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ORIGENS EM BAGDÁ

Dimitri Gutas

O FIM DA FILOSOFIA NA ANTIGUIDADE TARDIA E O QUE SOBROU DO PENSAMENTO


GREGO.

A filosofia morreu de uma morte lenta antes do Islã aparecer. Pode-se argumentar que a longa
morte começou no reinado de Diocleciano (284-305), a partir do qual as mudanças sociais,
demográficas, administrativas e outras, que eventualmente levariam ao fim do mundo antigo,
tiveram início. Em consequência dessas mudanças, a filosofia, entendida como uma prática
racional de pensamento vivo sobre os seres humanos e o universo, para além de superstições e
mitologias instiladas e sancionadas institucionalmente foi considerada como representante de
atitudes e hábitos mentais pouco apreciados e menos ainda tolerados1. Após o decreto de
Justiniano, em 529, que proibia os pagãos de ensinar, o que quer que tivesse sobrado da já
muito atenuada prática da filosofia, ainda capengou por duas ou três gerações, até que o
último filósofo de Alexandria, Estevão, foi convidado pelo imperador Heráclio a se mudar para
Constantinopla em 610. É o que sustenta a atual interpretação dos dados disponíveis. Esta é a
última vez em que ouvimos falar de filosofia em grego. Pelo menos, por algum tempo. Nos dois
séculos seguintes, durante a controvérsia iconoclasta em Bizâncio, na assim chamada idade das
trevas bizantina, os tratados filosóficos sequer foram copiados e muito menos ainda
produzidos2. Essa situação continuou até o renascimento macedônico, durante a segunda
metade do século IX, quando houve, se não um renascimento, pelo menos um renovado
interesse pela literatura filosófica, ocasionado aparentemente pelo movimento de tradução
greco-árabe em Bagdá3. O interesse se materializou na transcrição de escritos filosóficos e na
produção de novas cópias manuscritas. A tal atividade, devemos a sobrevivência de muitos
textos antigos, bem como a produção de alguns comentários lógicos por homens como Fócio
(810-891) e Aretas (860-939).

A ênfase na linguagem é intencional. E procura sublinhar o fato de que a filosofia na


antiguidade foi feita em grego. Após Alexandre (século IV a.C.), a expansão do helenismo por
todo o Oriente médio é de fato notável que, apesar da participação na filosofia tornar-se
internacional, a sua expressão nunca foi tentada em outra língua que não fosse o grego.
Mesmo depois que o Império helenista dos sucessores de Alexandre foi suplantado pelos
romanos, falantes do latim, o desenvolvimento linguístico usual não aconteceu, isto é, a língua
do Império nunca se impôs nas atividades culturais. E mesmo os filósofos cuja língua mãe não
era o grego, fizeram filosofia não em latim, mas em grego. Um caso pertinente a esse respeito
é o de Plotino e Porfírio. Plotino, que dominou a atividade filosófica em Roma na metade do
século terceiro era, muito provavelmente, um falante nativo do latim enquanto o seu aluno
mais eminente, Porfírio era um falante nativo de aramaico, nascido na cidade de Tiro na costa
oriental do Mediterrâneo. Contudo, ambos escreveram suas obras filosóficas mais influentes
em grego. O que é ainda mais interessante, o estilo um pouco descuidado do grego de Plotino

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(Longinus, o grande crítico literário o classifica como defeituoso)4 foi corrigido por Porfírio na
preparação para uma edição da obra de Plotino.

Certamente houve tentativas de traduzir a filosofia grega para outras linguagens com a
presumida intenção de implantá-la nas culturas das linguagens alvo. Mas tais tentativas, no fim
das contas, não produziram os resultados esperados. Dois grandes estudiosos contemporâneos
antípodas da expansão cultural do helenismo, Boécio em Roma e Sérgio de Reshana, no norte
da Mesopotâmia conceberam a grande ideia de traduzir toda a obra de Aristóteles para o latim
e para o siríaco, respectivamente5. Pela concepção eles merecem crédito como pensadores
individuais por suas nobres intenções. A sua falha indica que as culturas receptoras nas quais
eles trabalhavam não tinham desenvolvido a necessidade para tal empreendimento. A filosofia
se desenvolveria em latim muito mais tarde, mesmo que a partir de alguns fundamentos
deixados por Boécio6, enquanto em siríaco ela atingiria o seu ponto mais alto com Bar Hebreu
no século XIII, apenas após ter se desenvolvido em árabe e ter sido traduzida a partir daí7. O
renascimento da filosofia em árabe no primeiro terço do século nono tem que ser vista contra
este pano de fundo, a fim de que o seu caráter revolucionário seja completamente entendido.

