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OPEN ACCESS

CIVITAS
Revista de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Civitas 24: 1-12, jan.-dez. 2024


e-ISSN: 1984-7289 ISSN-L: 1519-6089

http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2024.1.44778

DOSSIÊ: CAMINHOS DA CRÍTICA: IDENTIDADES, FEMINISMOS E PROJETOS EMANCIPATÓRIOS

Patriarcado e interseccionalidade: o público e o privado como


ponto de convergência teórica
Patriarchy and intersectionality: the public and the private as a theoretical point of
convergence
Patriarcado e interseccionalidad: lo público y lo privado como punto de convergência
teórica

Isadora Vianna Sento- Resumo: O artigo discute a importância dos domínios público e privado na
análise feminista, destacando a presença da dicotomia entre essas esferas nas
Sé1
orcid.org/0000-0003-3579-5969 teorias do patriarcado e na interseccionalidade. A separação entre o público e
isadorasentose@gmail.com
o privado tem raízes históricas e está relacionada à opressão das mulheres na
esfera privada e sua exclusão da esfera pública. A exclusão das mulheres da
teoria política tradicional e a invisibilidade de suas identidades de gênero são
criticadas, apontando a importância de reconhecer a influência do gênero na
esfera pública e na economia. A oposição entre público e privado é explorada
Enviado: 31 maio 2023.
nos estudos feministas e permeia as teorias do patriarcado e da interseccionali-
dade, aqui expressas pelos escritos de Pateman, Okin, Fraser, Walby, Hill Colins,
Aprovado: 26 out. 2023.
Crenshaw, Davis e Bilge, evidenciando o potencial de complementaridade entre
Publicado: 05 abr. 2024.
ambas as correntes teóricas.
Palavras-chave: Patriarcado. Interseccionalidade. Feminismo. Público e privado.
Abstract: The paper discusses the importance of the public and private domains
in feminist analysis, highlighting the presence of the dichotomy between these
spheres in theories of patriarchy and intersectionality. The separation between
the public and the private has historical roots and is related to the oppression
of women in the private sphere and their exclusion from the public sphere. The
exclusion of women from traditional political theory and the invisibility of their
gender identities are critiqued, pointing to the importance of recognizing the in-
fluence of gender in the public sphere and the economy. The opposition between
public and private is explored in feminist studies and permeates the theories of
patriarchy and intersectionality, expressed here by the writings of Pateman, Okin,
Fraser, Walby, Hill Collins, Crenshaw, Davis and Bilge; highlighting the potential
for complementarity between both theoretical currents.
Keywords: Patriarchy. Intersectionality. Feminism. Public and private.
Resumen: El artículo aborda la importancia de los ámbitos público y privado
en el análisis feminista, destacando la presencia de la dicotomía entre estas
esferas en las teorías del patriarcado y la interseccionalidad. La separación entre
lo público y lo privado tiene raíces históricas y está relacionada con la opresión
de las mujeres en la esfera privada y su exclusión de la esfera pública. Se critica
la exclusión de las mujeres de la teoría política tradicional y la invisibilidad de
sus identidades de género, señalando la importancia de reconocerla influencia
del género en la esfera pública y la economía. La oposición entre lo público y lo
privado se explora en los estudios feministas e impregna las teorías del patriar-
cado y la interseccionalidad, expresadas aquí por los escritos de Pateman, Okin,
Fraser, Walby, Hill Collins, Crenshaw, Davis y Bilge; destacando el potencial de
complementariedad entre ambas corrientes teóricas.
Artigo está licenciado sob forma de uma licença Palabras clave: Patriarcado. Interseccionalidad. Feminismo. Público y privado.
Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

1
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
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Introdução: o público e privado digna” da atividade humana.


