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Ciência&Vida
TOCQUEVILLE:
INSTRUIR A
DEMOCRACIA
DEVERES DE
ADAPTAÇÃO E
MUDANÇA DOS
GOVERNOS
PARA PRESERVAR
INTERESSES
DE TODA A
SOCIEDADE
PARA O PROFESSOR PERGUNTAS QUE MERLEAUPONTY QUIS RESPONDER EM SEUS PRIMEIROS TRABALHOS
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Untitled-1 1 1 04/05/2020
19/05/2020 16:08
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Hamlet
Um dos mais poderosos textos da literatura mundial. Não há importante pensador moderno
que não tenha sido impactado pelos dilemas do jovem príncipe da Dinamarca,
obrigado a vingar a morte do pai. Tragédia, sátira, romance e filosofia se alternam
numa narrativa marcada por mensagens difundidas em todo o
mundo há quatro séculos.
let é a
1601, Ham
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Ou acesse www.escala.com.br
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120 anos
sem Nietzsche
Em agosto de 1900 morria Friedrich Nietzsche, aos 55 anos
de idade. Desde esse evento, a comunidade filosófica e seus
exegetas buscam desvendar seus enigmas. Dotado de uma
inteligência ímpar e reconhecido como o mestre dos dis-
farces e do mascaramento, sua loucura poderia ter sido
apenas mais um sinal de sua genialidade.
A história revela que o filósofo alemão tinha uma saúde
frágil que, entre outras coisas, o fez enfrentar episódios
de depressão que o aproximaram do suicídio. Ele mesmo
descreveu esses dias como “a pior pena que existe para a vida
na Terra”. Apesar desses momentos, Nietzsche viveu dias
de grande exaltação que seus biógrafos dizem beirar à
megalomania.
Ciprian Vălcan, filósofo romeno e professor catedrático
na Faculdade de Direito da Universidade “Tibiscus” de
Timisoara, apresenta-nos alguns autores que envereda-
ram pela pesquisa de uma possível insanidade. No artigo
que lhes apresentamos nesta edição, intitulado Nietzsche
© CLU / ISTOCKPHOTO.COM
e a loucura (pág. 26 ), ele afirma “… todas as estórias conta-
das sobre a loucura de Nietzsche… São tentativas de mergulhar
nas profundezas de sua alma para recuperar os fragmentos de verdade
que possam lançar mais e melhores luzes à sua filosofia”.
Para Valcan, a importância de todos esses trabalhos está nas imagens
que cada um deles nos fornece sobre Nietzsche: é assim que se cons-
trói uma maior intimidade com o considerado precursor da pós-moder-
nidade.
Boa leitura!
Cristina Almeida - Editora
FILOSOFIA Ciência&Vida • 3
26_ CAPA:
NIETZSCHE
SAÍDA DE CENA FILOSÓFICA
E A LOUCURA
Dotado de inteligência
ímpar e hábil no disfarce
120 ANOS SEM e no mascaramento, o 36 _CATEQUESE
NIETZSCHE
A LOUCURA COMO
mistério da insanidade E CIÊNCIA
ATESTADO DE MAESTRIA
E ÚNICA VIA PARA
INQUISIÇÃO
NO MUNDO
DIGITAL do filósofo ainda suscita Vendida por 450 milhões de
dólares, a obra Salvator Mundi,
COMPREENDER TODO O TEMOR DE SE
O CONHECIMENTO POR EXPRESSAR OU
TOCQUEVILLE:
INSTRUIR A
DEMOCRACIA
DEVERES DE
signo de derrota ou realidade transcendental,
de vitória irônica que
ADAPTAÇÃO E
MUDANÇA DOS
GOVERNOS
PARA PRESERVAR
INTERESSES
metafísica e desconhecida: tudo
se encerrou com uma se nivela e se torna “um”. E,
DE TODA A
SOCIEDADE
PARA O PROFESSOR PERGUNTAS QUE MERLEAUPONTY QUIS RESPONDER EM SEUS PRIMEIROS TRABALHOS
42 _RELIGIÃO -
MORALISMO,
10 _INSTRUIR A LEITURA RÁPIDA
TENTAÇÃO ETERNA
DEMOCRACIA 05 CAUSA&EFEITO A manifestação do cristianismo
Marcelo Jardim nos recorda no Brasil se dá, sobretudo, de
08 A PRIORI
as lições de Tocqueville: entre forma moralista, especialmente
os deveres dos governos estão 15 CINÉFILO
quanto às questões sexuais.
o adaptar-se às condições 21 DEEP ECOLOGY Valores como a misericórdia e a
de tempo e lugar, o mudar 56 INTERSECÇÃO caridade dão lugar à intolerância.
conforme as circunstâncias e os
59 TECNAMENTE
homens. Tudo pela preservação
dos interesses da sociedade. 64 IPSIS LITTERIS 48 _DAS MADONAS
ÀS PROSTITUTAS
65 CARTAS
16 _AUSENTE NOTÁVEL 66 A POSTERIORI
Uma análise das imagens das
mulheres no Ocidente moderno
Perante a falta da consideração
do verbo “ser”, a construção passa por Maria e Maria
filosófica segue por novas formas CADERNO ESPECIAL Madalena para identificar os
de associação que expliquem contatos sagrados e profanos
PARTE 1
as diversas manifestações da entre o passado e o presente.
ESTUDO DA
natureza. É assim que surgem
as tentativas de pensar de modo
PERCEPÇÃO 60 _INQUISIÇÃO
estrutural e holístico. As perguntas que o filósofo DA WEB
francês Merleau-Ponty quis Apesar de as pesquisas
22 _EMIL MIHAI CIORAN responder em seus dois
primeiros trabalhos.
revelarem queda no número
O filósofo romeno é conhecido de usuários do Facebook e
por suas ideias sobre a morte, menor tempo passado nessa
o desespero e o vazio. Lido PARTE 2 plataforma, as redes digitais
por pensadores e escritores EDUCAÇÃO BÁSICA fizeram surgir um novo
modernos, Susan Sontag Os desafios de um fenômeno: o temor de se
descreveu o seu filosofar como professor na prática de seu expressar ou se posicionar por
“pessoal, aforístico, lírico e mister sob a luz de Marx, receio de ser julgado ou até
antissistemático”. Schopenhauer e Foucault. “cancelado”.
Thomas
Nagel
Nascido em 1937, na Bulgária,
antiga Iugoslávia, é conhecido em
todo o mundo por seu ensaio –
Como é ser um morcego? –, que
trouxe novas perspectivas sobre
a forma como os filósofos viam a
mente humana, contrastando o
© DIVULGAÇÃO
chamado reducionismo.
Considerado um dos mais importantes filósofos contempo- tribuições foi a obra Que quer dizer tudo isso? (1987), uma
râneos, ele também se tornou notável em razão de outro ar- introdução à filosofia para jovens que apresenta o pen-
tigo, publicado no início da década de 1970, intitulado Guer- samento filosófico com precisão, vivacidade
ra e Massacre, no qual criticava a política americana e elegância insuperáveis. “Nagel caracteriza-se por
de guerra no Vietnã. Nagel graduou-se na Universidade de dar a máxima atenção à força original dos problemas filo-
Cornell em 1958, e posteriormente seguiu seus estudos nas sóficos genuínos, não procurando fingir que temos teorias
Universidades de Oxford e Harvard. Ao longo de sua car- convincentes para todos eles, ou que podemos eliminá-los
reira ele se dedicou ao estudo da ética, teorias política e do ou dissolvê-los”. “O objetivo da sua introdução à filosofia é
direito, além de ter sido um prolífico articulista nas precisamente fazer os jovens – e menos jovens – sentir a
áreas de metafísica, teoria do conhecimento, força dos problemas filosóficos, concebidos como reali-
filosofia da mente e do sentido da vida. Aborto, liberdade dades vivas que nos batem à porta mal pen-
de expressão, leis da guerra foram outros dos temas sobre samos outra vez e não como meras ficções ou narrativas
os quais se debruçou, especialmente por interessar-se pela inventadas por pessoas ociosas do passado”. Autor de inú-
aplicação da teoria moral à vida real. Foi um dos editores meros livros, Nagel obteve reconhecimento por seu traba-
fundadores da revista Philosophy&Public Affairs, que atuou lho por meio do Prêmio Rolf Schock de Lógica e Filosofia, da
como meio de difusão de assuntos correlatos para o grande Academia Sueca das Ciências e do Prêmio Balzan da Funda-
público. O jornal português O Expresso, ao fazer um perfil ção Internacional. Atualmente ele é Professor Emérito das
sobre o filósofo, ressaltou que uma de suas maiores con- Faculdades de Filosofia e de Direito da New York University.
FILOSOFIA Ciência&Vida • 5
Mais sol,
menos
desperdício?
Como evoluiu a ideia do horário de verão
1. 1918 2. SEGUNDA
Nos Estados Unidos GUERRA MUNDIAL
(EUA) a estratégia de Os EUA estabelecem
aproveitar a luz do dia os chamados “Tempo
foi colocada em prática de Guerra” e “Tempo
para economizar de Paz”. E mesmo após STOC
K.CO
M
UTTER
© SH
energia logo após o final do embate a
a Primeira Guerra mudança poderia ser
Mundial. No Brasil, em ou não adotada por
4. DÉCADA
1931, se estabeleceria cada estado. Mas os
DE 2010
o horário de verão, problemas de adaptação
Constatou-se o aumento de
mas ele não era entre os estados
11% nos casos de depressão
praticado anualmente. começaram a aparecer.
com o retorno do horário
solar no outono, devido à
3. 1966 redução de exposição à luz
Uma lei federal regula a observância da hora legal nos natural. Em 2017 constatou-
EUA. Outras sobrevieram para adaptação de cada região e se um aumento de 6% nos
incentivos fiscais. Até hoje não se sabe ao certo se as medidas, acidentes nas estradas, na
de fato, trouxeram os benefícios esperados naqueles tempos. semana seguinte ao início
do novo horário.
5. QUANTO À 6. POLÔNIA,
ILUMINAÇÃO ARTIFICIAL… LITUÂNIA E FINLÂNDIA
… ela contribui pouco para a economia Foram os primeiros países da União
energética, e isso graças às lâmpadas de Led. Europeia a pedir o cancelamento
Os itens que mais consomem são o computador do horário de verão na Europa. O
e o ar-condicionado – que continuam Brasil, a partir de 2019, já não mais
funcionando a despeito do horário de verão. adota o horário diferenciado.
6 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 7
“A educação está em
8 • FILOSOFIA Ciência&Vida
© SPIFFYJ / ISTOCKPHOTO.COM
trabalha. Mas o que o trabalhador investe? Sua dedicação
e sua resiliência, claro, mas acima de tudo suas aptidões,
suas habilidades, suas competências.
Assim compreendido, o trabalhador é também um investi-
dor ou um capitalista, alguém que se dedicou ao desenvolvi- A educação está em disputa porque a formação, principal-
mento de aptidões desejadas pelo mercado, visando galgar mente a incessante, tem papel central na conformação do
posições cada vez mais elevadas no jogo competitivo por empresário de si mesmo. A concepção de uma formação
ganhar rendas cada vez mais elevadas. Essas aptidões, que interminável, a disponibilidade incessante para a aquisição
são seu capital, dependem de elementos inatos e ambien- permanente de novas habilidades e competências em um
tais, claro – como saúde e condições de desenvolvimento indivíduo que a todo tempo busca estar atraente para o
adequado na primeira infância –, mas o que é decisivo aqui mercado tendem a promover um imenso conformismo – a
são os elementos adquiridos, que são, antes de tudo, como resistência ou a crítica tendem a prejudicar a renda. Cer-
nota Foucault, investimentos educacionais, e não apenas no tamente é por isso que Foucault sustentava que o agente
âmbito da escola. As investigações de Gary Becker sobre as econômico na teoria do capital humano é o indivíduo emi-
estruturas familiares e as de Theodore Schultz sobre de- nentemente governável, porque desenvolve um modo de
senvolvimento nacional e investimento em capital humano vida que busca ver mesmo nas piores catástrofes, políticas
conformam o escopo de suas análises mais gerais. ou naturais, oportunidades de negócio.
A educação desloca-se, assim, para o centro dos investi- Em uma sociedade de empreendedores, de indivíduos-
mentos na economia nacional, com implicações notáveis -empresa cujo principal patrimônio é seu capital humano,
na natureza desse ensino. Assim como no liberalismo clás- com suas habilidades em constante ajuste e implementa-
sico, a educação possuía a dimensão pública fundamental ção, a formação desloca-se para o centro do processo de
de contribuir para a constituição da capacidade de julgar produção e a escola é progressivamente colonizada pela
por conta própria, de participar do debate público e de se lógica empresarial, que não admite distração do “foco” por
inserir em uma comunidade de cultura, consoante à teoria demandas culturais e de cidadania. Que lugar pode haver
do capital humano, a função precípua da educação consiste para a filosofia e as humanidades em tal concepção de for-
em equipar os indivíduos, em formação “do berço à tumba”, mação? E para a democracia? É o que veremos no texto da
com habilidades e competências que lhe permitirão ganhar próxima edição.
este ou aquele salário e aceder a determinados padrões de
consumo. Isso pressupõe “foco” (o que inclui não conside- ADRIANO CORREIA é
rar qualquer outra forma de vida possível), disponibilidade professor de Filosofia
da Universidade Federal
permanente para o autoajuste às variáveis do meio e um de Goiás e presidente
processo interminável de aquisição de competências e de da Associação Nacional
de Pós-graduação em
capacidade de adaptação. Filosofia (ANPOF).