Se a prática viva da filosofia estava morta em grego e tinha, além disso, falhado em ser
transplantada para adquirir um status independente em outras línguas, o que sobreviveu foram
os seus remanescentes físicos na forma de manuscritos e bibliotecas8, assim como certos
currículos filosóficos e aplicações teológicas, muito reduzidos, enfraquecidos e diluídos
compostos primariamente de estudos lógicos em várias escolas e comunidades por toda a área
que deveria cair sobre o governo muçulmano e ser politicamente reunida pela primeira vez
desde a época de Alexandre, o grande.

O que se segue são alguns desenvolvimentos específicos nas várias comunidades, durante a
antiguidade tardia que deveriam fornecer as condições necessárias mas claramente
insuficientes, dentro das quais uma tradição filosófica seria ressuscitada mais tarde, em árabe.

Em grego, a área mais significativa a qual esses currículos foram reduzidos eram os rudimentos
da lógica aristotélica. É possível, por exemplo, discernir uma mudança estrutural maior no
currículo médico de Alexandria por volta do fim do século sexto, talvez como reação ao declínio
da instrução filosófica no último centro remanescente dos estudos filosóficos gregos. Alguns
professores de medicina cujos nomes são dados nas fontes árabes, como Gessios, Anquilau e
Estevão de Alexandria (talvez o mesmo indivíduo, oferecendo um último serviço à filosofia,
antes de partir para Constantinopla) decidiram organizar e simplificar o currículo médico.
Assim, eles restringiram o número de livros médicos para o estudo. E acrescentaram
formalmente o estudo da lógica ao currículo, estabelecendo o número de livros que um aluno
de medicina deveria estudar em 24 obras. A lógica pode ter sido estudada em conjunto com os
estudos médicos anteriormente, a devoção de Galeno à lógica é bem conhecida. E pelo menos
duas de suas obras mais populares que foram incluídas neste novo currículo, a Arte médica (Ars
Medica) e o Método de cura (Methidus medendi) começa com significativas sessões sobre
procedimentos lógicos em métodos terapêuticos. O que este novo currículo alexandrino parece
ter feito foi incluir formalmente como parte dos estudos médicos livros específicos de lógica,
nomeadamente as primeiras quatro obras do Órganon de Aristóteles: as Categorias o De

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interpretatione, os Primeiros e os Segundos Analíticos. Os livros médicos consistiam, por sua
vez, dos quatro livros de Hipócrates: Aforismos, Prognóstico, Doenças agudas e Ares, águas e
lugares) e versões abreviadas e resumos de dezesseis livros galênicos, conhecidos
coletivamente como Summaria Alexandrinorum (os Resumos de Alexandria). Relatos deste
novo currículo como os textos dos resumos de Galeno não sobreviveram em grego mas são
proeminentes na literatura bibliográfica médica árabe, o que é amplamente corroborado pelas
indicações esparsas que sobreviveram9. Quanto tempo após a conquista islâmica de Alexandria
em 642 essa instrução continuou em grego não é conhecido nem há qualquer evidência de que
este currículo fora transplantado para outra cidade dentro das novas e muito reduzidas
fronteiras do Império Bizantino. Contudo esta é a única indicação que nós temos mesmo de
qualquer tipo de instrução filosófica em grego, a filosofia como atividade tinha cessado de
existir10.

As aplicações teológicas da filosofia na literatura patrística grega, por outo lado, foram muitas e
longevas, apesar de claramente subordinadas aos seus objetivos teológicos apologéticos e
polêmicos ao invés de ser um discurso filosófico livre. Contudo na medida em que os autores
patrísticos tinham sido expostos à filosofia grega era esperado que eles apresentassem algum
conhecimento sobre filósofos individuais e correntes filosóficas. O teólogo do século sexto João
de Citópolis na Palestina, por exemplo, escreveu o primeiro comentário conhecido sobre os
escritos do pseudo Dionísio no qual ele incorporou aparentemente extensas citações
paráfrases de passagens das Enéadas. A obra do pseudo Dionísio Sobre os nomes divinos foi
novamente traduzida para o siríaco por Fokas em alguma época no começo do século oitavo,
desta vez acrescida de escólias, providenciados por João de Citópolis. Deste modo algum
material plotiniano tornara-se disponível na tradução siríaca, nós não temos informação de
que as Enéadas como tais jamais vieram a ser traduzidas para o siríaco11. Esse fato joga uma luz
interessante sobre as traduções árabes seletivas de Al Himsi das Enéadas IV-VI feitas um século
depois; se nenhum dos textos plotiniano que se sabe terem sido citados por João reaparecem
no que sobrou do Plotino árabe, isso dá alguma indicação do meio intelectual no qual a
plotiniana árabe pode ter tido suas raízes12.

