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BIZÂNCIO

Katerina Yerodiakonou

Costumeiramente os estudiosos falantes do grego de Bizâncio, a parte oriental do


Império romano, que não havia sido devastada nas invasões bárbaras do século V, são
elogiados por sua diligência em copiar um grande número de textos filosóficos da Antiguidade,
dando assim uma incalculável contribuição para a preservação e transmissão desses textos
para as gerações vindouras. Esquece-se com frequência, contudo, que em Bizâncio as obras dos
filósofos antigos foram arduamente copiadas a fim de serem estudadas, comentadas e
utilizadas com propósitos pedagógicos. Há ampla evidência de que, pelo menos desde o século
IX até a queda de Constantinopla em 1453, os bizantinos se empenharam fervorosamente em
um diálogo com diferentes tradições da filosofia da Antiguidade. Deste diálogo resultou a
composição de muitas obras filosóficas de variados gêneros, incluindo paráfrases, comentários
extendidos, comentários na forma de questões e respostas, pequenos manuais, tratados sobre
tópicos específicos, às vezes na forma de diálogos, e cartas e discursos com conteúdo
filosófico1.

A filosofia em Bizâncio foi, sem dúvida, influenciada pelas antigas doutrinas filosóficas
gregas, as, quais, no fim das contas, proporcionavam aos bizantinos tanto uma estrutura
teórica bem articulada como uma sofisticada linguagem filosófica; apesar disso, o seu caráter
não poderia deixar de ser influenciado também pela fé cristã, na qual os pensadores bizantinos
estavam profundamente imersos. Assim, eles liam e criticavam os textos filosóficos antigos à
luz de suas crenças cristãs e com o propósito de ou rejeitar as opiniões pagãs ou tentar
incorporá-las ao plano cristão. Na verdade, a conexão entre as obras filosóficas bizantinas e a
teologia é admitidamente tão forte que, nos anos recentes, isso se constituiu numa base para
um questionamento sério a respeito da autonomia da filosofia bizantina2. Contudo, Mesmo
que os pensadores bizantinos estivessem preocupados com problemas que surgiam no
contexto de uma tradição teológica cristã e mesmo que suas preocupações teológicas
estivessem em primeiro plano em suas obras filosóficas, há ainda casos abundantes nos quais
os bizantinos discutiam genuínas questões filosóficas que os intrigavam em si mesmas, isto é,
questões que poderiam ser de interesse de qualquer filósofo, independente de sua crença
religiosa.

Além disso, alguns filósofos bizantinos, especialmente João Ítalo no século XI, não
aprovavam a ideia segundo a qual a filosofia devia ser considerada como a criada da teologia
(uma metáfora medieval famosa). Ao contrário, Ítalo seguia o pensamento dos filósofos
antigos, para os quais a teologia é que se configura como parte da filosofia, desde que a
filosofia culmina com a suposta tentativa de compreender o primeiro princípio de tudo o que
há. No mesmo espírito, muitos bizantinos defenderam repetidamente uma abordagem mais
racional em temas teológicos centrais, mesmo temas que tinham a ver com as crenças mais
fundamentais do cristianismo, opondo-se àqueles que consideravam que os cristãos deviam
simplesmente abandonar-se à graça de Deus e à revelação divina. A partir do século IX, Fócio,
Miguel Psellos, João Ítalo, Eustrácio de Niceia e Barlaão da Calábria, para citar apenas alguns,
apoiaram fortemente o uso de lógica tanto na defesa quanto na demonstração de dogmas

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contra pagãos e heréticos. Outros, contudo, incluindo Nicéforo Gregoras e Gregório Palamas
eram inflexíveis em sua opinião de que os estudos de lógica eram inúteis na aquisição do
conhecimento sobre Deus e seus atributos.

