Você está na página 1de 34

Pós-Graduação em Direito

Hermenêutica e
Argumentação Jurídica

Marco Antonio Lima Berberi


FAEL
Diretor Executivo Marcelo Antônio Aguilar

Diretor Acadêmico Francisco Carlos Sardo

Coordenador Pedagógico MIguel de Jesus Castriani

editora Fael
Autoria Marco Antonio Lima Berberi

Projeto Gráfico e Capa Katia Cristina Santos Mendes

Revisão Camila Marcelina Pascoal

Programação Visual e Diagramação Katia Cristina Santos Mendes

Atenção: esse texto é de responsabilidade integral do(s) autor(es), não correspondendo, necessariamente a opinião da Fael.
É expressamente proibida a venda, reprodução ou veiculação parcial ou total do conteúdo desse material sem autorização prévia da Fael.

FAEL
Rodovia Deputado Olívio Belich, Km 30 PR 427
Lapa | PR | CEP 83.750-000

FOTOS DA CAPA
Shutterstosk

Todos os direitos reservados.


2015
Hermenêutica e
Argumentação Jurídica

RESUMO jurídico, construído em sociedade. Ainda,


explicou-se a diferença crucial entre lei, regra,
O presente artigo promove um resgate de princípio e norma, apontando-se esta como
temas centrais da Hermenêutica Jurídica, com produto da interpretação de regras e princípios
o intuito de demonstrar a necessidade de se (normogênese). O artigo procurou analisar
seguir uma hermenêutica da ordem jurídica também, a teoria da interpretação dentro do
dentro do Estado Democrático de Direito, con- universo da hermenêutica e a importância da
sagrado na Constituição da República Federa- argumentação como base da fundamentação
tiva do Brasil, a fim de obter uma decisão judi- das teorias e decisões judiciais.
cial (assim como a defesa das teses em juízo) Palavras-chaves: Hermenêutica Jurídica; Teo-
devidamente fundamentada. Sob uma pers- ria da Norma; Teoria da Interpretação; Argu-
pectiva histórico-evolutiva, analisou-se a teoria mentação.
da norma jurídica a fim de demonstrar a fixa-
ção da noção de Direito a partir do fenômeno

1. A CONSTRUÇÃO em sociedade (civil, e, portanto, organizada),


relacionando-se com os demais homens, cons-
DO FENÔMENO tantemente. Pensar diverso seria admitir que

JURÍDICO E o homem viveria para si mesmo, ou melhor,


poderia viver sem a necessidade de convívio
A TEORIA DA social, o que não é de todo inimaginável, mas,

INTERPRETAÇÃO certamente, reduziria o campo de atuação do


regramento ao âmbito da moral, sendo, então,
somente a consciência humana a medida para
Marco Antonio Lima Berberi1
eventuais punições, no caso de descumpri-
Quando se fala em Direito, uma das pri- mento de normas.
meiras noções que tradicionalmente a ele se Diante disso, é de se concluir, então, que o
pode ligar é a de sociedade. Não há sociedade Direito tem sua razão de ser nas relações entre
sem Direito, nem Direito sem sociedade: tal indivíduos, as quais, ao fim e ao cabo, são rela-
brocardo representa uma quase unanimidade ções sociais.
na teoria clássica do Direito. Todavia, algu-
mas observações devem ser feitas, a título de Destas relações sociais surgem regras que
introdução ao tema. Primeiramente, quando visam discipliná-las, as quais nascem a par-
se fala em sociedade, o que se está a falar, em tir da valoração de determinadas condutas
realidade, é da sociedade civil. que apresentam relevância e são, neste passo,
imprescindíveis para o convívio social. Poder-
Assim, é de se afirmar que se não pode -se-ia ainda dizer, por uma perspectiva clás-
olvidar da necessária relação existente entre sica, que se busca com o Direito a existência de
um Direito (um porque é o Direito de uma um convívio social “harmônico”, construindo-
dada sociedade, e não de todas as sociedades) -se, assim, uma sociedade pacífica, sem con-
e a sociedade à qual ele se destina. É de se flitos, sem embargo disso ser, por evidente,
reconhecer que a noção de sociedade (melhor meta optata, ou seja, algo a ser conquistado,
ainda dizer, do social) dá sentido ao jurídico, que não se dá por si só.
justamente pelo fato de que o homem vive
Pode-se, então, concluir que o Direito visa,
também, a organização social — sendo instru-
1 Doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Direito pela UFPR.
Procurador do Estado do Paraná. Ex-Procurador Geral do Estado do Paraná. mento de solução de conflitos — preservando,
Professor Universitário e Coordenador de Curso de Direito. assim, a vida em sociedade.
Todavia, mesmo vivendo em sociedade, o Tudo isso faz com que a dimensão jurídica
homem guarda, naturalmente, sua dimensão ultrapasse os limites do ordenamento, visto
individual, do que se depreende que a preser- como simples conjunto de regras aptas a regu-
vação social também se liga à ideia de prote- lar o convívio social, o que faz surgir a ideia
ção da liberdade individual, sempre subordi- do estudo do Direito pelo prisma da transdis-
nada ao interesse coletivo. Como as regras de ciplinaridade.
condutas juridicamente relevantes são criadas
Vai-se além, então, e busca-se na socie-
para regular as relações em sociedade que pos-
dade — na qual, por óbvio, estão presentes
sam gerar situações de conflito, parece claro
tantos outros fenômenos sociais —, a contem-
que não se pode negar a sua existência dentro
poraneidade do fenômeno jurídico. Portanto,
do ambiente social e do contexto histórico em
parece claro que o fenômeno jurídico depende
que se vive, os quais sofrem cotidianamente
de seu tempo, de sua história, de seu espaço e,
transformações.
também, da escolha, pela sociedade, dos valo-
Ao lado dessa análise, é imperioso afirmar res que o vão nortear, valores estes que dão o
que as transformações sociais são determinan- contorno do pacto social fundante (HOBBES)
tes para a apreciação do Direito. Os anseios da ordem jurídica legítima.
sociais se modificam sempre, o que faz do
Essa constatação de que o fenômeno
Direito algo em movimento, em constante
jurídico é construído em sociedade e nela se
processo de construção. Segundo Roberto
ambienta, gera reflexos no campo da aplica-
Lyra Filho:
ção do Direito, a qual, destarte, só pode ser
Direito é processo, dentro do pro- feita com uma oxigenação entre o ordena-
cesso histórico: não é uma coisa mento jurídico e a sociedade que o forjou e na
feita, perfeita e acabada; é aquele
qual se insere. Isto impede que se trabalhe o
vir-a-ser que se enriquece nos
movimentos de libertação das
universo jurídico como se fosse algo isolado,
classes e grupos ascendentes e que como se existisse um lugar distante e inacessí-
definha nas explorações e opres- vel pelo homem, enquanto ser transformador,
sões que o contradizem, mas de sujeito de sua própria história, que também
cujas contradições próprias brota- é marcada pela organização jurídica de sua
rão as novas conquistas2. sociedade. Por tudo isto é que a aplicação do
Diante do exposto, pode-se afirmar que o Direito não se dá, nunca, de maneira neutra
fenômeno jurídico vai além de seu universo (como pretende o positivismo jurídico); ao
específico (normativo), pois necessariamente contrário, é sempre marcada pela ideologia de
está inserido em um determinado contexto quem o aplica.
social e com ele se relaciona, sofrendo sempre Diante do exposto, parece claro que a inter-
transformações determinadas pelo ambiente pretação é fundamental para a correta e melhor
no qual se situa. aplicação do Direito. Daí surge a necessidade
O fenômeno jurídico, destarte, não se limita de entender a ligação entre interpretação e her-
apenas às regras jurídicas, mas sim envolve a menêutica. Pode-se sustentar que a Hermenêu-
compreensão e o trabalho com vários outros tica é um ramo da filosofia que estuda a teoria
fenômenos, justamente porque gerado no seio da interpretação. A hermenêutica contemporâ-
social, bem como nele inserido. Se, ao contrá- nea vai além do texto; trabalha com formas não
rio, o Direito fosse analisado fora de seu con- escritas de comunicação, também, no maior
texto, num espaço independente, não teria ele sentido possível da linguística.
a capacidade de assimilar os anseios sociais, Nas ciências jurídicas, tem-se a hermenêu-
o que o faria perder seu sentido, porque lhe tica jurídica como responsável pela costura do
faltaria a sintonia com a sociedade para a qual sistema jurídico (conflitos entre regras e entre
se dirige. princípios, por exemplo) e pela adequada
aplicação do Direito.
A hermenêutica busca dar um significado
2 LYRA FILHO, R. O que é direito. 17. ed. Reimp. São Paulo: Brasi- a um significante. Sabe-se que um significante
liense, 1999. p. 86.

2.
(a regra, por exemplo), pode ter vários signi-
ficados. Diante disso, importante encontrar o
2.1 Escola da Exegese
melhor significado (no sentido de concretiza- Para a Escola da Exegese, a interpretação
ção da regra — que é o significante), para o era tida como exercício absolutamente limi-
tratamento do caso concreto. tado à busca da vontade do legislador, uma
Esclarecedora a lição de João Batista vez que o Código (no caso, o napoleônico)
Herkenhoff: bastava para regular as situações da vida e,
Segundo Heidegger, a Hermenêu-
portanto, dar as soluções dos eventuais con-
tica é o estudo do compreender. flitos.
Compreender significa compre-
Há uma explicação histórica para a limi-
ender a significação do mundo. O
mundo consiste numa rede de rela- tação do exercício de interpretação: a Revo-
ções, é a possibilidade de relações. lução Francesa. O medo do arbítrio judicial,
Pode-se organizar o mundo mate- que traria, consigo, a quebra dos ideais revo-
maticamente; pode-se conceber o lucionários (mormente no que tange à igual-
mundo teleologicamente; pode-se dade), é forte explicação para o surgimento
interpretar o mundo como lingua- dessa escola.
gem, que é o que interessa ao her-
meneuta. Então, o mundo se torna Tem-se como sua principal característica o
dizível, o mundo é convertido na culto à lei, tanto que se sustentava que a lei
linguagem que nós utilizamos. A seria absolutamente clara e, nos casos (raros,
Hermenêutica é sempre compre-
diga-se de passagem) de eventuais dúvidas,
ensão de sentido: buscar o ser que
me fala e o mundo a partir do qual dever-se-ia perquirir pela vontade do legisla-
ele me fala; descobrir atrás da lin- dor. Em suma: in claris cessat interpretatio.
guagem o sentido radical, ou seja, o
Todavia, não há como deixar de se dar
discurso 3.
atenção à evolução social (o que fica claro com
Assim, tem-se que a atividade do herme- o avanço do pensamento jurídico). Por conta
neuta é buscar um sentido; dar um sentido aos disso, tal escola se mostra equivocada, o que a
significantes que são postos pelo ordenamento fez ser superada. João Batista Herkenhoff faz
jurídico, encontrando respostas adequadas às uma explanação elucidativa da referida escola
situações fáticas que se apresentam em socie-
A Escola da Exegese via na lei
dade. Aplicar o Direito não é atividade mecâ-
escrita a única fonte do Direito,
nica, senão racional. O texto jurídico, no qual expressão mesmo do Direito
se encontram as regras e os princípios, nada Natural. Adotava, como método
mais são do que significantes que indicam de intepretação, o literal, orientado
diversos significados. Daí a importância do para encontrar na pesquisa do
exercício hermenêutico para a correta aplica- texto a vontade ou intenção do
ção do Direito. legislador (mens legislatoris).
Somente quando a linguagem

2. ESCOLAS E fosse obscura ou incompleta, o


intérprete lançaria mão do método
EVOLUÇÃO DO lógico. A função do jurista consistia

PENSAMENTO
em extrair plenamente o sentido
dos textos legais para apreender o

HERMENÊUTICO significado deles. Negava valor aos


costumes e repudiava a atividade
criativa, mínima que fosse, da
As escolas hermenêuticas se traduzem em jurisprudência. 4:
modos diversos de compreensão do Direito e
da sua aplicação.

3 HERKENHOFF. J.B. Como aplicar o direito. 6ª ed., ver., ampl. e 4 HERKENHOFF. J.B. Como aplicar o direito op. cit, p. 35.
atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 5-6.

3.
2.2 Escola histórica lista: não há Direito universal, único e imutá-
vel. O Direito é de cada povo, calcado em seus
do direito costumes. O legislador é leitor e condensador
desses costumes, bem com o é o aplicador do
A Escola Histórica do Direito surgiu na Direito.
Alemanha, no início do século XIX, em opo-
sição às doutrinas jusnaturalistas dos séculos A crítica mais propalada sobre a Escola
XVII e XVIII. Tem como cerne de sua carac- Histórica do Direito é baseada em suposto
terização a investigação histórica em primeiro apego excessivo ao passado, o que a faria não
plano, o que indicava ser a interpretação a lançar olhar para o futuro.
reconstrução do pensamento do legislador, Todavia, tanto a Escola da Exegese quanto
que condensaria a vontade do povo. Vem, a Escola Histórica do Direito sofrem críticas
também, em oposição à codificação e ao lega- por não dar liberdade à interpretação e aplica-
lismo estrito, pugnado pela Escola da Exe- ção do Direito, muito porque para a primeira
gese. Enfim, o Direito seria produto da histó- tem-se a idolatria à lei e para a segunda, à von-
ria, ligado ao tempo e ao espaço, e não mera tade do povo e aos seus costumes. Assim, sur-
criação racional. Tem em Savigny um de seus gem as Escolas que permitem uma interpreta-
maiores expoentes. Os postulados básicos da ção mais livre do Direito, como, por exemplo,
Escola Histórica do Direito são os seguintes: a Escola da Livre Pesquisa Científica, a Escola
1º) o Direito é um produto histó- do Direito Livre e a Escola da Jurisprudência
rico, e não resultado das circuns- dos Interesses, dentre outras.
tâncias, do acaso, ou da vontade
arbitrária dos homens;
2.3 Escola da livre
2º) o Direito surge da consciência
nacional, do espírito do povo, das
Pesquisa Científica
convicções da comunidade pela
tradição; A Escola da Livre Pesquisa científica sur-
giu na França, no final do século XIX e teve
3º) o Direito forma-se e desen-
como seu principal expoente François Gény.
volve-se espontaneamente, como a
linguagem; não pode ser imposto Seu surgimento baseou-se na necessidade de
em nome de princípios racionais e rompimento com o pensamento da Escola
abstratos; Histórica do Direito, que postulava a busca
pela vontade do legislador. Para os adeptos
4º) o Direito encontra sua expres-
são inconsciente no costume, que é da Escola da Livre Pesquisa científica — leia-
sua fonte principal; -se, primeiramente, Gény —, não fazia sen-
tido desvendar a intenção do legislador, à
5º) é o povo que cria seu Direito,
entendido como povo não somente época em que a lei foi editada para trazê-la a
a geração presente, mas as gera- intenção,para o momento da aplicação desta
ções que se sucedem. O legislador lei. A lei não tem outra intenção senão aquela
deve ser o intérprete das regras que lhe deu origem.
consuetudinárias, completando-as
e garantido-as através das leis5. Ademais, assevera-se, nessa escola, que a
lei está posta para o futuro e não para o pas-
Portanto, o conhecimento da sociedade,
sado e, assim, não tem condições de ser ampla
do povo, dos seus costumes e da sua história
e completa, pois os fatos sociais vão se suce-
se mostra fundamental para a produção jurí-
dendo, sem que o legislador, à época da edi-
dica, seja na perspectiva de criação legislativa,
ção do ato legal, tenha-os previsto completa-
seja na perspectiva da aplicação da lei. O legis-
mente.
lador é, na realidade, porta-voz de seu povo,
o qual se tem como o grande criador de seu Diante da incompletude da lei — a mais
próprio Direito. Aqui reside o principal ponto importante fonte do Direito —, deveria o
de rompimento com o pensamento jusnatura- intérprete lançar mão de outras fontes, como
o costume, a jurisprudência e a doutrina.
5 HERKENHOFF. J.B. Como aplicar o direito op. cit, p. 41. Todavia, se esgotadas as fontes na aplicação

4.
do Direito, sem que se tenha a resposta para Direito Justo, pois propunha a aplicação do
o caso, o próprio aplicador do Direito poderia Direito em contrariedade à regra estabelecida,
criar a regra para a solução. desde que ela fosse injusta.

