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Resenha de ‘Colapso’, livro de Jared Diamond

Colapso significa um declínio drástico na dimensão da população e/ou na complexidade política,


econômica e social, numa área considerável e durante um período de tempo prolongado.

Em algumas formas de declínio mais suaves estão incluídos os normais, pequenos, altos e baixos
fortuitos e pequenas reestruturações políticas, econômicas e sociais de qualquer sociedade; a
conquista de uma sociedade por outra vizinha, ou o declínio de uma estar ligado à ascensão de outra
sociedade próxima, sem mudanças na dimensão global da população ou na complexidade de toda
a região; a substituição ou derrube de uma elite governante por outra.

De acordo com estes parâmetros, a maior parte das pessoas consideraria como vítimas importantes
de desastres totais, e não apenas pequenos declínios, as seguintes sociedades: os Anasazi e os
Cahokia, nas atuais fronteiras dos EUA, os Maias na América Central, as sociedades Moche e
Tiwanaku na América do Sul, a Grécia Micénica e Creta Minóica na Europa, o Grande Zimbabué na
África, as cidades de Angkor Wat e do Vale Hindu Harappan na Ásia e a Ilha de Páscoa no Oceano
Pacífico.

As ruínas monumentais deixadas por essas sociedades do passado exercem um fascínio romântico
em todos nós. A dimensão das ruínas testemunha a antiga riqueza e o poder dos seus construtores.
No entanto, esses construtores desapareceram, abandonando as imensas estruturas que haviam
criado com tanto esforço. Como é que uma sociedade, tão poderosa em tempos, pode ter entrado
em colapso? Qual foi o destino dos seus cidadãos? Será que eles emigraram e, se for esse o caso,
porquê? Ou acabaram por morrer lá de alguma forma horrível? Por detrás deste mistério romântico
espreita um pensamento inquietante: poderá tal destino abater-se sobre a nossa próspera
sociedade?

Há tempo que se suspeita que muitos desses abandonos misteriosos se deveram, pelo menos em
parte, a problemas ecológicos: os homens destruíram inadvertidamente os recursos naturais dos
quais as suas comunidades dependiam. Esta suspeita de um suicídio ecológico involuntário –
ecocídio – tem sido confirmado por descobertas feitas nas últimas décadas por arqueólogos,
climatologistas, historiadores e paleontólogos. Os processos através dos quais sociedades
passadas se autodestruíram pela devastação dos seus ambientes naturais podem ser classificados
em oito categorias, cuja importância relativa varia consoante os casos: desflorestação e destruição
do habitat natural, problemas do solo (erosão, salinização e perda de fertilidade do solo),
problemas de gestão dos recursos hídricos, caça excessiva, pesca excessiva, efeitos da introdução
de novas espécies sobre as espécies autóctones, aumento demográfico e aumento per capita do
impacto dos seres humanos.

Esses colapsos do passado seguem tendencialmente um percurso semelhante, constituindo


variações de um mesmo tema. O crescimento demográfico forçou a população a adotar meios de
produção agrícolas mais intensivos (tais como a irrigação, a duplicação de colheitas ou a introdução
de plataformas) e a expansão da agricultura de zonas mais férteis inicialmente escolhidas, para
zonas mais periféricas, de forma a poder alimentar o número crescente de bocas esfomeadas. As
práticas insustentáveis conduziram à destruição ambiental de uma ou mais das categorias
enumeradas anteriormente, e, mais uma vez, essas terras agrícolas marginais foram, também elas,
abandonadas. Socialmente isto trouxe consequências como a escassez de alimentos, fome,
conflitos entre demasiadas pessoas disputando tão parcos recursos e o derrube das elites
governantes pelas massas descontentes. No fim, a população diminuiu devido à fome, à guerra ou
à doença e a comunidade, de alguma forma, perdeu a complexidade política, econômica e cultural
que tinha atingido o auge. Os escritores são tentados a procurar analogias entre estas trajetórias das
civilizações humanas e os percursos de vida dos indivíduos – quando se fala do nascimento,
crescimento, auge, senescência (velhice) e morte de uma sociedade – e a assumir que o longo
período de senescência, que a maior parte de nós atravessa entre os anos áureos e a morte, também
se aplica às sociedades. Mas essa metáfora é errada para muitas sociedades passadas (e para a
moderna União Soviética): depois de atingido o auge em riqueza e poder, o seu declínio brusco foi,
ao mesmo tempo, uma surpresa e um choque para os seus cidadãos. Nos piores casos de colapso
total, todos os habitantes emigraram ou morreram. Mas é óbvio que não foi esta a trajetória sinistra
que todas as sociedades antigas seguiram sem variações até ao seu desfecho: sociedades
diferentes declinaram a níveis diferentes e de formas diferentes, enquanto que muitas outras nem
sequer sucumbiram.

