Você está na página 1de 41

Como diferenciar um estudo que

pode impactar a prática clínica


10.1
de um estudo com informações
falaciosas?
INTRODUÇÃO
A pesquisa epidemiológica baseia-se na coleta sistemática de dados sobre eventos
ligados à saúde em uma população/grupo definido e na quantificação desses
eventos. O tratamento numérico dos fatores investigados ocorre por 3
procedimentos relacionados: mensuração de variáveis, estimativas de parâmetros
populacionais/grupais e testes estatísticos de hipóteses para comprovação ou
refutação de hipótese de associação estatística (Fundamentos da pesquisa
epidemiológica, 2009).

Os autores citados explicam que o método científico, do qual a Epidemiologia se


serve, é um processo pelo qual se busca conectar observações e teorias. Nele, as
“hipóteses conceituais”, mais amplas, são reescritas sob a forma de hipóteses
operacionais, possíveis de serem mensuradas. A teoria que gerou a hipótese
conceitual é, então, confrontada com os dados obtidos na investigação. O
mecanismo pelo qual a pesquisa epidemiológica busca essa conexão, ou seja, o
estabelecimento de inferência causal, refere-se, principalmente, à inferência indutiva
(Figura 10.1).

Epidemiologia Moderna (2008) explica que, em Epidemiologia, parte-se de


observações para leis gerais da natureza. Essas observações podem ser chamadas
de “evidências científicas” e levam a uma generalização que vai além desse conjunto
particular (processo chamado de “inferência indutiva”). Fundamentos da pesquisa
epidemiológica (2009) concorda que, nesse processo, observam-se fenômenos,
identifica-se uma relação constante entre eles e, finalmente, generaliza-se essa
relação para fenômenos que podem ainda não ter sido observados. Todo esse
processo só é possível graças às diferentes metodologias existentes em
Epidemiologia, também denominadas como estudos ou delineamentos
epidemiológicos.
Figura 10.1 - Inferência indutiva (generalização dos resultados), procedimento lógico
constantemente realizado nas pesquisas em Epidemiologia

Fonte: adaptado de Division of Biostatistics.

10.2 CLASSIFICAÇÃO DOS DELINEAMENTOS


Os delineamentos utilizados em Epidemiologia diferem entre si no modo como
selecionam as unidades de observação. Mensuram-se os fatores de risco ou
prognóstico, identificam-se as variáveis de desfecho e garantem-se a
comparabilidade entre os grupos que fazem parte do estudo e a originalidade dos
dados (Fundamentos da pesquisa epidemiológica, 2009). É por essa perspectiva que
os delineamentos podem ser comparados, e a designação mais comum e
vastamente utilizada em Epidemiologia refere-se ao posicionamento do pesquisador
com relação à investigação (ativo ou passivo), podendo ser classificados em
observacionais ou experimentais (Figura 10.2).
Figura 10.2 - Características dos diferentes tipos de delineamentos utilizados nas pesquisas
epidemiológicas

Fonte: elaborado pelo autor.

Os estudos epidemiológicos podem ser do tipo observacional experimental, que,


então, se subdividem nos diferentes tipos de estudo que se conhecem: relatos de
casos ou de série de casos, ecológico, transversal, de coorte, caso-controle e
ensaios clínicos.

Nos estudos observacionais, o pesquisador não controla a exposição nem distribui


os indivíduos entre os grupos de expostos e não expostos, adotando uma atitude
passiva e de observador no estudo. Esses estudos podem ser descritivos ou
analíticos.

10.2.1 Estudos observacionais

Os estudos observacionais são assim chamados em virtude da implicação no


posicionamento passivo do investigador, que de forma sistemática e acurada
observa o processo de produção de doentes em populações, com o mínimo de
interferência nos objetos estudados. Nesse sentido, o pesquisador não controla a
exposição nem a alocação dos indivíduos entre os grupos de expostos e não
expostos. Fundamentos da pesquisa epidemiológica (2009) lembra que, como os
indivíduos estão expostos ou não a uma causa potencial de doença,
independentemente da interferência do pesquisador, esses estudos geralmente não
apresentam problemas de natureza ética para a investigação de fatores de risco. De
modo geral, os estudos epidemiológicos observacionais podem ser classificados
(segundo o método epidemiológico) em descritivos e analíticos.

Segundo Tipos de estudos epidemiológicos: conceitos básicos e aplicações na área


do envelhecimento (2003), os estudos descritivos têm por objetivo determinar a
distribuição de doenças ou condições relacionadas à saúde segundo o tempo, o
lugar e a pessoa (características dos indivíduos), ou seja, responder às perguntas
“Quando?”, “Onde?” e “Quem adoece?”. Os estudos observacionais podem fazer uso
de dados secundários (preexistentes de mortalidade em hospitalizações, por
exemplo) e primários (coletados para o desenvolvimento do estudo).

Nessa perspectiva, a Epidemiologia Descritiva examina como a incidência (casos


novos) ou a prevalência (casos existentes) de uma doença ou condição relacionada à
saúde varia de acordo com determinadas características, como sexo, idade,
escolaridade, renda, entre outras. Quando a ocorrência da doença/condição
relacionada à saúde difere segundo tempo, lugar ou pessoa, o epidemiologista é
capaz não apenas de identificar grupos de alto risco para fins de prevenção, mas
também gerar hipóteses etiológicas para investigações futuras (Tipos de estudos
epidemiológicos: conceitos básicos e aplicações na área do envelhecimento, 2003;
Research in physical therapy: the evidence grounded practice and study models,
2005).

Estudos analíticos são aqueles delineados para examinar a existência de associação


entre uma exposição e uma doença ou condição relacionada à saúde. São
metodologias que têm capacidade para responder (comprovar ou refutar) hipóteses
de associações entre variáveis. Portanto, envolvem de forma implícita ou explícita a
comparação entre expostos e não expostos/doentes e não doentes, buscando
relacionar eventos: uma suposta “causa” a um dado “efeito”; determinada
“exposição” leva à ocorrência de certa “doença”.

Quando se trata de variáveis dicotômicas (do tipo “ser ou não ser”), a organização
das variáveis do estudo, bem como a análise, poderá ser feita facilmente por meio da
tabela de dupla entrada, 2x2 ou, ainda, de contingência.

10.2.2 Estudos experimentais

Os estudos experimentais implicam o posicionamento ativo do pesquisador, com


estratégias de ação para interferir nos processos em estudo, de forma metódica e
controlada, resultando no que correntemente se denomina experimentação. Trata-
se de manobras de intervenção que têm como objetivo isolar efeitos, controlar
intercorrências externas e desencadear processos. Os estudos experimentais são
essencialmente analíticos (Introdução à Epidemiologia, 2002).

Esses estudos também são conhecidos como de intervenção, clinical trials (quando
aplicados de modo individual) ou community trials (quando aplicados em
comunidades inteiras). Caracterizam-se, principalmente, pelo fato de o investigador
determinar os grupos de indivíduos expostos e não expostos (Introdução aos
estudos epidemiológicos analíticos, 2005).
Fundamentos da pesquisa epidemiológica (2009) explica que os indivíduos são
alocados de modo aleatório em diferentes grupos de exposição aos fatores que se
julga serem de risco ou de prognóstico. Esse processo de alocação aleatória garante
a todos os indivíduos a mesma probabilidade de fazer parte de qualquer um dos
grupos comparados. Outra característica dos estudos experimentais reside no fato
de o investigador controlar a exposição ao fator de interesse, por isso questões
éticas fazem que tais estudos se restrinjam a fatores nos quais se acredite haver
influência positiva sobre a saúde. O modelo de análise utilizado é o mesmo de um
estudo observacional.

Existe, ainda, uma designação chamada “estudo quase-experimental”, que ocorre


quando existe o controle do fator de estudo pelo investigador, mas a alocação dos
indivíduos nos diferentes grupos de comparação não pode ser aleatória, devido a
questões éticas. De maneira geral, esses estudos acabam sendo considerados como
experimentais, mas os impactos de seus resultados devem ser avaliados/
interpretados com mais cautela.

10.2.3 Tempo em relação ao surgimento do desfecho

As caracterizações dos estudos segundo a posição do investigador (observacional e


experimental) e o método epidemiológico empregado (analítico e descritivo) são,
sem dúvida, as mais importantes. Contudo, outras propriedades devem ser levadas
em conta quando se deseja conhecer essas metodologias com mais profundidade.

Um estudo epidemiológico pode ser classificado, também, de acordo com o tempo


de ocorrência do desfecho (surgimento). Assim, quando se investiga a frequência do
desfecho ou de fatores associados, no presente e ao mesmo tempo, menciona-se o
estudo transversal ou seccional (no tempo). Contudo, em muitos casos, a
investigação transversal não é suficiente, existindo a possibilidade de recorrer a
desenhos chamados de longitudinais, ou seja, quando o desfecho e/ou os fatores
associados não estão no presente. Isso geralmente é necessário quando se deseja
conhecer a incidência de doença ou fatores de risco com maior precisão.

Se uma investigação tem o objetivo de saber com que frequência as pessoas ficam
doentes ou se expõem a certos fatores, ela deverá acompanhar esses indivíduos.
Nesse caso, tanto exposição quanto desfecho estão no futuro no que se refere ao
início da pesquisa, ou seja, trata-se de um estudo longitudinal prospectivo.

No entanto, se os indivíduos já estiverem doentes (apresentarem o desfecho),


exposição e desfecho aconteceram antes do início da pesquisa; assim, pode-se
lançar mão dos estudos longitudinais retrospectivos.Outra propriedade importante
diz respeito à unidade de estudo ou análise. Existem estudos focados no indivíduo,
que avaliam grupos de pessoas e pelos quais se consegue obter a frequência de
doença e de fatores associados, podendo, assim, ser calculado o risco individual à
doença. Porém, quando se trabalha com dados populacionais, a unidade de
observação passa a ser a população estudada (agregado), e não os indivíduos, e,
embora sejam estudos importantes, são incapazes de revelar o risco individual,
como é feito no primeiro caso.
A seguir, serão apresentados os principais tipos de delineamentos utilizados nas
pesquisas epidemiológicas, bem como alguns exemplos aplicados, suas vantagens e
desvantagens.

