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CIVITAS
Revista de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2024.1.44778
Isadora Vianna Sento- Resumo: O artigo discute a importância dos domínios público e privado na
análise feminista, destacando a presença da dicotomia entre essas esferas nas
Sé1
orcid.org/0000-0003-3579-5969 teorias do patriarcado e na interseccionalidade. A separação entre o público e
isadorasentose@gmail.com
o privado tem raízes históricas e está relacionada à opressão das mulheres na
esfera privada e sua exclusão da esfera pública. A exclusão das mulheres da
teoria política tradicional e a invisibilidade de suas identidades de gênero são
criticadas, apontando a importância de reconhecer a influência do gênero na
esfera pública e na economia. A oposição entre público e privado é explorada
Enviado: 31 maio 2023.
nos estudos feministas e permeia as teorias do patriarcado e da interseccionali-
dade, aqui expressas pelos escritos de Pateman, Okin, Fraser, Walby, Hill Colins,
Aprovado: 26 out. 2023.
Crenshaw, Davis e Bilge, evidenciando o potencial de complementaridade entre
Publicado: 05 abr. 2024.
ambas as correntes teóricas.
Palavras-chave: Patriarcado. Interseccionalidade. Feminismo. Público e privado.
Abstract: The paper discusses the importance of the public and private domains
in feminist analysis, highlighting the presence of the dichotomy between these
spheres in theories of patriarchy and intersectionality. The separation between
the public and the private has historical roots and is related to the oppression
of women in the private sphere and their exclusion from the public sphere. The
exclusion of women from traditional political theory and the invisibility of their
gender identities are critiqued, pointing to the importance of recognizing the in-
fluence of gender in the public sphere and the economy. The opposition between
public and private is explored in feminist studies and permeates the theories of
patriarchy and intersectionality, expressed here by the writings of Pateman, Okin,
Fraser, Walby, Hill Collins, Crenshaw, Davis and Bilge; highlighting the potential
for complementarity between both theoretical currents.
Keywords: Patriarchy. Intersectionality. Feminism. Public and private.
Resumen: El artículo aborda la importancia de los ámbitos público y privado
en el análisis feminista, destacando la presencia de la dicotomía entre estas
esferas en las teorías del patriarcado y la interseccionalidad. La separación entre
lo público y lo privado tiene raíces históricas y está relacionada con la opresión
de las mujeres en la esfera privada y su exclusión de la esfera pública. Se critica
la exclusión de las mujeres de la teoría política tradicional y la invisibilidad de
sus identidades de género, señalando la importancia de reconocerla influencia
del género en la esfera pública y la economía. La oposición entre lo público y lo
privado se explora en los estudios feministas e impregna las teorías del patriar-
cado y la interseccionalidad, expresadas aquí por los escritos de Pateman, Okin,
Fraser, Walby, Hill Collins, Crenshaw, Davis y Bilge; destacando el potencial de
complementariedad entre ambas corrientes teóricas.
Artigo está licenciado sob forma de uma licença Palabras clave: Patriarcado. Interseccionalidad. Feminismo. Público y privado.
Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
1
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
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mesmo tempo, mulheres e não proprietários são submissão e restrição de direitos, e cria o que
inferiores por natureza, sua aderência a vínculos ela chama de “lei do direito sexual dos homens
contratuais é ilegítima. Pateman argumenta que aos corpos de mulheres”. Aqui ela se refere a
a dominação sobre as mulheres é fundamental, uma alienação de direitos efetiva, ainda que não
mas muitas vezes negligenciada no contexto declarada. O questionamento de Pateman (1993)
do patriarcado político, perdendo-se na teoria está no paradoxo de que cada indivíduo possui a
política a verdadeira dimensão da desigualdade propriedade de si mesmo e de que essa noção
de gênero na elaboração das instituições e na ratifica formas de subordinação e de renúncia
esfera pública: “o contrato social é uma história a direitos.
