestidos de nobre e burgueses, esses
homens e mulheres não conseguiam, como nos
lembra Fabris, escamotear sua origem socioeconômica
(BORGES, 2011, p. 51).
24

Na fotografia 1, podemos observar que se dá destaque ao tapete,


a flor que a mulher carrega e o aparador em que o menino está sentado,
ou seja, houve a preocupação em harmonizar a família com o cenário. Já
na fotografia 2, embora a mãe e uma das filhas estejam sentadas, não há
grande destaque para as cadeiras. Por outro lado, além do uso do tapete,
há também uma cesta de flores ao lado do menino e um quatro ao fundo,
no lado esquerdo, tendo como objetivo, deixar o registro mais belo. As
fotografias 3 e 4 apresentam a mesma cortina e o uso do mesmo banco,
conforme podemos observar através dos pés do mesmo. O uso deste tipo
de assento possibilita as mulheres sentarem sem prejuízo aos seus
vestidos, além, é claro, de oferecer conforto aos fotografados, nos
informa Santos (2009). Nenhuma destas fotos utiliza o tapete que compõe
as fotos anteriores, talvez pela condição financeira, pois estes apetrechos
podiam estar vinculados ao poder aquisitivo, em que quanto maior o
status social, maior seria o requinte deste cenário. Cabe ressaltar também,
que o uso das flores nas fotografias 1 e 2, dialogam com a ideia de que
elas sinalizavam a pureza do ar, indicando também, a presença feminina,
afinal, as mulheres eram constantemente comparadas às flores, explica a
pesquisadora Santos (2009).
A importância dada a estes elementos se deve a uma preocupação
do retratado, seja ele homem ou mulher, o qual idealiza o “belo”. Por isso,
não é à toa o cuidado com os detalhes que compõe o visual da fotografia
na produção da pose. Nascimento (2002, p.50) argumenta que “a pose tira
de nós parte da essencial natural de quem somos”, portanto, quando nos 25

encontramos diante de uma câmera, é um compromisso nos


apresentarmos da melhor maneira possível. A pose artificial, ou não, é um
atestado de presença e de valores de um determinado contexto histórico.
Ao posar para uma fotografia, fabricamos instantaneamente um outro
corpo, metamorfoseando-se para uma imagem, como bem coloca Barthes
(1984).
Para além do “belo”, a pose também foi uma preocupação sobre a
qualidade da fotografia, pois, inicialmente, para capturar o referente
através do processo daguerreotipo, era preciso que ele permanecesse
imóvel por quinze minutos para garantir a nitidez da imagem, do
contrário, sairia “borrada”, explica Camera (2006). Inclusive, foram
inventados “aparelhos de pose” que serviam para apoiar a cabeça e fixar o
corpo durante as sessões de retrato. A autora expõe que isso perdurou
até o fim do século XIX, uma vez que com o advento dos processos
fotográficos, tais aparelhos foram sendo deixados de lado. Outro ponto
ressaltado pela autora, que permite pensar a pose diz respeito ao formato
do material fotográfico, afinal, com a popularização do carte de visite, em
que a pose é caracterizada de corpo inteiro, contemplando o cenário
montado em estúdio. Nesta acepção, essa padronização da pose
fotográfica serve para representar o referente, seus acessórios e roupas,
indicando sua condição econômica e social, isto é, “a ostentação, a
estabilidade e a legitimidade da sociedade burguesa” (CAMERA, 2006, p.
34).
Muaze (2006) complementa que:
26
O ato de posar diante da objetiva de um fotógrafo
estabelecia uma negociação entre retratista e
retratado. A escolha da pose a ser perenizada era,
portanto, realizada por esses dois sujeitos envolvidos
na cena fotográfica. Ao primeiro, cabia o
conhecimento técnico: buscar do melhor ângulo,
iluminação, enquadramento, foco, nitidez e
harmonização dos planos, segundo padrões estéticos
ainda ligados às artes plásticas. Já o cliente, este
deveria livrar-se das preocupações cotidianas e
concentrar-se naquele momento único. Os objetos do
cenário e os fundos fornecidos pelo estúdio eram
escolhidos de modo a criar a atmosfera desejada. A
indumentária, em geral, pertencia àquele que
contratava os serviços. [...] O gesto, a expressão facial,
a direção do olhar, assim como os objetos pessoais e
os penteados eram calculados para produzirem uma
imagem condizente com os símbolos da classe com a
qual gostaria de ser identificado. Portanto, posar
diante da câmera era um ato de ‘invenção de si’, no
qual biografado (retratado) e biógrafo (retratista)
usavam seus atributos a fim de transformar em
realidade revelada sobre o papel o emulsionado o tipo
de representação social desejada (MUAZE, 2006, p.
76-77)

