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ANEXO 3

PRINCIPAIS DELINEAMENTOS APLICADOS EM


ESTUDOS EPIDEMIOLÓGICOS
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ANEXO 3

Nas últimas décadas, a epidemiologia tem aperfeiçoado de forma significativa


seu arsenal metodológico. Tal fato deve-se, de um lado, à melhor compreensão
do processo saúde-doença, que nos permitiu uma visão mais clara dos múltiplos
fatores que interagem na sua determinação e, de outro, ao desenvolvimento de
novas técnicas estatísticas aplicadas à epidemiologia e também à utilização, cada
vez mais ampla, dos computadores pessoais e à criação de novos programas (soft-
wares), tornando acessíveis a um número cada vez maior de pesquisadores a apli-
cação de análises estatísticas de dados obtidos em investigações epidemiológicas.
A epidemiologia pode ser compreendida como um processo contínuo de
acúmulo de conhecimentos com o objetivo de prover um acervo de evidências
indiretas, cada vez mais consistentes, de associação entre saúde e fatores pro-
tetores ou doença e fatores de risco.
Com essa finalidade, existe um arsenal de delineamentos específicos para
diferentes estudos epidemiológicos, que varia conforme os objetivos estabele-
cidos, que pode ser tanto a identificação de uma possível associação do tipo
exposição–efeito como a avaliação da efetividade de uma intervenção com o
objetivo de prevenir um determinado efeito.
De uma maneira geral, podemos identificar três delineamentos na aplicação
do método epidemiológico:
• epidemiologia descritiva;
• epidemiologia analítica;
• epidemiologia experimental

EPIDEMIOLOGIA DESCRITIVA
A epidemiologia descritiva constitui a primeira etapa da aplicação do
método epidemiológico com o objetivo de compreender o comportamento de
um agravo à saúde numa população. Nessa fase é possível responder a ques-
tões como quem? quando? onde?, ou, em outros termos, descrever os caracteres
epidemiológicos das doenças relativos à pessoa, ao tempo e ao lugar.
Os caracteres epidemiológicos relativos às pessoas se referem especialmente
ao gênero, idade, escolaridade, nível sócio-econômico, etnia, ocupação, situa-
ção conjugal. Outros agrupamentos podem ser criados segundo características
como usuário e não-usuário de serviços de saúde, pessoas que vivem em domi-
cílios com ou sem acesso a serviços de abastecimento de água, etc. Qualquer
variável relevante pode ser usada, observados os critérios que delimitam per-
feitamente uma categoria da outra.
Ao descrevermos os caracteres epidemiológicos relativos ao tempo, focaliza-
mos o padrão do comportamento das doenças, em amplos períodos, pelo
levantamento de séries históricas com o objetivo de caracterizar tendências,
variações regulares, como, por exemplo, as variações cíclicas e sazonais e as
variações irregulares, que caracterizam as epidemias.
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Por sua vez, a descrição dos caracteres epidemiológicos relativos ao lugar


preocupa-se com aspectos da distribuição urbano-rural, diferenças do compor-
tamento das doenças em distintas regiões do globo ou mesmo diferenciais exis-
tentes no interior de uma mesma comunidade.
Nos estudos descritivos, os dados são reunidos, organizados e apresentados
na forma de gráficos, tabelas com taxas, médias e distribuição segundo atributos
da pessoa, do tempo e do espaço, sem o objetivo de se estabelecer associações
ou inferências causais. Esse tipo de estudo geralmente visa descrever popula-
ções alvo que apresentem certos atributos de interesse. Freqüentemente, pela
impossibilidade de se estudar o universo, adota-se como opção o estudo de
uma amostra estimada da população alvo.

Delineamentos de estudos descritivos


Os delineamentos dos estudos epidemiológicos descritivos abrangem:
• estudos ecológicos ou de correlação;
• relatos de casos ou de série de casos;
• estudos seccionais ou de corte transversal.

Estudos ecológicos ou de correlação


Os estudos ecológicos analisam dados globais de populações inteiras, compa-
rando a freqüência de doença entre diferentes grupos populacionais durante o
mesmo período ou a mesma população em diferentes momentos. Esses estu-
dos são desenvolvidos com o objetivo de elaborar hipóteses, mas o teste de
hipóteses com o emprego desse delineamento apresenta inúmeras dificuldades.
Entre elas, a mais freqüentemente citada é o que se denomina falácia ecológica,
que consiste em efetuar inferência causal para um fenômeno individual, com
fundamento em associações entre exposição e efeito verificadas em estudos que
utilizam dados globais de uma população.
Um exemplo de estudo ecológico é a verificação de taxas mais baixas de cárie
dentária em população servida por água de abastecimento com níveis mais ele-
vados de concentração de flúor, permitindo a elaboração de hipótese de que o
flúor diminuiria o risco da cárie dentária. Nesse caso, dispomos de dados relati-
vos a um fator de exposição – a concentração de flúor na água de abastecimento
– e a um efeito – a taxa de cárie dentária –, ambos referentes a toda a população;
desconhecemos, porém, a freqüência individual de exposição e do efeito.