Portanto, através da pesquisa científica, A tendência radical entendia ser aplicável


em não havendo suficiência de fontes para o Direito formal, desde que não fosse
a solução do caso, o aplicador poderia criar contrário ao sentimento social. De outro lado,
regra nova, que ainda não existisse no ordena- quando a solução pudesse ferir o sentimento
mento, não se tratando, entretanto, de analo- da sociedade, o aplicador estava autorizado
gia; é nova regra e não aplicação analógica de a não aplicá-lo. Sua conduta, é claro, deveria
uma existente. ser pautada pela justiça e pela consciência do
exercício de seu papel no Estado. Estado esse
Em suma, tem-se que a Escola da Livre
que, se tivesse legislado na ocasião em que o
Investigação Científica afastou o mito da com-
caso se desenvolveu, agiria como o juiz agiu.
pletude da lei e indicou como caminho para a
solução dos casos concretos a livre pesquisa, As críticas que recaíram sobre a Escola
com a consequente possibilidade de criação de de tendência radical e se deram no campo
regras pelo aplicador, em detrimento de méto- da subjetividade, da possível arbitrariedade
dos que obrigavam o aplicador a buscar “ora judicial, da subversão da ordem e da quebra
a vontade da lei, ora a vontade do legislador, da segurança jurídica (aliás, críticas comuns
no caso de se ter lacunas no ordenamento”.6 a todas as Escolas que pregavam maior liber-
dade na aplicação do Direito). A fim de reba-
2.4 Escola do ter tais críticas, os defensores da Escola do
Direito Livre Direito Livre, sejam aqueles adeptos da forma
moderada, sejam os adeptos da forma radical,
acreditavam que as metas estabelecidas pelas
A Escola do Direito Livre surgiu na Ale-
Escolas com apego à lei são impossíveis de ser
manha, no início do século XX, tendo como
alcançadas, pois tratadas a partir da ideia de
primeiro teórico Ulrich Kantorovicz. É pos-
um ordenamento perfeito, a ser operado por
sível apontar que a referida Escola buscou
julgadores isentos.
tanto na Escola Histórica do Direito quanto na
Escola da Livre Pesquisa Científica base para Enfim, inegável a contribuição de tal
seus postulados. Da Escola História do Direito Escola ao pensamento jurídico e ao modo de
trouxe para si o pensamento de que o Direito se aplicar o Direito, como bem observa João
nasce do povo e, da Escola da Livre Pesquisa Batista Herkenhoff:
Científica, a busca pelo Direito fora de suas
A Escola do Direito Livre sacudiu
fontes formais. Tinha duas vertentes princi-
verdades estabelecidas e represen-
pais: uma mais moderada, capitaneada por tou um progresso no pensamento
Eugen Erlich e, outra, mais radical, liderada jurídico. Abriu perspectivas para a
por Kantorovicz. Ciência do Direito e investiu a fun-
ção judicial de maior responsabi-
Na tendência mais moderada, cultivava-se lidade e importância, realçando o
a ideia de que o direito residia na sociedade papel criativo inerente a ela7.
(não se pode olvidar da formação socioló-

2.5 Escola da
gica de Erlich), anterior e maior que o Direito
legislado. Nas instituições sociais estava o
verdadeiro Direito e da análise dessas insti- Jurisprudência
tuições deveria sair a solução, quando não
legislada, por meio de um estudo sociológico
Dos Interesses
das situações. Surgiu na Alemanha, por volta dos anos
A tendência radical, propugnada por 1920, tendo como um de seus maiores pensa-
Kantorovicz, era conhecida como Escola do dores Phillipp Heck. Leva esse nome porque

6 HERKENHOFF. J.B. Como aplicar o direito op. cit, p. 46. 7 HERKENHOFF. J.B. Como aplicar o direito op. cit, p. 59.

5.
visa colocar os interesses em questão acima
dos conceitos jurídicos, estanques, na solução LEI E NORMA.
dos litígios. PRINCÍPIO,
De toda sorte, não prega, ao contrário da PRINCÍPIO
Escola do Direito Livre na sua forma radical,
JURÍDICO E
SISTEMA
desapego à lei, mas sim a atuação cooperativa
do juiz com o ordenamento jurídico, no pro-
pósito de levar a efeito os motivos de sua cria-
ção e de seu estabelecimento. Primeiramente, deve-se determinar uma
diferença séria entre lei, regra e norma e, para
O legislador cria a lei para proteger deter- isso, é preciso lançar mão de algumas obser-
minados interesses legítimos. Cabe, então, ao vações necessárias. Ao se estudar a questão da
julgador descobrir quais interesses o legisla- norma jurídica, principalmente no que tange
dor visava proteger quando da edição da lei, a ao seu conceito, verifica-se que há identifica-
fim de melhor solucionar o caso. Com isso, se ção, de um modo quase geral, com a noção
afasta a abstração dos conceitos jurídicos, que de regra jurídica. Diante dessa identidade,
trazia consigo a redução na análise do caso os conceitos de norma e regra jurídicas aca-
concreto, vez que o encaixe das diversas situa- bam por não apresentar qualquer traço que
ções ocorridas em sociedade dentro do molde os diferencie, sendo utilizada ora a expressão
de um determinado conceito retira grande regra, ora a expressão norma, para designar a
parte das possibilidades de reconhecimento mesma coisa.
do fenômeno jurídico, o qual, antes de tudo, é
fenômeno social. A grande maioria dos autores conceitua
norma jurídica como sinônimo de regra, sem
A decisão judicial soluciona casos de inte- apresentar distinção entre estes institutos,
resses contrários postos em questão e, assim, o que leva a uma confusão aparente entre
cabe ao julgador descobrir qual interesse deve ambos. Todavia, esta aparentemente simples
prevalecer naquela situação. Diante disso, a confusão entre os conceitos gera consequên-
decisão justa é aquela que melhor analisa as cias consideráveis no estudo do ordenamento
peculiaridades do caso discutido, identifi- jurídico. Uma das mais sensíveis refere-se ao
cando quais interesses estão postos em jogo e estudo dos princípios jurídicos, os quais aca-
qual deles deve prevalecer. bam por ser relegados a um plano diferente
De outro lado, a obediência à lei não é lite- do destinado às regras, por elementar inferior.
ral. O julgador deve fazer juízo de valor em É preciso, então, trabalhar com uma
suas decisões, justamente pelo fato de que diferenciação entre regra e norma, capaz de
lhe é esperada uma análise dos interesses determinar a possibilidade dos princípios
em discussão. assumirem um papel de maior relevância no
Fica claro, por fim, que a maior contribui- universo jurídico, diferente daquele que a
ção da Escola da Jurisprudência de Interesses doutrina clássica os confere.
foi a abertura da Hermenêutica Jurídica para Assim sendo, a questão se apresenta mais
a valoração dos interesses contrários que che- profunda do que parecia (quando se tratava
gam à apreciação do juiz. Também, a ideia de simples confusão lexical), até porque uma
de que são vários os interesses protegidos indeterminação de conceitos dessa monta é
pela ordem jurídica e que, em determinados inadmissível no momento teórico contempo-
momentos esses interesses estão em conflito, râneo. Quando se fala de conceito, de concei-
provocando o pensamento processual, mor- tuação das coisas a serem estudadas, não há
mente no que diz respeito a conceitos como o espaço para equívocos ou confusões, ou, em
de pretensão. se tendo que os admitir, que seja no menor

3 DIFERENÇA
grau possível. Ainda, a confusão, como será
demonstrado adiante, é apenas aparente, pois
ENTRE REGRA,

6.
fundada em bases teóricas que, antes de per- valor), da qual, por meio da interpretação,
miti-la, a impõe. cria-se (mentalmente) uma norma para o caso
que se está analisando.
Parece claro, mormente, quando se fala
do Direito que os conceitos têm vital impor- Com esta nova perspectiva de análise
tância para o trato correto das questões. Seria sobre a norma, abriu-se a oportunidade de
inimaginável pensar o Direito, tanto do ponto elaboração de uma teoria hermenêutica desfi-
de vista filosófico, quanto científico, sem um liada das correntes positivistas. A hermenêu-
conceito que exprima, com relativa precisão o tica positivista funcionava perfeitamente para
conteúdo de um determinado instituto. as normas enquanto modelo de subsunção
eminentemente formal, entre descrição nor-
A lei é texto, o qual permanece o mesmo
mativa e realidade, não se podendo, todavia,
até que sobrevenha um ato legislativo que
nela se encaixar a interpretação dos princípios,
o modifique ou o retire do ordenamento.
justamente por não serem claros os elementos
A norma, por seu turno, é produto mental,
deônticos, o que demonstra a dificuldade de
sendo, portanto, derivada da interpretação
se identificar a conduta que deveria ser levada
que se faz do texto. Pode haver, por isso, tan-
a efeito. Esta é a razão pela qual o positivismo
tas normas quanto forem as cabeças dissiden-
jurídico não conferiu, aos princípios, sua nor-
tes, o que engendra a ideia de que de uma
matividade, fazendo deles meros figurantes
regra possa ser derivada de várias normas.
no sistema jurídico.
Destarte, pouco resta para duvidar que
A discussão sobre o que vem a ser princí-
não se possa confundir lei e norma. Afinal,
pio se dá primeiro não no campo jurídico, mas
cada qual ocupa um lugar definido e pre-
no campo filosófico. Por isso, a importância
ciso. O problema, contudo, aparece de modo
de um estudo transdisciplinar. No entanto,
mais complexo quando intervém a figura da
o desprendimento do puramente jurídico no
regra. Ela é confundida como norma, mas não
estudo do Direito é deveras difícil, justamente
parece, e não é, a melhor solução: do acúmulo
pela influência positivista que está presente
é que vão nascer infindáveis dificuldades, a
em todos os trabalhos jurídicos desde o século
começar por aquela referente à compreensão
passado, o que resulta em um trabalho cien-
dos espaços de cada uma delas.
tífico do objeto como algo dado, sem que se
Assim, para tentar esclarecer o “lugar” da possam questionar os seus fundamentos que,
regra, há de passar pela observação de José não raras vezes, estão para além do mundo
de Oliveira Ascensão que “a regra jurídica é jurídico.
sempre um critério de decisão. Mediante ela o
Posta a discussão nestes termos, é possí-
intérprete chegará sempre a soluções jurídicas
vel iniciá-la tendo como princípio o começo,
dos casos”8.
ponto de partida; onde tudo começa. Avan-
Diante do exposto, resulta que a regra é çando nas proposições, é possível, antes,
um critério de valor. A regra penal, por exem- caracterizar princípio como sendo o motivo
plo, é um critério de desvalor da conduta. Por- conceitual, sobre o qual se funda uma dada
tanto, é possível sustentar que a lei, enquanto teoria jurídica; o princípio está no lugar do
fato gráfico, é “montada” sobre determinado antes, do anterior ao primeiro momento, como
critério. Todavia, essa construção contraria a todos os fenômenos ditos acima, do big- bang
tese kelseniana que afasta do Direito aquilo a Deus, do pai primevo à norma fundamental
que não seja jurídico por excelência, expur- fictícia. O princípio funda, ou melhor, dá fun-
gando qualquer conotação axiológica da inter- damento, mas não simplesmente à ordem jurí-
pretação do texto legal. dica — vista como sistema —, mas à ordem,
num sentido amplo. É significante fundante,
Conclui-se, então, que o texto ou enun- que remete a outro significante, propiciando
ciado (lei) traz consigo uma regra (critério de uma ressignificação, não só do fundante,
mas de tudo aquilo que se raciocina sobre
ele. Quando se está, por exemplo, diante de
8 ASCENSÃO. J. de O. O direito - introdução e teoria geral: uma
perspectiva luso-brasileira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1978. p. 181-182. uma porta de banheiro, em um restaurante,

7.
e na porta está estampada a letra ‘M’, num ao infinito, sendo, assim, um conceito-limite.
primeiro momento esta letra nada diz, a não Esses princípios são chamados de ontológi-
ser que se está diante da letra ‘M’. Esta letra cos, porque fundantes da ordem jurídica (que
precisa, então, para ter um sentido, qual seja por estar sustentada em princípios, configura
de permitir que se saiba se o banheiro é para um sistema, como já visto), como, por exem-
mulheres ou homens (‘M’ de masculino), ser plo, o princípio republicano. Destes decorrem
ressignificada. Isto ocorre num momento pos- outros princípios, que são (i) lógicos, e não
terior, quando se olha para a outra porta na podem, por evidente, se colocar em contradi-
qual está a letra ‘H’. A partir desse momento, ção com o princípio fundante, sem embargo
então, a letra ‘M’ passa a ter outro significado de desempenharem a função e estruturação
(fica ressignificada, então), além daquele que do sistema, de modo a propiciar, pelas con-
indica que a letra é ‘M’; o significado de que sequências, um maior conhecimento do ser,
se trata de um banheiro para mulheres, pois a por exemplo, o princípio do juiz natural, e (ii)
outra porta, onde está a letra ‘H’, indica que se teleológicos, que funcionam como condição
trata da porta do banheiro para homens. Tem- de possibilidade dos meios para se alcançar os
-se, todavia, outros exemplos. fins, tal como o princípio da economia e celeri-
dade processuais.
Assim, é possível dizer que Deus é um
mito, um motivo conceitual, pela impossibili- É importante salientar que os princípios
dade de ser verificado no mundo da experiên- fundantes, que representam aquilo que está
cia, no mundo dos fatos. Está, então, em uma antes do ordenamento jurídico, não são postos
posição para antes da linguagem fazer efeito em forma em dogmas, como no caso da teoria
no campo teológico, dando-lhe base e também jusnaturalista. Tais princípios são formados
limite, pelo qual se impede recorrência ao infi- na sociedade, por sua história, a partir dos
nito. A nós chega como palavra (motivo con- seus anseios e das suas conquistas. Não são
ceitual) para começar a dar um sentido dentre verdades preestabelecidas, inquestionáveis,
os muitos possíveis. intocáveis; ao contrário, são frutos da socie-
dade e com ela mantém referência, mormente
No universo jurídico, um exemplo que
no que toca às transformações pelas quais a
pode ilustrar é a grundnorm, a norma fictí-
sociedade passa. É só ver que a Terra já foi o
cia fundamental de Kelsen, a qual é o prin-
centro do Universo, e que muitos morreram,
cípio fundante da teoria kelseniana. Ela está
ou quase, por questionar tal axioma.
no início do ordenamento posto, e lhe dá
sustento. Detém, com isso, também a carac- Daí ser possível explicar as funções nor-
terística limite do recurso ao infinito, dando mogenética e sistêmica dos princípios, tudo
o fundamento para a construção do ordena- em nome da característica de fundamento
mento escalonado de Kelsen; também dá a que detêm. Em decorrência destas funções,
impressão de fechamento da pirâmide kelse- tem-se que as regras formuladas lhes devem
niana. Fala-se em impressão de fechamento, respeito, quer dizer, qual regra que guardar a
pois fechada, a pirâmide não está ditando respectiva correspondência, pode perder sua
nenhuma norma fundamental é só uma repre- validade; também, fica claro que o sistema
sentação da “coisa”; da mesma forma que não jurídico neles se funda.
se fecha sistema algum.
O que a ordem jurídica faz é tornar prin-
Quanto ao universo dos princípios, e tra- cípios, anteriores a ela, jurídicos. Eles tomam
balhando-os na esfera jurídica, estes desem- a dimensão do jurídico quando ingressam na
penham a função de fundamento (retórico) da ordem jurídica, mesmo que implicitamente,
ordem-sistema jurídico estabelecido, advin- por decorrência de outros tantos explícitos.
dos do pacto social fundante, podendo ser Depois, é de se assinalar que nem todos os
caracterizados como o seu motivo conceitual, princípios estão expressos no ordenamento
sendo então um mito, posto ali por quem jurídico. Há vários deles que não se encontram
tem poder para tanto (que, no caso em tela, positivados, mas, nem por isso, são de menos
deveria ser o povo que pactuou a fundação importância. Ao contrário, configuram o arca-
da sociedade civil), impedindo, também, a ida bouço não só do sistema jurídico, mas também