Os domínios na vida doméstica (privada) e na Nenhuma esfera privada demarcada concei-
vida não doméstica (pública) são centrais não tualmente e determinada socialmente como
apenas na maior parte das formulações que uma dimensão mais ampla da vida social pode
permeiam os estudos de gênero, mas também existir sem um mundo público em contraste. As
no pensamento ocidental desde o século17 (Okin especulações teóricas da autora estão localizadas
2008). Neste artigo defendo a complementarie- nas origens da nossa noção básica de público e
dade das teorias do patriarcado com a intersec- privado em um meio social humano.
cionalidade como ferramentas teórico-metodoló- Logo, a separação entre um mundo público,
gicas para a análise feminista. Destaco em ambas da política, e um mundo privado, da família, de
as correntes teóricas a presença fundadora da produção e reprodução, foi possível graças a
dicotomia entre o público e o privado nas análises um vocabulário preexistente que permitia os
generificadas, estabelecendo a família e a política termos e as comparações de contraste entre
como locus privilegiado da pesquisa feminista. os dois. Dessa forma, a esfera pública se tor-
Para compreender a formulação feminista do nou a esfera dos discursos – em que tem lugar
patriarcado, é preciso, portanto, voltar à produ- o discurso masculino. O discurso, entretanto,
ção da dicotomia entre o público e o privado. O também tinha os momentos públicos e privados.
princípio dessa separação está vinculado à obra Algumas categorias de sujeitos – na sociedade
de Mary Wollstonecraft (2001), com o movimen- grega, mulheres e escravos – foram confinados
to pela inclusão política, o sufrágio universal, às esferas privadas do discurso. Aqueles que são
ampliando para as mulheres os direitos que o silenciados não são os que não têm nada a dizer,
pensamento liberal e a Revolução Francesa afian- mas, sim, os que não possuem uma voz pública
çavam a todos os homens (Miguel 2016). Logo, (Elshtain 1981).
é o destaque que Wollstonecraft dá à opressão Como as mulheres foram silenciadas ao longo
na esfera privada, aliada à exclusão na esfera da maior parte da história ocidental, suas visões
pública, que a designa como feminista, tendo a e papéis no processo civilizatório foram subes-
crítica da distinção entre o público e o privado timados ou associados a uma ordem menor de
como própria do pensamento feminista. significância, comparada às atividades políticas
Elshtain (1981) aponta que a tendência geral é a dos homens. Sendo assim, a autora propõe uma
de afirmar a primazia do mundo público, a esfera reconstrução do público e do privado, sob uma
política, dominada pelos homens, em detrimento moldura da teoria e da política dos limites, não
do mundo privado da família, tradicionalmente porque pode visar apenas possibilidades limita-
marcado pela predominância feminina, dominada das da política, mas precisamente o contrário: ela
e subalternizada. A autora, portanto, empenha sabe que a política transforma facilmente a en-
esforços em ligar pilares conceituais, como pú- grenagem de possiblidades destrutivas ilimitadas.
blico e privado, a imperativos associados com Falar do mundo privado é falar da família. Des-
a natureza humana, com as teorias da língua e mascarar distorções ideológicas não é o mesmo
da ação, e com os valores e fins divergentes da que construir alternativas – ainda que haja mu-
vida familiar e política. Essas esferas são assu- danças na visão que celebra a maternidade, mas
midas como naturais e inerentes às sociedades. desmerece as mulheres, isso não significa que há
Ela, entretanto, aponta para as alternativas que um novo ideal de vida privada. A ideia de família
politizam a esfera privada e privatizam o domínio serviu, portanto, como ferramenta política que
público – a bifurcação entre essas duas esferas, afasta a mulher do espaço público – considerado
para Elshtain, cria uma noção de que o domínio pouco seguro para elas. A violência de gênero,
privado é tratado como base necessária para a por exemplo, gerada na intimidade amorosa,
vida pública, ainda que seja uma forma “menos revela a existência do controle social sobre os
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corpos, a sexualidade e as mentes femininas, o ligada à divisão sexual do trabalho.


