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43 nforme econômico Ano 10 - NO 22 - NOV-DEZ/2009 - JAN/2010

Também era comum trabalhadores livres, libertos e servil constituída eram metic ulosamente
escraviz ados desenvolvendo serviços cons iderados combatidos, nas falas e práticas. Para estes
especializados, como o de carpinteiro, marceneiro, personagens, ficou reservada na sociedade coeva,
ferreiro e pedreiro. a marginalização social e perseguições policiais;
Os trabalhadores livres estavam tão adequados na contemporânea, o esquecimento 
às paisagens das fazendas como os escravizados.
Contudo, a condição jurídica de livres, sem dúvida,
no trato diário, impunha limites diferenciados à
exploração nos moldes aos quais estavam
submetidos diretament e os escraviz ados. A
*Es te te xto r esulta da pesquisa em anda mento “A
frouxidão das relações, em que pese os
produç ão pastorial no Piauí, no Mato Grosso do Sul e
mecanismos de controle dos trabalhadores livres, no Rio Gra nde do Sul, de 1780 a 1 930: um estudo
fez surgir - desde sempre - uma art iculada comparado”, c oordenada pelo Prof. Dr. Mário Maestri/
campanha, em relatos e discursos, que impunha UPF e financiada pelo CNPq.
uma pecha a estes de vadios e desonestos. Em **Profe ssor do DECON-UFPI e dos Programas de Pós-
geral, aqueles que se negavam a capit ular por -Graduação em História e em Políticas Públicas. Doutor
ideologia ou necessidade aos ditames da ordem em História/PUCRS.