Atualmente o risco destes colapsos é matéria de preocupação crescente. Na realidade, tais


situações já se materializaram na Somália, no Ruanda e noutros países do Terceiro Mundo. Muitos
temem que o ecocídio venha a sobrepor-se à guerra nuclear e às doenças emergentes como a
grande ameaça à civilização mundial. Os problemas ambientais que hoje enfrentamos incluem os
mesmos oito que minaram as sociedades passadas e mais quatro novos: alterações climáticas
provocadas pelo Homem, concentração de produtos químicos tóxicos no ambiente, escassez de
recursos energéticos e o uso total, por parte do Homem, da capacidade fotossintética do planeta.

Afirma-se que a maior parte destas doze ameaças atingirão um estádio crítico à escala mundial nas
próximas décadas. Entretanto, ou solucionamos estes problemas ou eles afetarão não só países
como a Somália, mas também as sociedades desenvolvidas. Muito mais provável do que um cenário
do Dia do Juízo Final com a extinção da raça humana ou colapso apocalíptico da civilização
industrial, seria “simplesmente” um futuro com a degradação significativa dos níveis de vida, com
ameaças constantes cada vez maiores e a desagregação daquilo que hoje consideramos como
alguns dos nossos princípios fundamentais. Um tal colapso poderia assumir diferentes formas, tais
como a disseminação de epidemias ou, então, de conflitos bélicos à escala global, provocados pela
escassez dos recursos ambientais. Se este raciocínio estiver correto, nesse caso, os nossos
esforços hoje serão determinantes para o estado do mundo no qual a atual geração de crianças e
jovens adultos viverão a sua meia-idade e velhice.

No entanto, é com grande vigor que se debate a gravidade dos atuais problemas ambientais. Será
que os riscos são demasiadamente ampliados ou, pelo contrário, estão subestimados? Será
racional pensar que a atual população mundial de cerca de 7 bilhões, com toda a potente tecnologia
moderna de que dispõe, está a destruir o ambiente à escala planetária a um ritmo muito mais rápido
do que uns meros milhões de pessoas, com instrumentos de pedra e madeira, o haviam feito no
passado a nível local? Será que a tecnologia atual irá resolver os nossos problemas ou está a criar
novas ameaças mais depressa do que soluciona as antigas? Quando esgotamos um recurso (por
exemplo: a madeira, o petróleo ou as reservas piscícolas naturais), seremos capazes de o substituir
por um recurso novo (por exemplo: o plástico, as energias solar e eólica ou a aquicultura)? Não
estará a taxa de crescimento populacional a abrandar, de tal forma que está já a estabilizar num
número controlável?

Todas estas interrogações ilustram a razão pela qual esses famigerados declínios de civilizações
antigas alcançaram um significado mais vasto que ultrapassa o do simples mistério romântico.
Talvez possamos aprender algumas lições mais práticas de todos esses colapsos passados.
Sabemos que algumas sociedades antigas desapareceram enquanto outras sobreviveram: o que
tornou algumas comunidades particularmente vulneráveis? Quais foram, exatamente, os processos
que levaram essas sociedades a cometer ecocídio? Porque é que algumas dessas comunidades não
conseguiram antever o buraco onde se metiam e que, pensando retrospectivamente, deveria ter sido
óbvio? Quais foram as soluções que resultaram no passado? Se tivéssemos respostas para estas
perguntas, poderíamos, talvez, identificar quais sociedades se encontram hoje em maior risco e
quais as medidas mais adequadas para as ajudar, sem estar à espera de mais casos como o da
Somália.

