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Ciência&Vida

ANO XIV • www.escala.com.br


SAÍDA DE CENA FILOSÓFICA

120 ANOS SEM


NIETZSCHE
A LOUCURA COMO
ATESTADO DE MAESTRIA INQUISIÇÃO
E ÚNICA VIA PARA NO MUNDO
COMPREENDER TODO DIGITAL
O TEMOR DE SE
O CONHECIMENTO POR EXPRESSAR OU
MEIO DE ZARATUSTRA SE POSICIONAR
POR RECEIO DE
E DIONISO SER JULGADO OU
ATÉ “CANCELADO”

TOCQUEVILLE:
INSTRUIR A
DEMOCRACIA
DEVERES DE
ADAPTAÇÃO E
MUDANÇA DOS
GOVERNOS
PARA PRESERVAR
INTERESSES
DE TODA A
SOCIEDADE

PARA O PROFESSOR PERGUNTAS QUE MERLEAUPONTY QUIS RESPONDER EM SEUS PRIMEIROS TRABALHOS

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Untitled-1 1 1 04/05/2020
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Hamlet
Um dos mais poderosos textos da literatura mundial. Não há importante pensador moderno
que não tenha sido impactado pelos dilemas do jovem príncipe da Dinamarca,
obrigado a vingar a morte do pai. Tragédia, sátira, romance e filosofia se alternam
numa narrativa marcada por mensagens difundidas em todo o
mundo há quatro séculos.

let é a
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N

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EDITORIAL

120 anos
sem Nietzsche
Em agosto de 1900 morria Friedrich Nietzsche, aos 55 anos
de idade. Desde esse evento, a comunidade filosófica e seus
exegetas buscam desvendar seus enigmas. Dotado de uma
inteligência ímpar e reconhecido como o mestre dos dis-
farces e do mascaramento, sua loucura poderia ter sido
apenas mais um sinal de sua genialidade.
A história revela que o filósofo alemão tinha uma saúde
frágil que, entre outras coisas, o fez enfrentar episódios
de depressão que o aproximaram do suicídio. Ele mesmo
descreveu esses dias como “a pior pena que existe para a vida
na Terra”. Apesar desses momentos, Nietzsche viveu dias
de grande exaltação que seus biógrafos dizem beirar à
megalomania.
Ciprian Vălcan, filósofo romeno e professor catedrático
na Faculdade de Direito da Universidade “Tibiscus” de
Timisoara, apresenta-nos alguns autores que envereda-
ram pela pesquisa de uma possível insanidade. No artigo
que lhes apresentamos nesta edição, intitulado Nietzsche

© CLU / ISTOCKPHOTO.COM
e a loucura (pág. 26 ), ele afirma “… todas as estórias conta-
das sobre a loucura de Nietzsche… São tentativas de mergulhar
nas profundezas de sua alma para recuperar os fragmentos de verdade
que possam lançar mais e melhores luzes à sua filosofia”.
Para Valcan, a importância de todos esses trabalhos está nas imagens
que cada um deles nos fornece sobre Nietzsche: é assim que se cons-
trói uma maior intimidade com o considerado precursor da pós-moder-
nidade.

Boa leitura!
Cristina Almeida - Editora

FILOSOFIA Ciência&Vida • 3

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SUMÁRIO
Ciência&Vida
161 161
ANO XIV • www.escala.com.br

26_ CAPA:
NIETZSCHE
SAÍDA DE CENA FILOSÓFICA

E A LOUCURA
Dotado de inteligência
ímpar e hábil no disfarce
120 ANOS SEM e no mascaramento, o 36 _CATEQUESE
NIETZSCHE
A LOUCURA COMO
mistério da insanidade E CIÊNCIA
ATESTADO DE MAESTRIA
E ÚNICA VIA PARA
INQUISIÇÃO
NO MUNDO
DIGITAL do filósofo ainda suscita Vendida por 450 milhões de
dólares, a obra Salvator Mundi,
COMPREENDER TODO O TEMOR DE SE
O CONHECIMENTO POR EXPRESSAR OU

interesse. Seria ela


MEIO DE ZARATUSTRA SE POSICIONAR
POR RECEIO DE

de da Vinci, nos oferece uma


E DIONISO SER JULGADO OU
ATÉ “CANCELADO”

TOCQUEVILLE:
INSTRUIR A
DEMOCRACIA
DEVERES DE
signo de derrota ou realidade transcendental,
de vitória irônica que
ADAPTAÇÃO E
MUDANÇA DOS
GOVERNOS
PARA PRESERVAR
INTERESSES
metafísica e desconhecida: tudo
se encerrou com uma se nivela e se torna “um”. E,
DE TODA A
SOCIEDADE

PARA O PROFESSOR PERGUNTAS QUE MERLEAUPONTY QUIS RESPONDER EM SEUS PRIMEIROS TRABALHOS

saída de cena filosófica? assim, a mensagem do artista


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sobrevive por séculos.

42 _RELIGIÃO -
MORALISMO,
10 _INSTRUIR A LEITURA RÁPIDA
TENTAÇÃO ETERNA
DEMOCRACIA 05 CAUSA&EFEITO A manifestação do cristianismo
Marcelo Jardim nos recorda no Brasil se dá, sobretudo, de
08 A PRIORI
as lições de Tocqueville: entre forma moralista, especialmente
os deveres dos governos estão 15 CINÉFILO
quanto às questões sexuais.
o adaptar-se às condições 21 DEEP ECOLOGY Valores como a misericórdia e a
de tempo e lugar, o mudar 56 INTERSECÇÃO caridade dão lugar à intolerância.
conforme as circunstâncias e os
59 TECNAMENTE
homens. Tudo pela preservação
dos interesses da sociedade. 64 IPSIS LITTERIS 48 _DAS MADONAS
ÀS PROSTITUTAS
65 CARTAS
16 _AUSENTE NOTÁVEL 66 A POSTERIORI
Uma análise das imagens das
mulheres no Ocidente moderno
Perante a falta da consideração
do verbo “ser”, a construção passa por Maria e Maria
filosófica segue por novas formas CADERNO ESPECIAL Madalena para identificar os
de associação que expliquem contatos sagrados e profanos
PARTE 1
as diversas manifestações da entre o passado e o presente.
ESTUDO DA
natureza. É assim que surgem
as tentativas de pensar de modo
PERCEPÇÃO 60 _INQUISIÇÃO
estrutural e holístico. As perguntas que o filósofo DA WEB
francês Merleau-Ponty quis Apesar de as pesquisas
22 _EMIL MIHAI CIORAN responder em seus dois
primeiros trabalhos.
revelarem queda no número
O filósofo romeno é conhecido de usuários do Facebook e
por suas ideias sobre a morte, menor tempo passado nessa
o desespero e o vazio. Lido PARTE 2 plataforma, as redes digitais
por pensadores e escritores EDUCAÇÃO BÁSICA fizeram surgir um novo
modernos, Susan Sontag Os desafios de um fenômeno: o temor de se
descreveu o seu filosofar como professor na prática de seu expressar ou se posicionar por
“pessoal, aforístico, lírico e mister sob a luz de Marx, receio de ser julgado ou até
antissistemático”. Schopenhauer e Foucault. “cancelado”.

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Causa&Efeito

Thomas
Nagel
Nascido em 1937, na Bulgária,
antiga Iugoslávia, é conhecido em
todo o mundo por seu ensaio –
Como é ser um morcego? –, que
trouxe novas perspectivas sobre
a forma como os filósofos viam a
mente humana, contrastando o

© DIVULGAÇÃO
chamado reducionismo.

Considerado um dos mais importantes filósofos contempo- tribuições foi a obra Que quer dizer tudo isso? (1987), uma
râneos, ele também se tornou notável em razão de outro ar- introdução à filosofia para jovens que apresenta o pen-
tigo, publicado no início da década de 1970, intitulado Guer- samento filosófico com precisão, vivacidade
ra e Massacre, no qual criticava a política americana e elegância insuperáveis. “Nagel caracteriza-se por
de guerra no Vietnã. Nagel graduou-se na Universidade de dar a máxima atenção à força original dos problemas filo-
Cornell em 1958, e posteriormente seguiu seus estudos nas sóficos genuínos, não procurando fingir que temos teorias
Universidades de Oxford e Harvard. Ao longo de sua car- convincentes para todos eles, ou que podemos eliminá-los
reira ele se dedicou ao estudo da ética, teorias política e do ou dissolvê-los”. “O objetivo da sua introdução à filosofia é
direito, além de ter sido um prolífico articulista nas precisamente fazer os jovens – e menos jovens – sentir a
áreas de metafísica, teoria do conhecimento, força dos problemas filosóficos, concebidos como reali-
filosofia da mente e do sentido da vida. Aborto, liberdade dades vivas que nos batem à porta mal pen-
de expressão, leis da guerra foram outros dos temas sobre samos outra vez e não como meras ficções ou narrativas
os quais se debruçou, especialmente por interessar-se pela inventadas por pessoas ociosas do passado”. Autor de inú-
aplicação da teoria moral à vida real. Foi um dos editores meros livros, Nagel obteve reconhecimento por seu traba-
fundadores da revista Philosophy&Public Affairs, que atuou lho por meio do Prêmio Rolf Schock de Lógica e Filosofia, da
como meio de difusão de assuntos correlatos para o grande Academia Sueca das Ciências e do Prêmio Balzan da Funda-
público. O jornal português O Expresso, ao fazer um perfil ção Internacional. Atualmente ele é Professor Emérito das
sobre o filósofo, ressaltou que uma de suas maiores con- Faculdades de Filosofia e de Direito da New York University.

Fonte: NYU-La/O expresso.

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CAUSA&EFEITO

Mais sol,
menos
desperdício?
Como evoluiu a ideia do horário de verão

1. 1918 2. SEGUNDA
Nos Estados Unidos GUERRA MUNDIAL
(EUA) a estratégia de Os EUA estabelecem
aproveitar a luz do dia os chamados “Tempo
foi colocada em prática de Guerra” e “Tempo
para economizar de Paz”. E mesmo após STOC
K.CO
M

UTTER
© SH
energia logo após o final do embate a
a Primeira Guerra mudança poderia ser
Mundial. No Brasil, em ou não adotada por
4. DÉCADA
1931, se estabeleceria cada estado. Mas os
DE 2010
o horário de verão, problemas de adaptação
Constatou-se o aumento de
mas ele não era entre os estados
11% nos casos de depressão
praticado anualmente. começaram a aparecer.
com o retorno do horário
solar no outono, devido à
3. 1966 redução de exposição à luz
Uma lei federal regula a observância da hora legal nos natural. Em 2017 constatou-
EUA. Outras sobrevieram para adaptação de cada região e se um aumento de 6% nos
incentivos fiscais. Até hoje não se sabe ao certo se as medidas, acidentes nas estradas, na
de fato, trouxeram os benefícios esperados naqueles tempos. semana seguinte ao início
do novo horário.

5. QUANTO À 6. POLÔNIA,
ILUMINAÇÃO ARTIFICIAL… LITUÂNIA E FINLÂNDIA
… ela contribui pouco para a economia Foram os primeiros países da União
energética, e isso graças às lâmpadas de Led. Europeia a pedir o cancelamento
Os itens que mais consomem são o computador do horário de verão na Europa. O
e o ar-condicionado – que continuam Brasil, a partir de 2019, já não mais
funcionando a despeito do horário de verão. adota o horário diferenciado.

Fonte: Direct Energy/La Repubblica.

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Na Rede
DIFERENÇAS HUMANAS,
POR DEBORAH FRANKLIN
No blog da American Philosophical Society, conhe-
cemos fragmentos da vida privada de um dos líde-
res da Revolução americana, Benjamin Franklin.
Em um post intitulado Os objetivos científicos de
Deborah Franklin, Janine Yorimoto Boldt, pesqui-
sadora em fase de pós-doutorado da Andrew W.
Mellon Foundation, nos apresenta a esposa do po- INFORMAÇÃO +
lítico e curiosidades da correspondência do casal.
Curadora da exposição Franklin, Citizen Scientist,
REFLEXÃO = DIÁLOGO
Janine conta que muitas das missivas se perde- O Centro de Pesquisa para a Ética&Bioética
ram e a maioria das disponíveis traziam reclama- da Universidade de Uppsala, na Suécia, man-
ções sobre as viagens de Franklin e também os tém um blog com postagens semanais que o
desafios da gestão dos acontecimentos da casa. editor, Pär Segerdahl, professor associado da
Apesar disso, Deborah também intermediava as mesma instituição, declara servir para infor-
correspondências do marido e seus colegas cien- mar e refletir, mas, sobretudo, para dialogar.
tistas. Foi assim que a pesquisadora descobriu que O conteúdo reproduz as pesquisas realiza-
a própria Deborah tinha seus “interesses científi- das pelo Centro que, no momento, têm focado
cos”. Entre 1757 e 1752, enquanto Franklin estava em biobancos e na atenção à saúde. Entre os
em Londres, ela lhe enviou “um cacho de cabelo posts dos primeiros meses de 2020, destacam-
branco de uma criança negra, a título de curiosi- -se Clinical Cancer trials convey a culture of
dade”. Naqueles dias, os escravos libertos eram hope, assinado pelo próprio editor, que discute
expostos ao público, porque suas aparências eram brevemente se o avanço científico e as novas
consideradas “diferentes”. A prática era comum terapias seriam melhores que os tratamen-
no século XVIII. A “amostra” de tos considerados padrão ouro. Outro post é
Deborah era provavelmente o What shall we eat? An ethical framework for
de uma criança com albinismo. food choices, escrito pela professora Anna
Acesse o blog aqui: Höglund, que nos adverte sobre os riscos de
https://bit.ly/3ak7cQI fazermos escolhas alimenta-
res baseados apenas em um
ponto de vista.
Acesse o blog aqui: https://bit.
ly/39jy2Hm

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O caminho do
conformismo
POR ADRIANO CORREIA

“A educação está em

N disputa porque a formação,


ós, que vivemos uma época em que uma criança,
em condições ideais, pode acessar o ensino pú-
principalmente a incessante, tem
blico desde a mais tenra infância, e em que os
pais têm o dever de matriculá-las na escola, podemos ter
papel central na conformação do
dificuldade para perceber o quanto uma escola pública empresário de si mesmo”
potencialmente universal a ser garantida pelo Estado e o
dever de prover o acesso à educação básica são invenções
historicamente recentes. Em 1979, Michel Foucault ministrou no Collège de France
A educação, como a conhecemos, desenvolve-se a partir um curso intitulado Nascimento da biopolítica. Neste cur-
da escola republicana tal como foi concebida nos des- so ele buscou examinar a arte liberal de governar, cuja
dobramentos da Revolução Francesa, demarcada pelo demarcação seria imprescindível para compreender o
projeto iluminista de emancipação individual e do gênero longo processo de desenvolvimento de técnicas de gestão
humano por meio da razão. A escola republicana herdava da vida da população cada vez mais eficazes e sutis. Em
do humanismo a compreensão da dignidade dos bens cul- sua análise ele se detém nos fundamentos do liberalis-
turais do passado, que mereciam toda a preparação para mo e na sua profunda transformação ao longo do século
acessá-los, mas rejeitava o passado como tradição e seu XX, principalmente a partir do neoliberalismo germânico e
uso na tutela das condutas. austríaco (ordoliberalismo) e estadunidense (anarcolibe-
Esta escola apostava no desenvolvimento integral do indi- ralismo). Foucault emprega o conceito de neoliberalismo
víduo a partir do acesso à cultura, da preparação para o em um contexto no qual a palavra ainda está distante das
trabalho e da formação para a cidadania com base no de- disputas políticas ordinárias e com o claro objetivo de in-
senvolvimento da capacidade de pensar e de julgar por si dicar as novidades representadas por essas escolas em
próprio, de articular o pensamento crítico no espaço público, relação ao liberalismo clássico.
sustentando de modo argumentado as próprias posições e Quando se reflete sobre o neoliberalismo estadunidense,
sendo capaz de imaginar e avaliar as posições dos outros um exemplo primordial sobre o qual Foucault se detém é o
cidadãos e debater com eles. A escola e a formação assim da teoria do capital humano, desenvolvida por economistas
compreendidas se consolidaram e se expandiram nos últi- como Gary Becker e Theodore Schultz, ambos laureados
mos duzentos anos, com crises maiores ou menores, mas com o prêmio Nobel de Economia. Uma das diretrizes fun-
apenas nas últimas décadas foram confrontadas por uma damentais dessa teoria é a de pensar o trabalho não como
concepção de educação que lhes é inteiramente antagônica um dispêndio de tempo e energia para engendrar produtos
e vem prevalecendo progressivamente, a partir da ação de e lucro (e expropriação, por conseguinte), mas como uma
patrocinadores poderosos – e nada republicanos. conduta econômica, um investimento por parte de quem

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A PRIORI

© SPIFFYJ / ISTOCKPHOTO.COM
trabalha. Mas o que o trabalhador investe? Sua dedicação
e sua resiliência, claro, mas acima de tudo suas aptidões,
suas habilidades, suas competências.
Assim compreendido, o trabalhador é também um investi-
dor ou um capitalista, alguém que se dedicou ao desenvolvi- A educação está em disputa porque a formação, principal-
mento de aptidões desejadas pelo mercado, visando galgar mente a incessante, tem papel central na conformação do
posições cada vez mais elevadas no jogo competitivo por empresário de si mesmo. A concepção de uma formação
ganhar rendas cada vez mais elevadas. Essas aptidões, que interminável, a disponibilidade incessante para a aquisição
são seu capital, dependem de elementos inatos e ambien- permanente de novas habilidades e competências em um
tais, claro – como saúde e condições de desenvolvimento indivíduo que a todo tempo busca estar atraente para o
adequado na primeira infância –, mas o que é decisivo aqui mercado tendem a promover um imenso conformismo – a
são os elementos adquiridos, que são, antes de tudo, como resistência ou a crítica tendem a prejudicar a renda. Cer-
nota Foucault, investimentos educacionais, e não apenas no tamente é por isso que Foucault sustentava que o agente
âmbito da escola. As investigações de Gary Becker sobre as econômico na teoria do capital humano é o indivíduo emi-
estruturas familiares e as de Theodore Schultz sobre de- nentemente governável, porque desenvolve um modo de
senvolvimento nacional e investimento em capital humano vida que busca ver mesmo nas piores catástrofes, políticas
conformam o escopo de suas análises mais gerais. ou naturais, oportunidades de negócio.
A educação desloca-se, assim, para o centro dos investi- Em uma sociedade de empreendedores, de indivíduos-
mentos na economia nacional, com implicações notáveis -empresa cujo principal patrimônio é seu capital humano,
na natureza desse ensino. Assim como no liberalismo clás- com suas habilidades em constante ajuste e implementa-
sico, a educação possuía a dimensão pública fundamental ção, a formação desloca-se para o centro do processo de
de contribuir para a constituição da capacidade de julgar produção e a escola é progressivamente colonizada pela
por conta própria, de participar do debate público e de se lógica empresarial, que não admite distração do “foco” por
inserir em uma comunidade de cultura, consoante à teoria demandas culturais e de cidadania. Que lugar pode haver
do capital humano, a função precípua da educação consiste para a filosofia e as humanidades em tal concepção de for-
em equipar os indivíduos, em formação “do berço à tumba”, mação? E para a democracia? É o que veremos no texto da
com habilidades e competências que lhe permitirão ganhar próxima edição.
este ou aquele salário e aceder a determinados padrões de
consumo. Isso pressupõe “foco” (o que inclui não conside- ADRIANO CORREIA é
rar qualquer outra forma de vida possível), disponibilidade professor de Filosofia
da Universidade Federal
permanente para o autoajuste às variáveis do meio e um de Goiás e presidente
processo interminável de aquisição de competências e de da Associação Nacional
de Pós-graduação em
capacidade de adaptação. Filosofia (ANPOF).

FILOSOFIA Ciência&Vida • 9

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DIÁLOGOS

INSTRUIR A
DEMOCRACIA
Pela voz de Marcelo
Jardim, recordamos que
entre os deveres primeiros
dos governos estão o
adaptar-se às condições
de tempo e lugar, o mudar
conforme as circunstâncias
e os homens. Tudo pela
construção dos verdadeiros
interesses da sociedade
COLABORAÇÃO DA ANPOF
POR ROSÂNGELA CHAVES
© GEORGEPETERS / ISTOCKPHOTO.COM

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P
rofessor da PUC-RJ (Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio de Janeiro),
com mestrado e doutorado em ciência
política pelo IUPERJ (Instituto Uni-
versitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e
pós-doutorado pela Universidade de Stanford
(EUA), Marcelo Jasmin é um dos maiores es-
pecialistas no Brasil na obra de Alexis de To-
cqueville (1805-1859), o autor do clássico A
Democracia na América.
Pesquisador do CNPq, Jasmin publicou, en-
tre outros, os livros Alexis de Tocqueville: a His-
toriografia como Ciência Política e Racionalidade
e História na Teoria Política (Editora UFMG),
além de diversos artigos e ensaios sobre a re-
lação entre a história e a teoria política em pe-
riódicos e coletâneas. Na entrevista a seguir,
concedida por e-mail, Jasmin discorre sobre
o vigor da obra tocquevilliana, fundamental
para pensar sobre os desafios da democracia
no mundo contemporâneo.

Filosofia Ciência&Vida: Por que


é importante ler a obra de
Tocqueville nos dias de hoje
e em quais aspectos ela pode
nos ajudar a compreender o
nosso próprio tempo?
Marcelo Jasmim: A força da
reflexão de Tocqueville se espalha
em muitas direções, especialmente na
sociologia, na política e na história. Pensando
nos dias de hoje, poderíamos salientar que
Tocqueville nos ensinou a ver a democracia
não apenas como forma de governo, mas como
forma de sociedade assentada na ultrapassa-
gem da desigualdade hierárquica do mundo
aristocrático e na progressiva aproximação

FILOSOFIA Ciência&Vida • 11

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DIÁLOGOS

das condições sociais entre nobres e plebeus, com querer aplicar a regra majoritária, legítima para
a universalização do acesso aos postos e benes- a tomada de decisão e para a eleição de represen-
ses públicos. E também nos asseverou que uma tantes, a outros campos da experiência, como,
dada direção da história em um certo período não por exemplo, a opinião, os costumes, a verdade
implica garantias de continuidade desta direção. ou a inteligência. Há tirania da maioria quando
E, tanto num caso, como no outro, insistiu que a a força de convicção da maior parte da popula-
liberdade política depende da ação cívica interes- ção é de tal ordem que inviabiliza a expressão
sada no bem comum. (e eventualmente a sobrevivência) daqueles que
pensam de forma diferente do senso comum
Conservador, liberal, democrata, republicano. majoritário. Trata-se de um fenômeno que atinge
Os intérpretes da obra de Tocqueville o o espírito e a disposição das pessoas em divergir
classificaram de diferentes formas ao longo e afirmar os seus pontos de vista, o que pode
do tempo. Como o senhor situa Tocqueville levar a uma espécie de autocensura ou autoexílio
dentro do espectro político? É difícil enquadrá- de indivíduos no seio da sociedade. Para dar um
lo dentro de uma classificação? exemplo do próprio Tocqueville: se a Inquisição
Não acho que Tocqueville possa ser classificado atuava com repressão violenta sobre aqueles que
em apenas uma destas rubricas. Sem dúvida, ele ousavam divergir, a tirania da maioria esvazia,
é um liberal no sentido de que a liberdade dos antecipadamente, o ímpeto de o indivíduo vir a
indivíduos deve ser preservada da intervenção público manifestar sua divergência.
estatal. Também é um conservador no sentido
de recusar as mudanças bruscas operadas pela
vontade na história, não porque a vontade seja
ilegítima, mas porque a ação revolucionária cos-
tuma trazer consigo consequências catastróficas
“HÁ TIRANIA DA
não antecipadas, como ele avalia, por exemplo, MAIORIA QUANDO
no caso do terror francês. Também é um republi-
A FORÇA DE
cano visto que não concebe a liberdade política
sem uma cidadania ativa e uma participação CONVICÇÃO DA
livre na decisão comum dos assuntos comuns. MAIOR PARTE
Não é um democrata por convicção ou gosto. O
seu receio de que as massas possam desprezar DA POPULAÇÃO
as instituições e as minorias limita a sua adesão É DE TAL ORDEM
à democracia. Todavia, ao mesmo tempo, a sua
análise da modernidade reivindica uma adesão
QUE INVIABILIZA
racional aos avanços igualitários da sociedade A EXPRESSÃO (E
democrática que ele considera mais justa do que EVENTUALMENTE
o mundo aristocrático de seus pais.
A SOBREVIVÊNCIA)
Em A Democracia na América, Tocqueville DAQUELES QUE
discorre sobre os perigos que ameaçam as
sociedades democráticas e um deles é o que
PENSAM DE FORMA
ele chama de “tirania da maioria”. Sob o ponto DIFERENTE DO
de vista tocquevilliano, como esta pode ser
SENSO COMUM
definida?
A tirania da maioria é um fenômeno moderno, da MAJORITÁRIO”
sociedade de massas, nas quais há o risco de se

12 • FILOSOFIA Ciência&Vida

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Tocqueville também formulou essa estranha sociais, políticas, culturais. Por outro lado, o
expressão denominada “despotismo grande desafio do mundo contemporâneo é a
democrático”. Como um regime pode ser gigantesca desigualdade em todos os níveis,
despótico e democrático ao mesmo tempo? vista como a grande ameaça à democracia.
Isso exigiria muito espaço para tratar. Muito sim- Como as ideias de Tocqueville podem
plificadamente, a sociedade democrática, para contribuir para esse debate?
Tocqueville, se funda na igualdade de condições Para Tocqueville, só há sociedade democrática se
de seus habitantes. Se esta igualdade não está as desigualdades internas a ela não inviabilizam
associada a uma liberdade política, caracterizada a mobilidade social e as possibilidades de acesso
por presença cívica no espaço público, pode-se dos cidadãos às posições de prestígio social. Se
constituir um novo tipo de sociedade no qual o a desigualdade alcança níveis de impedimento
poder estatal não agride nem oprime fisicamente, desta mobilidade, então se cria um tipo de
como no despotismo tradicional, mas exerce a desigualdade hierárquica que é própria das
sua plena soberania sem qualquer contraponto sociedades hierárquicas, pré-modernas. Como
ou resistência por parte de seus súditos, que se não há nenhum tipo de certeza sobre o futuro,
satisfazem com o gozo de interesses e prazeres como aquela que era garantida pelas filosofias da
privados em segurança. O despotismo aqui se re- história, isso pode vir a acontecer.
fere menos à natureza do senhor do que à ausên-
cia de espírito público dos indivíduos que perdem Outra noção importante desenvolvida por
a capacidade de agir e de pensar publicamente Tocqueville é a de individualismo, que ele
e tornam-se dependentes, pois esperam que a classifica como uma espécie de “doença” da
solução de seus problemas seja sempre oferecida modernidade. Por que o individualismo, para
pelo Estado. Penso que poderíamos aproximar, Tocqueville, é tão deletério?
em alguma medida, a ausência de atividade polí- Para Tocqueville, o egoísmo é uma depravação
tica dos súditos do despotismo democrático com de espíritos particulares que só se preocupam
o vazio e o silêncio do espaço público imaginado consigo mesmos, e existe em todas as épocas
no despotismo oriental de Montesquieu, e tam- históricas. Já o individualismo é especificamente
bém associar o espírito destes súditos àquele que moderno e democrático (no sentido tocquevillia-
configura a menoridade em Kant. no) e decorre do fato de que os indivíduos, na
insegurança social do mundo das massas e da
Alguns estudiosos da obra de Tocqueville economia moderna, tendem a se preocupar muito
consideram que ele, de certa forma, anteviu o mais com a sua posição pessoal e familiar do
fascismo que eclodiria no século XX e volta a que com o bem comum e a coisa pública. É um
nos ameaçar no século XXI, quando falou dos fenômeno que abrange o conjunto dos indivíduos
perigos representados pelo “Estado tutelar”. O da democracia. Ele é especialmente deletério
senhor concorda com essa interpretação? quando a necessidade de proteção dos interesses
Outros pesquisadores viram o Estado soviéti- de um grupo – seja uma família, uma elite, uma
co, o totalitarismo etc. Contudo, acho que estes corporação – ultrapassa a disposição de conside-
fenômenos estavam fora do alcance de Tocque- rar os interesses e as necessidades dos demais, o
ville, que não conheceu nem as fases avançadas que corrompe qualquer espírito cívico e, conse-
do imperialismo nem a Primeira Guerra Mundial. quentemente, a liberdade política.
Penso que se trata de um desejo de encontrar
antecipações que não podem ser verificadas. Tocqueville era um grande entusiasta do
poder da associação como forma de preservar
A grande ideia mestra que perpassa A as liberdades democráticas. Seria este ainda o
Democracia na América é a da igualdade, caminho viável para lutar contra as ameaças à
como mola propulsora de transformações democracia nos dias atuais?

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DIÁLOGOS

Este foi um caminho fundamental, por exem-


plo, quando superamos a ditadura no Brasil.
Hoje em dia tem de ser repensado a partir
dos desafios postos pelas redes sociais e pela
inteligência artificial (especialmente o deep
learning) que estão transformando radicalmente
as formas de comunicação entre os cidadãos.
Até onde eu consigo vislumbrar, a perspectiva
da associação ainda é um antídoto contra o
“HOJE EM DIA TEM DE SER REPENSADO
individualismo, contra a prevalência do autoin- A PARTIR DOS DESAFIOS POSTOS PELAS
teresse e da desconsideração pelos outros na
REDES SOCIAIS E PELA INTELIGÊNCIA
vida comum. A associação é a menor unidade
de um mundo comum que está ameaçado de ARTIFICIAL (ESPECIALMENTE O DEEP
desaparecer nas condições atuais da técnica. LEARNING) QUE ESTÃO TRANSFORMANDO
Na sua opinião, como o autor poderia RADICALMENTE AS FORMAS DE
classificar os Estados Unidos neste século COMUNICAÇÃO ENTRE OS CIDADÃOS”
XXI? O país continuaria sendo um modelo
de democracia que poderia inspirar outras
nações?
Não acho que temos condições de responder Tocqueville no meu mestrado no IUPERJ, em
qual seria a avaliação de Tocqueville sobre 1983, só havia no Brasil a tese pioneira da
os EUA atuais. Mas o avanço nos direitos professora Celia Quirino dos Santos, escri-
de igualdade de mulheres, negros, grupos e ta em 1982, embora iniciada anteriormente
indivíduos que se reconhecem sob a legenda em seu exílio na França, e que só veio a ser
LGBT, avanço que é maior naquele país do publicada em 2001. Na banca de qualificação
que na maior parte do mundo, é uma conti- de meu mestrado, por volta de 1984, um dos
nuidade das tendências igualitárias que ele avaliadores duvidou mesmo que se pudesse
previu (como no caso do fim da escravidão fazer um bom estudo acadêmico sobre Tocque-
negra e dos direitos iguais entre homens e ville no Brasil (vale lembrar que naquela época
mulheres). Mas a desigualdade crescente, que não havia internet, nem e-mail, e a informação
não é especialmente norte-americana, mas bibliográfica era feita em fichários de bibliote-
global, opera em sentido inverso do que ele ca e catálogos impressos; um livro importado
imaginou como democracia. Note-se que o demorava cerca de seis meses para chegar e
socialismo era um dos horizontes imaginados com um custo altíssimo). De lá para cá houve
por Tocqueville como futuro possível daquela uma profusão de trabalhos acadêmicos em
democracia de seu tempo, e o fim do comunis- várias áreas do conhecimento, na política, na
mo também aponta para o esvaziamento de sociologia, no direito, na história, na filosofia…
uma das tendências, pelo menos teoricamente, Mas este não é apenas um interesse brasilei-
igualitárias do século XIX. ro, é mundial, e a produção acadêmica hoje
tornou-se impossível de se acompanhar. Para
Como é a recepção da obra de Tocqueville não falar da presença de Tocqueville em vários
hoje no Brasil? Há um aumento do interesse discursos públicos e na imprensa em geral.
dos pesquisadores e do público pelo
pensamento tocquevilliano?
É certo que o interesse pela obra de Tocque- Rosângela Chaves é jornalista, doutora
em Filosofia pela UFG e professora da
ville é crescente. Quando comecei a estudar Faculdade Católica de Anápolis (GO).