RESENHA - UMA GOTA DE SANGUE: história


do pensamento racial
por Vicente Gomes*

MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue: his tória O relato sobre o pensamento racial é denso e
do pensamento racial. São Paulo: Context o, 2009. amplo, revelando matizes e aspectos que só uma
400 p. crítica rigorosamente sistemática pode realizar.
Caso voc ê esteja interessado em saber sobre as
Demétrio Magnoli, soc iólogo, professor da raízes eugenistas das escaramuças que levaram
Universidade de São Paulo (USP), integrante do ao nazismo, leia o livro. Se você quer saber sobre
Grupo de Análises de Conjuntura Internac ional da as raízes do regime de apart heid construído na
USP, es pecializou-se nas áreas de Relações África do Sul, faça o mesmo. Agora, se você quer
Internacionais e Geografia Política. Dentre outros, se informar sobre a gênes e e as características do
escreveu “O Corpo da Pátria: imaginação preconceito contra os negros americanos, o livro
geográfic a e política externa no Brasil (1808-1912)” também informa.
e organizou as obras “História das Guerras” e Igualmente, o livro revela minúcias das
“História da Paz”. estratégias de fundações filantrópicas (às quais
Em 1924, o estado americano da Virgínia poderíamos chamar de “novos aparelhos
promulgou a Lei de Int egridade Racial, que é ideológicos”, no sentido althusseriano), como a
considerada a mais célebre das leis Fundação Ford, na disseminação e patrocínio da
antimisc igenação dos EUA. Essa lei est abelecia ideologia multiculturalis ta junto aos programas de
que qualquer americano branco que cas asse com pós-graduação das universidades americ anas, na
alguém que tivesse “uma única gota de sangue” sua exportação para todo o mundo, bem como na
não branco estava na ilegalidade. Es se fato cooptação de lideranças ativistas. O
inspirou o título do extraordinário livro “Uma Gota de multiculturalismo é apontado pelo autor como uma
Sangue”, lançado recentemente, no qual Demétrio nova tentativa de fundamentação ideológica da
Magnoli apresenta a história do pensament o racial, divisão da humanidade em famílias separadas por
desde o séc ulo XVIII. diferenç as pretensamente inatas.
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A Conferência Mundial contra o Rac ismo, a cidadãos por esses programas, e invariavelmente,
Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerância também, eles chegaram à Corte Suprema dos
Relacionadas, patrocinada pela ONU e realizada EUA. Est a pronunciou reiterados julgamentos no
em Durban, África do Sul, em 2001, é apontada por sentido de afirmar a ilegitimidade e o caráter
Demétrio como sendo uma realização c oncreta discriminatório do uso da raça como um fator de
dessa ideologia e desse patrocínio. Para ele, a preferência dos cidadãos . Um caso paradigmático
maioria das ONGs engajadas na promoção do (Parents versus Seattle) ocorreu recentemente, em
evento “adotavam a perspectiva multiculturalista e 2007, quando o veredicto proibiu o uso de critérios
encaravam a conferência como uma oportunidade raciais na admissão de matrículas de est udantes.
singular para introduzir os seus conc eitos na Nele, a Corte assim se manifestou:
linguagem oficial da ONU”. E arremat a: “a FF Ações governamentais que dividem o povo por
(Fundação Ford) estava longe de ser a única meio da raça são essencialmente suspeit as, pois
financiadora dessas organizações, mas figurava tais class ificações promovem noções de
destacadamente na lista de patrocinadores de uma inferioridade racial e conduzem a políticas de
parcela significativa delas” (p. 100). hostilidade racial; reforçam a crença, sustentada
“Uma Gota de Sangue” contém inclusive por tantos durante tanto tempo de nossa história,
informações sobre os vínculos da ideologia de que os indivíduos devem ser avaliados pela cor
multicult uralista com o caso concreto bras ileiro de da sua pele; endossam argumentações baseadas
demarcaç ão das terras indígenas na região do na raça e a concepção de uma nação dividida em
estado de Roraima conhecida como Raposa Serra blocos raciais, contribuindo desse modo para uma
do Sol, objeto de decis ão recente pelo STF. De escalada de hostilidade racial e conflito (p. 135).
acordo c om Demetrio, o Conselho Indígena de
Roraima, uma das entidades patrocinadoras da Demétrio flerta com o entendimento do
demarcação contínua das t erras, figura na folha de president e da Corte, manifestado na ocasião, para
subvencionadas da Fundaç ão Ford. quem “o caminho para acabar com a discriminação
Subjacente aos relatos de todos esses casos, baseada na raça é acabar com a discriminação
os fios da teia de pensamentos que se propõem a baseada na raça”. Para ele, o president e queria
identificar os alegados fundamentos para a dizer que a inversão do sinal da discriminação,
discriminação racial no mundo, a despeito das como se faz nas ações afirmativas raciais,
pesquisas em genética apontarem para a negação consagra a raça no domínio da lei, dest ruindo o
de quaisquer diferenças inatas relacionadas à raça. princípio da cidadania.
Um alvo, contudo, desponta logo, nas ent relinhas Talvez alguém argumente que a situação
do relato de Demétrio: as políticas de brasileira é diferente, na medida em que não temos
discriminação racial revers a ou políticas afirmativas. uma história de hostilidade e conflito racial. Esse é
Exatament e o tipo de políticas públicas postas em exatamente o ponto. P ara apontar o quadro
andament o pelo governo federal, tais como a ideológico que fundamenta a implantação das
política de cotas raciais para universidades. Mas, políticas de discriminação racial reversa no Brasil,
questionamos, não é algo positivo implementar Demétrio se reporta ao verdadeiro bombardeio
políticas públicas que oportunizem a conquista de destinado à desconstruç ão da interpretação da
direitos por parte de “minorias” a quem foram formação da sociedade brasileira por Gilberto
negados historicamente tais direitos? A questão é Freyre, na qual se destaca a tese da mestiçagem
que para Demétrio essas políticas, contrariamente
da nação. A ofensiva, que teria contado com a
ao anunc iado propósito, engendram desigualdade e
participação destacada, entre outros, de Florestan
racismo. Como tais iniciativas ens ejam ou
Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e
fortalecem o racismo?
brasilianistas como Thomas Skidmore, deu-se por
Em uma maneira de most rar isso, Demétrio faz
uma rigorosa varredura analítica nos casos meio da importação das categorias raciais
americanos que colocaram em cheque os bipolares (branco e negro), próprias da realidade
programas de discriminação reversa que foram americana, assinala Demétrio.
implantados originalmente nos Estados Unidos. Portanto, não é porque a Corte Suprema
Invariavelmente, esses casos coloc aram em americana rechaçou paulatinamente tais programas
questão a legitimidade da classificação racial dos de discriminação racial reversa que ditas iniciativas
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são cons ideradas inadequadas ao Brasil, embora Mas, talvez seja interessante indagar sobre os
os argumentos utilizados pelo órgão sejam pressupos tos teóricos da c rítica de Demétrio, pois,
relevant es. O autor est á convicto de que essas certamente, essa crítica está também vinculada a
iniciativas foram estruturadas com base em um um fundamento principiológico. Nessa direção,
back ground sociológico e antropológico que não é, outra coisa que desponta nas entrelinhas , também
absolutamente, o da realidade brasileira. Além desde o começo do livro, é que o autor parece
disso, a cristalização da classificação racial defender que as políticas públicas voltadas para as
implantada no país, através de inúmeros minorias devem ser regidas pelo princípio iluminista
mecanismos institucionais (o Programa Nacional de igualdade entre os homens . Contudo,
de Ações Afirmativas, de 2002, previa a adoção de poderíamos, mais uma vez, questionar: o princípio
metas percentuais de “afrodescendentes” inclusive da igualdade também não tem sido usado para
discriminar socialmente? É óbvio que há aí uma
no preenchimento de cargos de comissão do Grupo
disputa de pressupostos filosóficos importante. De
DAS), representa a irrupção de outra ordem
qualquer forma, o livro merece ser celebrado como
instituc ional. Segundo Demétrio, o Est atuto da
um valios o subsídio para aqueles envolvidos com a
Igualdade Racial, de 2005, cancela o princípio
questão e que se preoc upam com soluç ões que
constituc ional da cidadania, insculpido no artigo 5.º
transcendam o mero plano dos interesses
da Lei Maior, pelo qual os cidadãos não se
imediatos 
distinguem segundo critérios de raça, crença
religiosa ou opinião polít ica. Pelas disposições do
Estatuto, “a nação não mais seria o fruto do
contrato político entre cidadãos iguais, para se * Professor Adjunto do De partamento de Filos ofia/
converter em uma confederação de raças” (p. 166). UFPI, Doutor em Filosofia /UNICAMP, icv@uol.com.br.