8.
do sistema político de um Estado, como por plantão; estão num lugar anterior ao jurídico,
exemplo, o princípio democrático no Brasil, como já dito, o que faz com que, mesmo sendo
derivado do princípio republicano. Em algu- “rasgada” a Constituição, eles permaneçam
mas passagens da Constituição da República como guardiões da sociedade que os formou.
de 1988 é possível determinar a sua existên-
Fica claro portanto, que as Constituições
cia, como no caso do dispositivo que garante
são apenas porto de passagem dos princípios,
o direito ao sufrágio universal e ao voto direto
e não sua moradia exclusiva. Pensar diferente
e secreto (art. 14). Porém, lá não está expresso.
é permitir a quebra da ordem social a partir
O princípio democrático está na própria socie-
da destruição da ordem jurídica, o que deixa-
dade, que após grandes lutas pela democracia
ria por demais desprotegidas as conquistas
adotou-o, de forma que se não pode olvidá-lo,
sociais obtidas ao longo da história.
ou melhor, não se pode desrespeitá-lo.
Dá-se, assim, no caso brasileiro, por exem-
A importância de se ter princípios que
plo, com o princípio republicano, que para
estão para além da estrutura jurídica de um
além de poder ser extraído da Constituição,
Estado, obviamente, está na sua subsistência,
reside na sociedade e dela não pode ser sub-
mesmo diante de um golpe de Estado. Assim,
traído por imposição de força; resultou de luta
eles permanecerem vivos, possibilitando sua
e, portanto, de conquista histórica da socie-
invocação contra a tentativa, por exemplo, de
dade, o que não pode ser jamais olvidado. O
se estabelecer um regime autoritário. Não esti-
mesmo acontece com o princípio democrático,
vessem, esses princípios, num ambiente dife-
consubstanciado a partir de tantas batalhas
rente do jurídico, ou seja, estivessem eles todos
históricas da sociedade brasileira.
expressos na Constituição, a sua fragilidade
seria imensa, a ponto de uma vez “rasgado” Passando esta visão de organização sis-
o texto constitucional por qualquer “paladino têmica para o Direito, não há que se negar a
da justiça”, não se teria elemento qualquer necessidade de se ter um ordenamento orga-
que protegesse o Estado, e todos enfim, de nizado em forma de sistema, tal qual o modelo
uma situação como essa, sendo perfeitamente proposto por Kant, para o conjunto de conhe-
possível a implantação de qualquer regime de cimentos.
governo.
Aprofundando a análise sobre sistemas
Para concluir, os princípios que não estão e seu desenvolvimento no campo jurídico,
positivados, vêm antes da ordem jurídica; há que se retomar a dois autores que demar-
residem em uma dimensão anterior; estão, cam campos teóricos distintos e de profunda
mesmo, no seio da sociedade que determinou importância para a discussão do tema: Niklas
o surgimento da sua ordem jurídica, que é Luhmann e Claus-Wilhelm Canaris.
permeada e fundada nos princípios consagra-
dos da sociedade. Constituem, então, espécie A Teoria Sistêmica Funcionalista de Niklas
de reserva histórica, que permite que não haja Luhmann9 opera com a ideia de sistema auto-
retrocesso na caminhada social que os con- poiético, ou seja, que se reproduz por si pró-
densou, pelos valores eleitos como basilares, prio, independente de outros elementos ou
lembrando-se do pacto social, base, por exce- fatores estranhos a ele, que o caracteriza como
lência do contrato social que fundou a socie- uma infinidade de subsistemas cerrados num
dade civil organizada. todo que pode ser apreendido. Desta forma, o
Direito seria um subsistema dentro do sistema
Com isso, a ameaça constante, principal- sociedade. Então, o conhecimento jurídico
mente em países de terceiro mundo como existente neste modelo sistêmico reproduz-se
o Brasil, da volta de tempos amargos, onde a partir de seus próprios elementos, podendo
possa vir a figurar governos ilegítimos por ser apreendido como um todo desde que se
meio da força, da imposição, pode e deve ser
rechaçada a partir dos princípios que, mesmo
figurando nos corações das Constituições, não 9 LUHMANN, N. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasi-
leiro, 1983. Vide, também, TEUBNER, G. O direito como sistema autopoiético.
se encontram apenas ali. Estão, em realidade,
Tradução e prefácio de: José Engrácia Antunes. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
num locus inacessível para os iconoclastas de 1989.

9.
conheça o código de entrada do referido sis- Ademais, Jürgen Habermas, quando
tema. adota posicionamento de Max Weber sobre
a dimensão extrajurídica da racionalidade do
Sobre a noção sistêmica de Niklas Luh-
Direito, o que impede o seu estabelecimento
mann, observa Jacinto Nelson de Miranda
como um sistema fechado, acentua que:
Coutinho:
Max Weber tinha razão: somente
Não obstante, para Luhmann, o direito é se levarmos em conta a racionali-
um sistema autopoiético, mais precisamente dade que habita no próprio direito,
de segundo grau, “autonomizando-se em face poderemos assegurar a indepen-
da sociedade, enquanto sistema autopoiético dência do sistema jurídico. No
de primeiro grau, graças à constituição auto- entanto, como o direito também se
relaciona internamente com a polí-
-referencial dos seus próprios componentes
tica e com a moral, a racionalidade
sistémicos e à articulação deste num hiperci- do direito não pode ser questão
clo”. Assim, um subsistema que se constrói exclusiva do direito11.
a si mesmo. Tal autonomia, contudo, não
exclui uma vinculação com outros subsiste- Conclui-se, portanto, que a autossufici-
mas sociais, ou seja, ela continua firme, mas ência do sistema é perniciosa para o traba-
as outras normas não têm espaço para desem- lho científico que se pretende contemplativo,
penhar o mesmo papel que antes desempe- pois nega, ao mesmo tempo, a incompletude
nhavam e, assim, sua validade jurídica só do conhecimento científico, posição por
aparece após o acolhimento pelo próprio sis- demais pretensiosa, bem como a mutabili-
tema jurídico, através de um código interno. dade dos valores jurídicos fundamentais.
Eis a razão, então, porque “toda a verdade Com isso, inviabiliza-se o trabalho dialético
do direito se consigna em procedimentaliza- e prospectivo do fenômeno jurídico, pois se
ção, na sua reflexidade” (gn), sendo certo que impede a oxigenação do sistema pela influ-
“el sentido lo crea el objeto, no el sujeto, el ência dos fatores a ele externos. Então, o prin-
ambiente, no el grupo’; e o objeto, por óbvio, é cípio que rege o sistema o fecha para outras
o próprio sistema10. possibilidades.
Todavia, há coisas que influenciam o Não é suficiente, ademais, ter-se um sis-
conhecimento jurídico, porém, não se encon- tema forte, que rejeite as tentativas de des-
tram dentro deste sistema autopoiético, por configurá-lo como um golpe de Estado, por
exemplo, as coisas que não podem ser apreen- exemplo. É preciso que o sistema jurídico
didas pela razão (irracionais). Ou seja, há coi- seja capaz de se transformar no ritmo ditado
sas que estão para além de nosso pensamento pelas expectativas e exigências sociais, as
racional, contudo o influenciam. quais renovam cotidianamente o pacto social
que deve fundar o ordenamento jurídico legí-
O sistema jurídico, então, só poderia
timo. Tudo isso, ainda, em consonância com
lançar mão dos outros subsistemas sociais,
a noção de transdisciplinaridade, essencial no
para deles se socorrer, desde que todos
trabalho da ciência jurídica, dada a imperio-
pudessem ser permeados pelos valores
sidade de se trabalhar com outras Ciências,
sociais contemporâneos, os quais, como é
desde a construção do objeto da Ciência do
notório, encontram-se no seio da sociedade
Direito, qual seja, o fenômeno jurídico, até o
e dela não se pode olvidar, muito menos se
seu estudo.
distanciar, até por ser a razão da existência
do sistema jurídico. Todavia, a perspectiva Ainda, quanto à aplicabilidade de referida
da permeabilidade não existe para a teoria noção sistêmica ao trabalho do juiz, igual-
funcionalista, como exposto acima, o que a mente valem as críticas. Não é possível que
torna inaplicável. o juiz não sofra influências do meio em que
vive, não sendo um ser insensível quando está

10 MIRANDA COUTINHO, J. N. de. Jurisdição, psicanálise e o mundo 11 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre a facticidade e
neoliberal. In: Direito e Neoliberalismo: elementos para uma leitura interdisci- validade,vol. II. Trad. de: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
plinar. Curitiba: EDIBEJ, 1996. p. 52. Brasileiro, 1997. p. 230.

10.
em sua posição de magistrado. Ademais, é de emergem em todos eles: a ordenação e a uni-
se notar o perigo de negar ditas influências. dade, aduzindo que “a função do sistema na
Negando-se aquilo que existe, impede-se que Ciência do Direito reside, por consequência,
se analise sua existência. Com isso, a nega- em traduzir e desenvolver a adequação valo-
ção de influências sofridas pelo juiz em sua rativa e a unidade interior da ordem jurídica.
decisão, faz com que não possa sobre elas ter Canaris afirma que a “partir daí, o pensamento
qualquer controle, o que pode levar ao arbí- sistemático ganha também a sua justificação
trio. Observa, neste sentido, Jacinto Nelson de que, com isso, se deixa derivar mediatamente
Miranda Coutinho: dos valores jurídicos mais elevados”14.
Parece não ser viável, portanto, Diante disso, é possível conceituar sistema
não levar em consideração a jurídico como sendo um “conjunto de temas
penetração, queira-se ou não, de
jurídicos que, colocados em relação e costu-
elementos inconscientes, comple-
tamente arredios ao sistema, no
rados por um princípio unificador, formam
ato decisional da jurisdição, por um todo pretensamente orgânico destinado
exemplo. Isso, por sinal, sempre se a uma determinada finalidade. “É fundamen-
soube, tanto quanto procurou-se tal, como parece óbvio, ser o conjunto orques-
manter intocável, dado o império trado pelo princípio unificador e voltado para
da razão, se se toma como ponto o fim ao qual se destina.”15
de análise a experiência cotidiana.
Aqui, os elementos externos ao sis- Portanto, qualquer coisa pode ser estu-
tema penetram nele sem qualquer dada a partir de um sistema. O problema está
controle, até porque, deles, nada em se tomar como verdadeira determinada
se sabe, a não ser os resultados.
noção de sistema, o que implica em excluir
Alguma certeza, sem embargo,
tem-se, mas não aquela farisaica- coisas que não poderiam ser excluídas. Daí,
mente pretendida a partir de um a a necessidade de se tomar o sistema como
priori legal.12 algo aberto; falar de um princípio unificador
do sistema não significa fechar sua porta de
De outro lado, tem-se outra teoria relativa acesso, como parece elementar.
à construção da noção sistêmica, desenvol-
Sendo assim, em não se podendo lançar
vida por Claus-Wilhelm Canaris13. O refe-
mão de um sistema autopoiético, no qual os
rido autor afirma que, primeiramente há de se
fatores externos não influenciam sua forma-
reconhecer que sobre o conceito geral de sis-
ção e reprodução, é de se adotar a teoria de
tema, ainda é dominante a definição de Kant,
Claus-Wilhelm Canaris, a qual indica a neces-
“que caracterizou o sistema como a unidade,
sidade de abertura do sistema, nestes termos:
sob uma ideia, de conhecimentos variados ou,
também, como um conjunto de conhecimen- Este sistema não é fechado, mas antes
tos ordenados segundo princípios”. Conclui- aberto. Isto vale tanto para o sistema de pro-
-se, então, que só é possível conectar os ele- posições doutrinárias ou ‘sistema científico’,
mentos do sistema a partir de um princípio como para o próprio sistema da ordem jurí-
unificador. Este princípio rege tudo e pode ser dica, o ‘sistema objectivo’. A propósito do
manipulado pelo homem, através da ciência primeiro, a abertura significa a incompletude
(mito do cientificismo). do conhecimento científico, e a propósito do
último, a mutabilidade dos valores jurídicos
Após fazer uma análise sobre diversos
fundamentais.16
conceitos de sistema (Kant, Eisler, Savigny,
Stammler, Binder, Hegler, Stoll, Coing), con- Para além de sua importância na
clui o citado autor que duas características configuração do sistema jurídico,

12 MIRANDA COUTINHO, J. N. de. Jurisdição, psicanálise e o mundo 14 CANARIS, C-W. Pensamento sistemático e conceito de sistema na
neoliberal. In: Direito e Neoliberalismo: elementos para uma leitura interdisci- ciência do direito op.cit., p. 280.
plinar. Curitiba: EDIBEJ, 1996. p. 54. 15 MIRANDA COUTINHO, J. N. de. In: O papel do novo juiz no processo
13 CANARIS, C-W. Pensamento sistemático e conceito de sistema penal. In: ____________ (Coord.). Crítica à teoria geral do direito proces-
na ciência do direito. Introdução e tradução de: A. Menezes Cordeiro. 2. ed. sual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 16.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996. 16 op. cit., p. 281.

