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Reflexões sobre Sociologia Digital: perspectivas para analisar o teletrabalho

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Braian Garrito Veloso


Universidade Federal de Lavras (UFLA)
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REFLEXÕES SOBRE SOCIOLOGIA DIGITAL: PERSPECTIVAS PARA ANALISAR O
TELETRABALHO

REFLECTIONS ON DIGITAL SOCIOLOGY: PERSPECTIVES TO ANALYZE TELEWORK

Área 1: 1.4 Direito, Trabalho e Serviço Social.

VELOSO, Braian Garrito


Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

Resumo
As transformações que decorrem da presença e da expansão das tecnologias digitais na
sociedade têm demandado reflexões teóricas e epistemológicas. Dentre as mudanças sociais, cita-se
aquelas atinentes ao mundo do trabalho. À guisa de exemplo, a pandemia ocasionada pela COVID-
19 fez com que muitos empregadores adotassem regimes laborais mais flexíveis, permeados por
recursos tecnológicos. Expande-se, assim, a modalidade de teletrabalho, em que, por via de regra,
empresa e funcionários se encontram separados fisicamente, mas conectados por meio de
tecnologias digitais. Partindo dessas considerações, este artigo tem como objetivo discutir a
sociologia digital enquanto área que emerge no contexto dos estudos sociológicos. De forma mais
específica, o texto propõe uma intersecção para com a sociologia do trabalho, buscando
compreender as possíveis contribuições para a análise do assim chamado teletrabalho que, como
mencionado, tem se expandido durante o período pandêmico. Com a análise proposta, entende-se
que as discussões da sociologia digital podem contribuir de modo significativo para a compreensão
do domínio das subjetividades e das novas dinâmicas que perfazem o trabalho coetâneo marcado,
por um lado, pelo uso de tecnologias digitais e, por outro lado, pela flexibilidade.

Palavras-chave: Sociologia digital, sociologia do trabalho, teletrabalho.

Abstract
The transformations that result from the presence and expansion of digital technologies in society
have demanded theoretical and epistemological reflections. Among the social changes, those related
to the world of work are mentioned. As an example, the pandemic caused by COVID-19 caused many
employers to adopt more flexible work regimes, permeated by technological resources. Thus, the
telework modality expands, in which, as a rule, the company and employees are physically separated,
but connected through digital technologies. Based on these considerations, this article aims to discuss
digital sociology as an area that emerges in the context of sociological studies. More specifically, the
text proposes an intersection with the sociology of work, seeking to understand the possible
contributions to the analysis of the so-called telework that, as mentioned, has expanded during the
pandemic period. With the proposed analysis, it is understood that the discussions of digital sociology
can significantly contribute to the understanding of the domain of subjectivities and the new dynamics
that make up the contemporary work marked, on the one hand, by the use of digital technologies and,
on the other, side, for flexibility.

Keywords: Digital sociology, sociology of work, telework.

1 INTRODUÇÃO
Em face dos céleres avanços das tecnologias e das consequentes implicações para a
sociedade contemporânea, discute-se, há alguns anos, sobre a constituição de um novo subcampo
dentro dos estudos sociológicos. Trata-se da sociologia digital, preocupada, dentre outras coisas,
com as novas tendências que se perfilam a partir da presença cada vez mais constante dos recursos
tecnológicos nas relações humanas. É certo que as redes sociais, o ciberespaço, os recursos da
telemática, as imbricações entre virtual e presencial etc. trazem transformações substanciais no bojo
da sociedade. Mais do que simples aparatos técnicos que potencializam algumas capacidades

