Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
casos clínicos 85
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2009, vol XVIII, n.º 2
DISCUSSÃO
A TSVC em crianças é um distúr-
bio raro, com uma incidência é de 0,67
Figuras 3 e 4 – A angio-ressonância mostra ausência completa de fluxo no seio longitudinal supe- casos por 100 000 crianças por ano, o
rior e significativa, embora parcial, nos componentes laterais dos seios transversos. que é provavelmente um subestimativa
da verdadeira frequência(7). É uma com-
plicação rara do SN, quer seja corticos-
sensível ou corticorresistente(6,8), mas o
aumento no número de casos descritos
sugere que possa ter sido subdiagnos-
ticada no passado(6). Divekar et al en-
contraram apenas um caso de TSVC em
700 crianças com SN seguidas durante
um período de 17 anos(9). A incidência
exacta é desconhecida, mas parece re-
presentar entre 4,7 % e 6% de todos os
casos de TSVC em crianças, excluindo
Figuras 5 e 6 - A ausência de área de hiperssinal em T2 FLAIR e em T1, traduz a resolução do os recém-nascidos(6).
trombo. Vários factores contribuem para o
estado de hipercoagulabilidade em crian-
ças com SN. Estes incluem aumento
da actividade procoagulatória (aumento
dos níveis plasmáticos de fibrinogénio,
factores V e VIII), perda urinária de an-
titrombina III, alteração do sistema fibri-
nolítico (aumento de α2-antiplasmina e
diminuição de plasminogénio), trombo-
citose e aumento da activação e agre-
gação plaquetárias(4,6,10,11). A hemocon-
centração, resultado da contracção do
Figuras 7 e 8 – A angio-ressonância mostra que todos os seios durais estão patentes, embora de volume plasmático, pode contribuir para
calibre irregular. o estado de hipercoagulabilidade(6,12) e a
86 casos clínicos
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2009, vol XVIII, n.º 2
hiperlipidemia por si só também pode ser mozigotia para esta mutação, os níveis O tratamento de eleição é a hipoco-
protrombótica(6). O uso de diuréticos, in- séricos de homocisteína eram normais. agulação com heparina não-fraccionada
fecção, imobilização, desidratação e trau- O polimorfismo 4G/5G no gene do PAI- ou heparina de baixo peso molecular
matismos vasculares podem constituir 1 pode influenciar a expressão do PAI-1 (HBPM) durante cinco a sete dias, se-
factores predisponentes adicionais(4,6,8). A e, como tal, comprometer a fibrinólise(16). guida de HBPM ou antagonistas da vi-
contribuição dos corticóides permanece Este polimorfismo parece aumentar o tamina K durante três a seis meses(6,17),
controversa(6). risco de trombose venosa em doentes ou enquanto o doente tiver proteinúria
No maior estudo de crianças com com trombofilia hereditária(16), mas o seu nefrótica, um nível de albumina inferior
SN e TSVC, que incluiu um total de 21 papel na trombose venosa cerebral pre- a 2,0 g/dL ou ambos(10,11). A hipocoagu-
casos, o défice de antitrombina foi a cisa de ser esclarecido. lação em crianças com TSVC mostrou
anomalia da coagulação encontrada O diagnóstico de TSVC permanece ser segura e eficaz(7,17,18) e tem como ob-
com maior frequência, não tendo sido difícil devido à sintomatologia neurológica jectivo prevenir a propagação do trombo
identificados défices de outros inibido- inicial ser subtil e variável, como se veri- e diminuir a morbilidade e mortalidade
res da coagulação (proteína S, proteína ficou no caso descrito, mas um diagnós- associadas(7). Uma vez que o tratamento
C). No entanto, uma hipoalbuminemia tico precoce é necessário para prevenir com heparina requer níveis adequados
grave (< 2,0 g/dL) foi o factor de risco morbilidades graves(6,7). de antitrombina, que estão frequente-
mais frequente. Esta condiciona hipo- Porque o quadro clínico de TSVC mente reduzidos em doentes com SN, a
volemia, com consequente aumento da é inespecífico, o diagnóstico é depen- reposição de antitrombina ou a adminis-
viscosidade do sangue. No mesmo es- dente da imagem(11). A TC cerebral é tração de plasma fresco congelado pode
tudo, apesar de não estarem disponíveis geralmente o primeiro exame de ima- ser necessária(6).