11.
os princípios servem como funda- mais nova revoga a regra mais antiga. É o que
mento de julgamento. Norberto se chama de critério do tudo ou nada: quem
Bobbio reconhece, ainda, que se não prevalece, está fora do sistema. Não há
valha da expressão princípios
possibilidade de convívio entre regras confli-
gerais de direito como integrado-
res do sistema, que eles nada mais tantes, enfim. Já pela função que desempenha,
são do que normas generalíssimas como já visto, os princípios prevalecem sobre
ou fundamentais dos sistemas as regras, pois estas só podem ser criadas com
(inovando, pois, com a perspectiva base naqueles.
positivista).
De outro lado, tem-se o conflito entre prin-
Depois dessas considerações, é impor- cípios. Quando houver quando houver colisão
tante partir, antes de tudo, da premissa que entre princípios, cabe ao juiz escolher um dos
o nosso sistema jurídico é composto, também princípios para ser aplicado ao caso concreto;
e, principalmente, por regras e princípios (em há, portanto, de um prevalecer sobre o outro,
nome de tudo que já foi exposto até aqui), ressalvando-se aqui a não exclusão do pre-
haja vista a insuficiência de um sistema com- terido, pela possibilidade de coexistência de
posto por apenas um destes elementos. Caso ambos no ordenamento. Dá-se assim, segundo
se tentasse trabalhar com um sistema apenas grande parte da doutrina, por se poder deter-
composto por regras, sua inviabilidade seria minar um peso ou importância maior a um do
patente, pois, se não por nada, apenas pela que ao outro. Não se aplicaria, então, no caso
relação direta das regras com os casos que elas de conflito entre princípios, o critério do “tudo
preveem, o que determina uma maleabilidade ou nada”, com se faz com as regras. Assim, a
mínima, podendo ocasionar a falta de regula- doutrina, quando se viu diante de tal encruzi-
mentação dos casos, embora relevantes juridi- lhada, no tocante ao conflito entre princípios,
camente, por elas não previstos, tudo em con- pôs-se a construir teorias. É possível abrir a
formidade com a necessidade de observância discussão pelas colocações de Karl Larenz, que
do tipo legal (tatbestant, fatispecie). tece alguns comentários sobre o método da
ponderação de bens no caso concreto, tendo
Por outro lado, um sistema composto como base o critério do peso ou importância,
exclusivamente por princípios, ao menos pelo o qual se mostra como preferido por parte da
mesmo motivo, porém de forma invertida, doutrina. Após relatar alguns exemplos das
seria inviável; não se pode trabalhar apenas altas cortes alemãs, quais sejam do Tribunal
com normas derivadas de enunciados pouco Constitucional Federal do Supremo Tribunal
precisos, sob pena de se gerar “dúvidas sobre Federal, aduz:
a exata forma de agir nas situações.”17. Diante
disso há, na doutrina, diversos critérios de A ponderação de bens no caso
concreto é um método de desen-
diferenciação entre regras e princípios, porém
volvimento do Direito, pois que
nenhum deles detém a hegemonia no estudo serve para solucionar colisões de
do Direito. normas, para as quais falta uma
regra expressa na lei, para deli-
Passando para análise dos conflitos (ou
mitar umas das outras as esferas
antinomia) entre regras, entre regras e prin- de aplicação das normas que se
cípios, e entre princípios, é de se colocar, entrecruzam e, com isso, concreti-
primeiramente, que o conflito entre regras zar os direitos cujo âmbito, como o
se resolve, precipuamente, com base nos do direito geral de personalidade,
ditames da Lei de Introdução às Normas do ficou em aberto. Do mesmo modo
Direito Brasileiro, lembrando-se, sempre, dos que na concretização paulatina
pela jurisprudência de pautas de
critérios de aplicação da lei no tempo. E mais:
valoração que carecem de ser pre-
quando uma regra “perde” no conflito, é reti- enchidas de conteúdo, também
rada do ordenamento, por conta do fenômeno aqui é de se esperar que, com o
da revogação. Assim, por exemplo, a regra acréscimo de sentenças dos mais
altos tribunais, se hão-de criar
possibilidades de comparação,
17 SCHIER, P. R. Direito constitucional: anotações nucleares. Curitiba:
Juruá, 2001. p. 104. mediante as quais serão tornadas

12.
mais estreitas as margens residuais cação da lei penal, no caso concreto (em vista
de livre apreciação. Mas, posto que das condicionantes do caso concreto).
de cada vez se requererá a consi-
deração de todas as circunstâncias Assim, pode-se concluir, diante do pensa-
do caso concreto, que nunca são mento do autor, que a relação de precedência
iguais em tudo, não se deve espe- entre princípios não se daria de forma abstrata
rar que, com o tempo, se venham e absoluta, tendo-se que sempre buscar as
a formar regras fixas que possibi-
condicionantes do caso concreto para chegar à
litem uma subsunção simples do
caso concreto. A comparação de decisão. A cada caso, a relação de precedência
casos possibilita analogias e por- sempre estaria se modificando, por isso que
ventura uma certa tipificação dos abstratamente não poderia ser dimensionada.
casos; a ponderação de bens será
desse modo aliviada, mas não se Isso não afasta que sempre se estará,
tornará supérflua18. neste caso, diante de um campo difícil de
atuação, em que se pode chegar, com certa
Por seu turno, Robert Alexy quando dis- facilidade, seja por qualquer das perspecti-
corre sobre a escolha entre princípios no caso vas apresentadas.
concreto, pelo viés dos direitos fundamentais,
O que não se pode negar, todavia, é que
fala em colisão de princípios e relação de pre-
qualquer decisão judicial, mesmo que não se
cedência condicionada.
fale sobre questões tão complexas, deixa a
O autor aplica em sua tese exemplos do margem de liberdade ao julgar que, até em
Tribunal Constitucional Federal. Um deles nome da interpretação, sempre será necessá-
versa sobre a admissibilidade ou não da rea- ria, a ser feita.
lização de uma audiência oral de um acusado
que, devido à tensão que tais atos provocam, 3. TEORIA E
corre o risco de sofrer um infarto19. Diz que
nesse caso existe uma colisão entre a obriga- MÉTODOS DE
ção de manter o maior grau possível de apli- INTERPRETAÇÃO
cação do direito penal e a obrigação de afetar
o menos possível a vida e a integridade física
DAS NORMAS
do acusado20. E A LÓGICA NA
Postas as obrigações que, se analisadas INTERPRETAÇÃO
em teoria não se conflitam, é de se analisar
E NA APLICAÇÃO
DA NORMA
o caso concreto. Considerou-se que, neste
caso, poderia sofrer um infarto caso fosse
realizado seu interrogatório, considerando
sua condição física e tendo em vista que tal
JURÍDICA.
situação geraria tensão. Portanto, diante das O processo hermenêutico não é compar-
condições do caso (condicionantes) haveria timentado; dá-se de uma só vez. A separa-
de se aplicar a chamada relação de precedên- ção (e classificação) que põe é, notadamente,
cia condicionada, com a consequente formu- didática. Das várias classificações adotadas
lação de uma lei de colisão. pela doutrina no que diz respeito ao tema
A partir desse ponto de vista, é possível dos métodos de interpretação, é de se utili-
traduzir a decisão do Tribunal Constitucional zar a que os divide em: (i) método gramatical,
Federal alemão, que entendeu, então, ser pre- (ii) método lógico, (iii) método histórico, (iv)
cedente o princípio da integridade física do método sistemático, (v) método teleológico e
acusado, frente ao princípio da máxima apli- (vi) método sociológico.

O método gramatical consiste, em buscar


18 LARENZ, K. Metodologia da ciência do direito. Trad. de: José o significado das palavras que formam o texto
Lamego. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989. p. 501-502. da lei (lei é enunciado, o que se pode esque-
19 LARENZ, K. Metodologia da ciência do direito. op.cit., p. 90. cer). A lei é sempre escrita, produto da lin-
20 LARENZ, K. Metodologia da ciência do direito. op.cit, p. 91.

13.
guagem. Assim, para se ter uma interpretação No método sistêmico, parte-se do pressu-
gramatical bem elaborada, é necessário que o posto que o ordenamento jurídico está posto
intérprete utilize os recursos gramaticais que em forma de sistema (como já asseverado em
estão à sua disposição. tópico anterior). Destarte, a análise das regras
e dos princípios deve ser feita diante do todo,
Conhecer a língua pátria e o significado das
e não particularmente. Não raras vezes, a aná-
palavras a fim de buscar o significado da regra
lise de um artigo, feita de forma isolada, pode
e do princípio é o que caracteriza esse método,
levar a uma compreensão absolutamente
que é parte, apenas de um dos momentos inter-
equivocada, o que não se daria se a interpre-
pretativos, e não o único, como queria a Escola
tação fosse sistêmica. A amplitude do método
da Exegese, por exemplo.
sistemático é sua característica fundamental,
O método lógico se refere à ratio legis, dada a possibilidade de uma visão global do
pois a razão da lei pode ajudar a entender seu ordenamento pelo intérprete.
propósito. João Batista Herkenhoff explica
O método teleológico busca o objetivo da
que “a ratio legis consagra, necessariamente,
lei (telos – fim, objetivo), como maneira de
os valores jurídicos dominantes e deve pre-
obter o real sentido da regra e do princípio.
valecer sobre o sentido literal da lei, quando
É preciso saber o motivo da existência da lei,
em oposição a este”21. Depois, alerta para a
a razão de sua existência e, por conseguinte,
necessidade de reformulação de tal método,
qual seu verdadeiro objetivo. Busca-se, em
pelo exame concomitante da ratio legis com a
suma, o real sentido do dispositivo legal pela
occasio legis:
compreensão do objetivo que ela visa atingir.
Por isso, ao lado da ratio legis,
aprofundou-se o exame da occa- No método sociológico o que prevalece é
sio legis, como elemento histórico a análise da sociedade. Parte-se da premissa
capaz de revelar ao intérprete as que todo Direito é voltado a uma dada socie-
condições sociais que deveriam dade. Assim, as regras e os princípios devem
ter influenciado na redação da lei. ser interpretados tendo como base a socie-
O processo lógico, ou racional, dade em que se vive. Nenhuma interpretação,
reformulado, poderá penetrar no
nenhuma decisão judicial terá valor se não
espírito histórico da lei, retirando
daí as razões que a ditaram, sua voltada para o interesse social. O operador
finalidade imediata e os motivos do Direito tem responsabilidade para com
do momento que presidiram à sua sua sociedade. Fora disso, a interpretação
feitura.22 parece inócua.

Pelo método histórico, a interpretação


4. A UNIDADE DA
CONSTITUIÇÃO,
busca o momento histórico da elaboração
legislativa. Como que fazendo um retrato da
sociedade da época, busca-se os valores culti- SUA FORÇA
NORMATIVA E A
vados e as ideias propaladas por dada socie-
dade, num determinado momento histórico.

Todavia, essa análise não pode ser estan- INTERPRETAÇÃO


que, pois a sociedade evolui, seus pensamen- CONFORME A
tos se modificam, bem como sua estrutura.
Somente uma análise contextualizada e, CONSTITUIÇÃO.
depois, atualizada do momento histórico da
O reconhecimento da normatividade dos
elaboração da lei é que pode ser útil ao pro-
textos constitucionais é marcado pelo avanço
cesso hermenêutico.
da teoria constitucional. Vale lembrar que, as
Constituições serviam apenas como instru-
mento de limitação do poder estatal. Interes-
21 HERKENHOFF. J.B. Como aplicar o direito. 6ª ed., ver., ampl. e sante, neste sentido, o debate constitucional
atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 17. entre os modelos de Constituição (jurídica
22 Ibid p. 17.

14.
ou política), mencionado por José Joaquim transformando a potestas em auc-
Gomes canotilho: toritas, mas também impõe dire-
trizes específicas para o Estado,
O debate constitucional em torno apontando o vetor (sentido) de sua
dos dois ‘modelos’ de constituição ação, bem como de sua interação
- a ‘constituição jurídica’ e a ‘cons- com a sociedade. A Constituição
tituição política’- vem demonstrar opera força normativa, vincu-
isto mesmo: a lei fundamental, lando, sempre, positiva ou negati-
entendida apenas como ‘norma vamente, os Poderes Públicos. Os
jurídica’ superior, ‘juridiciza’ o cidadãos têm, hoje, acesso direto
modelo da ‘sociedade constitu- à normatividade constitucional,
cional’, abstraindo dos problemas inclusive para buscar proteção
de ‘legitimação’ e ‘domínio’ dessa contra o arbítrio ou a omissão do
mesma sociedade; a constituição Legislador.24
reconduzida a uma ‘ordem polí-
tica’ ‘politiciza’ o mesmo modelo, De tudo que já expôs, parece claro que a
descurando o problema da ‘legi-
interpretação das regras e princípios deva ser
timação interna’ do direito. A
segunda orientação tem a van- uma interpretação constitucional. A Cons-
tagem de procurar ‘integrar’ o tituição é a base do sistema jurídico e sua
‘direito’ e a ‘política’, enquanto a observância é imperativa. Assim, é possível
primeira se apresenta com maior identificar a interpretação jurídica como inter-
clareza vinculativa e capacidade pretação constitucional. Daí que os princípios
de ‘redução da complexidade do constitucionais devem ser sempre observa-
sistema’. Subjacente aos ‘modelos’
dos, seja na criação das regras, seja na sua
constitucionais está uma ‘ima-
gem’ de sociedade e uma ‘teoria interpretação.
de acção’: a constituição, na senda Para tanto, há princípios que determinam
de uma filosofia iluminista (idea-
o modo de interpretação, até para fins de con-
lista e materialista), tem a ‘função’
de propor um ‘programa racio- cretização e efetivação da matriz constitucio-
nal’ e um ‘plano’ de realização da nal. Daí surgem os chamados para além da
sociedade; a lei fundamental, de observância dos princípios constitucionais
acordo com ‘padrões sistémico- na aplicação do Direito,mas há princípios de
-institucionalistas’, tem a ‘função interpretação.
de garantir’ os princípios jurídicos
ou ‘regras de jogo’ da ‘sociedade Sabe-se que a Constituição merece uma
estabelecida’.23 interpretação sistemática. Não se pode, por-
tanto, interpretar um dispositivo constitucio-
A teoria constitucional, diante desses dois nal de forma isolada, senão em relação ao todo
modelos aparentemente conflitantes, trilhou do texto constitucional, a fim de se manter sua
o caminho do reconhecimento de normativi- unidade, pois não se pode admitir que hou-
dade do texto constitucional e relacionou os vesse contradições entre seus comandos. De
dois âmbitos dos ditos modelos: político e jurí- outro lado, é possível que se tenha conflito
dico; portanto, um documento nem só ligado entre princípios, quando se analisa um caso
ao Estado (político), nem só ligado à sociedade concreto. Isso não significa que está quebrada
(normativo). Neste sentido, aduz Clèmerson a unidade da Constituição. A convivência
Merlin CLÈVE: entre princípios, como já explanado anterior-
As Constituições, agora, são docu- mente, deve ser harmônica e aqui reside a arte
mentos normativos do Estado e da de interpretar, permeada pela Hermenêutica.
sociedade. A Constituição repre- De um lado, por exemplo, pode-se ter o inte-
senta um momento de redefini- resse dos veículos de comunicação em expres-
ção das relações políticas e sociais sar livremente seu pensamento (liberdade de
desenvolvidas no seio de determi-
nada formação social. Ela não ape-
nas regula o exercício do poder,
24 CLÈVE, C. M. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no
direito brasileiro. 2. ed., rev., atual. e aumen. São Paulo: Revista dos Tribunais,
23 CANOTILHO. Constituição dirigente... p. 14. 2000. p. 22.

15.
expressão, liberdade de imprensa) e, de outro, configuração de novas regras, seja na inter-
o interesse do particular em ter sua intimidade pretação do próprio texto da constituição. E
e sua honra protegidas. São interesses igual- para que assim se dê, lança-se mão do princí-
mente protegidos pela Constituição, por meio pio da conformidade funcional, o qual impede
de princípios, que devem conviver harmonio- a interpretação que possa levar a desestrutu-
samente no sistema jurídico constitucional. ração daquilo que a Constituição definiu, em
termos de exercício de poder. A harmonia
Indo além, tem-se que a interpretação
entre as esferas de poder (Executivo, Legisla-
deve buscar a máxima efetividade da Consti-
tivo e Judiciário), bem como, quando se trata
tuição, ou seja, contemplar a sociedade e seus
de Federação, entre seus diferentes níveis
direitos de maneira efetiva, a partir do texto
(Federal, Estadual e Municipal) deve ser man-
constitucional. E aqui temos que os direitos
tida, impedindo-se interpretação dissonante.
fundamentais são o maior alvo da máxima
efetividade constitucional, pois são eles, todos, Por fim, tem-se que os bens juridicamente
baseados na dignidade da pessoa humana, protegidos (assim como os diferentes interes-
princípio fundante do nosso sistema jurídico. ses) devem conviver de forma harmoniosa.
Enfim, não basta que se tenha a vida garan- Não se pode admitir que, no bojo da Consti-
tida, mas, sim, garantia de uma vida digna. tuição, onde não há hierarquia entre as suas
normas, haja preponderância de determinados
A máxima efetividade do texto constitu-
bens sobre outros. Não se afasta, aqui, a supre-
cional caminha ao lado da força normativa
macia do princípio da proteção à dignidade da
da Constituição. Assim, a imposição do texto
pessoa humana, pois fundante. Assim, even-
constitucional, que advém da sua força nor-
tual sacrifício de bem jurídico em prol de outro
mativa, permite que se tenha uma interpre-
bem (ou interesse), deve levar em considera-
tação voltada à sua máxima efetividade. São,
ção a harmonia constitucional, a igualdade
enfim, conceitos que se completam. Konrad
entre as pessoas e, finalmente, o ideal de vida
Hesse, explica que:
digna que a Constituição determina.
A Constituição jurídica logra con-
ferir forma e modificação à reali-
5. APLICAÇÃO DA
LEI NO TEMPO,
dade. Ela logra despertar “a força
que reside na natureza das coisas”,
tornando-a ativa. Ela própria con-
verte-se em força ativa que influi NO ESPAÇO E A
e determina a realidade política
PLURALIDADE
DE ORDENS
e social. Essa força impõe-se de
forma tanto mais efetiva quanto
mais ampla for a convicção sobre
a inviolabilidade da Constituição, JURÍDICAS.
quanto mais forte mostrar-se essa
ELEMENTOS E
MÉTODOS DE
convicção entre os principais res-
ponsáveis pela vida constitucional.
Portanto, a intensidade da força
normativa da Constituição apre- INTERPRETAÇÃO
senta-se, em primeiro plano, como
E INTEGRAÇÃO
JURÍDICA.
uma questão de vontade norma-
tiva, de vontade de Constituição
(Wille zur Verfassung) 25.
Sabe-se que a produção legislativa visa
O sistema constitucional determina a o futuro, não o passado. As leis são criadas,
estrutura de repartição de competências, portanto, para regular os casos que aconte-
levando em consideração a divisão do poder. cerão depois de sua edição. Pode ocorrer, no
Essa estrutura deve ser respeitada, seja na entanto, casos em que se forma uma determi-
nada relação jurídica sob a égide de uma lei
que é revogada por lei mais recente. Pode se
25 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar estar, com isso, diante de um conflito de leis
Ferreira Mendes. Porto Alegre: SAFe, 1991. p.22.

