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Os objetos autísticos e a função do duplo na vivência autista: um estudo

de caso.

Kauê da Costa Alves

RESUMO: A vivência autística tem se mostrado como uma fonte de diversas


investigações, em especial, no campo psicanalítico de enfoque lacaniano.
Muitos são os autores que discutem as propriedades e singularidades
presentes na relação do autista com o os objetos e relações de seu mundo. A
partir deste enquadramento, pretende-se, no presente trabalho, apresentar e
discutir, as relações com os objetos autísticos e a emergência de um duplo, em
um caso de uma criança autista. Considera-se que estas questões são centrais
no trabalho daqueles que se aventuram à clínica do autismo e necessitam de
um olhar cuidadoso e primoroso, a fim de obturar as diferentes formas de
singularidades impostas por estes casos.

INTRODUÇÃO

Diversos são autores, em diversas abordagens e perspectivas, ao


longo dos anos, que discutem a importância do brincar no processo do
desenvolvimento infantil. No campo psicanalítico, de enfoque lacaniano, o
brincar possui um lugar primordial para a constituição subjetiva do infans. É a
partir dos jogos e brincadeiras, desenvolvidos na relação cuidador-bebê, que a
criança passa a ocupar o lugar de um ser que é falado, para o ser falante.
Nestas, também são introduzidos objetos, muitas vezes que simulam
acontecimentos da vivência psíquica da criança, como bem postulado por
Freud (1920/2010) ao narrar o conhecido jogo do Fort-da, onde seu neto
aplacava a angústia derivada das ausências de sua mãe através da sua
relação com um pequeno e simples carretel.

Outros autores também como Guerra (2017), Jerusalinsky (2014),


Rodulfo (1990) e Winnicott (1975), ao longo da teorização psicanalítica,
também passaram a evidenciar os demais lugares e experiências subjetivas
que os objetos e o brincar possuem para uma criança. Todavia, quando nos
referimos a relação com os objetos e ao brincar, na clínica do autismo, esta
experiência mostra-se muito peculiar e repleta de dilemas e desafios. Todos os
autores mencionados até então, convergem em um ponto em comum diante de
suas teorizações, o brincar, os jogos e os objetos, surgem como mediadores da
relação entre a díade, observação esta que dificilmente pode ser averiguada
em casos de crianças com impasses autisticos no desenvolvimento. O objeto
não é utilizado como intermediador de uma relação. De acordo com Laurent
(2014), “o corpo do sujeito está numa relação de colagem incessante a estes
objetos fora do corpo” (p. 52).

Este uso particular dos objetos, intitulados autísticos, foi primeiramente


descrito pela psicanalista Francis Tustin. Ela descreve que os objetos eleitos
pelas crianças autistas teriam como características privilegiadas as superfícies
sólidas e resistentes, tendo como função primordial negar a realidade de uma
vida de incertezas e imprevistos (Lucero; Vorcaro, 2015), bem como evitar uma
aniquilação de si mesmo (Pimenta, 2012).

Para além do proposto por Tustin, Maleval (2009a) destaca uma outra
característica dos objetos autísticos, a sua dimensão dinâmica e subjetiva de
apoio para o sujeito autista na vivência de uma realidade minimamente
suportável. Os objetos autísticos simples seriam aqueles em que predominam
características estáticas, com função apaziguadora. São reconhecidos como
extensões do próprio corpo do sujeito autista, proporcionando, primeiro, um
gozo autossensual, o qual faz barragem ao mundo externo, mas são, “também,
um ‘duplo’ vivo, portador de retorno de gozo sobre a borda” (Maleval, 2009a, p.
234-235). Os objetos autísticos complexos, de acordo com o autor,
caracterizam-se por possuir traços dinâmicos e têm, como principal função,
afastar um gozo em excesso do corpo do sujeito para uma borda, que, por sua
vez, pode conectá-lo à realidade social.

A partir de seu estudo sobre as autobiografias de autistas adultos,


Maleval (2009b) indica outro recurso encontrado pelo autista em sua relação
com o mundo, derivado de suas idiossincrasias: o duplo, um mecanismo
utilizado pelo sujeito autista para sustentar uma posição subjetiva de
enunciação que lhe é penosa, possibilitando-o transitar com menos sofrimento.
É incorporado, por vezes, ao objeto autístico, uma modalidade mais arcaica
que assegura ao autista sua exclusão do mundo.