Os tópicos filosóficos que os bizantinos levantaram e discutiram em seus escritos eram


tremendamente variados e cobriam virtualmente todas as áreas da filosofia3. Eles comentaram
cada um dos tratados do Organon de Aristóteles; escreveram manuais de lógica nos quais
resumiram os principais elementos não apenas da lógica aristotélica mas também da lógica
estoica; também lidaram com temas lógicos específicos tais como, se deveríamos considerar os
dois Basílios (Basílio, o velho e Basílio Magno) como homônimos ou sinônimos e se a lógica
deveia ser considerada como instrumento ou parte da filosofia4. Também se sentiam intrigados
por todos os assuntos em filosofia da natureza e escreveram trados cosmológicos e
astronômicos sobre a origem do mundo e a ordem cósmica5. Eram interessados na relação
entre corpo e alma, no problema do mal e no livre arbítrio humano. Também comentaram as
obras éticas de Aristóteles e discutiram repetidamente a respeito dos requisitos necessários
para uma vida feliz6. Além de tudo, os seus escritos são repletos de observações sobre
questões epistemológicas e o desafio do ceticismo ao conhecimento, bem como estética e a
interpretação dos símbolos religiosos (ícones) e filosofia política e a possibilidade de um estado
justo7.

Na discussão desses problemas filosóficos, os bizantinos apresentavam diferentes graus


de originalidade; às vezes eles divergiam consideravelmente dos filósofos antigos com os quais
eles não concordavam, às vezes acrescentavam um argumento novo em apoio a uma tese já
estabelecida e, às vezes, tentavam simplesmente se apropriar de uma opinião antiga
acrescentando um novo exemplo. Deve ser sublinhado, contudo, que originalidade não era sua
aspiração; nisso, eles seguiam os comentadores antigos da antiguidade tardia. Por outro lado, o
ecletismo que caracteriza as obras filosóficas bizantinas não as reduz a meras compilações de
doutrinas antigas nem exclui a possibilidade um pensamento autônomo, especialmente
quando há necessidade de conciliar o ponto de vista cristão com as antigas tradições
filosóficas. Em tais ocasiões, o objetivo dos bizantinos era, sem dúvida, apresentar o
entendimento cristão sobre o mundo; se este entendimento poderia ser ajudado pelo
conhecimento dos antigos, eles ficavam felizes em se apropriar desse conhecimento, apesar de
ser muito difícil, às vezes, conciliar visões de mundo que, de outro modo eram percebidas
como opostas, como por exemplo a visão aristotélica sobre a eternidade do mundo e a noção
cristã de criação.

Essas observações gerais sobre a filosofia bizantina cobrem um período tão longo e
pensadores tão diferentes, contudo, que apenas podem fornecer uma imagem simplificada,
rudimentar de uma seção da história da filosofia para a qual muito trabalho precisa ser feito8. A
maioria dos textos relevantes ainda estão inéditos ou disponíveis apenas em edições muito
antigas e imperfeitas, apenas quando esses textos estiverem disponíveis em edições críticas e
cuidadosamente estudadas como obras filosóficas sérias, os diferentes estilos, interesses,
visões e abordagens de seus autores poderão emergir inteiramente e propriamente avaliados.

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Enquanto isso, é razoável evitar categorizações apressadas dos pensadores bizantinos como
platônicos ou aristotélicos, uma distinção que, no fim das contas tornou-se importante apenas
perto do fim de Bizâncio, notavelmente na fervorosa controvérsia entre Jorge Gemistos Pleton
e Jorge Scholarios no século XV9. O exame a seguir das opiniões dos bizantinos acerca do tema
dos universaismostrará que tais categorizações podem ser enganadoras. Ao mesmo tempo,
investigar essas opiniões fornecerá um melhor entendimento de como os bizantinos
raciocinavam em temas filosóficos centrais e como eles divergiam das tradições anteriores de
modo sutil e interessante.

UM ESTUDO DE CASO: A TEORIA DOS UNIVERSAIS

Supõe-se amplamente que, como na maioria dos assuntos, quanto à sua posição em
relação aos universais, os filósofos bizantinos seguiram os comentadores neoplatônicos da
antiguidade tardia. Linos Benakis, por exemplo, sugeriu que a tentativa dos comentadores
neoplatônicos de conciliar as doutrinas de Platão e Aristóteles quanto ao tema dos universais
foi seguida de perto em Bizâncio por pensadores eminentes como Fócio, João Ítalo, Eustrátio
de Niceia, Nicéforo Blemides, Nicéforo Choumnos, Jorge Scholario (Genádio II) e Bessarion10.
Mais especificamente, Benakis sugeriu que os filósofos bizantinos, via de regra, adotaram a
tese dos três modos de entender os termos dos gêneros e espécies como se referindo a:

(i) os universais antes dos particulares, que são geralmente identificados com as Ideias
platônicas;

(ii) os universais nos particulares, que corresponderiam, supostamente às formas


imanentes aristotélicas; e

(iii) os universais após os particulares, que são os conceitos ou pensamentos.