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CINÉFILO

Em busca da
escuta perdida
POR ÉRICO ANDRADE superam as diferenças culturais
para se unirem contra todas as

A
referência à obra de Victor Hugo não poderia ser formas de opressão às quais
mais dolorosamente atual. Mais grave: verdadeira. estão submetidas. Por isso, o
O que se retém de Os Miseráveis não é certamente o fim do filme é marcado por ex-
cristianismo de Victor Hugo e que, na periferia de Paris, não plosões de todos os atores que
é mais hegemônico. Talvez em lugar nenhum do mundo. O negaram às crianças o direito
Título: Os miseráveis
cristianismo que porta a esperança da redenção por meio de viverem a sua infância. Mas Diretor: Ladj Ly
do perdão. É o sofrimento dos miseráveis, e não a espe- não se trata de qualquer infân- Gênero: Drama
Duração: 100 min
rança encarnada em Jean Valjean (a personagem emble- cia. É a infância roubada pela
mática do livro), que é retratado na película cujo título é o violência que não poderia reagir à violência senão pela vio-
mesmo da célebre obra de Hugo. No entanto, falemos dos lência na qual foram cultivadas; como diz a frase de Hugo
miseráveis do século XXI que tampouco são os franceses presente nos créditos logo após o encerramento do filme.
que conhecemos quando avançamos nas páginas daquele Lembrando que em francês a expressão cultiver tanto se
clássico romance. aplica às plantas como ao ensino.
Os miseráveis são os franceses que, como se mostra nas Nesse sentido, a cena com a qual o filme se encerra nos
primeiras cenas do filme, portam orgulhosamente a ban- desampara porque quando estamos encurralados pelo
deira da Argélia na vitória da copa do mundo da França. ressentimento e não temos acesso à educação, a violência
Os franceses que são do Magrebe (do norte da África) e se apresenta tanto natural como incontornável. É quando,
que são também africanos negros vulneráveis a uma for- como diz ainda Hugo, “a desesperança cerca os lugares frá-
ma específica de precarização e que dá o tom dos atuais geis que deixam todos submetidos ao vício e ao crime” que
miseráveis. É precarização implicada na vida dos imigran- nos damos conta de que para romper um ciclo de opressão
tes dos países vítimas da colonização francesa. É sobre os é preciso acabar com aquilo que está na sua base: a su-
miseráveis da próspera França do século XXI que o filme se perioridade moral que se expressa muitas vezes na com-
desenrola. É sobre a sua história. preensão de que certo sofrimento, por ser supostamente
Distantes de Paris, e próximos uns dos outros, os miserá- maior do que os demais, pode subtrair o político, a nossa
veis vivem a uniformidade de uma vida paralela às marcas capacidade de diálogo. Talvez apenas com a consciência de
francesas (as feiras que vendem produtos falsificados), aos que todas as personagens da periferia de Paris são miserá-
monumentos históricos (que não aparecem no filme), ao veis, cada uma ao seu modo, é que se poderá desenhar os
acesso à cultura (nenhum equipamento cultural é desta- passos para a revolução mais urgente no mundo contem-
cado). Vivem no tom monocromático dos prédios iguais, só porâneo: a escuta.
rompido com pichações. Vivem sob a anuência de autorida-
des não menos repressoras do que a própria polícia. Vivem ÉRICO ANDRADE é filósofo,
psicanalista em formação,
naquilo que não deixa de tangenciar uma estrutura similar professor da Universidade
às galés (prisões) narradas por Hugo. Federal de Pernambuco (UFPE).
ericoandrade@gmail.com
A revolta estudantil de Os Miseráveis dá lugar à revolta
contra todo o sistema protagonizada pelas crianças que

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FILOSOFIA ORIENTAL

A
fi losofia grega nasce sob a égide do
verbo “ser”. O ser humano é o agen-
te fi losófico, “medida de todas as
coisas” dizia Protágoras, o centro de tudo e
manancial da sabedoria, segundo Sócrates.
Para os que entendem a Filosofia como um
fenômeno ocidental, esta característica a tor-
na especial e norteia a construção do saber
especulativo e científico.
Se acaso nos perguntarmos se o mesmo
ocorreu na China, constataremos com es-
panto que os chineses nunca deram ao verbo
“ser” tal importância. Isso os desqualificaria

AUSENTE
para terem o que chamamos de “filosofia”, e
creio que a tentativa de nos esforçarmos para
provar que os chineses a têm seria uma arma-
dilha perversa de aprisioná-los em nossas ca-

NOTÁVEL
tegorias de saber. Como alguns sinólogos têm
reafirmado, o pensamento chinês não precisa

Quando a construção
filosófica não parte da
consideração do verbo
“ser”, novas formas de
associação que expliquem
as diversas manifestações
da natureza se voltam às
tentativas de pensar de
modo estrutural e holístico
POR ANDRÉ BUENO

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provar que é filosófico, mas é urgente para o Posto que considero válido incluir o pen-
ocidente torná-lo um objeto filosófico (e, qui- samento chinês como uma forma de filosofia,
çá, considerá-lo filosofia) sem o que corremos por conseguinte o objetivo deste texto trata de
o risco fatal de um solipsismo eterno. analisar uma de suas peculiaridades funda-
Aliás, é mais do que curioso que hoje, em mentais: como se constrói uma estrutura de
pleno mundo globalizado, narradores diver- pensar filosófica sem conceder importância
sos e supostos pensadores insistam sempre fundamental ao verbo “ser”? Ressaltemos,
em que a China é um mundo fechado. Tal ele existia, e continua a existir, mas era um
acusação é no mínimo hipócrita, tendo em verbo auxiliar, e nunca foi promovido a con-
vista que essas mesmas pessoas querem que ceito. Zhang Dainian, autor do fundamental
os chineses pensem como nós! Ou seja, man- livro Keys Concepts in chinese philosophy, sim-
tém-se vivo o eterno preconceito e total falta plesmente não o inclui, e esta (des)considera-
de consciência sobre o direito à diversidade, ção faz todo o sentido em relação às formas
alteridade, pluralidade etc. que tanto insistem de pensar chinesas. Assim sendo, investi-
os “sábios democratas” do ocidente. Se eles gar este breve tema pode ser relevante para
prestassem um pouco mais de atenção ao que compreendermos as suas consequências em
a China simplesmente foi (e é), entenderiam relação ao pensamento chinês. Outra cons-
de que modo opera o raciocínio filosófico e so- trução, desprovida de uma primordialidade
cial dessa civilização. no “eu”, é algo realmente a “se pensar”.

FILOSOFIA Ciência&Vida • 17

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FILOSOFIA ORIENTAL

Uso intelectual da linguagem em um sistema ecológico total, sendo ao mesmo


O chinês, tanto antigo quanto moderno, não en- tempo um agente ativo e passivo de toda mutação
fatiza o uso do verbo “ser”, senão como auxiliar. universal. Suas possibilidades individuais não
Ele denota uma condição, não uma essencialidade. são apagadas, mas o que marca a sua existência
Caso estejamos em algum lugar, ou precisemos in- e a inserção em uma categoria total que é cons-
formar um estado de coisas, o verbo “zai” cumpre a truída por suas semelhanças e analogias: a dos
função de informar a situação, podendo ser tradu- seres humanos.
zido como “estar”. Essa objetividade desconcerta, Por conta disso, os textos fi losóficos guardam
mas simplifica sobremaneira o ato de comunicar. formas de expressão muito próprias, e até mes-
Decorrente disso, o chinês (e agora focaremos mo os pronomes são empregados em função do
principalmente o clássico, origem e base de nos- coletivo. Dawson, em seu A New Introduction to
sa análise) tornou-se uma língua rica e ao mes- Classical Chinese (1985), indica a presença cons-
mo tempo lacônica. Este paradoxo se manifesta tante do pronome wu, por exemplo, que significa
neste esforço de concisão, de expressar breve e algo como primeira pessoa de um plural num tom
completamente um pensamento. Um exemplo vago. Assim, quando um diálogo ocorre, era uma
magno disso é a tradição proverbial, em que uma praxe literária iniciar a oração ou parágrafo com
frase simples busca capturar e exprimir uma ideia “[o] Mestre diz [disse]”; e no seguir, “pensamos
por inteiro. Tal situação levou sábios como Con- que” ou ainda “[em] tempos antigos, pessoas…”.
fúcio [551-479 aec] a tentarem inclusive “retificar Tudo é coletivo. A ação só se centra no indivíduo
os nomes” e, em um esforço gramatical inédito, estritamente dito para que ele se integre nesta es-
defender uma adequação das palavras aos seus trutura na qual está inserido.
sentidos mais estritos. Isso remete o pensamento chinês a uma oportu-
Obviamente que essa proposta era de difícil apli- nidade única: a de já nascer universalista. Grande
cação, mas colocou os chineses em uma posição parte dos críticos gosta de insistir (e confundir) na
fundamental para o surgimento de um pensamento atitude cultural dos chineses em serem reservados,
filosófico, que é a construção de conceitos – ou, no fechados e coletivistas. Ora, em uma sociedade
caso, como uma palavra pode conquistar e repre- que se entende gregária, a noção do individualismo
sentar um conjunto de ideias ou propostas teóricas. egoísta ocidental se apaga, ou esbarra na força do
Xunzi [310-235 aec], um dos seguidores de Confú- social. O indivíduo não é estimulado a sobressair
cio, advogou a continuidade do movimento, e até de forma autônoma (mas podemos nos perguntar
mesmo a escola legista o adotou – em seu caso, po- se o capitalismo também não gosta de massacrar
rém, para regular o uso dos meios de comunicação a livre iniciativa do ser humano), mas, no caso chi-
e restringir as formas de expressão intelectual. No nês, ele é inversamente estimulado a integrar-se,
entanto, as condições para a “aventura conceitual” a participar do ato de vivenciar a humanidade em
estavam criadas, e já nos séculos seguintes a China sociedade. Logo, o agir e o pensar filosófico são
veria surgir, por exemplo, dicionários conceituais da natureza humana, nela residem e têm partida.
como o “Shuowen jiezi” e o “Erya” durante o período Por outro lado, os chineses, assim sendo, não são
Han [sécs. 3 aec-3 ec]. dados a uma interpretação da coisa política como
“democrática”, e sim meritocrática – ou seja, desta-
Categoria total cando o indivíduo por suas próprias capacidades
Mas e o verbo “ser”? E o indivíduo como motor em meio ao coletivo, e não distinguindo-se dele.
da ação? Novamente, a China encontrou a respos- Esse raciocínio consolida-se no conceito fun-
ta para essa dúvida (que nunca existiu) em sua damental de “humanidade” (Ren) que Confúcio
dialética que opõe e, ao mesmo tempo, incorpora tanto defendia como linha central de sua doutri-
o indivíduo na natureza. Nos discursos fi losóficos na. Todos poderiam atingir essa concepção de
chineses, o ser humano se dissolve e se integra humanismo, e o próprio mestre dizia que o com-

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“AFINAL, SE ALGUÉM TEM QUE
assim, o projeto final dos daoistas não escapava da
MEDITAR PARA ALCANÇAR O ideia de uma reintegração final com a natureza. Por
NIRVANA, OUTRO ALGUÉM TEM outro lado, confucionistas e cosmólogos privilegia-
ram a concepção de unidade fundamental, que se
QUE TRABALHAR PARA SUSTENTÁ
consignou na formulação do conceito de “shi” (pro-
LO. SERIA JUSTO ENTÃO ALGUÉM pensão) ou do potencial que cada ser humano tem
SE LIBERTAR À CUSTA DE OUTRO?” por efeito da criação. Se há um princípio imutável,
ele tem que ser regulado por algo mutável; logo,
se há um conjunto de elementos que nos tornam
humanos, e se isso for imutável, então, obrigatoria-
portamento de alguém consistia justamente em mente devemos vir ao mundo diferenciados, pois
não perder esses princípios universais de sabe- a manifestação do processo necessita ser mutável.
doria independentemente do contexto. Não foi ele Com base nisso, Dong Zhongshu (179-104 aec)
quem disse, no livro Analectos [Lunyu]: “entre os defendia que as singularidades são derivadas das
estrangeiros, aja como estrangeiro, entre os da- conformações do Qi (energia) no ser humano. Isso
qui, aja como os daqui”? E ainda, que “entre os seria uma regra válida para todos. Séculos de-
quatro mares todos somos irmãos”? pois, quando essas discussões se deslocam para
A ausência do verbo ser como centro do racio- o plano da mente, autores como os Zhuxi [1130-
cínio fi losófico deslocou então a reflexão sobre 1200 ec] apontaram para os padrões dos mesmos
a ação humana de um suposto egoísmo realista processos mentais como referência de simetria, e
para um comunitarismo propositivo. Toda e qual- não de separação.
quer forma de pensar na China já nasce tendo
como requisito básico de prova sua universalida- Apontamento estético
de, naturalidade e coletividade. A exceção não é A percepção do ser gregário, coletivo e integra-
nem poderia ser considerada regra, no máximo do se manifesta de forma plena na arte da China.
um exemplo ou referência – mas seu valor crítico Jean Riviere (1979) caracterizou de forma brilhan-
sempre seria minimizado. te como o ser humano “desaparece” na pintura de
paisagem chinesa: “A influência da Natureza am-
Consideração do indivíduo biente é fundamental no temperamento chinês; a
A vinda do budismo à China propôs uma rever- estética desta arte porá no primeiro plano das suas
são deste quadro, mas, para a própria sorte dos bu- pesquisas o conjunto desta Natureza: a paisagem,
distas, a religião se adaptou a esta imbatível ideia as flores, os animais; o personagem humano acres-
de universalidade chinesa. Hanyu [768-824], autor centa-se finalmente como um elemento a mais,
que criticou bastante o budismo durante o período porém sem qualquer caráter predominante. A har-
Tang, demonstrou por um simples exercício de ló- monia com as forças naturais, a procura do ritmo
gica que uma individualidade extrema seria uma da Vida cósmica, as grandes sínteses nos seus es-
injustiça cósmica. Afinal, se alguém tem que me- quemas preestabelecidos dos objetos, dos seres,
ditar para alcançar o nirvana, outro alguém tem das coisas do universo, a concordância dos sons,
que trabalhar para sustentá-lo. Seria justo então das cores, das partes do corpo, dos elementos do
alguém se libertar à custa de outro? cosmos, formam a base do pensamento chinês”.
Os pensadores chineses tiveram que se debru- Sua inserção é indicada, pois, pela sua completa
çar, no entanto, sobre a questão da individualidade dissolução no natural. Ao ser aceito na manifesta-
para explicá-la em contraste à concepção univer- ção do cosmo, o indivíduo alcança todas as suas
salista. Pensadores como Zhuangzi [séc. 4 aec] vi- potencialidades, justamente por plasmar-se com
ram nisso a possibilidade de afirmar a questão do ela. A mimesis é completa, e tal é sua realização.
individualismo como autenticidade do ser; mesmo Lin Yutang [1895-1976], um dos mais importantes

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FILOSOFIA ORIENTAL

“ADAPTARSE É TANTO SE PERDER QUANTO SE ENCONTRAR NUM MEIO


‘ESTRANHO’. AO MESMO TEMPO, É DESCOBRIR A TOTAL POSSIBILIDADE
DE SER HUMANO EM SUA PLENITUDE”

escritores chineses da contemporaneidade, zes de o ajudar no presente ou no futuro. Este


REFERÊNCIAS
gostava de dizer que “o mais difícil é ser jus- cultivar das ‘relações’ (guanxi) surge como um
tamente um eremita na cidade”. A natureza do dos componentes essenciais da vida social
DAWSON, R. A New
ser humano, por ser universalista, deseja a pró- chinesa”. Introduction to
pria integração. Apenas o egoísmo em impor Se compreendermos esta afirmação, enten- Classical Chinese.
Oxford: OUP, 1985
um ponto de vista pode destruir isso. deremos, por conseguinte, que a China e os
HANSEN, C. Concepts
chineses estão longe de serem “herméticos” Articles em http://
Vivência chinesa por natureza, como muitos críticos gostam de www.hku.hk/philodep/
ch/concepts.htm
Nesse sentido, o sinólogo Leon Vanderme- afirmar. Na verdade, sua compreensão é in-
JULLIEN, F. La China
ersch, em seu texto “O Homem e o Mundo na tegradora e defende que o agente proponente da que pensar. Madrid:
Visão dos Chineses”, afirma que: “O homem se dissolva em sua paisagem. Na China, ten- Anthropos, 2003.
chinês é um ser essencialmente social. Her- te agir como chinês, tal como se espera que RIVIERE, J. Arte
Oriental. Rio de
deiro dos esforços de dezenas de gerações, no Brasil os visitantes ajam como brasileiros. Janeiro: Salvat, 1979.
está inscrito numa longa história de que é be- Adaptar-se é tanto se perder quanto se encon- VANDERMEERSCH, L.
neficiário e que tem a obrigação de prolongar. trar em um meio “estranho”. Ao mesmo tempo, Sabedorias Chinesas.
Lisboa: Piaget, 2005.
Rodeado, do nascimento até a morte, por uma é descobrir a total possibilidade de ser humano
YU, Kuang Chu.
multidão de seres, deve, para existir em paz, em sua plenitude. Interação entre
evitar a todo custo as contradições e os con- Em uma civilização em que o verbo “ser” Linguagem e
Pensamento em
frontos com aqueles que o rodeiam. Sabendo a não foi considerado como o ponto de partida da
Chinês em Campos, H.
que ponto a sociedade está sujeita a variações, construção filosófica, as formas de raciocinar (org.) Ideograma. São
tem um longo hábito de reserva. Tem cuidado dirigem-se inevitavelmente à tentativa de pen- Paulo: Cultrix, 1977.
para não dar uma opinião demasiado categóri- sar de modo estrutural e holístico, buscando for- ZHANG, D.N. Key
Concepts in Chinese
ca ou para não se deixar limitar por declarações mas de associação que expliquem ou aludam às Philosophy. Yale: Yale
que o definiriam e o impediriam em seguida de multifacetadas manifestações da natureza. Este University press, 2002.
modificar a sua opinião”. pensamento, naturalmente aberto à “prova pela
E prossegue: “O homem chinês tem por ou- maioria” – mas, ao mesmo tempo, pragmático
tro lado uma muito viva consciência da hierar- em buscar reproduzir tudo de forma eficaz – tor-
quia e do respeito que ela implica, como tem na-se então uma fonte fértil para imaginarmos
a preocupação duma observação fiel dos ritu- outros modos de filosofar e nos presta àquela
ais, especialmente na ocasião dos casamentos bela provocação tão necessária para abalar de
e dos funerais. Em relação aos pais como em modo sadio as nossas velhas certezas.
relação aos senhores, o homem chinês, tanto
por convicção como por tradição, faz questão
de marcar a sua deferência e o seu reconheci- André Bueno é sinólogo e professor de
mento, e é capaz de grande dedicação a esse História Oriental na UERJ. Dirige o Projeto
Orientalismo na Uerj e é associado da
respeito. Enfim o homem chinês sabe que, para
Associação Latino-Americana de Estudos
a sua ‘sobrevivência’ ou o seu ‘progresso’ nesta Asiáticos, da Rede Iberoamericana de
sociedade tão densa e tão dura, precisa de tecer Sinologia, do Council for Research in
Values and Philosophy (CRVP) e da
incansavelmente os laços com pessoas capa- Associação Europeia de Estudos Chineses.

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DEEP ECOLOGY

Meia-Terra para
a vida selvagem
da vida selvagem: as populações de vertebrados silvestres,
POR JOSÉ EUSTÁQUIO DINIZ ALVES como mamíferos, pássaros, peixes, répteis e anfíbios, sofre-
ram redução de 60% entre 1970 e 2018.

O
Homo sapiens nasceu na África e iniciou sua jornada Confirmando o impacto devastador das atividades huma-
migratória, no sentido de ocupar todos os continentes nas sobre a natureza, a Plataforma Intergovernamental
da superfície terrestre, há cerca de 80 mil anos. Pri- para Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, na
meiro ocupou o norte da África e o Oriente Médio (o chamado sigla em inglês), da ONU, mostrou que há 1 milhão de es-
Crescente Fértil, que inclui a região que vai do delta do Nilo à pécies ameaçadas de extinção. O relatório elaborado nos
Mesopotâmia). Em seguida, ocupou todo o território contíguo últimos três anos, e divulgado em maio de 2019, fez uma
da Eurásia (Europa + Ásia). Navegou e ocupou as ilhas do avaliação do ecossistema mundial, com base na análise de
Pacífico até conquistar a Austrália e a Nova Zelândia. Depois 15 mil materiais de referência.
atravessou o Estreito de Bering para alcançar o continente A atual crise climática e ambiental representa uma ame-
americano. Em ondas sucessivas, a humanidade foi ocupan- aça existencial à humanidade. Sem embargo, a despeito
do todos os rincões do planeta e, como uma espécie invasora de toda a degradação ecológica global, o livro Half-Earth
egoísta, foi dominando, explorando e reconfigurando a paisa- não é um panfleto pessimista ou fatalista. Ainda há tempo
gem dos biomas e o modo de vida das demais espécies. para reduzir significativamente as atividades antrópicas e
Ao longo do tempo, as diversas civilizações foram apren- identificar os pontos reais onde a biodiversidade do planeta
dendo a explorar a natureza em larga escala e passaram possa ser recuperada e regenerada.
a utilizar a riqueza do planeta em benefício próprio. A hu- Estudo publicado em julho de 2019, na revista Science,
manidade foi progredindo e o meio ambiente foi regredindo. mostra que restaurar as florestas do mundo em uma es-
Especialmente nos últimos 250 anos, o processo incessante cala macro é a melhor solução para mitigar os efeitos das
de acumulação de riqueza levou ao extremo o modelo Extrai- mudanças climáticas e da perda de biodiversidade. Cobrir
-Produz-Descarta, significando que para produzir bens e ser- com árvores cerca de 900 milhões de hectares de terre-
viços, a economia arranca recursos da natureza e devolve nos degradados poderia armazenar até 205 bilhões de to-
lixo, resíduos sólidos e poluição. neladas de carbono, cerca de dois terços do carbono que
Mas esse processo é ambientalmente insustentável. Para os seres humanos já colocaram na atmosfera, além de
salvar os demais seres vivos do planeta e evitar a 6ª extin- garantir o florescimento da vida selvagem. Como afirma a
ção em massa, o biólogo e entomologista americano Edward Ecologia Profunda, o bem-estar e o florescimento da vida
Osborne Wilson lançou o livro Half-Earth: Our Planet’s Fight humana e não humana sobre a Terra são valores ineren-
for Life, no qual argumenta que a situação que enfrentamos tes ao planeta e devem ser preservados em benefício da
é grande demais para ser resolvida aos poucos e propõe uma prosperidade da Nossa Casa Comum.
solução compatível com a magnitude do problema: dedicar
metade da superfície da Terra à natureza.
De fato, o mundo vive uma situação crítica. O último Relató- JOSÉ EUSTÁQUIO DINIZ ALVES é doutor
em demografia pela UFMG e pós-doutor
rio Planeta Vivo (2018), divulgado pelo Fundo Mundial para pela UNICAMP. Foi professor titular da
a Natureza (WWF), mostra que o avanço da produção e con- Escola Nacional de Ciências Estatísticas
(ENCE) do Instituto Brasileiro de Geografia
sumo da humanidade tem provocado uma degradação gene- e Estatística (IBGE). Aposentado em abril de
ralizada dos ecossistemas globais e gerado uma aniquilação 2019, atualmente é consultor independente.

FILOSOFIA Ciência&Vida • 21

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© JAMIE CARROLL

MENS

DA
POR MARCO LUCCHESI

DISSOLUÇÃO
Lido por pensadores e
escritores modernos, o
filósofo romeno é conhecido
por suas ideias sobre a
morte, o desespero e o
vazio. Mas como bem definiu
Susan Sontag, o seu filosofar
era “pessoal, aforístico, lírico
e antissistemático”

U
ma noite de inverno em Bucareste. Um
amigo draculíneo destila ideias a res-
peito de Cioran, com algumas cartas do
filósofo em mãos. Um copo de tsúica e a rei-
teração da matriz romena de Cioran e do diá-
logo deste com Ionescu e Eliade. Mas também
Constantin Noica, de As seis doenças do espírito
contemporâneo, Alexandru Dragomir, discípulo
de Heidegger, e do profundo e incontornável
Lucian Blaga. Parecia fundamental atingir os
fantasmas romenos, de que estão impregnadas
as ruínas de Cioran.
Nascido em Rășinari, em abril de 1911, no
sul da Transilvânia, Cioran atinge sólida for-
mação em Bucareste e na Alemanha. Segue
depois para a França, em cuja língua passa a
escrever desde então (esse idioma emprestado,
com suas palavras sutis, carregadas de fadiga
e pudor), deixando atrás de si uma importante
bibliografia romena.
SA

O
ES
PI
NO
De suas primeiras obras, ainda mal conheci-
UR
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AR
T
das entre nós, sublinho O livro das ilusões (Car-

22 • FILOSOFIA Ciência&Vida

FIL161_22-25_Mens_vs3.indd 22 01/04/2020 15:42


“O VALOR DO CÉTICO
NA ANTIGUIDADE
MEDIA-SE A PARTIR DA
TRANQUILIDADE DA
ALMA. POR QUE NÃO
DEVERÍAMOS CRIAR, NÓS,
QUE VIVEMOS A AGONIA
DA MODERNIDADE, UM
ETHOS TRÁGICO, ONDE A
DÚVIDA E O DESESPERO
SE CONFUNDISSEM
COM A PAIXÃO, COM A
CHAMA INTERIOR, NUM
JOGO ESTRANHO E
PARADOXAL?”

tea amăgirilor), a que daria o subtítulo de um


de seus capítulos: Mozart e a melancolia dos
anjos. Considero aquelas páginas uma fanta-
sia para cordas, como se fosse o primo consan-
guíneo de A origem da tragédia, nas grandes
linhas melódicas que unem e separam as par- Texto
tituras dessas obras solitárias. Sobretudo na originariamente
publicado no
aurora (ou ocaso) de uma subjetividade prestes livro Carteiro
a se dissolver: “Somos tantos os que perderam Imaterial/ Editora
o individual, a existência, que nossas solidões José Olympio/
Rio de Janeiro
crescem sem raízes, como as algas abandona-
das à mercê das ondas”.

Educação longitudinal
Das obras romenas, O livro das ilusões é aque-
le onde se define sua linguagem madura: as sín-
copes ou staccati de tirar o fôlego, os oximoros
de alto impacto conceitual e as constelações de
fragmentos, iluminados por suas virtudes po-
tenciais. Um livro dolorosamente arrebatado,
com a melodia-pensamento pautada da primeira
à última frase na poesia de Eminescu.

FIL161_22-25_Mens_vs3.indd 23 01/04/2020 15:42


MENS

Há em Cioran um cerrado confronto metafí-


sico na esfera do trágico, em seu diálogo com
Botta e Eliade, uma espessa dialética vizinha
ao pensamento de Blaga. E certamente Niet-
zsche, Schopenhauer, Dostoievski. A educa- “A UTOPIA E O APOCALIPSE
ção filosófica de Cioran, além de longitudinal,
revela-se articulada e cosmopolita. No fim da
FORMAM A DUPLA FACE
vida, reconhece uma herança gnóstica de ve- DOS TEMPOS QUE CORREM.
lha cepa, que remonta à cultura balcânica: “por AMBOS SE CONTAMINAM
mais que desejasse libertar-me de minhas ori-
gens não consegui. Ninguém alcança libertar- MUTUAMENTE, CRIANDO,
-se de si mesmo”. ASSIM, UM MODO CAPAZ
Na história das formas breves, que domina-
ram o século XX, Cioran ocupa lugar de desta-
DE TRADUZIR NOSSO
que. Disse de si mesmo que era um homem do INFERNO, AO QUAL
aforismo. Seus fragmentos – como os cristais
HAVEMOS DE RESPONDER
das Banalidades, de Dragomir, ou os grumos
do Tractatus, de Wittgenstein – respiram uma COM UM SIM, CORRETO E
condensada história da filosofia. Não passam DESPROVIDO DE ILUSÃO.
de esplêndidas ruínas, arrancadas de passa-
gens reflexivas, mediante o martelo filosófico IRREPREENSÍVEIS DIANTE
de Nietzsche: cheias de brilho feroz, varadas DA FATALIDADE”
pela sinergia das coisas incompletas.

Aposta na dúvida “O valor do cético na Antiguidade media-se a partir da


Cioran não espera o socorro de um horizonte tranquilidade da alma. Por que não deveríamos criar, nós,
conceitual devastado, através de possível que vivemos a agonia da modernidade, um ethos trágico,
solução totalizadora, nem clama por um anjo onde a dúvida e o desespero se confundissem com a paixão,
capaz de preencher lacunas, ou de soprar, com com a chama interior, num jogo estranho e paradoxal?”
sua trompa dourada, a melodia de um todo Para alguns estudiosos, aquele paradoxo levou o filó-
esquecido. Ao contrário, o filósofo ilumina a sofo a atingir as afecções e as tonalidades emotivas da
tensão de um pensamento propositadamente alma, assumindo um lirismo mitigado e uma inquietação
aerado ou disperso e advoga, como ninguém, irreversível, isenta de paz, sob uma ótica lúcida, diante
a volúpia do insolúvel: “nunca tentei aplainar, do paroxismo das coisas que nos cercam. Não havendo
reunir ou conciliar o irreconciliável”. Uma po- salvação no plano da história ou da metafísica.
derosa nuvem de fragmentos, portadora de
tensão efervescente, jamais um sistema pronto Únicas utopias legíveis
e acabado. Daí sua inclinação pelas cartas de Nesse vasto percurso, como em Silogismos da amar-
Nietzsche, onde brilha um discurso impreciso e gura ou História e utopia, a dimensão do devir e a reserva
tateante, fora do profético ou do absoluto de Za- de esperança deixam de fazer sentido na filosofia da his-
ratustra, diante de quem Cioran já não vibrava tória, nos modelos de Hegel ou Marx, para não falar das
como outrora. teologias da história, igualmente anódinas e ilusórias.
O programa desse não programa surge “Há mais honestidade e rigor nas ciências ocultas do que
com o ensaio Uma forma especial de ceticismo, nas filosofias que atribuem um sentido à história”. Cioran
quando o jovem filósofo romeno dos anos 1930 foge das grandes sínteses em que o sujeito se desfaz nos
aposta no excesso da dúvida: mares da abstração.

24 • FILOSOFIA Ciência&Vida

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Nada se pode esperar. Nada se pode oferecer HUMOR À
aos altares vazios da duração e da utopia. Aca-
bou o tempo em que os faraós inscreviam seu
PROVA DE FRANCO
nome na memória das rochas. Para Cioran os Emil Mihai Cioran morreu em Paris em 20 de
ciganos são o verdadeiro povo eleito: “triunfa- junho de 1995. Seu obituário, publicado no jor-
ram do mundo por sua vontade de não fundar nal inglês Independent, foi assinado pelo tam-
nada nele”. bém já falecido James Kirkup, poeta e membro
Aqui está todo um sentimento. Mais que da Sociedade Real de Literatura. Nele, Kirkup
um sistema. Cioran vive. Porque não reúne conta uma passagem da vida do filósofo que
nem organiza. Dissolve. Apenas dissolve. E revela muito de sua personalidade. Trata-se
não corre poucos riscos aquele que dissolve, de um fato ocorrido durante o regime fran-
quando afirma que “as únicas utopias legíveis quista espanhol, cujo governo o acusou de ser
são as falsas, as que escritas por jogo, diver-
ateu, blasfemador e anticristão. Tais declara-
ções eram uma reação à sua obra O funesto
são ou misantropia, prefiguram ou evocam as
demiurgo. O comentário de Cioran foi: “A Inqui-
Viagens de Gulliver, bíblia do homem desenga-
sição ainda não está morta”. Segundo Kirkup,
nado, quintessência de visões não quiméricas,
ele alegou que o budismo era a sua única reli-
utopia sem esperança. Através de seus sarcas-
gião e a única filosofia que valia a pena. “Quan-
mos, Swift varreu a estupidez de um gênero até
do pontuei que ele havia nascido no mesmo dia
quase anulá-lo”.
de Buda, ele deu uma súbita rara e imediata
risada de pura alegria. ‘Jesus está se vingando
Tarefa de Cioran de nós por não ter morrido em um sofá’”.
O que nos resta fazer, afinal, senão dissolver a
tessitura da utopia, desfibrar-lhe os pontos de sua Da redação.
trama, purificá-la dos últimos resíduos de morali-
na? A utopia e o Apocalipse formam a dupla face
dos tempos que correm. Ambos se contaminam
mutuamente, criando, assim, um modo capaz de
traduzir nosso inferno, ao qual havemos de res- ja em cada célula… meu sangue se desintegra quando
ponder com um sim, correto e desprovido de ilu- os brotos se abrem, quando o pássaro floresce. Invejo
são. Irrepreensíveis diante da fatalidade. os loucos sem remédio, os invernos do urso, a secu-
Cabe ressaltar ainda a boa tradução de José ra do sábio, trocaria por seu torpor minha agitação de
Thomaz Brum do pensamento de Cioran, com assassino difuso que sonha crimes além do sangue”.
quem se correspondia em 1991, quando lhe pu- Um assassino difuso para conter a febre das utopias
blicou o primeiro livro no Brasil – Silogismos e o delírio da história. Eis a tarefa de Cioran, que não
da amargura – alterando inclusive trechos do hesitaria subscrever o poema Autorretrato, de Nichita
original, a pedido do autor, quando o visitou Stănescu sobre o precário da humana condição: “Sou
no apartamento da Rue de L’Odéon. Dentre ou- apenas uma mancha de sangue que fala”.
tros estudos de Brum, sublinho O pessimismo e
suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche – tese
de doutorado defendida em Nice e orientada
Marco Lucchesi é poeta, escritor, ensaísta, tradutor e
por Clément Rosset. O que nos diz da forte liga- professor titular de Literatura Comparada na UFRJ. Foi
ção do tradutor com a sagrada família a que de editor das revistas Poesia Sempre, Tempo Brasileiro
e Revista Brasileira. Curador de inúmeras exposições.
algum modo pertence, sem de todo pertencer, o
Traduzido para mais de doze línguas. O vasto conjunto de
inclassificável Cioran. suas obras recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior.
Tiro de Breviário da decomposição o seguin- Atualmente, entre outras atividades, é sócio honorário do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e presidente da
te fragmento: “Uma caverna infinitesimal boce- Academia Brasileira de Letras. Ocupa a cadeira de no. 15.