FILOSOFIA Ciência&Vida • 9
INSTRUIR A
DEMOCRACIA
Pela voz de Marcelo
Jardim, recordamos que
entre os deveres primeiros
dos governos estão o
adaptar-se às condições
de tempo e lugar, o mudar
conforme as circunstâncias
e os homens. Tudo pela
construção dos verdadeiros
interesses da sociedade
COLABORAÇÃO DA ANPOF
POR ROSÂNGELA CHAVES
© GEORGEPETERS / ISTOCKPHOTO.COM
10 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 11
das condições sociais entre nobres e plebeus, com querer aplicar a regra majoritária, legítima para
a universalização do acesso aos postos e benes- a tomada de decisão e para a eleição de represen-
ses públicos. E também nos asseverou que uma tantes, a outros campos da experiência, como,
dada direção da história em um certo período não por exemplo, a opinião, os costumes, a verdade
implica garantias de continuidade desta direção. ou a inteligência. Há tirania da maioria quando
E, tanto num caso, como no outro, insistiu que a a força de convicção da maior parte da popula-
liberdade política depende da ação cívica interes- ção é de tal ordem que inviabiliza a expressão
sada no bem comum. (e eventualmente a sobrevivência) daqueles que
pensam de forma diferente do senso comum
Conservador, liberal, democrata, republicano. majoritário. Trata-se de um fenômeno que atinge
Os intérpretes da obra de Tocqueville o o espírito e a disposição das pessoas em divergir
classificaram de diferentes formas ao longo e afirmar os seus pontos de vista, o que pode
do tempo. Como o senhor situa Tocqueville levar a uma espécie de autocensura ou autoexílio
dentro do espectro político? É difícil enquadrá- de indivíduos no seio da sociedade. Para dar um
lo dentro de uma classificação? exemplo do próprio Tocqueville: se a Inquisição
Não acho que Tocqueville possa ser classificado atuava com repressão violenta sobre aqueles que
em apenas uma destas rubricas. Sem dúvida, ele ousavam divergir, a tirania da maioria esvazia,
é um liberal no sentido de que a liberdade dos antecipadamente, o ímpeto de o indivíduo vir a
indivíduos deve ser preservada da intervenção público manifestar sua divergência.
estatal. Também é um conservador no sentido
de recusar as mudanças bruscas operadas pela
vontade na história, não porque a vontade seja
ilegítima, mas porque a ação revolucionária cos-
tuma trazer consigo consequências catastróficas
“HÁ TIRANIA DA
não antecipadas, como ele avalia, por exemplo, MAIORIA QUANDO
no caso do terror francês. Também é um republi-
A FORÇA DE
cano visto que não concebe a liberdade política
sem uma cidadania ativa e uma participação CONVICÇÃO DA
livre na decisão comum dos assuntos comuns. MAIOR PARTE
Não é um democrata por convicção ou gosto. O
seu receio de que as massas possam desprezar DA POPULAÇÃO
as instituições e as minorias limita a sua adesão É DE TAL ORDEM
à democracia. Todavia, ao mesmo tempo, a sua
análise da modernidade reivindica uma adesão
QUE INVIABILIZA
racional aos avanços igualitários da sociedade A EXPRESSÃO (E
democrática que ele considera mais justa do que EVENTUALMENTE
o mundo aristocrático de seus pais.
A SOBREVIVÊNCIA)
Em A Democracia na América, Tocqueville DAQUELES QUE
discorre sobre os perigos que ameaçam as
sociedades democráticas e um deles é o que
PENSAM DE FORMA
ele chama de “tirania da maioria”. Sob o ponto DIFERENTE DO
de vista tocquevilliano, como esta pode ser
SENSO COMUM
definida?
A tirania da maioria é um fenômeno moderno, da MAJORITÁRIO”
sociedade de massas, nas quais há o risco de se
12 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 13
14 • FILOSOFIA Ciência&Vida
Em busca da
escuta perdida
POR ÉRICO ANDRADE superam as diferenças culturais
para se unirem contra todas as
A
referência à obra de Victor Hugo não poderia ser formas de opressão às quais
mais dolorosamente atual. Mais grave: verdadeira. estão submetidas. Por isso, o
O que se retém de Os Miseráveis não é certamente o fim do filme é marcado por ex-
cristianismo de Victor Hugo e que, na periferia de Paris, não plosões de todos os atores que
é mais hegemônico. Talvez em lugar nenhum do mundo. O negaram às crianças o direito
Título: Os miseráveis
cristianismo que porta a esperança da redenção por meio de viverem a sua infância. Mas Diretor: Ladj Ly
do perdão. É o sofrimento dos miseráveis, e não a espe- não se trata de qualquer infân- Gênero: Drama
Duração: 100 min
rança encarnada em Jean Valjean (a personagem emble- cia. É a infância roubada pela
mática do livro), que é retratado na película cujo título é o violência que não poderia reagir à violência senão pela vio-
mesmo da célebre obra de Hugo. No entanto, falemos dos lência na qual foram cultivadas; como diz a frase de Hugo
miseráveis do século XXI que tampouco são os franceses presente nos créditos logo após o encerramento do filme.
que conhecemos quando avançamos nas páginas daquele Lembrando que em francês a expressão cultiver tanto se
clássico romance. aplica às plantas como ao ensino.
Os miseráveis são os franceses que, como se mostra nas Nesse sentido, a cena com a qual o filme se encerra nos
primeiras cenas do filme, portam orgulhosamente a ban- desampara porque quando estamos encurralados pelo
deira da Argélia na vitória da copa do mundo da França. ressentimento e não temos acesso à educação, a violência
Os franceses que são do Magrebe (do norte da África) e se apresenta tanto natural como incontornável. É quando,
que são também africanos negros vulneráveis a uma for- como diz ainda Hugo, “a desesperança cerca os lugares frá-
ma específica de precarização e que dá o tom dos atuais geis que deixam todos submetidos ao vício e ao crime” que
miseráveis. É precarização implicada na vida dos imigran- nos damos conta de que para romper um ciclo de opressão
tes dos países vítimas da colonização francesa. É sobre os é preciso acabar com aquilo que está na sua base: a su-
miseráveis da próspera França do século XXI que o filme se perioridade moral que se expressa muitas vezes na com-
desenrola. É sobre a sua história. preensão de que certo sofrimento, por ser supostamente
Distantes de Paris, e próximos uns dos outros, os miserá- maior do que os demais, pode subtrair o político, a nossa
veis vivem a uniformidade de uma vida paralela às marcas capacidade de diálogo. Talvez apenas com a consciência de
francesas (as feiras que vendem produtos falsificados), aos que todas as personagens da periferia de Paris são miserá-
monumentos históricos (que não aparecem no filme), ao veis, cada uma ao seu modo, é que se poderá desenhar os
acesso à cultura (nenhum equipamento cultural é desta- passos para a revolução mais urgente no mundo contem-
cado). Vivem no tom monocromático dos prédios iguais, só porâneo: a escuta.
rompido com pichações. Vivem sob a anuência de autorida-
des não menos repressoras do que a própria polícia. Vivem ÉRICO ANDRADE é filósofo,
psicanalista em formação,
naquilo que não deixa de tangenciar uma estrutura similar professor da Universidade
às galés (prisões) narradas por Hugo. Federal de Pernambuco (UFPE).
ericoandrade@gmail.com
A revolta estudantil de Os Miseráveis dá lugar à revolta
contra todo o sistema protagonizada pelas crianças que
FILOSOFIA Ciência&Vida • 15
A
fi losofia grega nasce sob a égide do
verbo “ser”. O ser humano é o agen-
te fi losófico, “medida de todas as
coisas” dizia Protágoras, o centro de tudo e
manancial da sabedoria, segundo Sócrates.
Para os que entendem a Filosofia como um
fenômeno ocidental, esta característica a tor-
na especial e norteia a construção do saber
especulativo e científico.
Se acaso nos perguntarmos se o mesmo
ocorreu na China, constataremos com es-
panto que os chineses nunca deram ao verbo
“ser” tal importância. Isso os desqualificaria
AUSENTE
para terem o que chamamos de “filosofia”, e
creio que a tentativa de nos esforçarmos para
provar que os chineses a têm seria uma arma-
dilha perversa de aprisioná-los em nossas ca-
NOTÁVEL
tegorias de saber. Como alguns sinólogos têm
reafirmado, o pensamento chinês não precisa
Quando a construção
filosófica não parte da
consideração do verbo
“ser”, novas formas de
associação que expliquem
as diversas manifestações
da natureza se voltam às
tentativas de pensar de
modo estrutural e holístico
POR ANDRÉ BUENO
16 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 17
18 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 19
20 • FILOSOFIA Ciência&Vida
Meia-Terra para
a vida selvagem
da vida selvagem: as populações de vertebrados silvestres,
POR JOSÉ EUSTÁQUIO DINIZ ALVES como mamíferos, pássaros, peixes, répteis e anfíbios, sofre-
ram redução de 60% entre 1970 e 2018.
O
Homo sapiens nasceu na África e iniciou sua jornada Confirmando o impacto devastador das atividades huma-
migratória, no sentido de ocupar todos os continentes nas sobre a natureza, a Plataforma Intergovernamental
da superfície terrestre, há cerca de 80 mil anos. Pri- para Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, na
meiro ocupou o norte da África e o Oriente Médio (o chamado sigla em inglês), da ONU, mostrou que há 1 milhão de es-
Crescente Fértil, que inclui a região que vai do delta do Nilo à pécies ameaçadas de extinção. O relatório elaborado nos
Mesopotâmia). Em seguida, ocupou todo o território contíguo últimos três anos, e divulgado em maio de 2019, fez uma
da Eurásia (Europa + Ásia). Navegou e ocupou as ilhas do avaliação do ecossistema mundial, com base na análise de
Pacífico até conquistar a Austrália e a Nova Zelândia. Depois 15 mil materiais de referência.
atravessou o Estreito de Bering para alcançar o continente A atual crise climática e ambiental representa uma ame-
americano. Em ondas sucessivas, a humanidade foi ocupan- aça existencial à humanidade. Sem embargo, a despeito
do todos os rincões do planeta e, como uma espécie invasora de toda a degradação ecológica global, o livro Half-Earth
egoísta, foi dominando, explorando e reconfigurando a paisa- não é um panfleto pessimista ou fatalista. Ainda há tempo
gem dos biomas e o modo de vida das demais espécies. para reduzir significativamente as atividades antrópicas e
Ao longo do tempo, as diversas civilizações foram apren- identificar os pontos reais onde a biodiversidade do planeta
dendo a explorar a natureza em larga escala e passaram possa ser recuperada e regenerada.
a utilizar a riqueza do planeta em benefício próprio. A hu- Estudo publicado em julho de 2019, na revista Science,
manidade foi progredindo e o meio ambiente foi regredindo. mostra que restaurar as florestas do mundo em uma es-
Especialmente nos últimos 250 anos, o processo incessante cala macro é a melhor solução para mitigar os efeitos das
de acumulação de riqueza levou ao extremo o modelo Extrai- mudanças climáticas e da perda de biodiversidade. Cobrir
-Produz-Descarta, significando que para produzir bens e ser- com árvores cerca de 900 milhões de hectares de terre-
viços, a economia arranca recursos da natureza e devolve nos degradados poderia armazenar até 205 bilhões de to-
lixo, resíduos sólidos e poluição. neladas de carbono, cerca de dois terços do carbono que
Mas esse processo é ambientalmente insustentável. Para os seres humanos já colocaram na atmosfera, além de
salvar os demais seres vivos do planeta e evitar a 6ª extin- garantir o florescimento da vida selvagem. Como afirma a
ção em massa, o biólogo e entomologista americano Edward Ecologia Profunda, o bem-estar e o florescimento da vida
Osborne Wilson lançou o livro Half-Earth: Our Planet’s Fight humana e não humana sobre a Terra são valores ineren-
for Life, no qual argumenta que a situação que enfrentamos tes ao planeta e devem ser preservados em benefício da
é grande demais para ser resolvida aos poucos e propõe uma prosperidade da Nossa Casa Comum.
solução compatível com a magnitude do problema: dedicar
metade da superfície da Terra à natureza.
De fato, o mundo vive uma situação crítica. O último Relató- JOSÉ EUSTÁQUIO DINIZ ALVES é doutor
em demografia pela UFMG e pós-doutor
rio Planeta Vivo (2018), divulgado pelo Fundo Mundial para pela UNICAMP. Foi professor titular da
a Natureza (WWF), mostra que o avanço da produção e con- Escola Nacional de Ciências Estatísticas
(ENCE) do Instituto Brasileiro de Geografia
sumo da humanidade tem provocado uma degradação gene- e Estatística (IBGE). Aposentado em abril de
ralizada dos ecossistemas globais e gerado uma aniquilação 2019, atualmente é consultor independente.