10.3 TIPOS DE DELINEAMENTOS


10.3.1 Relatos de caso ou série de casos

Os relatos de caso consistem em uma descrição cuidadosa e detalhada por um ou


mais profissionais de saúde, geralmente clínicos, das características clínicas de um
único paciente ou série de pacientes. O relato de caso é o estudo que mais se
identifica com o médico clínico. Aguça a interpretação de sinais e sintomas e
constitui farto material para discussões que alavancam o aprendizado de jovens
médicos (Relatos e série de casos na era da medicina baseada em evidência, 2010).

Nesse tipo de trabalho, não existe comparação analítica, não sendo possível a
realização de inferência acerca da ocorrência daquele ou daqueles casos. Contudo,
uma apresentação de caso benfeita pode auxiliar na descrição de um quadro clínico
específico, que pode ser importante para a Epidemiologia conhecer um padrão de
doença ou de doentes.

10.3.2 Estudo ecológico

O estudo ecológico é aquele que analisa um grupo ou determinada população de um


dado local, com grande relevância para a Saúde Pública, pois permite avaliar a
ocorrência de uma doença na comunidade e a efetividade das intervenções feitas
nesse local.

Trata-se do estudo no qual a unidade de análise é uma população ou um grupo de


pessoas, que geralmente pertence a uma área geográfica definida, como um país,
um estado, uma cidade, um município ou um setor censitário. Esses estudos são
feitos com dados secundários, que não envolvem contato do pesquisador com os
indivíduos, sendo frequentemente realizados combinando-se bases de dados de
grandes populações (dados secundários não devem ser confundidos com estudos
secundários). Em função disso, são geralmente mais baratos e mais rápidos do que
os estudos que envolvem indivíduos como unidade de análise (MEDRONHO, 2009).

Os principais objetivos são gerar hipóteses etiológicas a respeito da ocorrência de


determinada doença e avaliar a efetividade de intervenções na população, testando
a aplicação de determinado procedimento para prevenir doença ou promover saúde
em grupos populacionais. Estudo Ecológico (2009) explica também que é possível
avaliar hipóteses com esse tipo de estudo, porém é fortemente prejudicado pela
dificuldade de se controlar os “fatores de confusão”.
Esse estudo, por ter forte característica exploratória, é considerado por muitos
autores essencialmente descritivo. No entanto, já se mostrou que, por meio dele, é
possível verificar associação entre mudanças no tempo do nível médio de uma
exposição e das taxas de doença em uma população geograficamente definida,
podendo também ser entendido como estudo analítico.

Figura 10.3 - Características do estudo ecológico

Fonte: elaborado pelo autor.

Um estudo ecológico pode ser delineado em um eixo transversal, ou seja, avaliando-


se vários agregados com dados no mesmo período, como um estudo que comparou
a taxa de mortalidade em diversos países, no ano de 2018 (presente). Contudo, o
mais comum nos estudos ecológicos são as avaliações de tendência construídas por
meio de análise de série histórica. Para isso, são necessários dados retrospectivos
(passado) para todas as unidades de análise existentes.

Trata-se de um tipo de delineamento muito interessante para a Saúde Pública e a


Gestão em Saúde; pode-se, por exemplo, avaliar uma série histórica de mortalidade
infantil para diferentes municípios e levantar aqueles em que a queda do indicador
não foi significativa ou se houve modificação na tendência. Deve-se lembrar que a
qualidade desse tipo de estudo depende do sistema de informação de origem da
base de dados.

Quanto ao tempo, um estudo ecológico pode ter característica transversal quando


faz uma avaliação como um corte no tempo, podendo, ainda, estudar associação,
nesse sentido. Contudo, dependendo do objetivo do trabalho e da disponibilidade de
dados, podem-se desenvolver estudos ecológicos de tendência histórica ou séries
históricas, isto é, longitudinais, em que é possível analisar o comportamento de uma
doença/desfecho no tempo (Figura 10.3).
Introdução à Epidemiologia (2002) classifica dois subtipos de estudos ecológicos, de
acordo com a base de referência para produção de dados: estudo territorial, no qual
há definição geográfica das unidades/blocos de observação (bairros, distritos,
municípios, países etc.), e estudo institucional, que toma organizações coletivas
como parâmetros (fábricas, escolas).

Podem ser avaliadas medidas provenientes dos agregados (grupos de indivíduos),


como proporções de indivíduos com certa característica (renda familiar, taxa de
fumantes); medidas ambientais, como as características físicas do lugar onde os
membros de cada grupo vivem ou trabalham; e medidas globais, como indicadores
de saúde, densidade demográfica ou existência de determinado nível de saúde.

Como não existe informação em nível individual, não é possível trabalhar com a
tabela de contingência para estudar as estimativas de exposição e desfecho. Nesse
caso, é muito comum a avaliação de associação estatística utilizando métodos de
regressão linear, simples ou múltipla, em que se consegue chegar à chamada
correlação (método que estuda variação concomitante entre 2 ou mais variáveis
quantitativas contínuas).

Uma busca no PubMed, usando o termo “ecological study”, retorna com quase 39
mil referências de artigos relacionados a estudos ecológicos, o que aponta que esse
tipo de estudo é relativamente bem utilizado como ferramenta de pesquisa em
Epidemiologia. A seguir, um exemplo de estudo ecológico nomeado Queda de
homicídios no município de São Paulo (Queda dos homicídios no município de São
Paulo: uma análise exploratória de possíveis condicionantes, 2011).

• Objetivo do estudo: descrever a evolução das Taxas de Mortalidade por Homicídio


(TMHs) e de indicadores sociodemográficos, de investimento em políticas sociais e
segurança pública, e analisar a correlação entre a evolução das TMHs e das variáveis
independentes no município de São Paulo entre 1996 e 2008;

• Métodos: foi realizado um estudo ecológico de série temporal, exploratório. As


seguintes variáveis foram incluídas: TMH por 100.000 habitantes, indicadores
sociodemográficos, investimentos em políticas sociais e de segurança pública. Foram
calculadas as médias móveis de todas as variáveis, e a tendência foi analisada por
meio de regressão linear. Além disso, calcularam-se as variações percentual anual,
média anual e percentual periódica, e a associação foi testada por meio da análise de
correlação de Spearman entre a variação percentual anual das variáveis;

• Resultados: foram encontradas correlações com a proporção de jovens na


população (r = 0,69), taxa de desemprego (r = 0,60), investimento estadual em
educação e cultura (r = 0,87) e saúde e saneamento (r = 0,56), investimento municipal
(r = 0,68) e estadual (r = 0,53) em segurança pública, armas apreendidas (r = 0,69) e
taxa de encarceramento-aprisionamento (r = 0,71);

• Conclusões: os resultados permitem sustentar a hipótese de que alterações


demográficas, aceleração da economia, em especial a queda do desemprego,
investimentos em políticas sociais e mudanças nas políticas de segurança pública,
atuam sinergicamente para a redução da TMH em São Paulo. Torna-se necessário o
desenvolvimento de modelos de análise complexos que incorporem a atuação
conjunta dos distintos fatores com potencial explicativo.

Uma das suas vantagens é a possibilidade de examinar associações entre exposição


e doença (desfecho) relacionada nessa coletividade. Isso é particularmente
importante quando se considera que a expressão coletiva de um fenômeno pode
diferir da soma das partes desse mesmo fenômeno. No entanto, embora uma
associação ecológica possa refletir corretamente uma associação causal com a
possibilidade de viés ecológico, é sempre lembrada como uma limitação para o uso
de correlações ecológicas (Basic study designs in analytical epidemiology, 2000;
Tipos de estudos epidemiológicos: conceitos básicos e aplicações na área do
envelhecimento, 2003).

Os estudos ecológicos não podem tirar conclusões sobre a causa da doença porque
não há informação sobre o status de cada pessoa quanto à exposição e ao desfecho;
trata-se do viés ecológico (ou falácia ecológica). Outras vantagens e desvantagens
estão relacionadas no Quadro 10.1.

Quadro 10.1 - Vantagens e desvantagens do estudo ecológico

As principais vantagens do estudo ecológico são o baixo custo e a facilidade e a


rapidez na execução; entretanto, as principais desvantagens incluem a dificuldade
para controlar os fatores de confusão, a ausência de acesso aos dados individuais e
a maior suscetibilidade à falácia ecológica, que consiste em atribuir a um indivíduo o
que se observou com base em análises de grupo.
10.3.3 Estudo transversal

10.3.3.1 Estrutura básica

Também chamado de estudo seccional, de corte, de prevalência ou de inquérito


epidemiológico, o estudo transversal é um delineamento observacional que pode
apresentar tanto caráter descritivo quanto analítico, ambos de base individual.
Consta como um dos delineamentos mais comuns utilizados em Epidemiologia.

O estudo transversal caracteriza-se pela seleção de pessoas de toda uma população


ou amostra. Os indivíduos são selecionados sem considerar a exposição ou estado
da doença, e o objetivo principal é estimar a prevalência de uma doença ou de
fatores associados nessa população.

As determinações da doença (entenda-se doença como desfecho) e da exposição


são realizadas simultaneamente, e subpopulações de diferentes níveis de exposição
são comparadas em relação à prevalência da doença e aos fatores que se julgam
associados a ela (Figura 10.4).

Figura 10.4 - Características do estudo transversal

Fonte: elaborado pelo autor.

No estudo transversal, as coletas de dados tanto da exposição (levantamento de


fatores associados) como do desfecho são feitas transversalmente, em um único
ponto do tempo (no mesmo tempo – presente). Seleciona-se uma amostra da
população de interesse e avalia-se essa amostra, que deve ser semelhante à
população. Quando se pesquisa desfecho binário (por exemplo, presença/ausência
de uma doença), é comum haver esses quatro estados para cada parcela da amostra:
exposto e doente, exposto e não doente, não exposto e doente e não exposto e não
doente. Os testes de associação levarão em conta a relação entre essas parcelas da
amostra, além de ser estimada a prevalência da doença. Por avaliarem um único
ponto do tempo, os estudos transversais não podem avaliar causalidade, visto que
não se pode obedecer ao critério de temporalidade (isto é, o fator em estudo ocorre
antes do desfecho). Esse fato faz os estudos transversais gerarem o fenômeno (viés)
de causalidade reversa, ou seja, atribuir o desfecho como consequência, quando
pode ser, na verdade, causa.