Estes três tipos de universais são aqueles que Amônio, um neoplatônico do século V
apresentou primeiro, em seu comentário à Isagoge, de Porfírio; eles também são discutidos
nos comentários de Elias e Davi sobre a mesma obra, nos Prolegômenos, de Olimpiodoro e no
comentário de João Filópono às Categorias, de Aristóteles11. De fato, após a bem conhecida
exposição do problema dos universais no início da Isagoge, todo escritor antigo que comentou
esta obra ou as Categorias de Aristóteles tentou dar uma posição sobre o tema.

O estudo sistemático dos textos não parecem, todavia, dar suporte puro e simples à
opinião segundo a qual os bizantinos aderiram à teoria proposta pelos comentadores antigos
neoplatônicos a respeito dos universais. Na verdade, parecem sugerir que os bizantinos
discordaram desta tradição em alguns pontos que, à primeira vista podem parecer marginais e
obscuros, mas revelam uma abordagem um pouco diferente do problema. Dessa maneira, um
exame atento de suas opiniões específicas sobre os universais serve como uma ilustração útil
das tendências gerais da filosofia bizantina.

Nesse ponto, é útil traçar esquematicamente o que Amônio tinha a dizer sobre os três
tipos de universal, de tal modo que essa exposição pode servir como a apresentação padrão da
posição neoplatônica com a qual as posições bizantinas podem ser comparadas. Nos seu
comentário à Isagoge de Porfírio, Amônio nos pede para imaginar um anel com um selo que é
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um retrato, por exemplo, de Aquiles, o qual então nós pressionamos em diferentes peças de
cera. Alguém que entrasse mais tarde na sala onde estariam essas peças de cera gravadas com
o retrato de Aquiles e observasse as diferentes impressões logo perceberia que todas elas
compartilham de características comuns, isto é, que foram todas feitas a partir de um único e
mesmo selo, essas características comuns ficarão retidas subsequentemente na mente do
observador. De acordo com Amônio, o selo no anel representa o universal anterior aos muitos
particulares, a impressão nas diferentes peças de cera representa o universal nos particulares e
as características comuns que o observador retém mentalmente representam o universal
posterior aos particulares.

Amônio procede, em seguida, à aplicação dessa distinção tripartida ao caso do ser


humano universal. O Demiurgo, diz ele, possui em sua mente a ideia universal do ser humano,
que serve como paradigma arquetípico a partir do qual ele cria os diferentes seres humanos
particulares, tal como o selo do anel serve como o paradigma de Aquiles para as várias
impressões na cera. Essa e outras ideias possuídas pelo Demiurgo são os universais anteriores
aos muitos particulares. Eles são substâncias inteligíveis que se constituem como causas dos
indivíduos que percebemos, mas existem separadas desses indivíduos, e são identificadas com
as Ideias platônicas do Timeu. O ser humano universal é também entendido como a forma do
ser humano, o que, segundo Amônio é tanto inseparável do ser humano singular como o
mesmo para todo ser humano singular, tal como as impressões do mesmo selo, que são, ao
mesmo tempo inseparável de cada peça e a mesma para as diferentes peças de cera nas quais
estão impressas. Essas formas são os universais nos particulares; são inseparáveis dos
indivíduos perceptíveis e representam o um em muitos no sentido das formas imanentes de
Aristóteles. Finalmente, após observar muitos seres humanos diferentes, nós podemos
formular em nossas mentes o conceito de ser humano universal, derivado das características
comuns partilhadas por todos os seres humanos individuais que nós observamos, do mesmo
modo que as características comuns das impressões nas diferentes peças de cera nos levam a
formar um conceito do selo. Esses são os universais posteriores aos particulares, que são
pensamentos ou conceitos, formados após a percepção dos indivíduos e adquiridos pela nossa
mente por abstração de suas características comuns.

