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DOI: 10.1590/1413-812320212612.

15262021 6069

Perícias em saúde e Saúde do Trabalhador:

ARTIGO ARTICLE
a definição do tempo de afastamento em foco

Health Evaluation and Worker’s Health:


the definition of the length of medical leave in focus

Vivian Heringer Pizzinga (https://orcid.org/0000-0003-4602-2267) 1


Rafaela Teixeira Zorzanelli (https://orcid.org/0000-0001-7531-8492) 1

Abstract For the purpose of analyzing topics Resumo No intuito de analisar temas que ligam
linking the health-disease-work process to medical as questões dos processos de saúde-doença-traba-
evaluation practices under the scope of the federal lho às práticas periciais no serviço público federal
public service and their interaction with Worker’s e seu diálogo com a Saúde do Trabalhador, este
Health, this article investigates the issue of deter- artigo se debruça sobre o tema da definição do
mining the duration of the sick leave period that tempo para tratamento da própria saúde, na es-
a worker is granted for caring for their own heal- fera do Subsistema Integrado de Atenção à Saúde
th, within the Subsistema Integrado de Atenção à do Servidor Público (SIASS). Para isso, examina-
Saúde do Servidor (SIASS). To that end, the pa- ram-se os parâmetros de afastamento fornecidos
rameters for granting time off work, as provided pelo Manual de Perícia Oficial e as falas sobre esse
by the Manual de Perícia Oficial, and the speeches tópico por parte dos entrevistados. A importância
on this topic by the interviewees were analyzed. conferida ao tema se deve ao fato de estar asso-
The importance given to the topic ‘days off work’ ciado ao tempo de recuperação do trabalhador, o
arises from the fact that it is related to the time it que implica menos dias destinados à produtivi-
takes the worker to recover, which implies fewer dade. Entrevistaram-se 32 profissionais de 5 ins-
days dedicated to being productive. Interviews tituições de ensino, enfatizando-se, neste artigo, as
were conducted with 32 professionals from 5 edu- categorias analíticas que conduziram aos pontos
cational institutions, and this article highlights explorados: dias de afastamento, Manual de Pe-
some analytical categories: days off work; Manu- rícia e divergências entre profissionais da perícia e
al da Perícia and disagreement between medical médicos assistentes. Os resultados indicam a utili-
evaluators and attending physicians. The results dade de revisar o Manual com base na Saúde do
point to the usefulness of revising the Manual Trabalhador, identificando contradições; a neces-
taking into account Worker’s Health, identifying sidade de construção de uma perícia efetivamen-
contradictions; the need for shaping an effectively te interdisciplinar; e que a queixa dos periciados
interdisciplinary evaluation, so that the worker’s possa ser manejada da perspectiva do cuidado ao
1
Instituto de Medicina health-related complaints can be handled from trabalhador, e não apenas com referência no con-
Social Hesio Cordeiro, the perspective of the worker’s care, and not sim- trole e na vigilância.
Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. R. São ply concerning control and surveillance. Palavras-chave Saúde do Trabalhador, Perícia
Francisco Xavier 524, Key words Worker’s Health, Health evaluation, em saúde, Serviço público federal
Maracanã. 20550-013 Federal public service
Rio de Janeiro RJ Brasil.
vivianhp@globo.com
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Pizzinga VH, Zorzanelli RT