Os estudos transversais, por lidarem exclusivamente com a medida de frequência do


tipo prevalência, são mais indicados para estudar as doenças de longa duração e
exposição que pouco se modificam com o tempo. São úteis, também, para fornecer
informações sobre distribuição e características do evento investigado na
população, avaliar as necessidades de serviços de saúde e planejamento em Saúde
Pública e contribuir para o estudo da etiologia das doenças.

10.3.3.2 Planejamento e execução

No planejamento de um estudo transversal, há itens importantes a serem


considerados; um dos principais se refere à população que dará origem à amostra a
ser analisada. A seleção dessa população dependerá basicamente do objetivo do
estudo.

Lembre-se de que medir algum fator em uma população inteira é logicamente


inviável, por isso outro passo importante do estudo é a amostragem. Para tanto, o
pesquisador pode lançar mão de técnicas para, com base na observação de um
grupo de indivíduos, obter parâmetros do todo (população). Uma amostra pela qual é
possível a realização de inferência (generalização dos resultados) deve ser
representativa da população que lhe deu origem. Assim, existem a amostragem
aleatória simples, a estratificada, a sistemática e aquela por conglomerados. Muitas
pesquisas trabalham com amostras obtidas sem processo de aleatoriedade, fato
que não garante a sua representatividade. São as chamadas “amostras por
conveniência”.

Um estudo transversal é pontual na medida em que não existe acompanhamento


dos indivíduos, ou seja, a avaliação ocorre em um momento determinado. Como são
estudos geralmente grandes, é comum que levem um intervalo de tempo para
serem desenvolvidos, analisados e publicados. As ferramentas utilizadas na
mensuração das variáveis podem ser questionários de coleta de dados, exames
médicos ou exames laboratoriais.

Para se ter uma ideia do quanto é comum a utilização desse estudo, uma busca no
PubMed no ano de 2019 com o termo “cross-sectional study”, geralmente utilizado
para designar o estudo transversal, resultou em 413.346 registros de artigos, com
acréscimo de mais de 36 mil naquele ano. A seguir, um exemplo de estudo
transversal, Análise do Perfil de Pacientes com HIV/AIDS hospitalizados após
introdução da terapia antirretroviral (HAART) (2015):

• Objetivo do estudo: desde a introdução da terapia antirretroviral altamente ativa


(HAART) em 1996, têm sido observadas em todo o mundo mudanças nas causas de
hospitalização em pacientes com HIV/AIDS. O objetivo do artigo foi descrever as
características das hospitalizações de pacientes com HIV/AIDS no período de 1997 a
2012;

• Métodos: trata-se de um estudo transversal que utiliza um banco de dados


hospitalar para concentrar registros de internações em 31 hospitais, públicos e
privados, de 26 municípios do interior de São Paulo. Para a verificação de associação
entre variáveis, empregaram-se a Razão de Prevalência (RP) e seu intervalo de
confiança a 95%;

• Resultados: foram registradas 10.696 internações entre 9.797 adultos e crianças,


ou 1,09 internação por paciente, 62% do sexo masculino, com faixa etária
predominante dos 21 aos 50 anos (63,5%). Considerando-se todas as faixas etárias, a
mortalidade foi maior entre pacientes do sexo masculino [RP = 1,42 (Intervalo de
Confiança – IC95%: 1,28-1,57); p < 0,05];

• Conclusões: as doenças infecciosas foram as principais responsáveis pelas


hospitalizações – 54,5% do total. Notou-se que ainda há predominância de doenças
infecciosas (oportunistas ou não) como causas de internação em pacientes com HIV/
AIDS, mesmo na era pós-HAART. Foram constatadas diferenças entre os sexos e as
idades dos pacientes considerando importantes variáveis, como óbito.

Estudos transversais feitos em intervalos periódicos de tempo são úteis, pois podem
refletir mudanças na situação de saúde. Todavia, uma de suas desvantagens
importantes refere-se à impossibilidade de seguimento, uma vez que indivíduos
diferentes são avaliados em cada amostra. As principais vantagens e desvantagens
do estudo são apresentadas no Quadro 10.2.

Quadro 10.2 - Vantagens e desvantagens do estudo transversal


10.3.3.3 Associação entre exposição e desfecho

A primeira análise a ser realizada em um estudo transversal é a determinação da


prevalência da doença/fator de risco na população estudada. Esse procedimento
pode ser feito dividindo-se o número de doentes existentes pela população total do
estudo.

A segunda análise consiste em verificar a associação entre a exposição (expostos e


não expostos) e o desfecho (doentes e não doentes). Essa metodologia pode ser
representada em uma tabela 2x2. Segundo Métodos para estimar razão de
prevalência em estudos de corte transversal (2008), em estudos de corte
transversal com desfechos binários, a associação entre exposição e desfecho
poderá ser estimada pela RP.

Serão utilizados, como exemplo, dados de um estudo transversal hipotético. O


estudo foi realizado em determinada cidade após período de enchente. Os
pesquisadores gostariam de levantar a soroprevalência de hepatite A e verificar se o
contato com água contaminada influencia a frequência da doença. Os dados foram
coletados e organizados na tabela de contingência (Tabela 10.1).

Tabela 10.1 - Organização dos dados de um estudo transversal sobre a associação entre água
contaminada e soroprevalência de hepatite A

Inicialmente, mensura-se a prevalência geral do desfecho, e depois, a influência da


variável “contato com a água” na prevalência da hepatite A:

• Prevalência: percentual de indivíduos doentes (a + c) entre todos os avaliados (a + b


+ c + d). Como os dados estão alocados nos campos, utiliza-se a seguinte fórmula:

Fórmula 10.1 - Prevalência

• Razão de Prevalência (RP): trata-se da razão entre a prevalência do desfecho no


grupo exposto (PGE) em relação ao grupo não exposto (PGNE).
Fórmula 10.2 - Razão de Prevalência

Pode-se concluir que a prevalência de hepatite foi 2,31 vezes maior entre os
indivíduos que se expuseram à água contaminada quando comparados com os não
expostos a esse fator, sugerindo que esse tipo de exposição seja considerado um
fator de risco para a doença.

# perguntaaí
Tenho tido dificuldades em diferenciar estudos
transversais de estudos ecológicos. Qual é a
diferença?
Estudos transversais são individualizados e avaliam a
prevalência do desfecho em todos os indivíduos
expostos e não expostos. Essas pessoas são
selecionadas e catalogadas pelo estudo. Já nos estudos
ecológicos, são avaliados os comportamentos
populacionais, ou seja, você não cataloga cada
indivíduo que participa do estudo, e sim a população
como um todo.

10.3.4 Estudo de coorte

10.3.4.1 Estrutura básica

A principal característica do estudo de coorte é a seleção de indivíduos saudáveis


(sem o desfecho) classificados de acordo com o grau de exposição a um fator de
interesse que se deseja investigar. Esses indivíduos são, então, acompanhados ao
longo do tempo para apurar a incidência do desfecho de interesse. Nesse estudo, o
interesse do pesquisador é saber a frequência com que as pessoas se tornam
doentes, ou seja, a incidência.

Nos estudos tipo coorte, o pesquisador cataloga os indivíduos como expostos e não
expostos ao fator de estudo, segue-os por determinado período e, ao final, verifica a
incidência da doença entre eles, comparando-a nos 2 grupos (Research in physical
therapy: the evidence grounded practice and study models, 2005).

Há dois tipos de estudo de coorte, segundo a localização temporal do delineamento:


prospectivo ou concorrente e retrospectivo ou não concorrente (também chamado
de coorte histórica). Tais estudos também são chamados de “estudo de
acompanhamento”, “de incidência” ou “follow-up”.
A seleção dos participantes no estudo pode ser feita de duas formas: por meio de
dois grupos, um de indivíduos expostos e outro de indivíduos não expostos ao fator
de risco, ou seleciona-se um único grupo em que estarão presentes indivíduos
expostos e não expostos, fazendo, em seguida, a sua classificação.

O objetivo do estudo é a comparação da incidência entre os grupos, e para tanto é


preciso garantir que todos os participantes não apresentem o desfecho de interesse
no início do estudo (o que caracterizaria um caso prevalente). Essa característica do
estudo de coorte permite determinar uma relação temporal confiável entre
exposição e desfecho, essencial para determinar causalidade.

Um dos estudos de coorte mais conhecidos refere-se à pesquisa que vem sendo
desenvolvida na cidade norte-americana de Framingham, Massachusetts. Em 1948,
o Framingham Heart Study embarcou em um projeto ambicioso de pesquisa em
saúde para identificar os fatores comuns que contribuem para doenças
cardiovasculares, seguindo o seu desenvolvimento por um longo período em um
grande grupo de participantes. Atualmente, o estudo está avaliando a terceira
geração de indivíduos (site do Framingham Heart Study, 2013).

10.3.4.2 Coorte prospectiva ou concorrente

A seleção dos participantes pode ser feita no presente, e estes são observados até o
desfecho. O delineamento prospectivo permite a coleta mais detalhada dos dados
de exposição, o acompanhamento sistemático dos indivíduos com maior grau de
refino e precisão e a definição das variáveis que serão analisadas ao longo do tempo.
Porém, é um estudo longo, que demanda grande quantidade de recursos (Figura
10.5).

Figura 10.5 - Características do estudo de coorte prospectiva ou concorrente


Fonte: adaptado de Epidemiologia Clínica: elementos essenciais, 2006.