Na cristandade da Síria como na grega houve um desenvolvimento semelhante de um currículo


lógico, exceto que ele é um pouco mais curto: os livros estudados e comentados são a Isagoge
de Porfírio, as Categorias e o De interpretatione de Aristóteles, além dos Primeiros Analíticos
mas apenas até o livro I, capítulo 7, omitindo-se a seção sobre lógica modal e o resto do
tratado. As razões para isso ainda não são claras; foi sugerido que na Síria se desenvolveu ou foi
adaptado um entendimento da modalidade baseada na lógica material e, por isso, não teria
havido interesse na lógica modal aristotélica baseada na forma lógica13. O resto do Órganon
aristotélico parece ter sido estudado muito pouco, se é que o foi. Há referências a traduções
siríacas dos Segundos Analíticos, dos Tópicos e das Refutações Sofísticas feitas por Atanásio de
Balad (morto em 686) antes do movimento de tradução greco-árabe, mas parece muito pouco
provável que elas tenham tido um significado importante ou tivessem conduzido a um estudo
posterior; os aristotélicos de Bagdá no século X que tiveram acesso a todas essas versões as
condenaram uniformemente como sendo desesperadamente descuidadas14. Do mesmo modo

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não há comentários atestados em siríaco para esses últimos tratados do Órganon antes do
começo da filosofia árabe. Certamente existia a consciência dessas obras e da sua tradição
entre os estudiosos siríos mas o seu estudo sobre os temas discutidos neles não era parte dos
procedimentos das escolas da Síria15, para não falar no pensamento criativo. O que havia era a
aplicação de certas categorias lógicas e uma tese bíblica ocasional (como a questão da criação
do universo) no treinamento e análise teológica e, mais importante, nas disputas teológicas e
debates entre as diversas crenças16.

Alguns desses debates aconteceram dentro das fronteiras do Império Persa Sassânida (226-
642), entre representantes da comunidade nestoriana e os zoroastrianos. É evidente que a
cultura clássica também tinha permeado a literatura persa apesar de talvez não com a mesma
extensão como tinha ocorrido na Síria, principalmente através de traduções mas também por
osmose e contato interpessoal. Os governantes sassânidas endossaram ativamente uma
cultura de tradução que viam como transferência dos textos e ideias dos gregos para a língua
média persa como restituição de uma herança iraniana que tinha sido alegadamente roubada
pelos gregos após as campanhas de Alexandre, o grande17. Foi este contexto cultural e a
atmosfera de debate aberto promovido mais energicamente por Cosroes I Anushirwan
(governante entre 531-578) que deve ter incitado os filósofos gregos a buscar refúgio na sua
corte após o edito de Justiniano em 529 proibi-los de ensinar. E contudo, apesar de haver
evidência da tradução de certo número de livros gregos não filosóficos para o persa médio e da
integração na sua literatura de certa quantidade de conhecimentos e algum uso de material
filosófico para propósitos distintamente não filosóficos, não há indicações de qualquer
literatura filosófica enquanto tal desenvolvida nessa língua18.

Paulo, o persa, é o filósofo conhecido mais importante originário do Irã sassânida do período
pré-islâmico; ele escreveu tratados de lógica dedicados à Cosroes. Apesar de haver algumas
referências a este ter escrito em persa médio permanece o fato de que o que restou de sua
obra ser em siríaco e que ele era amplamente familiar com a literatura lógica siríaca19. Em geral
então e dada a presença extensiva dos cristãos nestorianos no Império sassânida não parece
ter existido aí, no que se refere a um currículo filosófico e sua aplicação, qualquer coisa
drasticamente diferente do que se encontrava entre os cristãos siríacos. Finalmente, em
relação aos filósofos gregos na corte de Cosroes, deve ser também mencionado que no seu
retorno da Pérsia eles não se transferiram para Harram (Carrhae) na Mesopotâmia Superior. A
população daquela cidade, falante de siríaco, permaneceu obstinadamente pagã até o século
XI; eles claramente tinham conhecimento e acesso a material filosófico que eles
compartilharam alegremente com os seus conquistadores muçulmanos quando uma demanda
para isso foi gerada sob os primeiros califas abássidas, mas não há absolutamente nenhuma
evidência ou que eles tenham desenvolvido uma tradição filosófica própria ou que tenham tido
uma instituição filosófica acadêmica (uma Academia Platônica) a ser frequentada com gratidão
pelos filósofos gregos desapontados no seu retorno da Pérsia20.

