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2ª edição

2015
CAPÍTULO 2

---*.'.- Pg¡g¿ndo narrativamente


um caso nas fronteiras'

!È']lår *
ï¡ a*
:!¡ &ã o capítulo anterior, exploranos o que nos levou, e Ìevou
outros pesquisadores, à pesquisa narrativa como forma de entender a
experiência.

lntrodução

Neste capítulo, começamos a explorar lugares específicos em que


o pensamento sobre pesquisa narrativa chega ao território intelectual de
uma outra forma de pensamento. Chamamos esses lugares de fronteiras,
e ilustramos "a vida nas fronteiras" através de uma experiência da nos-
sa própría vida. Os dois critérios de experiência de Dewey, cont¡nuidade
e interação, proveem uma estrutura teóì'ica para identificar as tensões
nessas fronteiras. As tensões pertencentes à continuidade, trazidas pe-
Ìas experiências descritas, neste capítuìo, são temporalídatle, pessoos,
dçdo e certezq. Astensões pertencentes à interação são contexto, pessoas,
oções e certeza.

I Traduzido por Dilma Maria de Mello 0LEEL, NEC - UFU)

Pesquisa narrativa . 53
A taxonomia de Bloom [1992) revelou mais de 150 citações desse manual. Em uma reunião recen-
te de aproximadamente duzentos administradores e professores, o editor

Dez anos após a reunião de Manila, na Universidade das Filipinas, sênior desse volume provocou um show de mãos levantadas em resposta à
sua perguntâ, "Quantos de vocês já ouviram falar da Taxonomia de Bloom?"
um convite, para participar de outro projeto de avaliação relatado, hâvia
chegado. Dessa vez, o convite era para nos juntarmos a um grupo de tra- ReaÌmente todas as pessoas presentes levantaram suas mãos. Poucas pì.1-

balho para a revisão do que é comumente conhecido, em estudos soble blicações na área de Educação alcançaram um reconhecimento tão surpre-

Educação, como Taxonomia de Bloom (Bloonr, 1956J. A Taxonomia pode endente por tanto tempo. {Anderson e Sosnialf 1994, p.VII),

ser razoavelmente considerada como uma conquista ampÌamente bem su-


cedida na nalrativâ dominante da pesquisa em Educação, à qual fazemos Mesmo assim ficamos impressionados com a contagem dessas cita-
alusão em nosso prólogo; que é a nafativa da pesquisa de Lagemann as- ções, e antes de embarcar nessa tarefa, conduzimos nosso próprio levan-
sociada com a luta entre Thorndike e Dewey pam a concepção do que seja tamento sobre a extensão do uso da Taxonomia e descobrimos que livros
pesquisa em Educação, didáticos gerais (geraì em oposição a específico por disciplinaJ para pro-
Para recapitula¡ Thorndike era um psicólogo de orientação quan- fessores pré-serviço e livros didáticos gerais para currículo erâm, como
titativa que popularizou a ideia de uma ciência educacional baseada na reportamos, "carregados" de referências e explicações sobre a Taxonomia
observação e representação numérica do comportamento. Quando essa de Bloom. De forma interessante e obscura, para o novo grupo de pesqui-
forma de olhar os estudos na área de Educação tornou-se "o caminho'l sadores, a Tâxonomia era pouco citada em manuais de pesquisas sobre
passou a ser o que chatnamos de narrativâ dominante, uma forma inques- ensino em Educação, mais recentes (Wittrock, 1986), Educação de pro-
tionável de ver as coisas. Bloom, trabalhando com a ideia de Thorndike, fessores (Houston, 1990) e currículo (lackson, 1992]. Concluímos, as-
desenvolveu urna taxononia de objetivos educacionais construídos so- sim, que as esperanças teóricas de Bloom para a Taxonomia não tinham
bre comportamentos classificáveis e observáveis. Mais tarde, Bloom, com se realizado. Ele esperava que a Taxonomia fosse a base para a teoria do
sua Taxonomia à mão, tornou-se a figura central ao fundar a Associaçào comportamento (Bloom, 19561. No entanto, somente sua presença para
lnternacional para a Avaliação do Desenvolvimento Educacional, uma as apìicações práticas na formação de professores e obtetivos da escola
organização que conduzia estudos comparativos sobre avaliação e que paleciam ter sido realizadas, Porque a Taxonomia parecia fazer diferença
havia levado Michael para um estudo internacional sobre aprendizagem, na prática, se não na teoria também, da Educação, pensamos que poderí-
na ciência da educação, e finalmente, pâra o encontro de Manilla. O convite amos fazer a diferença participando naquela revisão e nos propusemos a