dados relativos a trombofilias hereditá- gem realizado em crianças e adultos A hipocoagulação profilática per-
rias na maioria dos casos descritos, foi com sintomas neurológicos(6). Na maio- manece controversa(6). Ela não é reco-
documentado apenas um caso (mutação ria dos casos, o diagnóstico de TSVC mendada, a menos que o doente tenha
do Factor V de Leiden), sugerindo que pode ser feito com base nos achados tido um evento tromboembólico(4,6) ou
anomalias da coagulação adquiridas, da TC(10). No entanto, a TC convencional tenha um alto risco de trombose com
mais do que genéticas, estão envolvi- pode não detectar a presença de TSVC base numa concentração de albumina
das no desenvolvimento de trombose(6). em até 40% das crianças e subestimar inferior a 2,0 g/dL, um nível de fibrino-
Um outro factor importante a considerar a extensão do trombo e a presença de génio superior a 6 g/L ou um nível de
é o aumento da lipoproteína (a) [Lp(a)], enfartes venosos(6,17), sendo a RMN com antitrombina III inferior a 70% do valor
que está associado a um compromisso angio-RM, o método de diagnóstico de normal(4,6,19,20). O uso de ácido acetilsa-
da fibrinólise(6) e mostrou ser o factor de escolha da TSVC em crianças(6,7,10,11,18). licílico em baixas doses (2-5 mg/Kg/
risco protrombótico independente mais A combinação de um sinal anormal num dose) foi considerado, mas não foram
importante em crianças com TSVC(13). O seio venoso e a correspondente au- realizados estudos controlados que de-
nosso doente apesar de não apresentar sência de fluxo na angio-RM confirma monstrem a sua eficácia na prevenção
proteinúria no momento do diagnóstico, o diagnóstico de trombose(18). Os estu- de tromboses(6). Durante uma recaída
encontrava-se ainda com dose elevada dos de imagem de crianças com TSVC do SN, o uso prudente de diuréticos, a
de corticóide e albumina sérica baixa, e SN constatam uma predilecção pelo evicção de infecções e a manutenção
por recidiva recente. Tal como ainda não envolvimento do seio sagital superior, do nível de albumina são todas medi-
havia normalização dos valores da albu- com envolvimento menos frequente do das preventivas úteis(5). No caso des-
mina, é plausível que as alterações da sistema venoso profundo e raras lesões crito, dado o episódio de trombose e a
coagulação que acompanham o SN ain- do parênquima(6), o que está de acordo presença de trombofilia hereditária op-
da persistissem, o que associado às al- com os estudos publicados sobre trom- tou-se por manter profilaxia com ácido
terações congénitas encontradas no es- bose venosa cerebral em crianças(7,14,17) acetilsalicílico.
tudo pró-trombótico seriam factores de e com o caso descrito. A ausência de
risco para trombose. O doente apresen- anomalias do parênquima cerebral con- CONCLUSÃO
tava um nível de fibrinogénio ligeiramen- tribui para o bom prognóstico, geralmen- A TSVC é uma complicação co-
te aumentado e heterozigotia para a mu- te, encontrado nesta população(7,17). No nhecida do SN. Como tal, deve ser con-
tação G20210A do gene da protrombina, nosso doente, a presença de um quadro siderada em qualquer doente com SN
que é um factor de risco para trombose de cefaleias, irritabilidade e prostração, que apresente sintomas neurológicos,
venosa cerebral(14). O defeito genético fez-nos insistir na possibilidade de com- ainda que inespecíficos. Perante a sus-
mais comum responsável pela hiperho- plicação tromboembólica ao nível do sis- peita de TSVC, deve ser realizada de
mocisteinemia, factor de risco para trom- tema nervoso central pelo que, apesar imediato uma RMN com angio-RM por-
bose venosa e arterial, é a homozigotia de uma TC cerebral normal, se proce- que um diagnóstico e tratamento pre-
para a variante termolábil da MTHFR(15). deu à realização da RMN cerebral com coces são fundamentais para reduzir a
Apesar do nosso doente apresentar ho- angio-RM, que confirmou o diagnóstico. morbilidade.
casos clínicos 87
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2009, vol XVIII, n.º 2
CEREBRAL SINOVENOUS 2. Tullu MS, Deshmukh CT, Save SU, 13. Heller C, Heinecke A, Junker R, Knö-
THROMBOSIS IN A CHILD WITH Bhoite BK, Bharucha BA. Superior fler R, Kosch A, Kurnik K, et al. Cer-
NEPHROTIC SYNDROME: sagittal sinus thrombosis: a rare com- ebral Venous Thrombosis in Children:
ABOUT A CASE REPORT plication of nephrotic syndrome. J A Multifactorial Origin. Circulation
Postgrad Med 1999; 45:120-122. 2003 ; 108: 1362-1367.