FILOSOFIA Ciência&Vida • 21
MENS
DA
POR MARCO LUCCHESI
DISSOLUÇÃO
Lido por pensadores e
escritores modernos, o
filósofo romeno é conhecido
por suas ideias sobre a
morte, o desespero e o
vazio. Mas como bem definiu
Susan Sontag, o seu filosofar
era “pessoal, aforístico, lírico
e antissistemático”
U
ma noite de inverno em Bucareste. Um
amigo draculíneo destila ideias a res-
peito de Cioran, com algumas cartas do
filósofo em mãos. Um copo de tsúica e a rei-
teração da matriz romena de Cioran e do diá-
logo deste com Ionescu e Eliade. Mas também
Constantin Noica, de As seis doenças do espírito
contemporâneo, Alexandru Dragomir, discípulo
de Heidegger, e do profundo e incontornável
Lucian Blaga. Parecia fundamental atingir os
fantasmas romenos, de que estão impregnadas
as ruínas de Cioran.
Nascido em Rășinari, em abril de 1911, no
sul da Transilvânia, Cioran atinge sólida for-
mação em Bucareste e na Alemanha. Segue
depois para a França, em cuja língua passa a
escrever desde então (esse idioma emprestado,
com suas palavras sutis, carregadas de fadiga
e pudor), deixando atrás de si uma importante
bibliografia romena.
SA
O
ES
PI
NO
De suas primeiras obras, ainda mal conheci-
UR
©
AR
T
das entre nós, sublinho O livro das ilusões (Car-
22 • FILOSOFIA Ciência&Vida
Educação longitudinal
Das obras romenas, O livro das ilusões é aque-
le onde se define sua linguagem madura: as sín-
copes ou staccati de tirar o fôlego, os oximoros
de alto impacto conceitual e as constelações de
fragmentos, iluminados por suas virtudes po-
tenciais. Um livro dolorosamente arrebatado,
com a melodia-pensamento pautada da primeira
à última frase na poesia de Eminescu.
24 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 25
NIETZSCHE E
A LOUCURA
1
26 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 27
28 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 29
a sociedade é habilmente manipulada por esse de Nietzsche de conduzir seus projetos até o fim, e,
ator sutil. Mas todo esse teatro não é um sim- por outro, aqueles que consideram que a loucura
ples capricho de um ser demoníaco, desejoso de foi uma última máscara de Nietzsche, prova de seu
enganar seus semelhantes apenas para provar irônico talento de histrião.
o seu virtuosismo. O que está em jogo é muito
mais importante: é, por um lado, a camuflagem Os muitos olhares
da excelência do gênio, para conjurar a inveja Deleuze enxerga a loucura de Nietzsche como
dos seus contemporâneos, e, por outro lado, a uma paralisia do espírito que, tendo perdido sua
dissimulação dos esforços dramáticos com que mobilidade, se fixa numa única postura: “Depois
se depara um tal espírito lúcido após ter rompi- de 1890, acontece que alguns amigos (Overbeck,
do o escudo de ficções do mundo e alcançado Gast) pensam que a demência, para ele, é uma
um estado no qual vem a intuir o estatuto todo- última máscara. Ele escrevera: ‘E, por vezes, a
-poderoso do caos. A fim de poder continuar própria loucura é uma máscara que esconde um
a viver, as pessoas comuns não devem nunca saber fatal e demasiado seguro’. De facto, ela não
suspeitar do abismo que lhes espreita, ou da o é, mas apenas porque indica o momento em que
ausência de verdade de suas crenças. O gênio as máscaras, cessando de comunicar e de deslo-
é um herói do conhecimento, pronto para ser car-se, se confundem uma rigidez de morte”.16 É
devorado por sua vontade de veracidade, de co- precisamente a inabilidade de jogar com as suas
nhecer uma verdade que ele não poderá jamais diversas máscaras o que faz com que a loucura se
compartilhar com os demais para não compro- instale, encerrando, portanto, a obra: “De tal modo
meter a sua sobrevivência. que Nietzsche teve a capacidade de deslocar as
Embora Nietzsche não se resolva entre es- perspectivas, da saúde à doença e inversamente,
sas duas interpretações, ambas bem represen- fruiu, por mais doente que estivesse, de uma ‘gran-
tadas nos seus textos, assim como de resto de saúde’ que tornava a obra possível. Mas quando
nunca o faz, provocando a irritação daqueles lhe faltou esta capacidade, quando as máscaras
que creem tratar-se da incoerência de um es- se confundiram com a de um palhaço ou a de um
pírito contraditório, capaz de dizer ao mesmo bobo, sob a acção de um processo orgânico ou ou-
tempo duas coisas opostas sobre o mesmo as- tro, a doença confundiu-se, ela mesma, com o fim
sunto, os comentadores privilegiam a segunda da obra”.17 O que para os outros pode ser que re-
explicação por verem nela uma descrição do presente a normalidade, a estabilidade de um eu
comportamento do próprio Nietzsche.14 perfeitamente delimitado, significa para Nietzsche
Convém avançar, enfim, às interpretações precisamente a derrota, o colapso na enfermidade.
propostas para a loucura de Nietzsche. Nós Jean-Luc Marion propõe outra leitura da loucura
apenas nos deteremos nas explicações que de Nietzsche. Ele pensa que a sua obra, longe de
buscam dar uma significação filosófica a este ser a expressão radical de um ateísmo triunfan-
epílogo da obra propriamente dita, desconsi- te que teria como emblema a célebre frase “Deus
derando as hipóteses puramente fisiológicas está morto”, representa antes uma busca frenéti-
emitidas por médicos e psiquiatras, tanto mais ca da divindade. Segundo o filósofo francês, essa
quanto elas não se têm mostrado convincentes busca está fadada ao fracasso porque Nietzsche
e tampouco sido aceitas nos círculos dos es- permanece preso a uma compreensão idólatra do
pecialistas.15 Conforme anteriormente mencio- divino, que ele é incapaz de ultrapassar através da
nado, agruparemos as opiniões expressadas a sua obra. Todavia, uma vez que os fragmentos que
este respeito de acordo com o modo pelo qual Marion considera marcados pela idolatria, perten-
é avaliada a sua loucura final. Por um lado, centes a Anticristo e a Vontade de Potência, não
teremos o grupo daqueles que consideram a fazem parte dos últimos escritos de Nietzsche, ele
loucura uma derrota, um signo da inabilidade levanta a hipótese de que sua loucura seria o signo
30 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 31
32 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 33
N O TA S Paulo: Companhia das Letras, Attempt At A Mythology. Transl. 24 “Par le biais de l’histrionisme
2008, p. 110. by Robert E. Norton. Urbana/ pur et simple, Nietzsche tente
1 Nietzsche şi nebunia, no 14 “Ocultar-se tornou-se para Chicago: University of Illinois de surnager au naufrage de son
original romeno (N. do T.). Nietzsche uma paixão. Ele Press, 2009, p. 306. identité en tant que Nietzsche
2 JACCARD, Roland, La tinha um desejo insólito pelo 22 “Die ,humoristische Seite’, lucide.Mais ce n’est qu’au
tentation nihiliste. Paris: logro, pela masquerade e pela aber vor allem das überaus souvenir de la personnalité
Presses Universitaires de bufonaria. Ele assume diversos höfliche Gebaren Nietzsches de ses correspondants que
France, 1991. ‘papéis’ tão disfarçadores auch in der Anstalt läßt in Gast le mouvement euphorique de
quanto relevadores: talvez eine Vermutung aufkommen, ce naufrage lui est sensible:
3 FERRY, Luc, L’homme-Dieu
nenhum outro filósofo oculta die Bettina von Arnim seinerzeit l’euphorie est trop violente
ou le sens de la vie. Paris:
a sua filosofia por detrás de dem Schicksalsgenossen pour qu’il ne soit poussé par
Grasset&Fasquelle, 1996, p.
tanta sofística. [Concealing Nietzsches, Hölderlin, ce mouvement même à la
208.
himself became a passion for gegenüber äußerte. […] Und communiquer à ceux qui ont
4 FINK, Eugen, Nietzsche’s Nietzsche. He has an uncanny connu celui quisombre; trop
so meint auchjetzt Gast, es sei
Philosophy. Tansl. By Goetz desire for deceit, masquerade forte cette libération à l’égard
sehr fraglich, welchen Gefallen
Richter. London/New York: and the pose of thejester. He de son moi lucide pour qu’elle
man Nietzsche tue, wenn man
Continuum, 2003, p. 11-13. assumes as many disguising ne devienne jouissance même
ihn wieder zum Leben erwecke.
5 Do grego antigo, as revealing ‘roles’: perhaps […] Er gibt an, Nietzsche in de sa propre dérision.” Ibid., p.
“temeridade”, “desmesura”, no other philosopher conceals Zuständen gesehen zu haben, 340.
“desmedida”: traço his philosophy behind so much bei denen es ihm - schauerlich! 25 HAAR, Michel, Nietzsche
fundamental dos personagens sophistry.]” FINK, Eugen, - vorkam, als fingiere Nietzsche et la métaphysique. Paris:
trágicos, resultando em castigo Nietzsche’s philosophy, p. 3. den, Wahnsinn, als sei er Gallimard, 1993, p. 63.
por parte dos deuses. Um 15 Para uma revisão destas froh, daß er so geendet habe! 26 “Dès que le moi de Nietzsche
exemplo é a estória de do teorias, cf. E. F. Podach, […] Zeitweilig war auch für coïncide avec la totalité de
titã Prometeu, na tragédia de Nietzsches Zusammenbruch. Overbeck Nietzsches Krankheit l’histoire, il se prive de la parole
Ésquilo, que rouba o fogo dos Heidelberg: Niels Kampmann durchaus problematisch: […] et de l’écriture. Comme Dionysos,
deuses para presenteá-lo à Verlag, 1930. Es ist bisweilen fast zeitweilig qui est sa dernière ‘identité’, le
humanidade. Como punição, 16 DELEUZE, Gilles, Nietzsche. schwankend geworden, sofern moi de Nietzsche est déchiré,
Zeus o acorrenta a um rochedo, Trad. de Alberto Campos. ich, und zwar in verschiedenen éparpillé, selon la perspective
onde passa a eternidade tendo Lisboa: Edições 70, 2007, p. 12. von mir beobachteten Perioden de la totalité dispersée qu’il
o seu fígado devorado por der geistigen Erkrankung incarne désormais. Le mutisme
uma águia, de onde o título da 17 Ibid., p. 16.
Nietzsches, mich, wenigstens final de la folie serait, comme
tragédia de Ésquilo: Prometeu 18 “Nietzsche a transgressé für Augenblicke, der il l’écrit peu avant de cesser
acorrentado (N. do T.). le rapport idolâtrique au divin, grauenvollen Vorstellung nicht d’écrire, ‘le masque qui cache
6 NIETZSCHE, Friedrich, Sobre puisqu’un face à face avec habe erwehren können, daß sie un savoir fatal et trop sûr’,
verdade e mentira no sentido finalement quelque chose de simuliert sei.” PODACH, E. F., mais de quel savoir? Du savoir
vivant dans le divin le précipita Nietzsches Zusammenbruch, p. peut-être que le langage ne peut
extramoral, livro I. Trad. de
dans l’ultime transgression, 136-137. pas briser le principe d’identité
Fernando de Moraes Barros.
l’enténèbrement.” MARION,
São Paulo: Hedra, 2008, p. 27. 23 “Jamais Nietzsche ne sans se briser lui-même, ne
Jean-Luc, L’idole et la distance.
7 IDEM, A vontade de poder, semble perdre la notion de peut pas s’y soumettre sans
Paris: Grasset, 1989, p. 104.
livro III, §544. Trad. de Marcos sa condition propre: il simule renoncer à dire le fond de
19 HAYMAN, Ronald, Nietzsche. Dionysos ou le Crucifié et se l’être. Ainsi la destruction
Sinésio Pereira Fernandes e
Trad. de Scarlett Marton. São délecte de cette énormité. du langage métaphysique
Francisco José Dias de Moraes.
Paulo: UNESP, 2000, p. 33. C’est dans cette délectation serait, chez Nietzsche, une
Rio de Janeiro: Contraponto,
2011, p. 283. 20 Ibid., p. 52. que consiste la folie: nul ne expérimentation poussée jusqu’à
21 “Nietzsche’s life and exit peut juger jusqu’à quel degré l’autodestruction du destructeur
8 IDEM, Ibid., livro II, § 377, p. en tant que locuteur.” Ibid., p.
embody only one particular cette simulation est parfaite,
202. 63-64.
form of this ascendance into absolue; son critère est dans
9 IDEM, Além do bem e do mal, the mythical realm, he fulfills l’intensité qu’il éprouve à 27 Literalmente, “antes da
§ 289. Trad. Paulo César de only superficially a tragic simuler, jusqu’à l’extase. […] letra”: expressão idiomática
Souza. São Paulo: Companhia possibility of his century with Comment peut-il sciemment francesa que sinigica algo
das Letras, 1992, p. 193. his exemplary self-liberation. se donner ainsi en spectacle, que existe ou acontece antes
10 IDEM, Ibid., § 40, p. 45-46. […] Nietzsche’s active si ce n’est parce qu’il sait que mesmo de ser nomeado e
11 IDEM, A vontade de poder, achievement and courageous nul ne croira ce qu’il déclare reconhecido pelo seu nome.
livro II, § 378, p. 202. self-sacrifice—the sacrifice of ? […] Le metteur en scène Trata-se, aqui, de uma
the pure logician in him, the demeure bien la conscience referência implícita à célebre
12 IDEM, A gaia ciência, §52. most awe-inspiring sacrificium nietzschéenne mais non plus afirmação do filósofo austríaco
Trad. de Paulo César de Souza. of the intellect since Pascal—is le moi nietzschéen, non plus Ludwig Wittgenstein (1889-
São Paulo: Companhia das his determined overcoming of le je, soussigné Nietzsche.” 1951): “O que não pode ser
Letras, 2001, p. 91. this very skeptical fanaticism KLOSSOWSKI, Pierre, dito deve ser silenciado”, que
13 IDEM, Humano, demasiado through a great Empedoclean Nietzsche et le cercle vicieux. Nietzsche teria antecipado,
humano, vol. II, § 232. Trad. leap beyond the logical.” Paris: Mercure de France, muito embora não com estes
de Paulo César de Souza. São BERTRAM, Ernst, Nietzsche: 1969, p. 334-335. exatos termos.