que evidencia a inserção diferenciada de homens Há duas questões centrais para as teóricas
e mulheres na estrutura familiar e social, assim feministas que trabalham com o conceito de
como a manutenção das estruturas de poder e patriarcado: a persistência e a onipresença da
dominação disseminadas na ordem patriarcal dominação masculina nas relações políticas e
(Bandeira 2019). sociais, possibilitando a construção da ideia de
A oposição entre o público e o privado é fre- sistema e estrutura patriarcais nas sociedades
quentemente explorada em estudos feministas contemporâneas. O conceito é atualizado a partir
para compreender a produção das formas de da noção do contrato sexual, em livro que leva
opressão e discriminação de gênero. A violência este mesmo nome (Pateman 1993), uma crítica
de gênero não emerge de atitudes e pensamen- feminista às teorias contratualistas. Nessa obra,
tos de aniquilação do outro, na qual este outro Pateman explora os pressupostos e os limites
é considerado como um igual em relação ao da teoria do contrato social, trazendo questões
perpetrador da violência. Pelo contrário, é pela feministas presentes, por exemplo, no contra-
perspectiva do gênero que a violência contra as to de casamento, no trabalho remunerado e
mulheres é motivada por expressões da desigual- na prostituição. Essa noção desloca o foco do
dade embasadas na condição do sexo, que têm poder masculino na relação entre pais e filhos,
como locus inicial a família, em que são projetadas para a relação conjugal, em que a submissão
as relações hierárquicas (Bandeira 2019). Essas das mulheres é a condição basilar para que o
noções são particularmente importantes para a poder patriarcal se institua (Saffioti 1999, 2015;
compreensão da formulação de patriarcado de Walby 1989).
Carole Pateman, em O contrato sexual (1993) que Segundo Pateman (1993), entre os problemas
apresentarei na próxima seção. das formulações contratualistas (Hobbes 2013;
Locke 2019; Rousseau 2020), três são mais im-
Contrato e patriarcado portantes: (1) a maneira pela qual os indivíduos
trocam suas liberdades naturais, entendidas
Em muitas análises, a violência é tratada como
como propriedades, podendo, portanto, serem
um dos mecanismos de controle das mulheres,
negociadas; (2) o fato de que nem todos os indiví-
tendo em vista que a divisão sexual do trabalho
duos que estão no estado de natureza participam
e o enquadramento das mulheres à esfera pri-
do pacto; e (3) a crítica aos mecanismos de sub-
vada persistiram sendo categorias explicativas
missão voluntária, ligada ao caráter conjectural
para a desigualdade, somadas ao controle do
do consentimento, sobre o qual ela concebe a
comportamento das mulheres, principalmente
promessa à obediência. O primeiro problema
nos campos sexual e reprodutivo (Rosaldo 1974,
aponta para a contradição de um sistema jurídi-
Baserup 1970 citado por Walby 1990).
co baseado em direitos inalienáveis e em uma
Simone de Beauvoir (2014), a partir de algumas
ordem que define uma autoridade produzida
interpretações de Engels, determinou a “vitória
pelo desvio desses direitos.
do patriarcado”, constituído por um conjunto de
O segundo problema é fundamental para a
fatores biológicos e socioculturais. Para ela, as
formulação do contrato sexual: nem todos os
posições de homens e mulheres, definidas cul-
indivíduos que estão no estado de natureza
turalmente, podem ser compreendidas a partir
participam do pacto. Para Locke, Rousseau e
da ideia de diferença – que está enraizada em
Kant, essa exclusão decorre de uma inferioridade
concepções biologizantes do que é ser mulher
natural de alguns indivíduos, mulheres, crianças
e do que é ser homem. A vitória do patriarcado é
e não proprietários. Ora, se a legitimidade da
determinada com a instalação definitiva da sub-
relação contratual se baseia no entendimento
missão feminina, requisito para a consolidação
de que as partes são igualmente capazes e, ao
do regime de propriedade privada, intimamente
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mesmo tempo, mulheres e não proprietários são submissão e restrição de direitos, e cria o que
inferiores por natureza, sua aderência a vínculos ela chama de “lei do direito sexual dos homens
contratuais é ilegítima. Pateman argumenta que aos corpos de mulheres”. Aqui ela se refere a
a dominação sobre as mulheres é fundamental, uma alienação de direitos efetiva, ainda que não
mas muitas vezes negligenciada no contexto declarada. O questionamento de Pateman (1993)
do patriarcado político, perdendo-se na teoria está no paradoxo de que cada indivíduo possui a
política a verdadeira dimensão da desigualdade propriedade de si mesmo e de que essa noção
de gênero na elaboração das instituições e na ratifica formas de subordinação e de renúncia
esfera pública: “o contrato social é uma história a direitos.
de liberdade; o contrato sexual é uma história de O termo patriarcado aparece como um sinô-
sujeição” (Pateman 1993, 16). nimo de dominação masculina, o que suscitou
Finalmente, o terceiro problema é a crítica aos muitas críticas feministas. Tanto o patriarcado
mecanismos da submissão voluntária, ligada ao no sentido político, de dominação absoluta, que
caráter conjectural do consentimento, sobre o pressupõe uma nação com vínculos orgânicos,
qual ela concebe que a promessa da obediência quanto o patriarcado no sentido doméstico, em
é incabível porque revoga as capacidades que que há uma família de diversas gerações sob o
permitem o próprio indivíduo prometer. Em O comando de um patriarca, não correspondem à
contrato sexual, Pateman (1993) escrutina os realidade atual.
mecanismos pelos quais as mulheres são convo- É também problemático estabelecer paridade
cadas a “consentir livremente” com a dominação entre uma família nuclear ocidental contempo-
masculina. rânea e uma família propriamente patriarcal. Nas
Há, também, na obra de Pateman (1993, 18), sociedades ocidentais, as relações de subordina-
uma reflexão sobre a tradição do pensamento ção diretas de uma mulher a um homem, carac-
político ocidental, propondo uma releitura femi- terísticas do patriarcado, foram convertidas em
nista de um de seus elementos centrais. A autora formas coletivizadas de dominação. Okin (2014,
argumenta que, para compreender o papel do 125, tradução da autora) alegou que, nas socie-
contrato no pensamento liberal, é preciso explo- dades ocidentais, há sim estruturas e processos
rar o contrato social, o contrato de trabalho, e o que distribuem de forma desigual oportunidades
contrato de casamento, os dois primeiros são e vantagens entre homens e mulheres, chamados
distorcidos pela teoria política convencional, e “ciclos de assimetria distintiva causada social-
o último, ignorado. Logo, ela alega que os me- mente pelo casamento”. Nesse ciclo, a tradicional
canismos de exploração são, com frequência, responsabilidade das mulheres de cuidar das
revestidos de relações contratuais. crianças ajuda a moldar os mercados de trabalho,
No caso do contrato de casamento, a mulher criando desvantagens para as mulheres. O resul-
pode renunciar à sua autonomia em troca da tado é uma desigualdade de poder econômico,
proteção do marido, já que ela é proprietária que reforça e exacerba o desequilíbrio de poder
de si mesma e, assim sendo, pode alienar seus na família. Para Okin, as mulheres são colocadas
direitos. As críticas se relacionam com as deci- em posição de vulnerabilidade, primeiro, pela
sões, vistas sob o ângulo da formulação liberal antecipação do casamento e por serem mães,
“livres”, que são efeitos das prescrições materiais dado que a expectativa de responsabilidades
e simbólicas, além da escassez de alternativas. domésticas e de cuidado molda suas decisões
Ainda, Pateman herda de Rousseau a crítica (e de seus empregadores) nos campos da edu-
ao individualismo possessivo, impossibilidade cação e do grau de comprometimento com
de um contrato que retire de uma das partes a o próprio emprego. As mulheres são também
liberdade que era condição necessária para seu vulnerabilizadas no casamento, tendo em vista
estabelecimento. O contrato original envolve a que, com menos oportunidades de trabalho, de-
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tendo menos poderio econômico, o seu poder de relação de subordinação, já que envolvem “po-
barganha é inferior ao dos maridos. Por fim, elas der de trabalho”, “serviços sexuais” e “serviços