da década seguinte era para nos juntarmos ao grupo cujo propósito era compor aquele grupo.
melhorar e nlodernizat essa Taxonom¡a. A Taxonomia é composta de seis níveis de comportamento cogni-
A natureza e o s¿o¿us da Taxonomia são capturados no prefácio do Tivo - conhecimento, compreensão, aplicação, análise, síntese e dvalíação.
Livro Anual de 1994 da Sociedade Nacional para os Estudos em Educaçào. Cor]hecimento, por exemplo, é definido como "aqueles comportamentos
O autor escreve: e situações de teste que enfatizam a memória, seja por reconhecimento
ou relembrança, de ideias, materiais ou fenômenos". (Anderson e Sosniaþ
Discutivelmente, uma das monografias em Educação, mais influentes da 1994, p.18J. Síntese, para ilustrar um pouco mais, é definida como "a uniào
metade do século passado, é a Taxonomia de Objetivos Educacionais, A de elementos e partes de modo a formar um todo" (p.23J. As categorias
Classificação de Obietivos Educacionais, Manual I: domínio cognitivo. são hierarquicamente organizadas do simples para o complexo, e cada ca-
Aproximadamente quarcntâ anos após sua publicação em 1956, o volu- tegoria sendo submetida àquela acima dela. As categorias são vistas como
me se mantém como referência padrão para discussôes sobre testes e "naturais", inerentes na ordem das coisas, daí, então, a origem do termo
avaliação, desenvolvimento de cuffículo, ensino e Educação de profes- taxonomia e de sua justificativa pal"a o uso de um referente de taxonomia
sores. Uma pesquisa do mais recente Índice de Citações cla Ciência Socìal biológica [Bloom, 1956].

