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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”


CAMPUS DE MARÍLIA

Transnacionalização da Esfera Pública em Nancy Fraser: a concepção


da justiça a partir de uma teoria crítica feminista

Projeto de pesquisa apresentado à


Faculdade de Filosofia e Ciências -
UNESP- Marília, para o Programa de
Pós-Graduação em Filosofia.

Linha de pesquisa: Conhecimento, Ética


e Política.

MARÍLIA
2022
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RESUMO

Num contemporâneo contexto, situado entre reivindicações cada vez mais acirradas por
igualdade e reconhecimento dos novos movimentos sociais e também avançada ofensiva
neoliberal, a ascendente globalização expõe cada vez mais os limites das democracias liberais
e dos territórios nacionais em lidar com as questões e os dilemas da justiça atual. É através
dessa perspectiva, que a filósofa e cientista política feminista, Nancy Fraser propõe-se a
repensar os rumos da democracia e da justiça, reconsiderando os limites dos Estados-nação. A
autora compõe seus trabalhos através de influentes diálogos com diversos outros teóricos, em
especial, o filosofo da tradição frankfurtiana, Jurgen Habermas, e o conceito que o autor
concebe de esfera pública. Assim, a pesquisa pretende analisar a proposta de esferas públicas
transnacionais como alternativa a esfera pública oficial, frente ao um novo modelo de justiça
pós-Westfaliano elaborada por Nancy Fraser, a partir das reflexões e correções de outras
teorias feitas pela autora. Metodologicamente foi utilizado ferramentas filosóficas e
sociológicas, amparada em técnicas documentais e bibliográficas, como livros, artigos,
periódicos científicos.
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INTRODUÇÃO

Nancy Fraser é uma filósofa política feminista estadunidense, seus estudos valem-se
fortemente da teoria crítica da Escola de Frankfurt conjugada ao pragmatismo americano e
pós-estruturalismo francês. A teoria crítica é uma tradição de pensamento teórico-social que
se utiliza dos diagnósticos e perspectivas marxistas como orientação para transformação
social e emancipação humana, ao tomar como projeto uma sociedade livre e igualitária ela se
aproxima das ações e interesses dos grupos que sofrem dominação no seu presente, nesse
sentido, o cunho interpretativo teórico-crítico é sempre atento ao conhecimento produzido no
interior das sociedades capitalistas e nas relações socias que nelas vigoram. (SANTOS, 2020).

Haja vista o potencial androcêntrico subjacente a própria organização do capitalismo


e as injustiças de gênero que vão além das desigualdades de classe, Fraser aponta o quanto o
movimento feminista ganhou protagonismo nas lutas para superar a dominação de uma época,
no entanto, ela afirma que a teoria crítica, em específico os trabalhos de Jurgen Habermas,
relegou a situação das mulheres a uma categoria contingente.

Principal autor da segunda geração frankfurtiana, Fraser tece influente diálogo em


suas obras com a concepção habermasiana de esfera pública. Segundo Habermas (2014) o
lento processo de transição e configuração da Modernidade, envolveu não apenas a
reorganização dos modos de produção e reconfiguração das estruturas de poder, mas
sobremaneira, a ascensão de novas formas de sociabilidade. A esfera pública diz respeito aos
espaços de debate público, trata-se de um fenômeno social elementar diretamente vinculado
às práticas comunicativas que se configura nas organizações sociais, onde pessoas privadas se
reúnem em público.

Essa concepção fornece um pano de fundo para os trabalhos da autora, através de


uma perspectiva crítico-teórica, Fraser não abandona o conceito de esfera pública teorizado
por Habermas, entretanto, a autora aponta os problemas subjacentes à compreensão do autor
sobre o tema. Fraser (2015) critica a acessibilidade universal da esfera pública e a rígida
distinção que Habermas faz entre esfera pública e privada, a autora também censura o lugar
coadjuvante que autor situa a categoria gênero, categoria essa que constitui um dos pilares
para construção da esfera pública liberal, segundo análise de Fraser. A configuração
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dicotômica entre espaço público e privado incidiu impacto sobre a experiencia das mulheres,
enquanto ser social não apenas porque foram alijadas da participação e pertencimento à esfera
pública, mas, por ser destinada à satisfazer as necessidades da vida intima, a esfera privada
definiu uma série de experiências como não políticas, isolando as dinâmicas de poder e
negando o caráter conflitivo das relações familiares e do trabalho doméstico, trabalho este, do
qual a vida pública sempre é dependente. (MIGUEL E BIROLI, 2010).