Uma coorte clássica inicia-se com um grupo de indivíduos acompanhados ao longo


do tempo. No caso de uma coorte prospectiva, seleciona-se uma parcela da
população com alguma característica de interesse, como uma coorte de gestantes,
que terá como base de inclusão uma mulher que se torne gestante. São
selecionadas, então, as variáveis de exposição (álcool, tabaco, violência), e essas
gestantes são subdivididas em expostas e não expostas aos fatores. Segue-se no
tempo o desfecho (incidência ou casos novos), por exemplo, abortamento. No final
do estudo, existirão mulheres que abortaram e estavam expostas aos fatores, que
abortaram e não estavam expostas, que não abortaram e estavam expostas e que
não abortaram e não estavam expostas. Os fatores de risco são reconhecidos por
meio da análise de proporção de casos novos nesses grupos.

A amostra inicial apresenta apenas indivíduos não doentes ou sem o desfecho. Cabe
lembrar que os eventos de interesse podem ser: ocorrência de novos casos,
mortalidade por determinada causa ou mudanças de um marcador biológico.
Epidemiologia: abordagem prática (2005) afirma que os estudos de coorte podem
investigar, também, respostas a tratamentos, embora não sejam indicados para a
inclusão de novos tratamentos na prática clínica, visto que os participantes não
estão randomizados e, consequentemente, com fatores de confusão
desbalanceados.

10.3.4.3 Coorte retrospectiva ou não concorrente

Na coorte retrospectiva, histórica ou ainda não concorrente, a investigação inicia-se


em um ponto no tempo em que tanto exposição quanto desfecho já ocorreram
(Figura 10.6). Nesse caso, o registro inicial depende dos dados já coletados para
outros propósitos. É necessário confiar na memória dos participantes para
estabelecer a data de desenvolvimento do desfecho e para saber se este não estava
presente no início do estudo (caso prevalente). A qualidade e o grau de
detalhamento da informação obtida dependem largamente do indivíduo e da sua
memória, porém é um estudo que pode ser feito de forma mais rápida e econômica,
desde que haja dados passados disponíveis.
Figura 10.6 - Características do estudo de coorte retrospectivo ou não concorrente

Fonte: adaptado de Epidemiologia Clínica: elementos essenciais, 2006.

A estrutura de uma coorte histórica é a mesma que a de uma coorte prospectiva,


porém na primeira a coleta de dados é feita no presente, ou seja, a definição entre
exposição e desfecho é feita no presente, mas a coorte já havia sido formada e
iniciada anteriormente. Imagine uma situação em que uma grande usina nuclear
admite, no ano de 2002, um contingente de 2.000 funcionários e, a cada mês, avalia
o estado de saúde de todos eles. No final de alguns anos, existirá um banco de dados
consistente sobre o estado de saúde desses indivíduos ao longo do tempo. Um
pesquisador com o interesse de avaliar um tipo de câncer pode iniciar uma coorte
histórica em 2018, usando os dados dos funcionários admitidos na empresa em
2002, verificando em seus registros a presença ou não do desfecho de interesse e
seus fatores.

Quando se considera a história natural de uma doença, ambos os delineamentos de


coorte podem ser considerados prospectivos, pois partem da exposição a um fator e
posterior desenvolvimento de desfecho, em oposição ao estudo caso-controle, que
parte do desfecho para estudar a exposição e seria, então, retrospectivo, tanto no
sentido temporal quanto da história natural do desfecho.

As coortes retrospectivas podem ser indicadas para superar as principais limitações


das coortes prospectivas: incapacidade relativa de abordar patologias pouco
frequentes e com longo período de latência; porém, para a operacionalização desse
desenho, é preciso contar com registros médicos confiáveis.

Estudos de coorte mantêm vasta literatura na área médica. Uma pesquisa no


PubMed, com o termo “cohort study”, resulta com 2.062.635 trabalhos associados
ao termo, com aumento de mais de 119 mil somente em 2018. A versão mais
utilizada é a coorte prospectiva. A seguir, apresentam-se duas publicações de
estudos de coorte: uma prospectiva e outra retrospectiva.
Exemplo de estudo de coorte prospectiva, denominado Retardo no crescimento
intrauterino, baixo peso ao nascer e prematuridade em recém-nascidos de grávidas
com malária, na Colômbia (2011).

• Objetivo do estudo: analisar a relação da malária gestacional com esses efeitos em


recém-nascidos, em uma região endêmica para malária na Colômbia, entre 1993 e
2007;

• Método: foram estudadas as características em 1.716 recém-nascidos em um


estudo de coorte. Fez-se seguimento em 394 gestantes com malária (27% por
Plasmodium falciparum e 73% por P. vivax) e 1.322 sem malária;

• Resultado: foi encontrada uma relação entre a exposição à malária na gestação e o


risco maior de baixo peso ao nascer (Risco Relativo – RR = 1,37; IC95% = 1,03 a 1,83),
assim como estatura baixa (RR = 1,52; IC95% = 1,25 a 1,85), retardo no crescimento
intrauterino (RR = 1,29; IC95% = 1 a 1,66) e prematuridade (RR = 1,68; IC95% = 1,3 a
2,17). A frequência de nascimentos prematuros foi maior nas mães com malária por P.
falciparum (77%) do que naquelas com P. vivax (RR = 1,77; IC95% = 1,2 a 2,6);

• Conclusão: o baixo peso ao nascer e o retardo no crescimento foram associados à


malária na gestação, na Colômbia. A infecção por P. vivax foi relacionada com efeitos
adversos sobre o recém-nascido, de modo semelhante no que diz respeito à infecção
por P. falciparum.

Exemplo de estudo de coorte retrospectiva, nomeado Progressão da doença renal


crônica: experiência ambulatorial em Santarém-Pará (2013).

• Objetivo do estudo: conhecer aspectos demográficos, clínicos e laboratoriais de


pacientes com Doença Renal Crônica (DRC) não dialítica e avaliar o impacto dessas
variáveis na progressão da doença;

• Método: foi um estudo de coorte retrospectiva, composta de 65 pacientes adultos


com DRC nos estágios 2 a 4, acompanhados e tratados ambulatorialmente por média
de 28,24 ± 13,3 meses;

• Resultado: a idade média foi de 64,6 ± 12,6 anos. As principais etiologias de DRC
foram doença renal diabética (47,7%) e nefrosclerose hipertensiva (34,2%). A maioria
dos pacientes encontrava-se no estágio 3 da DRC (44,6%), e a minoria alcançou os
alvos terapêuticos no controle de suas comorbidades, 40% para pressão arterial e
38,7% para o controle glicêmico. A perda média anual da taxa de filtração glomerular
foi 3,1 ± 7,3 mL/min/1,73m2 (mediana = 1,4 mL/min/1,73m2), e 21,5% dos pacientes
evoluíram com DRC progressiva. Pressão arterial diastólica acima de 90 mmHg
aumentou 2,7 vezes o risco de evolução com DRC progressiva (IC95% = 1,14 a 6,57; p
= 0,0341), assim como Pressão Arterial Sistólica (PAS) acima de 160 mmHg (RR =
3,64; IC95% = 1,53 a 8,65; p = 0,0053) e proteinúria (RR = 4,05; IC95% = 1,55 a 10,56;
p = 0,0031). Foram observadas, também, média de PAS maior (p = 0,0359) e mediana
de colesterol HDL menor (p = 0,0047) nos pacientes com DRC progressiva;

• Conclusão: nesse estudo, hipertensão e proteinúria foram fatores de risco para


evolução com DRC progressiva. Apesar do controle clínico difícil, a minoria dos
pacientes evoluiu com a forma progressiva da DRC.

No geral, o estudo de coorte apresenta como vantagens permitir o cálculo de


incidência de um desfecho entre expostos e não expostos, bem como a flexibilidade
em escolher variáveis para registro sistemático ao longo do estudo. Em
contrapartida, ao se estudar um desfecho raro, é preciso acompanhar um grupo
muito grande de indivíduos para obter algum resultado. Talvez a desvantagem mais
significativa do estudo de coorte seja comum a todos os estudos observacionais: a
posição do pesquisador é passiva, e ele não influencia a distribuição dos indivíduos
nos grupos. Outras vantagens e desvantagens são apresentadas a seguir.

Quadro 10.3 - Vantagens e desvantagens do estudo de coorte

A principal vantagem dos estudos de coorte está na possibilidade de cálculo das


taxas de incidência de desfechos entre expostos e não expostos, além de permitir o
estudo de múltiplos efeitos/consequências de um mesmo fator de exposição. Entre
as desvantagens, a principal é o potencial viés associado à perda de seguimento
(morte, migração, desistência e falta de adesão).
10.3.4.4 Associação entre exposição e desfecho

A expressão básica para risco é a incidência (frequência com que as pessoas se


tornam doentes em um período definido). Segundo Epidemiologia Clínica: elementos
essenciais (2006), em estudos de coorte a incidência da doença é comparada entre
dois ou mais grupos que diferem quanto ao status de exposição a um possível fator
de risco/proteção (exposto ou não exposto). Para comparar os riscos, diversas
medidas de associação entre a exposição e a doença, chamadas de medidas de
efeito, são comumente utilizadas. Essas medidas, que podem ser calculadas na
tabela de contingência, representam diferentes conceitos de risco e são usadas com
propósitos diferentes, em níveis individual e populacional.

A seguir, será apresentado um exemplo de estudo de coorte com desfecho e


exposição binários. Trata-se de um estudo da relação entre o uso de
anticoncepcionais orais e bacteriúria. A proposição foi investigada em Oral-
contraceptive use and bacteriuria in a community-based study (1978) em uma
coorte de base populacional de 2.390 mulheres, com idade inferior a 50 anos,
acompanhadas pelo período de 12 meses. Os dados do estudo foram organizados na
tabela 2x2 (Tabela 10.2).

Tabela 10.2 - Organização dos dados de um estudo de coorte sobre a relação entre o uso de
anticoncepcionais orais e bacteriúria

Fonte: adaptado de Oral-contraceptive use and bacteriuria in a community-based study, 1978.