Em Freud (1920/2011), o duplo surge a partir da criação da criança,


com o objetivo de articular aquilo que é difícil de ela própria manejar no mundo
externo e que, mais tarde, não será mais necessário. Para o autista, o duplo é
a única maneira pela qual ele poderá entrar em ação (Maleval, 2009b),
ancorando a construção de processos identificatórios pela via do imaginário
(Bialer, 2015). “O duplo autístico é, muitas vezes, imprescindível como apoio
para uma alienação que pode alicerçar a construção da imagem do outro e de
si próprio” (Bialer, 2015, p. 93).

A partir destas questões, pretende-se apresentar e discutir, as


peculiaridades do brincar de uma criança autista, acompanhada há 1 ano e 5
meses, em acompanhamento terapêutico.

CASO

Gabriel é uma criança diagnosticada autista, de cinco anos de idade,


atendida em sessões de acompanhamento terapêutico em domicilio, espaços
extra-casa e em sua escola. Possui um irmão mais novo de dois anos de idade,
mora com os pais e é também atendido em diversas outras especialidades, de
enfoque comportamental, em uma clínica particular. Nos atendimentos de
acompanhamento terapêutico, o garoto sempre se mostrou receptivo a
presença do profissional. Dirigia-se tanto ao profissional quanto aos seus pais e
irmão com balbucios e poucas vezes pronunciava palavras que pudessem ser
entendidas. Sempre que as utilizava, parecia não discriminar a quem ou ao que
se referia. No início, utilizava da expressão em inglês Daddy, para convocar o
AT, e também da palavra “Amor” para se comunicar a qualquer pessoa, tanto
em casa como na rua.

Segundo o relato da mãe, Gabriel rejeita alguns alimentos, e se recusa


a comer as refeições se as vê sendo preparadas. Sobre sua alimentação,
acrescenta que o garoto acaba comendo em excesso, às vezes, tentando
comer também a comida do irmão quando termina. Para a mãe, a seletividade
de seu filho se associa a um episódio da infância de Gabriel, em que o garoto
acabou comendo tomates cerejas da horta familiar, hábito diário na época, que
foram envenenados. Relata ainda que no incidente o garoto foi levado às
pressas ao hospital e por pouco não resistiu.

O brincar de Gabriel é predominantemente caracterizado pelo uso do


corpo para imitar e reproduzir gestos e ações de seus desenhos e animações
favoritos, deambulando pelos espaços, sempre esbarrando seu corpo nos
objetos do ambiente. Fazia convocações tanto ao irmão, quanto ao profissional,
nos atendimentos, para que ambos também o imitassem, e só se satisfazia
cessando suas petições, se elas fossem atendidas. Mostrava-se muito irritado
quando o irmão mais novo solicitava para que os desenhos de sua predileção
fossem também colocados. Nas brincadeiras que eram desenvolvidas nos
atendimentos, em certos momentos, tentava afastar o irmão do profissional,
e/ou quando ele se aproximava e interagia, Gabriel se afastava, demonstrando
ignorar as ações, solicitações e tentativas do irmão de interação com ele e com
o profissional. No relato dos pais, o garoto passou a ficar muito agressivo com
o irmão, demonstrando baixa tolerância com sua participação das brincadeiras
que acabavam realizando em casa, o que os levou a, por alguns períodos,
deixar o irmão mais novo na casa da avó paterna.

Gabriel também faz manipulações hábeis de objetos e brinquedos,


tendo como predileção, aviões, dinossauros e carros. Sempre os manipula
simulando seus movimentos e ações com o corpo, em intensidade e forma, e
com a voz, os sons. Além destes, faz montagens com peças de lego, e sempre
as intitula como “aiões”. Em propostas colocadas pelo profissional, na tentativa
de transformar seu brincar característico e repetitivo, em novas formas de
manipulação dos objetos e/ou das ações com seu corpo, mostrava-se pouco
aderente. Apenas em situações como o do brincar de alternância, como o
“cadê-achou”, permitia-se interagir, solicitando que estas fossem repetidas por
diversas vezes.