de liberdade; o contrato sexual é uma história de O termo patriarcado aparece como um sinô-
sujeição” (Pateman 1993, 16). nimo de dominação masculina, o que suscitou
Finalmente, o terceiro problema é a crítica aos muitas críticas feministas. Tanto o patriarcado
mecanismos da submissão voluntária, ligada ao no sentido político, de dominação absoluta, que
caráter conjectural do consentimento, sobre o pressupõe uma nação com vínculos orgânicos,
qual ela concebe que a promessa da obediência quanto o patriarcado no sentido doméstico, em
é incabível porque revoga as capacidades que que há uma família de diversas gerações sob o
permitem o próprio indivíduo prometer. Em O comando de um patriarca, não correspondem à
contrato sexual, Pateman (1993) escrutina os realidade atual.
mecanismos pelos quais as mulheres são convo- É também problemático estabelecer paridade
cadas a “consentir livremente” com a dominação entre uma família nuclear ocidental contempo-
masculina. rânea e uma família propriamente patriarcal. Nas
Há, também, na obra de Pateman (1993, 18), sociedades ocidentais, as relações de subordina-
uma reflexão sobre a tradição do pensamento ção diretas de uma mulher a um homem, carac-
político ocidental, propondo uma releitura femi- terísticas do patriarcado, foram convertidas em
nista de um de seus elementos centrais. A autora formas coletivizadas de dominação. Okin (2014,
argumenta que, para compreender o papel do 125, tradução da autora) alegou que, nas socie-
contrato no pensamento liberal, é preciso explo- dades ocidentais, há sim estruturas e processos
rar o contrato social, o contrato de trabalho, e o que distribuem de forma desigual oportunidades
contrato de casamento, os dois primeiros são e vantagens entre homens e mulheres, chamados
distorcidos pela teoria política convencional, e “ciclos de assimetria distintiva causada social-
o último, ignorado. Logo, ela alega que os me- mente pelo casamento”. Nesse ciclo, a tradicional
canismos de exploração são, com frequência, responsabilidade das mulheres de cuidar das
revestidos de relações contratuais. crianças ajuda a moldar os mercados de trabalho,
No caso do contrato de casamento, a mulher criando desvantagens para as mulheres. O resul-
pode renunciar à sua autonomia em troca da tado é uma desigualdade de poder econômico,
proteção do marido, já que ela é proprietária que reforça e exacerba o desequilíbrio de poder
de si mesma e, assim sendo, pode alienar seus na família. Para Okin, as mulheres são colocadas
direitos. As críticas se relacionam com as deci- em posição de vulnerabilidade, primeiro, pela
sões, vistas sob o ângulo da formulação liberal antecipação do casamento e por serem mães,
“livres”, que são efeitos das prescrições materiais dado que a expectativa de responsabilidades
e simbólicas, além da escassez de alternativas. domésticas e de cuidado molda suas decisões
Ainda, Pateman herda de Rousseau a crítica (e de seus empregadores) nos campos da edu-
ao individualismo possessivo, impossibilidade cação e do grau de comprometimento com
de um contrato que retire de uma das partes a o próprio emprego. As mulheres são também
liberdade que era condição necessária para seu vulnerabilizadas no casamento, tendo em vista
estabelecimento. O contrato original envolve a que, com menos oportunidades de trabalho, de-
Isadora Vianna Sento-Sé
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tendo menos poderio econômico, o seu poder de relação de subordinação, já que envolvem “po-
barganha é inferior ao dos maridos. Por fim, elas der de trabalho”, “serviços sexuais” e “serviços
estão também vulneráveis no divórcio, que traz gestacionais”. Ela lê a teoria de Pateman como o
uma perceptível queda em seu poder de compra estabelecimento de uma díade baseada em uma
e, consequentemente, dos filhos (Okin 2014). Em relação de poder entre um homem, o superor-
vez de olhar apenas para a díade matrimonial, denado, que comanda uma mulher, subordinada
Okin analisa o contexto institucional mais amplo (Fraser 1993). O contrato sexual seria, portanto, o
no qual essa díade está situada. Logo, seria me- meio pelo qual é estabelecido e “democratiza-
lhor compreender como a dominação masculina do” o “direito sexual masculino”, como o direito
é capaz de resistir, mesmo quando as práticas individual dos homens de comandar mulheres
são substituídas, do que buscar uma essência individualmente. Os contratos, portanto, esta-
expressa pela ideia do patriarcado (Okin 2014; belecem essa díade em que o patrão adquire
Fraser 1993; Miguel 2016). o poder sobre o empregado; o marido sobre a
Diferente do patriarcado tradicional, em que mulher; o cliente sobre a prostituta etc. É esta
há uma analogia entre a autoridade do estado díade mestre/súdita que constrói os significados
e a autoridade do patriarca na família, Pateman de masculinidade, feminilidade, sexualidade e
(1993, 45). indica uma releitura do pensamento contrato sexual, sendo esse o modelo simbólico
patriarcal. Ela propõe a formulação também da da cultura patriarcal. Segundo Fraser, contudo,
ideia do patriarcado moderno, dispensando uma nenhum dos contratos reais apresentados por
figura paterna, caracterizado por ser “fraternal, Pateman é adequadamente compreendido pelo
contratual e estrutura a sociedade civil capitalista”. modelo dicotômico de mestre/súdita.