16.
no tempo, pois se precisa saber se a lei nova para aposentadoria, impondo ao trabalhador
regulará ou não as situações que foram cria- maior tempo de trabalho para inatividade,
das sob a legislação anterior. surge a indagação: aplica-se a regra imediata-
mente ou apenas para aqueles que ingressa-
Um dos postulados sobre os quais se
rem no mercado e passarem a contribuir para
assenta o ordenamento jurídico é o da irretro-
o regime de previdência depois da edição da
atividade da lei, pelo qual as leis novas não
lei. A solução encontrada é, pode-se dizer,
se aplicam a relações constituídas anterior-
mitigada, pois se tem a aplicação imediata da
mente ao seu advento. A irretroatividade tem
lei, mesmo aos que já estão em regime de con-
por escopo assegurar a segurança nas relações
tribuição previdenciária, mas com tratamento
jurídicas e a estabilidade do ordenamento. No
abrandado, pelo estabelecimento de regime
entanto, a irretroatividade não é aplicada de
de transição.
maneira absoluta; há casos em que se admite a
retroatividade da lei. A retroatividade da lei é trabalhada de
forma diferente quando se trata de leis penais.
O ordenamento jurídico brasileiro ado-
Leis penais benéficas são aplicadas de maneira
tou a irretroatividade da lei como regra e a
retroativa, a fim de beneficiar o condenado.
retroatividade como exceção, baseando-se no
As leis tributárias também têm tratamento
respeito absoluto ao ato jurídico perfeito, ao
diferenciado quanto a este ponto, por conta
direito adquirido e à coisa julgada (LINDB,
dos princípios próprios que regem este ramo
art. 6º).
do Direito.
Não se permite, então, afastar a coisa jul-
Quanto à aplicação da lei no espaço,
gada, por exemplo, tendo como substrato lei
noções de direito internacional, público e pri-
editada depois de sua configuração. Imagine-
vado, tendo em vista o disposto nos arts. 7º a
-se o caso de alguém que obteve sucesso em
19, da Lei de Introdução às Normas do Direito
demanda judicial, cujo direito era previsto
Brasileiro. Em tais artigos são tratados, funda-
em lei que sofreu modificação depois de
mentalmente, os limites territoriais da aplica-
encerrada a possibilidade de discussão, pelo
ção da lei brasileira e da lei estrangeira.
advento da coisa julgada. Poder-se-ia, caso
a irretroatividade não fosse observada, reto- Em primeiro plano vem o princípio da
mar a discussão do caso, o que levaria à que- territorialidade, em homenagem á soberania
bra da segurança jurídica e, por via de con- estatal, pelo qual se determina que o ordena-
sequência, a estabilidade do ordenamento, mento jurídico de cada estado deve ser apli-
além de derrubar o conceito de coisa julgada, cado respeitando seus limites territoriais. De
que traz em seu cerne a noção de imutabili- outro lado, o princípio da extraterritorialidade
dade da decisão judicial. é possível a aplicação de regras e princípios de
um Estado em outro, de acordo com os princí-
A aplicabilidade imediata da nova lei
pios e convenções internacionais.
deve ser analisada, também, sob o prisma
das relações que se iniciaram sob a vigência Pela extraterritorialidade, algumas pes-
de uma determinada lei, mas sobre ela não se soas não se submetem ao regime jurídico do
consumaram. No caso da redução da maiori- Estado em que se encontram, mas sim ao de
dade civil, trazida pelo Código Civil de 2002, seu país de origem. Portanto, momentane-
dúvida não há que tal regra se aplica a todos amente, as regras e princípios de um Estado
que ainda não tinham chegado à maioridade. passam a integrar a ordem jurídica de outro.
Quer-se deixar claro, com isso, que a regra
De acordo com Lei de Introdução às Nor-
nova não seria aplicada, apenas para os nas-
mas do Direito Brasileiro, em seu art. 7º, “A
cidos após 2002.
lei do país em que for domiciliada a pessoa
Outro exemplo, mais complexo, é o da determina as regras sobre o começo e o fim
aposentaria do trabalhador e as alterações das da personalidade, o nome, a capacidade e os
leis previdenciárias. Quando há mudança da direitos de família.” Assim, o estatuto pessoal,
legislação previdenciária, via de regra que, à conforme descrito no artigo mencionado, se
guisa de modelo, aumenta o limite de idade baseia na lei do domicílio (lex domicilii). Em

17.
alguns, casos, portanto, a lei estrangeira é apli- prevista em lei, de disposição estabelecida
cada no lugar da lei nacional. para casos semelhantes. Não podemos esque-
cer que temos que verificar, primeiramente,
Tomando, por exemplo, o caso de um
que, em relação ao caso analisado, não haja lei
estrangeiro que quer se casar em território
que o regule. Depois, verificar a semelhança
brasileiro. Se ele estiver domiciliado no Bra-
entre o caso em questão e o caso paradigma.
sil, vale a legislação brasileira, nos termos do
Somente depois dessas verificações é possível
§ 1º, do art. 7º, da LINDB: “Realizando-se o
a aplicação analógica de um dispositivo legal.
casamento no Brasil, será aplicada a lei bra-
sileira quanto aos impedimentos dirimentes Os costumes são, em realidade, uma espé-
e às formalidades de celebração.” Agora, se cie de regra não escrita, não legislada, verifi-
o estrangeiro não for domiciliado no Brasil, cáveis por meio de seu uso constante. Os cos-
o ordenamento de seu país de origem preva- tumes, por óbvio, variam de sociedade para
lece. É o caso do impedimento, por exemplo. sociedade. Assim, o que é costume em deter-
Se domiciliado no Brasil, as regras a serem minado lugar, em determinada sociedade,
aplicadas sobre o impedimento ao casamento, pode não ser em outra.
para o estrangeiro, serão as brasileiras. Se caso
não for domiciliado no Brasil, as regras de A equidade, por seu turno, pode ser vista
impedimento serão as de seu país de origem. como o sentido do justo concreto, como afirma
o Prof. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Por isso,
A competência da autoridade judiciária parte da doutrina, o identifica no art. 5º, da
também é regida pela lei do domicílio. Isso Lei de Introdução às Normas do Direito Brasi-
quer dizer que a autoridade judiciária brasi- leiro, quando há a indicação de que o juiz que
leira é competente para julgar o estrangeiro atenda, ao aplicar a lei, os fins sociais a que ela
quando aqui domiciliado, bem como o cum- se destina, adequando-a ao bem comum.
primento de obrigação tiver de se dar em ter-
ritório nacional. Já a expressão “princípios gerais do
Direito”, trazida ao final do art. 4º, da Lei de
Percebe-se, então, que o Direito brasileiro Introdução às Normas do Direito Brasileiro,
adotou a teoria da territorialidade moderada, não faz mais sentido, justamente pelo lugar
pela qual prevalece a territorialidade, mas que os princípios ocupam na contemporâ-
com a existência de regras especiais que deter- nea Teoria do Direito. Antes, eram apenas
minam em quais situações pode ser utilizado elementos de integração do sistema, ou seja,
o direito estrangeiro. verdadeiros “tapa-buracos”; agora, são os
Todavia, ainda que faça um extraordiná- fundamentos do sistema jurídico, tendo papel
rio exercício, o legislador não consegue prever principal na sua configuração.
todas as situações que podem ser abrangidas
pela legislação. Isto porque a sociedade é dinâ- 6. A TEORIA DO
mica, assim como o Direito, por conseguinte.
Assim, vários casos podem chegar ao juiz sem
ARGUMENTO
previsão legal, o que indica a possibilidade de JURÍDICO E
existência de lacunas legais no ordenamento.
A LÓGICA NA
Somando-se isso ao fato de que o juiz não
APLICAÇÃO DA
NORMA JURÍDICA
pode se eximir de proferir decisão, o art. 4o da
Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-
sileiro dispõe sobre meios de integração de
lacunas no sistema brasileiro: “Quando a lei A Teoria do Direito estabelece, eminen-
for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo temente, para fins didáticos, uma divisão no
com a analogia, os costumes e os princípios trabalho do operador do Direito. Num pri-
gerais de direito”. meiro momento, tem-se a criação do disposi-
tivo legal, tarefa a cargo dos Parlamentos, em
Vejamos, então, alguns dos elementos de
regra. Depois, o operador do Direito passa à
integração do ordenamento jurídico. A analo-
interpretação desse dispositivo e, num ato
gia consiste na aplicação a uma hipótese não

18.
final, ao juiz cabe a aplicação do Dirreito. mas jurídicas. Para Kelsen, o juiz
Assim, nos parece que interpretação e aplica- decide a partir de sua discriciona-
ção do Direito estão devidamente separadas, riedade, de seu poder que está res-
paldado pelas competências esta-
em momentos distintos.
tais que lhe são atribuídas 26
Boa parte da doutrina jurídica continua
separada, tratando a aplicação do Direito a Parece claro, portanto, que a neutralidade
partir da ideia de subsunção. Diante disso, do julgador é uma falácia. Neutralidade essa
ter-se-ia a previsão legal das condutas e o traduzida pela não contaminação do pensa-
julgador, diante do caso a decidir, o coloca mento do julgador, pelas experiências que
na “forma” trazida pelo tipo legal. A subsun- vive e sente em seu cotidiano. Exigir do juiz
ção pode ser conceituada, de forma bastante um comportamento neutro, protegido das
simples, como a aplicação da lei ao caso con- influências sociais, é querer dele a postura
creto, mediante o encaixe do caso concreto à própria de alguém que não é humano. O juiz
moldura legal. Nota-se que, procedendo dessa não pode ser dividido em dois: o cidadão e o
forma, o julgador tem reduzido seu espaço de julgador. Ele não é um sujeito desprovido de
discricionariedade técnica, atuando pratica- suas crenças, de seus ideais, de sua experiên-
mente de forma mecânica. cia de vida. É ser humano e, como tal, sujeito
a sentimentos e dissabores, os quais, de uma
A lógica formal, pelo método da dedução, forma ou outra, se refletem na sua atividade.
dá base à subsunção. Na dedução, se parte
do geral para o particular. Por isso se diz que Mesmo diante da crítica tão contundente,
o julgador tem a tarefa de enquadrar o caso grande parte do pensamento jurídico ainda
concreto no molde que a lei traz. No entanto, aposta nesse modelo, como já dito antes. De
não poucas vezes, o caso é maior, mais rico outro lado, em resposta à mecanicidade jurí-
que o modelo estampado na lei. Por isso, uma dica, surgiram outras teorias que indicam
das várias críticas que podem ser lançadas uma saída para a aplicação automática do
sobre a subsunção baseada no método lógico- Direito, abandonando a lógica formal dedu-
-dedutivo está radicada na redução do caso tiva na aplicação do direito. Buscam tais teo-
concreto. O procedimento pela subsunção é rias na argumetação a alternativa para o meca-
reducionista, pois não respeita a plenitude do nicismo da atividade jurídica.
caso e, o que é mais grave, não respeita a sin- O rompimento com o tecnicismo na apli-
gularidade das pessoas nele envolvidas. cação do direito, no sentido da construção
Alysson Leandro Mascaro, ao criticar o de um pensamento jurídico mais atento ao
modelo da aplicação do Direito pela subsun- desenvolvimento social, à dinâmica das situ-
ção lógico-dedutiva, assevera que ações vividas em sociedade, indica a necessi-
dade de se estabelecer algumas premissas de
O modelo tecnicista da subsunção
análise. A primeira se liga ao fato de que o
serve como uma máscara ideoló-
gica que tenta dizer que o direito
operador do direito não é neutro, como já dito.
é uma instância social isolada da Soma-se a essa premissa, a decisão judicial, ou
realidade, descontaminada dos seja, o exercício de poder. E aqui, não se pode
interesses concretos. Trata-se de olvidar de Foucault, que sustenta serem as
uma mentira, porque o direito relações sociais relações de poder. As relações
está mergulhado nessa realidade e travadas em família que, segundo Foucault,
só surgiu por causa dela, de seus
é uma das mais envolventes e castradoras, as
interesses e de suas necessidades.
Até mesmo Hans Kelsen, na Teoria
relações de amizade, as relações profissionais,
Pura do Direito, a quem se imputa todas, enfim, são lastreadas no exercício de
a tentativa de construir um dos poder. Daí é que se pode conceituar jurisdi-
mais técnicos e insípidos modelos ção como o poder de dizer o direito no caso
teóricos de direito positivista, não concreto. Jurisdição é poder! Na repartição do
há de dizer que a decisão jurídica
seja um mero ato mecânico direta-
mente extraído, pelo juiz, das nor- 26 MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao estudo do direito. 4ª
Ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 180.