A entrada do acompanhante terapêutico na relação com Gabriel, se


deu a partir de suas aceitações com as propostas e brincadeiras de
alternância, sendo descritas pelos pais, como solicitações que o filho os fazia
em momentos posteriores aos atendimentos. Além destas, adentrar à imitação
muito característica do brincar do garoto, utilizando-se da teatralidade,
manifestações exageradas dos sons e movimentos, também se mostrou uma
alternativa possível no despertamento de interesse do garoto pela relação com
o profissional e suas ofertas. No quesito interacional, o garoto mostrava-se
muito mais receptivo na relação com os adultos. Nas saídas que eram
realizadas, como idas ao parque, Gabriel sempre se direcionava aos adultos do
local com balbucios, olhares e toques, e pouco mostrava interesse por outras
crianças. O trabalho, neste sentido, buscou oportunizar que relações com o
semelhante também pudessem ser desenvolvidas. Os momentos em que esta
relação era estabelecida, ou se mostrava possível, foram fugazes, ora por não
haver interesse de Gabriel e se mostrar pouco tolerante às tentativas de
aproximação com outras crianças, ora pelos impedimentos impostos pelo
cenário pandêmico, que proporcionou poucas saídas externas.

Apenas no início do período escolar, oito meses após o início do


acompanhamento terapêutico, a convivência entre pares tornou-se mais
intensa e frequente para Gabriel. Na primeira semana de sua inserção à
escola, sua recepção ao ambiente mostrou-se muito laboriosa, tendo como
resposta do garoto, crises acompanhadas de choros, comportamentos
agressivos e gritos, que se mostravam de difícil manejo. Nestas situações, o
profissional acolhia o garoto, apaziguando seu choro, fornecendo papel para
que pudesse enxugar as lagrimas e mostrando no relógio o tempo que faltava
para ir embora. Esta sequência de ações, mostrava-se efetiva, acalmando
Gabriel, permitindo-o organizar-se, e nos momentos em que eram necessárias
saídas de sala de aula, que o garoto aceitasse retornar. Nas demais semanas,
Gabriel passou a aceitar melhor tanto o ambiente escolar quanto suas
exigências. Não demonstrava recusas para ficar na sala com a turma, sempre
acompanhava os colegas nos outros espaços externos, sem recusa tanto para
ir quanto para voltar, mostrando iniciativa ao ver os movimentos da turma, não
necessitando que alguém o chamasse.

Na relação com os colegas, demonstrava-se alheio e com pouco


interesse. Apenas se aproximava das demais crianças quando incentivado pelo
profissional ou quando algum brinquedo chamava sua atenção. Eram
necessárias algumas mediações do acompanhante terapêutico, devido Gabriel,
com os brinquedos que o interessavam, os pegar a força e até mesmo bater
nas outras crianças. Demonstrava baixa tolerância a frustrações e sempre
respondia com gritos e comportamentos agressivos. Nestas situações, o garoto
mudava rapidamente seu semblante e manifestações, parecendo demonstrar
que tais comportamentos atuavam no sentido de apenas contrariar ou ter algo
que gostaria. É importante salientar que durante sua permanência em sala e
aceitação das propostas, eram sempre mediadas por um objeto que costumava
manipular. Em dias que não fazia o uso do objeto, mostrava-se sempre mais
disperso e alheio, além de deambular pela sala com mais frequência. Parece
que o objeto tinha a função de filtrar os estímulos e demandas exteriores,
organizando o garoto.

Em conjunto com suas deambulações, Gabriel também reproduzia


ações com os gestos corporais e sons, que muito se assemelhavam às suas
imitações que realizava em sua casa. A turma mostrava-se muito curiosa com
estes comportamentos, assim como a professora. Em certos momentos, o
descontentamento e incomodo eram nítidos. Com o passar do tempo, as ações
do garoto, foram melhor recebidas pela turma, deixando de causar o intenso
estranhamento inicial. Os colegas, antes estranhados pelos modos de Gabriel
estar na relação, passaram a demonstrar interesse pelos seus
comportamentos, aproximando-se mais, chamando-o para suas brincadeiras e
interação entre si. Neste mesmo movimento, a professora logo mostrou-se
receptiva às idiossincrasias do garoto. Criava estratégias para que Gabriel
também acompanhasse a turma, assim como passou a significar seus
movimentos antes sem sentidos, como formas de comunicar e de expressar-
se.