Sendo assim, quando olhamos para o material selecionado,


percebemos que as poses, os arranjos, as roupas, as disposições entre as
pessoas, o local da foto, todos estes elementos fazem parte de um
simulacro, em geral, orquestrada pelo fotógrafo, que atua como
representador das práticas e representações presentes nas imagens. Para
melhor entender esta proposição, podemos utilizar o que nos fala Chartier
(1991), pois meio da representação, somos levados a perceber que o 27

mundo social é uma produção, assim como a realidade que, mesmo sob o
ópio da contradição, produz uma configuração intelectual múltipla. Cabe
salientar ainda, que esta perspectiva perpassa as práticas que possibilitam
conhecer e reconhecer uma identidade social, sua maneira de ser no
mundo e significar simbolicamente, ou seja, “marca de modo visível e
perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe” (CHARTIER,
1991, p. 183).

FOTOGRAFIA E RELIGIOSIDADE POPULAR: PAGAMENTO DE PROMESSAS


E AGRADECIMENTO AO DIVINO ESPÍRITO SANTO
Até aqui, ficou claro que cada fotografia se constitui de significados
e usos diferenciados. Walter Benjamin (1955) explica que a facilidade de
produção e reprodução das imagens que o advento da modernidade
trouxe implica pensar as diferentes funções e usos que dela se fazem. As
fotografias, devido ao desenvolvimento técnico, podem ser reproduzidas
várias vezes e utilizadas em diferentes contextos. Elas perfilham em
álbuns de família, mas podem ser empregadas para o estreitamento de
laços familiares através do envio por correspondência a parentes e
amigos, bem como podem ser utilizadas em jornais, revistas, lápides,
livros, etc.
Também podem ser encontradas em lugares sagrados como
igrejas e ambientes marcados pela religiosidade popular. Esse é o caso das
fotografias aqui expostas, uma vez que foram utilizadas como forma de
pagamento de promessas ou agradecimento a um milagre alcançado pelo
Divino Espírito Santo. No verso da imagem 01, por exemplo, verificamos 28

que Maria Benta Antunes da Rosa ofereceu seu “retrato ao Divino Espírito
Santo, em louvor de uma promessa”, no qual figura com seu filho,
Antoninho. Segundo inscrição no verso da imagem 02, Anna R. dos Santos,
ofereceu uma fotografia em que está retratada com seus filhos, “ao
milagroso Divino Espírito Santo”. No verso da imagem 03, Maria Reis e
Saul ofereceu ao Divino “em ação de graças e promessa”, uma fotografia
em que ela está retratada com seus filhos.
O oferecimento das fotografias e suas inscrições, feitas de próprio
punho pelos devotos, ou por pessoas próximas, exprimem a crença dos
sujeitos retratados no milagre, são objetos portadores de sentido. Esses
documentos revelam que uma intercessão divina foi alcançada pelo
devoto. Podemos destacar, com a ajuda de Debray (1994, p. 33), que elas
são testemunhas da coexistência entre o humano e o sagrado, pois a
imagem é na origem e por função, “mediadora entre os vivos e os mortos,
os seres humanos e os deuses; entre uma continuidade e uma cosmologia;
entre uma sociedade de sujeitos visíveis e a sociedade das forças invisíveis
que os subjugam”. Tanto é que em algumas inscrições é possível perceber
a demonstração de um vínculo entre o humano e o Divino, estabelecido
pelo devoto. Um exemplo disso é quando o devoto o denomina de
padrinho, como fez Julieta M. José Peixoto, moradora da cidade de Ponta
Grossa. Essa devota dedicou à fotografia, na qual figura com seus filhos,
com a seguinte inscrição: “Ao meu querido padrinho Divino Espírito Santo
eu offereço a minha photographia” (verso da imagem 04).
O oferecimento dessas oferendas é uma tradição amplamente
disseminada na sociedade. Abreu (2005) explica que essas práticas eram 29