19.
Poder Estatal, coube ao Judiciário a resolução conteúdo era permitido, em nome da comple-
de conflitos que lhes são trazidos pelas partes. tude do ordemamento. As lacunas ditas ide-
ológicas deveriam ser combatidas e a decisão
Depois, estabelece-se outra premissa de
que não aplicasse a lei, sob o argumento de
raciocínio: o uso da linguagem. O ser humano
sua invalidade não pelo aspecto formal, deve-
se comunica por meio da linguagem, escrita
ria ser rechaçada e outra posta em seu lugar.
ou oral. Justamente por ser produto da ativi-
dade humana, o direito igualmente se mani- Por conta dessa mudança de pensamento,
festa por meio da linguagem, uma vez que rompe-se com a ideia de que o direito se estru-
os procedimentos judiciais são verbalizados, tura a partir de procedimentos racionais, para
sejam escritos ou orais. A comunicação jurí- se concluir, tal como fez Perelmann, a estru-
dica, em suma, se dá por meio da linguagem. tura do direito se forma sob procedimentos
Partindo-se dessas premissas, a atividade razoáveis. Os operadores do direito se expres-
judicial se caracteriza pelo exercício de poder sam por argumentos próprios, numa estru-
na solução do caso concreto, cujo núcleo está tura de pensamento própria, e não universal.
na articulação da linguagem. Isto ocorre pelo fato de o caso a ser solucio-
nado é, em verdade, particular em relação aos
Sabe-se, todavia, que em democracia, todo
demais. A lógica jurídica deixa de ser formal-
poder deve ser controlado, para que dele não
-dedutiva, para se tornar a lógica do razoável.
se faça uso arbitrário e, sendo a atividade judi-
cial exercício de poder, o controle das deci- A mera subsunção, centrada no raciocínio
sões judiciais é feito pelas instâncias que se lógico, cede lugar à argumentação, na pers-
sobrepõem, tendo por base a fundamentação. pectiva da dialética, do pensamento constru-
Assim, a argumentação ganha relevo, quando ído pelos debates, pela apresentação das teses,
do juiz se requer um fundamento para deci- contrapostas pelas antíteses. Do debate entre
dir, pois cabe-lhe convencer a sociedade (e as teses e antítese temos a síntese, o resultado,
instâncias superiores de controle) da correção absolutamente lastreado na argumentação.
da sua decisão.
Muitos explicam que o raciocínio dia-
A argumentação, entendida como base lético tem como pedra de toque a tópica,
da fundamentação, é o que se exige do julga- pensada desde Aristóteles, cuja explicação
dor, para que não se tenha uma decisão sem encontra substrato nos topoi, ou seja, em luga-
o devido embasamento, afastando-se, assim, res-comuns, de aceitação majoritária, a partir
a arbitrariedade e que seja mais do que uma do convencimento. Assim, a tópica aristótelica
aplicação mecânica da lei ao caso concreto, se apresenta como resposta à frieza e à falta
dada a riqueza dos fatos ocorridos em socie- de compromisso da estrutura jurídica lógico-
dade. Assim, tendo por base o ordenamento -formal. Salienta, com propriedade, Alysson
jurídico e o caso a ser decidido, o julgador pro- Leandro Mascaro
cede à análise da situação e justifica (saindo da
O reconhecimento da argumenta-
mecanicidade, portanto) sua decisão. ção no fenômeno jurídico moderno
como uma lógica tópica aristotélica
A fim de afastar a aplicação do direito
demonstra que o direito não é um
pela lógica formal-dedutiva, que permeia o mero automatismo mecânico de
pensamento jurídico desde há muito, princi- aplicação de normas a casos con-
palmente pela forte influência do pensamento cretos. Não é uma estrutura formal
positivista, foi-se à tópica como solução. Cabe objetivamente afastada das contra-
aqui lembrar que a aplicação lógico-dedutiva dições da sociedade, mas, antes,
do direito lastreou muitas barbaridades, tudo surge delas e se vale de sua ideo-
em nome da validade formal da lei. Regimes logia comum como meio de sua
propagação. O direito se manifesta
de exceção se estabeleceram sob o manto da
como poder, e sua argumentação
aplicação mecânica do direito, que não possi- não é distinta de sua origem nem
bilitava a discussão do conteúdo das leis. Não de seus objetivos: é uma argumen-
se podia atacar a lei, a não ser pelo seu aspecto tação tópica no sentido de que seus
formal; nenhum movimento em relação ao seu procedimentos buscam alcançar

20.
uma razoabilidade para sua impo- vai além de seu universo específico (norma-
sição circunstancial ou estrutural. tivo), pois necessariamente está inserido em
O poder se esconde, mostra-se, um determinado contexto social e com ele se
afirma-se e se legitima por detrás
relaciona, sofrendo sempre transformações
desse senso comum. 27:
determinadas pelo ambiente no qual se situa.
O alemão Theodor Viehweg aparece como Nesta perspectiva, assevera Aldacy Rachid
o precursor do pensamento tópico no direito Coutinho:
contemporâneo, com a obra intitulada Tópica Partindo do pressuposto de que
e Jusrisprudência. No Brasil um dos autores direito é imprescindível a toda e
que melhor contribui para os estudos da argu- qualquer sociedade — ubi ius, ibi
mentação tópica é Tercio Sampaio Ferraz Jr, societas— , surgiria então uma
ordem jurídica no seio da socie-
apontando algumas caracteríscas do pensa-
dade expressa por meio de regras.
mento tópico: Enquanto tal, só existe e só tem
Como técnica de pensamento, a razão de ser, eis que inserida em
tópica (material e formal) leva a um contexto social e, portanto,
argumentação judicial a um jogo dimensionada para o homem. Des-
eminentemente assistemático, em tarte, a causa principal e última do
que se tem observado ausência fenômeno jurídico é e sempre será
de rigor lógico, impossibilidade o homem inserido em uma socie-
de redução das decisões a silogis- dade. (...) O direito deve ser, antes
mos, etc. Ressalta-se, ao contrário, de mais nada, um instrumento
o uso abundante das distinções, hábil a possibilitar a realização do
das redefinições de velhos concei- homem.29
tos, das analogias, das interpreta-
ções expensivas, das retorsões, das O fenômeno jurídico, destarte, não se
ironias, da exploração técnica das limita apenas às regras jurídicas, mas, sim,
ambiguidades, das vaguezas, das envolve a compreensão e o trabalho com
presunções, tudo conforme a boa vários outros fenômenos, justamente porque
retórica .28
gerado no seio social, bem como nele inserido.
Se, ao contrário, o Direito fosse analisado fora
Em suma, a tópica tem papel fundamen-
de seu contexto, num espaço independente,
tal na mudança paradigmática da hermenêu-
não teria ele a capacidade de assimilar os
tica jurídica, pois muda o eixo de análise do
anseios sociais, o que o faria perder seu sen-
caso, dando maior relevência a ele do que ao
tido, porque lhe faltaria a sintonia com a socie-
abstratamente tido na lei.
dade para qual se dirige.

7. CULTURA E Tudo isto faz com que a dimensão jurídica

LINGUAGEM NA ultrapasse os limites do ordenamento, visto


como simples conjunto de regras aptas a regu-
TRADUÇÃO E lar o convívio social, o que faz surgir a ideia

INTERPRETAÇÃO do estudo do Direito pelo prisma da transdis-

DO DIREITO
ciplinaridade, a qual ganha relevo nos estudos
de Michel Mialle:
É preciso procurar para lá da
Primeiramente, ao se abordar a questão
pluridisciplinaridade; na direção
de se pensar nas diversas culturas e nas diver- daquilo que eu chamarei trans-
sas linguagens para se entender os diversos disciplinaridade, quer dizer, a
Direitos (diversos ordenamentos jurídicos) ultrapassagem das fronteiras
deve-se lembrar de que o fenômeno jurídico atuais das disciplinas. Esta ultra-
passagem não significa que não
existam objectos científicos legiti-
27 MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao estudo do direito. op. mando investigações autónomas,
cit., p. 188.
28 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito:
técnica, decisão, dominação. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 306. 29 RACHID COUTINHO. op. cit., p.10.

21.
mas estes não têm existência senão algo vale, tanto no sentido que tem valor ou
num campo científico único que no sentido de que tem validez ou validade.
chamaremos, na esteira de alguns,
‘o continente da história’. Ora o Hans Kelsen expõe seu posto de vista
que eu me proponho mostrar que sobre a questão dos valores no universo jurí-
não é só direito e economia, mas dico nestes termos:
também política e sociologia, per-
tencem a um mesmo ‘continente’, (...) a afirmação de que o Direito é,
estão dependentes da mesma teo- por sua essência, moral, não signi-
ria, a da história. É que direito e fica que ele tenha um determinado
economia podem ser reportados conteúdo, mas que ele é norma e
ao mesmo sistema de referências uma norma social que estabelece,
científicas. Para admitir esta nova com o caráter de devida (como
perspectiva é necessário abando- devendo-ser), uma determinada
nar o mito da divisão natural do conduta humana. Então, neste sen-
saber. Este mito não é de papel: é tido relativo, todo o Direito tem
um obstáculo, na medida em que caráter moral, todo o Direito cons-
é preciso forçá-lo, a fim de se con- titui um valor moral (relativo). Isto,
seguir obter os meios de traçar um porém, quer dizer: a questão das
caminho científico.30 relações entre o Direito e a Moral
não é uma questão sobre o conte-
Vai-se além, então, e busca-se na socie- údo do Direito, mas uma questão
sobre a sua forma. Não se poderá
dade, na qual, por óbvio, estão presentes
então dizer, como por vezes se diz,
tantos outros fenômenos sociais, a contempo- que o Direito não é apenas norma
raneidade do fenômeno jurídico31. Portanto, (ou comando), mas também cons-
parece claro que o fenômeno jurídico depende titui ou corporiza um valor. Uma
de seu tempo, de sua história, de seu espaço e, tal afirmação só tem sentido pres-
também, da escolha, pela sociedade, dos valo- supondo-se um valor divino abso-
res que o vão nortear, valores estes que dão o luto. Com efeito, o Direito consti-
tui um valor precisamente pelo
contorno do pacto social fundante (HOBBES)
fato de ser norma: constitui o valor
da ordem jurídica legítima. Sobre tais valores, jurídico que, ao mesmo tempo,
é necessário destacar que se pode dizer que é um valor moral (relativo). Ora,
com isto mais não se diz senão que
Direito é norma.32
30 MIALLE, M. Introdução crítica ao direito. Trad. de: Ana Prata. 2. ed.
Lisboa: Estampa, 1989. p. 61-62. Igualmente importantes as observações
de Agostinho Ramalho Marques Neto sobre a necessidade de se ter um Por outro lado, pelas palavras de Dome-
estudo abrangente e integrado das Ciências Sociais, realçando que com tais nico Corradini Broussard, verifica-se a impor-
propostas não se está “negando autonomia à ciência do Direito, mas apenas
situando-a dentro do complexo de ciências sociais ao qual ela pertence e tância do valor para a busca de um Direito não
do qual, por isso mesmo, não pode ser considerada como algo estanque ou simplesmente jurídico composto de um orde-
apartado, pois autonomia não é sinônimo de isolamento.” (MARQUES NETO,
namento válido pela perspectiva da validade
A. R. A ciência do direito: conceito, objeto, método. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000. p. 189.). Também nesta direção, e indicando a necessi- ou validez, mas de um Direito justo:
dade de se desmitificar a pureza do direito, aponta Miranda Coutinho: “Para
trabalhar com uma base diversificada, mister se faz recepcionar o discurso O jurista, depois da primeira per-
alheio. A pureza do pensar o objeto é utópica e, com o tempo, mostrou-se gunta, tem de passar à segunda, ou
perniciosa porque instrumento de manipulação, em razão de estimular a pro- seja, esta norma que tem validez,
dução de mitos. (...) Dar uma estrutura pura ao direto equivale a mentir para que vale pelo direito, tem também
si mesmo. O grande mal, no entanto, é lutar contra a mudança, insistindo,
valor pela ética? Jus quia jussum.
como faz a maioria dos nossos, em continuar na tentativa de enganar-se,
o que não podemos acreditar ser possível, com dogmas; e mitos; e muita O direito é direito porque determi-
retórica.” (MIRANDA COUTINHO. J. N. de. Por um direito da libertação ou uma nado e imposto autoritariamente.
libertação do direito. Revista do Instituto dos Advogados do Paraná, n. 16, Auctoritas facit legem — eis, o
1990. p. 134-135.). que se poderia dizer referindo-se à
31 “O objeto principal da ciência do Direito, isto é, o objeto real para validez. Jus quia justum. O direito
cujo estudo ela se volta prioritariamente, é o fenômeno jurídico, que se trans- é direito porque é justo.
forma no interior do espaço-tempo social por diferenciação das relações
humanas, tal qual acontece com os demais fenômenos sociais específicos:
políticos, econômicos, morais, artísticos, religiosos etc. O fenômeno jurídico,
embora específico, jamais se encontra em estado puro na sociedade, visto
que existe mesclado com fenômenos de outras naturezas, sendo consequen- 32 KELSEN, H. Teoria pura do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
temente não dimensional.” (MARQUES NETO. ibid. p. 187.). 1987. p. 71

22.
Justitia facit legem — eis, o que se poderia quer considerada em si mesma (o
dizer referindo-se ao valor. Portanto, eis o número de KANT), quer através
fundamento mais profundo, o fundamento de suas manifestações concretas (o
fenômeno). Já o objeto de conhe-
do direito, eis o “philosophisher ground”
cimento é o objeto tal com (sic) o
ou “ur-prinzip”, o fundamento filosófico, conhecemos, isto é, o objeto cons-
original, a priori, do direito: a ética.33 truído, sobre o qual se estabelecem
os processos cognitivos (filosófi-
Portanto, quando se está a falar de valo-
cos, científicos, artísticos etc.). Por
res, o que se quer dizer é algo relacionado à isso, o ato de conhecer é necessa-
moral, à ética, e não ao jurídico, sob o prisma riamente um ato de construir, ou
de validade. Não fosse assim, poder-se-ia pen- melhor dizendo, de reconstruir, de
sar que toda a ordem posta (ou imposta) teria aprimorar os conhecimentos ante-
validade (do ponto de vista jurídico). Ou seja: riores. (...) É por isso que os epis-
ordem posta como ordem válida. Não é isso temólogos dialéticos costumam
sustentar que o dado não é dado
que se quer. Até porque pensar Direito como
é construído. E justamente porque
algo imposto, algo que venha de cima para construído, é essencialmente retifi-
baixo, do Estado para o cidadão, o qual se cável. Todas as verdades, inclusive
vê, às vezes, obrigado a obedecer aos ditames as científicas, são aproximadas e
de uma ordem que não reconhece, é negar a relativas; são parcialmente ver-
sua legitimidade. Quer-se, então, uma ordem dade e parcialmente erro36.
válida do ponto de vista do valor, dos valo-
res sociais por ela representados; quer-se uma Agostinho Ramalho Marques Neto, ao
ordem legítima, onde o povo nela se reco- abordar a questão do fenômeno jurídico, enfa-
nheça como cidadão. tiza sua construção, indicando, assim, que se
trabalha na ciência do Direito com um objeto
Diante disso, fica claro que o Direito, em construído; e não com um objeto dado. Por-
nenhuma hipótese, pode estar distante da tanto, não se trabalha com o objeto real, mas
sociedade, posto ser o homem nela inserido com o que se conhece de tal objeto: “O fenô-
sua razão de existência, sem falar na possibi- meno jurídico é a matéria-prima com que tra-
lidade de se ter um ordenamento sem efetivi- balha o cientista do Direito. Mas o objeto de
dade34. estudo deste, como o de qualquer outro cien-
Dessa relação dialética constante, entre tista, nunca é o fato bruto, a ser simplesmente
uma dada sociedade e seu ordenamento jurí- apreendido, e sim o objeto do conhecimento,
dico é que se vai construir o fenômeno jurí- construído em função do sistema teórico da
dico, objeto da ciência do Direito35. Neste ciência do Direito.”37
ponto, sobre a construção do objeto do conhe- Essa constatação de que o fenômeno
cimento, é importante citar Agostinho Rama- jurídico é construído em sociedade e nela se
lho Marques Neto: ambienta, gera reflexos no campo da aplicação
O objeto real é a coisa indepen- do Direito, a qual, destarte, só pode ser feita
dentemente de nosso pensamento, com uma oxigenação entre o ordenamento
jurídico e a sociedade que o forjou e na qual se
insere. Isto impede que se trabalhe o universo
33 CORRADINI BROUSSARD, D. Os direitos fundamentais e o primeiro jurídico como se fosse algo isolado, como se
dever fundamental. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, n. 30, existisse em um lugar distante e inacessível
a. 30, p. 13, 1998. p. 16.
pelo homem, enquanto ser transformador,
34 “A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desem-
penho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no sujeito de sua própria história, que também
mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza aproximação, tão íntima é marcada pela organização jurídica de sua
quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.”
(BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas nor-
sociedade. Por tudo isto é que a aplicação do
mas: limites e possibilidades da constituição brasileira. 2.ed.. Rio de Janeiro: Direito não se dá, nunca, de maneira neutra
Renovar, 1993. p.79.). (como pretende o positivismo jurídico); ao
35 Por não se tratar especificamente deste assunto este trabalho,
sobre ciência do Direito, vide, dentre outros, Gaston BACHELARD (in O novo
espírito científico. Lisboa: edições 70, 1986.), e , A. R. A ciência do direito: 36 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. op. cit., p.14-15.
conceito, objeto, método. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 37 ibid., p. 187.