Discussão

Se faz notável as particularidades e modos de estar na linguagem de


Gabriel. Em uma sala de aula, suas ações parecem estar sob uma lente de
aumento, onde o que é de comum entre os seres falantes, é de longe
percebido em seus comportamentos. É importante colocar em destaque, as
maneiras como as relações com a alteridade se fazem, ou não, possíveis. O
garoto chama e insistentemente convoca para as suas imitações os adultos
que o cercam, contentando-se apenas quando o outro expressa a exata
semelhança de seu rascunho de fala e imitação, quase que se atestassem
serem um só com ele. Além disso, constantemente acopla e faz amontoados
de objetos em si. Essas e outras características, por muito tempo, ganharam de
lugar de um significante de um excesso de gozo, ou uma intrusão psicótica,
aos olhos do acompanhante terapêutico. Por vezes, as excessivas colagens do
garoto, que em todo momento insistia para que o profissional estivesse ao seu
lado, imitando-o, e mesmo não respeitando as diferenças corporais e de
lugares, insistentemente tentando sentar em seu colo, mesmo quando eram
dispostos dois lugares, invadiam o profissional e o causava intensa angustia.

É justamente na entrada da alteridade, nas suas tentativas de também


contribuir com seus significantes na relação, que as duras couraças ao outro
eram levantadas, impedindo de que a troca simbólica e desejante, obedecendo
a um circuito denominado por Laznik, como o circuito pulsional, ocorresse.
Segundo Barroso (2013, p.13), “a lógica autista não se estrutura segundo a
lógica simbólica do fort-da, no qual a criança joga com o intervalo, colocando-
se à distância do objeto que lhe foi destacado do corpo pela ação do
significante”. As brincadeiras e as imitações nas brincadeiras de Gabriel atuam
justamente no sentido contrário da relação significante e de dar-se também
para o contato com a alteridade. Atuam no sentido de distanciar qualquer traço
de diferença e munir-se contra o outro. Quem imita, apenas reproduz, e não
implica e se deixa ser implicado.

Apesar dessa função primordial de autodefesa tida para o garoto, é


interessante ressaltar que o uso dos desenhos e as animações e os aspectos
imitativos presentes em suas ações e brincadeiras, são as formas de contato
encontradas pelo garoto com o mundo dos significantes. Laurent (2014),
descreve como o sujeito autista passa a encontrar no seu mundo, modos de
criar bordas para que as demandas exteriores a eles sejam possíveis. Cita
como exemplo, os casos de Dona Williams e seus duplos, assim como o de
Temple Grandin e as maquinas que criava. Exemplos muito distintos, mas que
retratam as costuras feitas pelos sujeitos que experienciam uma vivência
autista.

Os desenhos e animações, são encarnações reais, bidimensionais, que


encenam a experiência humana, de forma anímica, sem fazer demanda
daqueles que o assistem. São encenações em tela, que não exigem um
retorno. Exprimem que não há a necessidade de interação para que as suas
cenas continuem a serem transcorridas. Gabriel, parece utilizar-se desse
artificio para apreender os significantes presentes na experiência infantil, sem
ter que passar pelo contato direto com o Outro.

Os objetos de preleção, como bem descritos por Maleval (2009a),


também são artifícios concretos para auxiliar o sujeito autista na vivência
humana. Gabriel só aceitava participar, e só se propôs iniciar no mundo do
grafismo e letramento, em sala, por intermédio de seus objetos autísticos. Um
jogo de cessão de um gozo em excesso e o deslocamento da borda autística
foram criados. Vale ressaltar, que os objetos dos quais Gabriel passou a
manipular em sala, eram pertencentes à escola. O garoto, em outros
ambientes, sempre queria tomar posse daquilo que era disposto, tentando-os
levar para casa, como em episódios de acompanhamento terapêutico extra-
domicilio (supermercados e outros).

Entretanto, este fato não foi presenciado na escola. O garoto aceitou


bem a diferenciação dos objetos da escola e que permaneciam na escola, e os
que ele trazia. Não se pode deixar de destacar que esta aceitação se deu bem
para um Outro institucional, porém, quando se tratava dos brinquedos dos
semelhantes, das outras crianças, a conversa era outra. O garoto, em muitos
momentos, diante das negativas de que ele permanecesse com os objetos das
crianças ou os tomasse a força, passava a chorar e emitir muitos
comportamentos agressivos, quase que dizendo que para ele, era devastador a
ideia da barra imposta pelo outro real, encarnado.