34 • FILOSOFIA Ciência&Vida
APRENDER
& ENSINAR
As perguntas que
o filósofo francês
MERLEAU-PONTY
quis responder em
seus dois primeiros
trabalhos
DA PERCEPÇÃO
FILOSOFIA Ciência&Vida • 1
DO CORPO PRÓPRIO
Uma visão geral acerca dos dois primeiros
trabalhos de Merleau-Ponty, focalizando
a cumplicidade existente entre eles e o
cenário cartesiano no qual se instalam, faz
entrever as interrogações que sumarizam
a dupla proposta de Merleau-Ponty
POR DANILO SARETTA VERÍSSIMO
E
ntendemos que a discussão do problema da função simbólica nos pri-
meiros trabalhos de Merleau-Ponty exige um exame da cumplicidade
estratégica, do ponto de vista filosófico, entre A estrutura do comporta-
mento e a Fenomenologia da percepção. Exige, ainda, que estejamos atentos para
aquilo que consideramos um dos pilares do desenvolvimento teórico operado
pelo autor nessas duas obras, a saber, a exploração e a articulação original dos
avanços que vinham sendo apresentados na filosofia da percepção, na fisiolo-
gia e na patologia da percepção, bem como na psicologia da percepção alemãs,
que se encontravam em um momento de efervescência no início do século XX.
O estudo da filosofia e da descrição científica da percepção “modernas” vi-
sava a ultrapassagem das “alternativas clássicas”, a ultrapassagem do idealis-
mo filosófico sem a adesão ao realismo científico ingênuo (Merleau-Ponty, 1997,
p. 66,), a negação de toda manifestação de pensamento objetivo – tanto aquele
que por meio de atos de significação estabelece um mundo sem fissuras quanto
aquele que pressupõe um mundo cuja constituição pode ser retomada pela aná-
lise do sistema de relações objetivas que o sustenta, incluindo-se, nesse mundo,
o organismo humano, o que, supostamente, nos levaria à possibilidade de uma
“ciência objetiva da subjetividade”. Na perspectiva merleau-pontiana, a crítica
dessas alternativas clássicas nos encaminha, diretamente, ao debate com o car-
tesianismo expresso na filosofia e nas ciências.
2 • FILOSOFIA Ciência&Vida
“Cenário cartesiano”
Para Merleau-Ponty, o “gesto cartesiano” fundador
é a assunção das contradições geradas pela dificul-
dade de articular a união do espírito e do corpo tal
como ela aparece, com evidência, no que Descartes
chama de nossa “inclinação natural”, com o privilégio
da substância pensante, do espírito, na concepção de
toda forma de consciência. Tal dificuldade é a espinha
dorsal do pensamento ocidental e se resume à tarefa
de dar conta da existência paradoxal do corpo huma-
no. A intenção filosófica de Merleau-Ponty sustenta-
-se, pois, na interrogação da herança cartesiana e no
debate de toda sorte de dualismos antropológicos que
se desenvolveram a partir dela (cf. Saint Aubert, 2005;
Bimbenet, 2004; Furlan, 2001a). Isso fica claro no tre-
cho de uma entrevista cedida pelo filósofo em 1959:
FILOSOFIA Ciência&Vida • 3
titui, isso faz parte do universo corpo, é a alma que vê, e não o olho
do pensamento, mas não se (Descartes, 1953c, p. 224).
trata de uma ligação do pen- Nesse contexto, se, por um lado,
samento com outra coisa que Descartes (1953a, p. 328; 1996,
ele mesmo. E é essa imanência p. 330) admite que há certas coisas
filosófica do pensamento a ele que a “luz natural” não é capaz de
mesmo que sempre me cho- nos ensinar sem a ajuda do corpo,
cou, que sempre me pareceu aquilo que nos causa prazer e aquilo
insuficiente, de modo que, des- que nos causa dor, por exemplo, o fi-
de o tempo de estudante, eu lósofo, por outro, afirma: “Pois é, ao
me propunha a trabalhar sobre que me parece, somente ao espírito, e
esse problema, das relações “UM CORPO NÃO PODE não ao composto de espírito e corpo,
do espírito com aquilo que não que compete conhecer a verdade das
OCUPAR O MESMO
é ele: como torná-las compre- coisas”. A tradição cartesiana impli-
ensíveis, como torná-las pen- ESPAÇO OCUPADO POR ca, portanto, o afastamento do su-
sáveis. (Merleau-Ponty apud UM OUTRO CORPO, jeito em relação ao objeto. Segundo
Saint Aubert, 2005, p. 17-8) PROPRIEDADE ESSA Merleau-Ponty, opera-se a purifica-
ção da substância extensa, dora-
Descartes QUE NÃO PERTENCE À vante compreendida como soma de
Voltemo-nos para Descartes. SUBSTÂNCIA PENSANTE partes exteriores umas às outras, aí
Em vários textos, o filósofo seiscen- (1953B, P. 1160)” se incluindo o corpo, e a purificação
tista insiste sobre a distinção entre da substância pensante, da alma,
a alma e o corpo. Em Meditações, “ser inteiramente presente a si mes-
no exercício da dúvida hiperbólica, mo, sem distância”.
após refletir sobre os atributos do
corpo, nenhum deles indubitável, e os da alma, vá- Aventura intelectual
rios deles ligados às demandas corporais, somente A clareza é encontrada, de um lado, em nós e, de
o pensamento aparece a Descartes (1953a) como outro, fora de nós. Assim, ou se existe como coisa,
característica diferencial do espírito, como aquilo e a análise de suas partes revela tudo o que ela
que não pode ser destacado do Eu. Como qualquer pode ser, ou se existe como consciência, como po-
objeto que encontramos ao nosso redor, o corpo é der puro de entendimento de si mesmo e dos obje-
divisível, ao passo que o espírito configura uma tos exteriores (PhP, p. 231-2). Entretanto, aos olhos
substância pensante e una, e à qual não se aplica o de Merleau-Ponty, as reflexões mais “célebres” de
princípio da divisibilidade. Descartes, e que se encontram em algumas pou-
Podemos perder partes do nosso corpo sem que cas passagens de seus textos e cartas, são aquelas
isso incorra em perda da substância pensante. em que o filósofo seiscentista investiga a união da
Ademais, a substância extensa não admite a sobre- alma e do corpo, vislumbra uma zona abissal do
posição de extensões. Um corpo não pode ocupar Ser, entra em contradição e, então, decide fechá-
o mesmo espaço ocupado por um outro corpo, pro- -la ao pensamento filosófico. Voltemo-nos a um
priedade essa que não pertence à substância pen- trecho de Meditações indicado por Saint Aubert
sante (1953b, p. 1160). Descartes afirma, ainda, que (2005) como adágio da “aventura intelectual do
as impressões que recebemos do nosso corpo nós cartesianismo”.
não as recebemos dele todo, mas do cérebro, órgão
responsável pela mediação entre nossa substância A natureza me ensina, também, por esses
material e nossa substância pensante. É o espírito sentimentos de dor, fome, sede etc., que não
que sente por meio das impressões que recebe do somente estou alojado em meu corpo, como
4 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 5
6 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 7
8 • FILOSOFIA Ciência&Vida
© DIVULGAÇÃO
O fato é que a evidência da consciência é inchada
a partir de Descartes em direção a uma liberdade
absoluta. A consciência passa a ser uma consci-
ência constituinte e, assim, a compreender todos
os fenômenos como inerentes à sua atividade e o
pensamento como evidente para si mesmo (cf. PhP,
p. 432). Por sua vez, as ciências, do ponto de vista
do “espectador estrangeiro”, são capazes de pôr
em relevo uma série de dependências do homem REFERÊNCIAS
em relação a fatores físicos, orgânicos, psicológi- BIMEBENET, É. Nature et humanité: le problem anthroplogique
cos e sócio-históricos. Merleau-Ponty (2000, p. 12) dans l’ouvre de Merleau-Ponty. Paris: Vrin, 2004.
resume esse impasse com as seguintes palavras: DESCARTES, R. Méditations. In: ____ Ouvres et lerttres. Paris:
Gallimard, 1953ª. P. 253-334.
FURLAN, R. Objetivismo, intelectualismo e experiência do corpo
É preciso, pois, compreender como o ho- próprio. Natureza Humana, São Paulo, v. 3, n. 2, p. 289-314, 2001
a.
mem é simultaneamente sujeito e objeto, pri- MERLEAU-PONTY, M. L’oiel et l’esprit. Paris: Gallimard, 164.
meira pessoa e terceira pessoa, absoluto em _____________. Notes des cours au Collège de France: 1958-
iniciativa e dependente, ou, mais ainda, é pre- 1959 et 1960-1961. Paris: Gallimard, 1996ª.
_____________. Parcours: 1935-1951. Lagrasse: Verdier, 1997.
ciso revisar as categorias que, se mantidas,
_____________. L’union de l’âme et du corps chez
fariam renascer o conflito perpétuo do saber Malebranche, Biran et Bergson. Paris: Vrin, 2003a.
positivo e da filosofia […]. _____________. Signes. Paris: Gallimard, 2003.
_____________. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos
Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
As ciências humanas, se acompanhadas em 1999.
seu “desenvolvimento espontâneo” (cf. Verissimo; SAINT AUBERT, E. Le scenario cartésian: recherché sur la
formation et la coherence de l’intention philosophique de
Furlan, 2006), revelam, de fato, um homem-coisa, Merleau-Ponty. Paris: Vrin, 2005.
o homem como um objeto entre outros? E a ati- VERISSIMO, D; FURLAN, R. Merleau-Ponty e a evolução
espontânea da psicologia. Temas em Psicologia, v. 14, n. 2, 2006.
tude reflexiva, que olha o homem a partir de si
mesmo, ela nos conduz, inevitavelmente, a uma
subjetividade “intemporal e incondicionada”?
Essas interrogações sumarizam a dupla proposta SOBRE O AUTOR
Danilo Saretta Veríssimo é doutor em Psicologia pela
de Merleau-Ponty, ao conceber um estudo sobre
Universidade de São Paulo e em Filosofia pela Université
a percepção que, partindo de dois pontos de vista Jean Moulin – Lyon III. É docente nos cursos de
diferentes, convergisse para um ponto aquém do graduação e pós-graduação em Psicologia da Faculdade
de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista
sujeito e do objeto puros. “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), campus de Assis.
FILOSOFIA Ciência&Vida • 9
A arte de
As dificuldades
enfrentadas por
um professor da
educação básica
podem levar a um
estado de alienação
capaz de subtrair
dele os ideais que
devem nortear
seu mister e sua
capacidade de
ponderação crítica
FILOSOFIA Ciência&Vida • 11
12 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 13
“O PROFISSIONAL DA EDUCAÇÃO
BÁSICA, QUE ATÉ ENTÃO SÓ
Por mais que a crítica schopenhaueriana
PENSAVA EM MINISTRAR SUAS
seja direcionada à academia, especialmente
na esfera da filosofia, não é difícil perceber a AULAS, AGORA É SACRIFICADO.
similaridade com o que discorri até o momen- TAL ATO SE DÁ PELO ESTADO,
to. A afeição que é dada por Schopenhauer aos
acadêmicos de sua época também é ofertada PELA GESTÃO ESCOLAR, PELA
em nossos dias e nos mesmos moldes na esfe- COMUNIDADE ESCOLAR E, EM
ra acadêmica, porém de maneira dissímil, mas
com o mesmo desígnio, no ensino básico.