No que diz respeito a parâmetros individuais, pode-se, inicialmente, mensurar a


incidência geral do desfecho:

• Incidência ou risco absoluto (I): frequência de novos doentes (a + c) entre todos os


indivíduos em risco de adoecer (a + b + c + d). Nesse estudo, refere-se à frequência
com que as mulheres desenvolvem a bacteriúria, calculada pela Fórmula 10.3. Nesse
caso, pode-se afirmar que a taxa de novas mulheres apresentando o desfecho foi de
4,3% no ano, ou seja, o risco absoluto de desenvolver bacteriúria na coorte foi de
4,3%. A seguir, calcula-se a diferença do risco entre mulheres expostas, e não
expostas ao anticoncepcional;
Fórmula 10.3 - Incidência ou risco absoluto

• Risco Atribuível (RA): diferença do risco (incidência) entre grupo exposto (IGE) e
não exposto (IGNE) quanto ao fator que se avalia. Essa medida é muito útil para
avaliar a importância da exposição quanto à incidência total. Repare que existe
bacteriúria nos dois grupos (IGE e IGNE); porém, no grupo exposto ao fator, existe
incidência adicional de 0,016 (o uso de anticoncepcional oral aumenta o risco de
bacteriúria em 0,016). O RA também pode ser chamado de fração etiológica, uma vez
que é calculada a incidência do desfecho atribuído à exposição;

Fórmula 10.4 - Risco atribuível

• Risco Relativo (RR): é a razão entre as incidências do desfecho, ou seja, entre o


risco de apresentar o desfecho no grupo exposto (IGE) em relação ao não exposto
(IGNE). Assim, pode-se afirmar que a incidência foi de 0,4 ou 40% maior nas
mulheres expostas ao anticoncepcional. Poderia se afirmar, também, que o
anticoncepcional é um fator de risco para o desenvolvimento desse desfecho, uma
vez que é 40% mais provável que uma mulher exposta ao anticoncepcional
desenvolva bacteriúria, se comparada a uma que não o utiliza.

Fórmula 10.5 - Risco relativo

Por meio dos parâmetros obtidos em um estudo de coorte, pode-se trabalhar com
estimativas na população. O RA e a fração atribuível na população são duas
possibilidades facilmente desenvolvidas:

• Risco Atribuível na população (RAp): estima a incidência de uma doença na


população associada à prevalência de um fator de risco (qual é a incidência da
doença em uma população associada à prevalência de um fator de risco?). Para
desenvolver esse cálculo, é necessário um parâmetro de prevalência da exposição.
Aqui será utilizado o parâmetro da prevalência de 66% (P = 0,66), levantado na
população da cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul. Pode-se concluir que, se em uma
população a prevalência do uso de anticoncepcional for de 66% (Prevalência de uso
de métodos contraceptivos e adequação do uso de anticoncepcionais orais na
cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, 1996) e a incidência obedecer à dinâmica
da coorte estudada (Oral-contraceptive use and bacteriuria in a community-based
study, 1978), existirá 1% de casos novos de bacteriúria em excesso, ou seja, mais do
que o normalmente ocorrido na população sem essa exposição. Esse tipo de
informação pode ser muito útil para a organização de políticas. Pense, por exemplo,
em doenças como a AIDS e as hepatites virais. O maior risco de infecção por esses
vírus está no compartilhamento de agulhas em grupos de usuários de drogas, e não
na relação sexual desprotegida. Esta última confere risco menor de infecção.
Contudo, quando se observa a prevalência do fator de risco, existe uma diferença
importante. Sabe-se que a prevalência de pessoas que fazem sexo, na população em
geral, é largamente maior do que a de usuários de drogas. Então, o risco de infecção
por relação sexual, que é bem menos importante do que o compartilhamento de
agulhas, torna-se um fator importante;

Fórmula 10.6 - Risco atribuível na população

• Fração Atribuível na população (FAp): descreve a fração da ocorrência de uma


doença na população associada a um fator de risco (que fração da doença em uma
população é atribuível à exposição a um fator de risco?). Para a execução desse
cálculo, deve-se conhecer a incidência do desfecho na população (IT – Incidência
Total – Fórmula 10.7) e RAp. Como exemplo, será utilizada uma IT hipotética de 3,1%,
que seria a incidência de bacteriúria na população comparável com a coorte. Assim,
pode-se afirmar que 32% da incidência total da bacteriúria na população é atribuível à
exposição ao fator de estudo, ou seja, ao anticoncepcional. De modo geral, esses dois
últimos estimadores populacionais são pouco usados, já que, para a sua execução, é
necessário conhecer parâmetros populacionais, muitas vezes de conhecimento
impossível ou não viável.

Fórmula 10.7 - Incidência total

Fórmula 10.8 - Fração atribuível na população


10.3.5 Estudo caso-controle

10.3.5.1 Estrutura básica

Esse delineamento de estudo seleciona indivíduos que desenvolveram e que não


desenvolveram um desfecho de interesse (ou seja, casos e controles) e procura
avaliar a frequência de exposição passada a fatores que se acreditam ser associados
ao desfecho (Figura 10.7). Assim, trata-se de estudo observacional, longitudinal e
unicamente retrospectivo. É importante frisar que os controles devem ser
pertencentes à mesma população a que pertencem os casos, ou a comparação deixa
de ser válida.

Para esse estudo, é imprescindível definir a população-base, em que os casos devem


ser uma amostra fidedigna dos casos totais e os controles da mesma forma, até
mesmo para a exposição ao fator que se deseja estudar. Caso haja restrição para a
seleção de casos (por exemplo, idade), essa mesma restrição deve ser aplicada aos
controles e enumerada no momento da inferência. A inferência será válida para uma
população com aquela restrição de idade imposta à amostragem.

#importante
O estudo caso-controle é um estudo observacional,
longitudinal e necessariamente retrospectivo.

Uma preocupação comum nesse tipo de estudo é que os casos e controles sejam
comparáveis. Se existem fatores predisponentes conhecidos, a amostra deve ser
restrita quanto à presença destes (se possível), ou casos e controles devem ser
pareados. O pareamento refere-se ao procedimento pelo qual, para cada caso
selecionado, são recrutados um ou mais controles idênticos quanto a certas
características (no máximo quatro), como sexo, idade e nível socioeconômico. A
escolha das variáveis para o pareamento deve envolver possíveis variáveis de
confusão.

A definição de “caso” é um ponto importante a ser frisado. Os critérios de inclusão


devem estar claros e bem documentados, quer seja um resultado de exame
laboratorial, com determinado ponto de corte, quer seja um conjunto de sinais
clínicos. A maioria dos pesquisadores sustenta que apenas casos incidentes devem
ser utilizados nesse delineamento, mas existem algumas situações específicas em
que casos prevalentes podem ser de interesse. Uma grande dificuldade com casos
prevalentes é distinguir entre os fatores importantes no processo de atingir o
desfecho e aqueles importantes em manter-se no desfecho (por exemplo, não se
curar ou não morrer). Como não existe certeza da data em que a condição se
manifestou, é difícil estabelecer uma linha temporal exata para a presença dos
fatores de interesse em casos prevalentes.
Figura 10.7 - Características do estudo de caso-controle

Fonte: adaptado de Epidemiologia, 2009.

Um estudo caso-controle inicia-se sempre com um grupo de indivíduos afetados


pelo desfecho de interesse. O que os pesquisadores fazem é buscar outros
indivíduos com características semelhantes e comparar a presença dos fatores
entre os casos e os controles. Para isso, após a seleção dos controles (grupo de
comparação), ambos os casos e controles são pesquisados sob exposições diversas
de interesse, no passado. As situações existentes, no final, serão casos que foram
expostos, casos que não foram expostos, controles que foram expostos e controles
que não foram expostos. A relação de avaliação de associação entre exposição e
desfecho é feita por meio dessa relação.

A coleta de dados sobre exposição ao fator de interesse e possíveis variáveis de


confusão deve ser feita com o mesmo nível de detalhamento para casos e controles,
para que esses dados sejam comparáveis. O ideal é utilizar o mesmo método de
coleta desses dados e, se possível, que o entrevistador não saiba quais são casos ou
controles. Os controles devem ser selecionados da população sob risco de
ocorrência do desfecho.

Estudos desse gênero são relativamente comuns na literatura médica. Uma


pesquisa rápida no PubMed, utilizando o termo case-control, aponta 1.145.964
registros relacionados com estudos caso-controle, com aumento de mais de 72 mil
somente em 2017. No Brasil, eles não são tão utilizados quanto os estudos
transversais, por exemplo. Acompanhe o estudo Amputações de extremidades
inferiores por diabetes mellitus: estudo caso-controle (2004) para compreender sua
aplicação na pesquisa em Epidemiologia.
Esse tipo de delineamento é muito útil para o estudo de doenças raras ou com
longos períodos de incubação, pois é possível localizar os casos diretamente. É
comparativamente mais econômico e mais rápido de montar e conduzir e necessita
de menor número de participantes em relação ao estudo de coorte. Além disso,
permite que vários possíveis fatores predisponentes sejam estudados
simultaneamente e pode ser utilizado para avaliar componentes genéticos e
ambientais (THURSFIELD, 2005). Também é útil em Vigilância Epidemiológica,
quando aplicado em estudo de surto, em especial aqueles por fonte de
contaminação comum.

Deve-se ter cuidado para não confundir estudos caso-controle com os de coorte
retrospectivos, pois estes últimos medem a frequência do desfecho, já que nenhum
dos indivíduos que iniciou o estudo apresentava o atributo de interesse, e, nos
estudos caso-controle, o grupo com desfecho é definido anteriormente e estuda-se
o impacto das exposições.

O contraponto é que não é possível estimar a proporção de expostos e não expostos


na população-base (exceto no delineamento aninhado). Assim como no estudo de
coorte retrospectiva, é preciso confiar na memória dos participantes sobre
exposição a determinados fatores, e esta pode ser difícil de validar. A incidência do
desfecho em expostos e não expostos não pode ser calculada (consequentemente,
o RR também não), e, como em todos os demais estudos observacionais, a
distribuição dos grupos de expostos e não expostos pode não ser aleatória no que se
refere a outras variáveis que representam risco (conhecido ou não), o que levaria a
uma inferência causal errônea, caso o pesquisador não tomasse as devidas
precauções. Outras vantagens e desvantagens podem ser visualizadas no Quadro
10.4.