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Interpretamos o convite recebido para modernizar a Tâxonomia ideia cle paradigmas e mudanças de paradigmas; Dewey (1916, 1961,
como um convite para introduzir o pensamento narrativo na Taxonomia 1922J, com sua ideia de fazer coisas por hábito ou fazer coisas de forma
e, consequentemente, para inserir uma forma particular de olhar os obje- reflexiva; e Schwab (1960), com sua distinção entre pesquisa fluida e
tivos educacionais adotados pela laxonomia. Mas, logo nos pegamos re- estável. Uma pessoa, trabalhando em um paradigma, por hábito, ou em
pensando outras questões. Predominantes entre elas, aquela experiência uma estrutura de pesquisa estável, procede, em geraÌ, sem a necessida-
anterior de usar a Taxonoffìia para estudar os progressos da ciência cuÌtu- de de considerar estrutut'as alternativas de referência que podem gerar
ralmente transposta. abordagens de pesquisa diferentes.
Em dado momento, até nos percebemos tomando aqueìa tarefa Mas a pesquisa naüativa não está confortâyelmente assentada,
como valorosa, Víamos aquela oportunidade co[ìo um desafio para re- empoleirada como se estivesse entre uma onda de debates e publicações
pensar as categorias da Taxonomia e seus possíveis usos (como o uso era sobre os novos "pós-modernos" caminhos de pesquisa, conìo represen-
parte do exercícioJ em termos de narrativa. Imaginávamos, inicialmente, tantes do mundo dâs ciências sociais. Certamente, dessa vez, se a pesquisa
que nossa tarefa fosse simples. Para nós, a narrativa é central para nosso narrativa é paradigmática (ou pelo menos se encaixa em um paradigma),
entendimento da experiência e deveria, consequentemente, ser central é um paradigma marcado pelos desafios das pesquisas e representação
para documentos como a Taxonomia. Vemos os indivíduos vivendo vidas de suposições já aceitas. Schwab (1960) escreveu que, quando as pres-
historiadas, em paisagens historiadas. Compreender a vida e a experi- suposições, hipóteses e estruturâs tomadas como certas abrem caminho
ência naüativamente é a nossa pesquisa e nosso proieto de vida. Assim, para questões, dúvidas, inceftezas, uma considerável quantidade de via-
ao receber o convite, víamos nossa tarefa corno a de uma oferta de dar gens em um atrativo fazer de olhos vendados é esperada. Estudantes de
conta do compoftaÍìento e dos objetivos quando eles fossem conceitua- narrativa - especialmente alunos de pós-graduação que frenquentemente
dos narrativamente, aprendem sua prática de pesquisa em comunidades de estudos que dão
Quando começamos, estávamos vagamente cientes de fazer algo suporte e conforto a eles - rapidamente aprendem a se defender e a argu-
diferente, mas foi somente quando estávamos realizando a tarefa que co- mentar seus trabalhos em termos de fora da estrutura de suas narrativas
meçamos a perceber que estávamos no meio de uma tempestade - um de referência. Este aprendizado de pensar nâffativamente nas fronteiras
lugar onde a narrativa donìinante de pesquisa, em uma das expressòes entre a narrativa e outras formas de pesquisa é, talvez, a única e mais im-
educacionais mais bem sucedidas, querdizeq na construção de umsetuni- portaìrte característica do pensamento narrativo bem sucedido.
versaì de objetivos educacionais - encontram um jeito alternativo de pen-
samento investigativo. Aquele era um local onde a narrativa dominante se
confrontava com o peìrsamento narrativo. Como uma expressão da nar- Trabalhando com o grupo da Taxonomia
rativa don'ìinante, a Taxonomia de Bloom é mais que mera aplicação; ela
é central para tudo, não somente via suas conexões a Bloom e Thorndike, Nós não tivemos problemas em adotar uma linguagem
mas também por seu pensamento dominante na Educação. comportamental. Afinal de contas, a Narrativa está relacionada ao(sJ
Recontamos nossa história de envoÌvimento com o grupo de revi- fazer(es) e ao andamento desse(s) fazer(es), mas de alguma forma como
são da Taxonomia, para prover ullt senso do contexto em que o pensa- as alterações efetuadas pelo uso ou remoção de lentes estereoscópicas, o
nento narrativo inevitavelmente, nesse estágio de desenvolvimento das pensamento narrativo altera o que o observador observa.0 que é o com-
ciências sociais, ocorre. Polanyi (1958J, ao falar sobre as estruturas de portamento em uma perspectiva narrativâ? O pesquisador Thorndike na
referência para o conhecimento pessoal, usou o termo "dwelling in" para narrativa domínante ao usar a palawa comportaìrento quer dize¡ e talvez
apontar a necessidade de um lugar intelectual seguro para desenvoìver veja, algo diferente do que veria um pesquisador que pensa narrativamente.
o pensamento coerente. Sua ideia geral é ecoada, de diversas formas, em Esta foi nossâ primeira, ou talvez mais imediata, pergunta ao pensarmos no
toda a literatura sobre métodos - Kuhn (1970), por exemplo, com sua convite recebido. O que entendemos por compoftamento? O que entende-