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CAPA

NIETZSCHE E
A LOUCURA
1

Signo de derrota ou de uma vitória


irônica que se encerrou com uma
saída de cena filosófica? Dotado
de inteligência ímpar e hábil no
disfarce e no mascaramento, o
© MHJ / ISTOCKPHOTO.COM

POR CIPRIAN VĂLCAN mistério da insanidade do filósofo


TRADUÇÃO RODRIGO
INÁCIO R. SÁ MENEZES ainda suscita interesse

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E
m um de seus ensaios mais provocadores2, que parece tão mais interessante quanto há a cada
Roland Jaccard sustenta que sempre se página, na obra de Nietzsche, advertências em re-
retém mais coisas da vida de um filósofo lação às armadilhas que ele mesmo prepara para
do que de sua filosofia. Essa observação parece aqueles que pretendem acumular certezas.
especialmente válida se analisarmos o caso de
Nietzsche, transformado em verdadeiro mito filosó- A loucura como pedra de toque
fico, em uma estrela sempre ao gosto de um públi- A máscara e o disfarce são os modelos preferi-
co ávido de excentricidade, e tudo isso amiúde sem dos de Nietzsche para despistar os seus seguido-
nenhuma relação com o pensamento de Nietzsche. res, levando-os a buscar quase desesperadamente
Talvez não devêssemos dar muita atenção a tais um nível esotérico de sua filosofia, um nível último
fenômenos se eles fossem apenas a expressão de além do qual não restaria mais nada a ser buscado
uma bizarra fixação de entusiastas sem conheci- e ao qual nada poderia ser acrescentado. Por todas
mento de causa, de pessoas que creem amar ou essas razões, a loucura parece o enigma final, a
compreender Nietzsche após assistir a um docu- estranha demissão que deixa as coisas sem resolu-
mentário de quarenta minutos sobre a vida dele, ção e confunde ainda mais as eventuais pistas. Eis
sem sequer se dar o trabalho de ler pelo menos um por que os exegetas não abandonam a luta, mer-
de seus livros. gulhando com ainda mais afinco em todo tipo de
Estamos diante de uma atitude inventariada por texto, esperando retornar à superfície com o misté-
Luc Ferry, segundo o qual o nome de um artista rio resolvido. A explicação da loucura de Nietzsche
amiúde conquista a celebridade enquanto sua obra torna-se então pedra de toque da sua maestria e
permanece completamente desconhecida. 3 Mas a via real para compreender toda a filosofia sob o
o caso de Nietzsche é distinto. Afinal, o interesse signo de Zaratustra e Dioniso.
pela sua vida não é o apanágio de um público de Para além de todas as nuances introduzidas por
amadores prontos para apostar no nome dele, as- sua sensibilidade e inteligência amiúde deslum-
sim como ele apostaria, no jóquei, se visse um ga- brantes, os comentadores de Nietzsche parecem
ranhão interessante: esse interesse também se faz optar por duas grandes soluções: seja a loucura
extremamente presente entre os comentadores da vista, por um lado, como o signo de uma derrota,
sua obra. Eugen Fink é talvez um dos raros exege- a prova da incapacidade em que se encontrava
tas que rejeitam a interpretação do pensamento de Nietzsche de realizar por si mesmo o modelo do su-
Nietzsche a partir dos acontecimentos da sua vida, per-homem, o fracasso em levar a cabo o seu pro-
considerando que, para aceder à filosofia nietzs- jeto de transvaloração de todos os valores, seja ela
chiana, é necessário eliminar todos os elementos considerada, por outro lado, a vitória final, e irôni-
exteriores, atendo-se unicamente à coerência entre ca, de um Nietzsche que escolheu a máscara mais
os diversos motivos presentes em seus textos.4 rara e impenetrável para fazer a sua saída da cena
Mas a posição de Fink é singular, pois a preocu- filosófica. No primeiro caso, tratar-se-ia de uma
pação em transformar a vida de Nietzsche em uma incapacidade humana de ultrapassar os próprios
chave de decifração do significado dos seus escri- limites, castigo que atinge os que se fazem culpá-
tos permanece uma constante entre os seus prin- veis de hybris,5 enquanto que a segunda variante
cipais comentadores. Todos escrutinam os seus introduziria a ideia de um Nietzsche vitorioso e
fragmentos póstumos, espiam as suas cartas, re- todo-poderoso, que, talvez, precisamente por esta
únem os estranhos testemunhos dos seus amigos última jogada imprevisível, pela domesticação da
próximos, fazendo-se verdadeiros detetives parti- loucura, alcança de modo indubitável uma condi-
culares em uma corrida insana em direção ao grand ção supra-humana, tornando-se o maior comedian-
prix: elucidar o mistério de Nietzsche. Experiência te da história da humanidade.

FILOSOFIA Ciência&Vida • 27

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CAPA

Antes de passar em revista as diferentes ex- “A MÁSCARA E O DISFARCE SÃO


plicações propostas a fim de interpretar a loucu-
ra de Nietzsche, deter-nos-emos sobre a reflexão OS MODELOS PREFERIDOS DE
de Nietzsche acerca das máscaras, já que este é NIETZSCHE PARA DESPISTAR
um dos temas mais importantes para compreen-
der a especificidade de sua investigação, além de
OS SEUS SEGUIDORES,
proporcionar, na visão da maioria dos seus co- LEVANDO-OS A BUSCAR QUASE
mentadores, uma chave de acesso privilegiada DESESPERADAMENTE UM
para examinar a trajetória que levará ao colapso
final de Turim. NÍVEL ESOTÉRICO DE SUA
FILOSOFIA, UM NÍVEL ÚLTIMO
Força terrível
Nietzsche parece fascinado pela ideia do per-
ALÉM DO QUAL NÃO RESTARIA
pétuo devir de todas as coisas, pela constatação MAIS NADA A SER BUSCADO E
de que nada está fixado de uma vez por todas,
AO QUAL NADA PODERIA SER
de que nosso mundo é uma ilha de estabilidade
construída artificialmente sobre um fundo caótico ACRESCENTADO”
e incontrolável. Ele crê que as pessoas decidiram
desde sempre sacrificar a verdade para poder as-
segurar-se da sobrevivência, renunciando a enca- Nesse contexto de “cosmetização” da realidade,
rar o abismo do devir e mobiliando o mundo aos a veracidade aparece como uma aposta perigosa
poucos, para que este viesse a dar a impressão de que pode colocar a vida em risco. Os homens
permanência e de uma sólida instalação em meio necessitam crer na verdade, não conhecê-la, de
a um universo pleno de sentido. Para consegui-lo, modo que até a verdade se torna uma máscara:
desencadeou uma produção infinita de ficções que “A falsidade parece tão profunda, tão universal, a
se converteram, pouco a pouco, nos pontos de re- vontade é de tal maneira dirigida contra o autoco-
ferência mais seguros para o indivíduo, a começar nhecer-se diretamente e o chamar-pelos-nomes,
pelos conceitos de causalidade, substância, finali- que a suspeita de que verdade, de que vontade
dade, eu, liberdade, e terminando na ideia de moral de verdade seja algo inteiramente diverso e tam-
ou com a ideia de Deus. bém apenas uma roupagem tem uma grande ve-
Por detrás de toda essa verdadeira maquina- rossimilhança. (A necessidade de crer é o maior
ria, subsiste o intelecto com a sua terrível força ­empecilho à veracidade.)”8
de ilusionar: “Como um meio para a conservação
do indivíduo, o intelecto desenrola suas princi- Filosofia de fachada
pais forças na dissimulação”, observa Nietzsche.6 Por isso, seguindo esta verdadeira tendência
E o intelecto não passa de um instrumento a ontológica, o indivíduo entra no jogo cósmico de
serviço do aspecto conservador da vontade de esconde-esconde e veste a sua máscara. Mas o
potência que se lança na colonização do real, caso que realmente interessa Nietzsche é o do gê-
estabilizando-o, conferindo-lhe uma fixidez gra- nio, o do “espírito profundo”, precisamente porque
nítica, eliminando tudo o que parece perigoso ao descrevê-lo Nietzsche parece fazer o seu próprio
para a capacidade compreensiva do indivíduo: “A autorretrato. A prova da preocupação de Nietzsche
força que quer o erro em toda vida; o erro como por este assunto é a abundância de textos em que
pressuposição do próprio pensar. Antes que seja ele é abordado. Dentre estes, citaremos alguns dos
‘pensado’, há de ser já ‘inventado’; o configurar mais significativos que têm desempenhado um
em casos idênticos, em aparência de igual, é mais papel importante nas deduções detetivescas dos
original do que o conhecer o igual”.7 exegetas de Nietzsche:

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“Um eremita não crê que um filósofo – supondo “O que os outros sabem de nós. – Aquilo que
que todo filósofo tenha sido antes um eremita – al- sabemos de nós mesmos e que temos na memó-
guma vez tenha expresso num livro suas opiniões ria não é tão decisivo para a felicidade de nossa
genuínas e últimas: não se escrevem livros para es- vida como se pensa. Um dia cai sobre nós aqui-
conder precisamente o que se traz dentro de si? – ele lo que outros sabem (acreditam saber) de nós –
duvidará inclusive que um filósofo possa ter opini- e então reconhecemos que isso é mais forte. É
ões ‘verdadeiras e últimas’, e que nele não haja, não mais fácil lidar com sua má consciência do que
tenha de haver, uma caverna ainda mais profunda com sua má reputação”.12
por trás de cada caverna – um mundo mais amplo, “Os profundos. – Indivíduos que pensam pro-
mais rico, mais estranho além da superfície, um fundamente têm a impressão de serem comedian-
abismo atrás de cada chão, cada razão, por baixo tes ao lidar com os outros, pois sempre têm que
de toda ‘fundamentação’. Toda filosofia é uma filo- dissimular uma superfície para serem compreen-
sofia-de-fachada – eis um juízo-de-eremita: ‘Existe didos”.13
algo de arbitrário no fato de ele se deter aqui, de Nietzsche parece hesitar entre duas explicações
olhar para trás e em volta, de não cavar mais fundo possíveis das aparências das máscaras. A primei-
aqui e pôr de lado a pá – há também algo de suspei- ra delas tem a ver com os mecanismos simplifica-
to nisso’. Toda filosofia também esconde uma filo- dores da vontade de potência, que se empenha em
sofia, toda opinião é também um esconderijo, toda reduzir as particularidades praticamente infinitas
palavra também uma máscara”.9 do indivíduo a alguns tipos claros e facilmente
“Um homem cujo pudor é profundo encontra memoráveis. Por esta razão, não se busca a ver-
também seus destinos e sutis decisões em cami- dade das condutas nem sua coerência intrínseca,
nhos que poucos alcançam, e de cuja existência mas antes uma maneira simples de classificá-las.
os mais íntimos e próximos não podem saber: Assim, fatalmente, a despeito da vontade do indiví-
seu perigo mortal se oculta aos olhos deles, e duo e das suas ações, nasce uma espécie de duplo
também sua reconquistada certeza de vida. Esse social que funciona para ele como um substituto
homem oculto, que instintivamente usa a fala exterior, como um golem criado pela imaginação
para calar e guardar, e é incansável em esqui- dos outros. A máscara é a imagem que os outros se
var-se à comunicação, deseja e solicita que uma fazem dele, e ele não pode em hipótese alguma in-
máscara ande em seu lugar, nos corações e nas fluenciar a construção dessa imagem. Ele não pode
mentes dos amigos; e, supondo que não o deseje, senão constatar passivamente a diferença entre
um dia seus olhos se abrirão para o fato de que sua própria autoimagem e a imagem que os outros
no entanto lá está sua máscara – e de que é bom se fazem dele. Há, contudo, situações em que, não
que seja assim. Todo espírito profundo necessita resistindo à pressão exercida pela máscara e pelo
de uma máscara: mais ainda, ao redor de todo conjunto da engrenagem social, o indivíduo cede e
espírito profundo cresce continuamente uma a aparência se torna um ser. O homem se torna o
máscara, graças à interpretação perpetuamente que os outros creem que é.
falsa, ou seja, rasa, de cada palavra, cada passo,
cada sinal de vida que ele dá”.10 Talento de histrião
“Diz-se o que se pensa, só se é ‘verdadeiro’ sob A segunda explicação da gênese das máscaras
condições prévias: a saber, sob a condição de ser desloca a ênfase da coletividade para o papel que o
compreendido (inter pares), e na verdade sob a próprio indivíduo desempenha no processo. Neste
condição de ser compreendido com benevolência caso, o indivíduo superior é aquele que premedita
(mais uma vez, inter pares). Ante o estranho, nós cuidadosamente seus gestos e suas palavras, de tal
nos ocultamos: e quem quer conseguir algo diz o maneira que logra impor aos demais uma imagem
que quer que outros pensem de si, mas não o que de acordo com os seus interesses. A máscara que
pensa (‘O poderoso mente sempre’.)”11 ele constrói está totalmente sob o seu controle, e

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CAPA

a sociedade é habilmente manipulada por esse de Nietzsche de conduzir seus projetos até o fim, e,
ator sutil. Mas todo esse teatro não é um sim- por outro, aqueles que consideram que a loucura
ples capricho de um ser demoníaco, desejoso de foi uma última máscara de Nietzsche, prova de seu
enganar seus semelhantes apenas para provar irônico talento de histrião.
o seu virtuosismo. O que está em jogo é muito
mais importante: é, por um lado, a camuflagem Os muitos olhares
da excelência do gênio, para conjurar a inveja Deleuze enxerga a loucura de Nietzsche como
dos seus contemporâneos, e, por outro lado, a uma paralisia do espírito que, tendo perdido sua
dissimulação dos esforços dramáticos com que mobilidade, se fixa numa única postura: “Depois
se depara um tal espírito lúcido após ter rompi- de 1890, acontece que alguns amigos (Overbeck,
do o escudo de ficções do mundo e alcançado Gast) pensam que a demência, para ele, é uma
um estado no qual vem a intuir o estatuto todo- última máscara. Ele escrevera: ‘E, por vezes, a
-poderoso do caos. A fim de poder continuar própria loucura é uma máscara que esconde um
a viver, as pessoas comuns não devem nunca saber fatal e demasiado seguro’. De facto, ela não
suspeitar do abismo que lhes espreita, ou da o é, mas apenas porque indica o momento em que
ausência de verdade de suas crenças. O gênio as máscaras, cessando de comunicar e de deslo-
é um herói do conhecimento, pronto para ser car-se, se confundem uma rigidez de morte”.16 É
devorado por sua vontade de veracidade, de co- precisamente a inabilidade de jogar com as suas
nhecer uma verdade que ele não poderá jamais diversas máscaras o que faz com que a loucura se
compartilhar com os demais para não compro- instale, encerrando, portanto, a obra: “De tal modo
meter a sua sobrevivência. que Nietzsche teve a capacidade de deslocar as
Embora Nietzsche não se resolva entre es- perspectivas, da saúde à doença e inversamente,
sas duas interpretações, ambas bem represen- fruiu, por mais doente que estivesse, de uma ‘gran-
tadas nos seus textos, assim como de resto de saúde’ que tornava a obra possível. Mas quando
nunca o faz, provocando a irritação daqueles lhe faltou esta capacidade, quando as máscaras
que creem tratar-se da incoerência de um es- se confundiram com a de um palhaço ou a de um
pírito contraditório, capaz de dizer ao mesmo bobo, sob a acção de um processo orgânico ou ou-
tempo duas coisas opostas sobre o mesmo as- tro, a doença confundiu-se, ela mesma, com o fim
sunto, os comentadores privilegiam a segunda da obra”.17 O que para os outros pode ser que re-
explicação por verem nela uma descrição do presente a normalidade, a estabilidade de um eu
comportamento do próprio Nietzsche.14 perfeitamente delimitado, significa para Nietzsche
Convém avançar, enfim, às interpretações precisamente a derrota, o colapso na enfermidade.
propostas para a loucura de Nietzsche. Nós Jean-Luc Marion propõe outra leitura da loucura
apenas nos deteremos nas explicações que de Nietzsche. Ele pensa que a sua obra, longe de
buscam dar uma significação filosófica a este ser a expressão radical de um ateísmo triunfan-
epílogo da obra propriamente dita, desconsi- te que teria como emblema a célebre frase “Deus
derando as hipóteses puramente fisiológicas está morto”, representa antes uma busca frenéti-
emitidas por médicos e psiquiatras, tanto mais ca da divindade. Segundo o filósofo francês, essa
quanto elas não se têm mostrado convincentes busca está fadada ao fracasso porque Nietzsche
e tampouco sido aceitas nos círculos dos es- permanece preso a uma compreensão idólatra do
pecialistas.15 Conforme anteriormente mencio- divino, que ele é incapaz de ultrapassar através da
nado, agruparemos as opiniões expressadas a sua obra. Todavia, uma vez que os fragmentos que
este respeito de acordo com o modo pelo qual Marion considera marcados pela idolatria, perten-
é avaliada a sua loucura final. Por um lado, centes a Anticristo e a Vontade de Potência, não
teremos o grupo daqueles que consideram a fazem parte dos últimos escritos de Nietzsche, ele
loucura uma derrota, um signo da inabilidade levanta a hipótese de que sua loucura seria o signo

30 • FILOSOFIA Ciência&Vida

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de uma renúncia à idolatria: “Nietzsche ultra- de modo categórico a possibilidade de trans-
passou a relação idólatra com o divino, sendo formar a loucura numa última máscara, mas
que um cara a cara final com algo de vivente no acredita que essa triste camuflagem seria uma
divino o precipitara na última transgressão, a prova da derrocada filosófica de Nietzsche.
entrevação”.18 Nietzsche se viu forçado a deter-
-se diante de um limite que não podia ultrapas-
sar. E quando finalmente o ultrapassa, já não é
Nietzsche, mas um louco, talvez feliz. A derrota “O GÊNIO É UM HERÓI DO
de Nietzsche consiste na incapacidade de assi- CONHECIMENTO, PRONTO PARA SER
milar a verdadeira mensagem do cristianismo.
Em sua análise do caso Nietzsche, Ronald
DEVORADO POR SUA VONTADE DE
Hayman insiste sobre as muitas vozes e estilos VERACIDADE, DE CONHECER UMA
que coexistem no conjunto de sua obra, e que VERDADE QUE ELE NÃO PODERÁ
representariam uma imagem razoavelmente
precisa da divisão e da fragilidade do seu eu. JAMAIS COMPARTILHAR COM OS
Segundo ele, Nietzsche teria colapsado muito DEMAIS PARA NÃO COMPROMETER
antes, sem poder externalizar tais tendências,
arrasado pelas tensões interiores: “Depois de
A SUA SOBREVIVÊNCIA”
concluir Assim falava Zaratustra em 1885, com
quarenta anos, Nietzsche nunca mais manteve
um papel por tanto tempo. Pode-se dizer que, ao Ernst Bertram faz uma relação entre aqueles
adotar tantas vozes e estilos, ele estava flertando que falam de uma derrocada final de Nietzsche
com a loucura, mas pode-se igualmente susten- e aqueles que permanecem convencidos de sua
tar que sem essas vozes ele não poderia ter man- vitória definitiva. Ele propõe uma solução in-
tido a loucura à distância durante tanto tempo”.19 termediária, que pode ser considerada, depen-
dendo do ponto de vista assumido, tanto uma
Loucura como simulação vitória quanto uma derrota. A sua análise se
A loucura seria o doloroso sinal do fracasso baseia no conflito virulento entre a tendência
de Nietzsche em transvalorar todos os valores lógica e a tendência mística que se afrontam no
e rejeitar toda religião organizada: “Com suas espírito de Nietzsche. A loucura representaria o
dores de cabeça, perturbação visual, vômitos sacrifício das faculdades lógicas e a afirmação
e loucura, ele estava sobrevivendo, mais dire- da sua experiência mística: “A vida e o fim de
tamente do que qualquer outro pensador, às Nietzsche encarnam apenas uma forma desta
consequências de afastar-se da religião orga- elevação ao domínio mítico, e ele não realiza
nizada. A relevância de sua experiência seria senão superficialmente, com sua autoliberação
a maior das causas de seu colapso, se elas não exemplar, uma possibilidade trágica do seu pró-
fossem orgânicas. Há, frequentemente, um ele- prio século. […] A realização ativa de Nietzsche
mento de escolha nos colapsos e um elemento e o seu valente autossacrifício – o sacrifício do
histriônico na loucura, embora pareça imprová- puro lógico que havia nele, o mais espantoso
vel que Nietzsche estivesse apenas fingindo ou sacrificium do intelecto desde Pascal – represen-
que tivesse chegado a tal ponto só para fugir da tam a sua determinada superação deste mesmo
humilhação de ter fracassado em transvalorar fanatismo cético mediante um grande salto em-
todos os valores. Ele antecipou seu próprio des- pedocliano para além da lógica”.21
tino num apontamento sobre ‘o último filósofo’. A teoria da loucura como simulação encon-
Sua maneira de consentir ao esquecimento foi tra sua origem nas impressões de dois bons
entregar-se ao colapso”. 20 Hayman não rejeita amigos de Nietzsche, Gast e Overbeck, que o

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CAPA

visitaram no sanatório de Iena. Suas opiniões posta a considerar favoravelmente a loucura de


a este propósito podem ser retraçadas através Nietzsche como máscara, como a forma ulterior
do livro de E. F. Podach sobre o colapso de da sua ironia contra o mundo.
Nietzsche. “O ‘lado humorístico’ de Nietzsche, Num dos mais belos livros consagrados a
mas sobretudo o seu comportamento extrema- Nietzsche, Pierre Klossowski parte da constata-
mente cortês na instituição, suscita em Gast a ção de que a incoerência apontada por alguns
mesma suspeição que a de Bettina von Arnim nos escritos tardios de Nietzsche em Turim pode
em relação a Hölderlin, cujo destino, de resto, ser encontrada já em seus primeiros textos e
se parece com o de Nietzsche. […] E então Gast que a atração exercida pelo caos sobre ele teria
se questiona se seria benéfico para Nietzsche estado sempre presente, mesmo na ausência da
trazê-lo de volta à realidade. […] Ele alega ter loucura, muito antes de manifestar-se de modo
observado Nietzsche em determinados esta- tão radical como nos últimos anos. A loucu-
dos que lhe deram a impressão terrível de que ra não é senão o deleite de Nietzsche ante sua
Nietzsche fingia estar louco, como se estivesse própria comédia: “Nietzsche parece não perder
feliz por ter chegado aonde chegou! Também nunca a noção de sua própria condição: ele si-
a Overbeck a doença de Nietzsche parecia por mula Dionísio ou o Crucificado e se deleita com
vezes problemática. […] Eu não pude me livrar, tamanha enormidade. É nesse deleite que reside
nenhum momento sequer, da terrível ideia de a loucura: ninguém está autorizado a julgar até
que a sua doença era dissimulada.”22 que ponto essa simulação é perfeita, absoluta.
Seu critério reside na intensidade que ele expe-
rimenta ao simular até o êxtase. […] O diretor
de cena permanece sendo a consciência nietzs-
“A PROPÓSITO DA EUFORIA DE NIETZSCHE,
chiana, mas não mais o eu [moi] nietzschiano, não
QUE ELE SENTE NECESSIDADE DE mais o eu [je] que assina Nietzsche.”23
COMUNICAR-SE IRONICAMENTE COM Klossowski insiste, a propósito da euforia de
Nietzsche, que ele sente necessidade de comu-
SEUS AMIGOS PRÓXIMOS MEDIANTE nicar-se ironicamente com seus amigos próxi-
O HISTRIONISMO PURO E SIMPLES, mos mediante o histrionismo puro e simples,
Nietzsche tenta sobreviver ao naufrágio de sua
NIETZSCHE TENTA SOBREVIVER AO identidade enquanto Nietzsche lúcido. Mas é
NAUFRÁGIO DE SUA IDENTIDADE apenas pela lembrança da personalidade de
ENQUANTO NIETZSCHE LÚCIDO” seus correspondentes que o movimento eufó-
rico desse naufrágio lhe é sensível: a euforia é
demasiado violenta para que ele não seja impe-
lido a comunicá-la, por este mesmo movimen-
Escritos tardios to, a aqueles que conheceram este que soçobra;
A partir dessas impressões diretas, que não demasiado forte essa liberação em relação ao
se fazem acompanhar de nenhuma explicação seu eu lúcido para que não se torne regozijo
ulterior, mas apenas do estupor experimentado com a própria derrisão. 24 Por trás de suas más-
pelos dois amigos hesitantes em acreditar nos caras impenetráveis, permanece um Nietzsche
médicos, que, de sua parte, estão convencidos livre de toda censura, um Nietzsche que ri.
da enfermidade do paciente, e inclinados a es-
cutar antes sua própria intuição sussurrando- Linguagem metafísica
-lhes que Nietzsche está a rir de todo mundo Michel Haar aborda a loucura de Nietzsche
por detrás desse último e bem-sucedido disfar- a partir da análise das consequências, da ideia
ce, surge toda uma corrente interpretativa dis- do eterno retorno. Segundo ele, a afirmação do

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Eterno Retorno do Mesmo (ewige Wiederkunft a dizer a profundeza do ser. Assim, a destruição
des Gleichen) destrói toda identidade parcial da linguagem metafísica seria, para Nietzsche,
mediante o apagamento da distinção entre o uma experimentação levada ao limite da auto-
eu e o mundo. Toda identidade se vê reduzida à destruição do destruidor enquanto locutor”. 26
máscara intercambiável relacionada a um jogo Nietzsche consegue romper as barreiras da lin-
universal que não é senão a invenção infinita de guagem, mas apenas para descobrir – avant la
máscaras e sua perpétua alternância.25 A aboli- lettre 27 – que, em última instância, o que não
ção das antíteses de que a linguagem metafísica pode ser dito deve ser silenciado. E ele silencia
se nutre faz com que a linguagem mesma explo- para sempre, guardando o mistério.
da, de onde, portanto, o silêncio de Nietzsche: Certamente, todas as estórias contadas sobre
“A partir do momento em que o eu de a loucura de Nietzsche permanecem, forçosa-
Nietzsche coincide com a totalidade da história, mente, inconclusas. São tentativas de mergulhar
ele se vê privado de expressão oral e escrita. nas profundezas de sua alma para recuperar os
Como Dioniso, que fora sua última ‘identidade’, fragmentos de verdade que possam lançar mais
o eu de Nietzsche é dilacerado, esparramado, e melhores luzes à sua filosofia. Interessa-nos
segundo a perspectiva da totalidade dispersa menos o valor delas no que diz respeito à história
que ele encarnará doravante. O mutismo fi- da exegese nietzschiana, e mais especialmente
nal da loucura seria, como ele o escreve pou- as imagens que nos fornecem de Nietzsche, já
co antes de deixar de escrever para sempre, que a única certeza que nos resta é que ele teve
‘a máscara que esconde um conhecimento fa- êxito no seu plano. A história da filosofia já não
tal e demasiado seguro’, mas que tipo de co- tem que lidar com um único Nietzsche, mas com
nhecimento? O conhecimento, talvez, de que incontáveis máscaras construídas pelos seus
a linguagem não pode romper o princípio de comentadores. Nietzsche se foi; seus sósias, em
identidade sem que ela mesma sofra uma rup- contrapartida, estão presentes. Nietzsche pode
tura, não pode a ele submeter-se sem renunciar dar-se por satisfeito.

Sobre o autor: Nascido em Arad


(Romênia), em 1973, Ciprian Vălcan REFERÊNCIAS HAYMAN, Ronald. Moraes. Rio de Janeiro:
estudou Filosofia na Universidade de Nietzsche. Trad. de Contraponto, 2011.
Timişoara, cursou a Escola Normal BERTRAM, Ernst. Scarlett Marton. São ______. Além do bem
Superior de Paris e obteve Mestrado em Nietzsche: Attempt At Paulo: UNESP, 2000. e do mal. Trad. Paulo
Filosofia pela Universidade de Paris IV- A Mythology. Transl. JACCARD, Roland. La César de Souza. São
Sorbonne, também em Paris. É doutor em by Robert E. Norton. tentation nihiliste. Paris: Paulo: Companhia das
Filosofia pela Universidade Babeş-Bolyai Urbana/Chicago: Presses Universitaires Letras, 1992.
de Cluj-Napoca (Romênia), doutor em de France, 1991. ______. Humano,
Universityof Illinois
Filologia pela Universidade de Timişoara KLOSSOWSKI, Pierre. demasiado humano, vol.
Press, 2009.
e doutor em História Cultural pela Escola Nietzsche et le cercle II. Trad. de Paulo César
DELEUZE, Gilles.
Prática de Altos Estudos de Paris. É autor vicieux. Paris: Mercure de Souza. São Paulo:
Nietzsche. Trad. de
de 15 livros, além de incontáveis estudos, de France, 1969. Companhia das Letras,
Alberto Campos. MARION, Jean-Luc. 2008.
ensaios e entrevistas publicados em Lisboa:Edições 70, 2007.
romeno, húngaro, sérvio, tcheco, polonês, L’idole et la distance. ______. Sobre verdade
FERRY, Luc. L’homme- Paris: Grasset, 1989. e mentira no sentido
alemão, francês, inglês, espanhol, italiano
Dieu ou le sens de la NIETZSCHE, Friedrich, extramoral. Trad. de
e português.
vie. Paris: Grasset A gaia ciência. Trad. de Fernando de Moraes
Sobre o tradutor: Rodrigo Inácio Ribeiro &Fasquelle, 1996. Paulo César de Souza. Barros. São Paulo:
Sá Menezes é bacharel em Filosofia pela FINK, Eugen, São Paulo: Companhia Hedra, 2008.
Pontifícia Universidade Católica de São Nietzsche’s philosophy. das Letras, 2001. PODACH, E.
Paulo, mestre em Ciências da Religião e London/New York: ______. A vontade F. Nietzsches
doutor em Filosofia também pela PUC-SP. Continuum, 2003. de poder. Trad. de Zusammenbruch.
Sua pesquisa acadêmica se concentra HAAR, Michel. Nietzsche Marcos Sinésio Heidelberg: Niels
na obra do filósofo romeno de expressão et la métaphysique. Pereira Fernandes e Kampmann Verlag,
francesa Emil Cioran (1911-1995). Paris: Gallimard, 1993. Francisco José Dias de 1930.