comuns entre pagãos, “assimilados pelos cristãos por volta do século IV e,


desde então, passaram a representar a crença no milagre”. As formas de
“representar as ofertas votivas se mantiveram ao longo do tempo,
permitindo que se fale de uma tradição de longa duração, ocorrendo à
substituição das divindades pagãs pelas do catolicismo”. No período
moderno essas formas de representação se difundiram por toda a Europa,
havendo inúmeros santuários em que essas ofertas eram expostas. Em
Portugal também “foram inúmeros os santuários erigidos para as ofertas
votivas, sendo os portugueses os responsáveis pela difusão dessa tradição,
ligada ao catolicismo no Brasil” (ABREU, 2005, p. 199). São exemplos
dessas práticas o depósito de objetos em santuários e igrejas como, por
exemplo, fios de cabelo, reproduções de partes do corpo humano em
gesso, madeira, bilhetes, fitas, lenços, bem como as fotografias o que a
historiografia denomina de ex-votos.
Importante destacar que essas fotografias se inserem no contexto
doa primeira metade do século XX, marcado pela praticidade da vida
moderna e a popularização das máquinas fotográficas. Com o
desenvolvimento tecnológico, o depósito de fotografias em igrejas e
santuários como agradecimento e pagamento de promessas foi dividindo
espaço com os ex-votos. As fotografias superam a quantidade de objetos
lá depositados, que pode ser um reflexo do contexto sócio espacial de
Ponta Grossa, na primeira metade do século XX, ou seja, com estúdios
fotográficos a disposição da população.
Esses objetos, entre eles as fotografias, não são um fim em si, mas
um meio de defesa, de cura, ou seja, um meio de sobrevivência utilizado 30

por essas pessoas. Integra “a cidadela na ordem natural, ou o indivíduo na


hierarquia cósmica, ‘alma do mundo’ ou ‘harmonia do universo’. Esses
objetos comprovam o triunfo da vida (DEBRAY, 1994, p. 330. Trata-se do
modo como uma determinada população desenvolveu estratégias para
estar no mundo e resolver seus problemas. Nessa ordem de ideias, como
observamos até aqui, boa parte dessa população de Ponta Grossa e
arredores da cidade, recorreram ao Divino Espírito Santo. Esse culto teve
origem a partir de uma promessa feita, no século XIII, pela Rainha Isabel
de Aragão, quando Portugal passava por uma crise. Em agradecimento ao
Espírito Santo, a Rainha promoveu uma festa em sua homenagem, que
passou a se repetir todos os anos. Essa devoção foi introduzida no Brasil,
primeiramente no litoral da região onde hoje se encontra os estados de
“Santa Catarina e Rio Grande do Sul, na primeira metade do século XVIII.
Gradativamente foi se propagando por todo território nacional e
ganhando características singulares” (ROCHA, 2014, p. 1737).
Em Ponta Grossa, esse culto teve início no ano de 1882, quando
Maria Julia Cesário Xavier encontrou em um olho d’água uma imagem do
Espírito Santo, isto é, uma pomba de asas abertas. Dona Maria possuía
problemas mentais e falta de memória, ela estava perdida na região dos
campos gerais e ao encontrar a imagem rezou e sentiu-se curada,
recobrando a memória e conseguindo voltar para sua residência. A notícia
de sua cura se espalhou e, a partir de então, ela ficou conhecida como
Nhá Maria do Divino. Com o tempo, D. Maria começou a “recolher
quadros de diferentes santos e acabou construindo em uma das salas de
sua casa um altar, que recebeu um ostensório onde fica exposta até hoje a 31