Foi a partir desta relação com os objetos, e dos cortes mínimos que
eram feitos pelo acompanhante terapêutico, permitindo o garoto manipulá-los
e/ou interrompendo seu uso durante as atividades, impondo limites quanto a
quantidade de brinquedos, que as exigências escolares, como tarefas e outras,
passaram a serem aceitas por Gabriel. De início, apresentava duras
resistências, entretanto, a professora, de forma firme, sempre impunha a
necessidade de que, assim como as outras crianças, o garoto também se
dispusesse a realizar as atividades de sala.

Além disso, alternativas possíveis foram criadas para que o grafismo e


letramento fossem inseridos de forma menos intrusiva ao garoto. A professora
passou a compreender a importância dos objetos que o garoto adotava,
utilizando dessa via para propor suas atividades, negociar e entre outras.
Depois de alguns meses, Gabriel passou a aceitar tanto a dinâmica escolar
quanto suas propostas, sem maiores resistências.

O trabalho preocupou-se em levar em consideração as idiossincrasias


de Gabriel, bem como seus modos particulares de estar na linguagem. Nas
palavras de Barroso (2013), foi necessário um “acontecimento de corpo
considerado como extração de gozo e não como efeito de significação”.

Um outro e último ponto importante a ser destacado, é a função do


duplo assumida pelo acompanhante terapêutico ao longo da vivência de
Gabriel com o mundo dos significantes. O garoto sempre recorria ao
profissional, para quaisquer necessidades. No decorrer das suas imersões na
linguagem, pelo discurso escolar, deslocou-se dessa dependência do
profissional, realizando algumas atividades da rotina escolar, autonomamente.
É (im)possível descrever com exatidão a experiência do duplo assumida pelo
acompanhante terapêutico. Talvez, note-se isto, pelo breve relato anterior, de
que o profissional se sentia, muitas vezes, invadido pelo garoto. Há um outro
ponto que deixa esta temática ainda mais enigmática e em evidência. Tanto a
professora, como outros profissionais escolares, não poucas vezes, chamava o
acompanhante pelo nome de Gabriel e chamavam Gabriel pelo nome do
acompanhante terapêutico.

O fato é, a função do duplo operada por um outro na posição daquele


que acompanha o sujeito, possibilitou a transição e a circulação da criança por
outros espaços, para além daqueles já vivenciados. Além disso, possibilitou ao
garoto que também usufruísse de modos de gozo compartilhados.
Considerações finais

A clínica psicanalítica com crianças autistas mostra-se enigmática e


desafiadora. Expõe as dificuldades encontradas por aqueles que se aventuram
a esta empreitada na relação com crianças que possuem modos restritos e
distintos de se relacionarem. Nesta equação de difícil deciframento, os objetos
ganham um lugar preterido. Isto porque se revelam como caminhos possíveis
de tratamento e de inserção do outro em uma relação autossensual e
cristalizada, com poucas ou minuciosas aberturas.

Por outro lado, pode expor o que há de singular na experiência


humana, evidenciado que a chegada ao mundo dos seres falantes, não ocorre
de forma pretensamente natural. Exige que, antes, um outro, na função de
cuidador, trace o percurso rumo à linguagem. Desta maneira, a partir de uma
leitura do singular, é possível favorecer que crianças com dificuldades
relacionais, possam passar a gozar também de modos de gozo
compartilhados.

A relação com os objetos concretos, como enunciado por Freud com o


jogo do Fort-Da, faz parte do desenvolvimento de qualquer sujeito e também os
autistas devem exercer livremente essa atividade. As técnicas de tratamento
que privilegiam apenas as aquisições cognitivas ou utilizam os objetos como
formas de recompensa impedem o desenvolvimento de uma dimensão
essencial da subjetividade. Não se pode também descartar que, nestes casos,
o brincar e as funções da relação ganham propriedades peculiares, além de
demonstrar estratégias foras do habitual, criadas pelo sujeito autista, no
contato com o outro. Um exemplo disto, é o duplo, que assume uma função
muito importante e particular para ao sujeito, na sua vivência da experiência
humana.

Por ora, é importante sublinhar que cabe ao clínico encontrar uma


maneira de brincar com a criança, servindo-se de seus objetos e fazendo uso
de objetos de mediação. A psicanálise mostra que brincar não é apenas “coisa
de criança”, mas pode ter uma função muito importante para o fantasiar. O
prazer partilhado é o que nos incita ao laço social.
REFERÊNCIAS

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