estão também vulneráveis no divórcio, que traz gestacionais”. Ela lê a teoria de Pateman como o
uma perceptível queda em seu poder de compra estabelecimento de uma díade baseada em uma
e, consequentemente, dos filhos (Okin 2014). Em relação de poder entre um homem, o superor-
vez de olhar apenas para a díade matrimonial, denado, que comanda uma mulher, subordinada
Okin analisa o contexto institucional mais amplo (Fraser 1993). O contrato sexual seria, portanto, o
no qual essa díade está situada. Logo, seria me- meio pelo qual é estabelecido e “democratiza-
lhor compreender como a dominação masculina do” o “direito sexual masculino”, como o direito
é capaz de resistir, mesmo quando as práticas individual dos homens de comandar mulheres
são substituídas, do que buscar uma essência individualmente. Os contratos, portanto, esta-
expressa pela ideia do patriarcado (Okin 2014; belecem essa díade em que o patrão adquire
Fraser 1993; Miguel 2016). o poder sobre o empregado; o marido sobre a
Diferente do patriarcado tradicional, em que mulher; o cliente sobre a prostituta etc. É esta
há uma analogia entre a autoridade do estado díade mestre/súdita que constrói os significados
e a autoridade do patriarca na família, Pateman de masculinidade, feminilidade, sexualidade e
(1993, 45). indica uma releitura do pensamento contrato sexual, sendo esse o modelo simbólico
patriarcal. Ela propõe a formulação também da da cultura patriarcal. Segundo Fraser, contudo,
ideia do patriarcado moderno, dispensando uma nenhum dos contratos reais apresentados por
figura paterna, caracterizado por ser “fraternal, Pateman é adequadamente compreendido pelo
contratual e estrutura a sociedade civil capitalista”. modelo dicotômico de mestre/súdita.
São muitas as críticas às teorias do patriarcado, Sobre o contrato de casamento, ainda que
sendo uma das principais a determinação de que reconheça o mérito de Pateman em destacar as
o contrato sexual deriva do crime do estupro. suas anomalias e as persistências no século 20
O ponto de Pateman é assinalar o paradoxo do das incapacidades legais das esposas (incluindo
consentimento – uma vez que há um desloca- o não reconhecimento em muitas jurisdições do
mento do sexo consensual para a subordinação estupro no casamento), Fraser argumenta que
na vida conjugal – e no fato de que a dominação parece um engano compreender o poder de
patriarcal sobre os filhos se estabelece a partir maridos sobre suas esposas somente ou prin-
de uma assimetria preexistente entre o marido cipalmente sob os termos de mestre e súdita
e a mulher. A crítica de Okin a esse ponto é a de proposto pelo contrato sexual.
que Pateman estaria se aproximando de femi- Portanto, Fraser considera que seria melhor en-
nistas radicais que consideram impossível ou tender o casamento como uma parceria desigual
quase impossível que exista consenso em uma na qual a “voz” está inversamente correlacionada
relação heterossexual. Ademais, Nancy Fraser às oportunidades de saída, do que como uma
(1993) também considera que Pateman (1993) relação entre mestre e súdita. A autora também
lê as relações entre homens e mulheres como critica a abordagem de díade dos contratos de
de “mestres e subalternas”, assinalando que prostituição. A prostituição é analisada por Pa-
o ambiente social que forçava as mulheres ao teman como uma manifestação comercial da
casamento sofreu transformações. vida real do contrato sexual, um caso público
Fraser (1993) critica essa elaboração, listando do “direito sexual masculino”. Falar de “venda de
os exemplos de contratos articulados por Pate- serviços sexuais (ou gestacionais)” é uma distor-
man (1993): a propriedade de pessoas (expressa ção, ela afirma, já que tanto as partes sexuais da
pelos contratos de casamento; de trabalho assa- prostituta como o ventre da “mãe de aluguel” não
lariado e de barriga de aluguel). Esses contratos podem ser usadas sem sua presença, nem sem
estabelecem, segundo Pateman (1993), uma sua subordinação. O contrato estabelece assim
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uma relação mestre/súdita na qual um homem e sociedades. Uma teoria do patriarcado é, para
comanda o corpo de uma mulher. Longe de ela, essencial para assimilar a profundidade e o
serem simples transações comerciais, esses con- grau de interconexão e difusão entre as diferentes
tratos institucionalizam o direito sexual masculino. noções de subordinação feminina. Dessa forma,
O uso por Pateman do modelo mestre/subal- ela desenvolve sua teoria de maneira que as
terna é, nesse caso, tanto literal quanto simbólico. diferentes formas de desigualdade de gênero
No nível literal, ela parece sustentar que na pros- na história, entre diferentes grupos étnico-raciais
tituição o cliente adquire o direito de comando e classes sociais, são consideradas. Ela propõe,
sobre a prostituta. Por um lado, como observa portanto, a adoção das ideias de “patriarcado pri-
Pateman, a prostituição envolve um “contrato vado” para “patriarcado público”, postulando que
de desempenho específico”, quase uma troca há uma passagem do primeiro para o segundo, no
simultânea; ao contrário do casamento, ela não qual as mulheres acessam a esfera pública, mas
estabelece uma relação de dependência a longo ocupam uma posição subalterna. O patriarcado
prazo. Contudo, Fraser alega, a transação é regida é, para ela, composto de seis estruturas: (1) modo
por negociações antecipadas sobre “serviços” patriarcal de produção; (2) relações patriarcais na
específicos, que limitam o poder do cliente (di- esfera reprodutiva; (3) relações estatais patriarcais;
zer isso não seria negar a vulnerabilidade das (4) violência masculina; (5) relações patriarcais
prostitutas ao estupro, à coerção e à violência). na sexualidade; e (6) relações patriarcais nas
Ainda, em algumas (embora não todas) culturas instituições culturais. Essas estruturas produzem
masculinas de hoje, o recurso à prostituição é efeitos causais umas sobre as outras.
um sinal não de poder ou maestria, mas de ver- Walby busca captar as articulações entre as
gonha, sufocada com o constrangimento de ter melhorias na situação das mulheres (que ela
que pagar por “isso”. atribui ao grau de patriarcado) e a exasperação
Fraser ressalta que Pateman tem razão em de algumas condições de subordinação asso-
afirmar que a prostituição contemporânea é mar- ciadas à violência (que está relacionada à forma
cada pelo gênero; são esmagadoramente os do patriarcado), apontando que há mudanças
homens que compram sexo de mulheres. Ela importantes em ambos os campos. As melhorias
ainda argumenta que o que é vendido é uma na situação das mulheres são observadas na re-
fantasia de “direito sexual masculino”, que impli- dução das diferenças salariais e de escolarização
ca sua precariedade atual. Longe de adquirir o entre homens e mulheres, o que sinaliza para
direito de comando sobre a prostituta, o cliente um processo de arrefecimento do patriarcado.
recebe apenas a representação encenada de tal Entretanto, alguns aspectos da manifestação do
comando. Uma representação dessa natureza, patriarcado foram intensificados. Este reforço,
entretanto, envolve uma contradição performa- segundo Walby, está relacionado às mudanças
tiva (Fraser 1993, 179). Ela resume sua crítica na operadas no último século, a partir das quais
seguinte frase: “a dominação masculina atual o patriarcado assumiu uma forma mais públi-
não se encaixa como um velho vinho de mestre/ ca do que privada. A produção doméstica é o
subalterna em novas garrafas contratuais”, ou locus principal da opressão das mulheres no
seja, as relações modernas de dominação se dão patriarcado privado. Já, no patriarcado público,
em termos diferentes daqueles preconizados este locus se desloca para o mercado e para o
antigamente, ainda que sejam persistentes às estado (Walby 1989).
mudanças na organização social. Walby argumenta haver um duplo processo
Walby (1989), em sua abordagem sobre o de transformação no patriarcado público, embora
patriarcado, procura dar conta das críticas ao seja difícil mensurar aumentos ou reduções na
termo, levando em consideração suas distintas violência contra as mulheres, em decorrência da
manifestações históricas e em diferentes culturas fragilidade das fontes de informações e processos
Isadora Vianna Sento-Sé
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metodológicos de registros. Graças à atuação do como uma ferramenta teórico-metodológica que


