Você está na página 1de 4

David Beard e Kenneth Gloag definem musicologia como a reflexão e o estudo sobre a

música (BEARD, 2005). De maneira geral, essa ciência é, justamente, a pesquisa científica
e análise da música; essa área pode ser dividida em diferentes subáreas como musicologia
sistemática e etnomusicologia, todas compartilhando um mesmo propósito, apesar de
adotarem metodologias diferentes. Quando se analisa a letra de uma música, se faz
musicologia, assim como quando se analisa o contexto sociopolítico de uma obra, a origem
de um instrumento, as razões da utilização de uma série harmônica ou mesmo a biografia
de um artista.

Sendo este estudo parte de um método de pesquisa científica, é levantada a questão: ela
pode contribuir como instrumento de ensino nas escolas?

No artigo que segue, é discorrida a motivação dessa dúvida, a resposta desse


questionamento e a elaboração do material bibliográfico referente ao tema.

Capítulo 1 — Motivação e justificativa

Consideremos um contexto atual de ensino -aprendizado em instituições públicas


brasileiras. Tome como exemplo uma turma padrão de Ensino Médio. Reconsidere, ainda, o
contexto de ensino geral do país. O atual “público alvo” do direito público da educação viveu
em tempos de exclusão de 1530 a 1988. Fazendo uma breve recapitulação, até a
Constituição de ’88, ia à escola quem queria/quem os pais queriam; após a marcação da
educação como direito público subjetivo e dever do Estado, a juventude com menos
recursos financeiros passou a ser integrada no sistema educacional público e, muitas
vezes, forçada??? pelas e às instituições de ensino.

Desse ponto de vista, imagine uma sala de aula que não conhece a própria cultura tendo
tamanha informação regurgitada em 3 anos de Ensino Médio (quando não menos). Ainda
nessa hipótese, lembremos que essa mesma juventude está a cada geração mais
introspectiva e reclusa; um aluno que não se sente parte sequer de sua família ou círculo
social dificilmente terá apego por disciplinas tão distantes de sua realidade. Esse mesmo
aluno é aquele que não se sente compelido a participar de eventos sequer mais abertos e
acessíveis, como os musicais; não sente vontade de tocar um instrumento, de se
apresentar em público ou de libertar sua cognição para o criar artístico.

Nessa ambientação, focar no ensino de pesquisa musical pode apresentar uma alternativa
aos métodos ativos de musicalização; uma maneira de reagir a possíveis resistências dos
alunos com os métodos tradicionais de prática musical. Aqueles que não se sentirem
realizados na prática instrumental podem desenvolver um maior interesse em métodos na
pesquisa um viés de estudo mais conveniente para si — por focar em processos mais
técnicos, teóricos, objetivos e conceituais, sem fugir da área de música.

A introdução de métodos de pesquisa musical na prática docente pode possívelmente


também contribuir por integrar um processo de ensino integral, pois procura, mesmo que
em âmbitos mais específicos como o da etnomusicologia, levar os alunos a questionarem
as idealizações e padrões atuais do que se considera ser o papel da música (RALPH, 2015)
A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) define como competências a apreciação
estética de produções artísticas considerando suas origens regionais, o que é também
abordado em um trabalho de musicologia a partir do momento em que é apresentado à
turma uma obra e/ou artista local, a qual é destrinchada e analisada em sala.

Capítulo 2 — Desenvolvimento

De que maneira uma atividade como uma análise musical contribui no processo de
aprendizado de um aluno? Como desconstruir o estigma criado sobre a música em uma
instituição de ensino?

Note que a introdução de um método de pesquisa científico em uma sala de Ensino Médio
depende - como toda outra disciplina - da familiarização da turma com o tema. Uma aula de
música geral pode iniciar-se, por exemplo, com um estudo simples de uma obra qualquer de
escolha dos próprios alunos. Isso, com tempo e trabalho, pode tornar-se um exercício de
senso crítico. “Experienciar’ música e ‘escutar’ não são sinônimos” (BOURBON; 2018). Ao
exercitar a capacidade de audição, captação de detalhes e estudo contextual de obras e
artistas, não só será trabalhado o senso crítico dos discentes mas também lhes pode ser
apresentado um novo horizonte tanto para conhecerem a própria cultura musical como para
se descobrirem como seres criativos.

É justamente esse trabalho que se procura aprender a realizar com a pesquisa musical nas
escolas: é apresentado o método e, de início, se deixa o aluno fazer a própria descoberta.
Peguemos como base o que é proposto por Flávio Fernandes de Lima em sua atividade de
composição que resultou na obra “Frevindo-Minimalismando” (FERNANDES; 2021); foi feito
todo um trabalho de musicologia sistemática sobre as técnicas usadas na composição antes
da criação e, posteriormente, a obra - resultado de uma pesquisa anterior (FERNANDES;
2018) - foi dissecada. Neste caso, o estudo voltou-se para as técnicas minimalistas e suas
aplicações na música tradicional brasileira, porém o mesmo princípio pode ser interpretado
em uma intervenção escolar, não necessariamente gerando um produto concreto como
proposto pelo autor, mas como caminho para novas visões musicais.