FILOSOFIA Ciência&Vida • 33

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CAPA

N O TA S Paulo: Companhia das Letras, Attempt At A Mythology. Transl. 24 “Par le biais de l’histrionisme
2008, p. 110. by Robert E. Norton. Urbana/ pur et simple, Nietzsche tente
1 Nietzsche şi nebunia, no 14 “Ocultar-se tornou-se para Chicago: University of Illinois de surnager au naufrage de son
original romeno (N. do T.). Nietzsche uma paixão. Ele Press, 2009, p. 306. identité en tant que Nietzsche
2 JACCARD, Roland, La tinha um desejo insólito pelo 22 “Die ,humoristische Seite’, lucide.Mais ce n’est qu’au
tentation nihiliste. Paris: logro, pela masquerade e pela aber vor allem das überaus souvenir de la personnalité
Presses Universitaires de bufonaria. Ele assume diversos höfliche Gebaren Nietzsches de ses correspondants que
France, 1991. ‘papéis’ tão disfarçadores auch in der Anstalt läßt in Gast le mouvement euphorique de
quanto relevadores: talvez eine Vermutung aufkommen, ce naufrage lui est sensible:
3 FERRY, Luc, L’homme-Dieu
nenhum outro filósofo oculta die Bettina von Arnim seinerzeit l’euphorie est trop violente
ou le sens de la vie. Paris:
a sua filosofia por detrás de dem Schicksalsgenossen pour qu’il ne soit poussé par
Grasset&Fasquelle, 1996, p.
tanta sofística. [Concealing Nietzsches, Hölderlin, ce mouvement même à la
208.
himself became a passion for gegenüber äußerte. […] Und communiquer à ceux qui ont
4 FINK, Eugen, Nietzsche’s Nietzsche. He has an uncanny connu celui quisombre; trop
so meint auchjetzt Gast, es sei
Philosophy. Tansl. By Goetz desire for deceit, masquerade forte cette libération à l’égard
sehr fraglich, welchen Gefallen
Richter. London/New York: and the pose of thejester. He de son moi lucide pour qu’elle
man Nietzsche tue, wenn man
Continuum, 2003, p. 11-13. assumes as many disguising ne devienne jouissance même
ihn wieder zum Leben erwecke.
5 Do grego antigo, as revealing ‘roles’: perhaps […] Er gibt an, Nietzsche in de sa propre dérision.” Ibid., p.
“temeridade”, “desmesura”, no other philosopher conceals Zuständen gesehen zu haben, 340.
“desmedida”: traço his philosophy behind so much bei denen es ihm - schauerlich! 25 HAAR, Michel, Nietzsche
fundamental dos personagens sophistry.]” FINK, Eugen, - vorkam, als fingiere Nietzsche et la métaphysique. Paris:
trágicos, resultando em castigo Nietzsche’s philosophy, p. 3. den, Wahnsinn, als sei er Gallimard, 1993, p. 63.
por parte dos deuses. Um 15 Para uma revisão destas froh, daß er so geendet habe! 26 “Dès que le moi de Nietzsche
exemplo é a estória de do teorias, cf. E. F. Podach, […] Zeitweilig war auch für coïncide avec la totalité de
titã Prometeu, na tragédia de Nietzsches Zusammenbruch. Overbeck Nietzsches Krankheit l’histoire, il se prive de la parole
Ésquilo, que rouba o fogo dos Heidelberg: Niels Kampmann durchaus problematisch: […] et de l’écriture. Comme Dionysos,
deuses para presenteá-lo à Verlag, 1930. Es ist bisweilen fast zeitweilig qui est sa dernière ‘identité’, le
humanidade. Como punição, 16 DELEUZE, Gilles, Nietzsche. schwankend geworden, sofern moi de Nietzsche est déchiré,
Zeus o acorrenta a um rochedo, Trad. de Alberto Campos. ich, und zwar in verschiedenen éparpillé, selon la perspective
onde passa a eternidade tendo Lisboa: Edições 70, 2007, p. 12. von mir beobachteten Perioden de la totalité dispersée qu’il
o seu fígado devorado por der geistigen Erkrankung incarne désormais. Le mutisme
uma águia, de onde o título da 17 Ibid., p. 16.
Nietzsches, mich, wenigstens final de la folie serait, comme
tragédia de Ésquilo: Prometeu 18 “Nietzsche a transgressé für Augenblicke, der il l’écrit peu avant de cesser
acorrentado (N. do T.). le rapport idolâtrique au divin, grauenvollen Vorstellung nicht d’écrire, ‘le masque qui cache
6 NIETZSCHE, Friedrich, Sobre puisqu’un face à face avec habe erwehren können, daß sie un savoir fatal et trop sûr’,
verdade e mentira no sentido finalement quelque chose de simuliert sei.” PODACH, E. F., mais de quel savoir? Du savoir
vivant dans le divin le précipita Nietzsches Zusammenbruch, p. peut-être que le langage ne peut
extramoral, livro I. Trad. de
dans l’ultime transgression, 136-137. pas briser le principe d’identité
Fernando de Moraes Barros.
l’enténèbrement.” MARION,
São Paulo: Hedra, 2008, p. 27. 23 “Jamais Nietzsche ne sans se briser lui-même, ne
Jean-Luc, L’idole et la distance.
7 IDEM, A vontade de poder, semble perdre la notion de peut pas s’y soumettre sans
Paris: Grasset, 1989, p. 104.
livro III, §544. Trad. de Marcos sa condition propre: il simule renoncer à dire le fond de
19 HAYMAN, Ronald, Nietzsche. Dionysos ou le Crucifié et se l’être. Ainsi la destruction
Sinésio Pereira Fernandes e
Trad. de Scarlett Marton. São délecte de cette énormité. du langage métaphysique
Francisco José Dias de Moraes.
Paulo: UNESP, 2000, p. 33. C’est dans cette délectation serait, chez Nietzsche, une
Rio de Janeiro: Contraponto,
2011, p. 283. 20 Ibid., p. 52. que consiste la folie: nul ne expérimentation poussée jusqu’à
21 “Nietzsche’s life and exit peut juger jusqu’à quel degré l’autodestruction du destructeur
8 IDEM, Ibid., livro II, § 377, p. en tant que locuteur.” Ibid., p.
embody only one particular cette simulation est parfaite,
202. 63-64.
form of this ascendance into absolue; son critère est dans
9 IDEM, Além do bem e do mal, the mythical realm, he fulfills l’intensité qu’il éprouve à 27 Literalmente, “antes da
§ 289. Trad. Paulo César de only superficially a tragic simuler, jusqu’à l’extase. […] letra”: expressão idiomática
Souza. São Paulo: Companhia possibility of his century with Comment peut-il sciemment francesa que sinigica algo
das Letras, 1992, p. 193. his exemplary self-liberation. se donner ainsi en spectacle, que existe ou acontece antes
10 IDEM, Ibid., § 40, p. 45-46. […] Nietzsche’s active si ce n’est parce qu’il sait que mesmo de ser nomeado e
11 IDEM, A vontade de poder, achievement and courageous nul ne croira ce qu’il déclare reconhecido pelo seu nome.
livro II, § 378, p. 202. self-sacrifice—the sacrifice of ? […] Le metteur en scène Trata-se, aqui, de uma
the pure logician in him, the demeure bien la conscience referência implícita à célebre
12 IDEM, A gaia ciência, §52. most awe-inspiring sacrificium nietzschéenne mais non plus afirmação do filósofo austríaco
Trad. de Paulo César de Souza. of the intellect since Pascal—is le moi nietzschéen, non plus Ludwig Wittgenstein (1889-
São Paulo: Companhia das his determined overcoming of le je, soussigné Nietzsche.” 1951): “O que não pode ser
Letras, 2001, p. 91. this very skeptical fanaticism KLOSSOWSKI, Pierre, dito deve ser silenciado”, que
13 IDEM, Humano, demasiado through a great Empedoclean Nietzsche et le cercle vicieux. Nietzsche teria antecipado,
humano, vol. II, § 232. Trad. leap beyond the logical.” Paris: Mercure de France, muito embora não com estes
de Paulo César de Souza. São BERTRAM, Ernst, Nietzsche: 1969, p. 334-335. exatos termos.

34 • FILOSOFIA Ciência&Vida

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CADERNO ESPECIAL 04

APRENDER
& ENSINAR

As perguntas que
o filósofo francês
MERLEAU-PONTY
quis responder em
seus dois primeiros
trabalhos

DA PERCEPÇÃO

FILOSOFIA Ciência&Vida • 1

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Primazia
Aprender
& Ensinar

DO CORPO PRÓPRIO
Uma visão geral acerca dos dois primeiros
trabalhos de Merleau-Ponty, focalizando
a cumplicidade existente entre eles e o
cenário cartesiano no qual se instalam, faz
entrever as interrogações que sumarizam
a dupla proposta de Merleau-Ponty
POR DANILO SARETTA VERÍSSIMO

E
ntendemos que a discussão do problema da função simbólica nos pri-
meiros trabalhos de Merleau-Ponty exige um exame da cumplicidade
estratégica, do ponto de vista filosófico, entre A estrutura do comporta-
mento e a Fenomenologia da percepção. Exige, ainda, que estejamos atentos para
aquilo que consideramos um dos pilares do desenvolvimento teórico operado
pelo autor nessas duas obras, a saber, a exploração e a articulação original dos
avanços que vinham sendo apresentados na filosofia da percepção, na fisiolo-
gia e na patologia da percepção, bem como na psicologia da percepção alemãs,
que se encontravam em um momento de efervescência no início do século XX.
O estudo da filosofia e da descrição científica da percepção “modernas” vi-
sava a ultrapassagem das “alternativas clássicas”, a ultrapassagem do idealis-
mo filosófico sem a adesão ao realismo científico ingênuo (Merleau-Ponty, 1997,
p. 66,), a negação de toda manifestação de pensamento objetivo – tanto aquele
que por meio de atos de significação estabelece um mundo sem fissuras quanto
aquele que pressupõe um mundo cuja constituição pode ser retomada pela aná-
lise do sistema de relações objetivas que o sustenta, incluindo-se, nesse mundo,
o organismo humano, o que, supostamente, nos levaria à possibilidade de uma
“ciência objetiva da subjetividade”. Na perspectiva merleau-pontiana, a crítica
dessas alternativas clássicas nos encaminha, diretamente, ao debate com o car-
tesianismo expresso na filosofia e nas ciências.

2 • FILOSOFIA Ciência&Vida

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Excerto da obra A primazia do corpo
próprio – Posição e crítica da função
simbólica nos primeiros trabalhos de
Merleau-Ponty, da Ed. Unesp.

“Cenário cartesiano”
Para Merleau-Ponty, o “gesto cartesiano” fundador
é a assunção das contradições geradas pela dificul-
dade de articular a união do espírito e do corpo tal
como ela aparece, com evidência, no que Descartes
chama de nossa “inclinação natural”, com o privilégio
da substância pensante, do espírito, na concepção de
toda forma de consciência. Tal dificuldade é a espinha
dorsal do pensamento ocidental e se resume à tarefa
de dar conta da existência paradoxal do corpo huma-
no. A intenção filosófica de Merleau-Ponty sustenta-
-se, pois, na interrogação da herança cartesiana e no
debate de toda sorte de dualismos antropológicos que
se desenvolveram a partir dela (cf. Saint Aubert, 2005;
Bimbenet, 2004; Furlan, 2001a). Isso fica claro no tre-
cho de uma entrevista cedida pelo filósofo em 1959:

– Georges Charbonier: Qual é o sentido de suas


pesquisas em filosofia pura? – Merleau-Ponty:
No fundo, o ponto de partida dessas pesquisas
foi bastante tradicional. Recordo-me bem de que,
desde o fim dos meus estudos, encontrava-me
vinculado às relações da alma e do corpo como
problema que me interessava especialmente […].
Continuei nesse sentido durante uma quinzena de
anos, e é o resultado desse esforço que surgiu sob
a forma de dois livros […] que são, ambos, consa-
grados, mais ou menos, ao problema das relações
da alma e do corpo. No fundo, veja, o que sempre
me chocou, durante meus estudos, é o fato de que
nossos mestres, no conjunto, eram cartesianos
– um homem como Léon Brunschvicg era carte-
siano, ele admitia, pois, entre o espírito e o corpo
uma distinção categórica, que era a distinção da-
quilo que é consciência, e daquilo que é coisa, a
existência como coisa e a existência como cons-
ciência sendo opostas uma à outra […]. Quando
o espírito reflete sobre sua verdadeira natureza,
ele se apercebe apenas como pura consciência,
pensada no sentido cartesiano, e é ele mesmo que
é, novamente, o espectador da relação entre o es-
pírito e o corpo. Ele a vê, ele a pensa, ele a cons-

FILOSOFIA Ciência&Vida • 3

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Aprender
& Ensinar

titui, isso faz parte do universo corpo, é a alma que vê, e não o olho
do pensamento, mas não se (Descartes, 1953c, p. 224).
trata de uma ligação do pen- Nesse contexto, se, por um lado,
samento com outra coisa que Descartes (1953a, p. 328; 1996,
ele mesmo. E é essa imanência p. 330) admite que há certas coisas
filosófica do pensamento a ele que a “luz natural” não é capaz de
mesmo que sempre me cho- nos ensinar sem a ajuda do corpo,
cou, que sempre me pareceu aquilo que nos causa prazer e aquilo
insuficiente, de modo que, des- que nos causa dor, por exemplo, o fi-
de o tempo de estudante, eu lósofo, por outro, afirma: “Pois é, ao
me propunha a trabalhar sobre que me parece, somente ao espírito, e
esse problema, das relações “UM CORPO NÃO PODE não ao composto de espírito e corpo,
do espírito com aquilo que não que compete conhecer a verdade das
OCUPAR O MESMO
é ele: como torná-las compre- coisas”. A tradição cartesiana impli-
ensíveis, como torná-las pen- ESPAÇO OCUPADO POR ca, portanto, o afastamento do su-
sáveis. (Merleau-Ponty apud UM OUTRO CORPO, jeito em relação ao objeto. Segundo
Saint Aubert, 2005, p. 17-8) PROPRIEDADE ESSA Merleau-Ponty, opera-se a purifica-
ção da substância extensa, dora-
Descartes QUE NÃO PERTENCE À vante compreendida como soma de
Voltemo-nos para Descartes. SUBSTÂNCIA PENSANTE partes exteriores umas às outras, aí
Em vários textos, o filósofo seiscen- (1953B, P. 1160)” se incluindo o corpo, e a purificação
tista insiste sobre a distinção entre da substância pensante, da alma,
a alma e o corpo. Em Meditações, “ser inteiramente presente a si mes-
no exercício da dúvida hiperbólica, mo, sem distância”.
após refletir sobre os atributos do
corpo, nenhum deles indubitável, e os da alma, vá- Aventura intelectual
rios deles ligados às demandas corporais, somente A clareza é encontrada, de um lado, em nós e, de
o pensamento aparece a Descartes (1953a) como outro, fora de nós. Assim, ou se existe como coisa,
característica diferencial do espírito, como aquilo e a análise de suas partes revela tudo o que ela
que não pode ser destacado do Eu. Como qualquer pode ser, ou se existe como consciência, como po-
objeto que encontramos ao nosso redor, o corpo é der puro de entendimento de si mesmo e dos obje-
divisível, ao passo que o espírito configura uma tos exteriores (PhP, p. 231-2). Entretanto, aos olhos
substância pensante e una, e à qual não se aplica o de Merleau-Ponty, as reflexões mais “célebres” de
princípio da divisibilidade. Descartes, e que se encontram em algumas pou-
Podemos perder partes do nosso corpo sem que cas passagens de seus textos e cartas, são aquelas
isso incorra em perda da substância pensante. em que o filósofo seiscentista investiga a união da
Ademais, a substância extensa não admite a sobre- alma e do corpo, vislumbra uma zona abissal do
posição de extensões. Um corpo não pode ocupar Ser, entra em contradição e, então, decide fechá-
o mesmo espaço ocupado por um outro corpo, pro- -la ao pensamento filosófico. Voltemo-nos a um
priedade essa que não pertence à substância pen- trecho de Meditações indicado por Saint Aubert
sante (1953b, p. 1160). Descartes afirma, ainda, que (2005) como adágio da “aventura intelectual do
as impressões que recebemos do nosso corpo nós cartesianismo”.
não as recebemos dele todo, mas do cérebro, órgão
responsável pela mediação entre nossa substância A natureza me ensina, também, por esses
material e nossa substância pensante. É o espírito sentimentos de dor, fome, sede etc., que não
que sente por meio das impressões que recebe do somente estou alojado em meu corpo, como

4 • FILOSOFIA Ciência&Vida

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um piloto em seu navio, mas, que, além disso, A alma, vista do corpo, aparece como se
lhe estou conjugado muito estritamente e de tal aplicando a esse corpo e dotada de uma exten-
modo confundido e misturado, que componho são por contágio. Mas não se trata senão da
com ele um único todo. Pois, se assim não fos- alma dos outros, e não da alma como alma. De
se, quando meu corpo é ferido não sentiria por fora, encontra-se nela a superfície de extensão;
isso dor alguma, eu que não sou senão uma de dentro, não se pode alcançá-la a não ser por
coisa pensante, e apenas perceberia este feri- reflexão. (Merleau-Ponty, 2002a, p. 15)
mento pelo entendimento, como o piloto perce-
be pela vista se algo se rompe em seu navio; e Entendimento puro
quando meu corpo tem necessidade de beber O fato é que a alma não é concebida por Descartes
ou de comer, simplesmente perceberia isto senão por meio do entendimento puro, e os corpos
mesmo, sem disto ser advertido por sentimen- – a extensão, a figura e o movimento – concebidos
tos confusos de fome e de sede. Pois, com efei- a partir do entendimento e da imaginação, tal qual
to, todos esses sentimentos de fome, de sede, exercida nos estudos matemáticos, enquanto aquilo
de dor etc., nada são exceto maneiras confusas que se refere à união da alma e do corpo encontra-se
de pensar que provêm e dependem da união e proscrito do terreno do pensamento. Recorremos, no-
como que da mistura entre o espírito e o corpo. vamente, às palavras de Descartes (1953b, p. 1158):
(Descartes, 1953a, p. 326; 1996, p. 328-9)
[…] as coisas que pertencem à união da
Extensão e reflexão alma e do corpo não são conhecidas senão
Segundo Saint Aubert (2005, p. 25), essa pas- obscuramente pelo entendimento isolado, nem
sagem contém, na perspectiva da filosofia de mesmo pelo entendimento auxiliado pela ima-
Merleau-Ponty, o melhor e o pior do cartesianismo: ginação; mas elas são conhecidas claramente
“O melhor, porque, nela, Descartes cruza, no es- pelos sentidos. De onde o fato que aqueles que
paço de uma meditação, a dimensão autêntica da não filosofam jamais, e que não se servem que
carne e da sua fenomenalidade de interferência dos seus sentidos, não duvidam que a alma
[empiétement]. O pior, porque, tendo encontrado jus- mova o corpo, e que o corpo aja sobre a alma,
tamente a posição do mais precioso dos tesouros, mas consideram um e outro como uma úni-
ele não encontra os meios de reerguê- ca coisa, ou seja, eles concebem
-lo e enterra-o definitivamente”. a sua união, pois conceber a
Numa carta à princesa Élisabeth união que há entre duas coisas,
de Boêmia (1618-1680), datada em é concebê-las como uma só. […]
28 de junho de 1643, Descartes (1953b) é apenas utilizando-se da vida e
comenta que a atribuição de matéria e das conversações ordinárias, e
extensão à alma é mais fácil que con- se abstendo de meditar e de es-
cebê-la capaz de mover o corpo sem tudar sobre as coisas as quais
possuir matéria e que essa atribuição se exerce a imaginação, que se
de matéria à alma nada mais é do que aprende a conceber a união da
concebê-la unida ao corpo. Já numa alma e do corpo.
carta a Morus (1614-1687), de 15 de
abril de 1649, o filósofo retoma o tema Descartes prescreve, portanto, uma
da atribuição de materialidade à alma, interdição à reflexão filosófica no to-
concebendo-a como uma “extensão cante à nossa experiência. A reflexão,
de potência”. A alma não seria corporal no mesmo se exercida no domínio da união entre a alma e
sentido da substância extensa. Mas qual é a coe- o corpo, domínio claramente acessado em nossa
rência dessa noção, pergunta Merleau-Ponty? vida comum sem o auxílio da filosofia, não encon-

FILOSOFIA Ciência&Vida • 5

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Aprender
& Ensinar

trará senão confusão, não encontrará senão pen-


samentos obscuros e sem validade no campo do
conhecimento que se pretenda verdadeiro e cien-
tífico. O exercício do entendimento puro impede a
plena dedicação à imaginação e aos sentidos, e o
pensamento que se vale dos sentidos não é capaz
de alcançar um entendimento puro e verdadeiro;
o pensamento que se exerce em região obscura
do ser alcança apenas conclusões duvidosas e
confusas.
“O EXERCÍCIO DO ENTENDIMENTO
Filosofia e não filosofia
Para Descartes, a união da alma e do corpo não PURO IMPEDE A PLENA DEDICAÇÃO
pode ser concebida pelo espírito humano. Trata-se À IMAGINAÇÃO E AOS SENTIDOS,
de um setor que não podemos pensar. O preceito E O PENSAMENTO QUE SE VALE
cartesiano foi seguido à risca. É o que nos mostra
Merleau-Ponty (1996a, p. 165) ao falar de uma crise
DOS SENTIDOS NÃO É CAPAZ DE
da filosofia pura na França: “Ela vive, sobretudo, ALCANÇAR UM ENTENDIMENTO PURO
no passado, como história da filosofia”. Se havia E VERDADEIRO; O PENSAMENTO QUE
uma filosofia, ela estava “no ar”, expressa nas SE EXERCE EM REGIÃO OBSCURA DO
pesquisas sobre arte, e, sobretudo, em pesquisas
sobre o “homem subterrâneo”, da forma que encon- SER ALCANÇA APENAS CONCLUSÕES
tramos em Schopenhauer, Dostoïevsky, Nietzsche DUVIDOSAS E CONFUSAS”
e Freud (ibidem, p. 166).
Esse é o resultado último da atitude que mani-
festara Descartes; “filosofia e não filosofia sem in-
terferência [empiétement], nem conflito, a filosofia Passado original
nos dando razões de não fazer mais filosofia”, afir- O campo de exercício da reflexão filosófica do-
ma Merleau-Ponty (1996a, p. 225). A pedra de ravante deve preservar aquilo que, para Descartes,
toque do pensamento merleau-pontiano, construí- implicava confusão, mistura e dúvida, e que deve-
do à luz do preceito fenomenológico de suspensão ria ser dissipado à luz de um fundamento claro e
do conhecimento filosófico e científico estabeleci- distinto para as ciências. Mais do que isso, trata-se
do, é a afirmação de que o irrefletido não deve ser de recolocar a “atitude crítica e reflexiva” no mag-
afastado como termo inacessível à reflexão, que ele ma da “experiência irrefletida do mundo”, que de-
é, antes, a “situação inicial, constante e final” (PhP, vemos reencontrar, para então ver surgir a reflexão
p. IX, p. 11) de uma “reflexão radical”. da forma como ela, de fato, se apresenta, como um
Um pensamento que não rejeita a confusão, mas “dom de natureza”, ou seja, como reflexão ineren-
que aceita ser reflexão sobre um irrefletido, pode te a uma situação espacial e temporal, inerente ao
ser capaz de exprimi-lo e de, assim, aproximar- nosso corpo, a um “Eu natural”, que coincide com
-se de uma “nova ideia de razão” (Merleau-Ponty, a consciência sensível que conhece a si mesma e o
1996b, p. 7), uma ideia de razão imiscuída em des- seu mundo anonimamente, antes de qualquer deci-
razão. A virada filosófica, que abriga em si o gesto são de nossa parte.
fenomenológico propriamente merleau-pontiano, “Minha percepção”, diz Merleau-Ponty, “mesmo
faz do cogito o centro de uma reflexão “que ao vista do interior, exprime uma situação dada […]”
mesmo tempo domina e mantém a opacidade da (PhP, p. 249; p. 290), um “passado original”, diz ele,
percepção” (PhP, p. 53; p. 74). a referir-se ao fato de que não temos mais consci-

6 • FILOSOFIA Ciência&Vida

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ência de sermos o “verdadeiro sujeito” da sensação Princípio da coesão
do que consciência do nosso próprio nascimento. E se Descartes fala em “quadros”, é de fato ao
É a partir desse fundo de “experiência não téti- desenho que ele se apega como forma que nos for-
ca”, que é a nossa “percepção originária”, que se nece os índices suficientes para a representação do
delimitam o objeto de ciência, o sujeito psicofísi- objeto desenhado. Falar das cores, que escapam à
co, morada das sensações, e a consciência pura e correspondência geométrica entre as coisas e suas
constituinte, que “põe um e outro”. projeções, e que, no entanto, nos apresentam as
A “reflexão radical” de que fala Merleau-Ponty coisas, seria ver-se diante do problema “de uma
precisa antecipar-se à formulação da ideia do su- abertura às coisas sem conceito” (ibidem, p. 43).
jeito e do objeto e apanhar a si mesma no instante Diante do que apresentamos até aqui, pode ficar
em que brota da mesma fonte daquelas ideias (cf. ao leitor a impressão de que, se Merleau-Ponty não
PhP, p. 53, 249-50, 253, 278-9). Se Merleau-Ponty pretende realizar uma abordagem histórica da filo-
compara o corpo à obra de arte é porque em ambos sofia de Descartes, a ele interessa apenas criticar
o fenômeno expressivo se antecipa ao pensamento um pensamento defasado. De fato, Merleau-Ponty
e força caminho para aquém do “privilégio da ra- não se ocupava de uma restituição lógica e arqui-
zão”. Um quadro, assim como uma música ou um tetônica das obras de Descartes. Para nosso filó-
poema, não emite uma ideia que se descola da obra sofo, não se tratava de fazer história da filosofia, e
e passa a significá-la, a ideia matriz do trabalho seu trabalho de pesquisa sobre o autor seiscentista
artístico tal como quisera transmitir o seu autor. não precisava ser exaustivo.
Não lhe interessavam o sistema cartesiano e
Pensamento defasado sua ordem interna, o que implica, para Merleau-
A obra é antes, diz Merleau-Ponty, um “indiví- Ponty (2003, p. 259), a exposição ao risco de redu-
duo”, um “ser” do qual não é possível “distinguir zir o filósofo às suas próprias questões e às suas
a expressão do expresso” (PhP, p. 177; p. 209). Se próprias respostas. Interessava, sim, a Merleau-
quisermos conhecê-la, isso não será possível se- -Ponty fazer filosofia hoje à luz de Descartes, pensar
não através de um contato direto por meio do qual mesmo os primórdios de uma nova ontologia, o que
acessaremos uma significação situada no tempo não seria possível senão a partir da focalização das
e no espaço. A obra de arte, assim como o corpo, intuições cartesianas, ou seja, a partir daquilo que
possui uma fisionomia, ou seja, um sentido que Descartes nos diz sob a base das interrogações que
surge do seu conjunto. lhe podemos endereçar hoje e que mantém viva a
Uma profunda dimensão desse sentido é per- filosofia produzida por ele no século XVII.
dida na descrição que se possa fazer de um qua- Trata-se de ultrapassar os limites da ordem e do
dro, na notação que se possa fazer da música em conteúdo do que disse Descartes em resposta aos
uma partitura, da mesma forma que a transcrição seus problemas. Trata-se de “sonhar”, “meditar”,
de uma entrevista achata a expressão do entre- “refletir livremente” sobre os temas cartesianos, de
vistado, desprovendo-a dos seus gestos, do seu fazer aflorar intuições acerca das verdades que ele
tom, dos seus acentos, enfim, da tensão na qual tentou exprimir (Merleau-Ponty, 2002a, p. 11), mes-
ele se movera e das “significações vivas” que ele mo que contraditórias, sem romper, contudo, a di-
experimentara e expressara. Para Merleau-Ponty mensão de diálogo com o filósofo de outrora. Para
(1964, p. 42), é significativo que Descartes não Merleau-Ponty, essa é a única maneira de encon-
aborde a pintura senão com alguns poucos co- trar o “princípio de coesão” do Ser em Descartes. É
mentários: “a pintura não é para ele uma ope- nessa leitura e não na perspectiva plana e homogê-
ração central que contribui para definir nosso nea de um exame sistemático que o filósofo deseja
acesso ao ser; é um modo ou uma variante do avançar em suas próprias interrogações.
pensamento canonicamente definido pela posse Merleau-Ponty prefere instalar-se no “horizonte
intelectual e pela evidência”. do pensamento cartesiano” (PhP, p. 54; p. 69), sem,

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Aprender
& Ensinar

“O FATO É QUE A EVIDÊNCIA DA do cartesianismo” assenta-se na identificação en-


CONSCIÊNCIA É INCHADA A PARTIR tre a razão e a condição humana. O homem sen-
sual que encontramos na sexta meditação rejeita
DE DESCARTES EM DIREÇÃO A UMA
a purificação que Descartes operara nas duas pri-
LIBERDADE ABSOLUTA. A CONSCIÊNCIA meiras meditações (Merleau-Ponty, 1996a, p. 225).
PASSA A SER UMA CONSCIÊNCIA
CONSTITUINTE E, ASSIM, A Se a filosofia de Descartes é isso, esta-
belecimento de uma luz inteligível contra o
COMPREENDER TODOS OS FENÔMENOS
homem sensual e o mundo visível, em se-
COMO INERENTES À SUA ATIVIDADE E guida, justificação relativa por meio dela do
O PENSAMENTO COMO EVIDENTE PARA sentimento, ela deve conter (se ela não é, no
SI MESMO (CF. PHP, P. 432)” seu segundo momento, simples renegação do
primeiro) uma relação ambígua de luz e sen-
timento, do invisível e do visível, do positivo
e negativo. É esta relação ou este cruzamen-
no entanto, perder de vista os temas e as soluções to que seria necessário procurar. (Merleau-
vislumbrados por Descartes. A impossibilidade Ponty, 1996a, p. 222)
de pensar a união da alma e do corpo, deixada ao
alcance apenas do conhecimento vital, significa, Entretanto, se Merleau-Ponty pode afirmar que a
para Merleau-Ponty (PhP, p. 52-3; p. 73), que “o ato existência, a individualidade e a facticidade encon-
de compreender se mostra como reflexão sobre um tram-se no “horizonte do pensamento cartesiano”,
irrefletido que ele não reabsorve nem de fato nem é apenas admitindo, também, que Descartes não
de direito”. O pensamento absoluto de Descartes as tematizou. Caso contrário, a filosofia cartesiana
não aparece como dimensão primeira, mas inseri- seria outra, e a análise reflexiva teria se aproxima-
do num fluxo temporal e espacial do qual ele não do mais de uma “subjetividade autêntica”.
se ausenta jamais.
Cumplicidade entre as obras
Significado do cartesianismo As duas obras iniciais de Merleau-Ponty fazem
“É sempre à percepção que incumbirá conhecer parte de um único projeto de trabalho. Elas se in-
a percepção”, afirma Merleau-Ponty (PhP, p. 53; serem na discussão das antinomias cartesianas na
p. 73). É nesse sentido que o filósofo lê a análise de filosofia e nas ciências e partem da delimitação de
Descartes acerca do pedaço de cera, ou acerca dos um mesmo problema, o da percepção, como ponto
homens presumidos que ele vê de sua janela (cf. de integração das duas ordens fundamentais do
Descartes, 1953a, p. 279-83). Se, sem saber se o pensamento de Descartes: a alma e o corpo.
que vemos são homens verdadeiros ou tão somen- Nossos primeiros trabalhos publicados, co-
te bonecos sob as vestes e os chapéus, julgamos menta Merleau-Ponty, apegam-se a um problema
tratar-se de homens, o julgamento ao qual se refere que é constante na tradição filosófica, mas que é
Descartes não é anterior à própria percepção. posto de modo mais agudo desde o desenvolvi-
O sentido do percebido não está posto de ante- mento das ciências do homem, a ponto de condu-
mão em alguma dimensão somente acessível a um zir a uma crise do nosso saber ao mesmo tempo
pensamento sem ancoragem, mas parece brotar que da nossa filosofia. Trata--se da discordância
do próprio percebido, no instante da sua descober- entre a visão que o homem pode ter de si mesmo,
ta. A estrutura inteligível do pedaço de cera não é por reflexão ou por consciência, e aquela que ele
constituída pelo pensamento absoluto, mas, sim, obtém religando suas condutas a condições exte-
reconstituída, diz Merleau-Ponty (PhP, p. 53). É por riores das quais elas dependem manifestamente.
isso que o autor afirma que a “significação última (Merleau-Ponty, 2000, p. 11)

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Do ponto de vista interior, a verdade do cogito
parece irrecusável para a filosofia. Mesmo que o
saber positivo sobre o homem chegasse ao extre-
mo de concebê-lo no interior de um entrelaçamento
de causalidades orgânicas, psíquicas ou sociais, o
reconhecimento da validade dessa concepção per-
maneceria atrelado à possibilidade de se apreciá-la.
Caso contrário, os próprios resultados científicos
deveriam ser colocados em dúvida, como simples
efeitos de uma determinação exterior inapreensível
(Merleau-Ponty, 2000, p. 50).