movimento feminista, que resultou em mudanças nos permite analisar as interações entre gênero
políticas e penais, a violência perdeu um pouco e outros marcadores – classe, raça, ocupação,
da legitimidade social e a violência provocada sexualidade e idade, por exemplo –, e como
por parceiros íntimos pode não apresentar mais essas clivagens que constituem o sujeito na es-
tanta exclusividade entre os casos de violência tratificação social são percebidas, mobilizadas e
que atingem as mulheres. Além disso, a inconsis- produzem diferentes formas de assujeitamento.
tência e a fragilidade das ações estatais contra a Crenshaw (2013) argumenta que os discur-
violência, que apresentam relação causal direta sos feministas e antirracistas contemporâneos,
com a persistência do problema, apontam, no até então, não conseguiram adequadamente
seu entender, para um deslocamento no locus identificar os pontos de convergência entre o
do controle e na legitimação da violência, em vez racismo e o patriarcado. Diante dessas lacunas,
de uma redução propriamente dita (Walby 1989). ela introduz o conceito de interseccionalidade,
O problema dessa proposta de Walby é que o que desdobra em três dimensões distintas. A
conceito de patriarcado moderno de Pateman já primeira dessas dimensões se concentra na
dispensa a figura de um patriarca na organização interseccionalidade estrutural, que diz respeito
familiar (Miguel 2016). Há ainda uma crítica que à posição das mulheres negras, cuja experiência
se refere à capacidade de agência das mulheres. de violência doméstica, estupro e os esforços
Contudo, afirmar a ideia de que os contratos são para abordá-los são qualitativamente distintos
recíprocos, voluntários e vantajosos, não significa daquelas vivenciadas pelas mulheres brancas,
que aqueles que estão em maior vulnerabilidade devido à interseção de raça e gênero. Nesse
não possuem qualquer capacidade de barganha. contexto, a interseccionalidade estrutural nos
Em sua formulação do patriarcado, Segato convida a examinar como as políticas sociais e
(2003) o define como uma ordem reguladora econômicas contribuem para a manutenção de
e hierarquizada do status de gênero, colocado disparidades históricas e desigualdades entre
e reproduzido sob a lógica de uma economia grupos, como se evidencia em exemplos como
simbólica. Essa é uma ordem que determina e a falta de recursos em escolas de bairros des-
designa papéis sexuais, definidos por “atributos” favorecidos e discrepâncias nas sentenças do
de homens e de mulheres materializados por sistema de justiça criminal. O segundo aspec-
ideias de masculinidade e feminilidade. Segato to da interseccionalidade aborda a dimensão
atribui à violência contra a mulher, por exemplo, política, especificamente a marginalização da
um caráter de universalidade da experiência de questão da violência contra mulheres negras
violação dos corpos, embora reconheça que há pelos movimentos feministas e antirracistas. Aqui,
diferenças históricas e culturais nos casos, elas a autora explora a política de identidade tanto
são a mesma manifestação de uma estrutura dentro como entre grupos, examinando situa-
hierárquica. Outras feministas, contudo, direciona- ções em que subgrupos dentro de movimentos
ram boa parte de seus trabalhos em estabelecer marginalizados são estigmatizados até mesmo
e compreender justamente essas diferenças, por suas próprias comunidades mais amplas,
rejeitando a tese da universalidade. destacando a situação de subalternização das
mulheres negras nos Estados Unidos, vítimas
Interseccionalidade: gênero e outros de uma dupla marginalização tanto por parte
marcadores de desigualdade do movimento feminista quanto do movimento
negro (Crenshaw 1995). A terceira dimensão,
Nesse sentido, a interseccionalidade, conforme
chamada de interseccionalidade representativa,
formulada pelo feminismo da teoria crítica da raça
focaliza as implicações da representação pública
nos Estados Unidos (Crenshaw 2013; Colins 1998;
inadequada e a estereotipagem de grupos raciais
Kantola e Lombardo 2017) vem sendo acionada
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e étnicos na mídia. idealizam a família como um paraíso privado, em