São muitas as críticas às teorias do patriarcado, Sobre o contrato de casamento, ainda que
sendo uma das principais a determinação de que reconheça o mérito de Pateman em destacar as
o contrato sexual deriva do crime do estupro. suas anomalias e as persistências no século 20
O ponto de Pateman é assinalar o paradoxo do das incapacidades legais das esposas (incluindo
consentimento – uma vez que há um desloca- o não reconhecimento em muitas jurisdições do
mento do sexo consensual para a subordinação estupro no casamento), Fraser argumenta que
na vida conjugal – e no fato de que a dominação parece um engano compreender o poder de
patriarcal sobre os filhos se estabelece a partir maridos sobre suas esposas somente ou prin-
de uma assimetria preexistente entre o marido cipalmente sob os termos de mestre e súdita
e a mulher. A crítica de Okin a esse ponto é a de proposto pelo contrato sexual.
que Pateman estaria se aproximando de femi- Portanto, Fraser considera que seria melhor en-
nistas radicais que consideram impossível ou tender o casamento como uma parceria desigual
quase impossível que exista consenso em uma na qual a “voz” está inversamente correlacionada
relação heterossexual. Ademais, Nancy Fraser às oportunidades de saída, do que como uma
(1993) também considera que Pateman (1993) relação entre mestre e súdita. A autora também
lê as relações entre homens e mulheres como critica a abordagem de díade dos contratos de
de “mestres e subalternas”, assinalando que prostituição. A prostituição é analisada por Pa-
o ambiente social que forçava as mulheres ao teman como uma manifestação comercial da
casamento sofreu transformações. vida real do contrato sexual, um caso público
Fraser (1993) critica essa elaboração, listando do “direito sexual masculino”. Falar de “venda de
os exemplos de contratos articulados por Pate- serviços sexuais (ou gestacionais)” é uma distor-
man (1993): a propriedade de pessoas (expressa ção, ela afirma, já que tanto as partes sexuais da
pelos contratos de casamento; de trabalho assa- prostituta como o ventre da “mãe de aluguel” não
lariado e de barriga de aluguel). Esses contratos podem ser usadas sem sua presença, nem sem
estabelecem, segundo Pateman (1993), uma sua subordinação. O contrato estabelece assim
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uma relação mestre/súdita na qual um homem e sociedades. Uma teoria do patriarcado é, para
comanda o corpo de uma mulher. Longe de ela, essencial para assimilar a profundidade e o
serem simples transações comerciais, esses con- grau de interconexão e difusão entre as diferentes
tratos institucionalizam o direito sexual masculino. noções de subordinação feminina. Dessa forma,
O uso por Pateman do modelo mestre/subal- ela desenvolve sua teoria de maneira que as
terna é, nesse caso, tanto literal quanto simbólico. diferentes formas de desigualdade de gênero
No nível literal, ela parece sustentar que na pros- na história, entre diferentes grupos étnico-raciais
tituição o cliente adquire o direito de comando e classes sociais, são consideradas. Ela propõe,
sobre a prostituta. Por um lado, como observa portanto, a adoção das ideias de “patriarcado pri-
Pateman, a prostituição envolve um “contrato vado” para “patriarcado público”, postulando que
de desempenho específico”, quase uma troca há uma passagem do primeiro para o segundo, no
simultânea; ao contrário do casamento, ela não qual as mulheres acessam a esfera pública, mas
estabelece uma relação de dependência a longo ocupam uma posição subalterna. O patriarcado
prazo. Contudo, Fraser alega, a transação é regida é, para ela, composto de seis estruturas: (1) modo
por negociações antecipadas sobre “serviços” patriarcal de produção; (2) relações patriarcais na
específicos, que limitam o poder do cliente (di- esfera reprodutiva; (3) relações estatais patriarcais;
zer isso não seria negar a vulnerabilidade das (4) violência masculina; (5) relações patriarcais
prostitutas ao estupro, à coerção e à violência). na sexualidade; e (6) relações patriarcais nas
Ainda, em algumas (embora não todas) culturas instituições culturais. Essas estruturas produzem
masculinas de hoje, o recurso à prostituição é efeitos causais umas sobre as outras.