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humanas, as tecnologias reconfiguram e ressignificam as práticas que perpassam os mais distintos
âmbitos, como a educação, o trabalho, a ciência, dentre outros.
Dito isso, o objetivo principal deste trabalho é discutir a sociologia digital enquanto área que
emerge no contexto dos estudos sociológicos. Ademais, pretende-se demonstrar sua pertinência para
a compreensão de fenômenos sociais contemporâneos que dependem de recursos tecnológicos,
como é o caso das relações de trabalho e, com maior ênfase, de teletrabalho. Portanto, buscar-se-á
não apenas retomar as bases que definem a sociologia digital e alguns dos seus principais
interesses, como também demonstrar sua pertinência para a abordagem de estudos sobre o trabalho
na sociedade contemporânea. Com a discussão aqui empreendida, pretende-se desvelar quais são
as possibilidades desse subcampo das pesquisas sociológicas, relacionando-o aos estudos sobre o
teletrabalho.
Em se tratando de estrutura, o texto começa como a apresentação de definições conceituais
acerca da sociologia digital. Em seguida, apresenta-se novas tendências do trabalho na
contemporaneidade, relacionando-as com o advento das tecnologias que marcam a sociedade
contemporânea. Posteriormente, parte-se para uma articulação entre a sociologia digital e a temática
do teletrabalho ao passo que se discute as relações com as mudanças provocadas pela pandemia de
COVID-19. Por fim, encontram-se as considerações finais que arrematam a discussão e salientam a
importância da disciplina de sociologia digital para a formação científica e sociológica.

2 SOCIOLOGIA DIGITAL
Com vistas a constituir os alicerces que nos servirão de esteio às proposições atinentes aos
estudos sobre o trabalho na contemporaneidade, iniciamos com uma definição mais precisa daquele
subcampo da sociologia. De acordo com Nascimento (2016), os computadores, hodiernamente,
fazem parte da vida em sociedade nos mais diferentes contextos, indo desde a grande indústria até
os consultórios médicos, os carros modernos, o bolso dos adolescentes etc. Isso significa que grande
parte dos processos sociais passam a depender e, de certa forma, a se relacionar ao funcionamento
desses dispositivos tecnológicos. Para Lévy (1999), a assim chamada cibercultura indica o
surgimento de um novo universal que se difere de outras formas culturais anteriores, construindo-se
sobre a indeterminação de um sentido global qualquer. Os espaços virtuais, gerados pelas
possibilidades tecnológicas e, mais precisamente, pelos computadores, trazem implicações
substanciais para a vida em sociedade. Eles não apenas potencializam práticas de outrora, mas
engendram novas formas de relacionamento, comunicação, apreensão do mundo material, aquisição
do conhecimento, dentre outros. “Obviamente que tais transformações sociais impactaram o modo
como fazemos ciência, reverberando, também, na disciplina de sociologia” (NASCIMENTO, 2016, p.
218).
Nesse sentido, o processo de trabalho do sociólogo se depara com uma profusão de
possibilidades e recursos que se diferem, em muitos aspectos, daqueles disponíveis há algumas
décadas. Mas não apenas as mudanças no aparato técnico e nos instrumentos de coleta e análise
devem ser observadas. As novas configurações da sociedade e, num sentido amplo, do capitalismo,
geram novas e importantes fontes de dados. Nas redes sociais e nos espaços virtuais, a todo
momento os usuários produzem informações que são armazenadas pelas grandes empresas de
tecnologias. Informações estas que compõem o big data, conjuntos de dados frequentemente
utilizados para fins publicitários, mas que não esgotam suas possibilidades nessas áreas de compra e
venda de anúncios altamente direcionados ao usuário final. A bem da verdade, o incessante fluxo de
produção e consumo na internet traz novas configurações ao capitalismo à medida que abre
possibilidades e lacunas que precisam ser exploradas pelos estudos sociológicos no intuito de
compreender, sobretudo de modo crítico, as relações sociais coetâneas.
É nesse contexto que a sociologia digital surge como subcampo voltado a perscrutar não
apenas a sociedade marcada pelos recursos e possibilidades tecnológicas, como também
interessado e atento às novas ferramentas, metodologias e instrumentos que incidem sobre o fazer
sociológico. Nas palavras de Nascimento (2016), o termo aparece pela primeira vez na literatura
acadêmica inglesa em 2009, num artigo do professor do Smith College, Jonathan Wynn. Assim
sendo, afirma-se que:

Nesse novo contexto, a sociologia digital está interessada no modo como os


indivíduos passam a ser produtores incessantes de dados digitais. Ao
passar em ambientes sociais monitorados por câmeras, ao ativar o GPS do
seu smartphone e fornecer sua localização georreferenciada, ao fazer login

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em seu email, ao frequentar websites, ao clicar em “likes” de redes sociais e
ao fazer buscas no Google, a todo momento fornecemos algum tipo de
informação às empresas que regulam todas essas redes e aparelhos
(NASCIMENTO, 2016, p. 223).

Não apenas como consumidores, mas, especialmente, como produtores, os usuários que
navegam e usam os mais variados espaços sociais contribuem para a construção de novos contextos
marcados pela reciprocidade. A miríade de dados gerados por essas interações digitalmente
estruturadas levanta problemáticas fundamentais para a sociologia na contemporaneidade. É por isso
que, como Nascimento (2016) sugere, a sociologia digital busca um meio-termo entre a demonização
da internet como instrumento de “hipervigilância” e a sua “tecnolatria” imponderada. De um lado,
pesquisas sociológicas já evidenciam as perversidades que subjazem ao uso e à adoção de
tecnologias que, dentre outras coisas, servem ao capital como instrumento de dominação e
exploração; por outro, não se pode negar as implicações profundas que os recursos tecnológicos
trazem para as relações sociais, mormente ao tratarmos de uma disciplina que tem, como objeto, a
sociedade. Aliás, como já dissemos, a sociologia digital também se preocupa com aspectos
metodológicos. Os instrumentos, técnicas, ferramentas, possibilidades, fontes de dados etc. que
surgem ou se modificam mediante a presença das tecnologias passam a ser considerados como
imprescindíveis para o fazer sociológico atento às especificidades da contemporaneidade. Consoante
Lupton (2019, p. 139):

[...] O que é particularmente notável sobre a sociologia digital, na medida


em que ela tem surgido como subdisciplina, é que seu foco não é apenas
nas novas tecnologias que têm se desenvolvido desde a virada desse
século, mas também no desenvolvimento de uma abordagem teórica e
crítica distinta. A sociologia digital tem implicações muito mais amplas que
simplesmente o estudo de tecnologias digitais, levantando questões sobre a
prática da sociologia em si mesma.

Pois bem, ao estabelecermos as definições necessárias às proposições que serão feitas mais
à frente, buscamos ressaltar a importância da sociologia digital como subcampo que se debruça
sobre a sociedade contemporânea, indo desde as preocupações metodológicas e circunscritas pelo
fazer científico até a preocupação direcionada às relações sociais medidas pelas tecnologias. Com
base nessa perspectiva, partimos, a seguir, para uma discussão com ênfase numa dentre as
temáticas que podem ser analisadas sob os olhares da sociologia digital. Estamos nos referindo ao
trabalho, como objeto de estudo da sociologia, preocupando-nos com as mudanças e as
características que delineiam as atividades laborais a partir do advento e da expansão das
tecnologias digitais. Que implicações essa sociedade marcada pelo uso de recursos tecnológicos traz
para o trabalho? De que maneira a sociologia digital contribui para as pesquisas que abordam essa
temática? Estas são algumas das questões que perpassam a nossa discussão subsequente.