ALGUNS CASOS, POR COLEGAS
PRIVILEGIADOS”
Cerceamento com Foucault
Quanto ao cerceamento que há em esco-
las públicas, pensando na educação básica, é
possível trazer para o diálogo outro pensador grande e novo instrumento de governo…;
importante que discorreu em sua obra temas sua excelência consiste na grande força
voltados à educação, a saber, o filósofo fran- que é capaz de dar a qualquer instituição
cês Michel Foucault. A teoria desenvolvida a a que seja aplicado7.
partir do termo pan-óptico é de grande valia
para compreender a supressão que o modelo Operários modernos
educacional se desloca há algum tempo. Retomando um ponto específico deste artigo,
Quando o indivíduo perde o seu espaço social isto é, em que todos são responsáveis pela for-
devido à implantação de vários mecanismos, mação da criança e do adolescente, é imprescin-
este mesmo indivíduo é direcionado por proce- dível ressaltar um problema assíduo em muitas
dimentos subjetivos à sociedade. Tais recursos escolas, a saber, quando a direção e a gestão
são utilizados como forma de disciplina, de escolar se negam a cumprir seus deveres, não
treinamento, de controle, bem como de vigilân- percebendo que a insuficiência penaliza direta-
cia e de punição. mente o educador e seus direitos. Mesmo que
A escola é, assim como o sistema carcerário, determinados direitos estejam sancionados em
um arquétipo do modelo pan-óptico idealizado legislação, o simples fato de não exigir da comu-
por Jeremy Bentham, do qual Foucault se apro- nidade o cumprimento de seus deveres, apenas
priou para fundamentar tópicos de sua obra para não causar incômodo ou desconfortos para
Vigiar e Punir. Para Foucault, a escola moderna ambos, esquece a gestão que esta inobservância
segue produzindo um tipo específico de socie- reproduz uma ação reversa ao modelo educacio-
dade, mesmo que a base para esta formação nal, simplesmente por um descaso exacerbado.
seja por meio de punição, uma vez que a dis- A direção e a gestão não percebem que é
ciplina é internalizada e recebida como algo neste descumprimento de deveres que ini-
sendo natural. Abaixo as palavras de Foucault: cia o desrespeito e a violência do educando
ao educador, em que a voz do aluno se torna
O esquema panóptico é um intensifi- agressiva e aufere o embate, o afronte e a sub-
cador para qualquer aparelho de poder: versão diante da voz do professor. Em outras
assegura sua economia (em material, em circunstâncias também é possível identificar a
pessoal, em tempo); assegura sua eficácia posição autoritária da gestão, sendo esta con-
por seu caráter preventivo, seu funciona- juntura, em alguns momentos, despercebida
mento contínuo e seus mecanismos auto- por aqueles que fazem parte da gestão. Porém,
máticos. É uma maneira de obter poder há momentos em que o autoritarismo é exerci-
numa quantidade até então sem igual, um do conscientemente.
14 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 15
NOTAS da educação. Por fazer parte parte da elite na educação, assim 5 MARX, Manuscritos econômico-
da elite intelectual, sua carga como quem deve trabalhar em -filosóficos. p. 82-83.
1 BRASIL. Constituição da horária em sala de aula é regime de semiescravidão, uma 6 SCHOPENHAUER. Über die
República Federativa do Brasil. extremamente inferior quando vez que, além da divergência
Universitäts-Philosophie. p.
2 BRASIL. Lei de diretrizes e comparada a de um professor da salarial, o tempo de trabalho
194-195.
bases da educação nacional. educação básica. É plausível a também é uma dissonância na
discussão intelectual e social, em esfera da educação. Cabe aqui, 7 FOUCAULT. Vigiar e Punir. p.
3 BRASIL. Estatuto da criança e
que o Estado define qual docente em meio a tantas discussões 229.
do adolescente.
tem o direito de pesquisar e de sobre reformas, pensar de 8 ENGELS e MARX, Manifest der
4 Como adendo, enfatizo a usufruir seu longo período ocioso maneira austera o que deve ser Kommunistischen Partei. p. 40.
discrepância salarial entre o semanal, pois é neste mesmo feito com tais privilégios para
docente do ensino básico e o 9 ENGELS e MARX, Manifest der
período que suas pesquisas são alguns docentes, visto que não
docente de academia, sendo ou deveriam ser realizadas. Em é apenas uma questão de status Kommunistischen Partei. p. 56.
este último pertencente a outras palavras, o Estado define quo que está em evidência, mas o 10 CANDIDO, Os parceiros do Rio
uma classe elitista no âmbito quem deve ser intelectual e fazer futuro da educação brasileira. Bonito. p. 46.
16 • FILOSOFIA Ciência&Vida
macunaíma
dermos nossa diversidade fantásticas de um anti-herói: é
a vasta pesquisa linguística
mistura de lendas, mitos e Vive numa tribo da selva amazônica, onde
preguiçoso, malandro, covarde, não
tem moral, muito menos piedade. Vive
e uma identidade nacional numa tribo da selva amazônica, onde
asileiros, chegou a hora de ganha um amuleto da sorte que acaba
or do anti-herói nascido na
do em um dos personagens
ganha um amuleto da sorte que acaba caindo
caindo nas mãos do gigante Piaimã,
comedor de gente. Para recuperar a
mpos no país. pedra mágica, ele viaja a São Paulo e se
O HERÓI SEM
próprio autor explica: “Um poema herói-
critos, pela atuação
cômico, caçoando do ser psicológico
NENHUM CARÁTER
brasileiro, fixado na figura de lenda, à
maneira mística dos poemas nacionais.
astello no livro Ausência de regionalismo pela fusão
onsagrou-se como
CATEQUESE
DA CIÊNCIA
Vendida por 450 milhões de dólares, a obra Salvator Mundi, de
da Vinci, nos oferece uma realidade transcendental, metafísica
e desconhecida: tudo se nivela e se torna “um”. Foi assim que a
mensagem do artista jamais foi apagada pelos séculos
36 • FILOSOFIA Ciência&Vida
O
ano de 2011 será lembrado como o mar- Chandler (Nova York) por US$ 80 milhões,
co de um dos maiores acontecimentos quando é repassada ao oligarca Dmitry Rybo-
no mundo das artes: a confirmação lovlev por US$ 127 milhões. Com isso, Salva-
feita pelo Dr. Robert Simon, da Universidade tor, juntamente com o retrato Ginevra de’ Benci,
de Columbia (EUA), de que a pintura Salvator da National Gallery de Washington, torna-se
Mundi é de autoria de Leonardo da Vinci. A a segunda pintura de Leonardo radicada no
obra Salvator já era bem conhecida na literatu- Novo Mundo – ambas nos Estados Unidos.
ra afim, porém muito se polemizava sobre qual Entre novembro de 2011 e fevereiro de 2012,
das várias versões seria a original – se é que ainda participaria da mostra Leonardo da Vin-
houvesse uma dentre as que surgiam. Para to- ci: Pintor da Corte de Milão na National Gallery
dos os efeitos, considerava-se esta obra como de Londres, sem precedentes no gênero.
um dos possíveis trabalhos ainda desapareci-
dos de Leonardo. Após as mais apuradas pes-
quisas dentre os melhores “pretendentes” em “O QUE SE SUSPEITAVA É QUE A FILIAL
2005, seguiu-se uma complexa restauração
conduzida pela expert Dianne Modestini. Con- DO MUSEU DO LOUVRE NO EMIRADO
cluída dois anos depois, o óleo em madeira, de (INAUGURADA QUATRO DIAS ANTES DO
65 cm x 45 cm, revelava-se como de autoria do
grande gênio da Renascença. Por ser muito su-
HISTÓRICO EVENTO) FOSSE REVELADA
perior aos demais em termos de técnica e trata- COMO DESTINO FINAL DESTE QUE ERA
mento, um corpo técnico decidiu creditar-lhe o UM DOS ÚLTIMOS TRABALHOS DE
status de original. O diretor da National Gallery
de Londres, Nicholas Penny, encarregara-se do LEONARDO AINDA EM MÃOS PRIVADAS”
processo de atribuição.
Trata-se da representação de um tema cor-
rente na iconografia cristã desde a Idade Média Obra mais cara
(mas com raízes bem mais antigas): “Senhor Anunciada pela Christie’s de Nova York, a
dos Céus e da Terra” pertence ao período mais pintura vai a leilão em 15 de novembro de 2017,
tardio da produção artística de Da Vinci, em onde seria vendida por US$ 450,3 milhões
1501, mostrando-nos Cristo em plano america- (bem além da estimativa-base dos US$ 100 mi-
no; mão direita em gesto de bênção e a outra lhões), passando, assim, a ser a obra de arte
segurando uma órbita (aqui, uma esfera trans- mais cara na história dos arremates. O novo
lúcida, com implicações platônicas e da cosmo- dono, segundo o The New York Times, é o prín-
grafia grega). A inusitada ausência de uma cruz cipe saudita Bader bin Abdullah bin Moham-
ao topo do globo (e da opacidade deste) deve med bin Farhan al-Saud, um investidor nada
ser referência à astronomia de Aristóteles e Co- relacionado ao mundo do colecionismo de Arte,
pérnico na concepção das “Esferas Celestiais”, mas um gigante nas áreas de telecomunica-
estruturas por onde os astros se distribuíam. ções (o Saudi Research and Marketing Group)
© WIKIMEDIA COMMONS
FILOSOFIA Ciência&Vida • 37
teria sido em nome do Departamento de Cul- Capela Sistina, e possui em sua clientela insti-
tura e Turismo da exótica Abu Dhabi, onde tuições como a Frick Collection e o Toledo Mu-
Farhan al-Saud também é ministro. O que se seum of Art. Ou admitimos a integridade das
suspeitava é que a filial do Museu do Louvre instituições consideradas de excelência – até
no emirado (inaugurada quatro dias antes do que nos provem o contrário – ou deveríamos
histórico evento) fosse revelada como destino reescrever boa parte da História da Arte ape-
final deste que era um dos últimos trabalhos nas pelo critério de “terrorismo atributivo pre-
de Leonardo ainda em mãos privadas. De fato, ventivo”. E a verdade dos fatos é que, até agora,
a teoria ganhou maior fôlego ao ser divulgada nada se viu de assustador que ameaçasse a
para 18 de setembro de 2018 a exposição (can- credibilidade desta restauração em particular.
celada sem maiores explicações) de Salvator Por outro lado, temos a consideração por
Mundi no Louvre em terras árabes. parte de alguns especialistas (em particu-
E, ainda que também estivesse programa- lar, Carmen Bambach, do Metropolitan
da sua participação no Louvre de Paris entre de Nova York, e Matthew Landrus,
outubro de 2019 e fevereiro de 2020 (por oca- de Oxford) de atribuir a obra não a
sião dos festejos dos 500 anos de morte de Le- Leonardo, mas a dois de seus se-
onardo), a ideia é que o quadro retorne a Abu guidores mais próximos: Bernar-
Dhabi sem escalas: “Perdida e escondida por dino Luini e Giovanni Boltraffio.
um longo tempo, a obra de Leonardo da Vinci Sobre Luini, sabemos que foi um
será nosso presente para o mundo”, confirma- artista muito influenciado pelos
ria Mohammed Al Mubarak, do departamento também lombardos Bergognone,
de Cultura e Turismo da instituição. Bramantino e Bernardino Zenale.
Ainda que muito próximo ao estilo
Autenticidade sob fogo de Da Vinci – após sua segunda es-
Como já esperado neste tipo de situ- tada em Milão entre 1506 e 1513
ação em que uma nova obra-prima –, carece a Luini tanto o peculiar
é anunciada, não faltaram vozes uso maestral do sfumato quanto a
contrárias à descoberta, e uma minúcia de detalhes orgânicos
das maiores armas com que a que se tornaram marcas auto-
crítica opositora se muniu para rais de Leonardo e que saltam
pôr em dúvida até que ponto a aos olhos nesta versão em Abu
atribuição possa ser validada é Dhabi (aqui, os cachos no cabelo
o estado de conservação bastan- e, sobretudo, detalhes anatômicos
te crítico da pintura somado a uma na mão direita).
péssima restauração anterior. Costumo
lidar com esse tipo de argumento de forma bas- Pentimento
tante cartesiana: os profissionais envolvidos De fato, Luini não é Da Vinci. Com Boltraffio,
no propósito de fazer Salvator voltar à vida são a situação não é diferente: suas personagens
um time de especialistas de extenso conheci- costumam se definir em rostos mais arredon-
mento, experiência e altíssimo gabarito no que dados e formas roliças. O uso da cor é mais “lí-
se propuseram a fazer. quido”; os elementos, mais gráficos, e seu traço
Dianne Modestini, do departamento de con- não chega a trinta por cento da maturidade e da
servação da Kress Foundation e ex-conser- firmeza no linear etéreo do gênio. Ademais, pela
vadora plena do Metropolitan de Nova York, época em que Salvator foi executado, Giovanni
é uma das maiores autoridades mundiais na estava impregnado da visceralidade cromática
área, tendo já trabalhado para o Vaticano, na de Perugino e Francia – o que distancia severa-
38 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 39
servada para o pequeno elemento que também dá ciocínio lógico”. Só que, assim, acaba-se por criar
nome ao quadro: a esfera de cristal que não produz um impasse: uma ideia cíclica que não desenvolve
refração da luz, um fenômeno ótico natural que di- e com a qual não se chega a lugar algum.
ficilmente teria escapado à percepção aguda de Da A declaração de Martin Kemp, ao justificar a
Vinci e sua obcecada minúcia. O biógrafo Walter não refração que se esperaria, vem, finalmente,
Isaacson, por exemplo, defende que a não distor- trazer alguma fundamentação à discussão. Ele
ção tenha sido “uma decisão consciente da parte chega a identificar de que tipo de mineral nosso
de Leonardo”. globo é feito: a calcita, ou cristal de rocha, ao que
Segundo ele, o artista deve ter achado que uma esclarece o comportamento ótico do que ali se vê
representação mais precisa poderia roubar a cena ser completamente coerente com o que ocorreria
e distrair o espectador do interesse real da pintura na prática – incluindo a presença do que chamou
(o Messias) ou estivesse “sutilmente tentando trans- de “bolsões de ar”.