um sinal não de poder ou maestria, mas de ver- Walby busca captar as articulações entre as
gonha, sufocada com o constrangimento de ter melhorias na situação das mulheres (que ela
que pagar por “isso”. atribui ao grau de patriarcado) e a exasperação
Fraser ressalta que Pateman tem razão em de algumas condições de subordinação asso-
afirmar que a prostituição contemporânea é mar- ciadas à violência (que está relacionada à forma
cada pelo gênero; são esmagadoramente os do patriarcado), apontando que há mudanças
homens que compram sexo de mulheres. Ela importantes em ambos os campos. As melhorias
ainda argumenta que o que é vendido é uma na situação das mulheres são observadas na re-
fantasia de “direito sexual masculino”, que impli- dução das diferenças salariais e de escolarização
ca sua precariedade atual. Longe de adquirir o entre homens e mulheres, o que sinaliza para
direito de comando sobre a prostituta, o cliente um processo de arrefecimento do patriarcado.
recebe apenas a representação encenada de tal Entretanto, alguns aspectos da manifestação do
comando. Uma representação dessa natureza, patriarcado foram intensificados. Este reforço,
entretanto, envolve uma contradição performa- segundo Walby, está relacionado às mudanças
tiva (Fraser 1993, 179). Ela resume sua crítica na operadas no último século, a partir das quais
seguinte frase: “a dominação masculina atual o patriarcado assumiu uma forma mais públi-
não se encaixa como um velho vinho de mestre/ ca do que privada. A produção doméstica é o
subalterna em novas garrafas contratuais”, ou locus principal da opressão das mulheres no
seja, as relações modernas de dominação se dão patriarcado privado. Já, no patriarcado público,
em termos diferentes daqueles preconizados este locus se desloca para o mercado e para o
antigamente, ainda que sejam persistentes às estado (Walby 1989).
mudanças na organização social. Walby argumenta haver um duplo processo
Walby (1989), em sua abordagem sobre o de transformação no patriarcado público, embora
patriarcado, procura dar conta das críticas ao seja difícil mensurar aumentos ou reduções na
termo, levando em consideração suas distintas violência contra as mulheres, em decorrência da
manifestações históricas e em diferentes culturas fragilidade das fontes de informações e processos
Isadora Vianna Sento-Sé
Patriarcado e interseccionalidade: o público e o privado como ponto de convergência teórica 7/12
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No original em inglês, o termo usado pela autora é “familyvalues”.
Isadora Vianna Sento-Sé
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as hierarquias sociais presentes na sociedade. sidade de primeiro evocar novas visões sobre o
Homens brancos dominam em posições de po- que é opressão e como ela é produzida. Como
der, ajudados pelas mulheres brancas, ambos gênero, classe e raça são estruturas de opressão
trabalhando juntos para administrar “pessoas imbricadas, apesar de distintas, elas formam
de cor” supostamente menos qualificadas, que dimensões interligadas da relação mais funda-
também se deparam com a mesma retórica mental de dominação e subordinação. Sua teoria
familiar (Collins 1998). é orientada por duas questões básicas: (1) como
Para Collins (1998), a palavra “lar” estabelece podemos redefinir raça, classe e gênero como
espaços de privacidade e de segurança para as categorias de análise; e (2) como podemos trans-
famílias, raças e estados-nação, e serve como cender as barreiras criadas através das nossas
santuário para membros de determinado grupo. experiências com as opressões de raça, classe
Cercado de indivíduos que dividem objetivos e gênero para que possamos construir os tipos
semelhantes, o lar representa um espaço priva- de coalizões essenciais para câmbios sociais?