Portanto, a autora propõe a interseccionalidade detrimento de um mundo público, a veem como
como uma ferramenta essencial para uma com- unida por laços emocionais de amor e cuida-
preensão mais profunda das complexas intera- dos. Assumindo o desenho da divisão sexual do
ções entre raça e gênero no contexto da violência trabalho, na qual o papel primário da mulher é
contra as mulheres negras (Crenshaw 1995). Esse definido pela domesticidade e o do homem pelo
conceito revela como o racismo e o patriarcado mundo público do trabalho, o ideal tradicional de
se entrelaçam e se influenciam mutuamente, família também assume a separação entre ela e
destacando a situação única das mulheres ne- o mundo do trabalho. No entanto, como a família
gras, que são submetidas simultaneamente a constitui um princípio fundamental de organiza-
sistemas de opressão que se sobrepõem e que ção social, a sua importância também contempla
são marginalizadas pelos movimentos feministas o paradigma emergente da interseccionalidade
e antirracistas. A autora enfatiza a importância de (Collins 1998).
reconhecer a experiência das mulheres negras Em sua discussão, Collins (1998) lista as di-
como central para o avanço das agendas rela- mensões interseccionais importantes para se
cionadas à violência contra as mulheres e às po- pensar família: classe social, etnicidade e religião,
líticas antirracistas, uma vez que essas mulheres sexualidade, idade – e todas essas dimensões
enfrentam o que ela descreve como uma “dupla dialogam com gênero, raça e nação. Ainda assim,
marginalização” (Crenshaw 1995, 12), o que as a ênfase é em como a família liga hierarquias
priva da oportunidade de vincular suas próprias sociais de gênero, raça e nação e, no relaciona-
experiências às experiências de outras mulheres. mento contraditório na esfera doméstica, entre
Logo, o conceito oferece uma aproximação entre hierarquia e igualdade.
as reivindicações da identidade múltipla e uma O ideal de família projeta um modelo de igual-
política de identidade. dade. Uma família funcional protege e pondera
Já Colins (1998) estabelece uma discussão so- os interesses de todos os seus membros: os
bre a família como um primeiro lugar de produção fortes cuidam dos fracos, e todos contribuem
de hierarquias e estruturas de poder que serão e se beneficiam de serem membros da família.
reproduzidas socialmente. Ela propõe primeiro Em particular, as hierarquias de gênero, dinheiro,
uma reflexão sobre os valores familiares ideali- 2
sexualidade e idade estão, na unidade familiar,
zados – frequentemente evocados em discursos correlacionadas com hierarquias sociais. Os in-
políticos americanos, que tomam espaço no divíduos aprendem seu lugar nas hierarquias de
debate público – e questiona sobre quais são raça, gênero, etnicidade, sexualidade, nação e
eles. Também destaca que, apesar do gradiente classe social em suas origens familiares. Ao mes-
de perspectivas políticas que podem contemplar mo tempo, eles aprendem a ver tais hierarquias
os tais valores familiares, uma coisa é clara: a como arranjos sociais naturais e não construídos
ideia de família e desses valores que ela carrega socialmente. Nesse sentido, a hierarquia se torna
parece central para o bem-estar de uma nação. naturalizada, pois se confunde com a hierarquia
O termo “valores familiares” evoca sentimentos “natural” do processo familiar. Logo, a hierarquia
profundos quanto ao significado de família. cor, gênero, idade, estabelecida nas famílias, se
Para a autora, o ideal de família consiste em reproduz na sociedade americana: as comple-
casais heterossexuais com filhos biológicos. Essas xidades atreladas a esses relacionamentos de
famílias têm uma estrutura específica de autori- idade, gênero e raça unem-se a essa hierarquia
dade: o pai, chefe da família e provedor financeiro, “natural” decretada pelo ideal de família tradi-
a esposa, dona de casa, e os filhos. Aqueles que cional, apresentando estreita semelhança com