mitir um ato milagroso a Cristo e sua órbita”. A meu Em seu estudo Die Entdeckung der Jupitermon-
ver, nem uma coisa nem outra… Para um melhor de 105 Jahre vor Galileo Galilei, o professor Frank
entendimento das próximas considerações, recordo Keim (um pesquisador acostumado a aproximar a
agora um trecho do meu estudo sobre a Mona Lisa Astronomia da História da Arte) oferece uma teo-
de Isleworth publicado em 2013. Penso ria, no mínimo, curiosa a esclarecer uma das mais
ser importante para trazer ao leitor chamativas peculiaridades do globo. Para ele,
uma ideia da revolução que foi a esfera, na verdade, é um mapa a nos mos-
o uso da técnica do sfumato trar as duas luas de Júpiter, Ganimedes
no final do século XV e (representada duas vezes) e Calisto
como isso foi decisivo na nos três pontos brancos em maior
constituição de Salvator destaque (O “Cinturão de Órion”
Mundi (ver capítulo “A para Kemp). A posição de Júpiter
Nova Mona Lisa”). se acha exatamente no cruzamento
das estolas de couro em “X” sobre o
A órbita e peito do Messias: a pérola.
a mão esquerda
Ainda respondendo a Casamento harmonioso
Isaacson, para qualquer O interesse de Da Vinci por astrono-
um naqueles dias em que o mia era especialmente intenso por volta
novo uso dessas técnicas leo- da preparação do quadro em 1501, e seu pro-
nardescas começava a dar as caras, jeto sobre a composição contemplaria algumas
um efeito ilusório de refração da luz em uma preocupações didáticas diante das novas desco-
pintura – ainda que muito interessante – perderia bertas científicas (algumas de suas anotações so-
feio em termos de apelo visual. Afinal, a Mona Lisa bre a construção de um telescópio chegaram até
é o que é sem a necessidade de nenhuma órbita nós). Logo, a intenção em deixar a órbita “limpa”
nas mãos, certo? Sobre sua segunda especulação na pintura deve ter sido para que apenas servisse
(Jesus e o prodígio da não refração), afinal, qual de fundo à representação pictórica e esquemática
seria a graça de um milagre “às avessas”? Esperar desta verdade adquirida das tantas observações
que a surpresa em ver Cristo segurando um glo- que ele praticara em Florença. Salvator Mundi, en-
bo de cristal seja, justamente, apagar o que seria tão, também não deixa de ser um casamento har-
seu maior fascínio (o efeito de distorção), ainda que monioso entre Religião e Ciência: o saber ideal, tal
faça algum sentido, seria tão estranho quanto acei- qual Da Vinci defendia.
tar que a “falta de provas constitui-se, por si só, Imagino se um motivo para que Leonardo não
numa prova”… E isso também não deixa de ser “ra- se preocupasse tanto com distorções óticas não
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FILOSOFIA Ciência&Vida • 41
MORALISMO,
TENTAÇÃO ETERNA
A manifestação do cristianismo no Brasil se dá, sobretudo, de forma
moralista, especialmente quanto às questões sexuais. Valores como
a misericórdia e a caridade, contidos nos fundamentos cristãos,
perdem espaço para dar lugar à intolerância
POR RODRIGO DOS SANTOS MANZANO
R
ecentemente, o serviço de streaming ma para justificativas e punições
Netflix lançou o especial de Natal do pela afronta à fé cristã, tentativas
grupo de humor Porta dos Fundos de censura do programa por par-
intitulado A Primeira tentação de Cristo. Como te de magistrados e, mais radical-
de praxe, o grupo lança todo fim de ano, por mente, um ataque com coquetel
ocasião dos festejos voltados ao nascimento molotov à sede do grupo. A princi-
de Jesus Cristo no Ocidente, vídeos que pal razão para isso foi o escândalo
reproduzem versões nada ortodoxas das gerado pelo retrato de um Jesus ho-
histórias bíblicas, buscando obviamente criar mossexual, descobrindo-se em sua
polêmica com a situação e com isso repercutir sexualidade.
seu humor. Desde o primeiro especial de Natal A polêmica envolvendo o especial
lançado pelo canal, no ano de 2013, ainda na do Porta dos Fundos nos revela muito do
plataforma YouTube, as versões produzidas que é o cristianismo brasileiro, reforçado
pelo grupo atraem a atenção de religiosos das pelo conservadorismo vigente. Porém, é ilusório
diversas denominações cristãs, sempre prontos achar que o cristianismo no Brasil foi majorita-
para tecer as mais ferrenhas críticas e, assim, riamente progressista algum dia. Pelo contrário,
defender a fé cristã das “heresias” cometidas o cristianismo que vigora no Brasil ao mesmo
pelos comediantes. tempo alimenta e se alimenta do conservadoris-
Porém, no final de 2019, o programa teria ul- mo, sendo apenas e tão somente um elemento
trapassado todos os limites. As manifestações moralizante da sociedade brasileira. O cristia-
contrárias ao especial tornaram-se intensas, nismo brasileiro, em grande parte, no senso co-
com diversas discussões nas casas legislati- mum, é uma doutrina moral, nada mais do que
vas do País sobre a necessidade de notas de isso, e obviamente a mais forte corrente mora-
repúdio e da chamada dos autores do progra- lista existente no País, que se entranhou de tal
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FILOSOFIA Ciência&Vida • 43
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FILOSOFIA Ciência&Vida • 45
como “Deus fez Adão e Eva, e não Adão e Ivo” até uma religião de costumes, de práticas e observa-
aqueles que alegam um tom científico, biológico, ções legais, na qual a empatia, a solidariedade, o
“dois iguais não reproduzem”. Ao mesmo tempo, splagchnizomai não só é jogado a segundo plano,
não é incomum os mesmos que abominam a ho- mas é literalmente descartado. Até se tem um apelo
mossexualidade apreciarem filmes pornográficos à caridade, mas além de não ser o essencial, pois
com duas mulheres tendo relação sexual, pois as- a questão das práticas sexuais é mais forte e mais
sim se dá vazão a desejos obscuros. urgente, faz-se caridade muito mais por desencar-
go de consciência do que por um reconhecimento
Nada de ética do outro como alguém digno de vida plena ou, em
Da mesma forma, é comum entre homens, e linguagem mais civil, digno de direitos.
por extensão numa sociedade machista mulheres
também, se impingir a pecha a mulheres de vida Essência da pregação
sexual ativa com diversos parceiros de “vadia”, Assim, o cristão brasileiro, ao mesmo tempo
“vagabunda”, “piranha”, entre tantos outros xin- que se indigna com a ridicularização da sua reli-
gamentos que as diminuem. Porém, para o “ma- gião, não teme criticar o Papa Francisco quando
cho alfa”, é extremamente importante a existência este se coloca sobre questões polêmicas adotando
dessas mulheres, para que possam assim não só um discurso mais progressista. Fica claro que o
obter prazer, mas contabilizar suas diversas con- grande repúdio por parte da comunidade cristã ao
quistas, mostrar sua masculinidade. Assim, ao especial de Natal do Porta dos Fundos se dá por
mesmo tempo que critica e achincalha a “vadia”, uma via moralista, porque tocou-se na questão se-
aproveita-se dela quando se interessa. xual. Jesus retratado como alguém que tem inte-
Na essência, o País tropical, do eterno carnaval, resse homossexual causa um verdadeiro repúdio,
que se orgulha de ser uma terra livre e cheia de pra- mas, ao mesmo tempo, os seus críticos soltam um
zeres, também impõe uma moralidade de cunho batido bordão “por que não fazem piadas com os
cristão extremamente castradora, porém às mulhe- muçulmanos?”, demonstrando total falta de empa-
res e aos homossexuais, mas não ao homem hétero. tia e de respeito com a religião alheia, xenofobia,
Aqui se percebe a herança da escravidão e da for- associando imediatamente a religião muçulmana
mação colonial do País. O senhor de engenho era o ao terrorismo e obviamente ao desejo de aniquila-
patriarca da família e dono das escravas, às quais ção dos detratores do cristianismo, tal qual os reli-
impunha suas vontades sexuais, mesmo sendo ca- giosos da época de Jesus ao se sentirem ofendidos
tólico e extremo defensor da família e dos valores com práticas de Jesus o quiseram morto.
cristãos, inclusive sendo valor cristão no período A aparência não só precede a essência da reli-
da escravidão que os negros eram muito mais pró- gião, mas se impõe a ela e toma seu lugar. A re-
ximos a animais do que a seres humanos, mas tal ligião que deveria ser um caminho a Deus, e na
visão sobre os negros africanos não impedia de ver religião cristã só se chega a Deus através do outro,
as mulheres negras como objeto de desejo sexual e passa a ser um fim em si mesmo, que na essência
de satisfação de prazeres. não se leva a lugar algum. Tudo se torna um fim em
O moralismo cristão, principalmente nessa si, vazio, sem sentimento, sem vida. Ironicamente,
manifestação de cristianismo que ganha força no Jesus, que dizia que veio para trazer vida, e vida
Brasil, é hipócrita porque não tem nada de ético. plena, acabou sendo o artífice de uma religião cas-
Se o cristianismo, enquanto religião que prega o tradora, amortizadora, anestésica e, principalmen-
amor, a justiça e a paz, tem um forte apelo ético, te, não transformadora. A caridade não está nem
pois busca deixar claro o que é o bem e o mal, e de longe na essência do cristianismo brasileiro
assim se apela ao cristão que evite o mal e pratique contemporâneo.
o bem, a manifestação cristã, que não está isolada Embora a religião seja fator humano, presente
na história da religião, do Brasil atual, é apenas na maioria das culturas no decorrer da história da
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civilização ocidental, e aparentemente a abertura vezes tem medo e ódio da crítica social, pois esta
ao sobrenatural algo próprio do ser humano, sem facilmente se volta contra a própria religião. Marx já
entrar aqui em qual seria a origem disso, não dei- dizia que a “religião é o ópio do povo” devido ao seu
xa de ser frustrante saber que na sociedade bra- poder de alienação, e a condenação da teologia da li-
sileira a religião cristã tem um poder tão grande bertação por parte da Igreja Católica nos anos 1980
na definição dos seus rumos. Ainda mais esse tipo mostra o quanto o próprio cristianismo tem medo de
de cristianismo que de certo modo sempre esteve uma crítica mais contundente. O cristianismo per-
presente no Brasil e que ganhou força nos últimos de o poder de libertação, libertação esta sustentada
anos, de forma especial com o fortalecimento das pela solidariedade extrema do splagchnizomai, pois
igrejas evangélicas, embora não esteja restrito a abandona-se a terra e busca-se o céu, ignora-se o
elas. Teríamos um grande ganho para um país natural e corre-se atrás do sobrenatural, exclui-se o
notadamente desigual se o cristianismo que aqui físico para alcançar o metafísico.
se impusesse fosse aquele que prega a caridade, E, assim, se Jesus disse que veio dar pleno cum-
que abomina a pobreza e que coloca a preocupação primento à lei, a partir do amor, o ágape, o amor-
com o outro na essência da pregação. -entrega, que se sustenta no splagchnizomai, o
cristianismo atual continua preso em leis. O cristão
Compromisso visceral se distancia do próximo em seu moralismo estéril
Voltamos aqui ao termo splagchnizomai, à cari- e assim rejeita tudo o que pode ser diferente. Na
dade e compromisso visceral com o próximo. Nem essência é um cristianismo alimentador do indivi-
de longe é esse cristianismo que é apregoado, seja dualismo, por isso tão interessante à lógica capita-
nas igrejas, seja por aqueles que se elegem a cargos lista, ao neoliberalismo, bem como à desarticulação
públicos se dizendo defensores dos valores cris- do povo nas suas lutas por dignidade, por direitos.
tãos. Uma religiosidade que exclui, que condena, Torna-se um cristianismo que, ao invés de trazer
mas nem de longe uma religião que liberta. O le- a vida plena, pelo contrário, a distancia cada vez
gado cristão no Brasil tornou-se o legado do reacio- mais dos diversos seres humanos, mostrando que
narismo, do conservadorismo e, mais do que isso, o Reino de Deus pregado por Cristo não passa de
da manutenção de um status quo. Uma religião que um amontoado de regras, mas que pouco ou nada
teria, sim, um potencial de transformação na vida tem de realmente encarnado e transformador, que
das pessoas, de uma sociedade que se fizesse mais poderia ter uma palavra muito mais contundente
solidária, na prática torna-se elemento de condena- na denúncia das injustiças que dominam não só o
ção, de exclusão e muitas vezes até de mortes. Brasil, mas um mundo em que cada vez menos vida
Um país com altos índices de feminicídio, com o digna é oferecida para todos.
maior índice de assassinatos de homossexuais, com
altos índices de estupros, tem tais situações como
Rodrigo dos Santos Manzano é graduado
decorrência desse moralismo machista, patriarca- em Filosofia pela UNIFAI, especialista em
lista, que não deixa de ser alicerçado nessa visão de Filosofia Contemporânea e História pela
Universidade Metodista. Atua na Rede
cristianismo. Um cristianismo inclusive que muitas Pública do Estado de São Paulo.