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mos por cada Ììível de comportâmento? 0 que deve ser visto? E visto pol' Ao pensarmos na metáfora de um torno como uma ferramenta,
quem? O que deve ser gravado? E como tudo deve ser interpretado? atentávamospara a necessidade cle estabelecerum ponto em comum entre
Víamos nossas respostas para cada uma dessas perguntas na pers- nós e nossos Ìeitores. Percebemos que as ideias centrais da narrativa - en-
pectiva da naffativa. Comportamento, por exemplo, seriam as expressões redo, personagem, cena, luga¡ tempo, ponto de vista, entre outt'os, pode-
das histórias individuais em um contexto particuÌar e em um determinado ria cliar dissonância para muitos ìeitores. Nossos primeiros leìtores foram
momento. Porque comportamentos são expressões narrativas, é impor- outros membros do grupo de revisão da Taxononia, os quais, em grande
tante considerar os personagens que vivem as histórias; os personagens parte, vinham de uma não tradição de pesquisa naffâtiva. Escolhemos a
que contam essas histórias; o momento eur que cada história é vivida; o imagem de um torno porque seria como unr ponto de vista livre como ima-
tempo em que foram ou são contadasi o localno qual âs histórias são vivi- ginávamos. Estávamos tentando estabelecer vários elementos inìportan-
das e contadâs; e assim por diante. tes do pensâmento narrativo de forma que pudéssemos todos aceitá-los
Ao trabalhamros com a revisão de nossa narrativa em relação sem a interferência de polarizações de diferentes tradições de pesquisa. A
aos nossos obietivos específicos [objetivos elaborados por membros do imagem do torno nos deu a possibilidade de ilustHr a noçâo de que uma
glupo], lutávamos para não sermos pegos peìos tentáculos da narrativa ferramenta poderia ser usada por pessoas diferentes, em diferentes mo-
dominante que nos rodeava a todo momento. Esses tentáculos pareciam mentos, em diferentes contextos, todos em uma noção fundamentaÌmente
ser expressos naquele jeito de pensar sobre comportamento - quer dizer, narrativa. Esperávamos que "o torno" nos desse um chão comum para nós
pensar em urna linguagem dos objetivos, pensâr em termos de comporta- mesmos e para nossos leitores, como já dito. Precisávamos desse chào co-
mento observável, pensar numedcamente, pensar nâ perspectiva efeito mum porque sentíamos o quão diferente a nossa forma de pensar narrati-
e causa, pensar de forma generaìizada como se tivéssemos a perspectiva vamente sobre a Taxonomia estava distante do que os demais membros do
dos olhos de Deus, uma perspectiva de uma verdade no aqui e no agora. grupo pensavam. Estávamos tentando encontrar uma forma de explicar o
Nossa briga para escapar desses tentáculos são conflitos que acreditamos pensamento narrativo.
serem enfrentados todos os dias por pesquisadores narrâtivos e por estu- Elaboramos a metáfora ao longo de várias páginas, atentando para
dantes de Narrativa. vários usos que cada indivíduo poderia dar a um torno, considerando di-
Ao trabalharmos em nossa tarefa de levar o pensamento narrativo ferentes momentos e diferentes contextos. Por exemplo, em reìaçào ao
para a revisão da Taxonomia de Bloom, começâmos a pensar sobre ob- contexto escrevemos; "além disso, o contexto em que um torno e a loja
jetivos como uma ferramenta na Educação, Como introdução para nossa existem faz uma grande diferença de como esse objeto pode ser visto e
seção proposta em Currículo, Instrução e Objetivos, escrevemosi utilizaäo. O raciocínio em relação à localização de um torno em uma escola
irá se diferenciar da forma como uma comunidade aborÍgine isolada o uti-
Leitores e usuários deste Manual podem, e certamente irão, questionar a liza, comparando com ricas áreas urbanas, ou coru o cenário de um centro
relevânciâ dos objetivos para seu trabalho com o currículo e instruções em urbano. Não somente as razões de uso se diferenciam nesses contextos
suas aulas/escolas. Assim como tantas outras ferramentas, eles são úteis diversos, como mudam também o tipo de criança, os professores, o que se
de formas diferentes para diferentes pessoas, em momentos diferentes, e faz com o torno se modifica. Contexto faz toda a diferença."
em diferentes contextos. Consideremos a analogìa como uma ferramentâ, No pensamento narrativo, o contexto faz diferença. Considerando
como o tomo ou uma serra. Um torno é uma ferramenta útil de fonna di- o quanto o contexto faz diferença em relação ao uso da ferramenta no
ferente para diferentes pessoas, en] momentos diferentes e em diferentes contexto curriculal assumimos que poderíamos criar uma compreensão
contextos. Um torno é útil para serralheiros comerciais, para aqueles que compartilhada com nossos leitores. Ao usar ou não o pensamento narra-
têm um hobby, para a indústria de ferramentas, para serralheiros, para tivo, percebíamos que pontos em geral poderiam ecoar para outros edu-
professores, para alunos, entre outros; nas fábricas, em pequenas lojas, na cadores. No início, não parecia tão difícil. A metáfora funcionava para nós
escola, entre outros locais. e acreditávamos que tínhamos estabelecido uma ponte com a narrativa