Revelação das ciências humanas

© DIVULGAÇÃO
O fato é que a evidência da consciência é inchada
a partir de Descartes em direção a uma liberdade
absoluta. A consciência passa a ser uma consci-
ência constituinte e, assim, a compreender todos
os fenômenos como inerentes à sua atividade e o
pensamento como evidente para si mesmo (cf. PhP,
p. 432). Por sua vez, as ciências, do ponto de vista
do “espectador estrangeiro”, são capazes de pôr
em relevo uma série de dependências do homem REFERÊNCIAS

em relação a fatores físicos, orgânicos, psicológi- BIMEBENET, É. Nature et humanité: le problem anthroplogique
cos e sócio-históricos. Merleau-Ponty (2000, p. 12) dans l’ouvre de Merleau-Ponty. Paris: Vrin, 2004.
resume esse impasse com as seguintes palavras: DESCARTES, R. Méditations. In: ____ Ouvres et lerttres. Paris:
Gallimard, 1953ª. P. 253-334.
FURLAN, R. Objetivismo, intelectualismo e experiência do corpo
É preciso, pois, compreender como o ho- próprio. Natureza Humana, São Paulo, v. 3, n. 2, p. 289-314, 2001
a.
mem é simultaneamente sujeito e objeto, pri- MERLEAU-PONTY, M. L’oiel et l’esprit. Paris: Gallimard, 164.
meira pessoa e terceira pessoa, absoluto em _____________. Notes des cours au Collège de France: 1958-
iniciativa e dependente, ou, mais ainda, é pre- 1959 et 1960-1961. Paris: Gallimard, 1996ª.
_____________. Parcours: 1935-1951. Lagrasse: Verdier, 1997.
ciso revisar as categorias que, se mantidas,
_____________. L’union de l’âme et du corps chez
fariam renascer o conflito perpétuo do saber Malebranche, Biran et Bergson. Paris: Vrin, 2003a.
positivo e da filosofia […]. _____________. Signes. Paris: Gallimard, 2003.
_____________. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos
Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
As ciências humanas, se acompanhadas em 1999.
seu “desenvolvimento espontâneo” (cf. Verissimo; SAINT AUBERT, E. Le scenario cartésian: recherché sur la
formation et la coherence de l’intention philosophique de
Furlan, 2006), revelam, de fato, um homem-coisa, Merleau-Ponty. Paris: Vrin, 2005.
o homem como um objeto entre outros? E a ati- VERISSIMO, D; FURLAN, R. Merleau-Ponty e a evolução
espontânea da psicologia. Temas em Psicologia, v. 14, n. 2, 2006.
tude reflexiva, que olha o homem a partir de si
mesmo, ela nos conduz, inevitavelmente, a uma
subjetividade “intemporal e incondicionada”?
Essas interrogações sumarizam a dupla proposta SOBRE O AUTOR
Danilo Saretta Veríssimo é doutor em Psicologia pela
de Merleau-Ponty, ao conceber um estudo sobre
Universidade de São Paulo e em Filosofia pela Université
a percepção que, partindo de dois pontos de vista Jean Moulin – Lyon III. É docente nos cursos de
diferentes, convergisse para um ponto aquém do graduação e pós-graduação em Psicologia da Faculdade
de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista
sujeito e do objeto puros. “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), campus de Assis.

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sobreviver
Aprender
& Ensinar

A arte de
As dificuldades
enfrentadas por
um professor da
educação básica
podem levar a um
estado de alienação
capaz de subtrair
dele os ideais que
devem nortear
seu mister e sua
capacidade de
ponderação crítica

POR SIDNEI DE OLIVEIRA

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LEGISLAÇÃO
É
evidente o descaso que se tem quando o
assunto é educação básica, não apenas APLICADA À
por parte do Estado, mas pela própria EDUCAÇÃO
sociedade. No caso da sociedade, tal processo
se dá pela ausência particular da educação, Veja os principais tópicos sobre
direitos e deveres na educação
movimento este que cauciona uma grande
estabelecidos pela Constituição
massa de manobra e, com o auxílio da mídia,
Federal, Leis de Diretrizes e Bases
o que antes era visto como algo singular, ago-
da Educação Nacional e no Estatuto
ra é o famígero senso comum da sociedade em
da Criança e do Adolescente.
geral. A simples ação de reproduzir um deter-
minado discurso, pelo ato da repetição, é um CAPÍTULO III – Da Educação, da
dos meios que fundamentam uma sociedade Cultura e do Desporto SEÇÃO I –
alienada quanto à educação. Logo, esta mesma Da Educação Art. 205. A educação,
sociedade, que não compreende a necessidade direito de todos e dever do Estado
da formação do indivíduo como cidadão, torna- e da família, será promovida e
-se incapaz de conhecer seus direitos e deveres incentivada com a colaboração
em uma comunidade. Deixo claro que a socie- da sociedade, visando ao pleno
dade e a comunidade a que me refiro se encon- desenvolvimento da pessoa, seu
tram no âmbito geral, ou seja, todos que estão preparo para o exercício da cidadania
inseridos na Constituição Federal, nas Leis de
e sua qualificação para o trabalho1.
TÍTULO I – Das Disposições
Diretrizes e Bases da Educação Nacional e no
Preliminares Art. 4º É dever da
Estatuto da Criança e do Adolescente.
família, da comunidade, da sociedade
Quando não se tem conhecimento de seus
em geral e do poder público
deveres e direitos, a única inclinação é a reite-
assegurar, com absoluta prioridade,
ração de qualquer informação que seja de fácil
a efetivação dos direitos referentes
acesso, a saber, culpar o profissional da edu-
à vida, à saúde, à alimentação, à
cação, seja qual for a eventualidade que venha
educação, ao esporte, ao lazer,
a existir. O senso comum, que hoje pode ser à profissionalização, à cultura, à
compreendido como parte da grande mídia em dignidade, ao respeito, à liberdade e
exposição ao povo, é apenas um exemplo de à convivência familiar e comunitária2.
muitos que existem quando, sem reflexão, rei- TÍTULO II – Dos Princípios e Fins
teram que o professor só está nessa profissão da Educação Nacional - Art. 2º A
por amor, esquecendo totalmente a questão educação, dever da família e do
social que envolve a classe dos professores da Estado, inspirada nos princípios
educação básica. Tal insistência em sustentar de liberdade e nos ideais de
esse engodo faz com que a sociedade sequer solidariedade humana, tem por
reflita sobre a possibilidade desse profissional finalidade o pleno desenvolvimento
só exercer tal função por falta de oportunida- do educando, seu preparo para
o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho3.

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Aprender
& Ensinar

“COMO É POSSÍVEL OBSERVAR em alguns casos a cumprir sessenta horas sema-


nais, para, mesmo assim, seu salário não ser um
NO ATUAL DESGOVERNO, O
salário digno, tornando sua profissão e trabalho
EMPREENDEDORISMO ESTÁ algo desumano4. Nessa carga horária não é soma-
CRESCENDO CADA VEZ MAIS, do o tempo de preparo de suas aulas em casa, pro-
cedimento corriqueiro na educação básica. Aqui é
PORÉM MUITOS NÃO PERCEBEM possível trazer para a discussão o pensador e filó-
QUE ESTE MESMO EMPREENDEDOR sofo Karl Marx, a saber, sobre o estranhamento do
trabalho e sua exteriorização:
SURGE CONFORME O
DESEMPREGO AVANÇA” Primeiro, que o trabalho é externo (äusserlich)
ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser,
que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho,
mas nega-se nele, que não se sente bem, mas
infeliz, que não desenvolve nenhuma energia
física e espiritual livre, mas mortifica sua physis
de e, na maioria das vezes, por não ter tido condi- e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sen-
ções financeiras e sociais para realizar outro curso te, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a
universitário. si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando]
Após expor essa temática social, é importante no trabalho. Está em casa quando não trabalha
mencionar que o trabalho de um professor da edu- e, quando trabalha, não está em casa. O seu
cação básica é extremamente desgastante, uma trabalho não é, portanto, voluntário, mas força-
vez que envolve inúmeros educandos desde os do, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por
primeiros anos de vivência escolar até a formação isso, a satisfação de uma carência, mas somente
para ingressar em um curso universitário, mesmo um meio para satisfazer necessidades fora dele.
sabendo que, devido à precariedade de muitas co- Sua estranheza (Fremdheit) evidencia-se aqui
munidades, o número de educandos que param de [de forma] tão pura que, tão logo inexista coer-
estudar para auxiliar no custeio familiar também ção física ou qualquer outra coisa, foge-se do
é alto. Os trocados que cada criança e adolescente trabalho como de uma peste. O trabalho exter-
conseguem em semáforos, metrôs e trens são, na no, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é
sua maioria, o sustento familiar. Mas, como é pos- um trabalho de autossacrifício, de mortificação.
sível observar no atual desgoverno, o empreendedo- Finalmente, a externalidade (Äusserlichkeit) do
rismo está crescendo cada vez mais, porém muitos trabalho aparece para o trabalhador como se [o
não percebem que este mesmo empreendedor surge trabalho] não fosse seu próprio, mas de um ou-
conforme o desemprego avança. tro, como se [o trabalho] não lhe pertencesse,
como se ele no trabalho não pertencesse a si
Estranhamento do trabalho mesmo, mas a um outro5.
Em analogia à dificuldade financeira, em suas
devidas proporções, muitos professores sofrem Na maior parte dos casos, mesmo em casa, o
não apenas pela falta de estrutura nas unidades professor “não pertence ao seu ser”, pois a pes-
escolares, mas também pelo não reconhecimento te, mencionada por Marx, parece não haver cura,
de sua profissão e trabalho realizado. O baixo sa- dada a inevitabilidade em utilizar suas horas de
lário de um professor na educação básica faz com descanso para o preparo das aulas que deverão ser
que muitos educadores se vejam na obrigatorieda- ministradas na semana seguinte. O grande núme-
de de dobrar sua carga horária, assim como am- ro de horas em sala de aula, bem como o excesso
pliar suas horas de trabalho semanal, chegando de trabalho em horas “livres” e pedagógicas, entre

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outros apontamentos, é um dos motivos de muitos Schopenhauer
professores estarem afastados, isto é, de licença Ocasionalmente, a construção dessa ideologia é
médica para tratarem de distúrbios, ansiedade, de- revertida em assédio moral e a reiteração em dog-
pressão e outras enfermidades causadas por esta- ma, em que o professor só possui um caminho – a
rem, como afirma Marx, muito tempo em um local licença médica. O profissional da educação básica,
que é praticamente impossível de se reconhecer. que até então só pensava em ministrar suas aulas,
agora é sacrificado. Tal ato se dá pelo Estado, pela
Redenção independente gestão escolar, pela comunidade escolar e, em al-
Tal situação é reputada pela administração guns casos, por colegas privilegiados. Sobre a cor-
pública do município ou do estado com que este dialidade que conduz tais ações às prerrogativas de
profissional afastado possui vínculo como um ato poucos, principalmente quando estes se aproximam
negativo, ignorando assim qualquer adversidade da gestão, é possível realizar uma breve analogia às
psicológica que o professor tenha desenvolvido em palavras do filósofo alemão Arthur Schopenhauer.
seu local de trabalho, preterindo o cansaço físico e
mental do educador. Muitos profissionais da edu- O mais alto esforço do espírito humano
cação básica, por não refletirem sobre o impasse não aguenta nem apenas uma vez a aquisi-
da classe social, da qual fazem parte, conseguem ção: a natureza nobre dele pode, com isso,
imaginar somente uma carreira profissional, a sa- não amalgamar. Na melhor das hipóteses, ele
ber, a de professor, mesmo que tal decisão tenha poderia ainda ir com a filosofia universitária,
sido condicionada para este fim, assim como a in- se os professores assalariados pensassem
fluência familiar e escolar. ser suficiente através da profissão deles, que
Após a formação universitária, o pensamento ela, por meio de outros professores existen-
ideológico, já concebido e inserido na academia, tes, por enquanto, transmitam como saber
isto é, de que a educação é um processo de reden- verdadeiro a disciplina à geração mais nova,
ção independentemente de outros recursos neces- ou seja, explicar fielmente e exatamente aos
sários para se alcançar esta salvação, entrepõe seus ouvintes o sistema do último verdadeiro
o professor não apenas como o responsável para filósofo e as pequenas coisas dar-lhes mas-
este epílogo, mas um possuidor desta função como tigadas […] Com os filósofos de cátedra em
ápice da sua vida. Logo, inicia-se o movimento nossos dias as coisas funcionam rápido, vis-
ideológico da educação na prática, ou seja, firman- to que eles não têm tempo a perder: ou seja,
do-se na necessidade do trabalho do educador. O um professor anuncia a doutrina de seu flo-
senso comum, que parte de um pensamento não rescente colega na universidade vizinha como
crítico, é instaurado em toda a comunidade escolar o cume finalmente alcançado pela sabedoria
e fomentado por redes de micropoderes. humana; e imediatamente este é um grande
É interessante observar a forma como cada si- filósofo, sem demora, ocupa o seu lugar na
tuação se faz interligada a outro problema banal; história da filosofia, a saber, aquele que um
caso fosse de real interesse do Estado, poderia ser terceiro colega tem um trabalho para a próxi-
solucionado facilmente. Toda discussão se dá na ma feira, que agora, muito imparcial, o nome
esfera ideológica, isto é, de como tudo é expres- imortal dos mártires da verdade avalia todos
sado na comunidade escolar. Um exemplo a ser os séculos o nome de seu colega, exatamente
citado dessa mesma ideologia, tal como a própria alinhado e em boas condições igualmente
alienação que se vive no ambiente escolar, são os como muitos filósofos, que também poderiam
bordões pronunciados e repetidos constantemente, trilhar a fila de membros que encheram muitos
principalmente pela gestão escolar, a saber, “ao papéis e encontraram a consideração geral
bem da educação”, “somos uma família”, entre tan- dos colegas6.
tas outras frases de efeito.

FILOSOFIA Ciência&Vida • 13

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Aprender
& Ensinar

“O PROFISSIONAL DA EDUCAÇÃO
BÁSICA, QUE ATÉ ENTÃO SÓ
Por mais que a crítica schopenhaueriana
PENSAVA EM MINISTRAR SUAS
seja direcionada à academia, especialmente
na esfera da filosofia, não é difícil perceber a AULAS, AGORA É SACRIFICADO.
similaridade com o que discorri até o momen- TAL ATO SE DÁ PELO ESTADO,
to. A afeição que é dada por Schopenhauer aos
acadêmicos de sua época também é ofertada PELA GESTÃO ESCOLAR, PELA
em nossos dias e nos mesmos moldes na esfe- COMUNIDADE ESCOLAR E, EM
ra acadêmica, porém de maneira dissímil, mas
com o mesmo desígnio, no ensino básico.
ALGUNS CASOS, POR COLEGAS
PRIVILEGIADOS”
Cerceamento com Foucault
Quanto ao cerceamento que há em esco-
las públicas, pensando na educação básica, é
possível trazer para o diálogo outro pensador grande e novo instrumento de governo…;
importante que discorreu em sua obra temas sua excelência consiste na grande força
voltados à educação, a saber, o filósofo fran- que é capaz de dar a qualquer instituição
cês Michel Foucault. A teoria desenvolvida a a que seja aplicado7.
partir do termo pan-óptico é de grande valia
para compreender a supressão que o modelo Operários modernos
educacional se desloca há algum tempo. Retomando um ponto específico deste artigo,
Quando o indivíduo perde o seu espaço social isto é, em que todos são responsáveis pela for-
devido à implantação de vários mecanismos, mação da criança e do adolescente, é imprescin-
este mesmo indivíduo é direcionado por proce- dível ressaltar um problema assíduo em muitas
dimentos subjetivos à sociedade. Tais recursos escolas, a saber, quando a direção e a gestão
são utilizados como forma de disciplina, de escolar se negam a cumprir seus deveres, não
treinamento, de controle, bem como de vigilân- percebendo que a insuficiência penaliza direta-
cia e de punição. mente o educador e seus direitos. Mesmo que
A escola é, assim como o sistema carcerário, determinados direitos estejam sancionados em
um arquétipo do modelo pan-óptico idealizado legislação, o simples fato de não exigir da comu-
por Jeremy Bentham, do qual Foucault se apro- nidade o cumprimento de seus deveres, apenas
priou para fundamentar tópicos de sua obra para não causar incômodo ou desconfortos para
Vigiar e Punir. Para Foucault, a escola moderna ambos, esquece a gestão que esta inobservância
segue produzindo um tipo específico de socie- reproduz uma ação reversa ao modelo educacio-
dade, mesmo que a base para esta formação nal, simplesmente por um descaso exacerbado.
seja por meio de punição, uma vez que a dis- A direção e a gestão não percebem que é
ciplina é internalizada e recebida como algo neste descumprimento de deveres que ini-
sendo natural. Abaixo as palavras de Foucault: cia o desrespeito e a violência do educando
ao educador, em que a voz do aluno se torna
O esquema panóptico é um intensifi- agressiva e aufere o embate, o afronte e a sub-
cador para qualquer aparelho de poder: versão diante da voz do professor. Em outras
assegura sua economia (em material, em circunstâncias também é possível identificar a
pessoal, em tempo); assegura sua eficácia posição autoritária da gestão, sendo esta con-
por seu caráter preventivo, seu funciona- juntura, em alguns momentos, despercebida
mento contínuo e seus mecanismos auto- por aqueles que fazem parte da gestão. Porém,
máticos. É uma maneira de obter poder há momentos em que o autoritarismo é exerci-
numa quantidade até então sem igual, um do conscientemente.

14 • FILOSOFIA Ciência&Vida

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Pela razão de esse procedimento se fazer Em nossos dias, a discussão sobre colégios
presente na maioria das unidades escolares, militares tem sido motivos de discordâncias, po-
acredito que seria possível a tentativa de so- rém muitos ignoram que o ato de cantar o hino
lucionar tal problema se os docentes, ao invés nacional e também o hino do município em que
de se aproximar da gestão em busca de cor- a unidade escolar se encontra é uma questão
dialidade e privilégios, se unissem para al- que pode ser interpretada com a mesma alusão
cançar o real ímpeto para semelhante enlace. à educação militar. O simples fato de reproduzir
Sobre esse acontecimento é possível realizar semanalmente o hino sem que seja trabalha-
outra analogia, agora a partir das palavras de da a contextualização em sala de aula, pois os
Marx. Para isso faz-se necessário conduzir a educandos são obrigados a cantar o hino sem
reflexão para este tema, “na mesma medida conhecer o significado de muitos vocábulos pre-
em que a burguesia, isto é, o capital, se de- sentes nele, não expressa sentido algum na for-
senvolve, nessa mesma medida desenvolve-se mação da criança e do adolescente. Centenas de
o proletariado, a classe dos operários moder- crianças são posicionadas em frente à bandeira
nos, os quais só vivem enquanto encontram do Brasil e do respectivo município reproduzin-
trabalho e só encontram trabalho enquanto do um canto por mera obrigação, sem saber o
o seu trabalho aumenta o capital. Esses ope- real motivo dessa obrigatoriedade.
rários, que têm de se vender diariamente, são
mercadorias como qualquer outro artigo de Ação patriótica
comércio, e estão, por isso, igualmente expos- Uma ação patriótica a indivíduos sem lugar
tos a todas as vicissitudes da concorrência, a na pátria, pois a grande maioria dos educandos
todas as oscilações do mercado”8. em situações precárias, seja na esfera da edu-
cação, seja na da sobrevivência – classe social
Hino nacional –, está destinada a se tornar proletária em uma
Neste caso, trabalhador e proletariado é o pátria que possui uma burguesia opressora
professor, quanto ao mercado, para aproximar e uma elite dominante. Para entender melhor
ao tema proposto, é exequível pensar na educa- essa posição proscrita, cito novamente Marx:
ção privada, onde o aluno deixa de ser aluno e “Os operários não têm pátria. Não se lhes pode
passa a ser tratado como cliente, assim como tirar o que não têm. Na medida em que o pro-
o docente deixa de ser docente para se tornar letariado tem primeiro de conquistar para si a
prestador de serviço. Mas esta situação tam- dominação política, de se elevar a classe nacio-
bém é vivenciada na educação pública, basta nal, de se constituir a si próprio como nação,
que a gestão não realize sua função gestora e a ele próprio é ainda nacional, mas de modo ne-
direção não cumpra com seus deveres. nhum no sentido da burguesia”9.
Entre tantos outros pontos que poderiam ser Sobre a construção da imagem que muitas
discorridos na esfera da educação básica, tra- bandeiras de municípios trazem, ressalto um
go um tópico que acredito ser despercebido por modelo em específico, a saber, quando inse-
grande parte da comunidade escolar, a saber, rem ao lado do brasão a figura do bandeirante
a execução do hino nacional pela simples re- e a do índio, como se houvesse uma harmonia
produção semanal diante de uma composição presente na composição da história deste terri-
discrepante de figuras que formam algumas tório. Não sei dizer se a desatenção da obrigato-
bandeiras municipais. Tal ação patriótica teve riedade de o hino ser executado semanalmente
sua obrigatoriedade na Era Vargas, e, recente- é tão desprovida de reflexão quanto a ausência
mente, no ano de 2009, a lei de obrigatoriedade da semiótica presente na imagem da bandeira.
sofreu uma ratificação pelo fato de não estarem Mesmo que tal ilustração seja perturbadora,
cumprindo a ordem. é plausível a não compreensão dos fatos históri-

FILOSOFIA Ciência&Vida • 15

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Aprender
& Ensinar
REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República


Federativa do Brasil. Brasília, DF:
cos, uma vez que este mesmo assunto analogia ao mesmo bandeirante que Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
tem sido abordado de maneira errada matou milhares de índios por sim- BRASIL. Estatuto da Criança e do
Adolescente. Brasília, DF. 1990.
na educação, isto é, de que o bandei- ples ação de poder. É compreensível Disponível em: http://www.planalto.gov.
rante “pode ser compreendido, de um a distorção histórica quando a classe br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm#art266.
Acesso em: 18 dez. 2020.
lado, como vasto processo de invasão burguesa reproduz o pensamento dos
BRASIL. Lei de diretrizes e bases da
ecológica; de outro, como determinado seus, pois somente assim é possível educação nacional. Brasília, DF: Senado
tipo de sociabilidade”10. Essa afirma- construir a própria história. A tenta- Federal, Coordenação de Edições
Técnicas, 2017.
ção equivocada tem sido reproduzida tiva de idealizar o bandeirante é, em
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio
constantemente desde a publicação da outras palavras, o esforço similar em Bonito: Estudos sobre o caipira paulista e
obra de Cândido. atribuir características a um indivíduo a transformação dos seus meios de vida.
Tentativa de idealização que não possui nenhuma afinidade a São Paulo: Editora 34, 2001.
ENGELS, Friedrich & MARX, Karl
Não há como relacionar o bandei- estas qualidades. Heinrich. Manifest der Kommunistischen
rante e sua história no Brasil com A partir da explanação até aqui dis- Partei. Edited by Sávio M. Soares.
sociabilidade, é inegável que o bandei- corrida, é possível refletir sobre a difi- Metalibri, 31. Oktober 2008, v1.0s.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir:
rante fez parte da história e da cons- culdade que um professor da educação
nascimento da prisão. Trad.:
trução de um tipo de brasileiro. Agora, básica tem ao enfrentar tais questões RaquelRamalhete. Petrópolis, Vozes,
é necessário analisar os fatos para diariamente. Pelo menos o professor 1987.
compreender que um predador, um que apreende todos os tópicos, não MARX, Karl. Manuscritos econômico-
-filosóficos. Trad.: Jesus Ranieri. São
assassino, entre outros adjetivos que deixando que a alienação do trabalho Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
cabem nomear um bandeirante, não e a ideologia imposta pelo Estado e SCHOPENHAUER, Athur. Über die
construiu e desbravou terras com so- pela comunidade escolar sejam o fio Universitäts-Philosophie. In: Sämtliche
Werke: Band IV. Julius Frauenstädt
ciabilidade após demarcar estas mes- condutor de sua ponderação crítica. (Hrsg.). Arbeitsgemeinschaft. Cotta –
mas terras como de sua propriedade. Acredito que só há um meio para que Insel.Stuttgart/Frankfurt am Main. 1965.
Essa análise de um bandeirante sociá- a reflexão crítica seja possível em um
vel só pode vir de um tipo de “pensa- ambiente autoritário e pan-óptico, a Sidnei de Oliveira é compositor
mento superior”, sem a preocupação saber, sustentar sua posição política a e instrumentista. Licenciado em
Filosofia e Música. Mestre (Unifesp -
dos envolvidos. partir do conhecimento que o próprio
CAPES) e doutor (Unicamp - FAPESP)
O que veio a se tornar cada ban- sistema não possui ou, pelo menos, em Filosofia, com realização de
deirante depois de desbravar matas que ainda não digeriu por completo, estágio de pesquisa no exterior
(Universität Leipzig/Deutschland –
e terras para o seu domínio, ou seja, não sendo assim capaz de utilizá-lo BEPE/FAPESP). Atualmente cursa
mesmo depois de um longo período, na íntegra contra aqueles que são, ao o segundo doutorado, agora em
Música, pelo programa de pós-
não se pode confundir com a sociabi- mesmo tempo, sua base e estrutura graduação do Instituto de Artes da
lidade de um determinado sujeito em ideológica antagônica. UNESP-SP (CAPES).

NOTAS da educação. Por fazer parte parte da elite na educação, assim 5 MARX, Manuscritos econômico-
da elite intelectual, sua carga como quem deve trabalhar em -filosóficos. p. 82-83.
1 BRASIL. Constituição da horária em sala de aula é regime de semiescravidão, uma 6 SCHOPENHAUER. Über die
República Federativa do Brasil. extremamente inferior quando vez que, além da divergência
Universitäts-Philosophie. p.
2 BRASIL. Lei de diretrizes e comparada a de um professor da salarial, o tempo de trabalho
194-195.
bases da educação nacional. educação básica. É plausível a também é uma dissonância na
discussão intelectual e social, em esfera da educação. Cabe aqui, 7 FOUCAULT. Vigiar e Punir. p.
3 BRASIL. Estatuto da criança e
que o Estado define qual docente em meio a tantas discussões 229.
do adolescente.
tem o direito de pesquisar e de sobre reformas, pensar de 8 ENGELS e MARX, Manifest der
4 Como adendo, enfatizo a usufruir seu longo período ocioso maneira austera o que deve ser Kommunistischen Partei. p. 40.
discrepância salarial entre o semanal, pois é neste mesmo feito com tais privilégios para
docente do ensino básico e o 9 ENGELS e MARX, Manifest der
período que suas pesquisas são alguns docentes, visto que não
docente de academia, sendo ou deveriam ser realizadas. Em é apenas uma questão de status Kommunistischen Partei. p. 56.
este último pertencente a outras palavras, o Estado define quo que está em evidência, mas o 10 CANDIDO, Os parceiros do Rio
uma classe elitista no âmbito quem deve ser intelectual e fazer futuro da educação brasileira. Bonito. p. 46.

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MOMENTO DO LIVRO

Macunaíma narra as aventuras fantásticas


de um anti-herói: é preguiçoso, malandro,
rasileiro, Macunaíma foi es-
1928 e ainda hoje é um livro
EDIÇÃO ESPECIAL TRAZ GLOSSÁRIO COM 781 VERBETES
covarde, não tem moral, muito menos piedade.
Macunaíma narra as aventuras

macunaíma
dermos nossa diversidade fantásticas de um anti-herói: é
a vasta pesquisa linguística
mistura de lendas, mitos e Vive numa tribo da selva amazônica, onde
preguiçoso, malandro, covarde, não
tem moral, muito menos piedade. Vive
e uma identidade nacional numa tribo da selva amazônica, onde
asileiros, chegou a hora de ganha um amuleto da sorte que acaba
or do anti-herói nascido na
do em um dos personagens
ganha um amuleto da sorte que acaba caindo
caindo nas mãos do gigante Piaimã,
comedor de gente. Para recuperar a
mpos no país. pedra mágica, ele viaja a São Paulo e se

nas mãos do gigante Piaimã, comedor de


vê diante do caos urbano. A narrativa
não se prende ao espaço ou tempo
e valoriza mitos, lendas e outros

gente. Para recuperar a pedra mágica, ele viaja


a, o espírito mais elementos da cultura popular. Em uma
sátil e culto, o que carta datada de 26 de abril de 1935, o

O HERÓI SEM
próprio autor explica: “Um poema herói-
critos, pela atuação
cômico, caçoando do ser psicológico

a São Paulo e se vê diante do caos urbano. A


ão pessoal e pela

NENHUM CARÁTER
brasileiro, fixado na figura de lenda, à
maneira mística dos poemas nacionais.
astello no livro Ausência de regionalismo pela fusão

narrativa não se prende ao espaço ou tempo e


dernismo das características regionais. Um Brasil
só e um herói só.”.

onsagrou-se como

Mário de Andrade valoriza mitos, lendas e outros elementos da


Modernismo na sua
a e uma das maiores
s os tempos.”

cultura popular. Em uma carta datada de 26 de


abril de 1935, o próprio autor explica:

“Um poema heróicômico, caçoando do ser


Livro: Macunaíma psicológico brasileiro, fixado na figura de
Número de páginas: 192
Editora: Lafonte lenda, à maneira mística dos poemas nacionais.
Ausência de regionalismo pela fusão das
características regionais. Um Brasil só e um
herói só.”.

Nas livrarias e na loja Escala www.escala.com.br

macunaima.indd 1 04/03/2020 14:08:49


ESTÉTICA

CATEQUESE
DA CIÊNCIA
Vendida por 450 milhões de dólares, a obra Salvator Mundi, de
da Vinci, nos oferece uma realidade transcendental, metafísica
e desconhecida: tudo se nivela e se torna “um”. Foi assim que a
mensagem do artista jamais foi apagada pelos séculos

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POR ÁTILA SOARES DA COSTA FILHO Cook (Doughty House, Richmond) em 1900
como um trabalho de Bernardino Luini (no-
tório aluno de Leonardo). Em passagem pela
Sotheby’s, a obra muda de proprietário e in-
gressa no consórcio privado americano R. W.

