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A prática no Dojō e a virtude da paciência.

Fernando Malheiros Filho

Todo o movimento humano que aspira transcender


uma, ou poucas gerações, somente poderá sobreviver ao se
transformar em cultura, ou aquilo que reconhecemos como o
conhecimento acumulado de relações inter-humanas que pode ser
aperfeiçoado na transmissão geracional.

Apesar do longo percurso, as artes marciais ainda


carecem desse alicerce cultural que, aos poucos e lentamente, vai se
formando. É que, mesmo milenares, em sua existência primordial
estiveram a serviço da guerra. É recente sua versão educacional, e
ainda mais próxima a difusão pelo planeta.

Para o construto cultural, além da identificação e


reforço dos alicerces em que o movimento se acha fundado, é
necessária a formação de instrutores, professos e mestres, aos quais
cabe o exercício da difusão, e nestes inocular a preparação à altura
do desafio que, frequentemente, não têm consciência de que deverão
enfrentar.

Somente assim as grandes escolas filosóficas, as


religiões – em especial a monoteístas –, as linhas de pensamento de
todos os matizes, deixaram a expressão isolada de poucos e por curto
interregno de tempo, para se lançar à grandeza de ícones do
pensamento milenar, que não perde a força mesmo com o
transcorrer do tempo, e constantemente se reinventa.
Lá, como aqui, o papel dos difusores é da mais alta
relevância, tão primordial que, sem eles, o próprio fenômeno se
desvanece, e, finalmente, desaparece.

O problema está na qualidade desse material


humano, ainda que, seja necessário reconhecer, conheça-se de
esforços para melhorá-lo, formá-lo à razão do papel que dele se
espera.

Nas artes marciais, até muito recentemente, o


instrutor ou professor apresentava-se figura remanescente de sua
atividade esportiva. Em seu tempo, fora competidor com maior ou
menor êxito, que por isso abraçou à profissão, dedicando-se, depois,
à ensinança como consequência natural da atividade escolhida, sem,
contudo, dispor da preparação adequada a essa tarefa que, em si,
revela-se mais complexa do que absorver técnicas para o fim de
executá-las como maior ou menor proficiência.

Ensinar, é importante reconhecer, situa-se em


patamar várias vezes mais elevado do que o ato de executar técnicas,
ainda que o praticante e competidor possa executá-las, mercê de
suas habilidades naturais, com grande exatidão e surpreendente
eficiência.

E os raros praticantes dotados de inusual capacidade


física, dentre os quais são extraídos os competidores, têm sem seu
desfavor a baixa compreensão da dificuldade que a maior parte dos
demais enfrenta na elaboração mental e, depois, na execução das
mais variadas técnicas, que exigem exercícios motores da mais alta
complexidade, sendo esta – a complexidade – a própria a razão de
ser do movimento conhecido como “artes marciais” em sua
consolidação filosófica e educacional.
Ser professor, nessa perspectiva, exige, acima de
tudo, a empatia com o aluno e seu universo físico e psíquico. Deve o
professor, antes de tudo, se pôr no lugar de quem aprende,
compreendendo a dificuldade como se fosse com ele, algo
especialmente difícil àqueles que já detêm o conhecimento técnico e
motor e que podem estar exclusivamente preocupados em
demonstrá-lo.

Essa consciência, para muito além do aspecto


esportivo que requer altíssima eficiência e tem por objetivo a vitória
sobre o outro, é particularmente difícil ao praticante naturalmente
proficiente que ocasionalmente se fez professor.

Exige-se profunda mudança de mentalidade, algo


somente possível por ação continuada da cultura, e por gerações.
Não será mais o objetivo da prática exibir movimentos dificílimos,
inexequíveis à maioria dos seres andantes, mas entender o limite de
cada um e verificar o gradiente no aprendizado.