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dominante ou, de forma mais prosaica, uma ponte entre a antiga e a nova momento, do contexto e dos personagens envolvidos, a narrativa na qual
taxonomia a ser criâda. os objetivos poderiam ou iûam se encaixar seda diferente,
Começamos a ter resposta do grupo. A maioria das respostas era A resposta do grupo foi que tudo era meramente um problema de
transmitida no meio de uma paráfrase de aceitação e apoio. Mas, ao lemros clareza- Nosso respondente disse que se nós especificássemos "níveis de
em detalhes linha a linha, ponto por ponto das respostas, com suas críti- objetivos", o problema estaria resolvido" Assim, considerando que pen-
cas e sugestões, nos sentilnos estnagados. Por vezes, questionamos nosso sávamos que haveria diferentes objetivos para a mesma intenção e que
próprio senso em relação àquilo que estávâmos propondo. Tínhamos en- dependeria do momento, do contexto e dos personagens envolvidos, nos-
tendido a tarefa? Tínhamos a cumprido bem ou adequadamente? Os ten- so respondente traduziu a questão em termos de hieËrquia de objetivos,
táculos começavam a nos fazer sentir que nosso pensaìnento narrativo era Para nosso respondente, "expectativas" coììstituem um nível mais alto;
de alguma forma ainda menos do que algo aceitável; era algo fraco, suave objetivos seriam um nível médio, útil para guiar o currículo. E, ao fundo,
e estéril; algo sem rigol precisão e cerhez,a, Poderíamos dar um senso do estariam os objetivos específicos para taÌefas particulares de classe. Nessa
que foi esse nosso sentimento, trâzendo alguns excertos das respostas que reinterpretação, o respondente removeu a temporalidade e a colocou
recebemos, mas ainda assin-r reconhecemos que o senso de insegut'ança como hierarquia independente, de diferentes tipos, de tempo. Igualmente
que experienciamos com aquela armadilha parece difícil de ser capturado. significante, na formação do respondente, contexto é também deslocado, e
a apÌicação dessa hierarquia seria vista como contextualmente universal.
Assim, da noção de aplicação de objetivos para um momento, contexto e
Respostas para uma revisão narrativa personagens específicos, nosso respondente reformuìou a noção de forma
a ter um tempo e um contexto universal,
Um de nossos parágrafos ceutraìs sobre o qual recebemos respos- Em outro parágrafo explicativo, escrevemos: "a noção de Dewey
tas era o seguinte: "Reconhecendo que objetivos, como as ferramentas (1938) de 'situação' e 'experiência' torna possível imaginar o professor
mâis amplamente usadas para nos movermos entre expectativâs e fins em não somente como um elaborador de currículo, mas como parte dele,
vista, proponlos destacar uma estrutura para pensarmos sobre objetivos além de tornar possível imaginar um Iugar para o contexto, para a cültura
como usados por pessoas diferentes, em diferentes momentos, em dife- (a noção de Dewey sobre interação) e temporalidade fpassado e futuro de

rentes contextos. Começamos a explorar o uso dos objetivos considerando acordo com a noção de continuidade de DeweyJ. Nessa perspectiva fins e
os fatores que influenciam seu uso". meios, currículo e instrução são tão interligados que desenhar um currí-
Com isso, queríamos ilustrar que uma revisão narrativa da culo para professores implementarem com propósitos instrucionais pare-
Taxonomia iria requerer um senso de movimento no tempo, partindo das cia irreal, algo como se a carroça estivesse na frente dos bois".
expectativas para o alvo a ser atingido. Os objetivos, ao invés de funciona- Na seção em que esse parágrafo apareciâ, estávamos tentando
rem como dados preestabelecidos, poderiam servir como uma ferramenta mostrar que a justificativa para cada conjunto pârticulâr de objetivos
de uso flexível em momentos diferentes. Mais tarde, no artigo escrito, usa- é dada pelo contexto curricular A relevância dessa noção é vista em
mos a noção de narrativa para construir uma estrutura de forma a mos- contraste à noção de currículo definido em termos da narrativa domi-
trar que objetivos diferem em relação ao momento em que são pensados nante, na qual os professores impìementam programas curriculares de
(pré-âtividades, durante o realizar de atividades e pós-realização delas). forma a atingirem objetivos pré-determinados e para atingirem deter-
Além disso, introduzimos a ideia de que para um desses momentos, ain- minados resultados. Nessa visão, a avaliação do resultâdo do compor-
da há que se considerar a mudança de contextos (contexto lural, urbano tamento do aìuno é â medida do sucesso do ensino. Em nossâ capitu-
e em grandes cenhos), a mudança de personagens (o edito¡ o governo, Iação da narrativa, queríamos mostrar que a ideia, de que meios e fins
administradores de escolas, professores e avaliadoresJ, iá que usarialn os podem ser facilmente separados, é danificada. A noção linear de que
objetivos de formas diferenciadas. Consequentemente, dependendo do objetivos e sucesso seriam medidos pelos professores e pelo currícu-