O
ano de 2011 será lembrado como o mar- Chandler (Nova York) por US$ 80 milhões,
co de um dos maiores acontecimentos quando é repassada ao oligarca Dmitry Rybo-
no mundo das artes: a confirmação lovlev por US$ 127 milhões. Com isso, Salva-
feita pelo Dr. Robert Simon, da Universidade tor, juntamente com o retrato Ginevra de’ Benci,
de Columbia (EUA), de que a pintura Salvator da National Gallery de Washington, torna-se
Mundi é de autoria de Leonardo da Vinci. A a segunda pintura de Leonardo radicada no
obra Salvator já era bem conhecida na literatu- Novo Mundo – ambas nos Estados Unidos.
ra afim, porém muito se polemizava sobre qual Entre novembro de 2011 e fevereiro de 2012,
das várias versões seria a original – se é que ainda participaria da mostra Leonardo da Vin-
houvesse uma dentre as que surgiam. Para to- ci: Pintor da Corte de Milão na National Gallery
dos os efeitos, considerava-se esta obra como de Londres, sem precedentes no gênero.
um dos possíveis trabalhos ainda desapareci-
dos de Leonardo. Após as mais apuradas pes-
quisas dentre os melhores “pretendentes” em “O QUE SE SUSPEITAVA É QUE A FILIAL
2005, seguiu-se uma complexa restauração
conduzida pela expert Dianne Modestini. Con- DO MUSEU DO LOUVRE NO EMIRADO
cluída dois anos depois, o óleo em madeira, de (INAUGURADA QUATRO DIAS ANTES DO
65 cm x 45 cm, revelava-se como de autoria do
grande gênio da Renascença. Por ser muito su-
HISTÓRICO EVENTO) FOSSE REVELADA
perior aos demais em termos de técnica e trata- COMO DESTINO FINAL DESTE QUE ERA
mento, um corpo técnico decidiu creditar-lhe o UM DOS ÚLTIMOS TRABALHOS DE
status de original. O diretor da National Gallery
de Londres, Nicholas Penny, encarregara-se do LEONARDO AINDA EM MÃOS PRIVADAS”
processo de atribuição.
Trata-se da representação de um tema cor-
rente na iconografia cristã desde a Idade Média Obra mais cara
(mas com raízes bem mais antigas): “Senhor Anunciada pela Christie’s de Nova York, a
dos Céus e da Terra” pertence ao período mais pintura vai a leilão em 15 de novembro de 2017,
tardio da produção artística de Da Vinci, em onde seria vendida por US$ 450,3 milhões
1501, mostrando-nos Cristo em plano america- (bem além da estimativa-base dos US$ 100 mi-
no; mão direita em gesto de bênção e a outra lhões), passando, assim, a ser a obra de arte
segurando uma órbita (aqui, uma esfera trans- mais cara na história dos arremates. O novo
lúcida, com implicações platônicas e da cosmo- dono, segundo o The New York Times, é o prín-
grafia grega). A inusitada ausência de uma cruz cipe saudita Bader bin Abdullah bin Moham-
ao topo do globo (e da opacidade deste) deve med bin Farhan al-Saud, um investidor nada
ser referência à astronomia de Aristóteles e Co- relacionado ao mundo do colecionismo de Arte,
pérnico na concepção das “Esferas Celestiais”, mas um gigante nas áreas de telecomunica-
estruturas por onde os astros se distribuíam. ções (o Saudi Research and Marketing Group)
© WIKIMEDIA COMMONS

Seu primeiro registro data de 1649, sen- e energia elétrica.


do apontado parte da Coleção Real de Carlos Entretanto, segundo nota emitida pela em-
I (Inglaterra), ao que entraria para a Coleção baixada árabe em Washington, a tal transação

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ESTÉTICA

teria sido em nome do Departamento de Cul- Capela Sistina, e possui em sua clientela insti-
tura e Turismo da exótica Abu Dhabi, onde tuições como a Frick Collection e o Toledo Mu-
Farhan al-Saud também é ministro. O que se seum of Art. Ou admitimos a integridade das
suspeitava é que a filial do Museu do Louvre instituições consideradas de excelência – até
no emirado (inaugurada quatro dias antes do que nos provem o contrário – ou deveríamos
histórico evento) fosse revelada como destino reescrever boa parte da História da Arte ape-
final deste que era um dos últimos trabalhos nas pelo critério de “terrorismo atributivo pre-
de Leonardo ainda em mãos privadas. De fato, ventivo”. E a verdade dos fatos é que, até agora,
a teoria ganhou maior fôlego ao ser divulgada nada se viu de assustador que ameaçasse a
para 18 de setembro de 2018 a exposição (can- credibilidade desta restauração em particular.
celada sem maiores explicações) de Salvator Por outro lado, temos a consideração por
Mundi no Louvre em terras árabes. parte de alguns especialistas (em particu-
E, ainda que também estivesse programa- lar, Carmen Bambach, do Metropolitan
da sua participação no Louvre de Paris entre de Nova York, e Matthew Landrus,
outubro de 2019 e fevereiro de 2020 (por oca- de Oxford) de atribuir a obra não a
sião dos festejos dos 500 anos de morte de Le- Leonardo, mas a dois de seus se-
onardo), a ideia é que o quadro retorne a Abu guidores mais próximos: Bernar-
Dhabi sem escalas: “Perdida e escondida por dino Luini e Giovanni Boltraffio.
um longo tempo, a obra de Leonardo da Vinci Sobre Luini, sabemos que foi um
será nosso presente para o mundo”, confirma- artista muito influenciado pelos
ria Mohammed Al Mubarak, do departamento também lombardos Bergognone,
de Cultura e Turismo da instituição. Bramantino e Bernardino Zenale.
Ainda que muito próximo ao estilo
Autenticidade sob fogo de Da Vinci – após sua segunda es-
Como já esperado neste tipo de situ- tada em Milão entre 1506 e 1513
ação em que uma nova obra-prima –, carece a Luini tanto o peculiar
é anunciada, não faltaram vozes uso maestral do sfumato quanto a
contrárias à descoberta, e uma minúcia de detalhes orgânicos
das maiores armas com que a que se tornaram marcas auto-
crítica opositora se muniu para rais de Leonardo e que saltam
pôr em dúvida até que ponto a aos olhos nesta versão em Abu
atribuição possa ser validada é Dhabi (aqui, os cachos no cabelo
o estado de conservação bastan- e, sobretudo, detalhes anatômicos
te crítico da pintura somado a uma na mão direita).
péssima restauração anterior. Costumo
lidar com esse tipo de argumento de forma bas- Pentimento
tante cartesiana: os profissionais envolvidos De fato, Luini não é Da Vinci. Com Boltraffio,
no propósito de fazer Salvator voltar à vida são a situação não é diferente: suas personagens
um time de especialistas de extenso conheci- costumam se definir em rostos mais arredon-
mento, experiência e altíssimo gabarito no que dados e formas roliças. O uso da cor é mais “lí-
se propuseram a fazer. quido”; os elementos, mais gráficos, e seu traço
Dianne Modestini, do departamento de con- não chega a trinta por cento da maturidade e da
servação da Kress Foundation e ex-conser- firmeza no linear etéreo do gênio. Ademais, pela
vadora plena do Metropolitan de Nova York, época em que Salvator foi executado, Giovanni
é uma das maiores autoridades mundiais na estava impregnado da visceralidade cromática
área, tendo já trabalhado para o Vaticano, na de Perugino e Francia – o que distancia severa-

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mente da suavidade meditativa nesta obra. De fato, dinamismo “davinciano” aqui ausente (se-
Boltraffio não é Da Vinci. Entrementes, se a saída gundo o britânico Charles Hope, ex-diretor do
for admitir que a pintura seja, pelo menos em parte, Warburg Institute), a representação de Salva-
das mãos de Leonardo, tal “participação” seria tão tor Mundi é a versão de um ícone tradicional
marcante que lhe bastaria para uma atribuição dire- bizantino, uma arte estática, simbólica e pro-
ta, sem culpas. fundamente austera, não devendo ser manipu-
Seja como for, a presença de pentimentos (traços lada nesse sentido.
de alterações ou correções em certas partes da pin- Na mesma via, a proposta do especialista
tura feitas pelo próprio artista) foi, com certeza, um em Leonardo Jacques Franck, de que o retrato
forte diferencial, determinante para que se chegas- não possa ser “leonardesco” somente por não
se a um veredito sobre a legitimidade e originalida- se apresentar mais “contorcido”, tropeça nas
de da versão em Abu Dhabi. Mas, como nem tudo próprias pernas. Ajustar o Cristo a uma pers-
são flores, num detalhe em particular, o da palma pectiva diferente (como na Mona Lisa) anularia
da mão esquerda que sustenta a órbita, o profes- a marca maior do selo Salvator Mundi: sua sa-
sor emérito de Oxford Martin Kemp defende que o cralidade protegida pela sobriedade. É possível
pentimento que ali se desnuda seja um
alarme falso: na verdade, trata-se de um
ligeiro efeito visual sobre parte do cal- “AJUSTAR O CRISTO A UMA PERSPECTIVA
canhar da mão (quando não em contato
direto com a superfície do globo).
DIFERENTE (COMO NA MONA LISA) ANULARIA A
O problema é que tal efeito se esten- MARCA MAIOR DO SELO SALVATOR MUNDI: SUA
de para fora dos limites da órbita e, con-
SACRALIDADE PROTEGIDA PELA SOBRIEDADE”
sequentemente, deveria a mão parar de
se “duplicar” – o que não ocorre. Logo,
trata-se, mesmo, de um pentimento, única razão também que a amarga experiência do pintor em
possível para o que ali se vê. Uma forte evidência a um episódio similar de encomenda lhe tenha
corroborar este pensamento paira sobre outra ver- servido de lição com a linguagem imagética do
são leonardesca de Salvator Mundi que vinha sen- Sagrado (voltarei ao assunto mais adiante).
do tida como a definitiva até que a de Abu Dhabi Já sabendo que para se cortar o Mal deve-
surgisse. Refiro-me à cópia pertencente ao Museu mos primeiro olhar para a raiz, eis que a pró-
Diocesano de Nápoles. Em 2007 tive a oportunida- pria casa de leilões responsável, a Christie’s,
de de analisar diretamente a pintura – frequente- decide se levantar em autodefesa: “As razões
mente atribuída a Marco d’Oggiono –, ao que pude para o consenso erudito incomumente unifor-
confirmar a ausência do pentimento, sobretudo por me de que a pintura seja um trabalho autoral
cima do polegar esquerdo que se apoia na esfera, de Leonardo são várias, incluindo a relação
ou seja, se fosse camada de pele em Abu Dhabi anteriormente mencionada da pintura com os
(como Kemp quer), esta também deveria estar ali, dois desenhos preparatórios autografados no
em Nápoles. Castelo de Windsor; sua correspondência com
a composição do Salvator Mundi na gravura de
Declarada superioridade Wenceslaus Hollar de 1650; e sua declarada
Resolvida a confusão, soma-se a isso o fato de superioridade às mais de vinte versões conhe-
ter se detectado na túnica de Jesus pigmentação cidas da composição”.
de lápis-lazúli, rocha de intenso azul, um dos ma-
teriais preferidos de Da Vinci. Também devemos Esfera de cristal
levar em conta que, ao contrário do que algum De todos os aspectos submetidos a tantos
detrator possa reivindicar em termos do suposto questionamentos, a polêmica maior estaria re-

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ESTÉTICA

servada para o pequeno elemento que também dá ciocínio lógico”. Só que, assim, acaba-se por criar
nome ao quadro: a esfera de cristal que não produz um impasse: uma ideia cíclica que não desenvolve
refração da luz, um fenômeno ótico natural que di- e com a qual não se chega a lugar algum.
ficilmente teria escapado à percepção aguda de Da A declaração de Martin Kemp, ao justificar a
Vinci e sua obcecada minúcia. O biógrafo Walter não refração que se esperaria, vem, finalmente,
Isaacson, por exemplo, defende que a não distor- trazer alguma fundamentação à discussão. Ele
ção tenha sido “uma decisão consciente da parte chega a identificar de que tipo de mineral nosso
de Leonardo”. globo é feito: a calcita, ou cristal de rocha, ao que
Segundo ele, o artista deve ter achado que uma esclarece o comportamento ótico do que ali se vê
representação mais precisa poderia roubar a cena ser completamente coerente com o que ocorreria
e distrair o espectador do interesse real da pintura na prática – incluindo a presença do que chamou
(o Messias) ou estivesse “sutilmente tentando trans- de “bolsões de ar”.
mitir um ato milagroso a Cristo e sua órbita”. A meu Em seu estudo Die Entdeckung der Jupitermon-
ver, nem uma coisa nem outra… Para um melhor de 105 Jahre vor Galileo Galilei, o professor Frank
entendimento das próximas considerações, recordo Keim (um pesquisador acostumado a aproximar a
agora um trecho do meu estudo sobre a Mona Lisa Astronomia da História da Arte) oferece uma teo-
de Isleworth publicado em 2013. Penso ria, no mínimo, curiosa a esclarecer uma das mais
ser importante para trazer ao leitor chamativas peculiaridades do globo. Para ele,
uma ideia da revolução que foi a esfera, na verdade, é um mapa a nos mos-
o uso da técnica do sfumato trar as duas luas de Júpiter, Ganimedes
no final do século XV e (representada duas vezes) e Calisto
como isso foi decisivo na nos três pontos brancos em maior
constituição de Salvator destaque (O “Cinturão de Órion”
Mundi (ver capítulo “A para Kemp). A posição de Júpiter
Nova Mona Lisa”). se acha exatamente no cruzamento
das estolas de couro em “X” sobre o
A órbita e peito do Messias: a pérola.
a mão esquerda
Ainda respondendo a Casamento harmonioso
Isaacson, para qualquer O interesse de Da Vinci por astrono-
um naqueles dias em que o mia era especialmente intenso por volta
novo uso dessas técnicas leo- da preparação do quadro em 1501, e seu pro-
nardescas começava a dar as caras, jeto sobre a composição contemplaria algumas
um efeito ilusório de refração da luz em uma preocupações didáticas diante das novas desco-
pintura – ainda que muito interessante – perderia bertas científicas (algumas de suas anotações so-
feio em termos de apelo visual. Afinal, a Mona Lisa bre a construção de um telescópio chegaram até
é o que é sem a necessidade de nenhuma órbita nós). Logo, a intenção em deixar a órbita “limpa”
nas mãos, certo? Sobre sua segunda especulação na pintura deve ter sido para que apenas servisse
(Jesus e o prodígio da não refração), afinal, qual de fundo à representação pictórica e esquemática
seria a graça de um milagre “às avessas”? Esperar desta verdade adquirida das tantas observações
que a surpresa em ver Cristo segurando um glo- que ele praticara em Florença. Salvator Mundi, en-
bo de cristal seja, justamente, apagar o que seria tão, também não deixa de ser um casamento har-
seu maior fascínio (o efeito de distorção), ainda que monioso entre Religião e Ciência: o saber ideal, tal
faça algum sentido, seria tão estranho quanto acei- qual Da Vinci defendia.
tar que a “falta de provas constitui-se, por si só, Imagino se um motivo para que Leonardo não
numa prova”… E isso também não deixa de ser “ra- se preocupasse tanto com distorções óticas não

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possa ter deixado algumas pistas em Paris, em Conclusão
outra obra-prima de sua autoria, A Virgem dos Ro- Perpetuando a tendência de tudo que diz res-
chedos do Louvre. Sabemos que a execução desta peito a Da Vinci inspirar enigmas e incertezas (de
se dera entre 1483 e 1485 em meio a uma gran- forma justa ou injusta), o caso de Salvator Mun-
de caldeira de debates na própria Igreja visando a di apenas cumpre o padrão – ainda mais quando
um revisionismo sobre o Concílio de Éfeso (do ano estão envolvidos os astronômicos US$ 450,3 mi-
431) e o mistério da maternidade divina de Maria lhões, sonho de qualquer investidor no tão sedutor
(Theotokos). Encomendada pela Confraria da Ima- ramo das Artes. A diferença é que aqui o “muito
culada Conceição de Milão, que apoiava a tese de bom para ser verdade” de fato o é. São perícias
que a Virgem fosse, de fato, Mãe de Deus no antes, técnicas e testemunhos sérios que estão atestando
durante e após a concepção de Jesus, Leonardo de- aquilo cuja resposta se mostrou evidente, mesmo,
cidiu dar à representação uma roupagem comple- aos olhos de vários experientes connoisseurs.
tamente inovadora e polêmica para a época. Ainda como objeto da maior polêmica, a pintura
Ao invés das clássicas auréolas de santidade, dá ares de se consolidar no breve rol da produção
das exuberantes asas para o anjo ou das nuvens de Da Vinci, adicionando a esta um peculiar con-
cheias a ligar Céus e terra, o que se vê é um cená- junto de atributos místico-figurativos. Aliás, a pró-
rio liberto de convenções humanas, das leis da fí- pria imagem em destaque de um Jesus adulto em
sica onde tempo e espaço não mais existem e onde seu tão celebrado desfile de retratos femininos é
todos os personagens do sagrado parecem gente prova disso. Detentor de record e divisor de águas
comum. O artista nos oferece, em troca, uma nova no capitalismo feroz do mercado de Arte, talvez a
realidade, transcendental, metafísica e desconhe- maior ironia de Salvator (para longe das alternadas
cida… new age. Ali, tudo se nivela instantanea- atribuições) seja o tamanho da convulsão gerada
mente e se torna apenas… um, o “Unus”. versus a serenidade e a harmonia com
Aliás, há mesmo em Salvator as quais Cristo, ali mesmo, nos
Mundi um “U” central na borda abençoa e quer nos inspirar.
em couro da túnica de Cristo, Se é mais fácil um camelo Após a conclusão deste
ao alto do peito, que pode- passar por um buraco de texto em abril de 2019, estudos
avançados de Informática na
ria significar essa mensa- agulha que um rico her- Universidade da Califórnia (sob
gem. E mesmo em relação dar os Céus, então a má- a chefia do especialista Marco
aos diferentes tipos da ve- xima deve também servir Liang), envolvendo o software
Maya e inteligência artificial,
getação na paisagem, ficou para o comprador de um
trouxeram a confirmação em
comprovado não poderem mítico Leonardo que, mes- janeiro de 2020: a pintura é
coexistir em nosso plano dito mo muito rico, arduamente mesmo de Leonardo.
real. Portanto, faria todo sentido contemplará a glória do reco-
a destituição, tanto das propriedades nhecimento.
óticas (como esperaríamos) como da tradicional
cruz ao topo (também ausente) no orbis de Salva-
tor, em razão de a linguagem agora não mais per- Átila Soares da Costa Filho é graduado em Desenho
tencer ao mundo natural e suas particularidades. Industrial (Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro - PUC-Rio), pós-graduado em História e
A propósito, Leonardo ainda pagaria um alto preço Antropologia (Universidade Cândido Mendes – UCAM,
pela aventura com A Virgem dos Rochedos. Rejei- Belo Horizonte), História da Arte (Universidade
Geraldo Di Biase – UGB, Volta Redonda), e Filosofia
tada pela confraria (justamente por conta das ino- e Sociologia (Faculdade de Administração, Ciências,
vações), o artista se viu, por força de lei, a refazer o Educação e Letras – FACEL, Curitiba). É autor de “A
Jovem Mona Lisa” e “Leonardo e o Sudário” (Visão
quadro junto a dois colaboradores – Ambroggio e Editora, Cabo Frio), e coautor de “Leonardo da Vinci’s
Evangelista de Predis. O resultado é o que se pode Earlier Mona Lisa” (The Mona Lisa Foundation) e
“Leonardo Da Vinci’s Mona Lisa: New Perspectives”
ver hoje na National Gallery de Londres. (Fielding University Press, Califórnia).

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RELIGIÃO

MORALISMO,
TENTAÇÃO ETERNA
A manifestação do cristianismo no Brasil se dá, sobretudo, de forma
moralista, especialmente quanto às questões sexuais. Valores como
a misericórdia e a caridade, contidos nos fundamentos cristãos,
perdem espaço para dar lugar à intolerância
POR RODRIGO DOS SANTOS MANZANO

R
ecentemente, o serviço de streaming ma para justificativas e punições
Netflix lançou o especial de Natal do pela afronta à fé cristã, tentativas
grupo de humor Porta dos Fundos de censura do programa por par-
intitulado A Primeira tentação de Cristo. Como te de magistrados e, mais radical-
de praxe, o grupo lança todo fim de ano, por mente, um ataque com coquetel
ocasião dos festejos voltados ao nascimento molotov à sede do grupo. A princi-
de Jesus Cristo no Ocidente, vídeos que pal razão para isso foi o escândalo
reproduzem versões nada ortodoxas das gerado pelo retrato de um Jesus ho-
histórias bíblicas, buscando obviamente criar mossexual, descobrindo-se em sua
polêmica com a situação e com isso repercutir sexualidade.
seu humor. Desde o primeiro especial de Natal A polêmica envolvendo o especial
lançado pelo canal, no ano de 2013, ainda na do Porta dos Fundos nos revela muito do
plataforma YouTube, as versões produzidas que é o cristianismo brasileiro, reforçado
pelo grupo atraem a atenção de religiosos das pelo conservadorismo vigente. Porém, é ilusório
diversas denominações cristãs, sempre prontos achar que o cristianismo no Brasil foi majorita-
para tecer as mais ferrenhas críticas e, assim, riamente progressista algum dia. Pelo contrário,
defender a fé cristã das “heresias” cometidas o cristianismo que vigora no Brasil ao mesmo
pelos comediantes. tempo alimenta e se alimenta do conservadoris-
Porém, no final de 2019, o programa teria ul- mo, sendo apenas e tão somente um elemento
trapassado todos os limites. As manifestações moralizante da sociedade brasileira. O cristia-
contrárias ao especial tornaram-se intensas, nismo brasileiro, em grande parte, no senso co-
com diversas discussões nas casas legislati- mum, é uma doutrina moral, nada mais do que
vas do País sobre a necessidade de notas de isso, e obviamente a mais forte corrente mora-
repúdio e da chamada dos autores do progra- lista existente no País, que se entranhou de tal

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forma na mentalidade brasileira e que hoje ganha zem portadores da mensagem de Jesus de Naza-
tons aterrorizantes devido à sua forte presença na ré, mas sim a lógica de punição aos pecadores é
política por meio da bancada evangélica ou de afins. aquela que impera entre os “discípulos” de Jesus
do mundo atual. Esse moralismo empobrece de
Hipocrisia uma maneira gigantesca a essência do discurso
Na verdade, o tipo de cristianismo que se sedi- cristão, bem como toda a tradição do povo judeu
mentou no Brasil nada mais é do que uma versão da Antiguidade e do messianismo em sua forma-
que cimenta o discurso conservador e excludente, ção, pois a religião cristã traz como uma de suas
um cristianismo patriarcal, machista, homofóbi- mensagens centrais a liberdade.
co, por consequência, opressor. Tem muito mais Apesar disso, o que se vê no Brasil é a repro-
tons farisaicos do que propriamente tons liberta- dução e intensificação do cristianismo castrador e
dores ou de caridade. A máxima cristã “amai-vos alienante que foi imposto por séculos ao Ociden-
uns aos outros” parece não reverberar nas te. Por isso mesmo, não deixa de ser hipócrita, em
práticas dos que hoje se di- uma sociedade como a brasileira, essa
hegemonia cristã que atualmente
se impõe em uma de suas ver-
sões mais moralistas e, por
consequência, mais pobres.
© XOCHICALCO / ISTOCKPHOTO.COM

A mensagem de Jesus é total-


mente dilacerada e encaixada em
esquemas que auxiliam que uma
sociedade excludente e opressora
se mantenha assim.
O que se pretende neste artigo
é mostrar como o cristianismo de-
senvolvido no Brasil, herdeiro da
tradição cristã ocidental, porém,
que ganha tons mais sombrios em
seu moralismo exacerbado, não deixa
de ser hipócrita, em um país que é conhe-
cido no mundo como a terra do carnaval, e
aqui entendendo-se a festa do carnaval em seu
cunho mais sexual possível. Ao mesmo tempo que
vendemos ao mundo a imagem do país das mulhe-
res lindas, atraentes, a terra dos prazeres, impo-
mos um discurso moralizante com verniz cristão
em uma propaganda dialética, mas ao mesmo tem-
po complementar. Dessa forma, o discurso cris-
tão se torna uma das ideologias mais fortes para
o machismo e o patriarcado, o que faz com que a
sociedade brasileira permaneça como é. Isso por-
que o cristianismo brasileiro abandona a essência
da mensagem de Cristo, a caridade, não só aqui
entendida como assistencialismo, mas também
entendida como a verdadeira preocupação em
transformar a realidade.

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RELIGIÃO

“O DEUS DO ANTIGO JESUS E OS “PARTIDOS”


TESTAMENTO PODE SER DE SUA ÉPOCA
INCRIVELMENTE CRUEL Analisando do ponto de vista histórico, Jesus foi um entre tan-
QUANDO OS POBRES DESTA tos na época que diziam ser o Messias, o escolhido de Deus,
para libertar seu povo. O povo queria, necessitava de liberda-
TERRA SÃO OPRIMIDOS, de. É importante ressaltar que no mundo antigo (na verdade, se
POIS A LIBERTAÇÃO É repararmos não só) o natural e o sobrenatural não eram duas
realidades estanques e totalmente separadas uma da outra.
CONDIÇÃO NECESSÁRIA Pelo contrário, a irrupção do sobrenatural no natural era algo
AO HOMEM. DO ANTIGO AO comum. Assim, mesmo a noção de história para os antigos como
o relato fiel dos fatos, como relato jornalístico, com verossimi-
NOVO TESTAMENTO, DEUS lhança, não era uma preocupação. Assim, eterno e passageiro,
SE COLOCA CONTRA AS imutável e mutável, perfeito e imperfeito, estavam em constante
diálogo e o mundo era marcado por um misticismo impregnado
INJUSTIÇAS DAQUELES
na mentalidade geral. Desta forma, a crença em um Salvador
QUE SÃO OPRIMIDOS” vindo de Deus para libertar seu povo não era algo absurdo, pois
o próprio Deus estava presente e atuava. Assim, a esperança de
um povo abandonado estava na crença de um Deus vingador e
misericordioso ao mesmo tempo.
Se a religião judaica trazia essa aura esperançosa, a socieda-
Deturpação do cristianismo de judaica em nada dava espaço para esperanças de mudança.
Obviamente, não se tem aqui ne- No topo da sociedade judaica estava a família real de Herodes.
nhuma intenção de fazer Jesus ser ou Rivalizando com Herodes, havia o Sinédrio, conselho supremo
mesmo parecer um marxista, um comu- dos sacerdotes do Templo de Jerusalém. O Templo era o grande
nista. Porém, é fato que Cristo teve uma centro do poder junto ao povo, e o sumo sacerdote era aquele
práxis crítica ante o seu tempo, ante as que de alguma forma influenciava as grandes decisões. Outro
autoridades de sua época, pois o povo grupo que teve embates centrais com Jesus foram os fariseus,
vivia com pesados fardos, vindos da grupo da sociedade judaica comparável hoje ao que seria uma
exploração romana, da corrupção dos classe média, artesãos e comerciantes da época, que defendiam
sacerdotes aliados aos dominadores e à a mais restrita observação da lei judaica como forma de obter
hipocrisia farisaica que colocava a ob- a misericórdia divina e assim a vinda do Messias. Os fariseus
servação da lei de Deus acima da carida- merecem uma atenção especial porque colocavam a observa-
ção das leis e das prescrições religiosas acima da caridade. Na
de. Ironicamente, Jesus de Nazaré, que
prática, embora resistissem ao domínio dos romanos, nunca re-
combateu essa situação em sua época,
presentaram nenhuma ameaça a Roma e até auxiliaram a domi-
acabou sendo o profeta de uma religião
nação imperial, com seu discurso alienante. É contra a hipocrisia
que no Brasil hodierno reproduz tudo
de uma religião opressora que Jesus se levanta.
isso. Uma religião que cimenta ideologi-
No conhecido sermão da montanha, Jesus afirma que não veio
camente a dominação norte-americana,
abolir a lei do Antigo Testamento, mas dar-lhe pleno cumprimen-
a corrupção das elites nacionais junto a
to. Ao percorrer o sermão, quando fala da lei, o que Jesus quer
essa dominação e o discurso moralista
mostrar é que de nada adianta cumprir preceitos como externa-
e hipócrita de religiosos diversos junto lidade, para agradar a Deus, querer se mostrar bonzinho, fiel e
às práticas da população quando estas piedoso. Pelo contrário, a bondade, a fé e a piedade devem vir de
afrontam os ensinamentos evangélicos. dentro, do mais fundo do nosso ser. É a ideia de empatia, mas de
Enfim, o moralismo é a grande tentação uma forma mais intensa. Para ajudar a entendermos o quanto
da mensagem cristã no Brasil. os evangelhos buscam mostrar o grau de empatia mostrado por

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Oprimidos e injustiçados
Jesus, quando ele multiplica os pães, o fez por sentir compaixão É a noção muito mais forte do Deus
do povo pois eram como ovelhas sem pastor, ou seja, estavam
do Antigo Testamento do que do Deus
abandonados totalmente (Evangelho de Marcos, capítulo 6, ver-
misericordioso revelado por Jesus. E, ob-
sículo 34). O termo grego usualmente traduzido por “ter compai-
viamente, uma noção de cristianismo mui-
xão” ou “compadecer-se” é splagchnizomai, verbo que se origina
to mais de cunho farisaico do que de cunho
de entranhas (splagchnon).
realmente visceral, como defendido por Je-
É a noção de um sentimento de se colocar no lugar do outro
sus. Vale ressaltar que, mesmo no Antigo
de tal forma que vem do mais profundo do ser, que no caso da
Testamento, o caso mais urgente e fantás-
cultura judaica seriam as vísceras. Literalmente é comprometer-
-se visceralmente com o outro. Esse é o grau de compromisso tico de atuação de Deus foi na libertação do
que Jesus espera de seus discípulos na solidariedade, na sua povo hebreu da escravidão no Egito. Embo-
vivência e na sua observação da fé. Assim, a regra de ouro, um ra haja diversas contestações sobre a vera-
dos resumos da mensagem de Jesus (“aquilo que não quero para cidade não só da libertação em si, mas da
mim, não devo fazer aos outros”) não se torna somente uma própria escravidão de hebreus ou de qual-
lógica mecânica e egoísta, mas sim uma verdadeira construção quer outro grupo no Egito, uma vez que nas
que vem de dentro e se materializa no amor ao próximo. sociedades da Antiguidade Oriental existia
Vale ressaltar que o amor ao próximo pensado por Jesus, expos- muito mais o sistema de servidão coletiva,
to em seu ensinamento, não é somente algo ingênuo e românti- a mensagem é clara: Deus agiu com vio-
co. É um amor de quem denuncia a religiosidade falsa, hipócrita, lência quando o poder de um dos maiores
apoiadora da dominação e da exclusão dos ricos e poderosos de impérios de mundo antigo não foi justo com
seu tempo. Jesus em nenhum momento chega propriamente a os oprimidos.
condenar a riqueza, porém ainda assim a vê com maus olhos, O Deus do Antigo Testamento pode ser
pois ela é fruto de apego e de egoísmo. Impede o homem de de- incrivelmente cruel quando os pobres des-
senvolver esse compromisso visceral com o que ele chama de ta terra são oprimidos, pois a libertação é
Reino de Deus. condição necessária ao homem. Do Antigo
Uma digressão mais teológica do que filosófica nos ajuda a perce- ao Novo Testamento, Deus se coloca contra
ber o quanto o cristianismo parece ter abandonado tudo isso em as injustiças daqueles que são oprimidos. E
seu desenvolvimento, principalmente o cristianismo que dá as ca- aqui, para mostrar a dualidade desse cris-
ras no Brasil hodierno. Assim, se Jesus atacou veementemente a tianismo moralista e pouco ou nada vis-
hipocrisia dos fariseus em sua religiosidade opressiva e moralis- ceralmente comprometido, as palavras de
ta, consequentemente vazia, se Jesus atacou as alianças escusas Dom Helder Câmara, arcebispo nordestino,
entre sacerdotes e romanos, mostrando que o povo judeu era víti- do Recife: “quando dou comida aos pobres,
ma de uma injustiça promovida por aqueles que deveriam buscar sou chamado de santo; quando pergunto
amenizar suas dores e denunciar essas mesmas injustiças, os por que eles são pobres, sou chamado de
cristãos atuais preocupam-se somente com a repressão moral.
comunista”.
Assim, a questão da fome e da pobreza pode até ser um escânda-
Como já dito diversas vezes aqui, o cris-
lo, algo de indignação de muitos cristãos, mas causa muito mais
tianismo brasileiro tem fortes tons mora-
frisson, escândalo “homens que se deitam com outros homens”
listas. Tal situação não vem de hoje. Nos
ou mesmo mulheres que buscam viver sua sexualidade de forma
últimos tempos, tal moralismo se apresenta
livre. A visão de Deus que surge no cristianismo expresso pe-
com mais força. Porém, o moralismo cris-
los brasileiros é a de um Deus que é ágil para punir quem a ele
tão, um grande braço da cultura patriarcal,
ofende, seja por meio de relações homossexuais, relações fora
é extremamente hipócrita. Não é difícil ver-
do casamento (desde que sejam as mulheres, obviamente) ou de
quem zomba dele por meio de especiais de Natal pouco ou nada mos cristãos bradarem aos diversos cantos
ortodoxos, mas ao mesmo tempo um Deus que é moroso na hora que a homossexualidade vai contra a lei
de se mostrar misericordioso ou defensor da justiça ante seu de Deus, e chavões para isso não faltam,
povo abandonado. desde pretensos chavões bem-humorados