23.
contrário, é sempre marcada pela ideologia de Vale lembrar ainda, que a luta pela cons-
quem o aplica. trução de um Direito justo — com base na
noção de justiça social —, que venha a reparar
Por um determinado aspecto, o ser
desigualdades sociais, é tarefa primeira dos
humano não pode ser tido como duas partes
operadores jurídicos comprometidos com o
completamente distintas (e aqui não se nega
fenômeno jurídico em sua completude. Não
a teoria da contrariedade de Aristóteles), na
se pode olvidar, nunca, que todos os fenôme-
medida em que se exige de um juiz, humano
nos sociais que estão atrelados ao Direito, dele
como nós, ser aquilo que ele não é quando se
fazem parte indissociável, sendo imprescindí-
coloca como profissional, como magistrado e,
vel a sensibilidade social para a construção, a
portanto, como julgador. Ele é um só. Carrega
partir de uma aplicação comprometida com as
consigo todas as suas angústias, emoções, seus
necessidades sociais, de uma sociedade mais
pensamentos, e principalmente suas ideias, ou
justa. E aqui, mais uma vez, lança-se mão do
para ser mais preciso, seus ideais.38
pensamento de Roberto Lyra Filho:
Assim, como ser humano, o juiz deve ter a O Direito, em resumo, se apre-
exata medida de sua atuação, de seu papel na senta como positivação da liber-
sociedade, guardando, então, a correspondên- dade conscientizada e conquistada
cia de suas ações com os reflexos sociais que nas lutas sociais e formula prin-
possam delas advir, ou seja, deve ter consciên- cípios supremos da Justiça Social
cia da repercussão social de seus atos. Diante que nelas se desvenda. Por isso, é
importante não confundi-lo com as
disso, o cuidado com a incidência ideológica
normas em que venha a ser vazado,
na aplicação do Direito se faz necessária, com nenhuma das séries contradi-
sendo útil a observação de Plauto Faraco de tórias de normas que aparecem
Azevedo: na dialética social. Estas últimas
pretendem concretizar o Direito,
Podendo a incidência permear
realizar a Justiça mesma, a Justiça
negativamente a atividade de
Social atualizada na História, e a
qualquer dos Poderes do Estado,
‘justiça’ de classes e grupos domi-
suas consequências são variáveis,
nadores, cuja ilegitimidade então
segundo o desvirtuamento subje-
desvirtua o ‘direito’ que invocam.40
tivo por ela produzido nas situa-
ções reais. Precisa, pois, o jurista ter
consciência de sua virtual atuação, Não é demais relembrar que se não está a
devendo adestrar-se em discerni- falar do “ideal de justiça” dos jusnaturalistas,
-la. Para isto, não pode pretender até porque se não tem uma justiça, mas sim
ser tão só um técnico a serviço da as justiças de cada povo. Parece claro, que a
ordem estabelecida, indiferente justiça em países como o Brasil não é a mesma
ao processo histórico, conforme de países anglo-saxões ou europeus continen-
o papel que lhe assinala o positi-
tais, tudo porque as realidades são diversas.
vismo jurídico.39
Justiça não é e não pode ser a mesma em qual-
quer lugar ou em todos os lugares. A tentativa
de resposta para uma pergunta sobre o que
38 Quando trabalha a questão do papel do juiz no processo penal vem a ser justiça certamente não será a mesma
brasileiro, notadamente na passagem que discorre sobre democracia pro- em todos os países, pois os anseios sociais são
cessual, assevera Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “Em outras palavras:
diferentes. Se os anseios são diferentes, dife-
democracia — a começar pela a processual — exige que os sujeitos
se assumam ideologicamente. Por esta razão é que se não exige que o rentes também devem ser os Direitos dos paí-
legislador, e de consequência o juiz, seja tomado completamente por neu- ses. Isto só vem a demonstrar que os valores
tro, mas que procure, à vista dos resultados práticos do direito, assumir um
compromisso efetivo com as reais aspirações das bases sociais. Exige-se
não podem ser afastados do Direito.
não mais a neutralidade, mas a clara assunção de uma postura ideológica,
isto é, que sejam retiradas as máscaras hipócritas dos discursos neutrais, o Tudo isto encontra respaldo nos estudos
que começa pelo domínio da dogmática, apreendida e construída na base de Enrique Dussel, a partir da vontade de
da transdisciplinaridade.” (MIRANDA COUTINHO, J. N. de. In: O papel do novo estabelecer uma filosofia para os latino-ameri-
juiz no processo penal. In: ____________ (Coord.). Crítica à teoria geral
do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 47-48.).
39 AZEVEDO. P. F. de. Método e hermenêutica material no direito. Porto 40 LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 17. ed. Reimpressão. São
Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 64. Paulo: Brasiliense, 1999. p. 88.

24.
canos, que, como é lógico, não se confundem decisão judicial, necessita de fundamentação.
com os demais povos do mundo, por suas par- E a fundamentação se baseia na argumenta-
ticularidades determinantes: ção. A argumentação jurídica é que oferece ao
legislador e ao aplicador do Direito, o motivo
A descoberta miséria do meu
povo, percebida desde a minha para a fundamentação. Argumenta-se para
infância no campo quase desértico, convencer. E a argumentação lastreia a funda-
levou-me à Europa e a Israel. Iá, mentação.
assim, descobrindo, como frisava
o filósofo mexicano Leopoldo Zea, Tome-se, por exemplo, a contratação de
em sua obra América en la histo- servidor para ocupar cargo de confiança. Se
ria (1957), que a América Latina se este cargo é de admissão e demissão livre
encontra fora da história. Era pre- do administrador, pode-se dizer que se está
ciso encontrar um lugar para ela na diante de uma situação onde se trabalha com
História Mundial, partindo da sua juízo de oportunidade, dado o caráter emi-
pobreza, e, assim, descobrir a sua
nentemente subjetivo da decisão. É inimagi-
realidade oculta.41
nável, diante dessa colocação, que o juiz possa
Mais adiante, o autor confirma a necessi- trabalhar (interpretar e aplicar o Direito) for-
dade de um estudo para o povo latino-ame- mulando juízo de oportunidade para a reso-
ricano: lução do caso, pois a ele é imposta a necessi-
dade de fundamentação. No caso da admissão
Em 1965, em Münster, eu escrevia e demissão de servidores comissionados, ao
um livro sobre história latino-ame-
administrador público não é requerida qual-
ricana (pois na Sorbonne eu já tra-
balhara uma tese sobre este tema, quer fundamentação sobre sua decisão; ele
orientada por Robert Ricard), edi- admite e demite quem quiser, pautado pela
tado em 1967 na ocasião em que oportunidade e conveniência da decisão.
regressei à América Latina (nesse
mesmo ano, após dez anos passa- Portanto, parece evidente que se não possa
dos na Europa), no qual eu dizia: trabalhar com o conceito de discricionarie-
“Toda civilização possui um sen- dade, tal como extraído do Direito Adminis-
tido, embora este sentido esteja trativo. Tome-se, aqui, por exemplo, Jacinto
disperso, inconsciente e seja difícil Nelson de Miranda Coutinho:
de captar. Todo este sistema está
organizado em torno de um núcleo Não tem sentido pensar-se,
(noyau) ético-místico que estru- efetivamente, nela, como é ou
tura os conteúdos intencionais foi estabelecida para o Direito
finais de um grupo e que poderá Administrativo, desde que o
ser descoberto através da herme- tema veio emprestado —- e veio
nêutica dos mitos fundamentais da —, de lá. A discricionariedade
comunidade.”42 administrativa — e nem citaria os
autores nacionais —, que nasceu
no Direito Administrativo francês
8. A ARGUMENTAÇÃO e que foi imediatamente estendida

JURÍDICA NA para o Direito continental,


veio para nós com a ideia não
PRODUCÃO E de que fosse um dos atos da
administração dos quais o juiz
APLICAÇÃO DA não podia tomar conhecimento

NORMA E DA LEI (mesmo porque o Conselho de


Estado logo imiscuiu-se nesses
atos administrativos em função
Toda atividade jurídica, seja no que tange de vício de poder, (détournement
à produção legislativa, seja no que tange à de pouvoir), mas porque a
discricionariedade administrativa
é levada em consideração
41 DUSSEL, E. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. em função de um juízo de
Trad. de: Georges I. Maissiat. São Paulo: Paulus, 1995. p. 14. oportunidade e conveniência,
42 op. cit., p. 16. qualquer coisa inimaginável

25.
para ramos do Direito atados solução exata45 —-, se posiciona Eros Roberto
diretamente à legalidade, como Grau:
aqueles da área criminal43.
A interpretação (interpretação/
Assim, diante da impossibilidade de se jul- aplicação), consubstanciando pru-
dência, que não conhece o exato,
gar com base em juízo de oportunidade e con-
porém apenas o correto, supõe a
veniência, outra pergunta vem à baila: o juiz faculdade, do intérprete autên-
não é livre para julgar? A lei, então, amarraria tico, de escolher uma, entre várias
totalmente o juiz na interpretação e na decor- interpretações possíveis, em cada
rente aplicação do Direito (dura lex, sed lex)? caso, de modo que essa escolha
seja apresentada como adequada
Primeiramente, quando se aborda a ques- - sempre, em cada caso, inexiste
tão da interpretação, é de se trabalhar com a uma interpretação verdadeira
doutrina que está adiante da caracterização (única correta).46
da verdade como escopo do processo. Rom-
pendo-se com a perspectiva da busca da ver- A partir disso, Eros Roberto Grau faz uma
dade no processo, chega-se à conclusão que, o pertinente distinção entre discricionariedade
que se busca, pela impossibilidade de se dar e interpretação do Direito, por ser esta ligada
conta do todo, é a certeza —- a qual implica à formulação de juízo de legalidade e aquela
numa escolha —-e não a verdade, a qual deter- à formulação de juízo de oportunidade. Asse-
minaria a necessidade de uma única decisão: vera, então Roberto Grau, que:
a exata. Assim, afirma Carnelutti, sobre o con- Interpretar é formular juízos de
ceito de certeza que: legalidade. A discricionariedade,
não será demasiada esta repetição,
No princípio, na polêmica com
é exercitada em campo onde se
Calamandrei, provocada pelo
formulam juízos de oportunidade,
conhecidíssimo e belíssimo livro
exclusivamente, porém, quando
do filósofo Lopez de Oñade, sobre-
uma norma jurídica tenha atri-
tudo pela contraposição entre cer-
buído à autoridade pública a sua
teza e justiça, o meu conceito de
formulação. O que se tem erro-
certeza não estava ainda formado,
neamente denominado de discri-
para não dizer grosseiro ou rudi-
cionariedade judicial é poder de
mentar. Já naquela época tinha
criação de norma jurídica que o
intuído a virtude das palavras; mas
intérprete autêntico exercita for-
a evidente derivação de “certeza”
mulando juízos de legalidade (não
do latim cernere, uma vez que tra-
de oportunidade). A distinção
duzi cernere como ver, enganou-
entre ambos esses juízos — repito-
-me. Necessitaram anos, muitos
-o, ainda — encontra-se em que o
anos, até os últimos, isto é, até que
juízo de oportunidade comporta
escrevi Diritto e Processo, até que
uma opção entre indiferentes jurí-
me acolhesse o significado origi-
dicos, procedida subjetivamente
nário de cernere, não aquele de
pelo agente; o juízo de legalidade é
ver, mas o de escolher. A certeza,
atuação, embora desenvolvida no
escreveria então, implica em uma
campo da prudência, que o intér-
escolha; e isso, provavelmente, foi
prete autêntico desenvolve atado,
o passo decisivo para compreen-
retido, pelo texto.47
der, não só o verdadeiro valor do
seu conceito, mas também o drama
do processo.”44 Pode-se concluir, então, pelo pensamento
de Eros Roberto Grau, que “(...) o que a dou-
No mesmo sentido, sob o prisma da esco-
lha pelo juiz, de uma decisão correta dentre
várias — pela impossibilidade de ser ter uma 45 Pois, somente seria exata a solução a partir da possibilidade de se
encontrar a verdade dos fatos que constituem o caso a ser resolvido, o que
se demonstra, como já dito, impossível.
43 MIRANDA COUTINHO. Discrição judicial... p.148. 46 GRAU, E. R. O direito posto e o direito pressuposto. 3. ed. São
44 CARNELUTTI, F. Verdade, dúvida e certeza. Trad. de: Eduardo Paulo: Malheiros, 2000. p. 155.
Cambi. Folha Acadêmica do Centro Acadêmico Hugo Simas, Curitiba, n. 116. 47 Ibidem.. p. 155.

26.
trina tradicional concebe como sendo discri- A discricionariedade, vimos,
cionariedade é a interpretação.”48 expressa-se na formulação de juí-
zos de oportunidade, importando
Assim, a partir desse ponto de vista, com eleição entre indiferentes jurídi-
relação ao ato de interpretação como criador cos, à margem, pois, da legali-
de norma para o caso concreto, parece que dade. Logo, no Estado de Direito,
a questão da discricionariedade encontraria qualquer agente público somente
deterá competência para a prática
resposta na impossibilidade de se julgar com
de atos discricionários, isto é, exer-
base em juízo de oportunidade e conveniên- citando as margens de liberdade
cia. Julgar, então, não se basearia na oportuni- de atuação fora dos quadrantes da
dade da decisão, o que afastaria a hipótese da legalidade, quando a norma jurí-
possibilidade do uso do poder discricionário dica válida a ele atribuir a formu-
por parte do juiz, mas sim na formulação de lação de juízos de oportunidade.
juízos de legalidade. Portanto, diante dessas Fora dessa hipótese, qualquer
agente público estará jungido,
considerações, o juiz ao escolher uma dentre
subordinado, à legalidade. Inclu-
várias soluções possíveis para o caso, deve- sive quando lhe incumba o dever-
ria assim proceder diante de uma margem de -poder de interpretar/aplicar
liberdade a ele conferida, onde o limite seria texto ou textos normativos que
o texto a ser interpretado, pela impossibili- veiculem “conceitos jurídicos
dade de subvertê-lo. Ou seja, essa limitação de indeterminados”.50
liberdade de agir seria a medida de salvação
da segurança jurídica. No entanto, mais uma Diante disso, não seria possível falar em
vez, várias perguntas vêm à tona: qual segu- discricionariedade judicial, seja em que caso
rança jurídica? Segurança jurídica para quem? for. Pode-se concluir que a discricionariedade
vista como formulação de juízo de oportuni-
Para além dos casos que envolvem a inter- dade e conveniência, não se aplicaria à ativi-
pretação da lei em sentido amplo, é de frisar dade jurisdicional, pela impossibilidade do
também que, não raras vezes, o intérprete está julgador interpretar regras ou princípios ou,
diante da necessidade de caracterizar a veri- no caso de expressões abertas valorá-las, sem
ficação ou não de determinado elemento per- que procedesse sob o prisma da legalidade.
tencente ao conteúdo do texto que interpreta.
Eros Roberto Grau também trata da esco-
Eros Roberto Grau, ao colocar em discus- lha entre princípios, ou seja, na escolha de
são os chamados conceitos jurídicos indeter- qual dos princípios, entre opostos, deve ser
minados, afirma que em realidade eles não aplicado ao caso concreto. Quando se vai atri-
existem, mas sim uma indeterminação dos buir peso maior a um deles, ainda assim, o jul-
termos que os expressam: “Assim, a reitera- gador não exerceria discricionariedade. Assim
damente referida ‘indeterminação de concei- afirma o autor:
tos’ não é deles, mas sim dos termos que os
Ainda quando o intérprete
expressam. Ainda que o termo de um conceito
autêntico cogite dos princípios,
seja indeterminado, o conceito é signo de uma ao atribuir peso maior a um deles
significação determinada. E de apenas uma — e não a outro —, ainda, então,
significação.”49 não exercita discricionariedade.
O momento dessa atribuição
O referido autor, raciocinando sempre é extremamente rico por
sobre o prisma da discricionariedade como que nele, quando se esteja a
liberdade de escolha que foge à legalidade, perseguir a definição de uma
assevera não ser possível com ela trabalhar, das soluções corretas, no elenco
ainda que se cogite de termos indeterminados. das possíveis soluções corretas
Aduz, neste passo, que: a que a interpretação do direito
pode conduzir, pondera-se o
direito, todo ele (e a Constituição
inteira), como totalidade.
48 ibid., p. 158.
49 GRAU, E. R. O direito posto e o direito pressuposto.. op. cit. p., 148. 50 ibid., p. 152-153.