Outras linguagens que foram culturalmente significantes durante o período em questão e


foram influenciadas pelo helenismo incluem o armênio e o georgiano. Quanto ao georgiano,

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pode-se descartá-lo, na medida em que uma literatura filosófica em tradução se desenvolveu aí
muito mais tarde do que o período que nos ocupa aqui, os séculos VII a IX21. No caso dos
armênios, apesar de ser verdade que existem algumas traduções de Aristóteles (Categorias e
De Interpretatione), de Platão (cinco diálogos) e de Porfírio (Isagoge), essas traduções, mesmo
se aceitarmos que foram feitas no curso do século VII, o que ainda é objeto de disputa, não
deram origem ao que pode ser chamado de uma literatura filosófica e muito menos a um
movimento filosófico. Parece que elas devem ser classificadas junto com as produções
semelhantes em siríaco de um currículo filosófico22.

A TRADUÇÃO E O APARECIMENTO DA LITERATURA FILOSÓFICA ÁRABE

Após o advento do Islã, a ressureição da filosofia como filosofia árabe está intimamente
conectada com o movimento de tradução greco-árabe que começou em Bagdá pouco depois
da sua fundação em 762 e durou até o fim do século X. No curso deste movimento de tradução
quase todas as obras seculares não literárias e não históricas escritas em grego sobre ciência e
filosofia foram traduzidas sob demanda para a língua árabe. O movimento foi introduzido pelos
califas e pela elite governante árabe abássida (750-1258), logo no princípio de seu
estabelecimento como uma resposta ideológica a pressões políticas e problemas sociais. Uma
vez assim introduzida e apoiada a partir de cima o movimento de tradução encontrou o apoio
posterior a partir de baixo na incipiente tradição científica árabe que estava se desenvolvendo
nas mãos de professores e cientistas ativamente recrutados para a capital pela mesma elite
que estava patrocinando as traduções. A dialética entre a atividade de tradução de um lado e o
pensamento científico e a pesquisa do outro foi responsável pelo desenvolvimento
surpreendentemente rápido das ciências no mundo árabe na segunda metade do século VIII e
o seu estabelecimento como uma força cultural maior na sociedade no começo da sociedade
abássida23.

Os começos da literatura filosófica árabe podem ser descritos como tendo acontecido a partir
de dois estágios. O primeiro estágio acontece a partir da metade do século VIII até o
aparecimento de Al Kindi no primeiro terço do século IX é se caracteriza pela continuação do
engajamento com o que sobrara da filosofia em grego, siríaco ou na língua médio-persa que
acabavam de ser reexaminados, desta vez em árabe, contudo, isto é pelo estudo do currículo
lógico e pela aplicação de ideias filosóficas a preocupações teológicas da época; é representado
por alguns textos filosóficos que apareceram em árabe no curso do movimento da tradução
para servir a propósitos não filosóficos. O segundo estágio começa com Al Kindi e representa a
ressurreição da filosofia como disciplina por seu próprio direito, independente de
preocupações teológicas ou outras.

O primeiro texto filosófico árabe que restou desse estágio preliminar é uma paráfrase resumida
e interpolada do começo do currículo lógico cobrindo a Isagoge de Porfírio as Categorias o De
Interpretatione e os Primeiros Analíticos até I,724. Um antigo colofão preservado na tradução
manuscrita da obra atribui sua tradução ao famoso literato cortesão e tradutor do médio-persa

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Mukafa ou a seu filho, datando assim esta obra do começo do movimento de tradução
greco-árabe; apesar de, sob bases linguísticas e outras, poder parecer improvável que, seja o
pai seja o filho, pudesse ter produzido tal texto, não seria forçado ou mesmo surpreendente
que Mukafa, o pai em particular, estivesse associado em algum nível com o projeto. A vida
intelectual na corte do califa pouco antes e logo depois da revolução abássida, período no qual
Mukafa esteve ativo, se revolvia em torno de questões do que nós chamaríamos hoje de
“racionalismo”, isto é, questões sobre a verificabilidade da informação para além das alegações
das religiões reveladas que necessariamente e notoriamente se contradiziam umas às outras.
Essa atitude pode ser rastreada até os tempos sassânidas, certamente a corte de Cosroes como
acima mencionado, durante cujo reinado tais atitudes são atestadas tanto nas obras de Paulo,
o persa quanto na introdução da versão médio-persa da fábula Indiana e espelho para os
príncipes Calila Va Dima. Mukafa, com a sua tradução da Calila Va Dima e a sua tradução para
o árabe25 e em vista da sua da sua recepção manifestamente entusiasmada no começo da
sociedade abássida pode bem ter refletido esta atitude racionalista em círculos intelectuais
mais amplos. Neste contexto a afiliação de Mukafa com o projeto da produção em árabe destes
textos do Órganon seja talvez como editor dado a sua maestria do estilo árabe é facilmente
entendível26.