Introdução na produção da doença, mas os riscos ou agente


etiológicos são descontextualizados, não sendo
O paradigma da Saúde do Trabalhador tem como levadas em conta, por outro lado, as relações so-
objetivo nortear intervenções nos processos saú- ciais e institucionais no adoecimento no traba-
de-doença no trabalho, e seus pressupostos cons- lho. Essa confusão teórica, presente em algumas
tituem os princípios de atuação no Subsistema diretrizes do SIASS, mostra-se problemática na
Integrado de Atenção à Saúde do Servidor Pú- medida em que suas ações se estendem por uma
blico Federal (SIASS), que, desde 2009, quando vasta população de servidores públicos federais
substituiu o sistema anterior (Sistema Integrado e, deste modo, requerer um quantitativo de pro-
de Saúde Ocupacional do Servidor Público Fe- fissionais de saúde igualmente vasto, cujas abor-
deral - SISOSP) anterior centrado no paradigma dagens podem ser as mais heterogêneas possíveis,
da saúde ocupacional, opera ações de atenção à no sentido negativo que essa heterogeneidade
saúde do servidor público federal no Poder Exe- pode adquirir na prática da atenção à saúde do
cutivo. Tendo o campo da Saúde do Trabalhador servidor (mescla de atuações influenciadas pelos
como ideal para pensar os processos saúde-doen- três paradigmas ligados ao adoecimento no tra-
ça no trabalho, este artigo apresenta os achados balho, quais sejam: a medicina do trabalho, a saú-
sobre o momento decisório dos peritos acerca de ocupacional e a Saúde do Trabalhador). Para
do tempo de afastamento (dias de licença) para se ter a dimensão da magnitude do SIASS, cabe
tratamento da própria saúde nas perícias em apontar que deve abranger um total de 1.051.580
saúde realizadas em unidades SIASS. A noção de (um milhão e cinquenta e um mil e quinhentos e
tratamento da própria saúde é diferente daquele oitenta) servidores federais civis e militares ativos
que se refere ao acompanhamento de familiar em em todo o país2, de acordo com dados do Minis-
tratamento de saúde e sem autonomia, cujo tem- tério da Saúde.
po implica um prazo máximo bastante inferior Sublinha-se que o estabelecimento dos prin-
ao tratamento da própria saúde, denotando a cípios da Saúde do Trabalhador no âmbito do
importância do tempo nas decisões periciais. Os serviço público federal ainda precisa de muitos
achados se originam em entrevistas semiestrutu- desenvolvimentos3,4, dado que alguns de seus
radas e em profundidade, realizadas ao longo de princípios encontram dificuldades para serem
2019, com profissionais de perícia de 5 institui- efetuados, sendo sua vinculação com o SUS e as
ções federais do estado do Rio de Janeiro. Dentro políticas de saúde ainda precária, ocupando uma
desse tema, analisaremos, a partir das falas dos posição mais marginal face às ações efetivas des-
profissionais entrevistados, o papel do Manual de sa área5. Por outro lado, Lacaz5 identificava, em
Perícia do SIASS e as divergências dos peritos em 2007, um retrocesso no campo da Saúde do Tra-
relação aos laudos trazidos por outros médicos balhador, verificado em função de três aspectos:
que acompanham os trabalhadores periciados, os a fragilidade que já acometia o movimento sin-
chamados médicos assistentes. Investigando cri- dical, a atitude de escasso engajamento da acade-
térios da seção do Manual de Perícia sobre a con- mia e a políticas públicas reducionistas, ligadas à
cessão do tempo de licença, analisamos o modo Saúde Ocupacional6.
como esse prazo é avaliado pelo perito e equipe Cabe ainda lembrar que, como apontam Mi-
de saúde, e qual a margem de negociação entre a nayo-Gomez e Thedim-Costa7, a Saúde do Tra-
posição do perito e as demandas expressas pelo balhador é “uma meta, um horizonte” e requer
trabalhador. Essa proposta se originou de tese um “agir político, jurídico e técnico”, além de um
de doutorado defendida em 2020, cujo objetivo “posicionamento ético”. A Saúde do Trabalhador
era, em síntese, investigar a função das perícias incorpora princípios do Modelo Operário Ita-
em saúde no SIASS a partir da visão de seus pra- liano (MOI), segundo o qual a reforma sanitá-
ticantes. ria deveria permitir o reconhecimento de que a
Quantos aos princípios da Saúde do Traba- doença, para além de um sofrimento pessoal, é
lhador evocados pelo SIASS, Machado1, com “o sinal de um conflito histórico entre homem,
base em análise de textos normativos desse sis- natureza e sociedade”8. Assim, se esses princípios
tema, observa a falta de certa coesão conceitual indicam um horizonte a ser buscado, serve-nos,
no que concerne à adoção dos pilares do campo. nesta pesquisa, como ideal a partir do qual se
Os princípios teóricos que aparecem nos textos analisam os dados oriundos das falas dos entre-
normativos muitas vezes mostram-se híbridos vistados no que tange ao seu entendimento so-
e se confundem com o viés teórico da Saúde bre os dias de afastamento para tratamento da
Ocupacional, que considera a multicausalidade própria doença, por parte dos trabalhadores, e
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às negociações acerca das decisões periciais que Tempo de afastamento do trabalho:
envolvem a temática. um ângulo de análise

