uma, ou poucas gerações, somente poderá sobreviver ao se transformar em cultura, ou aquilo que reconhecemos como o conhecimento acumulado de relações inter-humanas que pode ser aperfeiçoado na transmissão geracional.
Apesar do longo percurso, as artes marciais ainda
carecem desse alicerce cultural que, aos poucos e lentamente, vai se formando. É que, mesmo milenares, em sua existência primordial estiveram a serviço da guerra. É recente sua versão educacional, e ainda mais próxima a difusão pelo planeta.
Para o construto cultural, além da identificação e
reforço dos alicerces em que o movimento se acha fundado, é necessária a formação de instrutores, professos e mestres, aos quais cabe o exercício da difusão, e nestes inocular a preparação à altura do desafio que, frequentemente, não têm consciência de que deverão enfrentar.
Somente assim as grandes escolas filosóficas, as
religiões – em especial a monoteístas –, as linhas de pensamento de todos os matizes, deixaram a expressão isolada de poucos e por curto interregno de tempo, para se lançar à grandeza de ícones do pensamento milenar, que não perde a força mesmo com o transcorrer do tempo, e constantemente se reinventa. Lá, como aqui, o papel dos difusores é da mais alta relevância, tão primordial que, sem eles, o próprio fenômeno se desvanece, e, finalmente, desaparece.
O problema está na qualidade desse material
humano, ainda que, seja necessário reconhecer, conheça-se de esforços para melhorá-lo, formá-lo à razão do papel que dele se espera.
Nas artes marciais, até muito recentemente, o
instrutor ou professor apresentava-se figura remanescente de sua atividade esportiva. Em seu tempo, fora competidor com maior ou menor êxito, que por isso abraçou à profissão, dedicando-se, depois, à ensinança como consequência natural da atividade escolhida, sem, contudo, dispor da preparação adequada a essa tarefa que, em si, revela-se mais complexa do que absorver técnicas para o fim de executá-las como maior ou menor proficiência.
Ensinar, é importante reconhecer, situa-se em
patamar várias vezes mais elevado do que o ato de executar técnicas, ainda que o praticante e competidor possa executá-las, mercê de suas habilidades naturais, com grande exatidão e surpreendente eficiência.
E os raros praticantes dotados de inusual capacidade
física, dentre os quais são extraídos os competidores, têm sem seu desfavor a baixa compreensão da dificuldade que a maior parte dos demais enfrenta na elaboração mental e, depois, na execução das mais variadas técnicas, que exigem exercícios motores da mais alta complexidade, sendo esta – a complexidade – a própria a razão de ser do movimento conhecido como “artes marciais” em sua consolidação filosófica e educacional. Ser professor, nessa perspectiva, exige, acima de tudo, a empatia com o aluno e seu universo físico e psíquico. Deve o professor, antes de tudo, se pôr no lugar de quem aprende, compreendendo a dificuldade como se fosse com ele, algo especialmente difícil àqueles que já detêm o conhecimento técnico e motor e que podem estar exclusivamente preocupados em demonstrá-lo.
Essa consciência, para muito além do aspecto
esportivo que requer altíssima eficiência e tem por objetivo a vitória sobre o outro, é particularmente difícil ao praticante naturalmente proficiente que ocasionalmente se fez professor.
Exige-se profunda mudança de mentalidade, algo
somente possível por ação continuada da cultura, e por gerações. Não será mais o objetivo da prática exibir movimentos dificílimos, inexequíveis à maioria dos seres andantes, mas entender o limite de cada um e verificar o gradiente no aprendizado.
Explico-me: mesmo que a expressão mais vistosa das
artes marciais seja os atletas vitoriosos, por isso mesmo dotados de capacidades excepcionais, fruto de uma espécie de darwinismo esportivo, no qual somente os mais aptos vencem, no plano do aprendizado, e da vida mesma, recolhem melhores e mais saborosos frutos os menos aptos, quando é possível dar-lhes, pela prática e inoculação cultural, significativo gradiente de melhora, na ação técnica e na vida.
Quanto maior a dificuldade do praticante, ainda que
comprometidos os resultados em comparação com os demais, mais relevante poderá ser sua melhora ou progresso, que não se deve medir pelos discretos resultados de suas execuções à vista dos outros, mas na comparação com ele mesmo. Esse o verdadeiro desafio da educação: dar aos menos aptos melhor condição. Os mais aptos realizam-se em si mesmos, por vezes em condição superior a seus preceptores ou professores.
O desafio não é de pouca monta, muito ao contrário:
deve o professor, ou o instrutor, primeiro compreender que a inexecução do aluno não representa qualquer menoscabo a quem ensina, mas característica própria do ensinando. Significa involuntária provocação ao professor em demonstrar capacidade muito além da arte de executar movimentos. Significa convite à interação profunda com quem aprende, injetando-lhe os elementos de ânimo e confiança para vencer às dificuldades que experimenta, independentemente de até onde pode chegar.
Para quem aprende, e enfrenta maiores ou menores
dificuldades, projetar-se além do limite do que para ele é possível, nada mais representa, por objetivamente inexequível, do que desestímulo para com o aprendizado. Nesse mister, surge a mais pronunciada virtude do professor: a paciência.
E não se confunda, por favor, paciência com niilismo,
ou a incapacidade do observador em se envolver com o quê ou quem observa. Ao contrário, na paciência está intrínseco o esforço máximo do professor, que deve compreender os limites do aluno, dele exigindo aquém dessa fronteira, mas com suficiente exigência e dificuldade a ponto de o aluno sentir-se desafiado a vencer os limites que o aprisionam.
Não se trata de conduta passiva ou alienada, mas de
atividade mental intensa, e transcendente. Estará o professor plantando no aluno as sementes daquilo que será após o aprendizado. Essa conduta mental em muito ultrapassa o conhecimento da técnica que empírica ou cartesianamente o professor sabe dominar. Esse domínio, maior ou menor, está sempre aquém do ato de ensinar, que envolve, por certo, a compreensão do conteúdo ensinado, mas especialmente a dimensão e expressão que o ensinamento adquire na pessoa do outro: o aluno.
O dilema, da mais alta relevância, adquire feições
dramáticas no ensino das artes marciais. No ensino convencional, por vezes pela expressão facial do aluno, ou mesmo por esparsas indagações em classe a ele dirigidas, o professor não pode aferir o grau de transmissão e apreensão do conhecimento, apenas possível ao tempo da prova ou do exame, quando já é tarde demais para correções, senão para a reprovação.
No ensino das artes de expressão física, como as
marciais, o conteúdo apreendido é exibido pelo aluno instantaneamente, depois de exposto pelo professor, cabendo a este enfrentar, também ao mesmo tempo, o resultado da inexecução do movimento ensinado, parcial ou total.
Naquele gesto, ou na compreensão que externar, o
professor marcará, no espírito do aluno, e para sempre, a perspectiva que ele tem de si mesmo, e, por consequência, o grau de progresso que poderá experimentar. Ali, naquele átimo, naquele estreitíssimo momento, traça-se o futuro da aventura educacional entre professor e aluno, se proveitosa e frutuosa, ou frustrante e negativa.
A paciência surge como elemento fundacional dessa
relação, cabendo ao professor, estando ele no seu ambiente e no exercício de seu mister, muito mais do que ao aluno, pacientemente montar o complexo quebra-cabeça que representa a personalidade de cada um dos seus, dando-lhe e exigindo-lhe aquilo que for compatível com essa compreensão; nem mais, nem menos.