A ocasião que motivou a produção dessa obra não é conhecida mas claramente deve refletir
alguma tentativa de disponibilizar em árabe os principais textos do currículo lógico então
disponível, pois o texto árabe tem a intenção de apresentar precisamente aquilo que se
estudava nesse currículo: a Isagoge de Porfírio e os primeiros quatro tratados do Organon. A
esse respeito, o texto pertence mais à tradição grega do que à tradição siríaca do currículo
lógico, como descrevemos acima; contudo, a despeito da intenção expressa do autor no texto
de apresentar todos os quatro livros, com efeito, o texto para abruptamente depois de
Primeiros Analíticos I,7 seguindo assim a prática siríaca27. Como essas duas tradições se
tornaram entrelaçadas nesse caso não é sabido, a natureza dos textos selecionados para a
apresentação mostra que não havia intenções filosóficas por trás da escolha; textos dessa
natureza eram rotineiramente lidos nas escolas como parte do currículo e não tinham
aspirações à profundidade filosófica. Pode-se imaginar que o comissionamento dessa obra
deve ter vindo de um desejo de possuir em árabe o que os estudantes estavam lendo nas
escolas cristãs como parte da sua educação geral28 e que de algum modo esse desejo estava
relacionado com os desenvolvimentos sociais bem no comecinho da dinastia abássida ou,
talvez mais especificamente, ao crescente interesse nas implicações teológicas da gramática de
proposições, da estrutura e da lógica da linguagem e do sentido da consequência, temas
manifestamente tratados nas primeiras obras do Organon29.

Outras preocupações sociais, políticas e ideológicas mais facilmente identificáveis também


desempenharam um papel durante esse primeiro estágio do aparecimento dos textos e
argumentos filosóficos em árabe. Certamente a mais significante delas foi o desenvolvimento
da teologia islâmica e o intenso debate entre os vários grupos e indivíduos sobre a sua eventual
orientação. É geralmente reconhecido que as primeiras discussões de natureza teológica entre
os muçulmanos foram resultado dos desenvolvimentos políticos e sociais durante o primeiro
século do Islã, antes do começo do movimento de tradução. No centro da discussão estavam as

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questões da legitimidade da sucessão ao Califado, a relação entre liderança e a fé e o problema
concomitante da descrença quando esse relacionamento era considerado inadequado por
algumas facções. As opiniões conflitantes que foram expressas nesses temas controversos
eventualmente deram origem a posições teológicas ou a uma teologia da controvérsia (um
termo cunhado por Joseph van Ess), que constitui parte do discurso político da nascente
sociedade muçulmana.30 Logo depois da virada do primeiro século Islâmico e pouco antes da
revolução abássida (cerca de 720), contudo, um novo elemento cosmológico foi introduzido
nas discussões teológicas – particularmente o atomismo - aparentemente por meio de seitas
maniqueístas.31 A necessidade de uma cosmologia além daquela do atomismo ocasionou a
tradução da Física aristotélica por volta do fim do século VIII, uma obra que foi repetidamente
retraduzida ou revisada32. Também relacionada a tais disputas teológicas é a aparição, na
primeira metade do século oitavo e antes do começo do movimento de tradução, de certas
ideias plotinianas na teologia de Jamal Safwan, ideias que, nesse caso parecem ter viajado sem
a tradição de traduções escritas33.

Outro aspecto das discussões teológicas que desempenhou um papel nos argumentos
filosóficos é a apologética, isso é as disputas dos muçulmanas com não-muçulmanos, uma
prática diretamente relacionada aos debates entre as religiões que ocorriam nos tempos
pré-islâmicos, tanto em grego quanto em siríaco. A necessidade dos muçulmanos, como
iniciantes no gênero, de entender melhor as regras da argumentação dialética incitou o califa
Al Mahdi a encomendar uma tradução do melhor manual sobre o assunto, de propriedade do
patriarca nestoriano Timóteo I, com quem ele debateu: os Tópicos, de Aristóteles; assim parece
ter surgido aquela que deve ter sido a primeira das três traduções árabes deste tratado
aristotélico.34 Tais debates continuaram sem diminuição nos séculos seguintes35.