Estudos de caso ou de série de casos


Os estudos de caso consistem em relatos detalhados de um caso ou de um grupo
de casos elaborados por um ou mais investigadores, focalizando características
pouco freqüentes de uma doença já conhecida ou buscando descrever uma
moléstia possivelmente desconhecida. Freqüentemente, esses estudos visam
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chamar a atenção de outros pesquisadores que tenham efetuado observações


semelhantes, criando condições para formulações de hipóteses.
Um exemplo de estudos de série de casos é a análise rotineira de dados obtidos
a partir de sistemas de vigilância. Muitas vezes é utilizada a descrição de uma
série de casos para caracterizar a emergência de uma nova doença.
Em nosso meio podemos citar o exemplo da descrição de uma série de casos
com características muito semelhantes à síndrome de Waterhouse-Friderichsen,
atingindo crianças menores de 10 anos, residentes em várias localidades dos
Estados de São Paulo e do Paraná, que, posteriormente, delimitaram uma nova
entidade nosológica – a febre purpúrica brasileira.

Estudos seccionais ou de corte transversal


Nos estudos seccionais ou de corte transversal, a situação de um indivíduo
em relação a determinada exposição e efeito são medidos em um único ponto
no tempo ou no decorrer de um curto intervalo de tempo. Esses estudos, quan-
do efetuados em população bem-definida, permitem a obtenção de medidas de
prevalência; por isso são também conhecidos por estudos de prevalência.
Uma das desvantagens apresentadas por esse tipo de estudo está relacionada
ao fato de que a exposição e o efeito são mensurados em um mesmo ponto no
tempo, o que torna difícil a identificação do momento da exposição, ou seja, se
esta precede o aparecimento da doença ou se a presença da doença altera o
grau de exposição a determinado fator. No entanto, para fatores que perma-
necem inalterados no tempo, como sexo, raça e grupo sanguíneo, os estudos
seccionais podem oferecer evidência válida de uma associação estatística.
Quando o objetivo da pesquisa é a identificação de aspectos relativos à etio-
logia da doença, os estudos seccionais são particularmente indicados para
investigar fatores de risco de doenças de início lento e de evolução longa, nos
quais o diagnóstico geralmente é feito num estágio mais avançado da doença.

Entre as vantagens dos estudos de corte transversal, temos:


• São freqüentemente desenvolvidos com base em amostras representa-
tivas da população e não abrangem apenas pacientes que buscam
atendimento em serviços de assistência médica, permitindo inferências
causais mais fortes.
• Seu custo é geralmente mais baixo se comparado a outros tipos de
estudo, em virtude de seu desenvolvimento em curto espaço de tempo.
Quanto às limitações dos estudos seccionais, temos:
• A dificuldade, já citada, de separarmos a causa do efeito.
• A maior dificuldade de identificação de doenças de curta duração se
comparadas àquelas de longa duração.
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Recomenda-se também cuidado na análise de estudos seccionais que incluí-


rem doenças que apresentem períodos de remissão e de exacerbação e tam-
bém quando abrangem pacientes em tratamento. Nesses casos, a classificação
dos casos dependerá dos objetivos da pesquisa, que deverá estabelecer critérios
específicos para cada situação com o objetivo de estabelecer definições de caso
mais adequadas.
Os instrumentos de medida de exposição nos estudos seccionais podem ser,
entre outros, registros, preenchimento de questionários, exames físico e clínico,
testes de laboratório.

EPIDEMIOLOGIA ANALÍTICA
Os estudos analíticos constituem alternativas do método epidemiológico
para testar hipóteses elaboradas geralmente durante estudos descritivos. Temos
fundamentalmente dois tipos de estudos analíticos:
• coortes;
• caso-controle.
Em síntese, esses delineamentos têm por objetivo verificar se o risco de
desenvolver um evento adverso à saúde é maior entre os expostos do que entre
os não-expostos ao fator supostamente associado ao desenvolvimento do agravo
em estudo.
Os estudos analíticos visam, na maioria das vezes, estabelecer inferências a
respeito de associações entre duas ou mais variáveis, especialmente associações
de exposição e efeito, portanto associações causais.
Esses estudos são também denominados estudos observacionais, uma vez
que o pesquisador não intervém – apenas analisa com fundamento no método
epidemiológico um experimento natural.
As características básicas dos dois tipos de estudos observacionais são os
seguintes:
• Os estudos de coortes (vide página 184), analisam as associações de
exposição e efeito por meio da comparação da ocorrência de doenças
entre expostos e não- expostos ao fator de risco.
• Nos estudos tipo caso-controle (vide página 191), as exposições passa-
das são comparadas entre pessoas atingidas e não atingidas pela
doença objeto do estudo.