Exemplo de estudo caso-controle, nomeado Consumo de alimentos de origem


animal e câncer de boca e orofaringe (2012).

• Objetivo do estudo: avaliar a relação entre alimentos de origem animal e câncer de


boca e orofaringe;

• Método: estudo caso-controle, de base hospitalar, pareado por sexo e idade (± 5


anos), com a coleta de dados realizada entre julho de 2006 e junho de 2008. A
amostra foi composta por 296 pacientes com câncer de boca e orofaringe e 296
pacientes sem histórico de câncer atendidos em quatro hospitais da cidade de São
Paulo (SP), Brasil. Foi aplicado um questionário semiestruturado, para a coleta de
dados relativos à condição socioeconômica e aos hábitos deletérios (tabaco e
bebidas alcoólicas). Para avaliação do consumo alimentar, utilizou-se um questionário
de frequência alimentar qualitativo. A análise se deu por meio de modelos de
regressão logística multivariada, que consideraram a hierarquia existente entre as
características estudadas;

• Resultado: entre os alimentos de origem animal, o consumo frequente de carne


bovina (OR = 2,73; IC95% = 1,27 a 5,87; P < 0,001), bacon (OR = 2,48; IC95% = 1,30 a
4,74; P < 0,001) e ovos (OR = 3,04; IC95% = 1,51 a 6,15; P < 0,001) estava relacionado
ao aumento no risco de câncer de boca e orofaringe, tanto na análise univariada
quanto na multivariada. Entre os laticínios, o leite apresentou efeito protetor contra a
doença (OR = 0,41; IC95% = 0,21 a 0,82; P < 0,001);

• Conclusão: o presente estudo sustenta a hipótese de que alimentos de origem


estejam relacionados à etiologia do câncer de boca e orofaringe. Essa informação
pode orientar políticas preventivas contra a doença, gerando benefícios para a saúde
pública.

Quadro 10.4 - Vantagens e desvantagens do estudo caso-controle

As principais vantagens do estudo caso-controle envolvem o baixo custo (em


relação à coorte) e a possibilidade de obter informações com base em um número
pequeno de casos. Já as desvantagens incluem a dificuldade para selecionar o
grupo-controle e a possibilidade de os dados de exposição no passado serem
incompletos ou inadequados.

Existe, além do estudo caso-controle convencional, o chamado caso-controle


aninhado (nested), um tipo de estudo em que a população total é enumerada e
acompanhada. Assim, o número de casos descritos é o total de casos da população
ou uma fração representativa destes, enquanto os controles são selecionados entre
os indivíduos que estavam na população no momento em que cada caso ocorreu. A
grande vantagem dessa estratégia é minimizar o viés de seleção, por termos certeza
de que os controles são selecionados da mesma população de casos. Esse tipo de
estudo permite estimar a frequência do desfecho por expostos e não expostos, o
que é incomum em estudos caso-controle convencionais. É muito comum o
desenvolvimento de estudos casos-controle aninhados a coortes, formando, assim,
estudos híbridos.
10.3.5.2 Associação entre exposição e desfecho

Odds ratio é a medida de associação do tipo probabilidade que é utilizada em


estudos caso-controle. Trata-se da razão entre as chances de doença no grupo
exposto em relação à doença no grupo não exposto.

O RR não pode ser utilizado em estudos do tipo caso-controle, pois não há como
saber sobre taxas da doença, uma vez que os grupos não são determinados pelo que
acontece na natureza, e sim pelos critérios de seleção estabelecidos pelo
pesquisador. Utiliza-se, então, uma estimativa desse parâmetro (proxy), denominada
razão de chances, ou Odds Ratio (OR), que é uma boa estimativa quando se refere a
doenças raras (Epidemiologia Básica, 2010). O OR é a razão entre a chance de um
indivíduo ser exposto no grupo de casos e a de ser exposto no grupo-controle.

Para o desenvolvimento do estimador OR, será utilizado um estudo caso-controle


que avaliou a associação entre consumo recente de carne e enterite necrosante na
Papua-Nova Guiné (Meat consumption as a risk factor in enteritis necroticans, 1985).
Os dados do estudo foram organizados na tabela 2x2 (Tabela 10.3). Repare, ainda,
que a soma total de expostos e não expostos não tem sentido prático, uma vez que
esses grupos são diferentes.

Tabela 10.3 - Organização dos dados de um estudo caso-controle sobre a associação entre
consumo recente de carne e enterite necrosante

Fonte: adaptado de Meat consumption as a risk factor in enteritis necroticans, 1985.

Como não há possibilidade de aferir nenhuma medida de frequência, estuda-se logo


a associação entre exposição e doença.

OR é uma medida de associação do tipo probabilidade. Trata-se da razão entre as


chances de doença no grupo exposto (a/c) em relação à doença no grupo não
exposto (b/d). Alguns autores chamam OR de razão entre os produtos cruzados, pois
a mesma fórmula pode ser reescrita pela seguinte relação: [(a x d)/(b x c)].
Fórmula 10.9 - Odds ratio

Desse modo, pode-se afirmar que os indivíduos que apresentaram a doença (casos)
tiveram 11 vezes mais chances de ter ingerido carne recentemente quando
comparados com os controles. Assim, essa ingestão pode ser considerada um fator
de risco para enterite necrosante. Lembre-se de que, embora OR seja uma
aproximação de RR, não deve ser utilizado o termo “probabilidade” para a descrição
de seus resultados, e sim “chance”.

10.3.6 Ensaios clínicos

10.3.6.1 Estrutura básica

Os ensaios clínicos constituem-se em uma poderosa arma de teste de intervenções


para a saúde. São estudos analíticos, prospectivos e experimentais e têm por
obrigação testar o efeito de uma intervenção (A qualidade dos ensaios clínicos
randomizados publicados no Jornal Vascular Brasileiro, 2011). Trata-se de um estudo
em que um grupo de pessoas é acompanhado (como na coorte), porém há
intervenção terapêutica (nova droga) ou preventiva (exame de rastreamento) por
parte do pesquisador (Figura 10.8). Os estudos de intervenção com indivíduos são
chamados de ensaios clínicos, e outros que envolvem agregados populacionais, ou
seja, uma comunidade inteira, são os ensaios clínicos comunitários.

A grande vantagem dos ensaios clínicos é serem passíveis de ter a ferramenta mais
poderosa para controle dos fatores confundidores entre os grupos: a randomização.
Ao selecionar uma amostra e a randomizar em dois grupos ou mais, presume-se que
todos os fatores confundidores, pelas leis das probabilidades, estão balanceados
entre os grupos. Isso significa que, para qualquer intervenção realizada, o desfecho
se deverá à intervenção e não a outros fatores. Por isso, o ensaio clínico
randomizado é o desenho que mais se aproxima do ideal para inferência causal.

A primeira forma de classificar um ensaio clínico depende da presença de controles.


Um estudo de intervenção é dito controlado quando são acompanhados dois grupos:
o primeiro é tratado com o esquema terapêutico em estudo, e o outro recebe
placebo ou convencional (grupo-controle). Um exem Epidemiologia
(2009) de estudos não controlados é o chamado estudo “antes-depois”, em que
todos os participantes recebem a mesma intervenção e suas condições são
verificadas no início do tratamento e depois dele.
Figura 10.8 - Características dos ensaios clínicos

Fonte: adaptado de Epidemiologia Clínica: elementos essenciais, 2006.

Os ensaios clínicos apresentam a mesma estrutura de uma coorte prospectiva. No


entanto, aqui os grupos de exposição não ocorrem naturalmente, pois são expostos/
não expostos experimentalmente, em geral por critérios de randomização
(aleatórios). O que será verificado, com o tempo, é a diminuição da frequência do
desfecho: o fator experimental tem algum impacto na diminuição da característica
que agregava esses indivíduos nesse grupo, como uma doença. Deve-se lembrar
que, diferentemente da coorte, os estudos clínicos sempre se iniciam com todos os
indivíduos com a doença/desfecho.

Uma segunda divisão desse método valoriza a forma de composição dos grupos. De
forma simplificada, o ensaio clínico controlado pode ser randomizado, quando a
alocação dos participantes nos grupos de intervenção e controle é feita de forma
aleatória; ou não randomizado, quando os grupos experimental e controle são
formados com base em critérios de disponibilidade e conveniência, havendo,
portanto, maior possibilidade de viés (Epidemiologia Clínica: elementos essenciais,
2006). Para o estudo ser considerado randomizado, a alocação deve ser aleatória.
Em outras palavras, deve haver, necessariamente, um sorteio. Caso contrário,
fatores confundidores podem estar presentes. Além disso, quem deve ser
randomizado são os indivíduos, e não as comunidades. Caso elas sejam
randomizadas e suas taxas avaliadas após a intervenção, tratar-se-á de um ensaio
comunitário, podendo correr o mesmo risco de falácia ecológica, presente nos
estudos ecológicos. Além disso, quando não há randomização, mas existe
experimento (por exemplo, avaliar a taxa de mortalidade de um hospital antes e após
a inauguração de um centro de hemodinâmica), trata-se de um quase-experimento.

Uma opção para alocação do grupo de intervenção é o ensaio clínico controlado


cruzado (cross ). Nesse
ver caso, um grupo de pacientes recebe um tratamento, e
outro, o placebo. Após uma pausa temporal, faz-se uma inversão, com a primeira
metade recebendo o placebo, e a segunda, o tratamento. Esse tipo de estudo
permite comparar os resultados em conjunto e, como cada indivíduo participa 2
vezes no experimento, pode-se reduzir pela metade o número da casuística quanto
ao ensaio clínico controlado simples. Porém, deve-se afastar a possibilidade de o
tratamento ou sua falta na primeira fase não ter repercussão na segunda.

Por fim, vale fazer um comentário sobre a chamada técnica de mascaramento ou


avaliação cega, que consiste em qualquer tentativa de evitar que os participantes do
estudo saibam qual é o tratamento administrado.