do e idealizado, onde os seus membros podem Essas abordagens são tipicamente baseadas
se sentir bem. Essa perspectiva do lar requer em duas premissas-chave. A primeira é que elas
algumas ideias sexualizadas de gênero sobre os dependem do pensamento dicotômico, como,
espaços público e privado. Como as mulheres por exemplo, negro ou branco; homem ou mulher;
são frequentemente associadas à família, o es- razão ou emoção; fato ou opinião. Contrariamen-
paço doméstico passa a ser visto como privado, te a isso, a autora ressalta que todos possuem
feminizado, o que o distingue do espaço público, identidades “ambas”, construídas por diversas
masculinizado. Com essas esferas sexualizadas categorias, que determinam sujeitos definidos por
do espaço público e privado, mulheres e homens várias identidades: sexo, cor, classe social e idade.
assumem, novamente, papéis distintos. Portanto, Essa é uma dimensão importante, que possibilita
é esperado que as mulheres permaneçam no que, na análise empírica, nenhum indivíduo seja
lugar doméstico. tomado exclusivamente como oprimido ou como
Dessa forma, o desenvolvimento das teorias opressor. O pensamento dicotômico, no entanto,
interseccionais foi útil não apenas para as análises sugere justamente isso, o que o torna especial-
da interação entre sistemas de opressão na busca mente problemático para pensar a opressão, pois
por direitos, mas também no campo de estudos inviabiliza a condição de “ambos”.
da família. Few-Demo e Allen (2020) propõem a Uma segunda premissa das análises somató-
aproximação entre a epistemologia feminista que rias da opressão é que diferenças dicotômicas
designa as separações entre mundo público e têm de ser hierarquizadas. As análises somatórias
privado e as teorias interseccionais, a partir de pressupõem tanto o pensamento dicotômico
uma extensa revisão da literatura de estudos quanto a necessidade de somar e hierarquizar as
sobre família. As autoras estruturam o estudo opressões para referenciar onde aquele indivíduo
em três eixos de pesquisa: (1) o enquadramento se localiza socialmente. Em diferentes contextos,
de gênero como um sistema de estratificação uma categoria pode ter primazia sobre as outras,
social e desigualdades; (2) a aplicação de pers- o que não anula a relevância de gênero, classe
pectivas feministas interseccionais para apontar e raça como marcadores importantes de desi-
e transformar disparidades de poder nas esferas gualdades, estruturantes de todas as relações
pública e privada e (3) a aplicação de perspec- sociais (Collins 2015). A autora argumenta que a
tivas interseccionais para examinar e designar opressão de gênero é estruturada ao longo de
desigualdades sociais, privilégios e opressões. três dimensões: a institucional, a simbólica e a
No seu artigo “Em direção a uma nova visão: individual. Para Collins (2015), isso oferece um
raça, classe e gênero como categorias de análise instrumental para analisar as opressões de raça,
e conexão”, Collins (2015) aponta para a neces- classe e gênero, já que o racismo, o elitismo e o
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machismo podem ser observados em instituições. designada de privilégios ou punições e com ní-
De fato, as instituições ainda são espaços pri- veis variados de rejeição, inerentes às imagens
vilegiados, em que os princípios da perpetuação simbólicas a ela atribuídas (Collins 2015). Quanto
da dominação masculina são engendrados e à dimensão individual da opressão, Collins afirma
instituídos, muito embora as ações da dimensão que, no status simbólico e institucional, todas as
institucional da opressão sejam, com frequên- escolhas se tornam atos políticos. Para a autora,
cia, apagadas com reivindicações de igualdade é necessário transcender as barreiras criadas
de oportunidades e aparente neutralidade. O pelas experiências de opressão de raça, classe
argumento-chave está na instituição da escra- e gênero, para que seja possível construir tipos
vidão, por ser ela uma estrutura de dominação essenciais de coalização para a mudança social.