FILOSOFIA Ciência&Vida • 47
Soasig
Chamaillard,
Notre Dame
du Poulpe ou
Lady Octopus
(Maria com
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Tentáculos),
2015.
48 • FILOSOFIA Ciência&Vida
O
POR ISABELLE ANCHIETA que as imagens das Marias e Marias
Madalenas nos dizem sobre o pre-
sente e o futuro? Muito. Falam-nos,
sobretudo, da capacidade das representações
visuais de responder (ou não) às nossas an-
gústias sociais. A imagem de Maria foi, si-
multaneamente, geradora de muitos dilemas
e a fonte a que todos recorriam para apaziguá-
-los, para os homens e, especialmente, para as
mulheres, mesmo as casadas. Pois não havia
salvação “senão pela porta pequena”, alerta-
va o bispo francês Hildeberto. O selo virginal
será elemento constituidor da imagem de Ma-
ria e prova do poder ilimitado de uma religião
que se afirmava. Maria imperou e, de seu tro-
no, orquestrou simbolicamente quase todas
as relações sociais por vários séculos.
FILOSOFIA Ciência&Vida • 49
50 • FILOSOFIA Ciência&Vida
Imagem multifacetada
Salvacionista, a imagem de Maria cumpriu
muitas funções sociais, e adaptou-se visualmen-
te a cada uma delas. Ela passa de imperial, na
fase de legitimação da nova religião católica, a
maternal, durante a apropriação e patrocínio da
burguesia nascente; é símbolo da Contrarrefor-
ma, descendo do trono, para compor uma nativi-
dade idealizada por São Francisco de Assis. No
século XVII, torna-se negra e mestiça durante o
processo de colonização das Américas, uma de
suas mudanças mais sentidas e, curiosamente,
uma das mais silenciadas. Imagem que funcio-
nou como ponte afetiva entre o Novo e o Velho
Mundo, estabelecendo um laço comum entre
nacionalidades que se consideravam hierarqui-
camente distintas, ainda que essa ligação te-
nha sido usada como forma de dulcificação dos
ânimos em prol da submissão das populações
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FILOSOFIA Ciência&Vida • 51
© REPRODUÇÃO
trita aos nobres, papas e reis.
Mulheres que adquirem, a meu ver, um con-
traditório status social, no que poderíamos
chamar de “desprivilegiadas em alta conta”.
Eis uma das [minhas] conclusões: como as
mulheres e suas imagens podem adquirir po-
deres imprevistos. Tanto é que as prostitutas
se tornam as primeiras mulheres a conseguir
mobilidade social por meio do uso de artifícios,
visualidades e dissimulações dos maneirismos
dos estratos sociais elevados.
Maria Madalena
Não sem razão, vimos emergir durante o
século XVII outra imagem mediadora: Maria
Madalena. Sua imagem respondia não só ao Édouard Manet, Olympia, 1863.
impasse das mulheres mas da própria Igreja
maculada por seus escândalos. Madalena fará
um caminho inverso ao de Maria: do pecado
à salvação. Sob o signo do arrependimento e delações públicas espetaculares. No decorrer
da eterna penitência, vemos agora surgir uma da pesquisa, percebi como essas mulheres imi-
imagem improvável, no seio mesmo da Igreja. tam estrategicamente a imagem de Madalena:
A mulher de longos cabelos loiros, com os seios a mulher que tinha sete demônios no corpo e,
à mostra, aos pés da cruz, inventada pelo papa após exorcizada, se santifica, tornando-se cele-
Gregório Magno (em 599) e fixada por meio da bridade local.
repetição visual. Ao longo do século XVII, pude identificar
Madalena será a padroeira de muitos con- também indícios de sentimentos tidos como
ventos, convocando o encobrimento das pros- modernos nas séries das imagens de Mada-
titutas que se tornavam um problema social, lena seminua no deserto, junto à caveira e ao
tanto numérico como pelo poder imprevisível Evangelho, conhecidas como uma modalidade
que algumas adquiriram. Mas o que parecia das Vanitas (Vaidades). Entre esses sentimen-
ser um confinamento revelou também resul- tos, a necessidade de isolamento, a autonomia
tados imprevistos. Simulando possessões dia- em relação à família, a intelectualização das
bólicas, muitas freiras conseguiram mandar escolhas e o sensualismo sonoro e corporal,
para a fogueira padres e desafetos por meio de ainda que delimitado por uma moralidade cris-
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FILOSOFIA Ciência&Vida • 53
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Descontínuas, as imagens perdem a força de
estar “no lugar de”. O laço que une o real e o
Jeff Koons, simbólico afrouxa-se, quase se rompe. Os pró-
Ilona on prios artistas, em busca de uma forma autoral,
Top (Rosa
Background), retomam tradições pouco conhecidas5 e tentam
Ilona no Topo não citar diretamente uma imagem familiar,
(Fundo Rosa)
1990. inviabilizando, assim, a repetição e a confor-
mação do estereótipo. A mulher é agora plu-
ral: mulheres. Ela só pode, desde então, existir
na forma particular que a encerra. Pintam-se,
dessa forma, (muitas) modernidades dentro da
modernidade, encontrando, novamente, uma
expressão exata para as ambiguidades do tem-
po que se anuncia.
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DO AMOR E DO CIÚME
POR ANA MARIA HADDAD BAPTISTA
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56 • FILOSOFIA Ciência&Vida
U
ma das obras mais belas a respeito do sua aparição se deve a um enfraquecimento
amor e do ciúme é, reconhecidamen- do amor (…) O amor é uma fuga para longe da
te, Em Busca do Tempo Perdido, es- verdade. E amamos verdadeiramente só quan-
crita por Proust. Provoca-nos uma atmosfera do não queremos a verdade. O amor contra a
exigente de despojamento, coragem e, acima verdade, eis uma luta pela vida, por nossos
de tudo, a apreensão de signos do tempo e da próprios êxtases e por nossos próprios erros.
memória no que ela tem de mais essencial. O O ser que amamos só o conhecemos verdadei-
escritor francês mergulha fundo nas paixões ramente quando deixamos de amá-lo, quando
humanas. Verdadeiro tratado ao qual sempre nos tornamos lúcidos, claros, secos e vazios. E
retornamos. E é isso que mais caracteriza um no amor não podemos conhecer, porque a pes-
clássico. Quanto mais relemos a obra, mais soa amada atualiza só um potencial interior de
nos espantamos com a incrível capacidade de amor (…) o amor é tanto mais intenso e pro-
Proust de nos atravessar com seus desloca- fundo quanto mais longe estamos da pessoa
mentos ao se referir, em especial, a questões de amada”2.
intersubjetividade. Há leis universais que regem a condição
Amor, ciúme, orgulho, inveja, tédio e ou- humana: somente podemos desejar aquilo que
tras paixões são, de forma desordenada, co- não temos. A ausência do ser amado, em par-
locadas com uma lucidez que não deixou de te, faz parte de tais leis. Amamos muito mais
afetar Deleuze, Benjamin, Beckett e tantos quando estamos longe. Mas ouçamos o poeta
outros. Nas palavras de Deleuze: “Na realida- Marco Lucchesi: “Caro amigo: gosto de lem-
de, a Recherche du temps perdu é uma busca brar o filósofo Marsilio Ficino, quando indaga
da verdade. Se ela se chama busca do tempo o que buscam os amantes. Ele responde que os
perdido é apenas porque a verdade tem uma que amam não sabem ao certo o que procuram.
relação essencial com o tempo. Tanto no amor Sentem saudades um do outro, quando sepa-
como na natureza ou na arte, não se trata de rados. E, mesmo juntos, não cessa uma falta
prazer, mas de verdade”1. O que não poderia indefinida, que os aproxima quando distantes
passar despercebido por Cioran: e os afasta quando próximos. O mistério da be-
“Quando se ama alguém, os momentos de leza convoca os amantes a uma dimensão que
conhecimento real são extremamente raros; os ultrapassa”3.
FILOSOFIA Ciência&Vida • 57
Busca de um todo
Na realidade não pode existir amor subtra-
ído de um sentimento perigoso, devastador,
uma tortura que nos esmaga quando amamos: N O TA S
58 • FILOSOFIA Ciência&Vida
Jogos de guerra
na era dos drones
que ocorre hoje no mundo com o coronavírus. Mas nenhum
POR JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA desses usos se compara a seu uso bélico. Eles são uma
arma com potencial para tornar obsoletas todas as formas
M
al o ano de 2020 tinha começado e no dia 3 de ja- de guerra tradicional.
neiro os Estados Unidos surpreenderam o mundo Os drones são o prenúncio das guerras sem heróis, sem
com o envio de um drone que matou o general líderes e sem coragem. As virtudes tradicionais exaltadas
iraniano Qassim Suleimani. Como disse em seguida o porta- pelos exércitos estão desaparecendo. Não há mais campo
-voz americano, foi um ataque cirúrgico, dirigido a uma pes- de batalha, um lugar para o confronto. O mundo inteiro
soa específica e sem efeitos colaterais. Suleimani estava de tornou-se zona de guerra, pois qualquer lugar pode ser so-
passagem pelo Iraque. brevoado por um drone.
Por que um evento desses nos causa tanta perplexidade? Um ataque como o de Suleimani mostra uma distribuição
O que há de tão sinistro com os drones? Eles nos lembram de poder assimétrica. Penso que este é um dos problemas
que nossa segurança nunca esteve tão frágil. A qualquer éticos mais sérios da utilização bélica dos drones. Para
momento, um drone, viajando a uma altura que não permite quem ataca não há riscos, que pendem todos para o lado
que ele seja detectado por nenhum radar, pode surgir so- da vítima. Quem ataca está numa sala, diante de uma tela, a
bre nossa cabeça e nos aniquilar em segundos. milhares de quilômetros de distância, cercado de todos os
O uso irrestrito de drones para atingir alvos no Oriente confortos. O esforço físico é mínimo, se comparado a uma
Médio, na África e no Afeganistão começou durante os batalha tradicional. É a guerra por meio de uma Playstation,
mandatos do presidente populista Barack Obama e se in- na qual a coragem é substituída pela precisão.
tensificou nos últimos anos. Até agora foram, oficialmente, Vencer uma batalha era mérito de um líder e de seus
quase 10 mil ataques, muitos acompanhados de efeitos soldados. Um ataque com drone parece sempre algo à so-
colaterais causados por erros de pontaria ou identificação capa, algo ilegítimo. Não há sequer o risco de um voo tripu-
equivocada do alvo. lado até os alvos, como ocorreu com as bombas atômicas.
Não sabemos sequer quem inventou essa tecnologia. O que Essa é a razão de nossa surpresa e de nosso desconforto
sabemos é que ela foi desenvolvida por equipes de enge- moral. Tudo se passa como se, numa competição atlética,
nheiros do exército americano. Os nomes dos integrantes houvesse participantes com melhoramentos genéticos e
dessas equipes e o local de suas bases são mantidos em próteses implantadas no corpo e que, por isso, eles não
sigilo e, provavelmente, nunca serão conhecidos. O méri- precisassem fazer esforço algum para vencê-la.
to das invenções e aperfeiçoamentos é dissolvido. Não há A mesma situação ocorrerá, em breve, com os soldados ro-
grandes inventores como Turing, Einstein ou Oppenheimer, bóticos. Quem os utilizar não fará esforços e não porá sua
cujas descobertas levaram à derrota do nazismo. vida em risco. Eles também solaparão as virtudes tradicio-
Os drones nos causam um misto de surpresa e de mal- nais exigidas dos guerreiros: a coragem, a ousadia e a resi-
-estar. Eles escancaram que o uso bélico da tecnologia não liência. Não haverá mais mortes, a não ser as dos inimigos.
é apenas secundário. No caso dos drones, sua utilização Haverá apenas eventuais perdas de equipamento.
para fins pacíficos ainda é pequena. Eles são utilizados na
agricultura, para fazer inspeções, ou para prestar socorro a JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA
é formado em Filosofia pela USP.
vítimas de problemas de saúde ou de acidentes cujo acesso Viveu e estudou na França, na
por terra pode ser complicado e lento. Drones estão sen- Inglaterra e nos Estados Unidos.
Lecionou na UNESP, na UFSCar
do usados para orientar as pessoas em epidemias como a e na PUC-SP. Estuda filosofia da
mente e da tecnologia.
FILOSOFIA Ciência&Vida • 59
INQUISIÇÃO
DA WEB
60 • FILOSOFIA Ciência&Vida
veriam ser de responsabilidade dos poderes Execu- Entre os “tribunais informais” criados nos úl-
tivo ou Legislativo, traz juízes como protagonistas timos anos, o tribunal da web tem apresentado
de decisões políticas – o chamado ativismo judicial, implicações diretas nas formas de manifestação,
e judicializa as relações sociais. Essa forma jurídica posicionamento e ação de muitas pessoas. Nes-
incide sobre a constituição de novas subjetividades, te “tribunal”, uma pessoa pode ser legitimada,
saberes e relações de arbitragem.