27.
Variáveis múltiplas, de fato, as abre caminho para o desassossego
circunstâncias peculiares do caso, social e a insegurança jurídica52.
e jurídicas, linguísticas, sistêmicas
e funcionais, são descortinadas. E, Por seu turno, Aldacy Rachid Couti-
paradoxalmente, é precisamente o nho discorre acerca da noção de prejuízo, no
fato de o intérprete autêntico estar tocante à invalidade processual, aprofunda a
vinculado, retido, pelos princípios
análise da questão nos seguintes termos:
que torna mais criativa a prudência
que pratica51. (...) a existência ou não de um
“prejuízo” é uma porta aberta ao
Diante disso, talvez os argumentos acima juiz para valorar o ato inválido
explanados sirvam para justificar que até dentro da realidade processual. Na
mesmo na escolha entre princípios para apli- identificação do “prejuízo” o juiz
cação ao caso concreto, haveria base para se afirmará a necessidade ou não da
extirpação daquele ato, que será
ter segurança jurídica, diante da necessária
avaliado dentro daquelas circuns-
formulação de juízos de legalidade. tâncias concretas que se lhe apre-
sentam no processo. Poder-se-ia
Todavia, seja nos conflitos entre regras ou
imaginar que tal indeterminação
entre princípios, ou ainda, nas decisões judi- implicaria uma situação de inse-
ciais de um modo geral, será que se tem, será gurança jurídica para as partes.
que sempre se está respaldado na obsedante Mas não o é, pelo menos retorica-
segurança jurídica? Quer-se, com tal inda- mente. O que é necessário é que
gação, saber: se o juiz, pelo simples fato de o juiz assuma esse seu papel de
estar atrelado à lei, julga de maneira correta o preenchimento valorativo do “pre-
escopo do Direito, qual seja, dar uma decisão juízo”, motivando nos autos a sua
decisão e revelando o que está por
justa, voltada à sociedade em que vive?
trás da identificação ou não dele.
É pertinente responder a esta questão com Não é suficiente, portanto, afirmar
que não é manifesto, ou ainda que
base nas observações de Plauto Faraco de
não restou evidente. Como bem
Azevedo, quando aborda a limitação imposta ensina Plauto, “esse juiz-compu-
pelo positivismo jurídico ao juiz, na aplicação tador, esse aplicador mecânico
valorativa, do Direito: de normas, cujo sentido não lhe é
dado aferir, e cujos resultados na
É em nome da segurança jurídica
solução dos casos concretos lhe
que se quer assim manietar o juiz
é defeso indagar, este juiz assim
e minimizar a função judicial.
minimizado e desumanizado, não
Sucede que esse juiz-computa-
é, de forma nenhuma, capaz de
dor, esse aplicador mecânico de
realizar a segurança jurídica”. O
normas, cujo sentido não lhe é
prejuízo, alegado pela parte inte-
dado aferir, e cujos resultados na
ressada, será avaliado pelo juiz
solução dos casos concretos lhe
que, assim, se entender presente,
é defeso indagar, este juiz mini-
declarará o ato inválido, fixando a
mizado e desumanizado, não é
extensão quanto a outros atos do
de forma nenhuma, capaz de rea-
processo e determinando os remé-
lizar a segurança jurídica. Preso
dios jurídicos a serem ministrados:
a uma camisa-de-força teorética
conversão, ratificação, retificação,
que o impede de descer à singu-
suprimento, repetição. É irrefutá-
laridade dos casos concretos e de
vel a existência de uma certa “dis-
sentir o pulsar da vida que neles se
cricionariedade judicial” no ato de
exprime, esse juiz, servo da legali-
reconhecer a existência ou não do
dade e ignorante da vida, o mais
prejuízo, em concreto, como indica
que poderá fazer é semear a per-
a maior parte da doutrina. Sobre
plexidade social e a descrença na
o tema, também tratam Arruda
função que deveria encarnar e que,
Alvim Pinto, referindo-se a uma
por essa forma, nega. Negando-a,
“liberdade de investigação crítica”

51 GRAU, E. R. O direito posto e o direito pressuposto.. op. cit p. 156. 52 AZEVEDO, Plauto Faraco. Crítica à dogmática... p. 25.

28.
ou ainda “um juízo técnico esta- engloba, sim, um problema de dire-
belecido sobre uma determinada ção positiva desse exercício pelas
condição concreta53. normas determinantes. A força das
determinantes heterónomas não
É possível concluir, então, que a discricio- significa adesão à ideia de uma
nariedade judicial não se liga com a noção de vinculação positivo-material uni-
arbitrariedade. Disto ressalta que a margem forme e geométrica: assim como
há preceitos ou normas que cons-
de liberdade dada ao juiz tem como limite a
tituem determinantes heterónomas
sua fundamentação, algo prescindível quando com um conteúdo positivo-mate-
se trata de discricionariedade sob o prisma rial explícito, também há preceitos
administrativista clássico, tal qual a doutrina marcadamente frouxos quanto à
francesa. Fica claro, portanto, quando o juiz sua força de determinação interno-
julga não está atrelado à lei, pura e simples- -material. No primeiro caso, sem se
mente, mas sim, à necessidade de fundamen- menosprezarem os problemas de
limites, interessa precisar a quali-
tação de suas decisões.
dade e grau de direção positiva ine-
Importante, para a discussão do tema, as rente às determinantes heteróno-
mas; na segunda hipótese, o défice
considerações de José Joaquim Gomes Canoti-
de direcção positiva desloca a ques-
lho, precisamente quando trabalha com a teo- tão, praticamente, para um pro-
ria das determinantes, o que ratifica a impos- blema de limites negativos, abrindo
sibilidade de se ter a discricionariedade (no maior espaço para a intervenção de
campo jurídico estrito, bem como no campo determinantes autónomas.55
legislativo-legislador inferior) como original-
mente concebida (teoria pura), sem limites. Conclui-se, portanto, que, quando se fala
Neste sentido, salienta Canotilho: em discricionariedade judicial, está-se, em
realidade, diante do chamado juízo técnico
(...) enquanto a Teoria Pura con-
de valor, tal como revela Jacinto Nelson de
siderava a direcção intrínseca da
discricionariedade de um modo Miranda Coutinho:
puramente formal, a doutrina (...) no momento em que é possí-
mais recente pretende incutir-lhe vel fixar a pena, o que se faz não
um conteúdo material, de forma é juízo de conveniência-oportuni-
a distinguir, no exercício do poder dade, próprio da Administração
discricionário, entre elementos, Pública, mas simplesmente um
factores ou determinantes que se juízo técnico estabelecido sobre
impõem externa e materialmente determinada condição concreta.
às autoridades (determinantes (...) Qual a importância que daí
heterónomas), e elementos, facto- surge para a avaliação da discri-
res ou determinantes autonoma- cionariedade, ou da discrição do
mente introduzidos pelos agentes juiz, principalmente na dosime-
administrativos na valoração e tria da pena? Precisa-se entender
ponderação das situações de facto a questão em termos de em não
(determinantes autónomas)54. sendo, na verdade, uma discrição;
em não sendo, na verdade, um ato
Canotilho também, delineia o problema discricionário, porque é mero juízo
da discricionariedade, asseverando que esse técnico de valor, quer dizer, juízo
problema não se reduz à questão dos limites do juiz mais juízo técnico, ser algo
do exercício do poder discricionário: diverso do fetichismo legalista, efe-
tiva criação do Direito pelo juiz56.
negativamente delimitado pelas
determinantes heterónomas; Mas, a fundamentação ainda não se
revela bastante suficiente, a ponto de dar à
sociedade segurança nas decisões judiciais.
53 RACHID COUTINHO, Aldacy. Invalidade processual: um estudo para
o processo do trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 295-296.
54 CANOTILHO. J. J. G. Constituição dirigente e vinculação do legisla-
dor: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáti- 55 Op.cit. p. 246.
cas. 1. ed. reimp. Coimbra: Coimbra Editora Ltda, 1994. p. 246. 56 MIRANDA COUTINHO. Discrição judicial. Op cit. p. 148-149.

29.
Não se pode, aqui, ser ingênuo. Não é pos-
sível fechar os olhos à realidade que se apre- REFERÊNCIAS
senta. Uma decisão bem fundamentada pode
ser injusta, profundamente injusta, o que faz ALEXY, R. Teoria de los derechos funda-
cair por terra o mito de que a lei é a medida mentales. Trad. de: Ernesto Garzón Val-
das decisões judiciais. déz. Madrid: Centro de Estudios Consti-
tucionales, 1993.
Na interpretação da lei, como se viu, não
há texto que não tenha que ser interpretado
ASCENSÃO, J. de O. O direito - introdu-
e, por conseguinte, na sua aplicação, com o
surgimento da norma para o caso, o juiz arbi-
ção e teoria geral: uma perspectiva luso-
trário pode vir à tona, com sua retórica ludi- -brasileira. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
briante, ou seja, sempre é possível se deparar 1977.
com o juiz arbitrário. Julgar contra legem é
possível, desde que a decisão seja bem fun- AZEVEDO, P. F. de. Crítica à dogmática
damentada57. Mais uma vez, é importante e hermenêutica jurídica. Porto Alegre:
lembrar o caso da Súmula 352, do Supremo Safe, 1989.
Tribunal Federal. Neste exemplo, como já se
expôs, o que se criou não foi uma norma para __________ Método e hermenêutica
o caso, mas outra regra, diferente daquela que material no direito. Porto Alegre: Livra-
se deveria interpretar. Isso nada mais é do que ria do Advogado, 1999.
julgar contra a lei em um — diga-se de passa-
gem — direito alternativo às avessas. Assim, a BARROSO, Luís Roberto. O direito cons-
decisão, desde que fundamentada a ponto de titucional e a efetividade de suas nor-
se tornar praticamente imune às tentativas de
mas: limites e possibilidades da consti-
reformas, torna-se palatável.
tuição brasileira. 2.ed. ver. e. aum. Rio de
Janeiro: Renovar, 1993.

BERBERI, M. A. L. Os princípios na tepria


do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

__________ BOBBIO, N. O positivismo


jurídico: lições de filosofia do direito.
Trad. de: Márcio Pugliese, Edson Bini
e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone,
1995.

__________ Teoría general del derecho.


Trad. de: Eduardo Rozo Acuña. 1. ed. 6.
reimp. Madrid: Debate, 1999.

CANARIS, C-W. Pensamento sistemá-


tico e conceito de sistema na ciência
do direito. Introdução e tradução de: A.
Menezes Cordeiro. 2. ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1996.
57 Kelsen já alertava para essa possibilidade: “A propósito é importante
notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de
uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza
CANOTILHO, J. J. G. Constituição diri-
uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma gente e vinculação do legislador: con-
norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completa-
mente fora da moldura que a norma a aplicar representa.” (KELSEN. Teoria
tributo para a compreensão das normas
pura do direito..op.cit., p. 369).

30.
constitucionais programáticas. 1. ed. _____________ La doppia destruttura-
reimp. Coimbra: Coimbra Editora Ltda, zione del diritto. Milano: Edizione Uni-
1994. copli, 1996.

CARNELUTTI, F. Verdade, dúvida e cer- HABERMAS, J. Direito e democracia:


teza. Trad. de: Eduardo Cambi. Folha entre a facticidade e validade, vol. II.
Acadêmica do Centro Acadêmico Hugo Trad. de: Flávio Beno Siebeneichler. Rio
Simas, Curitiba, n. 116. de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

CLÈVE, C. M. A fiscalização abstrata HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. de:


da constitucionalidade no direito bra- Márcia de Sá Cavalcanti. 10. ed. Petrópo-
sileiro. 2. ed., rev., atual. e aumen. São lis: Vozes, 2001.
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
HESSE, Konrad. A força normativa da
COELHO, L. F. Lógica jurídica e interpre- Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Men-
tação das leis. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: des. Porto Alegre: SAFe, 1991.
Forense, 1982.
HERKENHOFF. J.B. Como aplicar o
__________ Teoria crítica do direito. 2. direito. 6. ed., ver., ampl. e atualizada. Rio
ed. Porto Alegre: Safe, 1991. de Janeiro: Forense, 1999.

CORDERO, F. Guida alla procedura HOBBES, T. Leviatã ou Matéria, forma e


penale. Torino: UTET, 1986. poder de um estado eclesiástico e civil.
Tradução de: João Paulo Monteiro e Maria
CORRADINI BROUSSARD, D. Os direi- Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo:
tos fundamentais e o primeiro dever Abril Cultural, 1983.
fundamental. Revista da Faculdade de
Direito da UFPR, Curitiba, n. 30, a. 30, p. KANT, I. Crítica da razão pura. Trad.
13, 1998. de: Manuela Pinto dos Santo e Alexande
Fradique Morujão. 8. ed. Lisboa: Calouste
DUSSEL, E. Filosofia da libertação: crítica Gulbenkian, 1997.
à ideologia da exclusão. Trad. de: Georges
I. Maissiat. São Paulo: Paulus, 1995. KELSEN, H. ¿Quién debe ser el defensor
de la Constitución? Trad. de: Roberto J.
FACHIN, L. E. Teoria crítica do direito Brie. Estudio preliminar de: Guillermo
civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. Gasió. Madrid: Editorial Tecnos, 1995.

_____________ Estatuto jurídico do patri- __________ Teoria pura do direito. 2. ed.


mônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, São Paulo: Martins Fontes, 1987.
2001.
LARENZ, K. Metodologia da ciência do
GIANNINI, M. S. Diritto amministrativo. direito. Trad. de: José Lamego. 2. ed. Lis-
Milano: Giuffrè, 1970. boa: Calouste Gulbenkian, 1989.

GRAU, E. R. O direito posto e o direito LUHMANN, N. Sociologia do direito I.


pressuposto. 3. ed. São Paulo: Malheiros, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
2000.
LYRA FILHO, R. O que é direito. 17. ed.
Reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1999.

31.
MARQUES NETO, A. R. A ciência do STRECK, L. L. Hermenêutica jurídica
direito: conceito, objeto, método. 2. ed. e(m) crise: uma exploração hermenêu-
Rio de Janeiro: Renovar, 2000. tica da construção do direito. 2. ed. rev. e
aumen. Porto Alegre: Livraria do Advo-
_____________ A importância do direito gado, 2000.
no Brasil de hoje. São Luís: EDUFMA,
1993. TEUBNER, G. O direito como sistema
autopoiético. Tradução e prefácio de: José
MASCARO, Alysson Leandro. Introdu- Engrácia Antunes. Lisboa: Calouste Gul-
ção ao estudo do direito. 4ª Ed. São Paulo: benkian, 1989.
Atlas, 2013.

MIALLE, M. Introdução crítica ao


direito. Trad. de: Ana Prata. 2. ed. Lisboa:
Estampa, 1989.

MIRANDA COUTINHO, J. N. de. Discri-


ção judicial na dosimetria da pena: funda-
mentação suficiente. In: Revista do Ins-
tituto dos Advogados do Paraná, n. 21,
1993.

_____________ In: O papel do novo juiz no


processo penal. In: __________ (Coord.).
Crítica à teoria geral do direito proces-
sual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

_____________ Jurisdição, psicanálise e


o mundo neoliberal. In: Direito e Neoli-
beralismo: elementos para uma leitura
interdisciplinar. Curitiba: EDIBEJ, 1996.

RACHID COUTINHO, Aldacy. Invali-


dade processual: um estudo para o pro-
cesso do trabalho. Rio de Janeiro: Reno-
var, 2000.

ROUSSEAU, J-J. Do contrato social e dis-


curso sobre a economia política. Trad.
de: Márcio Pugliesi e Norberto de Paula
Lima. São Paulo: Hemus, s/d.

SCHIER, P. R. Direito constitucional: ano-


tações nucleares. Curitiba: Juruá, 2001.

_____________ Filtragem constitucional


- construindo uma nova dogmática jurí-
dica. Porto Alegre: SafE, 1999.

32.

Você também pode gostar