imagem do Divino” (JOHANSEN, 2015, p. 03). O local passou a ser


frequentado, inicialmente, por amigos, familiares e devotos mais
próximos. Mesmo após da morte de D. Maria, em 1917, a Casa e o culto
ao Divino continuaram sendo mantidos. Com o passar do tempo o espaço
passou a ser frequentado por devotos de diferentes regiões, sendo um
lugar de todos, compartilhado por devotos de todas as camadas sociais.
Trata-se de um lugar que resguarda recordações de fé, de emoção e
gratidão, documentando em fotografias as necessidades dos seres
humanos que lá se concentram para pagar suas promessas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar, reiteramos que o uso de fotografias para a


construção do conhecimento histórico implica em observá-las para além
da simples imagem. Não se trata de elementos secundários de análise,
elas são documentos que revelam tramas, sendo necessário um aporte
teórico-metodológico para sua análise. É fundamental, por exemplo,
traçar a biografia da fotografia, isto é, os sujeitos envolvidos com a
produção, qual a procedência desse documento, qual sua circulação, etc. É
necessário atentar para os meios técnicos de sua produção; não recortá-
las do contexto histórico-geográfico em que foram produzidas. Em uma
fotografia, que é um documento de expressão, encontra-se a integração
entre o biógrafo (fotógrafo), o biografado (fotografado), técnicas, tema
fotografado e cenário culminando numa representação. Nesse documento
nada é gratuito, a pose, os acessórios, as vestimentas, a distribuição dos 32

sujeitos pelo cenário, são dotados de intenções e através desses


elementos representa-se algo desejado.
Mais que isso, através do circuito de circulação, do uso que as
pessoas fizeram desses documentos, é possível observar as necessidades,
as angústias de uma determinada coletividade, na primeira metade do
século XX, bem como a forma que essa coletividade resolvia seus
problemas. Muitos procuravam auxílio, como vimos, ao Divino Espírito
Santo, buscando através da fotografia uma mediação entre seres
humanos e os deuses. Através do culto ao Divino Espírito Santo e do
oferecimento de ex-votos é possível desvendar como uma dada população
percebe e compreende sua sociedade e sua própria história, como
organiza e atua no mundo em que vive, conforme explica Chartier (1991).
Como última análise, podemos destacar que, sem dúvida, as
questões aqui levantadas captam apenas parte de um conjunto bem mais
complexo. Essas considerações engendram futuras abordagens, bem
como a necessidade de explorar mais a fundo o Acervo Casa do Divino.
Trata-se de um rico material sobre a imbricada relação entre a população,
seu contexto sócio-cultural e a religiosidade, que muito pode contribuir
para o conhecimento histórico. Que essas páginas possam colaborar nesse
processo e que novas discussões sejam realizadas.
REFERÊNCIAS
ABREU, J. L. N. Difusão, produção e consumo das imagens visuais: o caso
dos ex-votos mineiros do século XVIII. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 25, nº 49, p. 197-214 – 2005. 33

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

ARRIADA, E.; VALLE, H.S. Fragmentos da modernidade em Rio Grande: a


contribuição dos cartões postais (1902-1930). História e Perspectivas.
Uberlândia (52): 159-177, jan/jun. 2015.

BARROS, M. M. L. de. Memória e família. Estudos Históricos. Rio de


Janeiro. v. 2, nº. 3, p. 29-42, dez. 1989.