Definição dos grupos expostos e não-expostos


Tendo em vista que o objetivo dos estudos observacionais é a quantificação
das associações de exposição e efeito, torna-se indispensável definir de forma
bem precisa o que se entende por exposição (provável fator de risco) e por
efeito (doença).
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A definição de exposição deve ser elaborada levando em conta a dose ou


duração da exposição ao fator de risco ou diferentes maneiras de associação
dessas duas variáveis. Pode também ser entendida por características do hos-
pedeiro, como, por exemplo, sexo, idade, tipo sanguíneo, etc.
Por sua vez, a definição do efeito, ou seja, a definição de caso, é igualmente
indispensável e pode ser entendida como um conjunto de critérios padroniza-
dos que nos permitem estabelecer quem apresenta as condições de interesse
para a investigação. A definição de caso inclui critérios clínicos, laboratoriais e
epidemiológicos, podendo delimitar também características epidemiológicas
relativas ao tempo, espaço e pessoa.

EPIDEMIOLOGIA EXPERIMENTAL
A epidemiologia experimental abrange os chamados estudos de inter-
venção, que apresentam como característica principal o fato de o pesquisador
controlar as condições do experimento.
O estudo de intervenção é um estudo prospectivo que objetiva avaliar a efi-
cácia de um instrumento de intervenção e, para tanto, seleciona dois grupos:
um deles é submetido à intervenção objeto do estudo e o outro, não; em seguida,
compara-se a ocorrência do evento de interesse nos dois grupos.
Nesse delineamento, os grupos devem ser homogêneos sob aspectos como
sexo, idade, nível sócio-econômico. Se a escolha do fator que se supõe protetor
não apresentar vieses e se o grupo de indivíduos estudados for suficientemente
grande para permitir a identificação de diferenças na ocorrência da doença no
grupo exposto e não exposto, teremos uma relação de causa–efeito consistente.
Aceita-se que os estudos de intervenção sejam, geralmente, considerados
como aqueles que permitem evidências mais confiáveis em estudos epidemioló-
gicos. Essa característica deve-se ao fato de os participantes serem selecionados
aleatoriamente para serem expostos a determinado fator considerado protetor.
Essa técnica de seleção controlaria inclusive fatores não conhecidos que podem
afetar o risco de apresentarem a doença, controle que não é possível ser aplica-
do nos estudos observacionais. Essa característica dos estudos de intervenção é
mais importante quando estudamos efeitos de pequena e média intensidade.
Esse delineamento, evidentemente, deve pressupor uma análise prévia dos
aspectos éticos envolvidos no projeto de pesquisa, devendo ser aplicado somen-
te quando exista para o fator em estudo forte evidência de um efeito protetor.
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Tipos de delineamentos epidemiológicos


observacionais: vantagens e desvantagens

TIPO DE ESTUDO RETROSPECTIVO PROSPECTIVO TRANSVERSAL

Nome alternativo Tipo caso-controle Coortes (expostos e Estudos de


não-expostos) prevalência

Características • estudo no tempo para trás; • estudo no tempo para a • estuda a situação de
• investiga-se para trás a pre- frente; exposição e efeito de
sença ou ausência do fator • o ponto de partida para o uma população em
suspeito; futuro é a exposição ao um único momento.
• são freqüentemente utilizados. fator em estudo.

Vantagens • simples; • informam a incidência; • simples;


• relativamente fáceis; • permitem calcular o risco • rápidos;
• mais baratos; relativo; • relativamente
• geram novas hipóteses de • os indivíduos são observa- econômicos;
trabalho; dos com critérios diagnós- • permitem conhecer a
• é freqüentemente usado. ticos uniformes; prevalência associada
• permitem calcular o risco aos agentes suspeitos;
atribuível; • permitem a descrição
• conhecem-se com precisão da população.
as populações expostas e
não- expostas;
• mais fáceis de evitar vieses;
• permitem descobrir outras
associações.

Desvantagens • a determinação do risco • resultado a longo prazo; • não quantificam o


relativo é só aproximada; • de desenvolvimento com- risco de desenvolver
• não se pode determinar a plexo; a doença;
incidência; • alto custo; • a seqüência temporal
• não se pode calcular risco • só servem para enfermida- do fenômeno em
atribuível; des relativamente freqüen- estudo não aparece;
• pouco úteis quando a fre- tes, não servem para inves- • são limitados epide-
qüência de exposição ao tigar doenças de baixa fre- miologicamente ao
agente causal estudado é qüência; não poder estabele-
muito baixa ou este é pou- • risco de viés ou distorção cer associações cau-
co identificável; premeditada do observador; sa-efeito;
• a representatividade é rela- • eventuais mudanças na • podem induzir facil-
tiva, segundo a enfermida- equipe de investigadores; mente a associações
de, limitando a inferência • perda ou deserção dos ou interpretações fal-
dos resultados; membros das coortes. sas ou fortuitas.
• dificuldades para identifi-
car os grupos controles;
• risco de vieses ou distor-
ções por parte do investi-
gador ao questionar retros-
pectivamente (erro do
observador);
• baseiam-se na memória do
caso e do controle, sendo
maior a desvantagem nos
processos crônicos (erro de
recordação).
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ANEXO 3

BIBLIOGRAFIA
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