3 NOVAS TENDÊNCIAS DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE: TRANSFORMAÇÕES


RELACIONADAS ÀS TECNOLOGIAS DIGITAIS
Ao mesmo tempo que as tecnologias se desenvolvem, várias são as áreas que se
transformam, quer incorporando recursos tecnológicos, quer ressignificando práticas e costumes que
passam a ser concebidos a partir de um modo de produção capitalista mais flexível. No entendimento
de Harvey (1994), o período de 1965 a 1973 escancarou a incapacidade dos modelos fordista e
keynesiano de conter as contradições intrínsecas ao capitalismo. Nesse cenário de oscilações e
incertezas, novas experiências referentes à organização da indústria e da vida social e política
começam a tomar forma. Harvey (1994) argumenta que esse novo regime de acumulação define-se
pela passagem de um período mais rígido, pautado em certa estabilidade e num sistema produtivo
centrado na geração de estoques e intensa divisão das funções para outro mais flexível, ajustado às
demandas e, dentre outras coisas, flexível quanto ao emprego da força de trabalho. O autor define,
então:

A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto


direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos

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de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de
consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção
inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços
financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de
inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível
envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto
entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um
vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como
conjuntos industriais completamente novos em regiões até então
subdesenvolvidas (HARVEY, 1994, p. 140).

Essas transformações no capitalismo visam à superação das crises e à reconfiguração do


modelo baseado na produção em massa. Nesse sentido, as tecnologias digitais contribuem para as
transições e para o surgimento de novas configurações do processo produtivo, tornando-o flexível e
apoiado noutras formas de relação entre capital e trabalho. Concomitantemente a isso, tem-se o
crescimento do setor de serviços. Em meio às transformações no capitalismo, observa-se impactos
significativos também na cultura, contribuindo para o surgimento de novas ideologias. Cita-se, pois, a
economia de compartilhamento que surge como tendência cimentada numa ideologia sustentável e
supostamente em oposição ao consumo desregrado. Para Rifkin (2016), o automóvel pode ser usado
como exemplo significativo dessa mudança de uma sociedade centrada no “ter” para outra que
gravita em torno do “compartilhar”. No entendimento dessa autora, à medida que as redes de
compartilhamento de veículos aumentam, o número de pessoas que possui automóvel próprio
diminui. A Uber, ao menos do Brasil, é uma das empresas mais expressivas nesse setor, cujos
usuários seriam supostamente fornecedores de serviços, de um lado, e clientes, de outro, cabendo à
plataforma tão somente unir esses dois polos. Rifkin (2016) discute que a economia de
compartilhamento surge apoiada num discurso sustentável, mas que, ao se desenvolver, desvela
grandes empresas que lucram e monopolizam o setor. Ao fim e ao cabo, a ideologia do compartilhar
se transfigura no que podemos chamar também de capitalismo de plataforma.
É notável como a sociologia e, mais especificamente, a sociologia digital, ao se debruçarem
sobre essas novas tendências capitalistas, desconstroem discursos otimistas e desvelam as
perversidades que permeiam as novas relações de trabalho. Na economia de compartilhamento, que
tem como notável expoente as empresas que oferecem serviços de carona, percebe-se que o
discurso ideológico, quando descortinado, revela relações de trabalho flexíveis e obnubiladas pelo
ideário do empreendedorismo. De acordo com Lima e Bridi (2019), a nova economia digital
transforma todos os alentos, relações sociais, gestos e subjetividades em potencial para obtenção de
lucro. Na uberização, termo que remete ao modelo em que a Uber é uma das principais expoentes, o
trabalhador é uma espécie de empreendedor de si mesmo, subordinando-se e vinculando-se ao
aplicativo que une prestadores de serviços e consumidores (LIMA; BRIDI, 2019). Por detrás dessa
conexão feita entre os usuários, tem-se um conjunto de diretrizes que balizam o labor, isto é, regras
explícitas como taxa mínima de serviço, características do veículo, carga horária diária permitida etc.
Há, também, uma porcentagem do valor auferido pelo trabalhador que é retida pela empresa
responsável pela plataforma.
Como ideário construído pelo capital no sentido de justificar e impulsionar as mudanças mais
substanciais que começam a se proliferar a partir da década de 1970, a economia de
compartilhamento pode ser citada apenas como um dos exemplos. Vários outros postos de trabalho,
dependentes das tecnologias digitais, também acabam cingidos por ideologias que advogam novas
tendências caras ao regime de acumulação flexível, como engajamento, amor à profissão, rejeição à
estabilidade, dentre outros. Nesse contexto, podemos citar a Ideologia do Vale do Silício. Esta, para
Schradie (2017), não é uma simples orientação política de esquerda ou de direita, mas uma
articulação mais ampla, conectando Estado, economia e sociedade neoliberais. Sadin (2018) nos
mostra que a partir da década de 1960, no movimento da contracultura com proeminência nos
Estados Unidos, prega-se, dentre outras coisas, a desburocratização do Estado, a oposição à
tecnocracia e a subversão da ordem que contribuem para o surgimento do computador pessoal em
meados de 1970 e início de 1980. Baseada na ideia de colocar as máquinas a serviço dos seres
humanos – e não o contrário –, a ideologia hacker, alavancada pela contracultura, propala a liberdade
de acesso à informação e às tecnologias. Dentro desse contexto de efervescência social, surgem os
grandes mitos da tecnologia digital, como Steve Jobs e Bill Gates que, em suas garagens e guiados

