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Ana Margarida Silva Ribeiro n.

º 106418
Inês Palmeira de Sousa Martins n.º 108029

A Ideia de Justiça de Amartya Sen:


Os conceitos de justiça e igualdade

Janeiro 2024
Ana Margarida Silva Ribeiro n.º 106418
Inês Palmeira de Sousa Martins n.º 108029

A Ideia de Justiça de Amartya Sen:


Os conceitos de justiça e igualdade

Introdução ao Estudo do Direito

Equipa docente:
Professora Maria Clara Cunha Calheiros Carvalho
Professora Miriam Vieira Rocha Frutuoso

Janeiro 2024
Índice

Introdução...........................................................................................................................3
A idealização de Amartya Sen........................................................................................... 4
Uma distinção clássica na teoria do direito indiano........................................................... 7
O proveito da razão............................................................................................................ 8
Crítica à teoria da justiça de John Rawls..........................................................................10
Além do rendimento: a virtude da felicidade................................................................... 12
Arquitetura da felicidade diante adversidades..................................................................14
Uma visão singular que atinge uma justiça plural............................................................16
Conclusão......................................................................................................................... 18
Referência bibliográfica................................................................................................... 19

2
Introdução

A justiça (em latim Iustitia ou Justitia) é uma conceção abstrata que permeia a
história da humanidade, que se refere mais especificamente a um estado de interação
social e funciona, sem margem de dúvida, como base perante o direito (assume-se
também enquanto síntese das finalidades do direito).
A obra aqui apresentada “A Ideia de Justiça“ da autoria de Amartya Sen1 como o
próprio título preconiza, desenvolve determinadas ideias sobre justiça e, nesta sua teoria
da justiça estimulante, publicada em 2009, o célebre filósofo e economista indiano
prioriza as esperanças e necessidades das sociedades, enunciando o “caminho para
resolver os problemas difíceis relativos ao bom comportamento e os desafios da
construção de uma sociedade justa”.
É de extrema importância aludir que Amartya Sen desenvolveu esta sua obra em
memória de John Rawls2 e, por essa razão, o seu nome acaba por ser referido vezes sem
conta em todas as partes da obra (estando a obra dividida em quatro partes).
A teoria da justiça de Rawls serviu de uma grande inspiração para o projeto de
Amartya Sen no qual é apresentada uma teoria da justiça num sentido mais amplo e o
seu propósito é abordar matérias que reforçe ou amplifique a justiça e também que
elimine a injustiça (não desenvolve questões sobre a natureza da justiça ideal).

1
Amartya Kumar Sen nasceu na Índia a 3 de novembro de 1933, foi o primeiro economista asiático a ser premiado
com o Prémio Nobel da Economia, mas foi contemplado com muitos outros prémios. É autor de mais de vinte livros
e, todos eles desenvolvem temas pertinentes.
2
John Rawls nasceu no dia 21 de fevereiro de 1921 e morreu no dia 24 de novembro de 2002.

3
A idealização de Amartya Sen
É importante olharmos para a obra de Amartya Sen e percebemos que, para ele,
existem “duas linhas básicas e divergentes de argumentação racional sobre a justiça
entre importantes filósofos“. Temos presente, então, uma dicotomia entre uma
abordagem contratualista e uma abordagem comparativa.
Por um lado, é referido o “Institucionalismo transcendental”, representado por
autores como, por exemplo, Hobbes, Locke, Rousseau e Kant e que apresentam uma
perspetiva onde procuram estruturas institucionais justas, tentam encontrar uma justiça
perfeita, trabalham na base de contratos sociais, de investigação sobre a natureza do
justo e qual será a conduta humana mais adequada.
Por outro lado, é apresentada a “Comparação de realizações” retratada por
autores como, por exemplo, Smith, Condorcet, Bentham, Marx, Wollstonecraft e Stuart
Mill, onde começam por elaborar comparações entre sociedades (aquelas que já existiam
e aquelas que, porventura, poderiam vir a surgir). Essas comparações estavam focadas
em realizações, com o objetivo de remover as injustiças patentes e também fixaram-se
numa análise profunda do comportamento real.
O prognóstico de Amartya Sen é que temos de compreender a conceção de
justiça não só a nível de diferentes disciplinas, como também a nível de múltiplas visões
(a ideia de justiça está presente em várias pessoas).
Assim sendo, evidencia-se uma argumentação racional, isto é, para sermos
capazes de procurar uma teoria da justiça, temos potencialmente de desenvolver um
raciocínio (necessidade de convocarmos a razão) mormente sobre um assunto do qual é
árduo falar. Por exemplo, Amartya refere a questão das “calamidades”. Para o autor,
trata-se de uma circunstância onde existe injustiça somente no caso de ter existido uma
possibilidade de ter sido evitada. Contudo, ele alega que os casos de injustiça podem ser
muito mais substanciais e sutis do que a avaliação da calamidade percetível.
Amartya Sen começa por apresentar ideias iniciais bastante convictas que servem
como ponto de partida para a sua investigação. Contrasta-se com a maior parte das
teorias da justiça modernas, as quais se concentram numa “sociedade justa”, pois, o seu
livro trata-se de uma tentativa de investigar comparações baseadas nas realizações que
enfatizam o avanço ou até mesmo o retrocesso da justiça (como o próprio autor afirma).
Ele destaca alguns tópicos como por exemplo a desigualdade social, a pobreza, o
racismo. No fundo, questões que captam a atenção e que são evidentes de que a