que envolvia raça, classe e gênero. Segundo a Para dar conta dos marcadores de desigual-
autora, as três categorias são elementares para dade, Silvia Walby (2007) desenvolveu uma es-
compreender essas relações de dominação e quematização que ela chamou de “Teoria de
subordinação. Apoiada no princípio da autori- complexidade” na qual ela concebe um conceito
dade do homem branco e em sua propriedade, de sistema na teoria social. Nesse sistema, ela
a escravidão era uma instituição patriarcal, que aponta para o desafio de teorizar a interseção de
trazia as esferas políticas e econômicas para o múltiplas iniquidades complexas. Para tanto, é
interior da instituição familiar. preciso dar conta da profundidade dos sistemas
Um dos instrumentos principais para a escra- de relações sociais de desigualdade nos domínios
vidão foi o controle sobre os corpos e a sexuali- institucionais da economia, política, violência, e
dade das mulheres brancas abastadas, uma vez sociedade civil, em vez de acentuar dimensões
que esse controle estava intimamente atrelado únicas de cultura ou economia (Kantola e Lom-
à manutenção das relações de propriedade. O bardo 2017). Walby aponta a impossibilidade
controle sobre os corpos das mulheres negras de tratar a interseção das desigualdades como
se materializava pelo controle sobre a fertilida- coisas que se adicionam, se apresentando em-
de dessas mulheres, sendo ele medular, dado pilhadas, porque elas também podem se alterar,
o caráter comercial – as crianças nascidas de interagindo umas com as outras. Ela, então, apre-
mães escravas eram, também, escravas. Sobre senta cinco abordagens da interseccionalidade: a
a dimensão simbólica da opressão, o uso mani- primeira é a crítica ao que Walby chama de falsa
pulado de imagens de grupos de raça, classe generalização (divisão de mulheres por classe,
e gênero diversos é central nesse processo. etnia e nação).
Aqui está uma das críticas mais básicas que o A segunda abordagem das desigualdades
feminismo negro americano fez ao feminismo múltiplas é a do reducionismo a um único eixo
nos anos 1970: o que parecem ser categorias primário de desigualdade social. Uma forma
universais que representariam todos os homens de reducionismo, encontrada especialmente,
e mulheres são, na verdade, produzidas e, por- mas não apenas, na teoria social de inspiração
tanto, aplicadas somente a um grupo (homens marxista, é o foco na categoria classe ou no ca-
e mulheres brancos). Ou seja, as imagens da pitalismo. Uma gama de desigualdades sociais
feminilidade branca necessitam das imagens pode ser empiricamente observada, e explica-
depreciadas da feminilidade negra para manter da como resultado de um sistema abrangente
credibilidade (Davis 2016). de desigualdade. Em resposta a essa forma
Ao ampliar a análise para além do marcador de reducionismo, houve muitas tentativas de
de raça, pode-se ver os diferentes níveis de constituir gênero e classe como sistemas articu-
rejeição e sedução disponíveis para cada indiví- ladores (Hartmann 1976; Walby 1989) ou como
duo, de acordo com identidade de raça, classe sistemas que eram parcialmente subordinados
ou gênero. Cada pessoa vive com uma porção a um único sistema. Esses desenvolvimentos
Isadora Vianna Sento-Sé
Patriarcado e interseccionalidade: o público e o privado como ponto de convergência teórica 11/12
sofreram críticas que foram tão orientadas para de poder interligadas, bem como para desen-
os problemas do conceito de sistema quanto volver uma ética que promova a formação de
para qualquer outro aspecto do trabalho. A ter- coalizões não opressivas e de reivindicações
ceira é o microrreducionismo, estratégia que vai (Bilge 2013, 468).
no sentido de identificar e estudar interseções As perspectivas de gênero, feministas e inter-
negligenciadas, para analisar grupos nos pontos seccionais são teorias críticas que têm sido em-
das interseções, muito usado em estudos de pregadas para reformular o campo da pesquisa
caso, etnografias, e se tornou uma estratégia sobre famílias, explorando não o que as famílias
de procurar categorias de interseção puras. A deveriam ser, mas sim como elas efetivamente vi-
quarta abordagem consiste na rejeição de todas vem. Na última década, estudiosos das dinâmicas
as categorias. A quinta e última estratégia pode familiares aplicaram essas perspectivas críticas
ser descrita como reducionista segregacionista, a um leque cada vez mais amplo de estruturas
na qual cada filamento é identificado e reduzido e processos familiares, abrangendo interações
a uma base única e separada. Em vez de rejeitar entre indivíduos, grupos e instituições. Esses
categorias, prioriza-se analisar cada um dos estudos têm focalizado questões que incluem
conjuntos de desigualdades sociais como parte relações de gênero, equilíbrio entre trabalho e
do processo de análise de sua interseção. Cada vida familiar, divisão de tarefas domésticas, cui-
conjunto de relações sociais é tido como idên- dado, parentalidade, violência doméstica, socia-
tico ou paralelo e possui uma base ontológica lização de gênero e racial, desigualdades sociais,
diferente. Por exemplo, as divisões de classe são disparidades na saúde e dinâmicas familiares
fundamentadas em relação aos processos eco- LGBTQIA+, entre outros tópicos que abordam a
nômicos de produção e consumo; gênero deve complexidade, ambiguidade e tensões inerentes
ser entendido não como uma diferença social à vida em famílias contemporâneas.