Explico-me: mesmo que a expressão mais vistosa das


artes marciais seja os atletas vitoriosos, por isso mesmo dotados de
capacidades excepcionais, fruto de uma espécie de darwinismo
esportivo, no qual somente os mais aptos vencem, no plano do
aprendizado, e da vida mesma, recolhem melhores e mais saborosos
frutos os menos aptos, quando é possível dar-lhes, pela prática e
inoculação cultural, significativo gradiente de melhora, na ação
técnica e na vida.

Quanto maior a dificuldade do praticante, ainda que


comprometidos os resultados em comparação com os demais, mais
relevante poderá ser sua melhora ou progresso, que não se deve
medir pelos discretos resultados de suas execuções à vista dos
outros, mas na comparação com ele mesmo.
Esse o verdadeiro desafio da educação: dar aos menos
aptos melhor condição. Os mais aptos realizam-se em si mesmos,
por vezes em condição superior a seus preceptores ou professores.

O desafio não é de pouca monta, muito ao contrário:


deve o professor, ou o instrutor, primeiro compreender que a
inexecução do aluno não representa qualquer menoscabo a quem
ensina, mas característica própria do ensinando. Significa
involuntária provocação ao professor em demonstrar capacidade
muito além da arte de executar movimentos. Significa convite à
interação profunda com quem aprende, injetando-lhe os elementos
de ânimo e confiança para vencer às dificuldades que experimenta,
independentemente de até onde pode chegar.

Para quem aprende, e enfrenta maiores ou menores


dificuldades, projetar-se além do limite do que para ele é possível,
nada mais representa, por objetivamente inexequível, do que
desestímulo para com o aprendizado. Nesse mister, surge a mais
pronunciada virtude do professor: a paciência.

E não se confunda, por favor, paciência com niilismo,


ou a incapacidade do observador em se envolver com o quê ou quem
observa. Ao contrário, na paciência está intrínseco o esforço máximo
do professor, que deve compreender os limites do aluno, dele
exigindo aquém dessa fronteira, mas com suficiente exigência e
dificuldade a ponto de o aluno sentir-se desafiado a vencer os limites
que o aprisionam.

Não se trata de conduta passiva ou alienada, mas de


atividade mental intensa, e transcendente. Estará o professor
plantando no aluno as sementes daquilo que será após o
aprendizado.
Essa conduta mental em muito ultrapassa o
conhecimento da técnica que empírica ou cartesianamente o
professor sabe dominar. Esse domínio, maior ou menor, está sempre
aquém do ato de ensinar, que envolve, por certo, a compreensão do
conteúdo ensinado, mas especialmente a dimensão e expressão que
o ensinamento adquire na pessoa do outro: o aluno.

O dilema, da mais alta relevância, adquire feições


dramáticas no ensino das artes marciais. No ensino convencional,
por vezes pela expressão facial do aluno, ou mesmo por esparsas
indagações em classe a ele dirigidas, o professor não pode aferir o
grau de transmissão e apreensão do conhecimento, apenas possível
ao tempo da prova ou do exame, quando já é tarde demais para
correções, senão para a reprovação.

No ensino das artes de expressão física, como as


marciais, o conteúdo apreendido é exibido pelo aluno
instantaneamente, depois de exposto pelo professor, cabendo a este
enfrentar, também ao mesmo tempo, o resultado da inexecução do
movimento ensinado, parcial ou total.

Naquele gesto, ou na compreensão que externar, o


professor marcará, no espírito do aluno, e para sempre, a
perspectiva que ele tem de si mesmo, e, por consequência, o grau de
progresso que poderá experimentar. Ali, naquele átimo, naquele
estreitíssimo momento, traça-se o futuro da aventura educacional
entre professor e aluno, se proveitosa e frutuosa, ou frustrante e
negativa.

A paciência surge como elemento fundacional dessa


relação, cabendo ao professor, estando ele no seu ambiente e no
exercício de seu mister, muito mais do que ao aluno, pacientemente
montar o complexo quebra-cabeça que representa a personalidade
de cada um dos seus, dando-lhe e exigindo-lhe aquilo que for
compatível com essa compreensão; nem mais, nem menos.

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