Contudo, há diferenças entre o mundo moderno e as sociedades passadas e os seus respectivos


problemas. Não podemos ser tão ingênuos ao ponto de pensar que o estudo do passado fornecerá
soluções fáceis, diretamente aplicáveis nas nossas sociedades atuais. Divergimos dessas
civilizações antigas em alguns aspectos que nos colocam em menor risco. Alguns desses aspectos,
já mencionados, incluem a nossa poderosa tecnologia, ou antes, os seus efeitos benéficos, a
globalização, a medicina moderna e o conhecimento mais vasto de sociedades antigas e de
sociedades modernas mais distantes. Mas também somos diferentes noutros domínios que nos
levantam perigos maiores. Nesta linha temos, novamente, a nossa tecnologia poderosa, ou antes,
os seus efeitos destrutivos inesperados, a globalização (de tal forma que, hoje, um colapso, por mais
remoto que seja como o da Somália, afeta os EUA e a Europa), a dependência que milhões (e,
brevemente, milhares de milhões) de nós temos em relação à medicina moderna para a nossa
sobrevivência e a população muito mais vasta. Talvez ainda possamos aprender com o passado,
mas só se ponderarmos bem sobre as suas lições.

Os esforços para compreender o passado têm de enfrentar uma grande controvérsia e quatro
complicações acrescidas. Controvérsia pela resistência à ideia de que os povos passados
(sabendo-se que alguns deles são ascendentes de povos que ainda existem e ativos) fizeram coisas
que conduziram ao seu próprio declínio. Hoje temos maior consciência dos danos ambientais do
que há umas décadas atrás. Prejudicar o ambiente é, nos dias que correm, moralmente condenável.

Não é de admirar que os nativos havaianos e os maoris não gostem que os paleontólogos lhes digam
que os seus antepassados exterminaram metade das espécies de aves que se reproduziram no
Havaí e na Nova Zelândia, da mesma forma que os nativos americanos não gostam que os
arqueólogos lhes digam que os Anasazi desflorestaram partes do sudoeste dos Estados Unidos. As
pretensas descobertas de paleontólogos e arqueólogos soam aos ouvidos de alguns como mais um
argumento racista utilizado pelos brancos para espoliar os povos indígenas. É como se os cientistas
afirmassem que “os vossos antepassados foram maus guardiães das suas terras, por isso
mereceram ser expropriados”. Na verdade, alguns brancos americanos e australianos, ressentidos
com as compensações monetárias estatais e a devolução de terras aos nativos americanos e
aborígenes australianos, agarram-se a estas teorias para avançarem com esse argumento. Não só
os povos indígenas, mas também alguns antropólogos e arqueólogos que os estudam e que com
eles se identificam, vêem estas pretensas descobertas recentes como calúnias racistas.

Alguns dos povos indígenas e desses antropólogos que neles se revêem, apontam na direção
oposta. Insistem que os antigos povos nativos, tal como os atuais, eram guardiães diligentes e
ecologicamente ponderados do meio ambiente, conheciam e respeitavam profundamente a
Natureza, viviam inocentemente num Jardim do Éden idílico e nunca poderiam ter causado tanto
mal. Como uma vez um caçador da Nova Guiné me contou: ”Se um dia eu consigo matar um pombo
grande numa certa zona da nossa aldeia, espero uma semana antes de voltar a matar pombos e
nessa altura vou para outra zona da aldeia.” Só os habitantes maldosos do mundo desenvolvido não
conhecem a Natureza, não respeitam o ambiente e destroem-no.

Na realidade, ambos os extremos desta polêmica – os racistas e os crentes num Éden passado –
cometem o erro de considerar os povos indígenas antigos como essencialmente diferentes dos
atuais povos do Primeiro Mundo, quer sejam superiores ou inferiores.