Com o entendimento de Amônio sobre os três tipos de universais em mente, é hora de


olharmos mais de perto o que os pensadores bizantinos disseram sobre o mesmo tópico.
Aretas de Cesareia discute os mesmos três modos de entender os termos gêneros e espécies
nos seu Scholia (escrito cerca de 900) sobre a isagoge de Porfírio; há também alusão a eles no
tratado de Fócio intitulado Várias Questões para discussão sobre amphilochia (questão 77),
escrito no século IX assim como na paráfrase de Miguel Pselos, escrita no século XI, sobre o De
Interpretatione, de Aristóteles. É um aluno de Pselos, João Ítalo, contudo, que parece ter
pensado no problema dos universais de modo mais exaustivo; em particular, ele discute o tema
repetidas vezes nas suas Quaestiones quodlibetales, do século XI, uma coleção de noventa e
três respostas a problemas filosóficos postos por seus alunos12.

Na questão 5, por exemplo, Ítalo fala sobre os mesmos três tipos de universais, na
mesma ordem. Mas há um detalhe em sua opinião pelo qual ele se diferencia. Assim como
Amônio, Ítalo considera o universal anterior aos vários particulares como causas e paradigmas
dos indivíduos perceptíveis. Como tais, esses universais não podem propriamente ser
predicados dos particulares. São separados deles, e existem na mente de Deus. Desse
modo, Ítalo ao mesmo tempo concorda com a opinião de Amônio e acomoda perfeitamente as

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requisições do dogma cristão. Ele então prossegue, contudo, apresentando o universal nos
particulares e o universal após os particulares de um modo diferente da opinião de Amônio.
Ítalo sustenta que tanto o universal nos particulares quanto o universal após os particulares,
diferem dos universais antes dos particulares porque eles surgem após os individuais
perceptíveis, podem ser predicados destes, são inseparáveis e são adquiridos por nossa mente
por meio de abstração. Além disso, é exatamente o modo pelo qual eles são adquiridos por
nossa mente, através de abstração, que faz com que o universal nos particulares seja diferente
do universal após os particulares; os universais nos particulares, de acordo com Ítalo, não são
predicados de muitos particulares, mas apenas aquele particular do qual eles são inseparáveis.
Assim, ele se refere ao universal “animal”, que ele vê como um dos universais nos particulares:
quando ele é predicado de Sócrates, ele não pode ser predicado de nenhuma outra coisa além
de tal, por exemplo, de Platão. Por outro lado, o universal após os particulares é predicado de
muitos particulares e é o mesmo e único universal que é predicado tanto de todos os
particulares considerados juntos quanto de cada um deles separadamente.
Qual é o significado desse detalhe? Quer isto dizer que Ítalo entende que o universal
nos particulares refere-se a formas que estão no particular. Em outras palavras, isso quer dizer
que ele interpreta as formas imanentes de Aristóteles como particulares e não universais?
O pedigree de tal interpretação não é de se negligenciar, pois tanto Proclo como o seu
mestre Siriano13, viam as formas imanentes como particulares, sem implicar de modo algum
que discordassem de Aristóteles nesse ponto. Além disso, apesar de Amônio não ser claro a
esse respeito (de fato, o seu exemplo da impressão nas diferentes peças de cera poder ser
tomado como sugestão de que a impressão é uma e a mesma em todos os casos), não há razão
para acreditar que ele não estaria em acordo com os outros neoplatônicos quanto a esse
ponto. Apesar disso, é claro, isso não quer dizer que tal interpretação da teoria de Aristóteles
seja a correta, é razoável supor que na época de Ítalo, tratar as formas imanentes de
Aristóteles como particulares era algo aceitável, se não mesmo a interpretação padrão.