4
construção da conceção de justiça deveria inaugurar-se nessas questões.
Minuciosamente, Amartya Sen procura compreender de que forma é que a justiça seria
promovida em vez do que seriam as instituições ditas justas (esta é uma crítica ao
transcendentalismo institucional).
No institucionalismo transcendental, são detetados dois problemas: o da
factibilidade e redundância.
O primeiro problema (o da factibilidade) assenta na ideia de que não é garantida
a existência de um acordo coerente independentemente sob condições austeras de
imparcialidade e análise totalizante da natureza da “sociedade justa” (é mencionado
como exemplo a pressuposição de Rawls onde haveria uma escolha unânime de um
conjunto de princípios sob a “posição original” ) – há aqui um conflito em encontrar
uma solução transcendental determinada e acertada.
Para aprofundar esta questão de que uma solução imparcial é a única para a
escolha da sociedade perfeitamente justa, é-nos apresentado um exemplo prático: “Três
crianças e uma flauta”. Temos três crianças - Anne, Bob e Carla - que discutem por uma
flauta.
Todos eles apresentam um argumento em seu favor. Anne exige a flauta pelo
motivo de ser ela a única a saber tocá-la. Por outro lado, temos Bob, que manifesta-se
apelando à sua situação de pobreza e dizendo que a flauta passaria a ser o seu único
objeto com que pudesse brincar (importante referir que os outros dois se admitem mais
ricos). Por fim, Carla defende a sua posição mencionando que foi ela que trabalhou
arduamente durante muito tempo para fazer a flauta.
O objetivo deste exemplo anteriormente referido é compreender que, através das
três diferentes linhas argumentativas não é fácil ignorar qualquer uma das razões que as
três crianças tenham apresentado. Cada criança teria um apoio de teóricos com
diferentes pensamentos, como os utilitaristas (apoiavam Anne, porque eventualmente
iria fruir de um maior prazer; porém também pensavam no caso de Bob, onde a sua
felicidade poderia ser muito maior), os igualitaristas económicos (apoiavam Bob) ou até
mesmo os libertaristas pragmáticos (apoiavam Carla) - “A ideia do direito aos frutos do
próprio trabalho pode unir a direita libertária à esquerda marxista (não importando quão
desconfortável cada um se sentiria na companhia do outro)”.
O que podemos, de facto, apreender deste caso concreto, é que as diferentes
soluções acarretam sérios argumentos a seu favor, e podemos não conseguir captar (na