Em todas essas discussões, os textos e argumentos filosóficos cuja tradução era procurada
foram gerados a serviço de outras preocupações, primariamente políticas e teológicas. Não
houve questão de um interesse na filosofia enquanto tal. Com Al Kindi, no começo do século
IX, contudo, há uma mudança qualitativa na abordagem desses assuntos e a filosofia é
apresentada como uma disciplina intelectual independente da religião e de outras correntes
ideológicas.

AL KINDI E O RENASCIMENTO DA FILOSOFIA


Al Kindi, o primeiro a desenvolver o pensamento filosófico enquanto tal em árabe, era um
polímata nas ciências traduzidas e um produto característico do seu próprio tempo. Como
outros cientistas da sua época, ele reuniu em torno dele um amplo círculo de indivíduos
capazes de aconselhá-lo sobre vários assuntos e traduzir os textos relevantes; ele encomendou
traduções sobre assuntos científicos e ele mesmo escreveu sobre todas as ciências: astrologia,
astronomia, aritmética, geometria, música e medicina; escreveu até mesmo um tratado sobre
espadas36. Esta visão ampla e sinótica de todas as ciências junto com um espírito de

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enciclopedismo impulsionado pelo movimento de tradução ocorrido meio século antes da sua
época, levou-o a uma visão da unidade e do inter-relacionamento de todo o conhecimento; ao
mesmo tempo e como o resultado desta visão, ele desenvolveu uma abordagem
epistemológica unitária nomeadamente aquela da matemática e o seu objetivo tornou-se
abordar a sua argumentação com acurácia matemática. Influenciado tanto por Ptolomeu
quanto por Euclides ele defendia que a prova matemática ou geométrica é a prova de mais alto
nível. Na Introdução do Almagesto, Ptolomeu diz o seguinte sobre o método científico:
De tudo isso nós concluímos que as duas primeiras divisões da filosofia teórica devem
ser chamadas de conjectura mais do que conhecimento; a teologia, por causa da sua natureza
completamente invisível e incompreensível e a física por causa da natureza instável e não clara
da matéria; daí não haver esperança de que os filósofos jamais estarão de acordo a respeito
delas. Apenas a matemática pode fornecer um conhecimento seguro e inquestionável aos seus
devotos dado que seja abordada rigorosamente, pois o seu tipo de prova procede por meio de
métodos indisputáveis, nomeadamente, a aritmética e a geometria37.

Al Kindi faz eco a este entendimento na sua paráfrase do Almagesto onde ele falou sobre os verdadeiros
métodos da matemática que são manifestados pelas provas geométrica e aritmética, as quais não
contém dúvida de modo algum. Nos seus escritos filosóficos ele empregava regularmente certas provas
onde este método é claramente derivado dos Elementos de Euclides38 e ele sustentou que um
pré-requisito para o estudo da filosofia de Aristóteles, mesmo da lógica, é a matemática. Nisso ele foi
claramente influenciado pelos Elementos de Teologia de Proclo, obra da qual ele encomendou uma
tradução parcial. Proclo parece assim ser o link que conecta a epistemologia matemática de Al Kindi (na
verdade geométrica) com a filosofia. A obra de Proclo com o seu modo geométrico de argumentação era
uma prova viva para Al Kindi de que os problemas abstratos tais como aqueles debatidos pelos teólogos
da sua época, muçulmanos e não muçulmanos, podiam ser resolvidos através do discurso filosófico que
transcende o sectarismo religioso e procede na base de uma metodologia geométrica aceitável a todos
assim como as outras ciências. Al Kindi chegou à filosofia, portanto, de modo secundário e como
resultado das suas preocupações primordiais com a ciência e o método científico, não foi primária.