Mais importante, apesar disso, o ponto no qual Ítalo parece se diferenciar da opinião
de Amônio sobre os universais é o seguinte: ele considera que não apenas o universal posterior
aos particulares, mas também o universal nos particulares é adquirido por nossa mente através
da abstração. Ítalo parece sustentar que o universal posterior aos particulares é adquirido por
nossa mente não apenas através da abstração das características comuns dos individuais
perceptíveis (tal como no comentário de Amônio) mas também que o universal nos
particulares é adquirido por nossa mente por abstração da forma particular incluída na matéria
de cada particular. Portanto, para Ítalo os universais nos particulares não representam o um em
muitos no sentido da noção aristotélica das formas imanentes como era para Amônio.
Mas se tanto o universal posterior aos particulares quanto o universal nos particulares
são adquiridos por nossa mente por abstração isso significa que, para Ítalo eles não são
entes. Ítalo se faz frequentemente essa questão e, com grande detalhe, trata dela em
suas Quaestiones, opondo-se decisivamente à opinião de que os universais não são entes. Na
Questão 58, por exemplo, ele apresenta uma série de argumentos em apoio da posição de
Antístenes segundo a qual os gêneros e as espécies não são entes14. Todos os argumentos que
apoiam a posição de Antístenes procuram demonstrar que os universais não são corpóreos
nem incorpóreos e, por consequência, que não são entes, uma vez que entes tem que ser ou
corpóreos ou incorpóreos. De acordo com um desses argumentos, por exemplo, os universais
não são incorpóreos porque, se fossem os sujeitos dos quais eles são predicados teriam que
ser incorpóreos também, o que é absurdo; por exemplo se nós dizemos que Sócrates é um ser
humano e que o ser humano universal é incorpóreo então Sócrates também seria incorpóreo,
o que é absurdo. Por outro lado, os universais também não são corpóreos porque se fossem

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eles deveriam ser perecíveis, uma vez que corpos são perecíveis, ora, desde que os universais
não são perecíveis eles não são podem ser corpóreos. Portanto, os universais não são nem
corpóreos nem incorpóreos e, portanto, eles não são entes. Na verdade, eles são conceitos
nus desprovidos de toda a realidade e com existência apenas no pensamento.
A fim de refutar este argumento, Ítalo defende a posição segundo a qual os universais
são incorpóreos. E argumenta que eles podem ser dessa maneira, sem que os seus sujeitos
sejam incorpóreos também. Assim, por exemplo, o gênero substância é incorpóreo, apesar de
ser predicado também de sujeitos que são corpóreos. Ítalo oferece em seguida, uma série
completa de argumentos para apoiar a sua própria tese. Antes de fazer isso, contudo, ele
enfatiza novamente, na questão 3 e, de novo, na questão 8, que é importante traçar o que ele
considera ser a distinção de Aristóteles entre dois sentidos em que algo pode ser dito
incorpóreo.
(i) Algo pode ser incorpóreo per se, verdadeiramente e estritamente falando. Por
exemplo, a alma, os demônios, a causa primeira e os gêneros superiores são todos incorpóreos
em um sentido estrito, porque eles não precisam de um corpo para subsistir.
(ii) Algo pode ser incorpóreo per accidens e por abstração. Por exemplo, tempo,
espaço, linha, superfície e corpo são todos incorpóreos num sentido fraco porque eles
dependem de um corpo para subsistir.