2
No original em inglês, o termo usado pela autora é “familyvalues”.
Isadora Vianna Sento-Sé
Patriarcado e interseccionalidade: o público e o privado como ponto de convergência teórica 9/12

as hierarquias sociais presentes na sociedade. sidade de primeiro evocar novas visões sobre o
Homens brancos dominam em posições de po- que é opressão e como ela é produzida. Como
der, ajudados pelas mulheres brancas, ambos gênero, classe e raça são estruturas de opressão
trabalhando juntos para administrar “pessoas imbricadas, apesar de distintas, elas formam
de cor” supostamente menos qualificadas, que dimensões interligadas da relação mais funda-
também se deparam com a mesma retórica mental de dominação e subordinação. Sua teoria
familiar (Collins 1998). é orientada por duas questões básicas: (1) como
Para Collins (1998), a palavra “lar” estabelece podemos redefinir raça, classe e gênero como
espaços de privacidade e de segurança para as categorias de análise; e (2) como podemos trans-
famílias, raças e estados-nação, e serve como cender as barreiras criadas através das nossas
santuário para membros de determinado grupo. experiências com as opressões de raça, classe
Cercado de indivíduos que dividem objetivos e gênero para que possamos construir os tipos
semelhantes, o lar representa um espaço priva- de coalizões essenciais para câmbios sociais?
do e idealizado, onde os seus membros podem Essas abordagens são tipicamente baseadas
se sentir bem. Essa perspectiva do lar requer em duas premissas-chave. A primeira é que elas
algumas ideias sexualizadas de gênero sobre os dependem do pensamento dicotômico, como,
espaços público e privado. Como as mulheres por exemplo, negro ou branco; homem ou mulher;
são frequentemente associadas à família, o es- razão ou emoção; fato ou opinião. Contrariamen-
paço doméstico passa a ser visto como privado, te a isso, a autora ressalta que todos possuem
feminizado, o que o distingue do espaço público, identidades “ambas”, construídas por diversas
masculinizado. Com essas esferas sexualizadas categorias, que determinam sujeitos definidos por
do espaço público e privado, mulheres e homens várias identidades: sexo, cor, classe social e idade.
assumem, novamente, papéis distintos. Portanto, Essa é uma dimensão importante, que possibilita
é esperado que as mulheres permaneçam no que, na análise empírica, nenhum indivíduo seja
lugar doméstico. tomado exclusivamente como oprimido ou como
Dessa forma, o desenvolvimento das teorias opressor. O pensamento dicotômico, no entanto,
interseccionais foi útil não apenas para as análises sugere justamente isso, o que o torna especial-
da interação entre sistemas de opressão na busca mente problemático para pensar a opressão, pois
por direitos, mas também no campo de estudos inviabiliza a condição de “ambos”.
da família. Few-Demo e Allen (2020) propõem a Uma segunda premissa das análises somató-
aproximação entre a epistemologia feminista que rias da opressão é que diferenças dicotômicas
designa as separações entre mundo público e têm de ser hierarquizadas. As análises somatórias
privado e as teorias interseccionais, a partir de pressupõem tanto o pensamento dicotômico
uma extensa revisão da literatura de estudos quanto a necessidade de somar e hierarquizar as
sobre família. As autoras estruturam o estudo opressões para referenciar onde aquele indivíduo
em três eixos de pesquisa: (1) o enquadramento se localiza socialmente. Em diferentes contextos,
de gênero como um sistema de estratificação uma categoria pode ter primazia sobre as outras,
social e desigualdades; (2) a aplicação de pers- o que não anula a relevância de gênero, classe
pectivas feministas interseccionais para apontar e raça como marcadores importantes de desi-
e transformar disparidades de poder nas esferas gualdades, estruturantes de todas as relações
pública e privada e (3) a aplicação de perspec- sociais (Collins 2015). A autora argumenta que a
tivas interseccionais para examinar e designar opressão de gênero é estruturada ao longo de
desigualdades sociais, privilégios e opressões. três dimensões: a institucional, a simbólica e a
No seu artigo “Em direção a uma nova visão: individual. Para Collins (2015), isso oferece um
raça, classe e gênero como categorias de análise instrumental para analisar as opressões de raça,
e conexão”, Collins (2015) aponta para a neces- classe e gênero, já que o racismo, o elitismo e o
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machismo podem ser observados em instituições. designada de privilégios ou punições e com ní-
De fato, as instituições ainda são espaços pri- veis variados de rejeição, inerentes às imagens
vilegiados, em que os princípios da perpetuação simbólicas a ela atribuídas (Collins 2015). Quanto
da dominação masculina são engendrados e à dimensão individual da opressão, Collins afirma
instituídos, muito embora as ações da dimensão que, no status simbólico e institucional, todas as
institucional da opressão sejam, com frequên- escolhas se tornam atos políticos. Para a autora,
cia, apagadas com reivindicações de igualdade é necessário transcender as barreiras criadas
de oportunidades e aparente neutralidade. O pelas experiências de opressão de raça, classe
argumento-chave está na instituição da escra- e gênero, para que seja possível construir tipos
vidão, por ser ela uma estrutura de dominação essenciais de coalização para a mudança social.
que envolvia raça, classe e gênero. Segundo a Para dar conta dos marcadores de desigual-
autora, as três categorias são elementares para dade, Silvia Walby (2007) desenvolveu uma es-
compreender essas relações de dominação e quematização que ela chamou de “Teoria de
subordinação. Apoiada no princípio da autori- complexidade” na qual ela concebe um conceito
dade do homem branco e em sua propriedade, de sistema na teoria social. Nesse sistema, ela
a escravidão era uma instituição patriarcal, que aponta para o desafio de teorizar a interseção de
trazia as esferas políticas e econômicas para o múltiplas iniquidades complexas. Para tanto, é
interior da instituição familiar. preciso dar conta da profundidade dos sistemas
Um dos instrumentos principais para a escra- de relações sociais de desigualdade nos domínios
vidão foi o controle sobre os corpos e a sexuali- institucionais da economia, política, violência, e
dade das mulheres brancas abastadas, uma vez sociedade civil, em vez de acentuar dimensões
que esse controle estava intimamente atrelado únicas de cultura ou economia (Kantola e Lom-
à manutenção das relações de propriedade. O bardo 2017). Walby aponta a impossibilidade
controle sobre os corpos das mulheres negras de tratar a interseção das desigualdades como
se materializava pelo controle sobre a fertilida- coisas que se adicionam, se apresentando em-
de dessas mulheres, sendo ele medular, dado pilhadas, porque elas também podem se alterar,
o caráter comercial – as crianças nascidas de interagindo umas com as outras. Ela, então, apre-
mães escravas eram, também, escravas. Sobre senta cinco abordagens da interseccionalidade: a
a dimensão simbólica da opressão, o uso mani- primeira é a crítica ao que Walby chama de falsa
pulado de imagens de grupos de raça, classe generalização (divisão de mulheres por classe,
e gênero diversos é central nesse processo. etnia e nação).
Aqui está uma das críticas mais básicas que o A segunda abordagem das desigualdades
feminismo negro americano fez ao feminismo múltiplas é a do reducionismo a um único eixo
nos anos 1970: o que parecem ser categorias primário de desigualdade social. Uma forma
universais que representariam todos os homens de reducionismo, encontrada especialmente,
e mulheres são, na verdade, produzidas e, por- mas não apenas, na teoria social de inspiração
tanto, aplicadas somente a um grupo (homens marxista, é o foco na categoria classe ou no ca-
e mulheres brancos). Ou seja, as imagens da pitalismo. Uma gama de desigualdades sociais
feminilidade branca necessitam das imagens pode ser empiricamente observada, e explica-
depreciadas da feminilidade negra para manter da como resultado de um sistema abrangente
credibilidade (Davis 2016). de desigualdade. Em resposta a essa forma
Ao ampliar a análise para além do marcador de reducionismo, houve muitas tentativas de
de raça, pode-se ver os diferentes níveis de constituir gênero e classe como sistemas articu-
rejeição e sedução disponíveis para cada indiví- ladores (Hartmann 1976; Walby 1989) ou como
duo, de acordo com identidade de raça, classe sistemas que eram parcialmente subordinados
ou gênero. Cada pessoa vive com uma porção a um único sistema. Esses desenvolvimentos
Isadora Vianna Sento-Sé
Patriarcado e interseccionalidade: o público e o privado como ponto de convergência teórica 11/12