5
ausência de arbitrariedade) um dos argumentos que possa servir de alternativo, tal como
aquele que deve triunfar sistematicamente.
O segundo problema (o da redundância) refere-se à necessidade das ações /
realizações serem também salientadas em vez de focar somente aquilo que se identifica
com as regras certas e as instituições justas.
Segundo o próprio autor, a segunda parte da sua inconciliabilidade é a
imprescindibilidade de uma teoria que não seja limitada no que diz respeito à
deliberação das instituições nem à identificação de estruturas sociais ideológicas.
É atribuída uma enorme importância à vida e às experiências humanas que
advêm da mesma. Essa importância é defendida a um nível proeminente e não pode ser
substituída por instituições ou até mesmo regras que operem ou que possam surgir.
Segundo isto, o autor aponta para uma outra conceção - capacidades -, e explica
que um dos aspetos mais relevantes da vida humana é a capacidade de oferecer razões e
escolher. Cabe a cada um de nós decidir quais são os nossos objetivos ou prioridades.
Temos esta capacidade, pois, em certa medida, adquirimos liberdade, e todos que
possuem esta peculiaridade podem decidir o modo como usá-la. Na obra, há ainda uma
outra referência importante, que passa por deixar bem claro que, de facto, possuímos a
liberdade de escolha mas essa virtude acarreta uma responsabilidade - Amartya alude
esta ideia como sendo uma parte da perspetiva das capacidades e, portanto, pode abrir
espaço para as denominadas “exigências deontológicas”. A partir desta ideia, é possível
estudar questões muito aprofundadas que acabam por ser imprescindíveis na análise do
tema central desta obra, a justiça.
A teoria da justiça proposta por Amartya Sen atenta na diminuição das injustiças
sociais, caminhando para uma potencialização da justiça social. No fundo, Sen não
propôs um programa teórico de justiça ideal, mas antes um sistema prático que
procurasse a majoração do bem-estar do ser humano.

6
Uma distinção clássica na teoria do direito indiano

Na parte introdutória, é ainda apresentada uma distinção clássica no que diz


respeito à teoria do direito indiano. Esta distinção aparece regularmente ao longo de toda
a obra, a qual vai servir de explicação ou até mesmo de discussão para várias questões.
De acordo com Amartya Sen, é proveitoso invocar esta distinção antiga que se
foca na ética e na teoria do direito. Ele começa então por referir a diferença entre niti e
nyaya. No fundo, ambas significam justiça, porém, nyaya designa um “conceito mais
abrangente de justiça materializada”.
Niti significa uma correção no que diz respeito ao nível dos comportamentos e
condutas, isto é, a justiça provém da concretização rigorosa dos deveres e costumes que
estão presentes na lei - a justiça propícia neste sentido, implica que se cumpra o dever
dentro de uma perspetiva deontológica severa. Nyaya, por outro lado, requer que as
consequências, que derivam das ações, respeitem a ética e que não impliquem injustiça
(isto é, a matsyanyaya, analisada posteriormente).
Amartya fala ainda de um conceito muito interessante: matsyanyaya, que
significa “a justiça do mundo dos peixes”, onde um peixe grande podia
desafogadamente devorar um peixe mais pequeno. O autor deixa claro de que devemos
evitar que a matsyanyaya integre essencialmente a justiça, e é fulcral que nunca se venha
a admitir a presença desta no mundo dos seres humanos.
Para conseguirmos compreender claramente a distinção entre niti e nyaya,
Amartya refere um exemplo do século XVI, onde Ferdinando I (sacro Imperador
romano) afirmou “Fiat justitia, et Pereira mundos” (“Que a justiça seja feita, embora o
mundo pereça”), esta alegação austera poderia simbolizar a niti (de forma severa) que
não conseguiria ver as consequências das ações ao ponto da nyaya (justiça que não
considera as suas consequências verídicas).
Sen acaba por associar a conceção de niti à conceção transcendental de Rawls.
Seguidamente, propõe como opção alternativa uma justiça comparativa. Amartya orienta
a sua reflexão para conceitos hindus tradicionais, mas procura efetivar a sua proposta
através de uma “capability approach” (trata-se de uma espécie de abordagem de
capacidades).