Visando a necessidade de se produzir diagnósticos da dominação masculina e


corrigir a ausência desses diagnósticos pelos teóricos críticos, a ótica feminista na teoria
desenvolvida pela autora funciona como elemento central de sua criticidade. (FRASER,
2015). É partindo dessa perspectiva que Fraser elabora sua teoria, justapondo o par
redistribuição de renda e reconhecimento de status como dois fatores constitutivos da justiça
em sua integralidade, no primeiro momento da obra, a justiça seria bidimensional e não se
conceberia sem algum desses arranjos. Diante desta noção, Fraser estabelece distinções
analíticas as ameaças à justiça social contemporâneas, elas partem tanto de uma injustiça
econômica, determinada pela má distribuição de renda, quantos das injustiças culturais ou
simbólicas, determinada pelo que autora chamou de falso reconhecimento.

No primeiro caso, a dimensão econômica da justiça é impedida de se realizar pela


estrutura de classes, no segundo caso, a ordem de status é a barreira para que a justiça se
constitua na sua dimensão cultural. Apesar das distinções analíticas entre as injustiças, na
prática das sociedades capitalistas elas estão interligadas:

Até mesmo as instituições econômicas mais materiais têm uma dimensão cultural
constitutivas irredutível; estão atravessadas por significados e normas. Similarmente,
até mesmo as práticas culturais mais discursivas têm uma dimensão político-
econômica constitutiva irredutível; são suportadas por apoios materiais. Portanto,
longe de ocuparem esferas separadas, a injustiça econômica e injustiça cultural
normalmente estão imbricadas dialeticamente reforçando-se mutuamente.
(FRASER, 2001, p. 251)

No entanto, Fraser diz existir uma frequente tensão entre as lutas contra essas
injustiças, o que autora denomina de dilema da redistribuição e do reconhecimento, isso
ocorreria pois segundo Fraser as lutas por redistribuição tentam abolir as estruturas de classe,
a divisão racial e sexual do trabalho, de modo que tendem a promover a não diferenciação de
grupo, em contraste, as lutas por reconhecimento, buscam afirmar o valor de grupos
oprimidos, como os homossexuais, as mulheres, as pessoas não brancas, de modo que tendem
a promover a diferenciação desse grupo. (FRASER, 2006,2007a).
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A preocupação de Fraser se volta para contemporânea conjuntura, em que a opressão


cultural estaria tomando lugar da exploração econômica como injustiça fundamental, e o
reconhecimento o lugar da redistribuição como objetivo central de luta, num cenário que
autora intitula como “pós-socialista”. A partir das décadas finais do século XX, a cultura
passa a figurar como centro do debate das ciências sociais, tornando-se principal forma
paradigmática de articular demandas por justiça e reprimindo a memória do igualitarismo
socialista.

Para demonstrar que o dilema da redistribuição e do reconhecimento representa uma


falsa antítese, Fraser contrapõe-se as lutas de reconhecimento travadas nos moldes
identitários, como alternativa a autora propõe o modelo de status, a partir do qual nasce o
conceito normativo da paridade de participação. As reivindicações por reconhecimento
envolveriam não mais a luta por reconhecimento da identidade do grupo oprimido, mais sim a
luta “para ser reconhecido como um parceiro completo da interação social, capaz de lidar com
o outro como par em mesmo nível de participação” (SANTOS, 2020, p.112).

A justiça social para Fraser requer assim, tanto redistribuição como reconhecimento,
guiadas pelo princípio da paridade participativa, um conceito amplo da justiça capaz de
acomodar lutas culturais e econômicas, de modo que nenhuma se sobreponha a outra, já que
nenhuma luta sozinha é suficiente pra remediar as injustiças.

Posteriormente, a autora acrescenta uma outra dimensão a sua teoria. A justiça


bidimensional, antes defendida por Fraser, que abarcava redistribuição e reconhecimento a
partir de um critério paritário de participação e se situava nos parâmetros do enquadramento
Keynesiano-Westfaliano1, agora se torna insuficiente na visão da autora para dar conta dos
novos dilemas da justiça contemporânea globalizada. Na fase mais recente de sua obra,
visando abarcar esses dilemas, Fraser acrescente uma terceira dimensão à sua teoria, o
político. A autora considera o político em seu sentido mais específico, constitutivo, que diz
respeito à natureza da jurisdição do Estado e das regras de decisão pelas quais ele estrutura as
disputas sociais. Nesse sentido, o político fornece o palco em que as lutas por distribuição e
reconhecimento são conduzidas, portanto diz respeito a representação política.
(FRASER,2009).