BARTHES, R. A Câmara clara. São Paulo: Nova Fronteira, 1984.

BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica,


1955.

BORGES, M. E. L. História & Fotografia. In: Coleção História & Reflexões.


Belo Horizonte: Autêntica, v.4, 2008.

CAMERA, P. A trajetória da fotografia no salão paranaense: uma visão a


partir da construção social da tecnologia fotográfica. Dissertação
(Mestrado em Tecnologia). Universidade Tecnológica Federal do Paraná,
Curitiba, 2006.

CARVALHO, V. C. de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na


perspectiva da cultura material - São Paulo, 1870-1920. São Paulo:
Edusp\Fapesp, 2008.

CHARTIER, R. O mundo como representação. In: Estudos Avançados, 11


(5), 1991.
DEBRAY, R. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no Ocidente.
Petrópolis: Editora Vozes, 1994.

DE PELLEGRIN, R.; GOMES, P. C. Fotografia e pintura: aspectos da


representação na visualidade contemporânea, Seminário de História da
Arte, n.1 , 2011.
34

FABRIS, A. Usos e funções da fotografia no século XIX. São Paulo: Edusp,


1992.

JOHANSEN, E. Casa do Divino: a construção da territorialidade de um


patrimônio cultural. II Congresso Internacional de História UEPG-
UNICENTRO. Produção e Circulação do Conhecimento Histórico no século
XXI, 2015.

KOSSOY, B. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê, 2001.

LEITE, M. M. Retratos de família: Leitura da fotografia histórica. São


Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

LIMA, S. Tratamento de fotografias em acervos museológicos. Disponível


em www.labhoi.uff.br/.../oficina_do_labhoi_-_no_1_-
_tratamento_de_fotog.

LIMA, B.K.M. A fotografia de família como prática profissional: em busca


de diálogos estéticos. Monografia (Bacharelado em Comunicação Social).
Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, 2013.

LIPINSKI, K.; JANZ Jr, D. C. História e arte nas fotografias do “Foto Bianchi”,
Revista Mídia e Contexto. Volume II – nº 03 (jan/jul 2015)

MAUAD, A. M. Através da imagem: Fotografia e História Interfaces.


Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1 n. 2, 1996, p. 73-98.
Disponível em: http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg2-
4.pdf
MENESES, U. T. B. Rumo a uma “História Visual”. In: MARTINS, J. S.;
ECKERT, C.; NOVAES, S. C. (orgs.). O imaginário e o poético nas ciências
sociais. São Paulo: Edusc, 2005.

MOURA, C. E. M. de (Org.). Retratos quase inocentes. São Paulo: Nobel,


1983.
35
MUAZE, M. A. F. Os guardados da viscondessa: fotografia e memória na
coleção Ribeiro de Avellar. Anais do Museu Paulista. São Paulo,
n.Sét.v.14.n.2p.73-105.jul.-dez. 2006.

NASCIMENTO, S.V.S. A criança na fotografia: o retrato da infância na


primeira metade do século XX em Belém do Pará (1900 a 1950).
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Pará,
2012.

OLIVEIRA, V.G.S. Páginas de lembranças: uma análise de álbuns de família


nos sertões baianos. In: Revista Brasileira da História da Mídia. N. 2, vol.
2, 2013.

SANTOS, F. L. A mulher nas fotografias de grupos familiares na cidade de


Ponta Grossa, 1910-1940. Revista de História Regional, v. 14, n. 1, 2009.

_______. Luis Bianchi e as Práticas do Italiano no Brasil: fotografia,


profissão do imigrante. Revista Domínios da Imagem, n. 11, 2012;

ROCHA, V. P. Os festejos em honra ao Divino em Ponta Grossa. XIV


Encontro Regional de História. 50 anos do Golpe Militar no Brasil.
Universidade Estadual do Paraná, Campo Mourão, 2014.

Você também pode gostar