Fazer com que os alunos ouçam, assistam e escrevam os levará a ter uma breve
experiência de iniciação científica, na qual será vivenciada a prática acadêmica de estudo,
nesse caso, musical.

Em um ambiente com o profissional especializado realizando tais práticas em sala de aula,


seguindo as próprias normas da BNCC e levando sempre em consideração o aluno como
humano e objetivo da educação musical, como propunha Koellreutter, todos os pontos aqui
mencionados contribuirão para um trabalho educacional frutífero enquanto transdisciplinar.

Capítulo 3— Conteúdo

Em sala, antes de iniciar qualquer trabalho prático no qual os alunos estão ativos, se
demonstra o que fazer e como se espera que o faça, como sugerem as metodologias da
Escola Nova.

Faz-se então um trabalho de sondagem no qual se identificam as dificuldades da turma com


uma breve atividade de análise musical em conjunto. Após reconhecer o que a turma não
conhece e o que já lhe é familiar em relação a ciência musical, para que a classe tenha uma
noção de que palavras utilizar ou o que buscar ouvir na obra ou produção geral de um
artista, podemos basear-nos nos conceitos chaves de musicologia propostos por Beard e
Gloag; tendo em mente o nível cognitivo da turma em questão, são apresentados e
elaborados os conceitos que mais fazem sentido na situação levando sempre em conta a
abordagem mais acessível e mais simplificada que a apresentada no documento original.
Conceitos que cabem em qualquer discussão são: análise; autenticidade; cultura; gênero;
performance e música (BEARD, Glock; 2005).

Afastando-se novamente do academicismo, podem ser apresentados os instrumentos mais


comuns da música popular atual, de preferência levando-os em sala para incitar a
curiosidade da turma. É apresentado o som de cada instrumento individualmente e, após
isso, em uma interpretação na qual apenas cada instrumento é tocado solo (em áudio ou
vídeo gravado).

Capítulo 4— Propostas

Suponhamos que se utilize, em sala de aula, uma música mais básica e acessível à turma.
Sugiro que seja feita uma votação ou que se verifique qual música é a mais popular no
momento e na região, na certeza de que a obra seja familiar a toda a turma. Ainda que sem
abordar termos técnicos inerentes a ciência musical, peça que exponham os resultados das
análises, dizendo qual instrumentação foi utilizada; se a música soa regional ou se parece
ser de outro estado; que sentimento os componentes da obra causam em cada um deles,
dentre outros questionamentos que reforcem a utilização do ouvido musical e do “ouvir”
além do “experienciar”. Essa prática é fundamental para o início da pesquisa pois a
musicalização, segundo Gazzi de Sá (1990), “caminha sempre da experiência do fato
sonoro para a consciência desse fato”.

A proposta anterior é voltada para um trabalho rápido em conjunto e em sala. Ao se


identificar que a classe absorveu o método, seriam aplicadas tarefas de pesquisa
individuais, nas quais o aluno ficaria livre para escolher uma obra e encaixá-la nos termos
e/ou categorias apresentadas nas atividades antecedentes.

Se voltado para o âmbito social, um trabalho etnomusicológico em aula contribuirá para o


estabelecimento do senso de pertencimento da turma; podem ser elaboradas visitas de
campo e exercícios in loco, sempre voltando para a pesquisa científica e para a formação
do estudante como cidadão, de maneira a colocar suas atividades a serviço da sociedade
(Koellreutter, 1998).

Referências:
BEARD, David; GLOAG, Kenneth. Musicology: the key concepts. 2 Park Square, Milton
Park, Abingdon, Oxfon, OX14 4RN: Routledge, 2005

MATEIRO, Teresa; ILARI, Beatriz. Pedagogias brasileiras em Educação Musical. Rua Clara
Vendramim, 58, Mossunguê: Intersaberes, 2016

BOURBON, Paskalina. Beyond Musical Metaphysics: A Philosophical Account of Listening


to Music. Revista Portuguesa de Filosofia, 2018
LOCKE, Ralph P. Musicologia e/como preocupação social: imaginando o musicólogo
relevante. Belo Horizonte, 2015

FERNANDES, Flávio; ORLANDO, José. A utilização de técnicas minimalistas e da teoria do


contorno no planejamento e composição da peça “Frevindo-Minimalismando” para
grupo de percussão. João Pessoa, 2021

FERNANDES, Flávio; ORLANDO, José. Teoria dos Contornos e a abordagem paramétrica


do frevo de rua: planejamentos e realizações musicais. 2019

Você também pode gostar