A questão referente ao tempo de afastamen-


Método to pode parecer uma questão menor, no entan-
to, trata-se de pensar o tempo do trabalhador
As perícias em saúde do SIASS são realizadas em dedicado a si, ao seu restabelecimento, e não ao
instituições federais por médicos e odontólogos trabalho. Em outras palavras, trata-se do que é
peritos que emitem laudos técnicos com decisões objeto central na discussão sobre o trabalho: o
periciais acerca dos pleitos de saúde dos servido- tempo. Sobre isso, Foucault afirma: “É preciso
res. Nem todas as instituições federais possuem que o tempo dos homens seja oferecido ao apa-
unidades SIASS, havendo acordos de cooperação relho de produção; que o aparelho de produção
técnica para a realização das perícias em saúde. É possa usar o tempo de vida, o tempo de existên-
central destacar que a noção de perícia em saúde cia dos homens. É para isto e desta forma que o
se distancia, em teoria, da de perícia médica, uma controle se exerce”9. A citação permite lembrar
vez que pressupõe um trabalho pericial que con- que a questão dos dias de afastamento pode dei-
jugue diferentes saberes técnicos. Assim, o SIASS xar de se vincular à saúde propriamente dita para
prevê a existência da chamada equipe de suporte se ligar à produtividade.
à perícia, composta por profissionais como psi- A relevância da discussão sobre o tempo de
cólogos e assistentes sociais, que dão suporte à afastamento – ou dias de licença – reside na re-
decisão do médico. Para o estudo que originou lação entre tempo, trabalho e capitalismo. No
este artigo, foram realizadas 32 entrevistas se- modo de produção capitalista, o controle sobre
miestruturadas, com médicos (20), odontólogos o tempo que o trabalhador dedica a trabalhar –
(3), psicólogos (4), assistentes sociais (4) e fisio- e, portanto, à produção – constitui o cerne do
terapeuta (1), selecionados a partir de contatos trabalho nesse tipo de sistema. A mais-valia, se-
prévios das pesquisadoras e do método bola de gundo Marx, é precisamente extraída do tempo
neve. As entrevistas foram analisadas com auxílio que não se paga ao sobre trabalho, como recor-
do software de pesquisa qualitativa, o Atlas.ti, que da Braverman10. Desse modo, cabe lembrar que
auxilia a organização de categorias obtidas nas as mudanças macrossociais, sobretudo as que
entrevistas. O roteiro buscou guiar-se por ques- aconteceram a partir da década de 1970, com
tões referentes à concepção dos entrevistados mais uma crise estrutural do capitalismo, gera-
quanto ao papel da perícia em saúde no serviço ram transformações que impactaram a forma de
público federal, sua formação acadêmica e expe- se pensar tanto o trabalho quanto o tempo11,12.
riência profissional, como sanam suas dúvidas Também neste sentido, Crary13 analisa a questão
(surgindo aí o protagonismo do Manual de Perí- do tempo que se extrai da vida dos sujeitos para
cia do SIASS), a diferença de seu trabalho quan- que sirvam aos sistemas de trabalho e ao consu-
do ocorre no cenário da perícia e quando se dá mo inerentes à lógica capitalista. Ao apontar pes-
no cenário assistencial e, por fim, a forma como quisas do governo estadunidense sobre o com-
o trabalho em equipe acontece (quando existe). portamento de pássaros que não descansam ao
Um dos achados das entrevistas foi a frequência longo de uma trajetória de dias, o autor evidencia
com que surge a discussão sobre o tempo de li- o objetivo de compreender esse fenômeno bioló-
cença. gico que permite longas vigílias sem prejuízo de
A importância conferida à temática da deci- rendimento, para sua posterior reprodução em
são pericial sobre os dias de afastamento permi- seres humanos. A ideia seria chegar àquilo que
te iluminar, ao menos, dois pontos: 1) interesses o autor chama de “trabalhador sem sono”, que
priorizados ou não no processo de perícia, já que se torna, ao fim e ao cabo, o “consumidor sem
quanto mais dias o servidor estiver em proces- sono”, no que seria um evidente processo de co-
so de recuperação, menos dias estará disponível lonização irrestrita do tempo do sujeito. Pode-se
para o trabalho e, 2) em que medida a perspectiva deduzir que a pausa (o sono diário, o descanso
do trabalhador é levada em conta nesse processo e também os dias de licença) impede a contínua
de decisão ou não. Neste artigo, analisaremos o produtividade.
tema específico dos “dias de afastamento” partir A questão do tempo de trabalho é tão cen-
de como o tema apareceu na análise de entrevis- tral que o regramento jurídico em relação à
tas de profissionais do SIASS. aposentadoria por invalidez, por exemplo, de
acordo com a Lei nº 8.112, que traz as normas
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do Regime Jurídico Único em âmbito federal, em para tratar a própria saúde relacionada, nessa
seu artigo 188, estabelece que tal modalidade de ordem, aos transtornos mentais, às doenças os-
aposentadoria “será precedida por licença para teomusculares e a lesões. Conforme se acenará à
tratamento de saúde por período não excedente frente, a quantidade de dias de afastamento face
a 24 (...) meses”14. Já o tempo de serviço, funda- a diagnósticos psiquiátricos geram divergências
mental para fins previdenciários, também situa o entre médicos peritos e assistentes.
tempo dedicado ao trabalho como requisito para Segundo Santi et al.19, há uma relação entre
a obtenção de direitos sociais e, de acordo com absenteísmo-doença e a continuidade de ativi-
cada ordenamento, incluirá ou não alguns tipos dades essenciais para os cidadãos no que tange
de afastamento, todos muito bem especificados. ao serviço público, o que traria ônus aos cofres
O debate sobre o tempo é essencial ainda em públicos devido à não-produtividade e às despe-
termos de gerenciamento do comportamento la- sas com a reabilitação do trabalhador. As autoras
boral dentro de uma dada instituição, e assim pa- assinalam um ponto central que nos indica o que
rece ser desde o advento da chamada Administra- a negociação sobre o tempo de licença revela: os
ção Científica (ou taylorismo), em que os gestos dias de afastamento são compreendidos como
dos trabalhadores deveriam ser maquinais para absenteísmo para o erário público. A noção de
que coubessem no tempo medido (eram calcula- absenteísmo avulsa, sem sua contraparte relati-