7
O proveito da razão

Amartya Sen, na primeira parte da sua obra “As exigências da justiça”, começa
por mostrar-se consciente de que o uso transatlântico moderno acabou por reprimir a
distinção entre “ser bom” (como qualidade moral) e “estar bem” (meramente como um
comentário sobre o estado de saúde de uma pessoa).
Apresenta também a sua pressuposição de que inúmeros atos de maldade são
executados por pessoas que atravessam momentos de ilusão, seja de que maneira for,
sobre o assunto em questão. Alega também que, talvez, seja a falta de inteligência a
provocar a falha de moral na boa conduta humana e que, por vezes, pode servir como
ajuda primordial refletir acerca do que será mais inteligente fazer e, por conseguinte,
isso fará com que tenhamos uma melhor relação perante os outros.
Amartya Sen alonga este assunto da “inteligência” e afirma que ser mais
inteligente pode proporcionar-nos uma capacidade mais eficiente de pensar de forma
mais astuta sobre os nossos princípios, objetivos e valores. Para o autor, a inteligência
opera como um instrumento que auxilia a interpretação, de que forma é que a vida dos
outros pode ser fortemente afetada pelas nossas ações e ajuda também na análise do
próprio interesse.
Para dar continuidade à sua linha de pensamento, Amartya Sen acrescenta o
facto de haver um desejo em tornar a sociedade melhor e menciona o facto de Ludwig
Wittgenstein3 ter declarado que o uso lúcido da razão seria um forte aliado para tornar
esse desejo real. Um dos principais pontos em prol da razão é, sem dúvida, o facto de ela
ajudar a controlar a ideologia e as crenças cegas.
Entre as várias críticas à tradição iluminista - Adam Smith4 foi uma figura central
no Iluminismo escocês, mas muito influente no Iluminismo francês também -, (um
grande crítico a esta tradição foi Jonathan Glover5), há algumas questões que os críticos
fizeram e que o autor destaca, desde interrogarem-se onde pode ser encontrada a solução
para o mau uso da razão, qual é a relação entre a razão e as emoções (estando incluídas a
compaixão e a solidariedade) e também qual será a última justificação (caso haja
alguma) para recorrer à razão. Há outras questões pertinentes como estas e Amartya Sen

3
Ludwig Josef Johann Wittgenstein nasceu a 26 de abril de 1889 e foi um filósofo austríaco-britânico. Dedicou-se a
inúmeras questões, por exemplo, à desconstrução da própria mente.
4
Adam Smith nasceu a 5 de junho de 1723 e foi um filósofo e economista escocês. É considerado o “Pai da Economia
Moderna”.
5
Jonathan Glover nasceu em 1941 e é um filósofo britânico. É conhecido pelos seus estudos sobre a ética.

8
debruça-se nelas para exercer a sua linha argumentativa da razão na exploração da ideia
de justiça na sua obra.
É citado por Sen um imperador mongol da Índia - Akbar6 -, pois ele atribui
especial “atenção à necessidade de paz comunal e colaboração frutuosa na já
multicultural Índia do século XVI”. Akbar solicitou que o dever do Estado era garantir
que os Homens não fossem prejudicados devido à sua religião e que todos podiam
mudar para a religião que pretendiam.
Foi uma figura importante, pois, para Akbar, a procura pela razão (chamou-lhe
de “o terreno pantanoso da tradição”) era o caminho a percorrer para a resolução de
problemas difíceis relativamente aos desafios da construção de uma sociedade justa.
Akbar acabou por concluir que o “caminho da razão” ou “a regra do intelecto” (rahi aql)
devia ser o motivo para um comportamento justo e assertivo.
Amartya Sen concorda com o facto do imperador Akbar referir que a razão é
indispensável. O autor sustenta, ainda que, até mesmo a importância das emoções pode
ser apreciada no interior da esfera da razão. A razão e emoção executam papéis
complementares na reflexão humana. Claramente que conseguimos ver que os juízos
éticos procuram o uso da razão, mas questiona-se por que razão deveríamos aceitar que
a razão tem de ser o mediador final das crenças éticas. Depois de uma vasta
argumentação, Amartya chega a dizer que talvez a dificuldade seja o facto de ser
apresentada uma certeza precipitada e por sinal mal fundamentada, e não o uso da razão
em si mesmo.

6
Jalaludim Maomé Aquebar, também conhecido como Akbar, foi o terceiro imperador mongol da Índia. Nunca
aprendeu a ler nem a escrever, porém, constata-se que era um governador muito bem informado.