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A expressão “enquadramento Keynesiano-Westfaliano” remete a centralidade estatal dos territórios nacionais
para se discutir as questões de justiça. Fraser utiliza-se do termo Westfalia em menção ao Tratado de 1648, e
também em alusão ao imaginário que “mapeou o mundo com um sistema de Estados territoriais soberanos
mutuamente reconhecidos” (FRASER,2009, p.12).
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Mantendo a lógica da separação analítica das origens da injustiça, se a representação


é a questão definidora do político, a noção específica de injustiça política seria a falsa
representação, Fraser então divide a falsa representação em três níveis, qual seja, falsa
representação política- comum, mau-enquadramento e a falsa representação metapolítica.
(FRASER, 2009).

O primeiro nível é o da política comum e relaciona-se ao pertencimento, verifica-se


aqui as pessoas que estão incluídas no direito de fazer reivindicações mútuas, elaborar e
demandar questões de primeira ordem (redistribuição e reconhecimento) no âmbito dos
Estados nacionais, portanto, pertencentes a uma dada comunidade política. A falsa
representação política comum ocorreria quando determinados grupos dessa comunidade
estabelecida não possuíssem acesso devido às instâncias decisórias.

O segundo nível também diz respeito ao pertencimento, só que agora a dimensão


política corresponde ao “quem” da justiça, ao acesso a direitos para aqueles que não são os
cidadãos nacionais, portanto, não pertencentes a dada comunidade política. Aqui a falsa
representação se transfigura no que Fraser denomina de mau enquadramento e constitui uma
forma de injustiça mais grave. No contexto da ordem Keynesiana-Westfaliana as questões de
justiças são enquadradas no espaço do Estado nacional, as definições das fronteiras tornam-se
um impedimento ao acesso aos direitos e a justiça uma vez que exclui a população não
nacional, o problema do mau enquadramento estaria relacionado aos novos desafios advindos
da globalização, num grau metapolítico.

Fraser, ao se defrontar com as dificuldades procedimentais para avançar nas questões


dos sujeitos não concernidos, identifica o terceiro nível de injustiça política, o qual a autora
intitula de falsa representação metapolítica, a justiça aqui seria impedida de se realizar devido
monopólio dos enquadramentos dos Estados e pelas elites transnacionais que obstariam a
formação de novos enquadramentos onde pudessem ser averiguadas e atendidas as demandas
dos sujeitos excluídos do “quem”.

O que se pode depreender é que em todos os níveis de falsa representação o que se


nega é o direito de algumas pessoas atuarem como parceiras integrais na interação social, seja
pelas regras decisórias concernentes ao enquadramento, seja pelas fronteiras políticas e as
limitações de se buscar alternativas. Assim, Fraser faz apontamentos para os limites dos
enquadramentos nacionais frente as questões levantadas pela emergência da globalização.
Para autora, uma adequada representação deve caminhar para além de qualquer fronteira
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permitindo a participação de todos os afetados nos processos que lhes sejam concernidos, as
lutas por justiça social só alcançaram êxito se caminharem juntamente com as lutas por
democracia metapolítica, o conceito de soberania elaborado por Fraser deve figurar assim em
múltiplos níveis contrapondo o Estado como única instância de justiça e transnacionalizando e
dando legitimidade a formação de novas arenas discursivas, para que através delas possa se
confrontar os padrões hegemônicos e o status quo e disseminar novas formas de interpretação
das necessidades dos grupos marginalizados, relegadas pela esfera pública oficial. A esse
processo, Fraser denominou “contradiscurso dos contrapúblicos subalternos”.