A judicialização da política e o ativismo judici-
ário são questões importantíssimas para pensar-
mos os rumos da democracia. Se, por um lado, um “A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E O
Judiciário forte é importante para a manutenção da
democracia, por outro, o desequilíbrio entre os po-
ATIVISMO JUDICIÁRIO SÃO QUESTÕES
deres Executivo, Legislativo e Judiciário pode colo- IMPORTANTÍSSIMAS PARA PENSARMOS
cá-la em risco. Assim, a questão sobre o processo
OS RUMOS DA DEMOCRACIA. SE, POR
de judicialização contribuir para a fortificação ou
para o enfraquecimento das democracias é signifi- UM LADO, UM JUDICIÁRIO FORTE É
cativa e com implicações muito sérias. IMPORTANTE PARA A MANUTENÇÃO
Contudo, a abordagem que pretendo aqui é ape-
nas a derivação de um aspecto específico do fenô- DA DEMOCRACIA, POR OUTRO, O
meno da judicialização: as formas de arbitragem das DESEQUILÍBRIO ENTRE OS PODERES
relações sociais. As relações sociais são judicializa-
das quando levadas a julgamento em tribunais de
EXECUTIVO, LEGISLATIVO E JUDICIÁRIO
justiça, quando o cumprimento de direitos e deveres PODE COLOCÁ-LA EM RISCO”
FILOSOFIA Ciência&Vida • 61
Tribunal paralelo
A ideia de cancelamento é inicialmente rela- como nulo, ou sem efeito; 3. Não levar a efeito o
cionada ao movimento Me too, que espalhou pelo que havia pensado ou planejado, desistir de; 4.
mundo uma série de denúncias de assédio sexual Concluir, fechar um processo; 5. Excluir, suprimir,
feitas contra homens “poderosos”, homens que fo- eliminar”. Segundo o Dicionário Merriam-Webster,
ram boicotados ou tiveram seu “poder” diminuído cancelar é “destruir a força, efetividade ou valida-
pelas denúncias. A matéria de Bromwich, no New de”. Assim, o cancelamento risca, elimina, supri-
York Times sobre o assunto, em junho de 2018, afir- me, destrói a força, declara a não validade… Mas
mava: “Estão todos cancelados”2. é interessante observar que o que é cancelado não
Ao observarmos o movimento Me too como a ori- é a fala ou ação da pessoa, mas a própria pessoa,
gem do processo, a cultura do cancelamento pode que passa a ser boicotada, considerada ilegítima.
ser considerada um instrumento interessante, uma
vez que o cancelamento acontece quando a justiça Morte fática ou simbólica
não é capaz de dar uma resposta adequada a deter- Claude Levi-Strauss, no livro Antropologia Es-
minadas questões3, como a do assédio sexual, por trutural, no capítulo “O feiticeiro e sua magia”, des-
exemplo. Teríamos, então, um “tribunal paralelo”, creve o fenômeno da morte simbólica, ou melhor,
popular, atribuindo-se a tarefa de “fazer justiça”. “os mecanismos psicossociológicos subjacentes
O cancelamento também poderia ser considera- aos casos de morte por conjuração ou feitiço […]
do uma forma de as comunidades marginalizadas a comunidade se retrai, todos se afastam do mal-
afirmarem publicamente seus sistemas de valores, dito e se comportam para com ele como se, além
exigindo desculpas daqueles que lhes ferem4. de já estar morto, representasse uma fonte de peri-
O que significa cancelar? No Dicionário Aurélio, go para todos os que o cercam. Em toda ocasião e
o verbete cancelar recebe as seguintes definições: em cada um de seus gestos, o corpo social sugere
“Riscar, inutilizar (o que está escrito) com traços a morte à pobre vítima, que não tenta escapar do
em cruz ou de outra maneira; 2. Declarar ou dar que considera ser seu inelutável destino” (2008, p.
62 • FILOSOFIA Ciência&Vida
FILOSOFIA Ciência&Vida • 63
ESCRITOS CORSÁRIOS
Último livro organizado pelo autor em vida, Escritos corsários é uma das principais
obras de Pier Paolo Pasolini (1922-1975), poeta, cineasta, romancista, ensaísta e dra-
maturgo italiano que encarnou como poucos o papel do intelectual engajado, capaz de
pensar a esfera da arte e da cultura, mas também da economia, da política, do com-
portamento. Polemista, nesses artigos publicados na imprensa italiana entre 1973 e
1975, Pasolini aborda as rebeliões da juventude que se seguiram aos movimentos
estudantis de 1968, a decadência da Igreja, a ascensão das multinacionais, as relações
entre governo e máfia na Itália e, especialmente, aquilo que ele chama de Novo Po-
der – ou novo fascismo –, isto é: o advento de uma sociedade de consumo global, que
promove um verdadeiro extermínio das formas de vida tradicionais. Considerado em
retrospecto, fica claro que Pasolini anteviu o movimento de aceleração do capitalismo
que viria a ocorrer nas décadas seguintes, resultando nas graves crises do século XXI.
Autor: Pier Paolo Pasolini Tradutora: Maria Betânia Amoroso Páginas 296 Editora 34
64 • FILOSOFIA Ciência&Vida
ENTRADA
se responsabiliza por conceitos emitidos em artigos assinados ou
por qualquer conteúdo publicitário e comercial, sendo esse último
de inteira responsabilidade dos anunciantes.
sobre a felicidade, baseado nos ensinamentos de REPRESENTANTES Interior de São Paulo: L&M Editoração,
Luciene Dias – Rio de Janeiro: Marca XXI, Carla Torres, Marta
Epicuro. Um dos episódios mais interessantes que Pimentel – Santa Catarina: Artur Tavares – Regional Brasília:
Solução Publicidade, Beth Araújo.
ele já postou por lá.
Cláudio Souza, por e-mail COMUNICAÇÃO, MARKETING E CIRCULAÇÃO
GERENTE Paulo Sapata
IMPRENSA comunicacao@escala.com.br
Resposta: Cláudio, obrigada por sua sugestão e interesse Av. Profª Ida Kolb, 551, Casa Verde, CEP 02518-000, São Paulo, SP
Caixa Postal 16.381, CEP 02515-970, São Paulo, SP
em nossa revista. Já compartilhamos sua mensagem com o Telefone: (+55) 11 3855-2100
Filósofos, e loucos por cinema RESPONSABILIDADE AMBIENTAL Esta revista foi impressa na Grá-
fica Oceano, com emissão zero de fumaça, tratamento de todos os
Ao ler a coluna de Érico Andrade sobre o resíduos químicos e reciclagem de todos os materiais não químicos.
filme ganhador do Oscar, Parasita (Ed. 158), Distribuída pela Dinap S/A – Distribuidora Nacional de Publicações,
Rua Dr. Kenkiti Shimomoto, nº 1678, CEP 06045-390 – São Paulo – SP
já fiquei interessada em assistir ao filme. Isso MAIO 2020
antes da festa do cinema internacional. Ele me REALIZAÇÃO DIRETOR-GERAL: Angel Fragallo • DIRETORA
fez ter um novo olhar para cada personagem do EDITORIAL: Juliana Klein – Mtb. 48.542 •
EDITORA: Cristina Almeida – Mtb. 61.241 –
filme que, aliás, pode ser um ótimo tópico para falar cristina@fullcase.com.br • DIAGRAMAÇÃO:
Wellington Zanini • REVISÃO: Adriana Giusti
sobre luta de classes em uma sala de aula. Já estou • REDAÇÃO: Adriano Correia, Ana Maria
Haddad Baptista, André Bueno, Átila Soares
na expectativa da próxima coluna. (11) 2809-5910
fullcase.com.br da Costa Filho, Ciprian Vălcan, Danilo Saretta
Veríssimo, Érico Andrade, Homero Santiago,
Mariana Cardoso, estudante de Filosofia, por e-mail Isabelle Anchieta, João de Fernandes
Teixeira, José Eustáquio Diniz Alves, Marco
Lucchesi, Monica Aiub, Rodrigo Inácio R.
Sá Menezes, Rodrigo dos Santos Manzano,
Resposta: Mariana, obrigada por sua mensagem. Continue Rosângela Chaves e Sidnei de Oliveira.
Águas de março
POR HOMERO SANTIAGO “‘Quando acontece enchente a culpa
é do governo. A culpa é da população
V
erão, temporais, enchentes, transtornos. A cada ano que joga lixo no bueiro’. Quer dizer,
a história se repete em cidades brasileiras, e às ve-
o pessoal que ‘não tem consciência’
zes culmina em tragédias. Depois, quando passada
a tempestade, apuramos responsáveis, repete-se também
está na raiz do problema”
um mantra explicativo: as enchentes são causadas pela
“falta de consciência” das pessoas que, descuidadas com o
lixo, provocam o entupimento dos bueiros que dariam esco- reles petulância. Comecemos por este último ponto, o que
amento à água. Há pouco tempo ainda encontrei num portal mais chama a atenção assim que refletimos sobre o sentido
noticioso da internet o incisivo veredito: “Quando aconte- do termo consciência nesse contexto.
ce enchente a culpa é do governo. A culpa é da população Emprestando um raciocínio do filósofo René Descartes, di-
que joga lixo no bueiro”. Quer dizer, o pessoal que “não tem remos que a consciência deve ser a coisa mais bem distri-
consciência” está na raiz do problema. buída do mundo, pois cada um acredita já possuir o sufi-
Se na célebre canção de Tom Jobim as águas de março ciente e ela só falta aos outros. Nunca sou eu, é sempre o
fecham o verão, em nosso mundo o batido argumento da outro que carece de consciência; toda vez que falo em des-
“falta de consciência” encerra a possibilidade de discussão pertar a consciência de outra pessoa ou em conscientizar
séria acerca da infraestrutura de nossas cidades, resumin- alguém, sempre está pressuposto que eu mesmo já a tenha
do as providências a campanhas de “conscientização” so- (não fosse assim, como reconheceria a sua ausência?).
bre a importância de dar boa destinação ao lixo e coisas do Conclusão: sempre sou consciente, o outro nunca o é, ou
gênero. A mídia angaria verba publicitária, os governantes só é se age conforme creio que se deva agir. Quando isso
se alijam das responsabilidades, a gente que se julga “cons- não descamba para a pura ofensa, serve apenas para me
ciente” (e em geral mora em áreas que não sofrem com vangloriar às custas do rebaixamento alheio. É claro que tal
enchentes) pode dormir em paz com a própria consciência. aspecto não nos apresenta um sentido preciso para o ter-
Nossa intenção não é discutir o regime pluvial nem a ocu- mo consciência. Contudo, deixa uma sugestão valiosa para,
pação urbana (tema importante que trataremos noutra em nossa próxima conversa, aprofundar a interrogação:
oportunidade), e sim o conceito de consciência como surge seja qual for o seu significado nesses usos, a noção parece
nesse argumento, especialmente o detalhe curioso de re- situar-se num horizonte moral. De fato, permite ajuizar a
meter tanto à causa quanto ao remédio do problema: sua boa e a má ação (a atitude consciente e a sem consciência),
ausência o determina, sua presença o resolveria. Ora, o pressupõe a liberdade de escolha de nossos atos, inclusive
termo consciência aí e em formulações semelhantes – “ter para lá das determinações em contrário, e por fim remete
consciência de”, “despertar a consciência para”, “formar ci- a um espaço próprio onde, com a nossa consciência, deli-
dadãos conscientes” etc. – possui um sentido preciso e de- beramos como agir. Não é pouca coisa o que uma simples
terminável? Como conceber que algo que só existe em nos- palavra pode esconder.
sa mente (ninguém vê ou toca a “consciência” como a uma
HOMERO SANTIAGO é professor
árvore) possa produzir efeitos tão concretos no mundo?
associado do Departamento
São questões que merecem ser problematizadas, pois do de Filosofia da Faculdade de
contrário se corre o risco de, de tanto invocar a consciência, Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de
não ir além do palavrório vazio ou, pior ainda, inclinar-se à São Paulo (FFLCHUSP).
66 • FILOSOFIA Ciência&Vida
scaras,
William Shak
um baile de má
Tudo começa em
e Julieta
ntéquio conhec
onde Romeu Mo
rtencem a
vens que pe
Capu leto, jo
in im ig as.
sa s fa m ílias
duas podero
é o símbolo in sta ntes
do na sce em
O amor proibi
rimôn ia
espeare
sécu lo XV I. e os dois se ca
sa m nu ma ce
de Ju lieta
oibido entr e m, os pa is
se cr eta. Poré
rapa z.
gá-la a outro
s de Verona, decidem entre
a poção
ela toma um
ino la nçado Desesperada,
meu seria
r mor ta. Ro
Romeu
e finge es ta
nato s. Po esia encont rá-
ano e ter ia de
, av isado do pl
s dramát icos o do s Capu let
os, pa ra
la no tú mul
s ete não
uma das mai m. Mas o bi
lh
ju ntos fugi re
or ter m ina
s os tempos. rdadeiro am
e
cheg a e o ve
e a obra,
Ac redita-se qu
Julieta
em tragédia.
ha sido
lta de 1595, ten
escr ita por vo
real.
uma hi stória
in spirada em
Romeuae
Juliet
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