dos em minúcia para fins de produtividade e oti- va à doença, parece estar imbuída de conotação
mização, revertidas em ganhos do capitalista)15. negativa devido ao ônus que geraria. Entretanto,
Uma vez mais, a discussão é relevante na medida consideramos aqui que, da perspectiva da saúde
em que talvez os tempos do capital não sejam do trabalhador, dias de afastamento, ainda que
os mesmos que os necessários aos processos de sejam mais numerosos do que os indicados no
saúde/doença. Segundo Canguilhem, “estar em Manual de Perícia, podem ser o tempo necessário
boa saúde é poder cair doente e se recuperar”16. para a recuperação de sua saúde.
Logo, a possibilidade de adoecer compõe o esta-
do de saúde, e adoecer exige recuperar-se, o que
demanda um prazo que não pode ser abreviado. Resultados
Essa recuperação está também atrelada à discus-
são de Berardi17 em torno da impossibilidade de Os resultados a seguir concentram-se nos temas
expansão do que nomeia de cibertempo, cujos que se relacionaram diretamente com o tópico
limites se referem à intensidade da experiência do tempo de afastamento a partir das entrevistas,
vivida. Logo, a experiência de adoecimento (a in- ou seja, como são trazidos, pelos profissionais
tensidade que lhe é intrínseca sendo um de seus ouvidos, os critérios que guiam as decisões quan-
elementos) é singular, e não se esgota em tabe- to à concessão dos dias de licença (quantidade,
las fixas. A recuperação de um adoecimento – a renovação ou não do prazo de afastamento, con-
saúde, conforme Canguilhem – seria, segundo o vergência ou discordância do que é indicado nos
que se pode inferir da contribuição de Berardi, laudos dos médicos assistentes), como esse prazo
o momento necessário de reserva, assimilação e é avaliado pelo perito e por demais profissionais
processamento das experiências vividas. de saúde e, por fim, qual a margem de negociação
A questão dos dias de afastamento nas dis- entre sua posição e as demandas do trabalhador
cussões acerca da perícia em saúde traz à cena periciado. Dividimos, assim, em três pontos cen-
o debate sobre absenteísmo e seu desenvolvi- trais: Manual da Perícia, já que este é o instru-
mento conceitual mais específico, o par absen- mento regulatório que oferece orientações sobre
teísmo-doença, de acordo com nomenclatura da o tempo de licença; Dias de afastamento, que
Organização Internacional do Trabalho. Estudo aponta a forma como ideias e valores são levados
realizado em serviços públicos do município de em conta pelo perito em seu processo decisório;
Goiânia reforça aspectos relacionados às condi- Divergência do Médico Assistente, para analisar
ções de trabalho, deduzidos a partir de indicado- como a figura do médico assistente aparece nas
res do absenteísmo-doença. A pesquisa aponta entrevistas.
que sua análise, quando associada ao perfil dos
afastamentos, pode gerar não apenas informa- Manual da Perícia
ções sobre as condições de saúde dos trabalhado-
res, como sobre as condições de trabalho em que A perícia é o momento em que o servidor
se inserem18. Os resultados do estudo indicam terá sua demanda de saúde avaliada por profis-
uma prevalência maior de dias de afastamento sionais que têm o poder, fazendo uso de algum
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argumento legal, de satisfazê-la ou negá-la. Se o encaixam no dispositivo legal. Nos casos daquilo
servidor adoece, é ali que ele terá deferido ou não que Dumit20 chama de “doenças que você deve
seu afastamento e a definição do tempo necessá- lutar para ter” (illnesses you have to fight to get),
rio para se recuperar, e é ali que poderá ser apo- isto é, doenças que são caracterizadas por in-
sentado por invalidez. Esses são apenas alguns certeza quanto ao diagnóstico, ao tratamento e
exemplos dos tipos de avaliação que chegam à ao prognóstico e que não possuem marcadores
perícia, tratando-se de um momento às vezes de- biológicos que atestem sua legitimidade, a pos-
cisivo na vida do trabalhador. Em nossa análise, sível descrição predominante do periciado como
percebemos que há vários aspectos emaranhados alguém de quem se deve desconfiar de antemão é
nas concepções sobre a prática de perícia de seus algo ainda mais problemático. Essas pessoas têm
profissionais, somados às que compõem o texto de lutar para ter um diagnóstico no sentido de
do Manual de Perícia, mas, para facilitar a argu- que possuem o sofrimento e os sintomas, mas
mentação, podemos isolar dois aspectos princi- não são reconhecidas em seu adoecimento pelo
pais, sabendo que as variáveis que se imiscuem fato de que não há uma nomeação para aquilo
nesse processo são inúmeras. Assim, o julgamen- que apresentam ou, mesmo que haja, é repleta de
to sobre os dias de licença de um servidor se en- incertezas por ser uma doença emergente
trelaça com a desconfiança que o Manual incita Com a justificativa de conferir “transparência
o perito a ter em relação aos servidores em geral. aos atos de avaliação”21, o Manual traz uma ta-
Segundo o Manual, existe uma diferença en- bela de afastamentos correspondentes aos vários
tre o médico que trata de um paciente e o médico diagnósticos. Para citar exemplos dos Transtor-
cuja função é periciar. A descrição dessas duas nos Mentais, orienta-se 20 dias para episódio de-
relações as situa em dois extremos, como se não pressivo e transtornos fóbicos e ansiosos, 30 para
houvesse, entre eles, uma série de possibilidades esquizofrenia e transtorno obsessivo-compulsivo
de interação. A relação entre médico que trata e 7 para transtornos somatoformes, transtornos
e seu paciente pressuporia confiança e interesse dissociativos ou conversivos. Mas há outras cor-
do paciente em contar tudo sobre sua doença ao respondências, como 3 dias para torcicolo, 2 para
médico, levando-o à honestidade total. Já na re- gastrite, 15 para glaucoma, entre outros. O que
lação médico perito e periciado, existiria mútua se percebe é que o máximo de tempo de afasta-
desconfiança. Nesse caso, o interesse do servidor mento concedido a qualquer dos diagnósticos de
em obter algum tipo de benefício poderia levá-lo saúde mental é de 30 dias. Esses parâmetros de
à simulação e, portanto, a uma expectativa aprio- tempo de afastamento levantam diversas ques-