Quadro 10.5 - Formas de realização dos ensaios clínicos

Efeito Hawthorne é um conceito que se originou nos estudos Hawthorne e consiste


em uma mudança positiva do comportamento de um grupo de trabalhadores no que
diz respeito aos objetivos de uma empresa, pelo fato de eles se sentirem valorizados
pela gerência ou pela direção da firma.
O mascaramento é uma das formas de controlar o efeito Hawthorne, que recebe
esse nome em razão de uma instalação da Companhia Elétrica de Chicago, onde
foram feitos estudos sobre produtividade de trabalhadores em diferentes
condições, entre 1924 e 1932. Os pesquisadores perceberam que, quando estavam
presentes, observando os trabalhadores, a produtividade melhorava, a despeito das
condições do ambiente. Nos ensaios clínicos, o efeito Hawthorne é a tendência de os
indivíduos mudarem seu comportamento quando são alvos de atenção especial. O
fato de o paciente saber que está recebendo um novo tratamento pode ter efeito
positivo e, ao contrário, de ele reconhecer que está no grupo de tratamento
convencional, ou sem tratamento, pode gerar um efeito desfavorável.

Para viabilizar o mascaramento, muitas vezes, é necessário o uso de um placebo,


substância de aparência, forma e administração semelhantes às do tratamento que
está sendo testado, porém sem princípio ativo. Por questões éticas, o placebo só
deve ser utilizado caso não exista um tratamento-padrão alternativo de eficácia
conhecida. O ensaio clínico, como os demais estudos, deve recrutar um número
suficiente de pessoas para obter uma estimativa da resposta desejada. Quando o
tamanho da amostra necessária é muito grande, o ensaio pode ser realizado em
vários centros, o que caracteriza o chamado ensaio multicêntrico (megaensaio ou
megatrial).

Na literatura médica, são vastas as publicações que utilizam essa metodologia,


tendo em vista a necessidade de se conhecer com clareza os mais diversos aspectos
das diferentes intervenções a serem realizadas. Uma busca no PubMed, usando
“clinical trial” como palavra-chave, resulta em 1.087.525 referências associadas ao
termo, e somente em 2017 houve acréscimo de 42.818 artigos. A seguir, um exemplo
interessante sobre uma intervenção medicamentosa auxiliar na cessação do hábito
de fumar, desenvolvida nessa perspectiva, nomeado Stopping smokeless tobacco
with varenicline: randomised double blind placebo controlled trial ( 2010).

• Objetivo do estudo: avaliar a eficácia e a segurança da substância vareniclina como


auxiliar na cessação do hábito de fumar cigarros;

• Métodos: estudo clínico randomizado, placebo-controlado, duplo cego e


multicêntrico, desenvolvido em clínicas médicas de atenção primária na Noruega e na
Suécia. Os pacientes eram de ambos os sexos, com idade superior a 18 anos, que
fumavam pelo menos 8 cigarros por dia sem período de abstinência e há mais de 3
meses antes do exame de seleção e que gostariam de parar de fumar. A intervenção
foi a substância vareniclina, na dosagem 1 mg, 2x/d, titulada durante a primeira
semana, ou o placebo, por 12 semanas, com 14 semanas de observação após o
tratamento. Os desfechos analisados foram as taxas de abstinência entre as
semanas 9 a 12 e 9 a 26;

• Resultados: foram avaliados 431 participantes; destes 213 receberam a droga e


218, o placebo. A taxa de abstinência na semana 9 a 12 foi maior no grupo da
vareniclina do que no grupo placebo [59% (125) versus 39% (85); RR = 1,60 (IC95% =
1,32 a 1,87); diferença de risco de 20% e Número Necessário para Tratar – NNT = 5]. A
vantagem da droga em relação ao placebo persistiu até a 14ª semana de
acompanhamento [a taxa de abstinência contínua para as semanas 9 a 26 foi de 45%
(95) versus 34% (73); RR = 1,42 (1,08 a 1,79); diferença de risco de 11% e NNT = 9].
Entre os eventos adversos mais comuns, ressaltam-se as náuseas [35% (74) versus
3% (6)]; fadiga [10% (22) versus 7% (15)]; cefaleia [10% (22) versus 9% (20)];

• Conclusões: a vareniclina pode auxiliar na cessação do hábito de fumar cigarros,


com um perfil de segurança aceitável. A taxa de resposta no grupo-placebo foi
elevada, o que sugere uma população menos resistente ao tratamento da cessação.

Segundo Hill (1969), o ensaio clínico randomizado é considerado o delineamento


padrão-ouro, pois é o que menos sofre a influência de fatores de confusão e vieses
em geral. Porém, apresenta limitações importantes, especialmente do ponto de vista
ético (Quadro 10.6).

Quadro 10.6 - Vantagens e desvantagens dos estudos clínicos

Outra estratégia bastante utilizada em ensaios clínicos randomizados é a análise por


intenção de tratar (ou intention to treat), apresentada no exemplo da Figura 10.9.
Supõe-se a realização de um ensaio clínico que teste a eficácia de uma nova técnica
cirúrgica comparando-a com o tratamento clínico padrão. A hipótese em teste é que
o tratamento cirúrgico é melhor do que o tratamento clínico. Entretanto, após a
randomização, alguns pacientes do grupo clínico precisaram de tratamento cirúrgico
de emergência, e alguns pacientes do grupo cirúrgico desistiram da cirurgia. Em
outras palavras, houve cruzamento de tratamentos. A análise por intenção de tratar
não vai considerar a intervenção que os pacientes receberam, e sim para qual grupo
os pacientes foram randomizados. Essa estratégia é utilizada por dois motivos: o
primeiro é porque se aproxima mais da prática médica real; o segundo é que, ao usar
essa técnica, introduz-se um viés conservador (isto é, contra a hipótese) no estudo,
de modo que, caso o tratamento continue a ser eficaz mesmo usando a técnica, isso
significa que, de fato, o tratamento é eficaz. No exemplo citado (e ilustrado na Figura
10.9), a hipótese baseava-se no fato de que o tratamento cirúrgico era melhor.
Entretanto, quando houve cruzamento de tratamentos, hipoteticamente o grupo
randomizado para tratamento clínico teve um desfecho pouco melhor do que o
esperado (alguns pacientes receberam cirurgia); já o grupo randomizado para
cirurgia hipoteticamente teve um desfecho pouco pior do que o esperado (alguns
desistiram). Desse modo, caso se use a análise por intenção de tratar e mesmo assim
o tratamento cirúrgico continuar a ser melhor, isso significa que ele é tão bom, que,
mesmo introduzindo esse viés, é ainda superior.
Figura 10.9 - Exemplo de análise por intenção de tratar

Nota: quando há cruzamento de tratamentos, os grupos são avaliados de acordo com os quais
foram randomizados, e não para o que efetivamente receberam.
Fonte: elaborado pelo autor.

10.3.6.2 Estimadores de efeito de tratamento

Segundo Estudos de intervenção (2009), há diversas formas de estudar os efeitos


do tratamento. Muitas dessas abordagens podem ser feitas após os dados serem
distribuídos na tabela 2x2. Será utilizado, a seguir, um exemplo proposto pela própria
autora, que trata dos resultados de um estudo sobre os efeitos da trombólise
intravenosa sobre a mortalidade de 5 semanas no infarto agudo do miocárdio
(Tabela 10.4).

Tabela 10.4 - Resultados do estudo sobre os efeitos da trombólise intravenosa na mortalidade


por infarto agudo do miocárdio
Fonte: adaptado de Epidemiologia, 2009.

Antes de adentrar as inúmeras possibilidades de avaliação do estudo clínico, deve-


se mensurar qual é a frequência do desfecho para os diferentes grupos. Serão
utilizadas as siglas Rt para designar o risco no grupo tratado e Rc no grupo controle.
Como ambas (Rt e Rc) são frequências, podem ser facilmente obtidas pela divisão do
número de indivíduos com o desfecho pelo número total de indivíduos expostos
(uma vez que se trata de risco de morrer):

Fórmula 10.10 - Risco no grupo tratado

Fórmula 10.11 - Risco no grupo controle

Esse procedimento é semelhante ao cálculo de incidência. Contudo, nesse caso,


trata-se de mortalidade tanto para o grupo que recebeu a droga em teste quanto
para o grupo-placebo, podendo ser chamada também de letalidade (risco de morrer,
dado que se apresenta em uma doença). Pode-se verificar, por meio dessas
frequências, que existe mais morte no grupo de tratamento do que no grupo-
placebo. A seguir, serão resumidas algumas formas de medir o tamanho do efeito do
tratamento:

• Redução Absoluta de Risco (RAR): refere-se à diferença de risco entre os


indivíduos controles em relação aos tratados, ou seja, frequência do desfecho no
grupo-placebo subtraída da frequência do desfecho no grupo experimental. No caso
a seguir, pode-se afirmar que o risco de morte nos indivíduos tratados com a droga
experimental foi 3% menor em relação ao grupo-controle. RAR: 3%;

Fórmula 10.12 - Redução absoluta de risco

• Risco Relativo: razão entre as incidências do desfecho, ou seja, entre o risco de


morte no grupo tratado e o controle. Desse modo, o grupo tratado com trombolítico
apresentou RR de morte de 0,76 em relação ao controle, tratando-se, portanto, de
uma intervenção benéfica. Poderia ser utilizado o estimador de risco OR nesse caso,
desde que sua limitação fosse considerada. RR: 0,76;
Fórmula 10.13 - Risco relativo

• Redução Relativa de Risco (RRR): expressa a redução percentual do evento no


grupo tratado em relação ao controle. Lembre-se de que RR é uma razão; assim,
quando resultar em 1, significa que o desfecho ocorre igualmente em ambos os
grupos, ou seja, receber droga ou placebo não modifica o resultado (mortalidade). Ao
subtrair 1 do RR, obtém-se a diferença do observado em relação ao que seria nulo (1).
Essa diferença é a redução do evento propriamente dita. Logo, quanto menor o RR,
maior a redução percentual do evento no grupo tratado comparado ao grupo-
controle. Desenvolvendo o exemplo, conclui-se que a droga em experimento
possibilitou uma redução na letalidade do infarto agudo do miocárdio de 24% em
relação ao grupo-controle. RRR: 24%;

Fórmula 10.14 - Redução relativa de risco

• NNT: essa medida expressa o número de pacientes que deve ser tratado a fim de
que um evento adverso adicional seja evitado. Por exemplo, se uma droga tem o NNT
= 5 no que se refere ao evento morte, significa que 5 pacientes devem ser tratados
com ela, com o objetivo de se evitar uma morte adicional. Note que, quanto maior a
RAR, menor o NNT. Assim, se determinada intervenção reduz muito o desfecho, serão
necessários poucos pacientes para tratar até que 1 apresente o resultado esperado.
Utilizando o exemplo citado, pode-se concluir que seria necessário tratar 33
pacientes com a droga experimental, a fim de evitar a morte de 1. Em outras palavras,
para cada 33 indivíduos tratados, 1 morte é prevenida. NNT: 33.