9
Crítica à teoria da justiça de John Rawls

Amartya Sen expressa a sua forte vontade de reconhecer tudo aquilo que
aprendeu com Rawls, começa então por mencionar que todos nós estamos em dívida
perante Rawls “por ele ter reavivado o interesse filosófico no tema da justiça”. O autor
revela o privilégio que teve em poder considerar Rawls como amigo e diz com a maior
clareza que os seus comentários, críticas e sugestões influenciaram radicalmente o seu
próprio pensamento. É referido também que a teoria original de John Rawls
desempenhou um papel bastante importante no que diz respeito em conseguirmos
compreender os vários aspetos da ideia de justiça.
Segundo Rawls, o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade e é
visto por via de uma perspetiva da equidade. Para Amartya Sen, a estrutura da
“equidade” que resultou da conceção rawlsiana, fica averiguada se for analisada a
linguagem que nos orienta para a ideia da posição original - projeto de Rawls. É nessa
ideia construtiva de posição original (situação hipotética de igualdade primordial) que se
baseia a exigência de imparcialidade, e esta especificação acaba por ser central para a
teoria da “justiça como equidade”.
Na posição original (dispositivo mais célebre do pensamento rawlsiano), ocorre
um pacto entre as “partes” do acordo. Esta situação imaginada tem como objetivo a
escolha consensual dos princípios (os indivíduos fazem uma espécie de reflexão
filosófica, ao que se denomina por equilíbrio refletido). Segundo John Rawls, esta
posição funciona como uma interpretação da conceção política mais adequada da
justiça.
O que Rawls propôs foi que os princípios de justiça fossem deliberados na tal
posição original, sob um véu da ignorância (onde as partes desconhecem qual seria a sua
posição social) para serem feitas escolhas (dos princípios de justiça) de forma equitativa
e mais imparcial possível. Os princípios de justiça rawlsianos são dois (estando o
segundo dividido em duas alíneas): Princípio das liberdades iguais para todos e Princípio
da diferença e da igualdade equitativa de oportunidades.
Apesar de Amartya Sen considerar toda esta teoria extraordinária, aponta-lhe
alguns problemas e dificuldades. Na obra A Ideia de Justiça, Sen duvida que, na posição
original, exista apenas um conjunto de princípios dispostos a conduzir a instituições
justas, sendo que o entendimento de justiça forma-se com base em preocupações

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bastante diferentes entre si. Acaba assim, por privilegiar uma pluralidade de princípios.
Assim sendo, apenas a partir de um pressuposto plural é que é possível escolhermos os
princípios de justiça que verdadeiramente importam.
É também referido por Sen que Rawls não nos disponibiliza uma orientação
definitiva relativamente à avaliação das violações da igualdade equitativa de
oportunidades. O mesmo acontece com as violações das liberdades, o que acaba por
impossibilitar a realização do primeiro princípio de justiça visto que as liberdades
assumem tipos diferentes.

11
Além do rendimento: a virtude da felicidade

Uma das implicações mais significativas da economia do bem-estar, estabelecida


por Sen, é posicionar a felicidade como principal guia para compreender o bem-estar
humano e as oportunidades usufruídas pelos diferentes indivíduos.
Amartya Sen vai além da simplificação do bem-estar para uma referência
fundamentalmente económica, alegando que a qualidade de vida de uma pessoa não
pode ser adequadamente avaliada segundo apenas o seu rendimento ou a posse de
recursos materiais.
Neste sentido, Sen introduz o conceito de “capacidades”, que se referem às
liberdades ou oportunidades que os indivíduos têm para alcançar diferentes satisfações,
incluindo saúde, educação, segurança e bem-estar emocional (sendo estas dimensões
cruciais para o progresso social). Propõe, então, uma análise da justiça e
desenvolvimento com base nos “funcionamentos” que uma pessoa pode alcançar e nas
capacidades que possui.
A pobreza, nesta obra, é percebida não apenas como uma falta de recursos
financeiros, mas como uma privação das capacidades básicas necessárias para uma vida
plena, pois, em certa medida, esta escassez cria as condições que propiciam uma
existência empobrecida.
Para Sen, o dinheiro é um meio para adquirir acesso a serviços de saúde,
educação e lazer, contribuindo assim para a expansão das capacidades e oportunidades
de uma pessoa. Assim sendo, o bem-estar não é apenas uma questão de quantidade de
recursos, mas de qualidade de vida, liberdade e realização pessoal.
No entanto, a insuficiência de rendimento não é a única causa subjacente à
disseminação da pobreza, sendo assim, crucial superar privações de diversas naturezas
para enfrentar efetivamente a injustiça social. Assim, o crescimento económico não deve
ser percebido como uma solução universal para todos os problemas económicos, como a
miséria e a infelicidade das pessoas.
Não obstante, também os diversos desafios enfrentados pelas pessoas em
economias prósperas preocupam vários economistas. Consequentemente, a problemática
da infelicidade é observada tanto entre os pobres, quanto entre aqueles com maiores
posses económicas.
A relação entre rendimento e felicidade, de acordo com Sen, é notavelmente

12
complexa e transcende as suposições concebidas por teóricos que incorporam
exclusividade na importância do rendimento em relação à felicidade, defendendo que,
embora a maioria das pessoas anseie por mais rendimento e lute por isso, à medida que
as sociedades se tornam mais prósperas, os seus membros não são necessariamente mais
felizes.