rística de fraude por parte dos profissionais de tões que acabam por se relacionar também à ex-
perícia, o que os situa em um lugar bem distante pectativa de fraude.
da isenção que é reivindicada pelo texto do Ma- Uma das principais questões que aparece no
nual e em algumas falas dos entrevistados. Além processo decisório em torno do tempo de afasta-
da confiança, a “empatia” seria algo presente ape- mento é a discordância entre o perito e o laudo
nas na relação de tratamento, e não na relação do médico assistente. Quando o servidor chega à
pericial. Há, no texto, um constante reforço de perícia com um laudo de seu médico assistente
que o perito deve tomar cuidado com a possi- indicando um número de dias maior do que o
bilidade de simulação, devendo ele “defender a perito considera razoável, tem-se aí um proble-
Administração Pública Federal”, viés que pode ma. O perito, conforme mencionado em algumas
afastar o trabalhador dos direitos sociais previs- entrevistas, o que se verá na próxima seção, ten-
tos constitucionalmente, igualando a todos de de a discordar do médico assistente, buscando
antemão, como se os servidores periciados esti- reduzir o tempo de licença, mas indaga-se: com
vessem, em sua maioria, em busca de ganhos se- base em que o perito julga que uma dada quanti-
cundários (ilegítimos) que devem ser detectados dade de dias de licença é excessiva? Nos casos de
pelos peritos. Essas e outras formas de definir as saúde mental e de sofrimentos que se vinculam
relações periciais acabam por situar esse tipo de à organização do trabalho, por exemplo, mesmo
prática em uma esfera de conflito. Não há men- que não se estabeleça o nexo causal, o diagnósti-
ção, na mesma frequência, à relação do adoeci- co é uma ficção. Ou uma ilusão de objetividade,
mento com a organização de trabalho no Manual de homogeneidade. Afinal, diante de um mesmo
de Perícia. nome – depressão, transtorno de ansiedade ge-
A suspeita em relação aos relatos do pericia- neralizada – uma miríade de reações pode sur-
do pode trazer grande sofrimento aos servidores gir, cujo tempo de recuperação é impossível de
cujas doenças não são reconhecidas ou não se se prever. Um episódio depressivo pode ter a ver
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com uma perseguição vivida no ambiente labo- O Manual também é citado como uma espécie
ral, com a falta de sentido referente ao desvio de de fonte da etiqueta pericial: os ritos periciais, as
função, com reestruturações na esfera institucio- formas de proceder, o receituário da interação no
nal. Tudo isso leva ao mesmo número de dias de momento da perícia, tudo está lá. Uma das carac-
afastamento? terísticas da relação entre o perito e o periciado
No que tange às entrevistas, não parece haver deve ser a isenção e o distanciamento, conforme
um questionamento por parte do perito quanto examinamos ao falar sobre a ausência da empatia
ao motivo pelo qual o médico assistente pode na descrição dessa relação. O texto do Manual é
ter se decidido a dar ‘mais’ dias do que o supos- uma justificativa desse tipo de comportamento:
to razoável. O que terá o trabalhador dito a ele No próprio manual do SIASS tem lá a definição
que não terá encontrado ambiente de “confiança do médico perito, como ele deve se portar, a gente
mútua” na perícia para relatar? O que o médico tem que manter uma certa distância (médica 5).
assistente sabe que o perito talvez não saiba? Não Finalmente, há também menções mais ques-
é possível ter conhecimento dessas questões sem tionadoras das regras de conduta que o Manual
que haja uma escuta e a busca daquilo que, no oferece, como se vê abaixo:
trabalho, nas relações institucionais, pode estar Mandar e-mail, e aí “nossa, pode ver esse caso”,
ou não atrelado àquele adoecimento. A primazia “liga pro servidor”, “nossa, ligou pra mim”, não
da suspeita do servidor faz com que o perito pos- quero saber o que está acontecendo... E isso burla
sa cair em um hábito de suspeitar de tudo, inclu- o manual. Até o manual de saúde a gente acaba
sive do médico assistente. burlando. Se a rigor, a rigor, a gente não poderia
Conforme mencionado, as entrevistas leva- fazer nada disso, mas quando a gente faz e vê que
ram à constituição de diversos eixos analíticos, e o resultado é muito bom pro servidor, isso vale...
em relação ao Manual de Perícia, apenas médicos nossa... não tem preço... (médico 6).
(20) e assistentes sociais (1) se referiram a ele. Al- No exemplo acima, o perito vinha descreven-
gumas dessas menções misturam-se àquelas refe- do a forma como ele age com os servidores, nada
ridas ao tempo de licença. Há diversas citações ao distanciada ou formal e, neste sentido, aponta a
referido Manual como fonte de consulta diante transgressão que faz àquilo que o texto do SIASS
de dúvidas. Como há ausência de formação para sugere, identificando essa transgressão como
o trabalho com perícia na experiência da maio- seu papel social, no sentido de oferecer um bom
ria dos médicos entrevistados (de 20 médicos, acompanhamento ao trabalhador, tratá-lo com
apenas 1 apresentava formação aproximada da dignidade, preocupar-se com ele.
perícia), o Manual também assume a função de
formação e é por isso que é tão importante, ten- Dias de Afastamento
do uma influência significativa sobre os profis-
sionais: Em relação à temática dos dias de afastamen-
[...] eu cheguei já entrando nessa função... fui to, da forma como o perito lida com o Manual e
ler o manual, lógico que eu não absorvi toda a in- da divergência que pode ocorrer com o que re-
formação, então eu fui ler o manual em casa pra eu comenda o médico do servidor, alguns trechos
entender e eu tive a sorte de ter aqui uma pessoa são ilustrativos da discussão levantada na seção
que já tinha a experiência, [...] então até hoje eu anterior:
tiro dúvida com ela, porque a gente não teve curso [...] muitas das vezes, a gente pensa que o mé-
de formação, eu acho que isso é uma coisa deveria dico assistente deu dias demais de afastamento.
ter havido [...] (médica 4). Não sei, porque o olhar dele não é o olhar nosso, o
Outras vezes ele é citado como uma espécie olhar dele é assim “olha, ele não tem capacidade de
de “prova dos nove’’ na ausência de termo me- trabalhar provavelmente por tantos dias”, ele acaba