Uma vez introduzido à filosofia deste modo por Proclo, e portanto com a possibilidade de que as
questões teológicas pudessem ser tratadas com alguma porção de certeza igual àquela das ciências
matemáticas, Al Kindi tentou ganhar acesso a esta disciplina metodologicamente rigorosa; seguindo esse
propósito ele encomendou e depois corrigiu e editou traduções de textos metafísicos, gregos
principalmente, entre os quais estão as seleções de Plotino (Enéadas IV-VI) e Proclo (Elementos de
Teologia) para o árabe, essas obras eram conhecidas na época, respectivamente, como a Teologia de
Aristóteles e o Puro Bem ( o Liber de Causis na tradução Latina medieval) assim como da metafísica de
Aristóteles. Al Kindi e o círculo de estudiosos que ele reuniu em torno de si encomendou primeiramente
traduções de outras obras gregas tanto filosóficas quanto científicas; uma lista completa do que é agora
conhecido incluiria em acréscimo às obras já mencionadas o De placitis philosophorum, do pseudo
Amônio, os Elementos de Euclides e o comentário de Proclo sobre ele (pelo menos o livro primeiro), os
Elementos de Física de Proclo, a Introdução à Aritmética de Nicômaco de Gerasa e o Grande Livro da
Música; de Aristóteles o Sobre o Céu, os Meteorológicos, Sobre os animais, Sobre a Alma, Parva
Naturalia e os Primeiros Analíticos; as Questões de Alexandre de Afrodísia e possivelmente o De Anima
de Porfírio39. Al Kindi parece ter prestado atenção significativa também aos textos platônicos
especialmente aos diálogos socráticos, ecos dos quais nós podemos ainda encontrar em alguns dos
títulos sobreviventes em fragmentos das suas obras40. Não há nada de surpreendente nisso dado os seus
interesses enciclopédicos, contudo o coração do seu empreendimento filosófico estava centrado na

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abordagem geométrica como solução de todos os problemas associados com a metafísica e a
cosmologia.

Este foco explica a natureza fragmentária das traduções de Proclo e Plotino que ele encomendou assim
como também explica o seu ecletismo filosófico ele estava interessado primariamente na questão do
Um ou Deus como primeiro princípio e em todas as abordagens - metodológicas metafísicas
cosmológicas - relacionadas a este conceito; ele estava de acordo com isso modelando a sua própria
abordagem a partir dos disjecta membra (partes disparatadas) da filosofia grega disponível na tradição
escrita, mas não mais viva. Eis porque o seu pensamento filosófico não pertence à tradição de uma
escola, porque isso não se detém nas traduções preexistentes das obras gregas e porque ela é uma
criação original, em árabe, do intelectualismo do começo da sociedade abássida41.

A obra de Al Kindi fez renascer a filosofia como prática viva e a introduziu no novo ambiente social da
Bagdá dos abássidas ao torná-la relevante para as suas preocupações intelectuais e amplamente
aceitável como meios indispensável para um pensamento crítico e rigoroso baseado na razão e não na
autoridade. A ressureição da filosofia em árabe no começo do século IX foi um evento revolucionário
como acima mencionado porque até aquele ponto qualquer um que fizesse filosofia criativamente na
antiguidade pós clássica multicultural, a despeito da origem linguística ou étnica, fazia isso em grego, do
mesmo modo, todas as outras atividades filosóficas eram derivadas da maneira principal de filosofar
simultaneamente em grego. Quando a filosofia árabe emergiu com Al Kindi, contudo, a situação foi
completamente diferente. Ela foi, desde o começo, independente e escolheu os seus próprios caminhos;
não havia nenhum filósofo grego vivo contemporâneo para imitar ou em quem buscar inspiração; a
filosofia árabe se engajou no mesmo empreendimento que a filosofia grega antes da sua gradual
decadência, mas desta vez na sua própria língua. a filosofia árabe internacionalizou a filosofia grega e
através do seu sucesso ela demonstrou para o mundo da cultura que a filosofia é um empreendimento
supranacional. Isso, parece, foi o que tornou historicamente possível e inteligível a transplantação e o
desenvolvimento da filosofia em outras línguas e culturas através da idade média.

A filosofia árabe foi revolucionária também em outro sentido. Apesar de a filosofia grega nos seus
estágios finais na antiguidade tardia poder ser pensada como tendo se submetido à cristandade, e
certamente em muitos modos a imitou, a filosofia árabe se desenvolveu em um contexto social no qual
uma religião monoteísta era a ideologia por excelência. Por causa disso, a filosofia árabe desenvolveu-se
como uma disciplina não em oposição ou em subordinação à religião mas independente da religião – de
fato de todas as religiões – e era considerada intelectualmente superior à religião quanto ao seu assunto
e quanto ao seu método. A filosofia árabe desenvolveu-se, então, não como uma ancilla theologiae
(serva da teologia) mas como um sistema de pensamento e uma disciplina teórica que transcende todas
as outras e explica racionalmente toda a realidade, incluindo a religião.