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RELIGIÃO

como “Deus fez Adão e Eva, e não Adão e Ivo” até uma religião de costumes, de práticas e observa-
aqueles que alegam um tom científico, biológico, ções legais, na qual a empatia, a solidariedade, o
“dois iguais não reproduzem”. Ao mesmo tempo, splagchnizomai não só é jogado a segundo plano,
não é incomum os mesmos que abominam a ho- mas é literalmente descartado. Até se tem um apelo
mossexualidade apreciarem filmes pornográficos à caridade, mas além de não ser o essencial, pois
com duas mulheres tendo relação sexual, pois as- a questão das práticas sexuais é mais forte e mais
sim se dá vazão a desejos obscuros. urgente, faz-se caridade muito mais por desencar-
go de consciência do que por um reconhecimento
Nada de ética do outro como alguém digno de vida plena ou, em
Da mesma forma, é comum entre homens, e linguagem mais civil, digno de direitos.
por extensão numa sociedade machista mulheres
também, se impingir a pecha a mulheres de vida Essência da pregação
sexual ativa com diversos parceiros de “vadia”, Assim, o cristão brasileiro, ao mesmo tempo
“vagabunda”, “piranha”, entre tantos outros xin- que se indigna com a ridicularização da sua reli-
gamentos que as diminuem. Porém, para o “ma- gião, não teme criticar o Papa Francisco quando
cho alfa”, é extremamente importante a existência este se coloca sobre questões polêmicas adotando
dessas mulheres, para que possam assim não só um discurso mais progressista. Fica claro que o
obter prazer, mas contabilizar suas diversas con- grande repúdio por parte da comunidade cristã ao
quistas, mostrar sua masculinidade. Assim, ao especial de Natal do Porta dos Fundos se dá por
mesmo tempo que critica e achincalha a “vadia”, uma via moralista, porque tocou-se na questão se-
aproveita-se dela quando se interessa. xual. Jesus retratado como alguém que tem inte-
Na essência, o País tropical, do eterno carnaval, resse homossexual causa um verdadeiro repúdio,
que se orgulha de ser uma terra livre e cheia de pra- mas, ao mesmo tempo, os seus críticos soltam um
zeres, também impõe uma moralidade de cunho batido bordão “por que não fazem piadas com os
cristão extremamente castradora, porém às mulhe- muçulmanos?”, demonstrando total falta de empa-
res e aos homossexuais, mas não ao homem hétero. tia e de respeito com a religião alheia, xenofobia,
Aqui se percebe a herança da escravidão e da for- associando imediatamente a religião muçulmana
mação colonial do País. O senhor de engenho era o ao terrorismo e obviamente ao desejo de aniquila-
patriarca da família e dono das escravas, às quais ção dos detratores do cristianismo, tal qual os reli-
impunha suas vontades sexuais, mesmo sendo ca- giosos da época de Jesus ao se sentirem ofendidos
tólico e extremo defensor da família e dos valores com práticas de Jesus o quiseram morto.
cristãos, inclusive sendo valor cristão no período A aparência não só precede a essência da reli-
da escravidão que os negros eram muito mais pró- gião, mas se impõe a ela e toma seu lugar. A re-
ximos a animais do que a seres humanos, mas tal ligião que deveria ser um caminho a Deus, e na
visão sobre os negros africanos não impedia de ver religião cristã só se chega a Deus através do outro,
as mulheres negras como objeto de desejo sexual e passa a ser um fim em si mesmo, que na essência
de satisfação de prazeres. não se leva a lugar algum. Tudo se torna um fim em
O moralismo cristão, principalmente nessa si, vazio, sem sentimento, sem vida. Ironicamente,
manifestação de cristianismo que ganha força no Jesus, que dizia que veio para trazer vida, e vida
Brasil, é hipócrita porque não tem nada de ético. plena, acabou sendo o artífice de uma religião cas-
Se o cristianismo, enquanto religião que prega o tradora, amortizadora, anestésica e, principalmen-
amor, a justiça e a paz, tem um forte apelo ético, te, não transformadora. A caridade não está nem
pois busca deixar claro o que é o bem e o mal, e de longe na essência do cristianismo brasileiro
assim se apela ao cristão que evite o mal e pratique contemporâneo.
o bem, a manifestação cristã, que não está isolada Embora a religião seja fator humano, presente
na história da religião, do Brasil atual, é apenas na maioria das culturas no decorrer da história da

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“NA ESSÊNCIA É UM CRISTIANISMO ALIMENTADOR
DO INDIVIDUALISMO, POR ISSO TÃO INTERESSANTE
À LÓGICA CAPITALISTA, AO NEOLIBERALISMO, BEM
COMO À DESARTICULAÇÃO DO POVO NAS SUAS
LUTAS POR DIGNIDADE, POR DIREITOS”

civilização ocidental, e aparentemente a abertura vezes tem medo e ódio da crítica social, pois esta
ao sobrenatural algo próprio do ser humano, sem facilmente se volta contra a própria religião. Marx já
entrar aqui em qual seria a origem disso, não dei- dizia que a “religião é o ópio do povo” devido ao seu
xa de ser frustrante saber que na sociedade bra- poder de alienação, e a condenação da teologia da li-
sileira a religião cristã tem um poder tão grande bertação por parte da Igreja Católica nos anos 1980
na definição dos seus rumos. Ainda mais esse tipo mostra o quanto o próprio cristianismo tem medo de
de cristianismo que de certo modo sempre esteve uma crítica mais contundente. O cristianismo per-
presente no Brasil e que ganhou força nos últimos de o poder de libertação, libertação esta sustentada
anos, de forma especial com o fortalecimento das pela solidariedade extrema do splagchnizomai, pois
igrejas evangélicas, embora não esteja restrito a abandona-se a terra e busca-se o céu, ignora-se o
elas. Teríamos um grande ganho para um país natural e corre-se atrás do sobrenatural, exclui-se o
notadamente desigual se o cristianismo que aqui físico para alcançar o metafísico.
se impusesse fosse aquele que prega a caridade, E, assim, se Jesus disse que veio dar pleno cum-
que abomina a pobreza e que coloca a preocupação primento à lei, a partir do amor, o ágape, o amor-
com o outro na essência da pregação. -entrega, que se sustenta no splagchnizomai, o
cristianismo atual continua preso em leis. O cristão
Compromisso visceral se distancia do próximo em seu moralismo estéril
Voltamos aqui ao termo splagchnizomai, à cari- e assim rejeita tudo o que pode ser diferente. Na
dade e compromisso visceral com o próximo. Nem essência é um cristianismo alimentador do indivi-
de longe é esse cristianismo que é apregoado, seja dualismo, por isso tão interessante à lógica capita-
nas igrejas, seja por aqueles que se elegem a cargos lista, ao neoliberalismo, bem como à desarticulação
públicos se dizendo defensores dos valores cris- do povo nas suas lutas por dignidade, por direitos.
tãos. Uma religiosidade que exclui, que condena, Torna-se um cristianismo que, ao invés de trazer
mas nem de longe uma religião que liberta. O le- a vida plena, pelo contrário, a distancia cada vez
gado cristão no Brasil tornou-se o legado do reacio- mais dos diversos seres humanos, mostrando que
narismo, do conservadorismo e, mais do que isso, o Reino de Deus pregado por Cristo não passa de
da manutenção de um status quo. Uma religião que um amontoado de regras, mas que pouco ou nada
teria, sim, um potencial de transformação na vida tem de realmente encarnado e transformador, que
das pessoas, de uma sociedade que se fizesse mais poderia ter uma palavra muito mais contundente
solidária, na prática torna-se elemento de condena- na denúncia das injustiças que dominam não só o
ção, de exclusão e muitas vezes até de mortes. Brasil, mas um mundo em que cada vez menos vida
Um país com altos índices de feminicídio, com o digna é oferecida para todos.
maior índice de assassinatos de homossexuais, com
altos índices de estupros, tem tais situações como
Rodrigo dos Santos Manzano é graduado
decorrência desse moralismo machista, patriarca- em Filosofia pela UNIFAI, especialista em
lista, que não deixa de ser alicerçado nessa visão de Filosofia Contemporânea e História pela
Universidade Metodista. Atua na Rede
cristianismo. Um cristianismo inclusive que muitas Pública do Estado de São Paulo.

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SOCIOLOGIA

Soasig
Chamaillard,
Notre Dame
du Poulpe ou
Lady Octopus
(Maria com
© REPRODUÇÃO

Tentáculos),
2015.

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DAS MADONAS
ÀS PROSTITUTAS
Uma análise das imagens das mulheres no Ocidente
moderno passa por Maria e Maria Madalena e nos mostra os
contatos sagrados e profanos entre o passado e o presente,
interações sociais e formas simbólicas de representação

O
POR ISABELLE ANCHIETA que as imagens das Marias e Marias
Madalenas nos dizem sobre o pre-
sente e o futuro? Muito. Falam-nos,
sobretudo, da capacidade das representações
visuais de responder (ou não) às nossas an-
gústias sociais. A imagem de Maria foi, si-
multaneamente, geradora de muitos dilemas
e a fonte a que todos recorriam para apaziguá-
-los, para os homens e, especialmente, para as
mulheres, mesmo as casadas. Pois não havia
salvação “senão pela porta pequena”, alerta-
va o bispo francês Hildeberto. O selo virginal
será elemento constituidor da imagem de Ma-
ria e prova do poder ilimitado de uma religião
que se afirmava. Maria imperou e, de seu tro-
no, orquestrou simbolicamente quase todas
as relações sociais por vários séculos.

Excerto da obra Imagens da Mulher


no Ocidente Moderno Vol. 2 (Maria e
Maria Madalena) - Edusp.

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SOCIOLOGIA

Soasig Chamaillard, My Little Mary © REPRODUÇÃO Soasig Chamaillard, Super Marie


(Minha Pequena Maria), 2007. ou Super Mary (Super Maria), 2007.

Na imagem da artista francesa contemporâ-


“AINDA QUE PAREÇA SER A NEGAÇÃO
nea Soasig Chamaillard, o poder “tentacular”
de Maria ganha forma irônica. Na série denomi- DE EVA, A IMAGEM DE MARIA PRESERVA
nada Aparições, ela realiza hibridismos impro- AS ORIGENS DESSA INVERSÃO MORAL.
váveis e provocativos em pequenas esculturas UMA IDEIA TÃO BEM SINTETIZADA PELA
de Maria. A imagem está inserida agora em
uma sociedade que troca seus dramas existen-
ARTISTA CONTEMPORÂNEA EM SUA
ciais por objetos menores. Vulgares. Maria se (INCÔMODA) MARIA SERPENTE, PRONTA
metamorfoseia não mais para ser a mediadora A NOS INOCULAR SEU VENENO PARA
de grandes questões morais, religiosas e políti-
DEPOIS OFERECER A SUA CURA”
cas; aproxima-se, quase desrespeitosa e profa-
namente, da vida cotidiana. Banal.
O Super-homem, pôneis, Meninas super- o distanciamento respeitoso invocado pela arte, e
poderosas, Hello Kitty, Barbies e uma série de favoreciam um senso de intimidade sentimental,
personagens-objetos que transitam entre o entre- apelando para a gratificação imediata do público
tenimento e o universo infantil irão mimetizar-se e para o consumo fácil”1.
à imagem sagrada. Maria mais parece um suve-
nir turístico do que propriamente uma imagem Sucesso secular
capaz de ordenar a vida social, como foi no pas- Mas por que o kitsch? Não me parece sem
sado. Sua aproximação, ou melhor, fusão, com o propósito. O kitsch tem em seu âmago as emo-
kitsch a dessacraliza, no sentido mesmo pensado ções sociais. Diz de um lugar da alma absolu-
por Walter Benjamin, ao perceber que tais perso- tamente pacificado e irreal. Por isso seu poder
nagens objetificados “dissolviam a distância en- é irresistível, mesmo sobre os mais cínicos e
tre a arte e os objetos utilitários, quase anulando incrédulos. Maria foi, nessa direção, a própria

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imagem do kitsch. Representava esse colo mater- que a representavam. Porém, não sem resis-
nal simbólico diante de uma realidade nada aco- tências. Havia nessa imagem não somente um
lhedora. Em um mundo assolado por doenças e por sentimento de apaziguamento, mas uma in-
imagens extremas do inferno e do paraíso, Maria quietação. Pois, se por um lado ela representava
representou o purgatório, a possibilidade de passar o perdão e a piedade diante de uma sociedade
de um lugar ao outro. Nas imagens, Maria transita. que apertava as cordas da censura e da auto-
Leva o leite do seu perdão às almas condenadas e censura moral e sexual, era, também, a prin-
voa entre nuvens e anjos. A “doce Maria”, repre- cipal causadora desse sentimento angustiante.
sentada (ironicamente) por Soasig, foi sobretudo Avesso de Eva, Maria foi uma espécie de
um lugar imaginário afetuoso, maternal. Kitsch. antídoto simbólico, ideia em grande medida
Seu apelo aos sentimentos sociais será a fonte manipulada pelos homens da Igreja, como
de seu sucesso secular; ela é, sem dúvida, a mais transparece na fala do arcebispo Anselmo de
bem-sucedida imagem religiosa do Ocidente. Se- Cantuária, no século XI: “Para impedir que as
duz não só os mecenas, mas os próprios artistas mulheres desesperem de alcançar a sorte dos
bem-aventurados, já que uma mulher esteve
na origem de um mal tão grande, é preciso,
para lhe restituir a esperança, que uma mulher
Soasig Chamaillard, Sssnake Mary (Maria Ssserpente), 2016. esteja na origem de um bem igualmente gran-
de”2. Ainda que pareça ser a negação de Eva,
a imagem de Maria preserva as origens dessa
inversão moral. Uma ideia tão bem sintetizada
pela artista contemporânea em sua (incômoda)
Maria Serpente, pronta a nos inocular seu ve-
neno para depois oferecer a sua cura.

Imagem multifacetada
Salvacionista, a imagem de Maria cumpriu
muitas funções sociais, e adaptou-se visualmen-
te a cada uma delas. Ela passa de imperial, na
fase de legitimação da nova religião católica, a
maternal, durante a apropriação e patrocínio da
burguesia nascente; é símbolo da Contrarrefor-
ma, descendo do trono, para compor uma nativi-
dade idealizada por São Francisco de Assis. No
século XVII, torna-se negra e mestiça durante o
processo de colonização das Américas, uma de
suas mudanças mais sentidas e, curiosamente,
uma das mais silenciadas. Imagem que funcio-
nou como ponte afetiva entre o Novo e o Velho
Mundo, estabelecendo um laço comum entre
nacionalidades que se consideravam hierarqui-
camente distintas, ainda que essa ligação te-
nha sido usada como forma de dulcificação dos
ânimos em prol da submissão das populações
© REPRODUÇÃO

locais. Maria ensinou a sociedade a associar a


virtude à virgindade, e sua perda ao pecado.

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SOCIOLOGIA

“PARA OS HOMENS, SURGE A PROMESSA


Multifacetada, a imagem da santa pode ser
DA ASCENSÃO SOCIAL PELA CARREIRA,
tudo, menos a imagem da mulher. Maria tinha
um limite inegociável: sua sexualidade. Ou me- E NÃO MAIS PELA ORIGEM SOCIAL.
lhor, a ausência dela. Uma representação femi- NAS IMAGENS DE MARY CASSATT E
nina que teve o poder de determinar a vida de BERTHE MORISOT, VISUALIZAMOS ESSAS
muitas mulheres, especialmente as mais pobres
MULHERES EM GERAL NO ESPAÇO
e que perderam a virgindade, empurrando-as
para a prostituição. No entanto, curiosamente, PRIVADO, DEDICADAS AOS CUIDADOS
algumas prostitutas foram as primeiras a ter um DOS FILHOS E À LEITURA DE ROMANCES”
retrato público pintado por grandes artistas dos
séculos XVI e XVII, representação até então res-

© REPRODUÇÃO
trita aos nobres, papas e reis.
Mulheres que adquirem, a meu ver, um con-
traditório status social, no que poderíamos
chamar de “desprivilegiadas em alta conta”.
Eis uma das [minhas] conclusões: como as
mulheres e suas imagens podem adquirir po-
deres imprevistos. Tanto é que as prostitutas
se tornam as primeiras mulheres a conseguir
mobilidade social por meio do uso de artifícios,
visualidades e dissimulações dos maneirismos
dos estratos sociais elevados.

Maria Madalena
Não sem razão, vimos emergir durante o
século XVII outra imagem mediadora: Maria
Madalena. Sua imagem respondia não só ao Édouard Manet, Olympia, 1863.
impasse das mulheres mas da própria Igreja
maculada por seus escândalos. Madalena fará
um caminho inverso ao de Maria: do pecado
à salvação. Sob o signo do arrependimento e delações públicas espetaculares. No decorrer
da eterna penitência, vemos agora surgir uma da pesquisa, percebi como essas mulheres imi-
imagem improvável, no seio mesmo da Igreja. tam estrategicamente a imagem de Madalena:
A mulher de longos cabelos loiros, com os seios a mulher que tinha sete demônios no corpo e,
à mostra, aos pés da cruz, inventada pelo papa após exorcizada, se santifica, tornando-se cele-
Gregório Magno (em 599) e fixada por meio da bridade local.
repetição visual. Ao longo do século XVII, pude identificar
Madalena será a padroeira de muitos con- também indícios de sentimentos tidos como
ventos, convocando o encobrimento das pros- modernos nas séries das imagens de Mada-
titutas que se tornavam um problema social, lena seminua no deserto, junto à caveira e ao
tanto numérico como pelo poder imprevisível Evangelho, conhecidas como uma modalidade
que algumas adquiriram. Mas o que parecia das Vanitas (Vaidades). Entre esses sentimen-
ser um confinamento revelou também resul- tos, a necessidade de isolamento, a autonomia
tados imprevistos. Simulando possessões dia- em relação à família, a intelectualização das
bólicas, muitas freiras conseguiram mandar escolhas e o sensualismo sonoro e corporal,
para a fogueira padres e desafetos por meio de ainda que delimitado por uma moralidade cris-

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tã, representado pela lembrança da morte como Tal imagem não estará a sós. Outras moder-
mensagem moral. Essa mensagem vai perden- nidades emergem em um momento que apa-
do força nas séries, tendendo a modular Mada- renta trazer a cada indivíduo uma nova forma
lena de forma cada vez mais humana, incerta de relacionar-se com os demais. Para as mu-
e mundana, e retirando de sua companhia a lheres respeitáveis, nasce a possibilidade do
caveira, o alabastro e o Evangelho. casamento por amor. Para os homens, surge
a promessa da ascensão social pela carreira, e
Quebra de imagens não mais pela origem social. Nas imagens de
Uma imagem, no entanto, se tornará símbo- Mary Cassatt e Berthe Morisot, visualizamos
lo dessa ruptura: Olympia, de Manet, exposta essas mulheres em geral no espaço privado,
no Salão de Paris em 1865. Uma prostituta dedicadas aos cuidados dos filhos e à leitura
indiferente, sem sinais de arrependimento, ex- de romances. Por um lado, parecem celebrar o
posta ao lado da imagem de um Cristo insul- sentimento da família como um espaço de refú-
tado pelos soldados, também de Manet. Uma gio e proteção de uma sociedade que se torna-
mulher particular e sexualizada que revelava va hostil; mas também desvelam a frustração
o frágil jogo de representações das diferenças da promessa moderna. Em geral a sós, sem a
sociais, ascendendo de classe pela dissimula- companhia do marido, nós a vemos retomar os
ção visual. A ressonância dessa imagem em romances como forma de reviver uma paixão
grande medida pode ser explicada pelo fato que parece ter se esvaído. Nesse sentido, tanto
de Manet ter pintado a modernidade dentro da as mulheres casadas como as prostitutas mo-
modernidade […], na medida em que a prosti- dernas revelam, no olhar distante e melancóli-
tuta se torna um símbolo das relações sociais co, um lugar que ainda não foi encontrado.
nascentes e é a primeira a experimentar certa Um lugar incerto e plural que ganhará no-
mobilidade social. vamente forma por meio da prostituta. Ou me-
lhor, das prostitutas, no plural, em
Les demoiselles d’Avignon (1907),
© REPRODUÇÃO

de Pablo Picasso. Essa imagem


demarca uma nova etapa da mo-
dernidade em direção ao contem-
porâneo. Desde então a mulher não
poderia mais ser figurada em uma
imagem universal. Quebramos sua
imagem em mil e um cubos. Mul-
tifacetada, a mulher se apresenta
como “uma soma de destruições”3,
oscilando entre o primitivismo e o
clássico, a selvageria e a civiliza-
ção, sem que uma imagem bem de-
finida se recomponha. Uma quase
iconoclastia, não fosse o gesto feito
por meio de uma imagem. Ou se-
ria esse mesmo movimento a mais
sofisticada forma de refletir sobre o
ilusionismo das imagens? Quebra
imagens por meio de uma imagem
quebrada?

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SOCIOLOGIA

Jeff Koons, vo. Das Madonas às prostitutas. Do culto à en-


Made in
Heaven carnação das imagens. As prostitutas parecem
(Feito no ser a esfinge desse novo sistema de relações
Céu), 1989.
mais efêmeras e artificiais que se anuncia,
desvelando simultaneamente a falsificação das
interações sociais e de suas formas simbólicas
de representação.

© REPRODUÇÃO
Descontínuas, as imagens perdem a força de
estar “no lugar de”. O laço que une o real e o
Jeff Koons, simbólico afrouxa-se, quase se rompe. Os pró-
Ilona on prios artistas, em busca de uma forma autoral,
Top (Rosa
Background), retomam tradições pouco conhecidas5 e tentam
Ilona no Topo não citar diretamente uma imagem familiar,
(Fundo Rosa)
1990. inviabilizando, assim, a repetição e a confor-
mação do estereótipo. A mulher é agora plu-
ral: mulheres. Ela só pode, desde então, existir
na forma particular que a encerra. Pintam-se,
dessa forma, (muitas) modernidades dentro da
modernidade, encontrando, novamente, uma
expressão exata para as ambiguidades do tem-
po que se anuncia.
© REPRODUÇÃO

Um tempo que fará da própria imagem e


dos seus produtores uma questão em si mes-
ma, como fez o artista norte-americano Jeff
Koons. Unindo a ideia de ready made de Mar-
cel Duchamp, a pop art de Andy Warhol e um
“rococó kitsch”, Koons marcará essa fase au-
torreflexiva que tanto caracteriza a arte con-
temporânea. E, novamente, o fará por meio de
Das Madonas às prostitutas uma prostituta. Só que uma prostituta ready
Entendemos, com as demoiselles d’Avignon, made, por assim dizer: Ilona Staller, a já célebre
que no lugar do rosto havia máscaras. Assim Cicciolina, húngara naturalizada italiana com
reveladas, elas se tornam grotescas, artificiais, uma trajetória atravessada pela política e pela
perdendo provisoriamente seu encanto e o po- pornografia. Ilona trabalhou para o serviço se-
der de nos seduzir e de serem levadas a sério. creto na Hungria, realizou filmes pornô na Itá-
Não que essas máscaras sejam a descoberta lia, consagrou-se com um programa de rádio
derradeira de uma identidade escondida. A em que falava abertamente sobre sexo, foi, em
máscara é a própria verdade social. Elas fa- 1987, a segunda deputada mais bem votada na
lam da eterna representação do eu na vida co- Itália, fundou dois partidos políticos e soube,
tidiana4. Ao pintar várias prostitutas, Picasso como ninguém, “fazer política com o corpo”6.
multiplica os reflexos e os efeitos da Olympia Tanto que se ofereceu sexualmente a Saddam
de Manet. Não sem propósito, ambos elegem Hussein em troca da paz durante a Guerra do
a prostituta como a imagem da modernidade. Golfo, em 2000. Cicciolina é a Veronica Fran-
Nessa direção, podemos entender que a quebra co dos nossos tempos. A mulher que, ciente do
do illusio da imagem não se dá somente pelo seu fascínio visual, o utiliza a seu favor para
uso de uma técnica, mas pela escolha do moti- conquistar mobilidade social.

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© DIVULGAÇÃO
“E SÃO AS IDEIAS DE CONFIANÇA E
AUTOCONFIANÇA QUE PERPASSAM
A IMAGEM. POIS SE A RETICENTE
CULTURA DE MASSA ENVERGONHA- Título: Imagens
da Mulher no
-SE DE SI, A ARTE CONTEMPORÂNEA Ocidente Moderno
Vol. 2 (Maria e
INCITA (EXPLICITAMENTE) A SUA Maria Madalena)
Autora:
AUTOAFIRMAÇÃO E A DOS CORPOS Isabelle Anchieta
Páginas: 224
ABSOLUTAMENTE INDIVIDUALIZADOS” Editora: Edusp

Arte kitsch sia, a que se dedicou à arte moderna, mas de


Como “arte pronta”, Jeff Koons percebeu na afirmação mesma de seu lugar. Exibem-se na
imagem dessa ambígua mulher todos os ele- imagem o próprio artista, a prostituta e esse
mentos com os quais queria dialogar. Não seria mundo artificialmente transcendente. Cená-
preciso nada além de se deslocar e se inserir rios falsos, o hedonismo e a vivência de uma
(literalmente) no seu universo visual. Utilizan- sexualidade sem culpa harmonizam-se, enfim,
do cenários típicos dos filmes pornô de Ciccio- em uma imagem redentora da cultura de mas-
lina, como ursos de pelúcia, borboletas e uma sas. Made in Heaven, ainda que esse céu seja
coroa de flores na cabeça, Koons faz ressurgir, produzido em uma cultura que se reencontra. A
por meio da fotografia, a nova Olympia na obra ideia da banalidade é sacralizada por seu poder
que intitulou Made in Heaven, de 1989. democratizador10.
Assim como na imagem de Manet, há aqui
um quê de desencaixe. Um mau gosto típico Exibição do gozo
das falsificações do kitsch, uma arte que diz Eis que surge diante de nós uma mulher
tanto da burguesia nascente e do seu lugar mal com uma biografia. Uma Madalena contempo-
definido esteticamente. Quem descreve assim rânea sem os sinais da culpa cristã ou mesmo
é o historiador Franco Moretti, ao analisar esse da melancolia moderna. Cicciolina literalmente
grupo que não gosta de ser chamado de bur- exibe seu gozo; a encenação confunde-se com
guês, que não é “nem camponês, nem servo, a vida real. Pois não há falsificação onde existe
mas também não era nobre”7 e que se sente o entendimento de que a verdade não se escon-
“envergonhado de si. O burguês obteve poder, de no mais profundo, mas revela-se no mesmo
mas perdeu a clareza de visão, seu estilo”8. plano da superfície das imagens. Um contínuo
Norbert Elias concebe algo muito similar, ao entre a vida e a arte de uma sociedade que não
nomear o kitsch como a arte da “sociedade que mais se envergonha de si. Da sua cultura. Das
perdeu a confiança em seu próprio estilo”9. suas banalidades, do seu corpo e sexualidade.
E são as ideias de confiança e autoconfiança Expô-los será também buscar o reconhecimen-
que perpassam a imagem. Pois se a reticente to do seu lugar, ainda que ele seja a soma de
cultura de massa envergonha-se de si, a arte muitos outros.
contemporânea incita (explicitamente) a sua
autoafirmação e a dos corpos absolutamente Isabelle Anchieta é doutora em Sociologia pela
individualizados. A imagem de Koons cumpre Universidade de São Paulo (USP) e mestra em
Comunicação Social pela Universidade Federal
a função não mais de uma crítica à burgue- de Minas Gerais (UFMG).

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INTERSECÇÃO

DO AMOR E DO CIÚME
POR ANA MARIA HADDAD BAPTISTA
© LUPASHCHENKOIRYNA / ISTOCKPHOTO.COM

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A intersubjetividade é a matéria-prima com
a qual Proust trabalha na obra Em busca do
tempo perdido. E a forma desordenada como ele
se refere a essas e outras não deixou de afetar
Deleuze, Benjamin, Beckett e tantos outros

U
ma das obras mais belas a respeito do sua aparição se deve a um enfraquecimento
amor e do ciúme é, reconhecidamen- do amor (…) O amor é uma fuga para longe da
te, Em Busca do Tempo Perdido, es- verdade. E amamos verdadeiramente só quan-
crita por Proust. Provoca-nos uma atmosfera do não queremos a verdade. O amor contra a
exigente de despojamento, coragem e, acima verdade, eis uma luta pela vida, por nossos
de tudo, a apreensão de signos do tempo e da próprios êxtases e por nossos próprios erros.
memória no que ela tem de mais essencial. O O ser que amamos só o conhecemos verdadei-
escritor francês mergulha fundo nas paixões ramente quando deixamos de amá-lo, quando
humanas. Verdadeiro tratado ao qual sempre nos tornamos lúcidos, claros, secos e vazios. E
retornamos. E é isso que mais caracteriza um no amor não podemos conhecer, porque a pes-
clássico. Quanto mais relemos a obra, mais soa amada atualiza só um potencial interior de
nos espantamos com a incrível capacidade de amor (…) o amor é tanto mais intenso e pro-
Proust de nos atravessar com seus desloca- fundo quanto mais longe estamos da pessoa
mentos ao se referir, em especial, a questões de amada”2.
intersubjetividade. Há leis universais que regem a condição
Amor, ciúme, orgulho, inveja, tédio e ou- humana: somente podemos desejar aquilo que
tras paixões são, de forma desordenada, co- não temos. A ausência do ser amado, em par-
locadas com uma lucidez que não deixou de te, faz parte de tais leis. Amamos muito mais
afetar Deleuze, Benjamin, Beckett e tantos quando estamos longe. Mas ouçamos o poeta
outros. Nas palavras de Deleuze: “Na realida- Marco Lucchesi: “Caro amigo: gosto de lem-
de, a Recherche du temps perdu é uma busca brar o filósofo Marsilio Ficino, quando indaga
da verdade. Se ela se chama busca do tempo o que buscam os amantes. Ele responde que os
perdido é apenas porque a verdade tem uma que amam não sabem ao certo o que procuram.
relação essencial com o tempo. Tanto no amor Sentem saudades um do outro, quando sepa-
como na natureza ou na arte, não se trata de rados. E, mesmo juntos, não cessa uma falta
prazer, mas de verdade”1. O que não poderia indefinida, que os aproxima quando distantes
passar despercebido por Cioran: e os afasta quando próximos. O mistério da be-
“Quando se ama alguém, os momentos de leza convoca os amantes a uma dimensão que
conhecimento real são extremamente raros; os ultrapassa”3.