lhor. É o que se vê abaixo: colocando um pouquinho a mais, eu sou assisten-
[...] às vezes a gente tem que ir lá no manual cialista, a gente tende a fazer isso e a gente tende a
pra relembrar se condiz o que a pessoal tá dizendo atender... a vontade do paciente... mas no processo
e tudo (médica 2). pericial esse julgamento desses dias, dependendo do
O que salta aos olhos no trecho acima é o tipo de trabalho, [...] você pode ter alternativas, de
fato de que o Manual ganha precedência sobre o um retorno gradual, tem várias opções, aí vem a le-
relato da experiência trazido pelo servidor. Ele é gislação nossa, né, e essa gradação é que é o gostoso,
usado como um guia da verdade, por assim dizer, a meu ver, e é o diferencial (médica 1).
em que serão cotejadas as falas do trabalhador e Por acaso, essa médica, ao longo da entrevis-
as indicações ali registradas. ta, traz algumas falas em que identifica o traba-
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lho do perito como aquele que poderá buscar a gico”. [...] E começo a perceber que as pessoas têm
vinculação do adoecimento com os processos de começado a se articular mais [risos] para conseguir
trabalho. Há, nas descrições que fornece, aproxi- esse tipo de afastamento. E eu converso muito com
mações com as noções cruciais da Saúde do Tra- as pessoas, quando é possível logicamente, se houver
balhador, tornando a perícia em saúde conciliável necessidade, eu amplio até o prazo de recuperação
com esse campo. Entretanto, aqui, há julgamento do paciente, não necessariamente eu sou obrigada
apriorístico do médico assistente, que vira essa a aceitar o que o atestado... se o atestado dá 3 dias
figura abstrata que se encaixa em todos os casos. e eu acho que a pessoa precisa de 7 dias, eu vou dar
Outro exemplo mostra a mesma questão, 7 dias pra pessoa [...] (odontóloga 2).
atrelada à ideia de um poder decisório que cabe A odontóloga reconhece as situações em que
ao perito, à assimetria da relação entre ele e os o atestado é utilizado de modo deliberadamente
outros personagens da perícia, seja o servidor, incorreto, porém a forma com que lida com isso,
seja o médico assistente: a interpretação que atribuía esse gesto, permite
[...] chega atestado de 3 meses, chega atestado pensar mais amplamente naquilo que o trabalho
de tempo indeterminado, não existe isso, cabe o pe- vem promovendo, em termos de sofrimento e
rito fazer essa avaliação, assim como ele pode dimi- vontade de se ausentar.
nuir o tempo, pode aumentar, cabe ao perito por- Abaixo, outro trecho mostra o exemplo da
que a palavra final é do perito, né [...] (médica 2). depressão, citado por outra médica, no mesmo
Nesse exemplo, parece que, em toda a ques- sentido já usado antes: 90 dias parece muito, uma
tão, o que de fato importa é a “palavra final”, que vez que é o triplo daquilo que o Manual orienta:
pertence ao médico perito. Não há nenhuma ou- Mas [...] se é uma dúvida assim, “ah, sei lá, eu
tra argumentação face às decisões de aumentar tô achando que é muito tempo de licença”, aí uma
ou diminuir os dias. das opções que às vezes eu uso é usar o próprio ma-
Abaixo, reproduzimos um trecho que une nual do SIASS, até pra explicar pra pessoa, sei lá,
duas unidades de sentido: dias de afastamento e a orientação são 30 dias e o médico tá pedindo 90,
Manual de Perícia: eu mostro, “olha, em geral é esse valor, eu vou dar
[...] as [doenças] mais comuns a gente tem uma esses 30 dias, mas se precisar renovar o senhor pega
estimativa média que eles orientam pra dar de li- um laudo mais detalhado com seu médico, pra ex-
cença, então, vamos supor, depressão... é lógico que plicar por que que precisa de mais tempo”, [...] em
aquilo ali é uma média e a gente tem que avaliar geral não tem problema, as pessoas entendem bem,
caso a caso, mas, por exemplo, depressão ele orienta assim, que existem alguns períodos sugeridos que a
30 dias, então, assim, já teve casos de pessoas que gente tem que mais ou menos cumprir (médica 4).
chegaram aqui com atestado de 90 dias pra depres- Esse é outro exemplo que une as unidades de
são, então a gente pode, pra não se indispor tam- sentido do Manual de Perícia e dos dias de afasta-
bém, mostrar a orientação do próprio Manual que mento, sendo que o Manual adquire a função de
é de 30 dias, podendo ser renovada, mas o próprio recurso ao qual o perito se apoiará para evitar be-
Manual, pras doenças mais prevalentes, ele te dá ligerância. O argumento utilizado, no entanto, é
um guia pra você poder se orientar e tentar seguir o de que os “períodos sugeridos” devem ser “mais
aquilo ali, mas é claro que isso é muito relativo, já ou menos” cumpridos pelo perito, alçando os pa-
dei 60 dias, mas tem casos que eu dei trinta... então râmetros à categoria de lei, o que não é verdade,
aquilo é meio que um guia pra gente (médica 3). possuindo caráter apenas discricionário.
Há um trecho de um dos profissionais de Uma das psicólogas entrevistadas fala sobre a
odontologia em que o tempo de licença é ques- diminuição do tempo por parte do médico e das
tionado, mas sem que se enquadre o servidor ou discussões que se dão em torno disso:
a improcedência de seu pleito em uma situação [...] às vezes eles [os peritos] tentam homologar
de malícia. Percebe-se a motivação de sofrimento por menos tempo e eu sugiro mais, ou já falaram
que pode estar por trás desse tipo de queixa, o da aposentadoria por invalidez, eu falo “poxa, acho
que, a nosso ver, concilia a perícia em saúde com que ainda não, acho que a gente ainda tem que dar
os princípios da Saúde do Trabalhador: uma chance”, e elas ouvem [...] (psicóloga 1).
Mas eu tenho recebido casos que tem me causa- Se pudermos pensar que um dos desafios da
do [...] e eventualmente a pessoa vem pra perícia e Saúde do Trabalhador é conseguir operacionali-
começa a contar história que perpassa pelo assédio, zar seus princípios também no campo das perí-
pela necessidade de se afastar do ambiente de tra- cias, indicaríamos que a prática pericial deveria
balho, como se ela tivesse procurado todas as possi- se preocupar, antes de tudo, com a relação entre
bilidades e aí “eu vou meter um atestado odontoló- adoecimento/sofrimento e trabalho e, assim, a
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Pizzinga VH, Zorzanelli RT