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por ideais em certo sentido subversivos, tornam-se bilionários e principais nomes da computação e,
de forma geral, da tecnologia na contemporaneidade.
A concentração de empresas da área numa mesma região estadunidense faz com que a
Califórnia seja tida como o Vale do Silício – sendo o silício um componente importante dos
microcomputadores, daí o sentido figurado do termo. No entanto, o surgimento dos grandes gênios
da computação que revolucionam a tecnologia contribui para a construção ideológica que serve como
um dos alicerces do capitalismo flexível. A Ideologia do Vale do Silício perpassa, então, diferentes
áreas atreladas aos recursos tecnológicos. O amor à profissão, a instabilidade como regra geral, o
apego a uma causa que irá revolucionar a sociedade, dentre outros predicados começam a guiar a
atuação de muitos trabalhadores da era digital. Mas na realidade, como demonstra Pires (2021),
muitos desses profissionais estão sujeitos a jornadas de trabalho extenuantes, sem garantias sociais,
apoiados em ideais muito distantes e incertos, dentre outras coisas que submetem o labor às
tendências e especificidades que regem o modelo de acumulação flexível.
Pois bem, o advento da internet e dos computadores pessoais traz consigo uma série de
discursos otimistas que defendem a subversão da ordem, a economia de compartilhamento, a
tecnologia a serviço dos seres humanos, o capitalismo sustentável etc. Porém, como a própria
sociologia digital descortina, se existem ganhos expressivos na transição de um modelo rígido para
outro mais flexível, baseado no uso de tecnologias digitais, esses mesmos ganhos ficam, sobretudo,
sob posse de grandes empresas. O trabalhador é quem passa a arcar com a maior parte dos ônus
dessa flexibilidade, sujeitando-se a regimes de trabalho precários, sem direitos sociais, com redução
dos ganhos, sem vínculo empregatício, dentre outros tantos problemas. E, como dissemos, a
ideologia construída pelo discurso otimista do capitalismo é fundamental não apenas para a sujeição,
mas para a adequação dos trabalhadores às novas tendências. Na medida em que o labor se torna
mais flexível, muitas vezes digital e, além disso, sem fiscalização rígida quanto ao espaço e ao
tempo, é imprescindível introjetar valores na subjetividade com vistas a assegurar o autocontrole e a
autogestão. O “empreendedor” contemporâneo, em postos de trabalho imateriais, em ocupações de
plataforma ou no setor de serviços, deve garantir os ideais de produtividade que regem o modo de
produção capitalista. Todavia, uma vez que o capital imputa aos trabalhadores grande parte das
responsabilidades pelo próprio trabalho, a construção de uma subjetividade alinhada ao ideário
contemporâneo é fundamental.
Posto isso, seguimos a uma aproximação das discussão até aqui construídas no sentido de
demonstrar como a sociologia digital é importante no estudo das novas relações de trabalho.
Partindo-se de temática importante em tempos de pandemia e labor remoto, buscar-se-á evidenciar
quais são os elementos que subjazem àquelas atividades laborais exercidas a distância, geralmente
de casa, em que empregador e empregados se separam no tempo e no espaço, mas mantêm-se
conectados por meio de tecnologias telemáticas. A nossa proposta é evidenciar como o controle da
subjetividade é imprescindível para as empresas nesse contexto de trabalho cujos indivíduos não se
encontram sob a fiscalização rígida como geralmente acontece nas atividades presenciais.
Concomitantemente a isso, buscaremos corroborar a pertinência da sociologia digital enquanto
subcampo que não apenas se debruça sobre as especificidades que perfilam a sociedade
contemporânea, mas que também se atenta a ferramentas e recursos metodológicos que propiciam
uma análise pormenorizada dessa realidade social na era de um regime de acumulação flexível.