sofreram críticas que foram tão orientadas para de poder interligadas, bem como para desen-
os problemas do conceito de sistema quanto volver uma ética que promova a formação de
para qualquer outro aspecto do trabalho. A ter- coalizões não opressivas e de reivindicações
ceira é o microrreducionismo, estratégia que vai (Bilge 2013, 468).
no sentido de identificar e estudar interseções As perspectivas de gênero, feministas e inter-
negligenciadas, para analisar grupos nos pontos seccionais são teorias críticas que têm sido em-
das interseções, muito usado em estudos de pregadas para reformular o campo da pesquisa
caso, etnografias, e se tornou uma estratégia sobre famílias, explorando não o que as famílias
de procurar categorias de interseção puras. A deveriam ser, mas sim como elas efetivamente vi-
quarta abordagem consiste na rejeição de todas vem. Na última década, estudiosos das dinâmicas
as categorias. A quinta e última estratégia pode familiares aplicaram essas perspectivas críticas
ser descrita como reducionista segregacionista, a um leque cada vez mais amplo de estruturas
na qual cada filamento é identificado e reduzido e processos familiares, abrangendo interações
a uma base única e separada. Em vez de rejeitar entre indivíduos, grupos e instituições. Esses
categorias, prioriza-se analisar cada um dos estudos têm focalizado questões que incluem
conjuntos de desigualdades sociais como parte relações de gênero, equilíbrio entre trabalho e
do processo de análise de sua interseção. Cada vida familiar, divisão de tarefas domésticas, cui-
conjunto de relações sociais é tido como idên- dado, parentalidade, violência doméstica, socia-
tico ou paralelo e possui uma base ontológica lização de gênero e racial, desigualdades sociais,
diferente. Por exemplo, as divisões de classe são disparidades na saúde e dinâmicas familiares
fundamentadas em relação aos processos eco- LGBTQIA+, entre outros tópicos que abordam a
nômicos de produção e consumo; gênero deve complexidade, ambiguidade e tensões inerentes
ser entendido não como uma diferença social à vida em famílias contemporâneas.
“real” entre homens e mulheres, mas como um
modo de discurso que se relaciona com grupos Considerações finais
de sujeitos cujos papéis sociais são definidos
Tanto o patriarcado quanto a intersecciona-
por sua diferença sexual/biológica (Walby 2007).
lidade são correntes teóricas frequentemente
Few-Demo e Allen (2020) ressaltam o aspecto
mobilizadas nos estudos de gênero. Além da
de que a aplicação da análise de interseccio-
negação da universalidade, há em ambas a pre-
nalidade transcende a mera obtenção de uma
sença da dicotomia entre o público e o privado
amostra que seja diversificada em termos de raça
na produção das diferentes clivagens sociais e
e etnia, bem como a realização de uma análise
sistemas de opressão. Enquanto as teorias inter-
comparativa que ignore o contexto histórico dos
seccionais focalizam as estruturas de opressão
comportamentos de indivíduos e famílias. Uma
que, integradas, produzem diferentes formas
segunda preocupação que se apresenta é a
de assujeitamento; as do patriarcado marcam a
constatação de que alguns acadêmicos estavam
ordem de gênero que opera na dominação das
utilizando uma abordagem despolitizada da in-
mulheres e no acesso limitado ao espaço público.
terseccionalidade, um fenômeno que Bilge (2013)
Entre as atualizações do patriarcado, há na
denominou de “interseccionalidade ornamental”.
divisão entre patriarcado público e patriarcado
Seria enganador considerar a interseccionalidade
privado proposta por Sylvia Walby, a tentativa
ornamental como inofensiva, uma vez que ela
de incorporar diferentes clivagens de opressão
contribui para neutralizar e, até mesmo, desar-
e dominação em ambas essas esferas. Neste
ticular ativamente as políticas radicais de justiça
artigo, situo, entre as teorias do patriarcado em
social. A aplicação superficial da interseccionali-
suas diversas formulações e interseccionalidade,
dade mina a sua credibilidade e prejudica o seu
pontos de convergência e complementaridade,
potencial para abordar as complexas estruturas
principalmente no que se refere aos mundos da
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