questão do tempo de afastamento talvez fosse Se usado com parcimônia, pode ter utilidade. No
percebida e avaliada de modo diferente no con- entanto, esse recurso às vezes pode ganhar pro-
texto pericial. tagonismo nas decisões periciais, deixando de ser
uma orientação para se tornar uma regra, como
Divergência do Médico Assistente se o que divergisse, para mais (em termos de pra-
zo para tratamento e recuperação da saúde), do
Quanto à divergência do médico assistente, que está especificado fosse um excesso. Os diag-
esta também é uma unidade de sentido ligada aos nósticos e os entendimentos sobre adoecimentos
dias de afastamento, pois, em geral, as menções se transformam e uma tabela com períodos de
que aparecem, por parte do médico (14), refe- afastamento fixa o que é mutável, cristaliza o que
rem-se a isso. Entre os demais profissionais, ape- é dinâmico, torna geral o que é particular.
nas psicólogos fizeram menção a essa categoria
(4). Abaixo, trazemos a fala de um psicólogo que
reproduz o discurso arraigado sobre a intenção Considerações finais
do trabalhador querer ter um benefício, apesar
de, em sua entrevista, fazer referências à Saúde A análise de parte do material empírico obtido
do Trabalhador, assim como ao nexo causal: junto a profissionais que atuam com perícia em
E aí [...] A gente vê claramente que tem atesta- saúde no SIASS e o exame de dado aspecto do
dos que chegam, assim, enviesados... que o médico Manual de Perícia indicou-nos que o estabele-
assistente ou outro profissional assistente, o psicó- cimento do tempo de afastamento do servidor
logo assistente, etc, escreveram coisas ali que estão para cuidar da saúde era guiado pelo suposto de
muito distantes da realidade que você tá observan- que quanto menos dias afastado do trabalho, me-
do, assim, né... e é claramente assim... porque como lhor seria, da perspectiva da instituição. A decisão
a perícia vai fazer parte da possibilidade de obten- quanto à duração do afastamento se orientava,
ção de um benefício, né, você tem a pessoa que pode ainda, por uma atitude de suspeita face às quei-
ficar interessada de fato de ficar mais tempo afasta- xas dos periciados. Não houve, na mesma medi-
da e você tem o contrário também, a pessoa que tá da, menções às situações nocivas do trabalho por
muito adoentada e que não quer se afastar... porque parte dos entrevistados. O que se observou foi
vai ser malvista pelos colegas, por tudo, então [...] uma preocupação com intervalos de afastamen-
não é fácil isso... não é tão objetivo... (psicólogo 2). to tidos como superiores ao razoável, sem haver
Algumas falas relativas à “divergência com o problematização do que seria ou não razoável.
médico assistente” já foram reproduzidas nas se- Essas posições, sobretudo em seu efeito sinérgico,
ções precedentes, mas ainda se pode trazer um distanciam-se dos princípios da saúde do traba-
último trecho, em que a médica refere-se a uma lhador, ainda que estes estejam indicados como
espécie de conluio entre servidor e médico, ou à valores a serem mantidos no SIASS.
ingenuidade desta último: Assim, conforme se apontou, o tempo ne-
Mas é porque a gente sente que às vezes a coisa cessário para a recuperação de um adoecimento,
tá solta e quer verificar se realmente é aquela queixa incluído no conceito de saúde que nos orienta
mesmo, se tem alguma coisa importante acontecen- Canguilhem16, acaba por ser categorizado como
do ali ou se foi só um atestado de combinação entre absenteísmo e entendido como ônus aos cofres
o médico... se ele exagerou pro médico assistente e públicos, já que implicaria, segundo entendi-
não é aquilo tudo... (médica 7). mento da gestão, pausa na produtividade. No
Levando-se em consideração o caso dos entanto, esse prazo de afastamento das atividades
diagnósticos em saúde mental e os parâmetros laborais seria necessário ao restabelecimento das
fornecidos pelo Manual, indaga-se o quanto tais capacidades do servidor.
parâmetros foram preparados para acompanhar Acreditamos que um dos desafios da saúde
transformações em manuais classificatórios de do trabalhador, ao menos no âmbito do serviço
doenças, tais quais a Classificação Internacional público federal, é tornar mais coerente a prática
das Doenças (CID), que anuncia sua 11ª edição dos profissionais de saúde com as diretrizes desse
para 2022. Consideramos aqui que um parâme- campo, fazendo prevalecer os aspectos relaciona-
tro quanto aos intervalos de afastamento pode ser dos à saúde em contexto de trabalho a partir de
importante se servir de ponto de partida em casos uma visão crítica. Isso talvez signifique debater
de moléstias que os peritos não veem com frequ- e, num segundo momento, revisar o Manual de
ência ou que não fazem parte do campo de co- Perícias a partir da saúde do trabalhador, identi-
nhecimento próprio de sua especialização prévia. ficando contradições.
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Ciência & Saúde Coletiva, 26(12):6069-6078, 2021