A ideia de que, mesmo diante das desigualdades, todos possuem acesso à esfera
pública e possam discutir o bem comum de forma paritária, para Fraser não passa de uma
idealização liberalista, que não visa desmantelar as desigualdades. Segundo a autora, ainda
que as minorias tenham direito formal a participação às arenas deliberativas, as desigualdades
econômicas e sociais são barreiras estruturadas de modo informal nos discursos e nas práticas
das configurações democráticas. Para Fraser, superar as iniquidades significa desmantelar
todas as injustiças institucionalizadas até mesmo transcender os Estados nacionais. A autora
localiza sua concepção de justiça através da radical interpretação democrática do igual valor
moral, o princípio paritário, nesse sentido, se concebe como uma prática normativa que
pretende sobrepujar os obstáculos impeditivos dos sujeitos atuarem de forma paritária.
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OBJETIVO GERAL

Esta pesquisa tem como objetivo geral, evidenciar as várias formas de injustiças que
perpassam as experiências de alguns grupos na realidade social, e que somadas, formam um
espectro opressor que deve ser levado em conta em sua totalidade para que assim possa se
pensar uma teoria abrangente de justiça. Evidencia também, os limites das democracias
liberais e dos Estados-nação em promover a integração dos sujeitos de forma paritária. Nesse
sentido, o modelo teórico proposto por Nancy Fraser, guiado pelo conceito da paridade
participativa, tem como objetivo formular uma perspectiva que demonstre a lógica moral dos
conflitos sociais presentes nas sociedades capitalistas, buscando conceber uma gramática
normativa abrangente, que servirá de horizonte aos grupos sociais subalternizados e as
estratégias a serem traçadas por eles, de maneira a promover profunda reestruturação do
sistema produtor de desigualdades, até mesmo transcendendo os Estados nacionais.

OBJETIVO ESPECÍFICO

1) Apresentar os diferentes conceitos de teoria de justiça


2) Exemplificar a importância da concepção de esfera pública para o pensamento
político ocidental bem como a importância da obra de Habermas para essa noção.
3) Apresentar a formação do pensamento de Nancy Fraser, através do debate com
outros teóricos, como o filósofo Jurgen Habermas, bem como a influência do
conceito de esfera pública habermasiana para construção da obra da autora e seus
posteriores debates.
4) Analisar a teoria de justiça de Nancy Fraser
4.1) A justiça em seu aspecto bidimensional
4.2) A justiça pós-Westfaliana diante da emergência da globalização e as esferas
públicas transnacionais.

PROCEDIMENTO METODOLÓGICO
Esta pesquisa é delimitada por seus objetivos e tem caráter qualitativo
(BOGDAN e BIKLEN, 1994). Para análise da teoria de justiça de Nancy Fraser será utilizado
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como referencial teórico obras de Filosofia da autora. No que se refere às variáveis de teorias
de justiça, justiça social e sociedade contemporânea serão utilizadas obras de escritores Jurgen
Habermas, John Rawls, Axel Honneth, Judith Butler e Iris Marion Young.

CRONOGRAMA

1- Levantamento bibliográfico
2- Análise e Fichamento
3- Análise crítica do material
4- Revisão bibliográfica
5- Redação
6- Elaboração da versão final
7- Entrega
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REFERÊNCIAS

FRASER, Nancy. Rethinking Recognition. New Left Review, Londres, n.3, p.107-120,
2000.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? dilemas da justiça na era pós-


socialista. In: SOUZA, Jésse (Org.). Democracia hoje: novos desafios para teoria
democrática contemporânea. Brasília: UNB, 2001. p. 245-282.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era


“pós-socialista”. Cadernos de Campos, São Paulo, n.14/15, 2006.

FRASER, Nancy. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao


reconhecimento e à representação. Revista de Estudos Feministas, vol.15, n.2, p.291-308,
2007.

FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova, São Paulo, n.70, p.101-138,
2007a.

FRASER, Nancy. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Lua Nova, São


Paulo, n.77, p.11-39, 2009.

FRASER, Nancy. Mercantilização, proteção social e emancipação: as ambivalências do


feminismo na crise do capitalismo. Revista Direito GV, São Paulo, v.7, n.2, p.617-634,
2011.

FRASER, Nancy. Fortunas del feminismo. Madrid: Traficante de Sueños, 2015. 279p.

HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigações sobre uma


categoria da sociedade burguesa. Trad. Denilson Luís Werle. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp,
2014.
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MIGUEL, Luis Felipe e BIROLI, Flávia. Práticas de gênero e carreiras políticas:


vertentes explicativas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.18, n.3, p. 653-679,
set-dez.2010. Disponível em:<
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-
026X2010000300003/17681> Acesso em: 20 de jan. 2022.

MIGUEL, Luis Felipe e BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução. São
Paulo: Boitempo, 2014.

SANTOS, Barbara Cristina Soares. Paridade de participação e emancipação em


Nancy Fraser: reconhecimento e justiça a partir do feminismo. Dissertação (Mestrado
em Ciência Política). 2020- Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.

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