4 TELETRABALHO E CONTROLE DA SUBJETIVIDADE: OLHARES A PARTIR DA SOCIOLOGIA


DIGITAL
A pandemia ocasionada pela COVID-19 trouxe implicações diversas para a sociedade.
Afetando vários campos, as medidas de distanciamento e isolamento social preconizadas pelo órgão
máximo de saúde no mundo evidenciaram e intensificaram processos que já estavam em curso há
algumas décadas. No mundo do trabalho, aqueles postos mais dependentes das tecnologias digitais,
especialmente no labor intelectual, passaram inteiramente para o regime de teletrabalho – ou home
office. Atuando de suas casas, mas conectados à empresa por meio da internet, os trabalhadores
passaram a lidar com regimes de trabalho sobejamente flexíveis. O controle espacial e, por vezes,
até temporal cede a outras formas de fiscalização. Tem-se, como invólucro desse cenário, discursos
sedutores, que enxergam a flexibilidade como a grande tendência do trabalho, ou mesmo como
benefício que mais favorece os próprios trabalhadores. Todavia, há que se considerar que a atuação
em regime de teletrabalho não implica menor intensidade, nem tampouco altera o interesse maior do
capital quanto à exploração da força de trabalho. Atuando de suas casas, os profissionais lidam com
outros tipos de fiscalização que asseguram a produtividade.

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Para além do controle exercido mediante as tecnologias – controle de acesso e permanência
em determinados ambientes virtuais, por exemplo –, as empresas recorrem a outra forma de
dominação que já se mostra como tendência em muitos postos de trabalho desde as transformações
advindas do regime de acumulação flexível. Estamos nos referindo ao controle da subjetividade,
como forma de responsabilizar o próprio profissional pela qualidade e quantidade do seu labor. Como
dissemos, a flexibilização no que tange ao tempo e ao espaço, por via de regra, não significa menor
controle, nem tampouco alivia os trabalhadores das pressões geradas a partir da exigência de
produtividade. Pelo contrário, a atuação em casa, além de imputar aos profissionais parte importante
das responsabilidades e dos gastos voltados à infraestrutura e instrumentos de trabalho, também
dificulta a separação dos tempos de produção e reprodução. Se no modelo fordista a fábrica era,
talvez, a nítida representação do espaço produtivo, no teletrabalho, especialmente devido à
ubiquidade, o tempo e o espaço de labor se tornam virtuais e, assim sendo, acompanham os
trabalhadores em seu cotidiano.
Tal como salientam Oliveira e Mill (2020), as possibilidades típicas de uma sociedade ubíqua
modificam a noção de local e horário para o trabalho. Por praxe, são os próprios profissionais os
responsáveis por determinar a intensidade de suas atividades. Isso acaba por exigir grande disciplina
e organização. Percebe-se, portanto, que a flexibilidade, nesse contexto, está fortemente relacionada
à transferência, para os trabalhadores, de responsabilidades que, até então, eram incumbência da
empresa. Mais do que estender as jornadas laborais para além da delimitação mais nítida de outrora,
o teletrabalho, lançando mão da tecnologia móvel, modifica as relações estabelecidas entre
funcionários e empresa. Os profissionais não apenas levam as suas atividades consigo, como
também são procurados a todo momento pelo trabalho.