“O AMOR CONTRA A VERDADE, EIS UMA


LUTA PELA VIDA, POR NOSSOS PRÓPRIOS
ÊXTASES E POR NOSSOS PRÓPRIOS ERROS”

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INTERSECÇÃO

Busca de um todo
Na realidade não pode existir amor subtra-
ído de um sentimento perigoso, devastador,
uma tortura que nos esmaga quando amamos: N O TA S

o ciúme. Proust: “Só se ama o que não se pos-


1 DELEUZE, Gilles.
sui, só se ama o que nos leva a perseguir o Proust e os Signos.
inacessível”4. E, justamente, quando amamos Tradução de Antonio
Piquet e Roberto
queremos o ser amado em sua totalidade. Não Machado. Rio de
nos conformamos de aquele ser não ter feito Deusa do tempo Janeiro: Forense-
parte de nosso passado. Queremos tudo: o seu A extraordinária síntese interpretati- Universitária, 1987.
p.15.
passado, os seus pensamentos, o seu futuro. va em que Beckett e Deleuze dialogam, 2 CIORAN, Emil. O
Por isso Proust nos adverte de que insistimos na leitura de Proust, esclarece que existe livro das ilusões.
em perseguir o inacessível. Nas palavras de uma corrente invisível que nos atravessa: a Tradução de José
Thomaz Brum. Rio
Beckett: “O amor, ele [Proust] insiste, só pode Deusa do Tempo. Somos seres impenetrá- de Janeiro: Rocco,
coexistir com um estado de insatisfação, seja veis porque somos ativos e envolvidos pelo 2014. págs. 50-51.
ele nascido do ciúme ou de seu predecessor – tempo e pelo espaço. Imaginamos que o ser 3 LUCCHESI, Marco.
Nove cartas sobre
o desejo. Representa nossa busca de um todo. amado por nós seja uma criatura limitada a Divina Comédia:
Sua origem e continuação pressupõem a cons- por um corpo. Engano. O corpo é uma sín- navegações pela obra
clássica de Dante. Rio
ciência de que algo está faltando”5. tese de todos os pontos contidos no tempo de Janeiro: Casa da
O ciúme, como sabemos, é um sentimento e no espaço que já foram preenchidos um Palavra: Fundação
que possui diversos desdobramentos, por falta dia e assim será no futuro. Impossibilidade Biblioteca Nacional,
2013. p. 33.
de uma expressão melhor. Ocorre velado ou ex- humana tocar todos os pontos. Existe um
4 PROUST, Marcel.
plícito. De qualquer forma traz sofrimento a quem calendário sentimental mergulhado no pas- Em busca do tempo
ama. Quem ama vive para decifrar, em seus de- sado e no presente. Não regido pelo sol. perdido: à sombra
das moças em flor.
vaneios delirantes, em que medida está sendo en- Regido pelos batimentos cardíacos. Tradução de Mário
ganado. Ou pensa que está. Mas de acordo com Somos seres, sempre, inalcançáveis. “A Quintana. Rio de
Janeiro: Globo, 1988.
Proust quem se crê amado é vítima de uma men- amizade, segundo Proust, é a negação da p. 218.
tira. Por quê? Porque somos criaturas que não solidão irremediável à qual cada ser está 5 BECKETT, Samuel.
conseguimos sair de nós mesmos. Conhecemos condenado”7. A real significação espiritual Proust. Tradução de
Arthur Nestrovski.
os outros apenas em nós mesmos. Segundo ele, existe somente na obra artística. Somente
São Paulo: Cosac
quem afirma o contrário está mentindo. os signos artísticos, visto que imateriais, &Naify: 2003. p. 58.
As personagens de Proust possuem raros nos diz Deleuze, podem dar conta da inter- 6 Idem, p. 61.
momentos de paz. Ou seja, quando pensam no subjetividade e com isso redescobrimos o 7 Idem, p. 67.
rompimento com o ser amado. Respiram alivia- tempo em sua totalidade. 8 LUCCHESI, Marco.
Carteiro Imaterial.
dos e projetam aquilo que adiaram (encontros Advertência importante de Lucchesi: Rio de Janeiro: José
com os amigos, viagens, compromissos profis- “Preciso do outro para alcançar-me”8. Olympio, 2016. p. 16.
sionais) por conta da verdadeira escravidão a
que são submetidos pelo amor e, inclusive, a
satisfação interna de que nenhum rival vai usu-
fruir o que ele mesmo não consegue: a totalida-
de do ser amado. Beckett, ressalta, na incrível Ana Maria Haddad Baptista é graduada em Letras.
leitura da obra proustiana: “Esses raros perío- Possui mestrado e doutorado em Comunicação e
Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de
dos de relativo sossego são bruscamente inter-
São Paulo (PUC-SP), pós-doutoramento em História
rompidos pela intervenção de um novo motivo da Ciência pela Universidade de Lisboa e PUC/SP.
de ciúme ou por algum detalhe insignificante Autora de diversos livros publicados no Brasil e no
exterior. Atualmente é pesquisadora e professora
do passado do ser amado”6. da Universidade Nove de Julho em São Paulo.

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TECNAMENTE

Jogos de guerra
na era dos drones
que ocorre hoje no mundo com o coronavírus. Mas nenhum
POR JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA desses usos se compara a seu uso bélico. Eles são uma
arma com potencial para tornar obsoletas todas as formas

M
al o ano de 2020 tinha começado e no dia 3 de ja- de guerra tradicional.
neiro os Estados Unidos surpreenderam o mundo Os drones são o prenúncio das guerras sem heróis, sem
com o envio de um drone que matou o general líderes e sem coragem. As virtudes tradicionais exaltadas
iraniano Qassim Suleimani. Como disse em seguida o porta- pelos exércitos estão desaparecendo. Não há mais campo
-voz americano, foi um ataque cirúrgico, dirigido a uma pes- de batalha, um lugar para o confronto. O mundo inteiro
soa específica e sem efeitos colaterais. Suleimani estava de tornou-se zona de guerra, pois qualquer lugar pode ser so-
passagem pelo Iraque. brevoado por um drone.
Por que um evento desses nos causa tanta perplexidade? Um ataque como o de Suleimani mostra uma distribuição
O que há de tão sinistro com os drones? Eles nos lembram de poder assimétrica. Penso que este é um dos problemas
que nossa segurança nunca esteve tão frágil. A qualquer éticos mais sérios da utilização bélica dos drones. Para
momento, um drone, viajando a uma altura que não permite quem ataca não há riscos, que pendem todos para o lado
que ele seja detectado por nenhum radar, pode surgir so- da vítima. Quem ataca está numa sala, diante de uma tela, a
bre nossa cabeça e nos aniquilar em segundos. milhares de quilômetros de distância, cercado de todos os
O uso irrestrito de drones para atingir alvos no Oriente confortos. O esforço físico é mínimo, se comparado a uma
Médio, na África e no Afeganistão começou durante os batalha tradicional. É a guerra por meio de uma Playstation,
mandatos do presidente populista Barack Obama e se in- na qual a coragem é substituída pela precisão.
tensificou nos últimos anos. Até agora foram, oficialmente, Vencer uma batalha era mérito de um líder e de seus
quase 10 mil ataques, muitos acompanhados de efeitos soldados. Um ataque com drone parece sempre algo à so-
colaterais causados por erros de pontaria ou identificação capa, algo ilegítimo. Não há sequer o risco de um voo tripu-
equivocada do alvo. lado até os alvos, como ocorreu com as bombas atômicas.
Não sabemos sequer quem inventou essa tecnologia. O que Essa é a razão de nossa surpresa e de nosso desconforto
sabemos é que ela foi desenvolvida por equipes de enge- moral. Tudo se passa como se, numa competição atlética,
nheiros do exército americano. Os nomes dos integrantes houvesse participantes com melhoramentos genéticos e
dessas equipes e o local de suas bases são mantidos em próteses implantadas no corpo e que, por isso, eles não
sigilo e, provavelmente, nunca serão conhecidos. O méri- precisassem fazer esforço algum para vencê-la.
to das invenções e aperfeiçoamentos é dissolvido. Não há A mesma situação ocorrerá, em breve, com os soldados ro-
grandes inventores como Turing, Einstein ou Oppenheimer, bóticos. Quem os utilizar não fará esforços e não porá sua
cujas descobertas levaram à derrota do nazismo. vida em risco. Eles também solaparão as virtudes tradicio-
Os drones nos causam um misto de surpresa e de mal- nais exigidas dos guerreiros: a coragem, a ousadia e a resi-
-estar. Eles escancaram que o uso bélico da tecnologia não liência. Não haverá mais mortes, a não ser as dos inimigos.
é apenas secundário. No caso dos drones, sua utilização Haverá apenas eventuais perdas de equipamento.
para fins pacíficos ainda é pequena. Eles são utilizados na
agricultura, para fazer inspeções, ou para prestar socorro a JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA
é formado em Filosofia pela USP.
vítimas de problemas de saúde ou de acidentes cujo acesso Viveu e estudou na França, na
por terra pode ser complicado e lento. Drones estão sen- Inglaterra e nos Estados Unidos.
Lecionou na UNESP, na UFSCar
do usados para orientar as pessoas em epidemias como a e na PUC-SP. Estuda filosofia da
mente e da tecnologia.

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PRÁXIS

INQUISIÇÃO
DA WEB

As pesquisas revelam queda no


N
avegar na web é, para muitas pesso-
as, como andar nas ruas: local público
número de usuários do Facebook onde vemos e somos vistos; local privi-
e menor tempo passado nessa legiado para encontros e desencontros; espaço
para a manifestação de suas opiniões, indepen-
plataforma. Apesar disso, as redes dentemente de serem verdadeiras ou falsas,
digitais fizeram surgir um novo justificadas ou não. Se a vida digital ocupa a
maior parte de nosso tempo; se lá vivemos, nos
fenômeno: o temor de se expressar relacionamos e obtemos dados para lermos o
ou se posicionar por receio de ser mundo, é compreensível que muitas das for-
mas usuais que temos para lidar com os pro-
julgado ou “cancelado” blemas sejam replicadas no ambiente digital,
assim como muitas das formas criadas especi-
POR MONICA AIUB ficamente para resolver problemas próprios do
ambiente digital passem a ser utilizadas pre-
sencialmente em nosso cotidiano.

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Na série de conferências realizadas no Brasil passa a depender da arbitragem, decisão e, em al-
em 1973, na PUC-RJ, publicadas com o título “A guns casos, punição dos envolvidos por um tribu-
Verdade e as Formas Jurídicas”, Michel Foucault, nal. Nestes casos, o diálogo democrático, no qual
com o objetivo de analisar como as práticas sociais cada um apresenta suas justificativas e é possível
compõem os sujeitos de conhecimento, apresenta pensar sob diferentes perspectivas, passa a ser
uma interessantíssima história da verdade a partir mediado e validado pela autoridade judiciária.
da análise das práticas judiciárias, consideradas
por ele como importantes práticas para a constru- Cultura do cancelamento
ção da verdade e do próprio sujeito de conhecimen- A derivação a que me refiro é a influência des-
to. No decorrer das conferências, mostra como tais te aspecto da judicialização na constituição de
práticas vão se modificando na história, ao mesmo nossos modos de viver, pensar e, principalmente,
tempo que servem de base para a construção de de solucionar problemas. Se tomamos as formas
“tipos de subjetividade, formas de saber e, por con- jurídicas como modelo para tratar as questões
seguinte, relações entre o homem e a verdade que nas relações sociais, temos uma judicialização de
merecem ser estudadas” (FOUCAULT, 2001, p. 10). nosso cotidiano. Criamos normas e as tratamos
como se tivessem o valor de lei, mesmo, e prin-
A judicialização cipalmente quando o assunto em questão não é
Nas últimas décadas do século XX, vimos surgir, contemplado por uma lei. Criamos tribunais pa-
nas práticas sociais, ainda no campo das práticas ralelos, informais, com julgamentos, exigências
jurídicas, o fenômeno da judicialização. Segundo de reparação e de punições. Decidimos, condena-
Tonelli (2013), este fenômeno, além de centralizar no mos e aplicamos as punições. Revogamos ou não
Judiciário a tomada de decisões polêmicas que de- as condenações.
© AKINDO / ISTOCKPHOTO.COM

veriam ser de responsabilidade dos poderes Execu- Entre os “tribunais informais” criados nos úl-
tivo ou Legislativo, traz juízes como protagonistas timos anos, o tribunal da web tem apresentado
de decisões políticas – o chamado ativismo judicial, implicações diretas nas formas de manifestação,
e judicializa as relações sociais. Essa forma jurídica posicionamento e ação de muitas pessoas. Nes-
incide sobre a constituição de novas subjetividades, te “tribunal”, uma pessoa pode ser legitimada,
saberes e relações de arbitragem.
A judicialização da política e o ativismo judici-
ário são questões importantíssimas para pensar-
mos os rumos da democracia. Se, por um lado, um “A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E O
Judiciário forte é importante para a manutenção da
democracia, por outro, o desequilíbrio entre os po-
ATIVISMO JUDICIÁRIO SÃO QUESTÕES
deres Executivo, Legislativo e Judiciário pode colo- IMPORTANTÍSSIMAS PARA PENSARMOS
cá-la em risco. Assim, a questão sobre o processo
OS RUMOS DA DEMOCRACIA. SE, POR
de judicialização contribuir para a fortificação ou
para o enfraquecimento das democracias é signifi- UM LADO, UM JUDICIÁRIO FORTE É
cativa e com implicações muito sérias. IMPORTANTE PARA A MANUTENÇÃO
Contudo, a abordagem que pretendo aqui é ape-
nas a derivação de um aspecto específico do fenô- DA DEMOCRACIA, POR OUTRO, O
meno da judicialização: as formas de arbitragem das DESEQUILÍBRIO ENTRE OS PODERES
relações sociais. As relações sociais são judicializa-
das quando levadas a julgamento em tribunais de
EXECUTIVO, LEGISLATIVO E JUDICIÁRIO
justiça, quando o cumprimento de direitos e deveres PODE COLOCÁ-LA EM RISCO”

FILOSOFIA Ciência&Vida • 61

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PRÁXIS

cancelada, estar em processo de cancelamento “NÃO SÃO APENAS ASSÉDIOS


ou ter seu cancelamento revogado, pode ainda ser
não cancelável… Você já se preocupou com esse SEXUAIS, MORAIS, VIOLÊNCIA,
tribunal? Já deixou de expressar alguma opinião, POSICIONAMENTOS RACISTAS,
de manifestar um posicionamento, de fazer algo na
web com medo do cancelamento?
SEXISTAS, HOMOFÓBICOS
A expressão cultura do cancelamento (cancel ETC. QUE SÃO CANCELADOS.
culture) foi indicada como palavra do ano de 2019
PESSOAS SÃO CANCELADAS
pelo dicionário Macquarie1, que seleciona palavras
e expressões que mais moldaram o comportamen- POR SEUS POSICIONAMENTOS
to humano durante um determinado período. Em POLÍTICOS, POR NOTÍCIAS
2019, celebridades foram canceladas; marcas e
empresas foram canceladas; até pessoas comuns, FALSAS ACERCA DELAS, POR
embora com menos frequência, também foram NÃO CONCORDAREM COM
canceladas. Mas este processo não se iniciou em
2019. Em 2018, a palavra do ano neste mesmo di-
DETERMINADAS IDEIAS, POR
cionário foi “Me too” e em 2017, “milkshake duck”, FUGIREM AOS PADRÕES
expressão que indica alguém cujas manifestações DEFINIDOS POR CERTAS
e ações parecem “positivas”, mas acabam sendo
desmascaradas e seu efeito prejudicial aparece. COMUNIDADES”

Tribunal paralelo
A ideia de cancelamento é inicialmente rela- como nulo, ou sem efeito; 3. Não levar a efeito o
cionada ao movimento Me too, que espalhou pelo que havia pensado ou planejado, desistir de; 4.
mundo uma série de denúncias de assédio sexual Concluir, fechar um processo; 5. Excluir, suprimir,
feitas contra homens “poderosos”, homens que fo- eliminar”. Segundo o Dicionário Merriam-Webster,
ram boicotados ou tiveram seu “poder” diminuído cancelar é “destruir a força, efetividade ou valida-
pelas denúncias. A matéria de Bromwich, no New de”. Assim, o cancelamento risca, elimina, supri-
York Times sobre o assunto, em junho de 2018, afir- me, destrói a força, declara a não validade… Mas
mava: “Estão todos cancelados”2. é interessante observar que o que é cancelado não
Ao observarmos o movimento Me too como a ori- é a fala ou ação da pessoa, mas a própria pessoa,
gem do processo, a cultura do cancelamento pode que passa a ser boicotada, considerada ilegítima.
ser considerada um instrumento interessante, uma
vez que o cancelamento acontece quando a justiça Morte fática ou simbólica
não é capaz de dar uma resposta adequada a deter- Claude Levi-Strauss, no livro Antropologia Es-
minadas questões3, como a do assédio sexual, por trutural, no capítulo “O feiticeiro e sua magia”, des-
exemplo. Teríamos, então, um “tribunal paralelo”, creve o fenômeno da morte simbólica, ou melhor,
popular, atribuindo-se a tarefa de “fazer justiça”. “os mecanismos psicossociológicos subjacentes
O cancelamento também poderia ser considera- aos casos de morte por conjuração ou feitiço […]
do uma forma de as comunidades marginalizadas a comunidade se retrai, todos se afastam do mal-
afirmarem publicamente seus sistemas de valores, dito e se comportam para com ele como se, além
exigindo desculpas daqueles que lhes ferem4. de já estar morto, representasse uma fonte de peri-
O que significa cancelar? No Dicionário Aurélio, go para todos os que o cercam. Em toda ocasião e
o verbete cancelar recebe as seguintes definições: em cada um de seus gestos, o corpo social sugere
“Riscar, inutilizar (o que está escrito) com traços a morte à pobre vítima, que não tenta escapar do
em cruz ou de outra maneira; 2. Declarar ou dar que considera ser seu inelutável destino” (2008, p.

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181). Levi-Strauss descreve como este proces- por fugirem aos padrões definidos por cer-
REFERÊNCIAS
so pode levar à morte de fato. tas comunidades. Como há casos em que
Podemos observar, assim, que a cultura do o cancelado apenas é isolado, boicotado, FOUCAULT, Michel.
cancelamento não é uma novidade. Contudo, não tendo a possibilidade de pensar sobre A verdade e as
formas jurídicas. Rio
nos tribunais da web espera-se que a destrui- suas ações ou apresentar suas justificativas de Janeiro: NAU,
ção da força do cancelado gere sua “redenção”, para pensar e agir em relação ao que gerou 2001.
que pode ocorrer através da “confissão” de seu o cancelamento, a exclusão do cancelado LEVI-STRAUSS,
Claude. Antropologia
erro e do pedido público de desculpas. O tribu- poderá provocar tristeza, isolamento e, em Estrutural. São
nal da web julga, pune e exige retratação. Não algumas vezes, depressão, mas dificilmen- Paulo: Cosac Naify,
2008.
há necessidade de legitimar quem declara o te compreensão e reflexão acerca de seus
MOROZOV, E. Big
cancelamento, enquanto na morte simbólica ou posicionamentos. Se não há diálogo, se as Tech: A ascensão
no Tribunal de Justiça, é a autoridade do pajé comunidades se fecham em seus dogmas, dos dados e a morte
ou do Tribunal constituído, respectivamente, sem observar as diferentes perspectivas da política. São
Paulo: UBU, 2018.
que permite julgar, condenar ou punir. que podem gerar um posicionamento, sim-
TONELLI, Maria
No tribunal da web, todos são juízes ou têm plesmente excluindo quem pensa diferente, Luiza Quaresma.
o poder de amaldiçoar de um pajé. Em alguns o cancelamento pode ser uma forma arbi- A judicialização
da política e a
casos, “o feitiço vira contra o feiticeiro”, isto é, trária de imposição de um modo de viver, soberania popular.
o cancelamento, em vez de gerar diminuição pensar e sentir. Tese (Doutorado
em Filosofia).
de poder, leva ao aumento da popularidade do Quando isso acontece, o instrumento Departamento de
cancelado, causando um efeito contrário ao es- criado para libertar, para provocar as pes- Filosofia da FFLCH-
perado, inclusive no que diz respeito à ação ou soas a pensar em seus posicionamentos e USP. São Paulo.
126p. 2013.
manifestação do motivo de cancelamento, que ações, transforma-se em instrumento de
passa a ser replicada. censura, cerceamento, exclusão. Mas con-
siderando ainda que todo esse processo se
Efeitos na vida real dá nas redes sociais digitais e que estas
Não são apenas assédios sexuais, morais, funcionam a partir de plataformas criadas
violência, posicionamentos racistas, sexistas, pelas grandes empresas de tecnologia, que
homofóbicos etc. que são cancelados. Pesso- buscam, cada vez mais, o monopólio (MO-
as são canceladas por seus posicionamentos ROZOV, 2018), quais são as formas de viver,
políticos, por notícias falsas acerca delas, por sentir e pensar legitimadas pelas comuni-
não concordarem com determinadas ideias, dades das redes sociais digitais? A partir
de quais bases tais formas são legitimadas?
Quais comportamentos, de fato, são modifi-
cados com a cultura do cancelamento? De
que maneira essa cultura está servindo de
N O TA S base para a constituição de nossa subjeti-
1 Cf. https://www.macquariedictionary.com.au/ vidade, de nossos critérios de verdade e de
resources/view/word/of/the/year/2019, acesso nossas formas de viver?
em 28 Fev 2020.
2 Cf. https://www.nytimes.com/2018/06/28/
style/is-it-canceled.html acesso em 28 Fev 2020.
3 Cf. https://www.agazeta.com.br/revista-ag/ Monica Aiub é doutora
comportamento/cultura-do-cancelamento- em Filosofia pela Pontifícia
precisamos-mesmo-cancelar-as-pessoas-0320 Universidade Católica de
Acesso em 28 Fev 2020. São Paulo (PUC-SP). Atua
4 Cf. IBRAIM, Shamira. In defense of cancel no Espaço Monica Aiub
como orientadora filosófica,
cuture. Disponível em: https://www.vice.com/
professora e pesquisadora.
en_us/article/vbw9pa/what-is-cancel-culture-
www.monicaaiub.com.br
twitter-extremely-online. Acesso em 28 Fev 2020.

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IPSIS LITTERIS

ESCRITOS CORSÁRIOS
Último livro organizado pelo autor em vida, Escritos corsários é uma das principais
obras de Pier Paolo Pasolini (1922-1975), poeta, cineasta, romancista, ensaísta e dra-
maturgo italiano que encarnou como poucos o papel do intelectual engajado, capaz de
pensar a esfera da arte e da cultura, mas também da economia, da política, do com-
portamento. Polemista, nesses artigos publicados na imprensa italiana entre 1973 e
1975, Pasolini aborda as rebeliões da juventude que se seguiram aos movimentos
estudantis de 1968, a decadência da Igreja, a ascensão das multinacionais, as relações
entre governo e máfia na Itália e, especialmente, aquilo que ele chama de Novo Po-
der – ou novo fascismo –, isto é: o advento de uma sociedade de consumo global, que
promove um verdadeiro extermínio das formas de vida tradicionais. Considerado em
retrospecto, fica claro que Pasolini anteviu o movimento de aceleração do capitalismo
que viria a ocorrer nas décadas seguintes, resultando nas graves crises do século XXI.
Autor: Pier Paolo Pasolini Tradutora: Maria Betânia Amoroso Páginas 296 Editora 34

ENTRE SERVIDÃO E LIBERDADE


A obra de Homero Santiago, professor de Filosofia da USP, parte da pergunta de Es-
pinosa retomada por Deleuze e Guattari – por que lutamos por nossa servidão como
se lutássemos por nossa liberdade? Servidão remete à impotência, liberdade remete
à potência; ora uma predomina, ora outra. Eis que desponta o problema ético funda-
mental: como passar de uma situação de predomínio da primeira para o predomínio da
segunda? Em meio a Espinosa, Nietzsche e Antonio Negri, o livro trata do problema do
possível, delimitando seu lugar no interior de um determinismo radical (o espinosano)
e tateando suas implicações. O possível, como uma espécie de perspectiva que torna
factível o trânsito entre servidão e liberdade, descortina, assim, o campo próprio da ação
humana, especialmente a política. A partir de temas recorrentes em nossa realidade
social e na situação brasileira recente – a polícia e seu pendor à violenta obediência abs-
trata, o papel do Estado, o dinheiro e a liberdade –, o apelo às experiências tem a função
de alargar as possibilidades de se pensar e aplicar os conceitos de servidão e liberdade.
Autor: Homero Santiago Páginas 448 Editora Politeia

ESCRITOS SOBRE A POLÍTICA E AS ARTES


Os textos que compõem esta obra constituem um mosaico político-literário. Neles se
delineiam as principais teorias políticas de Rousseau, formuladas de tal maneira que se
entrelaçam entre o ato da elaboração conceitual e a necessidade da escrita – com todas
as suas seduções e perigos. Para Rousseau, a filosofia política, longe de ser uma dis-
ciplina acadêmica à parte, é indissociável de uma teoria da linguagem e da expressão
artística, sem as quais, em seu entender, nenhuma reflexão sobre o presente poderia
ser levada a sério. Agitado, irrequieto, indignado, Rousseau consegue se exprimir per-
correndo uma variada gama de sentimentos, adotando, para tanto, metáforas, tropos,
comparações e outros recursos de deslocamento que mantêm vivo o interesse do lei-
tor; independentemente do assunto, cada um dos textos tem, além disso, a sua história.
Organizadores: Pedro Paulo Pimenta e Franklin de Mattos Páginas 656 Editora Ubu

64 • FILOSOFIA Ciência&Vida

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CAIXA DE FILOSOFIA CIÊNCIA E VIDA é uma publicação mensal da EBR _
Empresa Brasil de Revistas Ltda. ISSN 1809-9238. A publicação não

ENTRADA
se responsabiliza por conceitos emitidos em artigos assinados ou
por qualquer conteúdo publicitário e comercial, sendo esse último
de inteira responsabilidade dos anunciantes.

ANO 14 - EDIÇÃO 161

Filosofia da viagem DIRETORA EDITORIAL


Ethel Santaella

Instigante o texto de Jelson Oliveira, sobre


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a filosofia da viagem (Ed. 160). Acompanho GRANDES, MÉDIAS E PEQUENAS AGÊNCIAS E DIRETOS
o canal dele no YouTube. Aguardo um artigo publicidade@escala.com.br

sobre a felicidade, baseado nos ensinamentos de REPRESENTANTES Interior de São Paulo: L&M Editoração,
Luciene Dias – Rio de Janeiro: Marca XXI, Carla Torres, Marta
Epicuro. Um dos episódios mais interessantes que Pimentel – Santa Catarina: Artur Tavares – Regional Brasília:
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ele já postou por lá.
Cláudio Souza, por e-mail COMUNICAÇÃO, MARKETING E CIRCULAÇÃO
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Resposta: Cláudio, obrigada por sua sugestão e interesse Av. Profª Ida Kolb, 551, Casa Verde, CEP 02518-000, São Paulo, SP
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Nós temos uma ótima
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Filósofos, e loucos por cinema RESPONSABILIDADE AMBIENTAL Esta revista foi impressa na Grá-
fica Oceano, com emissão zero de fumaça, tratamento de todos os
Ao ler a coluna de Érico Andrade sobre o resíduos químicos e reciclagem de todos os materiais não químicos.

filme ganhador do Oscar, Parasita (Ed. 158), Distribuída pela Dinap S/A – Distribuidora Nacional de Publicações,
Rua Dr. Kenkiti Shimomoto, nº 1678, CEP 06045-390 – São Paulo – SP
já fiquei interessada em assistir ao filme. Isso MAIO 2020
antes da festa do cinema internacional. Ele me REALIZAÇÃO DIRETOR-GERAL: Angel Fragallo • DIRETORA
fez ter um novo olhar para cada personagem do EDITORIAL: Juliana Klein – Mtb. 48.542 •
EDITORA: Cristina Almeida – Mtb. 61.241 –
filme que, aliás, pode ser um ótimo tópico para falar cristina@fullcase.com.br • DIAGRAMAÇÃO:
Wellington Zanini • REVISÃO: Adriana Giusti
sobre luta de classes em uma sala de aula. Já estou • REDAÇÃO: Adriano Correia, Ana Maria
Haddad Baptista, André Bueno, Átila Soares
na expectativa da próxima coluna. (11) 2809-5910
fullcase.com.br da Costa Filho, Ciprian Vălcan, Danilo Saretta
Veríssimo, Érico Andrade, Homero Santiago,
Mariana Cardoso, estudante de Filosofia, por e-mail Isabelle Anchieta, João de Fernandes
Teixeira, José Eustáquio Diniz Alves, Marco
Lucchesi, Monica Aiub, Rodrigo Inácio R.
Sá Menezes, Rodrigo dos Santos Manzano,

Resposta: Mariana, obrigada por sua mensagem. Continue Rosângela Chaves e Sidnei de Oliveira.

acompanhando o trabalho do Prof. Érico nas próximas edições.


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A POSTERIORI

Águas de março
POR HOMERO SANTIAGO “‘Quando acontece enchente a culpa
é do governo. A culpa é da população

V
erão, temporais, enchentes, transtornos. A cada ano que joga lixo no bueiro’. Quer dizer,
a história se repete em cidades brasileiras, e às ve-
o pessoal que ‘não tem consciência’
zes culmina em tragédias. Depois, quando passada
a tempestade, apuramos responsáveis, repete-se também
está na raiz do problema”
um mantra explicativo: as enchentes são causadas pela
“falta de consciência” das pessoas que, descuidadas com o
lixo, provocam o entupimento dos bueiros que dariam esco- reles petulância. Comecemos por este último ponto, o que
amento à água. Há pouco tempo ainda encontrei num portal mais chama a atenção assim que refletimos sobre o sentido
noticioso da internet o incisivo veredito: “Quando aconte- do termo consciência nesse contexto.
ce enchente a culpa é do governo. A culpa é da população Emprestando um raciocínio do filósofo René Descartes, di-
que joga lixo no bueiro”. Quer dizer, o pessoal que “não tem remos que a consciência deve ser a coisa mais bem distri-
consciência” está na raiz do problema. buída do mundo, pois cada um acredita já possuir o sufi-
Se na célebre canção de Tom Jobim as águas de março ciente e ela só falta aos outros. Nunca sou eu, é sempre o
fecham o verão, em nosso mundo o batido argumento da outro que carece de consciência; toda vez que falo em des-
“falta de consciência” encerra a possibilidade de discussão pertar a consciência de outra pessoa ou em conscientizar
séria acerca da infraestrutura de nossas cidades, resumin- alguém, sempre está pressuposto que eu mesmo já a tenha
do as providências a campanhas de “conscientização” so- (não fosse assim, como reconheceria a sua ausência?).
bre a importância de dar boa destinação ao lixo e coisas do Conclusão: sempre sou consciente, o outro nunca o é, ou
gênero. A mídia angaria verba publicitária, os governantes só é se age conforme creio que se deva agir. Quando isso
se alijam das responsabilidades, a gente que se julga “cons- não descamba para a pura ofensa, serve apenas para me
ciente” (e em geral mora em áreas que não sofrem com vangloriar às custas do rebaixamento alheio. É claro que tal
enchentes) pode dormir em paz com a própria consciência. aspecto não nos apresenta um sentido preciso para o ter-
Nossa intenção não é discutir o regime pluvial nem a ocu- mo consciência. Contudo, deixa uma sugestão valiosa para,
pação urbana (tema importante que trataremos noutra em nossa próxima conversa, aprofundar a interrogação:
oportunidade), e sim o conceito de consciência como surge seja qual for o seu significado nesses usos, a noção parece
nesse argumento, especialmente o detalhe curioso de re- situar-se num horizonte moral. De fato, permite ajuizar a
meter tanto à causa quanto ao remédio do problema: sua boa e a má ação (a atitude consciente e a sem consciência),
ausência o determina, sua presença o resolveria. Ora, o pressupõe a liberdade de escolha de nossos atos, inclusive
termo consciência aí e em formulações semelhantes – “ter para lá das determinações em contrário, e por fim remete
consciência de”, “despertar a consciência para”, “formar ci- a um espaço próprio onde, com a nossa consciência, deli-
dadãos conscientes” etc. – possui um sentido preciso e de- beramos como agir. Não é pouca coisa o que uma simples
terminável? Como conceber que algo que só existe em nos- palavra pode esconder.
sa mente (ninguém vê ou toca a “consciência” como a uma
HOMERO SANTIAGO é professor
árvore) possa produzir efeitos tão concretos no mundo?
associado do Departamento
São questões que merecem ser problematizadas, pois do de Filosofia da Faculdade de
contrário se corre o risco de, de tanto invocar a consciência, Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de
não ir além do palavrório vazio ou, pior ainda, inclinar-se à São Paulo (FFLCHUSP).

66 • FILOSOFIA Ciência&Vida

FIL161_66-68_ART_Post_vs2.indd 66 30/03/2020 14:30


da floresta

Nas florestas do mundo inteiro, tem bichos de A a Z.


Tem gibão, onça-pintada, elefante, zabelê.
Tem cada bicho esquisito, desenhado bem bonito,
um Bichonário completo para você conhecer.
Vamos lá, pegue o binóculo e partiu expedição.
Este livro traz uma viagem pelas letras do alfabeto,
só não se espante, no trajeto, com o rugido do leão!

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ROMEU E JULIETA é o símbolo universal do amor
desde o século XVI. O clássico romance proibido entre jovens de famílias
rivais de Verona, na Itália, desafia o destino lançado por traições e
assassinatos. Poesia recheada de ingredientes dramáticos, a obra de
Shakespeare é uma das mais belas histórias de todos os tempos.

scaras,
William Shak

um baile de má
Tudo começa em
e Julieta
ntéquio conhec
onde Romeu Mo
rtencem a
vens que pe
Capu leto, jo
in im ig as.
sa s fa m ílias
duas podero
é o símbolo in sta ntes
do na sce em
O amor proibi
rimôn ia
espeare

sécu lo XV I. e os dois se ca
sa m nu ma ce
de Ju lieta
oibido entr e m, os pa is
se cr eta. Poré
rapa z.
gá-la a outro
s de Verona, decidem entre
a poção
ela toma um
ino la nçado Desesperada,
meu seria
r mor ta. Ro
Romeu

e finge es ta
nato s. Po esia encont rá-
ano e ter ia de
, av isado do pl
s dramát icos o do s Capu let
os, pa ra
la no tú mul
s ete não
uma das mai m. Mas o bi
lh
ju ntos fugi re
or ter m ina
s os tempos. rdadeiro am
e

cheg a e o ve
e a obra,
Ac redita-se qu
Julieta

em tragédia.
ha sido
lta de 1595, ten
escr ita por vo
real.
uma hi stória
in spirada em

Romeuae
Juliet

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