Logo desde a primeira colonização humana do continente australiano há 46 000 anos e a


subsequente extinção rápida da maior parte dos antigos marsupiais gigantes da Austrália e outros
animais de grande porte, até todas as ocupações humanas de massas de terra nunca antes pisadas
pelo Homem – quer seja na Austrália, na América do Norte, Madagáscar, nas ilhas mediterrânicas,
no Havaí ou na Nova Zelândia ou, ainda, em algumas dezenas de outras ilhas do Pacífico –, sempre
se seguiram ondas de extinção de animais de grande porte que se tinham desenvolvido sem
qualquer medo dos homens e, por isso, se tornaram alvos fáceis ou, então, sucumbiram às
alterações de habitat provocadas pelo Homem, pela introdução de espécies parasitas e doenças.
Qualquer pessoa pode facilmente cair na armadilha da sobre-exploração dos recursos naturais
devido a problemas omnipresentes que se abordarão mais à frente: porque os recursos, à primeira
vista, parecem inesgotavelmente abundantes; porque os sinais do seu depauperamento inicial são
mascarados por flutuações normais das reservas disponíveis durante anos ou décadas; porque é
difícil levar as pessoas a concordar em pôr em prática restrições no usufruto de um recurso comum
(a chamada tragédia dos “comuns”, que veremos em capítulos posteriores); e porque a
complexidade dos ecossistemas faz com que as consequências de qualquer perturbação de origem
humana se tornem virtualmente impossíveis de predizer, mesmo para um ecologista profissional.
Se hoje os problemas ambientais são difíceis de gerir, muito mais o eram no passado.
Especialmente para os povos antigos, sem qualquer formação e que não poderiam conhecer os
estudos dos declínios de civilizações, a destruição ecológica constituiu-se como uma
consequência trágica, imprevisível e involuntária do seu melhor esforço, mais do que o resultado de
uma cegueira moralmente condenável ou de um egoísmo consciente. As sociedades que
sucumbiram eram – tal como os Maias – das mais criativas e – durante algum tempo – das mais
evoluídas e bem sucedidas da sua era e não uns primitivos imbecis.

Os povos antigos não eram nem maus gestores ignorantes que mereciam ser exterminados ou
espoliados, nem ambientalistas sábios e conscientes que resolviam problemas que hoje ninguém
consegue. Eram pessoas como nós, com dificuldades, em muito, semelhantes às que hoje
enfrentamos. Tinham tendência, quer para o êxito, quer para o fracasso, em conjunturas
semelhantes àquelas que nos fazem prosperar ou falhar. É verdade que há diferenças entre a
situação que defrontamos hoje e aquela em que viviam os povos antigos, mas ainda há
semelhanças suficientes para que possamos aprender com o passado.

Acima de tudo, parece leviano e perigoso invocar suposições históricas sobre práticas ambientais
de povos nativos que sirvam de argumento para os tratar com justiça. Em muitos, ou na maioria dos
casos, historiadores e arqueólogos têm descoberto provas surpreendentes de que esta suposição
(sobre o ambientalismo tipo Éden) é errada.

Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2020/08/02/resenha-de-colapso-livro-de-jared-


diamond/

Jared Diamond, professor de geografia da Universidade da Califórnia, Los Angeles. Ele iniciou sua carreira científica em
fisiologia e expandiu-se para biologia evolutiva e biogeografia. Ele foi eleito para a Academia Nacional de Ciências, a
Academia Americana de Artes e Ciências e a Sociedade Filosófica Americana. Entre seus muitos prêmios estão a Medalha
Nacional de Ciência, o Prêmio Tyler de Realização Ambiental, o Prêmio Cosmo do Japão, uma bolsa da Fundação
MacArthur e o Prêmio Lewis Thomas em Honra ao Cientista como Poeta, apresentado pela Universidade Rockefeller.
Publicou mais de seiscentos artigos e seu livro, Guns, Germs, and Steel , recebeu o Prêmio Pulitzer.

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