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lo estava narrativamente em questão. De acordo com uma construção temporalidade é uma questão central. Temos como certo que localizar as
narrativa, o professor não é meramente uma variável filtrável ou um coisas no tempo é a forma de pensar sobre elas, Quando vemos um even-
fatol a ser considerado como impedimento ou um cataÌisador para o to, pensamos sobre ele não como âlgo que aconteceu naquele n]omento,
sucesso dos objetivos. Ao contrário, o professor é parte do currículo e mas sim como uma expressão de algo acontecendo ao longo clo tempo.
consequentemente parte do estabelecimento de objetivos em primeiro Qualquer evento, ou coisa, tem um passado, um presente, da forma como
lugar e, por conseguinte, também parte do sucesso. Essa noção nar- aparece para nós, e um futuro implícito.
rativa de currículo foi central parâ atentarmos para a introdução do Do ponto de vista da narrativa dominante, pelo menos eru nossa
pensamento na|rativo na Taxo nom ia. experiência com o grupo de revisão da Taxonomia, eventos e coisas sào
De certa fornra com humor (humor por causa do peso das ponde- caracterizados em si mesmos. Elâs são entidades como sendo atemporais.
raçóes que demos para esses pensamentos sobre currículoJ, a resposta Nossos respondentes percebiam que havia algo em nossa questão sobre a
foi de que a nossa seção estava mais ou menos curta e poderia ir para ten]poralidade, mas preferiram l.eestruturar isso em termos de níveis de
umâ nota de rodapé. Nosso respondente disse que a seção expressava uma hierarquia de objetivos e assim removeram a noção de tempo. Essa ten-
referência abstl'usa do interesse somente de poucos leitores, em especial são entre ver as coisas no tempo versus vê-las con-ro elas são tornou-se
daqueles versados em textos acadêmicos. uma questão nas fronteiras de qualquer lugar para o quaì nos virássemos.
Havia tensão, também, sobre a noção de diferentes usos de objetivos em
momentos pré-instrucionais, instrucionais e pós-instrucionais; havia
A Pesquisa e a vida nas fronteiras tensão sobre nosso conceito de currículo, corn a ideia de que a nârtâtiva
de experiência dos professores daria forma ao currículo, havia tensão so-
Nosso trabalho com o grupo de revisão da Taxonomianos levou para bre as histórias narrativas de alunos e professores e o como essas histó-
inexoráveis ftonteiras entre perìsamento nos moldes da pesquisâ narrati- rias poderiam influenciar a interpretação dos escores obtidos.
va e o pensamento nos moldes da narrativa dominânte. De cada lado dessa
ftonteirå, uIn parecia estar se comunicando com os demais do outro lado
- pessoas que estão fora do focoj não capâzes de falar claramente; e que Pessoas
rendem ideias, pensamentos e sugestões que de alguma forma perdem o
ponto de vista. Fomos subjugados por nossos tratamentos dos objetivos. Uma outra tensão próxima relacionada tinha a ver com pessoas,
Achamos que eles foram intransigentes e fechados para mudanças, embo- ambos, alunos e professores, uma tensão conectada com a de temporali-
ra eÌes, com o peso das opiniões ao lado deles, provavelmente nos viram dade. Dávamos por certo que as pessoas, em quaìquer ponto no tempo,
como esotéricos e não engajados com nenhum compromisso. Mas, o que estão em processo de mudança pessoal e, do ponto de vista da Educaçào,
é essa fronteira entre o pensamento narrativo eo pensamento nos termos parece importante ser capaz de narrar uma pessoa em termos de pro-
da na
"ativâ dominante que faz a comunicação tão difíciÌ? Nosso trabalho cesso. Saber de algumas das histórias de Educação de uma criança - por
com o grupo de revisão da Taxonomia expõe algumas dessas questões. exemplo, as lições recentemente ensÌnadas, assim como as maiores his-
lremos a elas agora. tórias narrativas de cada criança quando ela muda do que era, para o que
é, e para o que vai ser no futuro - é central para o pensamento educacio-
naì narrativo. Assumimos que o currículo, a formulação de objetos e a
Temporalidade medição do sucesso da aprendizagem irão dar suporte a essas histórias
narrativas sobre as quais pensamos.
A tensão mais aparente de nosso trabalho com o grupo de revisào Em contraste, a narrativa dominante (pelo menos neste caso]
da Taxonomia ceutrou-se na temporalidade. No pensanìento na[ativo, a levou nossos respondentes para a construção de pessoas essencial-