ESPERANÇA. Nossa Consciência tem nome*


por Solimar Oliveira Lima**

Todo dia fazemos das horas o tempo de Escrevera, em 1770, com let ras quase
conquist as. Há muito, do acordar ao adormecer, desenhadas, uma denúncia contra o administrador
reafirmamos no present e o compromiss o com o da fazenda em que vivia. A fazenda fazia parte do
futuro. Defendemos hoje a igualdade com a força patrimônio legado por Domingos Sertão aos
que nos animou no passado à liberdade. Assim, jesuítas, em 1711, sendo c onfiscado
construímos diuturnamente nossa história. Sem posteriormente pela Coroa Portuguesa, em 1760.
descanso, o povo negro é, também, prot agonista As diversas propriedades foram divididas em três
da democ racia no Brasil. Nos avanços políticos e inspeções ou departamentos (Nazaré, Piauí e
democrát icos, repousa o simbolismo do 20 de Canindé) e passaram a ser administradas por
novembro. inspetores ou administradores. Em cada uma das
O dia inspirado na luta de Zumbi dos Palmares fazendas havia um criador, vaqueiro encarregado da
vincula-nos mais ao por vir, e o que virá depende produção e bens, incluindo os trabalhadores.
menos do ontem. Nossas ações exigem Esperança pertencia à fazenda Algodões, da
consciência do que fomos e do que queremos ser. inspeção Nazaré. Era encarregado, do
Nossos dias são de esperanças. Departamento, o capitão Antônio Vieira do Couto,
Esperanç a, como a que se fez Garcia, no P iauí. que retirara a escravizada de Algodões e a colocara
Esperança Garcia aparece ent re nós na na sua residência, em outra fazenda, passando
segunda metade do Século XVIII e foi-nos revelada esta a trabalhar como cozinheira. Na carta, de 6 de
pelo his toriador Luiz Mott em “Piauí Colonial” setembro, Esperança relata espancamentos nela -
(1987). Esperança mulher era uma trabalhadora “um colc hão de pancadas” - e em um filho - “uma
rural, c asada, negra, es cravizada do Real Fisco. criança que lhe fez ext rair sangue pela boca”.

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