Assim, de acordo com a interpretação que Ítalo faz da teoria de Aristóteles, os


universais são incorpóreos no segundo sentido, mais fraco. Eles não são, falando estritamente,
incorpóreos, mas dependem de um corpo para subsistir. Esse é o sentido que o próprio Ítalo
adota no seu entendimento dos universais como incorpóreos. Pois, tanto na questão 3 como
na questão 4, Ítalo explica que os universais são incorpóreos per accidens e não per se porque
eles são incorpóreos na medida em que eles existem na alma humana, enquanto ao mesmo
tempo, são corpóreos por participação na medida em que subsistem nos particulares. Os
universais que ele tem em mente em tais contextos são, obviamente, o universal nos
particulares e o universal posterior aos particulares.
Contudo, se os universais são de fato entes incorpóreos, então há um sentido especial
no qual eles podem ser ditos entes? Nas questões 3,6, 19 e 31, Ítalo faz uso de uma distinção
que é um lugar comum nos textos platônicos desde Plotino até Simplício mas que parece ter
origens ainda anteriores. Trata-se da distinção entre algo que subsiste e algo que depende
apenas do pensamento15. De acordo com Ítalo, as coisas que não subsistem, mas dependem do
mero pensamento não são entes. Quanto às coisas que subsistem, ele distingue entre 2 tipos
diferentes de entes: aqueles que subsistem per se que ele chama subsistências (hipóstases) e
aqueles que subsistem em alguma outra coisa. A subsistências são anteriores por percepção,
são particulares e são, na maior parte, corpos; em contraste, os entes que subsistem em
alguma outra coisa são anteriores por crença e conhecimento, são incorpóreos, são predicados
compartilhados por muitas coisas e são pensamentos. A terminologia de Ítalo aqui mostra
claramente a influência dos padres cristãos, em particular João Damasceno, cuja Dialética traça
justamente essa distinção entre as subsistências, coisas que subsistem em alguma outra coisa e
coisas que não subsistem.
De acordo com o Ítalo, portanto, tanto as subsistências quanto os entes que subsistem
em alguma outra coisa são entes e assim, eles não dependem do mero pensamento. Ítalo
distingue esses dois tipos de entes tanto dos exemplos padrão de coisas que não subsistem,
tais como o hircocervo e o centauro quanto de seus próprios exemplos do ser humano de
muitos olhos e os cavalos de 4 cabeças. Todos esses são, como ele diz explicitamente, nada
além de fabricações da mente humana e produtos de nossa imaginação. Por outro lado, há
também uma importante diferença entre as subsistências e os entes que subsistem em alguma
outra coisa. Apesar de os primeiros subsistirem per se, os últimos são pensamentos que

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subsistem em alguma outra coisa. Assim, a posição de Ítalo sobre os 3 tipos de universal pode
ser sumarizada, como se segue: todos os três são incorpóreos, mas o universal antes dos
particulares, são subsistências, enquanto o universal nos particulares e o universal posterior
aos particulares, são entes que subsistem em alguma outra coisa.
O aluno de Ítalo Eustrato de Niceia parece seguir o seu mestre quanto a esse tema,
tanto nos seus comentários sobre as obras de Aristóteles quanto nos seus tratados teológicos,
pois, também na opinião de Eustrato a distinção que importa nesses temas é aquela entre os
universais que são os paradigmas dos indivíduos perceptíveis e que existem na mente de Deus
e os universais que são originados posteriormente aos indivíduos perceptíveis e que subsistem
neles16.
Nem Ítalo, nem Eustrato, portanto, parecem tentar conciliar as opiniões de Platão e
Aristóteles com relação aos universais no sentido em que os neoplatônicos tentaram. Na
verdade, eles discordaram de ambos os filósofos antigos. Eles entendem as ideias platônicas
como pensamentos de Deus e concebem as formas imanentes de Aristóteles, tanto como algo
inseparável dos indivíduos perceptíveis como algo existente na mente humana. Além disso,
apesar de, na sua opinião, apenas Deus e os indivíduos perceptíveis existirem no sentido forte
enquanto subsistências, eles tendem a enfatizar que todos os tipos de universais são entes.
Eles podem ser entes em um diferente sentido dessas subsistências, mas todos eles são entes e
não construções de nossa mente desprovidas de realidade17.
Muitos outros filósofos bizantinos discutiram o tema dos universais. Especialmente
durante os séculos XIV e XV. Apresentá-los como meros continuadores dos comentadores
neoplatônicos quanto a esta questão, antes de estudar suas obras de perto, algumas delas
ainda não editadas, parece não fazer justiça a eles. Além disso, o caso de Ítalo pode
demonstrar que pode haver detalhes sutis, mas importantes nas opiniões bizantinas, os
quais deveriam ser levados em consideração quando tentamos reconstruir o seu raciocínio. Isto
se aplica, certamente, não apenas quanto ao problema dos universais, mas também quanto a
todos os temas filosóficos do quais eles se ocuparam. Tal reconstrução, atenta ao detalhe
crucial deveria ser um pré-requisito antes de alguém se aventurar a compreender as
implicações teológicas da filosofia bizantina ou antes que alguém proceder a uma comparação
com os textos ocidentais relevantes, mais minuciosamente estudados.

Campinas, Dezembro/2021 – Anselmo Ferreira traduziu

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