13
Arquitetura da felicidade diante adversidades

Constata-se que, por muito tempo, a teoria económica foi dominada por uma
perspetiva do utilitarismo e, por isso, Sen apresentou um novo discurso, centrado nas
liberdades e capacidades das pessoas, capaz de refletir de maneira mais eficaz as
exigências da justiça no quotidiano (o autor afirma que abranger as exigências da justiça
não é um processo que envolve um “exercício solitário maior do que em qualquer outra
disciplina humana”).
O autor destaca a necessidade de não negligenciar outros elementos cruciais,
como liberdade, igualdade e fraternidade, dado que, também desempenham papéis
essenciais na promoção da felicidade. Enfatiza, ainda, a importância de uma reflexão
racional sobre as impressões e sentimentos para avaliar as inclinações, destacando a
necessidade premente de um debate aberto sobre temas como imigração, intolerância
racial, falta de acesso à assistência médica e o papel das mulheres na sociedade.
Em certa medida, a teoria ética idealizada por Amartya Sen visa adotar uma
perspetiva que almeja maximizar a justiça em decisões específicas. Ainda assim, o
cálculo utilitarista, fundamentado na felicidade ou satisfação de desejos, pode revelar-se
profundamente injusto para aqueles que enfrentam privações persistentes.
Dados os imperativos da vida, os desejos e a constituição mental, verifica-se que
tendem a ajustar-se às circunstâncias do dia a dia, tornando a vida significativa mesmo
diante das adversidades. É possível encontrar felicidade mesmo em condições altamente
desfavoráveis e injustas. Justificar a injustiça, ordinariamente, seria aceitável se a
felicidade fosse o único valor considerado na distribuição dos benefícios sociais.
Embora Amartya Sen tenha averiguado o utilitarismo, ele recusa ceder à tentação
de simplificar os critérios de utilidade a um único elemento, mesmo sabendo que essa
abordagem simplificada facilite o cálculo da utilidade, pois ela vem com um sacrifício: o
de comprometer a própria justiça que Sen pretende alcançar.
Sen, na sua obra, expõe que, no mundo, há pessoas que enfrentam privações
significativas. Alguns desses indivíduos aceitam a vida que levam não por escolha, mas
devido à falta de alternativas ou porque se acostumam à ideia e às provações que
enfrentam, tornando mais fácil a adaptação à vida diária e minimizando o seu
sofrimento. Minorias oprimidas em comunidades e culturas intolerantes, trabalhadores
explorados e mulheres ou crianças forçados a desempenhar tarefas que não lhes

14
pertencem compreendem a realidade. Diante dessas condições desfavoráveis, poucos
têm a coragem de lutar pelos seus direitos, e ainda menos arriscam sonhar com algo
maior. Ficam, por isso, as suas aspirações limitadas, adaptando-se aos seus modestos
desejos e expectativas.
Os pequenos ajustes têm um mérito considerável para aqueles que enfrentam
adversidades, permitindo-lhes encontrar paz em meio às dificuldades. Esses ajustes
geram efeitos que se traduzem em felicidade ou satisfação de desejos. Com base nesses
factos, Sen reconhece que as desvantagens enfrentadas por essas pessoas podem
aparentar ser menores do que uma análise objetiva das suas privações e falta de
liberdade.
Paralelamente, a adaptação das expectativas à privação desempenha um papel
significativo na perpetuação das desigualdades sociais, incluindo as enfrentadas pelas
mulheres. Amartya Sen aconselha fazer uma distinção clara entre a defesa da perspetiva
utilitarista da felicidade, numa tentativa de reviver a filosofia Iluminista dos anos
setenta, e a necessidade de verificar em que medida as pretensões sugeridas podem ser
adotadas sem negar a existência de escalas de felicidade adaptáveis em casos de
privações persistentes. Desta forma, Sen destaca a importância da distinção entre
comparações interpessoais de bem-estar e comparações das situações relativas à mesma
pessoa.
A adaptabilidade influencia a confiabilidade das comparações interpessoais de
utilidades, uma vez que não eliminam as privações reais que caracterizam vidas
miseráveis, nem atendem às exigências da justiça social.
No que diz respeito às comparações dentro da mesma pessoa, Sen sustenta que,
considerando a felicidade como algo relevante para a qualidade de vida, a criação de
alegria pela adaptação das expectativas e tornando os desejos mais "realistas" pode
resultar em ganho de felicidade.
Neste contexto, há espaço para a felicidade e a satisfação de muitos desejos,
mesmo em condições de adaptabilidade. Sen reconhece que, de facto, a relação entre
circunstâncias sociais e perceções também apresenta desafios para determinar o sistema
métrico a ser aplicado às utilidades, dado que isso pode dificultar a deteção de privações.