Não sendo capaz de controlar e organizar os próprios horários e locais de


trabalho, o trabalhador virtual permanece à disposição do trabalho
constantemente, como se observa, facilmente, na sociedade marcada pelo
digital, pela ânsia de muitas pessoas costumeiramente portarem
dispositivos móveis (como smartphones), permanecendo constantemente
conectadas à internet e disponíveis ao trabalho. Dessa forma, o trabalho
está consigo sempre que o trabalhador virtual acessar os seus dispositivos
móveis de telecomunicação. Vale destacar que esta é uma noção de
trabalho móvel ou teletrabalho, que se tornou ainda mais perversa na
perspectiva da ubiquidade. Em outras palavras, pela noção de mobilidade é
o trabalhador que carrega consigo o trabalho, em dispositivos móveis ou
pela Internet (como faria um docente ao levar trabalhos para corrigir em
casa, mesmo em papel); mas a noção de ubiquidade indica outro nível de
relação entre atividades e trabalhador: o trabalho procura pelo realizador da
atividade; seus dispositivos móveis não param de tocar, acusando mais e
mais trabalho (OLIVEIRA; MILL, 2020 p. 50).

Em razão das intrincadas especificidades que circunscrevem o teletrabalho, recorremos à


sociologia digital, pois ela nos possibilita novas ferramentas, abordagens, metodologias etc. que se
direcionam a esse e outros problemas de pesquisa presentes na contemporaneidade. Dadas as
relações que os trabalhadores estabelecem com a empresa e entre eles mesmos, a preocupação
com tecnologias e ambientes virtuais como fontes de dados é fundamental na análise pormenorizada
desse que seria um objeto de pesquisa. No entendimento de Deslandes e Coutinho (2020), o
pesquisador é desafiado a compreender, nesses espaços digitais, os diferentes fluxos e trânsitos,
além das variações interacionais que constituem cada ambiência online. Isso significa que o trabalho
de campo, nesse contexto, diz mais respeito a fluxos do que a lugares propriamente ditos. Na
percepção de Kozinets (2014, p. 41), “as comunidades online são fenômenos abundantes, e suas
normas e rituais são moldadas pelas práticas da cibercultura e dos grupos culturais gerais que as
utilizam”. Sob essa ótica, a etnografia, compreendida nesses espaços virtuais, pode ser concebida
como netnografia. À investigação sociológica, torna-se relevante, portanto, observar os fluxos, as
interações, os movimentos, as percepções, dentre outras coisas que compõem a atividade digital
daqueles usuários que se utilizam da tecnologia não apenas a trabalho, mas para se relacionar.
Partindo da premissa de que o teletrabalho leva os trabalhadores a dependerem mais
fortemente das interações digitais, uma vez que suas relações de labor dependem em grande medida
da tecnologia, esses instrumentos, métodos, teorias, dentre outros podem auxiliar sobremaneira no