UM SEGUNDO COMEÇO
Por maior que tenha sido a realização de Al Kindi e da sociedade que o impulsionou, a prática da sua
linha de sucessores imediata notadamente Al Sarashi, Abu Zaid al Balkhi, e Al Amiri, se esvaneceu
lentamente rumo à apologética. A causa da filosofia foi retomada, então, por uma nova geração de
pensadores, que a reintroduziu, por assim dizer, em Bagdá beneficiando-se do fato de que ela já tinha
conquistado um lugar permanente no ambiente intelectual que aí existia graças aos esforços de Al Kindi
e do seu círculo.

Ainda não foram propriamente entendidos os meios pelos quais a filosofia teve um segundo começo na
sociedade abássida pelo final do século nono, depois da morte de Al Kindi, claramente em resposta a
demandas adicionais, mas desta vez em uma veia largamente aristotélica. O protagonista neste caso foi
o cristão nestoriano Abu Bishr Matta ibn Yunus, originário de Dayr Quna no Tigre, ao sul de Bagdá. O seu

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aristotelismo que podemos presumir como baseado no currículo filosófico conhecido, se não mesmo
praticado, no mosteiro de Dayr Quna pode ser rastreado diretamente até os comentadores alexandrinos
do fim da antiguidade e vai mesmo além , até Alexandre de Afrodísia e Temístio42.

O currículo filosófico introduzido por Matta e a linhagem de aristotélicos de Bagdá que ele estabeleceu
seguiu a classificação das ciências corrente na Alexandria da antiguidade tardia, uma classificação que
tinha sido desenvolvida a partir das obras de Aristóteles43. O Organon de Aristóteles, incluindo a Retórica
e a Poética e prefaciada pela Isagoge de Porfírio constituía os nove livros canônicos da lógica, o
instrumento da filosofia; a filosofia propriamente era então dividida em dois componentes: teórica e
prática. A filosofia teórica era subsequentemente dividida em física, matemática e metafísica e a filosofia
prática em ética, economia (gerenciamento da casa) e politica. Esse currículo completo incluindo todas
as obras existentes de Aristóteles foi traduzido para o árabe, em alguns casos pelos próprios aristotélicos
de Bagdá. O corpus dos escritos aristotélicos (com a exceção da Política, que aparentemente se tornou
disponível apenas em excertos e em vários intervalos, a Ética a Eudemo e alguns dos tratados zoológicos
menores) junto com toda a variedades dos comentários de Alexandre de Afrodísia em diante foi
estabelecido como os manuais do currículo árabe em lógica, física, metafísica e ética por Matta, que
também forneceu as linhas mestras de um método para o seu estudo.

O colega de Abu Matta, Al Farabi e o o aluno de Al Farabi, Yaya ibn Adi e o amplo círculo de discípulos do
último, proeminente entre os quais estavam Abu Sulaiman Al Sijistani, Isa ibn Zura, Al Hasan ibn Suwar
Ali ibn Al Samh e Abu Al Farj ibn Al Tayyib se engajaram em uma análise textual rigorosa e interpretação
filosófica das obras de Aristóteles, na composição de comentários e monografias independentes em
todos os ramos da filosofia.

O significado do aristotelismo de Bagdá não se reduz apenas no seu cultivo e na disseminação de um


aristotelismo rigoroso mas também e, talvez mais importante que isso, no desenvolvimento de uma
abordagem escolar e filológica do estudo dos textos traduzidos da tradição aristotélica. Nos seus
esforços para entender o sentido desses textos de modo preciso, eles frequentemente prepararam
novas traduções de textos chave, que eram comparados e confrontados com tradições anteriores em
siríaco e árabe e anotaram prodigamente os manuais escolares da sua tradição44. Eles estabeleceram o
aristotelismo como a corrente filosófica dominante em Bagdá e por extensão em todo o mundo Islâmico;
os seus ensinamentos viajaram para a Espanha islâmica onde forneceram o fundamento para a atividade
filosófica geral e, em particular, para a filosofia de Averróis no século XII; no Oriente Avicena efetuou no
século XI, uma grande síntese filosófica das duas linhas de filosofia precedentes: a de Al Kindi e a de Al
Farabi; apesar de ter se beneficiado dos textos dos aristotélicos de Bagdá ele também os criticou
severamente por seu pedantismo e falta de criatividade filosófica. A filosofia de Avicena rapidamente
dominou a vida intelectual do mundo Islâmico e acabou por colocar um fim à existência independente
da linha aristotélica de Bagdá pelo fim do século XI.

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