15
Uma visão singular que atinge uma justiça plural

Amartya Sen estabelece um elo entre democracia e racionalidade pública,


destacando a importância da argumentação pública e compreensão da justiça para uma
democracia robusta.
Enfatiza a democracia como “governo pela discussão”, criticando a visão mais
antiga de democracia como sistema de votação. Sen assevera que a democracia vai além
de processos eleitorais, englobando a articulação pública da razão e a aspiração pela
justiça.
Aborda, ainda, a complexidade da argumentação racional pública e a importância
da resolução incompleta nestes contextos, ilustrando a sua argumentação com o exemplo
das três crianças a discutir por uma flauta, na qual ressalta a pluralidade de razões e a
complexidade inerente à procura por justiça.
A distinção entre niti (correção no âmbito das organizações e comportamentos) e
nyaya (justiça realizada) permeia o trabalho de Sen. Ele evidencia o seu maior interesse
na nyaya em detrimento da niti, argumentando que a justiça não se resume apenas a
julgar as instituições, mas, substancialmente, a avaliar as sociedades na sua essência.
Para além disto, Sen debate o consequencialismo e o deontologismo, recorrendo
ao épico Mahabarata, um texto clássico da literatura indiana, onde Krishna
(deontologista) acredita que a moralidade vai além das consequências, enquanto Arjuna
(consequencialista) considera que estas são o único padrão ético.
A ética deontológica difere do consequencialismo uma vez que não trata agentes
morais como meios para promover estados valiosos, enquanto um procedimento
contratualista prioriza o justo sobre o bem, substituindo compromissos por deliberação.
Segundo Sen, tanto o deontologismo como o consequencialismo são importantes.
Neste sentido, observa-se que Sen contrapõe a sua visão à de John Rawls e às propostas
de outros autores, como Thomas Hobbes ou Kant, criticando a teoria de justiça
transcendental de Rawls por reduzir questões de justiça a uma retórica vazia.
Por fim, Amartya Sen critica a visão transcendental e salvaguarda a necessidade
de uma abordagem propícia à redução das injustiças nas sociedades contemporâneas,
requerendo uma moralidade humanitária e a dedicação ao estudo de estratégias de longo
prazo para uma mudança radical nas combinações institucionais.
O autor demonstra que a justiça global deve respeitar procedimentos alinhados

16
com os imperativos da justiça, salientando também a importância da transparência e da
compreensão das condições subjacentes à aceitação de determinados princípios e
valores.
Ulteriormente, conclui que a ação moral e ética pode criar as condições
necessárias para deliberações positivas em prol da justiça.

17
Conclusão

Perante esta recensão crítica alusiva à obra A Ideia de Justiça de Amartya Sen,
foi possível abranger grande parte do conteúdo apresentado de uma forma precisa e
cognoscível.
A argumentação crítica de Sen é seguramente cativante e envolvente. O autor
conseguiu, de facto, expressar-se por inúmeros caminhos, e o destino de todos eles foi a
própria justiça. Entre todas as esferas de reflexão que foram adotadas nesta obra, a que
mais se evidencia possivelmente será o destaque da primordialidade das capacidades
individuais.
É inquestionável o facto deste livro desafiar paradigmas tradicionais e
proporcionar uma perspetiva mais ampla e inclusiva, integrando também considerações
éticas, políticas e económicas.
O ilustre Amartya Sen, não estimula apenas os leitores a repensar nos conceitos
enraizados na sociedade, encoraja também a contemplação da diversidade de anseios da
vida humana, proporcionando comportamentos que tenham como prioridade a
capacidade das pessoas de viverem vidas significativas e realizadoras.
Por fim, através desta obra conseguimos perceber a urgência que há em acabar
definitivamente com várias situações que afrontam a humanidade. Sen reflete também
que tem de existir um propósito de mudança para toda a raça humana, principalmente
para aqueles que não conseguem ver os problemas concretos.

18
Referência bibliográfica

KUMAR SEN, Amartya ( 2009 ). A Ideia de Justiça, Companhia das Letras.

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