“real” entre homens e mulheres, mas como um
modo de discurso que se relaciona com grupos Considerações finais
de sujeitos cujos papéis sociais são definidos
Tanto o patriarcado quanto a intersecciona-
por sua diferença sexual/biológica (Walby 2007).
lidade são correntes teóricas frequentemente
Few-Demo e Allen (2020) ressaltam o aspecto
mobilizadas nos estudos de gênero. Além da
de que a aplicação da análise de interseccio-
negação da universalidade, há em ambas a pre-
nalidade transcende a mera obtenção de uma
sença da dicotomia entre o público e o privado
amostra que seja diversificada em termos de raça
na produção das diferentes clivagens sociais e
e etnia, bem como a realização de uma análise
sistemas de opressão. Enquanto as teorias inter-
comparativa que ignore o contexto histórico dos
seccionais focalizam as estruturas de opressão
comportamentos de indivíduos e famílias. Uma
que, integradas, produzem diferentes formas
segunda preocupação que se apresenta é a
de assujeitamento; as do patriarcado marcam a
constatação de que alguns acadêmicos estavam
ordem de gênero que opera na dominação das
utilizando uma abordagem despolitizada da in-
mulheres e no acesso limitado ao espaço público.
terseccionalidade, um fenômeno que Bilge (2013)
Entre as atualizações do patriarcado, há na
denominou de “interseccionalidade ornamental”.
divisão entre patriarcado público e patriarcado
Seria enganador considerar a interseccionalidade
privado proposta por Sylvia Walby, a tentativa
ornamental como inofensiva, uma vez que ela
de incorporar diferentes clivagens de opressão
contribui para neutralizar e, até mesmo, desar-
e dominação em ambas essas esferas. Neste
ticular ativamente as políticas radicais de justiça
artigo, situo, entre as teorias do patriarcado em
social. A aplicação superficial da interseccionali-
suas diversas formulações e interseccionalidade,
dade mina a sua credibilidade e prejudica o seu
pontos de convergência e complementaridade,
potencial para abordar as complexas estruturas
principalmente no que se refere aos mundos da
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família e da política como locus basilar de repro- Kantola, Johanna, e Emanuela Lombardo.2017. Gender
and the economic crisis in Europe: politics, institutions
dução da confluência dos sistemas de opressão. and intersectionality. Berlim: Springer.
A interseccionalidade supera as limitações da
Locke, John. 2019. Dois tratados do governo civil. Al-
estratégia de identificação de grupos em inter- fragide: Leya.
seções específicas e, em particular, a análise de
Miguel, Luis Felipe. 2016. Carole Pateman e a crítica fe-
identidade, que levaram à estratégia de desen- minista do contrato. Revista Brasileira de Ciências Sociais
volvimento de categorias. As categorias analíticas 32 (93): 3-17. https://doi.org/10.17666/329303/2017.
foram vistas não apenas como representações Okin, Susan M. 2008. Gênero, o público e o privado.
Revista Estudos Feministas 16 (2): 305-32. https://doi.
inadequadas do mundo vivido, mas como de fato org/10.1590/S0104-026X2008000200002.
potencialmente perniciosas em seu potencial de
Okin, Susan M. 2014. Justice, gender, and the family. In
falsa sedimentação dessas categorias na prática. Justice, Politics, and the Family, organizado por Daniel
Assim, interseccionalidade foca na diferença, em Engster e Tamara Metz, 63-87. New York: Routledge.
detrimento da identificação. Pateman, Carole. 1993. O contrato sexual. 1993. Rio de
Janeiro: Paz e Terra.