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mente livre de noções. Para muitos do grupo de revisão, um objetivo Certeza
especificado em determitrado nível de pensamento e um certo nível de
conteúdo para uma certa idade ou série escolar teria que ser universal- Uma quarta tensão centraliza-se na certezâ. No pensamento ììarra-
mente apÌicado. As histórias pessoais de cada um seriam irrelevantes e tivo, as interpretações dos eventos podem ter sempre um outro sentido.
impossíveis de serem consideradas por aquele grupo. Há um senso de provisório, geraìmente expresso como um tipo de incer-
teza, sobre o significado de um evento. Pol exemplo, ao medir o progresso
do aluno na discussão sobre a ação, como posto acima, nós mostrâmos
Ação conlo um desempenho poderia ser interpretado em três diferentes mo-
dos. Cada interpretação precisat"ia ser considet'ada como uma possibiìida-
Umâ terceira tensão centraliza-se na forma como uma ação foi de provisória. Assim, a atitude em uma perspectiva nârrativa é ã de fazer
con'ìpreendìda. Conforme o pensamento naffativo, uma ação é vista o melhol considerando as circunstâncias, consciente de que há outras
conro uïrì símboìo narrativo. Em nosso caso, entendemos que ações possibilidades, outras interpretações e outros modos de explicar as coi-
curriculales são interpì'etadas como expressões da sala de aula das sas. Um pesquisador namativo cria, conforme posto por Geertz, uma com-
histórias narradas por alunos e professores, Por exemplo, o desem- preensão de ensino e aprendizagem que é uma construção "instável e mal
penho de uma criança de um certo nível sobre um teste avaliativo é formada" (1995, p. 201.
uma narrativa que simboliza algo. É necessário fazer uma interpreta- Do ponto de vista de nossâ experiência com a naffativa dominante
ção narrativa daquele sinal antes que o sentido possa ser relacionado sobre a revisão do grupo, causalidade, corn sua subsequente certeza, é a
a ela. Sem compreender a história narrativa da criança, â importância marca central. No exemplo acima, sobre o desempenho de um aluno rela-
ou significado daquele desempenho, o símbolo, permanece desconhe- cionado a um teste avaliativo, a equação entre desempenho e nível cogni-
cido. O progresso dos alunos em uma prova não diz muito ao âvalìador tivo é tida como uma causalidade assumida. 0 pensamento sobre um dado
ou ao professor até que a narrativa da história de aprendizagem do nível cognitivo pode causar um determinado desempenho na prova. Esta
aluno é trazida para dar suporte àquele desempenho. Por exemplo, um relação dá aos professores, aos avaliadores e outros, certos conhecimen-
desempenho particular pode representar a rota de aplicação de um al- tos sobre o desempenho do aÌuno, e como implicação, certo conhecimento
goritmo, a aplicação de um conjunto de dicas para a solução de certos sobre o sucesso do currículo e do ensino.
probìemas, ou o desempenho de alto nível cognitivo.
Em contraste, do ponto de vista da narrativa dominante [em nos-
sa experiência com o grupo de revisão da Taxonomia), o desempenho do Contexto
aluno sobre uma avaliação é tomado como uma evidência direta do ní-
vel cognitivo obtido pelo aluno: quanto mais complexo o comportamento Uma quinta tensão centraliza-se no contexto, No pensamento nar-
daquele desempenho, maior o nível cognitivo dos objetivos alcançados. rativo, o contexto está sempre presente. Isso inclui noções tais como con-
Assin, para o grupo da taxonomia, uma açäo é tomada como uma evidên- texto temporal, espacial e contexto de outras pessoas. O contexto é neces-
ciä direta. Há uma equação relacionando ação e significado, relacionando sário para dar sentido a qualquer pessoa, evento ou coisa. Por exemplo,
desempenho e nível cognitivo. No pensamento narrativo, no entanto, há de alguma forma nós introduzimos o contexto que em nossa revisão da
um caminho interpretativo entre a ação e o significado mapeâdo em ter- Taxonomia foi feito pelo uso de uma distinção entre o dentro da sala de
mos de históÌ'ias narrativas. aula e o fora da sala de aula, na paisagem da escola. Essa contextualizaçào
nos permitiu mostrar que os objetivos podem ter um papel diferente para
as pessoas em uma sala de aula e em um cenário de ensino do que teria,
para pessoas fora da sala de aula, em outros cenários.