Fórmula 10.15 - Número necessário para tratar

Apesar de apenas os estudos longitudinais (isto é, estudos de coorte e ensaios


clínicos) serem capazes de calcular o risco (incidência) da exposição e, portanto, ter
os tamanhos de efeitos medidos em risco relativo, risco atribuível etc., não significa
que não seja possível expressar o tamanho de efeito em odds ratio também. Por
exemplo, em estudos de coorte, uma maneira muito utilizada de controlar possíveis
variáveis confundidoras é fazer uso de técnicas estatísticas como análises
multivariadas, por exemplo, a regressão logística. Entretanto, os resultados da
regressão logística, por questões matemáticas, são expressos em odds ratio; então,
é possível que estudos de coorte que utilizem essa técnica apresentem os
resultados em odds ratio. Porém, o contrário não é verdadeiro. Estudos de casos e
controles, que não são capazes de calcular risco (incidência), são obrigados a calcular
o tamanho de efeito em odds ratio, portanto não podem expressar os dados em
termos de risco relativo, risco atribuível etc. Outra estratégia que os estudos de
coorte também utilizam para controle de variáveis confundidoras é a análise
estratificada ou estratificação.

10.3.6.3 Pesquisa de novos medicamentos

Antes de ser aprovada para comercialização no Brasil, uma droga nova deve ser
submetida a estudos rigorosos. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa), qualquer investigação em seres humanos, objetivando descobrir ou
verificar os efeitos farmacodinâmicos, farmacológicos, clínicos e/ou outros efeitos
de produto(s) e/ou identificar reações adversas ao(s) produto(s) em investigação, a
fim de averiguar sua segurança e/ou eficácia, deve seguir os passos referidos a
seguir.

• Fase pré-clínica: os estudos são realizados em animais. São reunidas informações


sobre absorção, distribuição, metabolismo, eliminação da droga, além de suas ações
e mecanismos. São observados, ainda, os efeitos na capacidade reprodutiva e na
saúde da prole;

• Primeira fase: são estudados seres humanos em pequenos grupos de pessoas


voluntárias, em geral, sadias. Estabelece-se uma evolução preliminar da segurança e
procuram-se caracterizar a cinética e a dinâmica da nova droga;

• Segunda fase: denomina-se estudo terapêutico-piloto, em que as pesquisas se


realizam em um número limitado de pessoas e visam demonstrar a atividade em
pacientes afetados por determinada condição patológica. Deve ser possível, também,
estabelecer as relações dose-resposta;

• Terceira fase: são feitos estudos em grandes e variados grupos de pacientes,


objetivando determinar o resultado do risco-benefício em curto e longo prazos das
formulações do princípio ativo. Define-se o perfil das reações adversas mais
frequentes, assim como interações relevantes e os principais fatores modificadores
do efeito;

• Quarta fase: vigilância de pós-comercialização. Mesmo depois da aprovação de um


medicamento novo, o fabricante deve coordenar uma vigilância, comunicando
imediatamente qualquer reação medicamentosa adversa adicional ou não detectada.
Médicos e farmacêuticos são incentivados a participarem da monitorização contínua
do medicamento.
Os ensaios clínicos são os estudos epidemiológicos utilizados no desenvolvimento e
na investigação de novos medicamentos. Para tanto, são divididos em cinco fases:
pré-clínica, 1, 2, 3 e 4; esta última é a etapa da pós-comercialização, quando o
medicamento já foi aprovado e se busca conhecer reações adversas ainda não
detectadas.

Esse acompanhamento é importante, pois mesmo os estudos de pré-


comercialização mais abrangentes só conseguem detectar reações adversas que
ocorrem 1 vez a cada 1.000 doses. Reações adversas importantes que ocorrem 1 vez
a cada 10.000 doses, ou mesmo 1 vez a cada 50.000, podem ser detectadas apenas
quando grande número de pessoas já usou o medicamento, após seu lançamento no
mercado. O órgão responsável pela vigilância do produto poderá suspender sua
aprovação se novas evidências indicarem que a droga representa um risco
significativo à população.

A avaliação ética transforma-se em um marco essencial da investigação clínica para


assegurar que os seres humanos sejam respeitados nos termos de sua dignidade,
integridade e valores, evitando que sejam usados apenas como instrumentos para a
obtenção de resultados.

O Código de Nuremberg (1947) foi o primeiro documento com repercussão


internacional que estabeleceu princípios éticos mínimos a serem seguidos em
pesquisa envolvendo seres humanos. Foi elaborado em decorrência dos abusos e
das atrocidades cometidos durante a Segunda Guerra Mundial: nos campos de
concentração nazistas, os prisioneiros raciais, políticos e militares foram colocados à
disposição dos médicos para todo e qualquer tipo de experimentação. Mediante o
advento da comunicação e o alcance das informações, que mostram ao mundo o
conflito entre o interesse científico e o interesse da sociedade em sua totalidade, e
com a ética tornando-se norteadora da evolução social, o choque das imagens da
Segunda Guerra produziu efeito ímpar sobre a comunidade científica e a população.
O código menciona que o consentimento voluntário do ser humano é essencial
quando da participação em ensaios clínicos, além de afirmar a necessidade de
estudos prévios em animais, da análise de riscos e benefícios, da liberdade do
participante de se retirar no decorrer do experimento e da não indução à
participação (The Nuremberg doctors’ trial in historical context, 1999).

Foi elaborada, em 1964, pela Associação Médica Mundial, a Declaração de Helsinque,


que determina que, em qualquer pesquisa com seres humanos, cada participante
deve ser informado adequadamente sobre os objetivos, métodos, benefícios
previstos e potenciais perigos decorrentes do estudo. Os sujeitos de pesquisa
devem ser informados de que são livres para retirar, a qualquer momento, seu
consentimento em participar. Esse documento condena ainda o uso do placebo
quando já existe tratamento eficaz estabelecido. Preconiza, também, que deve ser
usado o menor tamanho da amostra (obtido pelos cálculos) para atender aos
objetivos da investigação (Pesquisa Médica: a ética e a metodologia, 1998).

No Brasil, foi criada a Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996 do Conselho


Nacional de Saúde, na qual constam as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de
Pesquisa Envolvendo Seres Humanos e que se fundamenta nos principais
documentos internacionais resultantes das declarações e diretrizes sobre pesquisas
que envolvem seres humanos. Essa resolução, além de normatizar a criação,
composição e atuação de Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) e da Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), estabelece exigências éticas e científicas
para pesquisas envolvendo seres humanos e exige que o esclarecimento dos
sujeitos se faça em linguagem acessível.

10.4 ESTUDOS QUALITATIVOS


Até aqui, foram abordados delineamentos metodológicos, cujo enfoque é a
mensuração quantitativa de eventos. Nos últimos anos, tem crescido o interesse em
estender o campo da investigação em saúde para além dos indicadores básicos. Os
fatores sociais têm assumido progressivamente um papel tão importante como os
clínicos, a fim de compreender as motivações e percepções de todos os
componentes sociais envolvidos.

Os interesses e as realizações referentes a pesquisas qualitativas têm aumentado


no campo da saúde. O método clínico-qualitativo é definido como

“aquele que busca interpretar os significados, de natureza psicológica e


complementarmente sociocultural, trazidos por indivíduos (pacientes ou outras
pessoas preocupadas ou que se ocupam com problemas da saúde, como
familiares, profissionais de saúde e sujeitos da comunidade), acerca dos
múltiplos fenômenos pertinentes ao campo dos problemas da saúde-doença”
(Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e
seus objetos de pesquisa, 2005).

As principais diferenças entre os métodos quantitativos e qualitativos são


apresentadas no Quadro 10.7.
Quadro 10.7 - Diferenças entre métodos quantitativos e qualitativos

De acordo com o Quadro 10.7, os dados mostram que os métodos têm identidades
próprias, do momento em que seus autores levantam as perguntas (hipóteses de
trabalho) até quando redigem seus relatórios finais de pesquisa. Diante da tamanha
complexidade dos dois olhares, Métodos qualitativos e quantitativos na área da
saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa (2005) desaconselha o uso
da terminologia “quanti-quali”. Segundo o mesmo autor, o olhar quantitativo focaliza:
incidência, prevalência, fatores de risco e de sobrevida, achados clínicos,
diagnósticos, avanços terapêuticos e até análise custo-benefício. Já os métodos
qualitativos valorizam os construtos: vivências e experiências de vida, adesão e não
adesão a tratamento, estigmas e fatores facilitadores e dificultadores perante
abordagens.
Quadro 10.8 - Características gerais dos estudos epidemiológicos

Como diferenciar um estudo que


pode impactar a prática clínica
de um estudo com informações
falaciosas?
A diferenciação entre estudos válidos e não válidos passa
principalmente pelo conhecimento do poder dos estudos
epidemiológicos e sobre o que ele se propõe a responder. Por exemplo,
o ensaio clínico randomizado duplo cego é o estudo mais robusto para
se testar uma intervenção terapêutica. Caso outro tipo de estudo se
proponha a responder a mesma questão, esse estudo terá um valor
menor que o ensaio clínico. De modo geral, quanto maior a capacidade
de estabelecer relações causais entre variáveis, mais robusto é o
estudo.

Você também pode gostar