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processo investigativo. Os ambientes de trabalho desses sujeitos não são mais as instalações físicas
da empresa, mas suas próprias casas ou, em tempos de ubiquidade, quaisquer lugares com acesso à
internet. Logo, os espaços virtuais se tornam grandes geradores de dados, pois é neles que os
indivíduos produzem, se relacionam e interagem com o empregador. Aliás, numa sociedade marcada
pelo digital, em que as fronteiras entre tempo de produção e reprodução se diluem, os próprios
ambientes virtuais se tornam ambíguos. Porque, de um lado, marcam os lugares legítimos de
exercício do labor, ao passo que, por meio de alguns cliques ou pequenas interações entre humano-
máquina é possível sair de um planilha, por exemplo, para uma rede social, misturando-se, a um só
tempo e num só espaço, o lazer e o trabalho. Como apreender essas dinâmicas complexas que
delineiam esse labor contemporâneo? De que maneira podemos observar novos espaços de coleta
de dados? Quais ferramentas e técnicas possibilitam-nos empreender pesquisas mais alinhadas aos
fluxos e às dinâmicas da contemporaneidade? Certamente, a sociologia digital, muito embora não
solucione todas as dúvidas, auxilia-nos nessa empreitada. Afinal, de acordo com Miskolci (2016, p.
277):

Vivemos a consolidação de transformações tecnológicas e sociais articula-


das e que não podem mais ser compreendidas em separado, assim como
suas consequências econômicas e políticas. Alguns compreendem a
sociologia digital como uma área emergente da disciplina com objeto próprio
de investigação, outros – mais preocupados com aspectos metodológicos –
podem defini-la como a possibilidade de dar conta da intensidade de
relações sociais mediatizadas pelas tecnologias (big data) e há também
quem reconheça nela o potencial para criação de um conjunto teórico e
conceitual articulado e transversal que virá a modificar a disciplina como um
todo. Qualquer que seja a definição de sociologia digital, refletir sobre seu
potencial é um exercício necessário para compreender nosso passado
recente e, sobretudo, nosso presente.

Acredita-se que a sociologia digital auxilia-nos a observar as especificidades que perpassam


a sociedade contemporânea. Haja vista as complexas interações entre trabalhadores e empresas,
permeadas por tecnologias e espaços virtuais, torna-se importante recorrer a novas possibilidades de
coleta e apreciação dos dados. A netnografia, a triangulação metodológica, as ferramentas digitais de
análise, dentre outras opções ampliam as possibilidades do sociólogo que analisa essas temáticas
típicas de uma contemporaneidade marcada pela internet, pelo computador pessoal e pelo uso de
dispositivos móveis. Nessa ótica, a sociologia digital pode ser entendida, reiterando Miskolci (2016),
como área emergente capaz de dar conta da intensidade das relações sociais mediatizadas pelas
tecnologias. É a partir dessa compreensão que podemos, à guisa de exemplo, articular esse
subcampo da sociologia com os estudos que versam sobre o teletrabalho.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste texto não foi esgotar a temática atinente à sociologia digital. Em verdade,
buscou-se articular as discussões dessa área com os estudos sobre o teletrabalho. Quer dizer que
foram apresentados conceitos que abordam a sociologia digital e a sua pertinência para estudar a
sociedade coetânea, marcada pelas relações sociais mediadas por recursos tecnológicos diversos.
Seja como área emergente da disciplina, seja como discussão mais preocupada com a metodologia,
é certo que esse subcampo dos estudos sociológicos, embora recente, tem ganhado cada vez mais
espaço em face da expansão e do desenvolvimento das tecnologias que incidem sobre as relações
sociais.
Desse modo, considera-se que, sobretudo devido às experiências vivenciadas em meio à
pandemia, muitas implicações para a sociedade tendem a demandar olhares sociológicos atentos. No
caso do trabalho, aqueles postos mais dependentes dos recursos tecnológicos e que puderam ser
migrados para o regime de home office ou, então, teletrabalho, certamente incluem um conjunto
complexo de fatores passíveis de análise pela sociologia. Alicerçados em características que
imprimem flexibilidade às atividades laborais, esses postos de trabalho abarcam, dentre outros
elementos, uma maior preocupação com o controle da subjetividade. Dadas as especificidades do
teletrabalho, afirmamos que a sociologia digital traz discussões importantes para analisá-lo. Esse é o
principal argumento que, nestas páginas, foi apresentado.

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REFERÊNCIAS

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