Por outro lado, acrescenta-se que, no que se de um trabalho interdisciplinar, necessário para
refere à perícia em saúde, se levamos em conta que se estabeleça a Saúde do Trabalhador em
que a saúde do trabalhador como “horizonte”, qualquer instituição, não se efetua, com prejuízo
um trabalho efetivamente interdisciplinar se faz para o trabalhador, uma vez que se pode chegar
necessário. O Manual, não obstante oriente para a uma avaliação imprópria quanto ao tempo de
que haja uma composição interdisciplinar nas afastamento de suas atividades laborais.
perícias21, deixa transparecer uma ênfase medi- Finalmente, há uma vinculação estreita entre
calocêntrica ao sublinhar a soberania do médico o discurso do Manual e o dos entrevistados, no
perito na decisão do pleito de saúde. Neste senti- que se refere à desconfiança. A escuta dos peritos,
do, observamos, a partir dos dados obtidos, casos em geral, tende a caminhar ao lado da descrição
de saúde mental em que a perícia era composta ofertada, pelo Manual, de que a suspeita deve ser
por médicos de especialidades distantes da saúde o guia maior da compreensão das demandas. O
mental, sem a presença de psicólogos. Essa ques- tempo de afastamento avaliado pelos profission-
tão faz diferença na medida em que, ainda que os ais é um exemplo ilustrativo dos valores que es-
profissionais não-médicos deem seus pareceres, tão em jogo na prática da perícia e que pendulam
se houver discordância, são os médicos peritos mais para a manutenção da ordem produtiva do
que terão proeminência, mesmo que se originem que, de fato, para o estado vital do trabalhador.
de áreas distantes da saúde mental, e a opinião de Ofusca-se, neste sentido, o sofrimento que o tra-
um nefrologista terá mais peso do que a de um balho pode gerar e joga-se luz nos aspectos ima-
psicólogo, por hipótese. Se uma perícia em saúde ginários referentes à suposta trapaça que o traba-
não conta com especialistas da área, a proposta lhador está prestes a fazer.

Colaboradores

VH Pizzinga e RT Zorzanelli participaram da


concepção e delineamento do projeto de pesqui-
sa e análise e interpretação dos dados, redação
e revisão do artigo. A primeira autora realizou
a coleta dos dados e a concepção do manuscri-
to inicial, sendo o artigo uma versão de parte de
sua tese de doutorado em Saúde Coletiva (área
de concentração Ciências Humanas e Saúde),
defendida em 20 de março de 2020, no Instituto
de Medicina Social da UERJ, e a segunda autora
professora orientadora do referido trabalho.
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Pizzinga VH, Zorzanelli RT

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civis da União, das autarquias e das fundações públi- Editores-chefes: Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura
cas federais. Diário Oficial da União; 1990. da Silva

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