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Do ponto de vista de nossa experiência com a narrativa dominante, CAPITULO 3
no grupo da revisão, o contexto foi assumido pelos outros rnembros como
sendo qualquet" lugar. Foi assunido que todos nós temos ulr só contexto.
No entanto, embora o contexto tivesse sido reconhecido, os membros do
gì'upo da Taxonon.ria consideraram um contexto geral. Algo importânte,
para aquele grupo, era cdar uma Taxonomia que pudesse ser apìicada
* Pensando narrativamente -
em todos os contextos. Por exemplo, assuntir em suas implicações, o ní-
vel cognitivo, pelo qual os alunos tiveram seu desempenho, era de suma fronteiras reducionista e formalista'
importâl'ìcia. As circunstâncias contextuais não foram consideradas im-
portantes. Nå narrativa dominante, mais Seralmente, o contexto pode ser
analisado em variáveis e nredidas de certezâ relacionadas a importância
de vários fatores contextuais. Por exemplo, as correlações podem ser esta-
belecidas entre o desempenho e a variável sfdfus socioeconômico. Na nar-
rativa dominante, o caso universal é de grande interesse' No pensamento
narrativo, a pessoa em contexto é o que interessa

.&,Y
Resumo !+ t1 J
¡, &"*
Ao explorarmos os pontos principais das tensões nas fronteil'as entre
*" X o capítulo dois, compusemos um relâto narrativo da
a narmtiva dominante e o pensamento narrativo, fomos lembrados que uma
nossa experiência de trabalho nas fronteiras, definindo-as com base
nas perspectivas de se pensar narrativamente e de se pensar confor-
base teór'ica para identificação das tensões nessas fronteiras vem de dois
me a narrativa dominante. Nosso foco prÌncipal até o momento tem
critérios sobre experiência, de Dewey: continuidade e interação. Questões
recaído, na maior parte do tempo, sob as tensões entre a pesquisa nar-
sobre continuidade, no trabalho com o grupo da revisão da Taxonontia,
levaram às tensões relacionadas a temporalidade, pessoas, ação e certeza.
rativa e a narrativa dominante. No capítulo dois, porém, fomos e vol-
tamos no que concerne às concepções de narrativa, como pesquisa e
Questões sobre interação levamm às tensões relacionadas a contexto, pes-
soas, ação e certeza. Pam Dewey, os dois critérios são inseparáveis e, ao pen-
como prática profissional, e pesquisa e prática profissional de acordo
sarmos nas fronteiras por meio das tensões, vemos as mesmas não como
com a rìarrativa dominante. Nosso exemplo, de modo geral, realiza-se
uma lista de fatores independentes, mas sim como interconectâdas' do ponto de vista da prática profissional. Como expusemos anterior-
No próximo capítulo, começamos a expìomr oufiä ft'onteira entre o mente, justificamos a participação no grupo de revisão da Taxonomia
pensanlento narrativo e outEs formas de pesquisa, Lidan.ros com o tema sob devido ao fato da Taxonomia ser amplamente utilizada na prática pro-
o an.rplo título: da fronteira entre o pensamento naffativo e o formalismo.
fissional da Educação. 'z

l Traduzido por: Ana CaroÌina de Laurentiis Brandão (UNEMATI e por Cássia


Reg¡na Migliorança .
z Escrevemos sobre esse lópico no Cambridge JoLtrnal of Education [1990] e no
Handbook of Qualitatíve Research (1994).

66 . D.lean Clandinin lF. Michael Connely Pesquisa narrativa . 67

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