ABSTRACT 3. Orth SR, Ritz E. Medical progress: the 14. Reuner KH, Ruf A, Grau A, Rickmann
Children with nephrotic syndrome nephrotic syndrome. N Engl J Med H, Stolz E, Jüttler E, et al. Prothrombin
have an increased risk of thromboembol- 1998; 338: 1202-1211. Gene G20210A Transition Is a Risk
ic complications. Cerebral sinovenous 4. Niaudet P. Complications of idiopathic Factor for Cerebral Venous Thrombo-
thrombosis is a rare complication in this nephrotic syndrome in children. Up- sis. Stroke 1998; 29: 1765-1769.
population, with few cases reported in ToDate version 16.1. 15. Khan S, Dickerman JD. Hereditary
the literature, but is being increasingly 5. Lin CC, Lui CC, Tain YL. Thalamic thrombophilia. Thrombosis Journal
recognised. stroke secondary to straight sinus 2006, 4:15.
We report the case of a three and thrombosis in a nephrotic child. Pedi- 16. Segui R, Estelles A, Mira Y, Espana F,
a half years old boy with a steroid de- atr Nephrol 2002; 17: 184-186. Villa P, Falco C, et al. PAI-1 promoter
pendent nephrotic syndrome and head- 6. Fluss J, Geary D, deVeber G. Cerebral 4G/5G genotype as an additional risk
ache, to whom superior sagittal sinus sinovenous thrombosis and idiopathic factor for venous thrombosis in sub-
and transverse sinuses thrombosis was nephrotic syndrome in childhood: re- jects with genetic thrombophilic de-
diagnosed by brain magnetic resonance port of four new cases and review of fects. Br J Haematol, 2000; 111(1):
imaging with magnetic resonance angiog- the literature. Eur J Pediatr 2006; 165: 122-8.
raphy. Began treatment with low molecu- 709-716. 17. Sébire G, Tabarki B, Saunders DE,
lar weight heparin, with resolution of the 7. deVeber G, Andrew M, Adams C, Leroy I, Liesner R, Saint-Martin C, et
thrombosis after three and a half months Bjornson B, Booth F, Buckley DJ, et al. Cerebral venous sinus thrombosis
of treatment. al. Cerebral sinovenous thrombosis in children: risk factors, presentation,
Through our case and the review of in children. N Engl J Med 2001; 345: diagnosis and outcome. Brain 2005;
the literature, we emphasize the impor- 417-423. 128: 477-489.
tance of brain magnetic resonance imag- 8. Lilova MI, Velkovski IG, Topalov IB. 18. Stam J. Thrombosis of the cerebral
ing with magnetic resonance angiography Thromboembolic complications in veins and sinuses. N Engl J Med
in the diagnosis of cerebral sinovenous children with nephrotic syndrome in 2005; 352: 1791-1798.
thrombosis in children with nephrotic syn- Bulgaria (1974-1996). Pediatr Ne- 19. Citak A, Emre S, Sairin A, Bilge I,
drome, who develop neurological symp- phrol, 2000; 15: 74-78. Nayir A. Hemostatic problems and
toms and the need to immediatly start hy- 9. Divekar AA, Ali US, Ronghe MD, Singh thromboembolic complications in
pocoagulation therapy, to prevent serious AR, Dalvi RB. Superior sagittal sinus nephrotic children. Pediatr Nephrol,
complications. thrombosis in a child with nephrotic 2000; 14: 138-142.
Keywords: Nephrotic syndrome; syndrome. Pediatr Nephrol 1996; 10: 20. Schlegel N. Thromboembolic risks
Cerebral sinovenous thrombosis; Mag- 206-7. and complications in nephrotic chil-
netic resonance imaging with magnetic 10. Rodrigues MM, Zardini LR, de Andrade dren. Semin Thromb Hemost 1997;
resonance angiography; Low molecular MC, Mangia CM, Carvalhaes JT, Vila- 23(3): 271-80.
weight heparin nova LC. Cerebral sinovenous throm-
bosis in a nephrotic child. Arq Neurop-
siquiatr 2003; 61 (4): 1026-1029.
Nascer e Crescer 2009; 18(2): 85-88 11. Pirogovsky A, Adi M, Dagan A, Sinai CORRESPONDÊNCIA
L, Sthoeger D, Barzilai N, et al. Supe- Filipa Balona
rior sagittal sinus thrombosis: a rare Centro Hospitalar de Vila Nova de
BIBLIOGRAFIA complication in a child with nephrotic Gaia / Espinho, EPE
syndrome. Pediatr Radiol 2001; 31: Serviço de Pediatria
1. Kliegman RM, Behrman RE, Jenson 709-711. Rua Francisco Sá Carneiro, 4430 Vila
HB, Stanton BF. Nelson Textbook 12. Niaudet P. Etiology, clinical manifes- Nova de Gaia
of Pediatrics, 18th edition. Philadel- tations, and diagnosis of nephrotic Telefone: 227865100
phia: Saunders, 2007; Chapter 527: syndrome in children. UpToDate ver- e-mail: filipabalona@hotmail.com
2192-2194. sion 16.1.
88 casos clínicos